O BELO CONTEMPORÂNEO: Corpo, moda e arte
Renata Pitombo Cidreira ORGANIZADORA
Salvador – Bahia 2019
O BELO CONTEMPORÂNEO: Corpo, moda e arte ORGANIZAÇÃO RENATA PITOMBO CIDREIRA FOTOGRAFIA DA CAPA Leto Carvalho PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO Henrique Duarte © 2019 Renata Pitombo Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte constitui violação dos direitos do autor (Lei n.º 9610-98).
Impresso no Brasil | Printed in Brazil Contato organizadora | Contact organizer E-mail: pitomboc@yahoo.com.br
SUMÁRIO
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APRESENTAÇÃO
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INTRODUÇÃO: A superação da morte da arte pela estetização do corpo e do comportamento Monclar Valverde
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Primeira Parte: Criações visuais
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O PRAZER DO BELO: NA TELA E NA APARÊNCIA Gina Rocha Reis Vieira & Renata Pitombo Cidreira
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DIGRESSÕES SOBRE BELEZA, CIDADES, CORPOS E SUAS MODIFICAÇÕES Beatriz Ferreira Pires
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O DANDISMO DE ARTHUR BISPO DO ROSÁRIO: A VIDA COMO OBRA DE ARTE Etevaldo S. Cruz
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UM CORPO EM ONDAS: A POÉTICA DO ESTUDO DA ÁGUA DE ISADORA DUNCAN Hanna Cláudia Freitas Rodrigues
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Segunda Parte: Pluralidades corporais
133 Terceira Parte: Aparências midiatizadas
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PRIMEIRO, A BIXA É BONITA, SEGUNDO, ELA FECHA: A DIMENSÃO SENSÍVEL ATRAVÉS DAS VESTES DE TIKAL Baga de Bagaceira Souza Campos
134 CORPO, BELEZA E ESPORTE NA IMPRENSA BAIANA: 1916 – 1928 Henrique Sena dos Santos
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KEEPING UP WITH THE KAR DASHIANS: A NATURALIZA ÇÃO DOS REALITY SHOWS E A NOVA CONCEPÇÃO DE CORPO FEMININO Clécia Junqueira
101 CORPO, MODA E BELEZA: DESFILES DE MODA COMO CAMPO DE POSSIBILIDADES CORPORAIS Renata Costa Leahy 118 IDENTIDADE E IDENTIFICAÇÃO: O CORPO GORDO, A BELEZA E A MODA PLUS SIZE Rosane da Silva Gomes
149 A IMAGEM DO CORPO E A IMAGEM BELA DAS REVISTAS DE MODA Larissa Molina Alves 162 O CORPO BELO NA PUBLICIDADE E NA MODA Fernanda Barbosa dos Santos 178 CORPOS MAGROS, CORPOS BELOS: IDEAL DE BELEZA E MÍDIA Naiara Moura Pinto 191 PERFIL DOS AUTORES 194 CAPA
APRESENTAÇÃO
Depois da insistente negação do belo no século XX e diante da multiplicidade das intervenções expressivas da contemporaneidade, a problemática do belo tem ressurgido. A crítica que o denegava tem dado lugar a um questionamento sobre novas possibilidades do reconhecimento de novos padrões de beleza, redefinindo o seu papel nos processos de criação e fruição da atualidade. A partir desse cenário, vamos nos confrontar com essa noção e tentar apreender novas concepções da Beleza, tendo o corpo vestido ou a composição da aparência como elemento norteador das discussões. Tradicionalmente, nos acostumamos a pensar a Beleza a partir de alguns princípios que a relacionam ao físico e ao visível; algo que se identifica ‘imediatamente’. No entanto, “é necessário reconhecer que os atributos de ‘imediatez’ e de ‘visibilidade’ pertencem (...) à gnosiologia pré-aristotélica (...) e restituem (...) a primazia atribuída à visão que caracteriza as primeiras formulações do problema gnosiológico no pensamento grego” (MECCHIA, 1992, p. 164). Em Platão, a beleza aparece como o que de mais visível existe: ela resplandesce de verdadeira luz entre as essências. “Só a beleza goza deste privilégio de ser a mais aparente (ekphanestaton) e a mais amável (erasmiotaton)” das essências... (PLATÃO apud AGAMBEN, 1992, p. 141). Mas, ao que parece, o paradoxo da definição platônica de beleza é a visibilidade do invisível! Outra forma recorrente de enquadramento do Belo se estabelece através de uma ênfase normativa, associando-o as relações de simetria, proporção e equilíbrio. Estas noções são herdeiras do pen-
