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CARGA DE RISO

Crónica de um comboio escalfado VI Era o último dia de uma vida activa… Coisas que acontecem na vida de um revisor. Isto de diariamente ter de lidar com tanta gente diferente exige uma adaptação funcional contínua. Mais ainda quando uma das particularidades desta profissão obriga a ter, ou a encontrar, mesmo que não existam, soluções e respostas para todas as solicitações que os utentes dirigem ao pica-bilhetes. “Não se pode agradar a gregos e a troianos”, no caso do revisor, tal ditado popular não se ajusta a tão digna profissão, pois a impaciência dos passageiros exige resultados imediatos. E quando tal não acontece, o homem parece mais um muro das lamentações e dos impropérios do que um simples funcionário da CP. Casimiro Gorgulho, de voz rouca, extremamente irritante, era um dos casos que mais arreliava Aniceto Florival Cansado, o pica-bilhetes. Há dez anos que fazia o trajecto Beja - Pinhal Novo e, no mesmo dia ao final da tarde, o regresso. Pois a tal figura, anos e anos percorrendo diariamente o mesmo percurso, nunca lhe ocorrera memorizar um apeadeiro, uma estação, a pôrra de um sobreiro na paisagem, ou outra coisa qualquer que lhe permitisse situar-se na viagem. Não, de maneira nenhuma! Constantemente interpelava o revisor, para lhe perguntar

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Jorge Serafim Humorista

onde estava ou se faltava muito para chegar ao destino. O funcionário, consciente dos deveres da sua profissão, mantinha um sorriso e uma complacência que escondia de sobremaneira as perturbações nervosas que aquele pedaço de burrice em movimento lhe causava. Tal escassez de memória devia-se à sua devoção ao prazer de fazer palavras cruzadas. Tão compenetrado ficava em encontrar as palavras certas, que nunca levantava a cabeça para espreitar pela janela da carruagem. Nem sequer ouvia os anúncios de chegada e partida. Já chegámos? Já partimos? Falta muito? Está atrasado? Todo um conjunto de questões, que levaram o revisor a reflectir sobre o porquê desta procura desenfreada sobre as palavras escondidas. Pior do que isto, eram os passageiros de origem estrangeira… Aniceto Florival Cansado nunca foi propenso a aprender outras línguas. A dele já lhe dava um tra-

balhão expressá-la condignamente, agora inglês, francês…. Ui, ui. Alemão, então, era um Deus nosso Senhor me acuda! Ele bem que falava um português pausado, na esperança de que a língua de Camões articulada em slow motion, assumisse a capacidade de ser perceptível pelos passageiros de origens estranhas. Aliás, quando os via a entrar na carruagem, loiros, de olhos azuis, chinelos e de unhas dos pés mais pretas do que as cascas dos mexilhões, apenas suspirava: “Estou tramado!” Please, what’s the name of next station? Perguntas deveras incómodas para um homem à beira da reforma e que, como tal, nunca sentiu necessidade de investir em linguagens que não teriam nenhuma utilidade para um humilde funcionário que já tinha programado os seus dias de descanso, fruto dos anos dedicados a descontar para a segurança social, no cuidar da horta de família que recebeu de herança aquando da morte do falecido pai, devido a um coice que uma burra lhe enfiou mesmo no meio da testa. Diz-se que o pai, com uma bebedeira, quis abraçar a burra, sua companheira de uma vida inteira no trabalho, mas quando se dirigia ao animal encalhou numa pedra e tombou sobre as traseiras da bicha; esta, surpreendida pela brusquidão do movi-


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