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samento pitagórico, ancorado numa abordagem estético-matemática do universo, sustentando que existe uma correlação entre ordenação e beleza. Para os pitagóricos a harmonia estava relacionada à exigência de simetria: equilíbrio entre duas entidades opostas que se neutralizam uma à outra. A escola pitagórica contribuiu muito para as reflexões da Estética, sobretudo no que se refere a música e as artes visuais, tendo a noção de harmonia como um norteador para o reconhecimento do Belo, visando a unidade entre elementos. Mas já antes mesmo do platonismo parece que o belo também se aproxima do campo ético, associando-se ao bom, ao agradável e mesmo ao útil. A relação entre a beleza e a verdade que aparece também em Platão parece herdeira dessa tradição. Em Aristóteles, a beleza tem relação com a perfeição e a unidade orgânica entre as partes. De todo modo, o enquadramento mais interessante sobre a questão do Belo comparece na obra de Immanuel Kant, no século XVIII. Kant não só retoma essa ambiguidade platônica entre essência e aparência, mas a reconfigura no horizonte de uma dinâmica entre saber e prazer, que se concretiza num “significante excedente”. Reconhece que há algo da instância da surpresa que o belo nos suscita, pois não se trata de um simples reconhecimento, mas sim “o puro remeter de uma coisa a outra coisa; por outras palavras, o seu caráter significante, independentemente de qualquer significado concreto” (AGAMBEN, 1992, p. 146). Nas linhas que se seguem, procuramos nos debruçar, sobretudo, sobre essa surpresa, que podemos vislumbrar no corpo, na arte e na moda e nos entrelaçamentos entre esses três âmbitos expressivos. Os textos aqui reunidos refletem o universo de discussões desenvolvidas pelo Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura (cadastrado pelo CNPq e sob a minha coordenação), especialmente no ano de 2017, a partir dos textos de autores como Umberto Eco, Christoph Turcke, Hans Ulrich Gumbrecht, Jean Maisonneuve e Marilou Bruchon-Schweitzer, Jean Galard, Arthur Danto e Lars Svendsen. Immanuel Kant, Michel Maffesoli, Alfredo Bosi, Luigi Pareyson, Georg Simmel, entre outros, também são algumas referências que auxiliaram na condução das reflexões presentes neste livro.
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A coletânea celebra os 10 anos de existência do Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura e traduz as inquietações da linha Corpo e expressão. Atualmente, o grupo conta com 6 docentes dos cursos de História, Ciências Sociais, Cinema, Jornalismo e Publicidade e Propaganda, da UFRB; e um total de 30 discentes de variadas áreas do conhecimento, da graduação e da Pós-Graduação da UFRB, especialmente do Programa de Mestrado em Comunicação; e do Programa Multidisciplinar em Cultura e Sociedade da UFBA. Os estudos do grupo abrangem investigações que incorporam sensibilidade crítica e teórica para os modos de experimentações e vivências corporais, em contextos diversos. As pesquisas se interessam pelas expressões visuais da corporeidade e sua interação com o universo das mercadorias e com o campo cultural-artístico; bem como a performatividade; os estudos de gênero, os modos sociais de exercício da sexualidade; a relação entre corpo, gerações e estilo de vida. Os presentes textos são fruto de investigações acadêmicas nos vários níveis: iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado, exibindo, assim, um ambiente de discussão, troca e descoberta contínuos em que cada pesquisador (jovem ou mais experiente) tem a possibilidade de expor suas ideias e, a partir delas, estabelecer interações pedagógicas e intelectuais intensas. Ao todo, são 12 artigos que se encontram distribuídos em três grandes eixos temáticos – Criações visuais, Pluralidades corporais e Aparências midiatizadas –, além da instigante introdução de autoria do pesquisador Monclar Valverde (professor titular do IHAC/UFBA), que esteve próximo ao grupo de pesquisa em 2017, quando da realização do seu pós-doutorado, sob a minha supervisão. Na introdução, Valverde procura elucidar a questão do belo, que aparece, inicialmente, vinculada às artes, para depois ser reconhecida em outras formas de configuração existentes na experiência cotidiana. Ele considera, assim, que o que vivemos hoje, na contemporaneidade, como resultante da fadiga poética da arte conceitual, seria algo como uma reativação poética da beleza e uma reabilitação estética do gosto. Em Criações visuais encontramos reflexões que circundam o mundo da fantasia, em que o corpo se encontra imerso nas teias da
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criação e autocriação, num diálogo intenso com a dança, as artes plásticas, a pintura e o cinema, bem como com o ambiente em que habita e circula – a cidade. A beleza enigmática que há na imagem (pintura e filme) da Moça com brinco de pérola, de Johannes Vermeer, é explorada por Renata Pitombo Cidreira e Gina Reis; As investidas em modulações corporais no contexto citadino que beiram ao estranho comparecem no texto de Beatriz Pires; O imbricamento entre a arte e o corpo experimentado de forma radical pelo movimento Dândi é recuperado à luz da obra e do artista Arthur Bispo do Rosário, no texto de Etevaldo Cruz; Também a exploração do movimento em busca da beleza através da dança de Isadora Duncan é tema do texto de Hanna Rodrigues. No eixo Pluralidades corporais, a beleza comparece distanciada de padrões clássicos, exigindo novas formas de expressão de si em corpos vestidos como nos apresenta o texto de Baga de Bagaceira, num diálogo com a sexualidade e a questão racial; Do mesmo modo, novos arranjos do corpo feminino são instituídos pelos reality shows, como explora Clécia Junqueira, analisando o fenômeno da família Kardashian; Os desfiles de moda comparecem como campo de novas possibilidades corporais, apesar de conceber o corpo magro e branco como o padrão de beleza feminina, como argumenta Renata Leahy; e com as observação de Rosane Gomes sobre o lugar do corpo gordo na sociedade contemporânea e sua relação com a roupa, busca-se encontrar o belo para além de padrões estabelecidos socialmente. As Aparências midiatizadas trazem à tona a discussão sobre a influência da mídia na constituição de corporeidades e toda uma cultura visual. A imprensa do início do século XX ressurge como elemento de agenciamento de uma nova beleza e visualidade corporal através do esporte, como sustenta Henrique Sena; A apresentação de padrões de beleza para os corpos impostos pelas imagens das revistas de moda e as possíveis abordagens sobre o belo pela mídia especializada são debatidos por Larissa Molina; A representatividade da beleza negra feminina na publicidade das revistas, tendo a Glamour como referência, é questionada no texto de Fernanda
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Barbosa; O papel da imprensa escrita para a divulgação de informações relativas ao corpo e a beleza corporal também é alvo das inquietações de Naiara Pinto, que elege a revista Boa Forma para sua análise. Nesse escopo de investigações que transitam entre a imaginação, o cotidiano e os enquadramentos, expressos na arte, no corpo e na mídia, a beleza – sobretudo na conjunção com o universo da roupa e da moda – ressurge ressignificada e tendo seus limites ampliados em múltiplas formas de expressão. Reconhecemos, assim como Simmel (2010) já apontava – antecipando o que se reconhece hoje –, que de um ideal de vida baseado na imanência, na harmonia e na presença, temos o reconhecimento da vida moderna como dinâmica de desproporção e, portanto, de contingência. Em nossa época, essas dinâmicas se amplificam, e são, por vezes, acionadas conscientemente em alguns empenhos poéticos, reintroduzidas na vida cotidiana e impulsionadas pelos meios de comunicação. Dessa forma, corpo, arte e moda se entrelaçam e potencializam o efeito que a aparência produz sobre nós.
Referências AGAMBEN, Giorgio. Gosto. Enciclopédia Einaudi – Criatividade e Visão. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1992, p. 139-157, v. 25. MECCHIA, R. Belo/feio. Enciclopédia Einaudi – Criatividade e Visão. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1992, p. 158-176, v. 25. SIMMEL, Georg Apud FORTUNA, Carlos. Simmel: a estética e a cidade. Tradução de António Souza Ribeiro. Coimbra, Portugal: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010.
Monclar Valverde
INTRODUÇÃO: A superação da morte da arte pela estetização do corpo e do comportamento
A HISTORICIDADE DA ARTE E SEU CARÁTER INSTITUCIONAL
Procurando refletir sobre o complexo percurso que, supostamente, vai da “arte das cavernas” às chamadas “belas artes” e dessas às poéticas audiovisuais contemporâneas, compreendidas genericamente como “arte digital”, a primeira dificuldade que enfrentamos diz respeito ao uso da própria palavra arte, de um modo tão a-histórico. Podemos falar de “arte”, ainda hoje, com referência ao videoclipe, por exemplo, ou à canção pop que toca numa rádio digital? Por outro lado, por que, desde Hegel, fala-se da “morte da arte” e esse cadáver simbólico se reanima sem cessar, de modo que a arte é assassinada e ressuscitada praticamente a cada década, em função, talvez, de uma insegurança com relação a sua suposta “natureza”? A rigor, deveríamos evitar a utilização abstrata desse termo, pois a “Arte”, num sentido singular e maiúsculo, surgiu apenas com o nascimento do museu. Como bem assinalou Régis Debray, esta noção é uma particularidade histórica da cultura europeia moderna, já que os antigos não conheciam “a arte” e nem os publicitários ou os astros da cultura pop fazem questão de utilizar esse
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rótulo para caracterizar o seu trabalho. Segundo o autor, quando Marcel Duchamp colocou um mictório numa galeria de arte, antes de estar apenas praticando um ato de iconoclastia, estava antecipando essa compreensão do fenômeno artístico, como algo de caráter institucional. Como sugere Debray, não deveríamos, pois, nos perguntar “o que é arte?”, tentando identificar os atributos de um tipo ideal, mas procurar compreender quando algo produzido por um membro da comunidade é destacado de todos os usos prosaicos e erigido em padrão de beleza digno de ser contemplado e cultivado pelo grupo, ganhando esse estatuto de arte. O gesto de Duchamp serviu para sugerir que, se o museu é a instituição que diz o que é e o que não é arte, tudo o que estiver no museu deverá ser considerado arte, porque o que assegura o seu caráter artístico não é sua natureza substancial, mas exatamente uma relação social que se encarna nessa instituição. E é esse contexto institucional que decide a questão, pois não existe uma substância artística que nos permita identificar uma “obra de arte” com total segurança. Talvez só este critério possa enfim nos libertar da angústia quanto ao que é ou não é arte. A ARTISTICIDADE, NA ARTE E NA EXPERIÊNCIA COTIDIANA
Enquanto isso, na vida cotidiana, quando admiramos a lua cheia, deliciamo-nos com uma comida especial ou vibramos com um gol mirabolante, misto de ousadia e habilidade, nós dizemos que são verdadeiras “obras de arte”. Mesmo que estejamos incertos quanto à artisticidade da paisagem, da comida ou do esporte, reconhecemos a sua dimensão estética, pela forma como afetam nossa sensibilidade e pela adesão que são capazes de provocar. Tal hesitação sugere, por um lado, a possibilidade de um critério estético que amplie a gama das atividades consideradas, para além do círculo das chamadas “belas artes”. Por outro lado, podemos perceber aí um questionamento espontâneo daquela dicotomia que opõe, de maneira radical, experiência estética e experiência ordinária.
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Tradicionalmente, a arte foi associada à destreza, a uma certa excelência no fazer, o que levou alguns historiadores a relacionarem a primeira noção do “belo” com o critério derivado do “tecnicamente mais bem feito”. Alfredo Bosi (BOSI, 1985, p. 13) chama atenção igualmente para o diálogo com a matéria, pelo qual o artista interpreta a resistência de uma substância inerte como as condições iniciais que sugerem, ordenam e possibilitam sua ação formativa. Sem esse diálogo primeiro, essa interrogação paciente da matéria, o artista ver-se-ia condenado a um delírio extremamente frustrado, incapaz de tomar corpo e assumir uma forma passível de ser partilhada com os outros. Certamente, esse fazer característico da arte não se reduz a uma operosidade genérica, uma vez que está intimamente associado à criação, isto é, a um fazer que inventa igualmente o modo de fazer, de maneira que se pode dizer que “a atividade artística consiste propriamente no ‘formar’, isto é, exatamente num executar, produzir e realizar que é, ao mesmo tempo, inventar, figurar, descobrir” (PAREYSON, 1989, p. 32). Mas esta necessidade de reconhecer e apontar a autonomia e a especificidade da arte não nos deve cegar para o fato de que há uma artisticidade intrínseca em todas as operações humanas. Sobre este ponto, aliás, o próprio Luigi Pareyson observa que “Sem ‘formatividade’, nenhuma atividade é bem-sucedida no seu intento. Em toda a obra humana está presente um lado inventivo e inovador como primeira condição de toda realização” (Ibid., p. 36). Em suma, a arte propriamente dita pode ser definida como formatividade pura, dissociada de qualquer finalidade exterior, como atividade que não busca outra justificativa além do êxito de sua realização, mas é preciso acrescentar: “A arte verdadeira e propriamente dita, não teria mais lugar se toda a operosidade humana não tivesse já um caráter ‘artístico’, que ela prolonga, aprimora e exalta” (Ibid., p. 37/38). Dessa forma, a artisticidade seria o elo entre civilizações “de alto sentido artístico”, como a grega e a renascentista, e períodos caracterizados pela intensificação e pela multiplicação de práticas expressivas, como a nossa época. No primeiro caso, ela se
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traduz na associação entre valor artístico e específico de cada atividade; no segundo, através da renovação do gosto, que não ocorre só na arte, mas “nos mais diversos âmbitos da vida, da decoração à arte gráfica e do desenho industrial às artes de massa” (Ibid., p. 36). EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E EXPERIÊNCIA ORDINÁRIA
A abordagem da experiência estética em termos de unidade e correspondência é o que permite reconciliar os dois sentidos divergentes que a palavra “estética” assumiu, desde que passou a ser usada, no século XVIII, como teoria (ou “ciência”) do belo (a partir de Baumgarten) e como análise das condições de possibilidade da apreensão sensível (no sentido da “estética transcendental” de Kant). Esta reaproximação permite-nos reconhecer a congenialidade entre criação e fruição, reintroduzindo a problemática do gosto no fluxo da experiência. Enquanto estruturação, o fazer artístico “conforma, configura os diversos elementos, e o bem conformado se torna ‘formosus’, formoso” (QUINTÁS, 1992, p. 168). Mas, por seu dinamismo, ele faz com que o reconhecimento de suas categorias próprias – harmonia, simetria, repetição, etc. – só se revelem no jogo da recepção (Ibid., p. 183). Esse jogo revela-se também como a transição entre uma fruição compreensiva e uma compreensão fruidora, uma vez que a experiência estética – como assinala Jauss – “se realiza ao adotar uma atitude ante seu efeito estético, ao compreendê-lo com prazer e ao desfrutá-lo compreendendo-o” (JAUSS, 1986, p. 13). Como observa Quintás, a beleza pode ser definida como o esplendor de toda realidade bem configurada, assinalando que “configurar algo é fazer com que as partes que o integram façam jogo mútuo entre si. Este jogo é a fonte última de beleza” (QUINTÁS, 1992, p. 184). Essa condição de configuração e integração que funciona como emblema da integridade de uma obra de arte, é, ao mesmo tempo, o testemunho de sua realização consumada e seu critério de excelência. É ela que permite a correspondência entre criação e fruição e possibilita o acordo entre o artista e seu público, no âmbito da
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experiência estética. Para ambos, a obra se impõe, necessariamente, pela autoridade de sua evidência, pois a única diferença entre o criador e o espectador seria o fato de que “o primeiro pensa em termos de regras e operações, de modo que a necessidade é precisamente uma necessidade técnica; e o segundo pensa em termos de efeitos, de modo que a necessidade é, imediatamente, a de um sentido” (DUFRENNE, 1981, p. 91). Esse caráter necessário (não-contingente) da obra representa, para o artista, a garantia de ter contornado os apelos diluidores e acessórios de todo elemento ou procedimento supérfluo, para alcançar o essencial. Para o fruidor, esta necessidade com que a obra se impõe é o signo de seu êxito, reconhecido como beleza e traduzido no prazer em experimentar a sua plenitude. Mas esses dois juízos não se processam racionalmente. É através do veredicto da sensibilidade que o criador pode julgar a obra acabada e o fruidor pode considerá-la bela. Como aponta Dufrenne, o sentido da obra de arte não é um sentido que apela para o discurso e que exercita a inteligência como um algoritmo lógico, mas “um sentido totalmente imanente ao sensível que, portanto, deve ser experimentado no nível da sensibilidade e que, contudo, cumpre bem a função do sentido, a saber: unificar e esclarecer” (Ibid., p. 92). E isto nos conduz ao ponto decisivo: a constatação de que toda obra de arte segue o plano e o padrão de uma experiência completa, que não apenas acumula acontecimentos e desempenhos ocasionais, mas que os vê convergirem para aquela unidade que lhe confere seu nome e sinaliza a sua conclusão, que não é algo separado e independente, mas a consumação de um longo movimento. Como assinala John Dewey, há, portanto, padrões comuns a várias experiências, condições sem as quais uma experiência não pode sequer vir a acontecer. Contrariando, pois, uma concepção convencional que só reconhece a experiência estética como um tipo particular no campo geral da experiência humana, associado à produção e à fruição artísticas, reafirmamos que a experiência estética é o limite para o qual tende toda experiência e sem o qual ela não seria capaz de fazer sentido. Sendo assim, mesmo que involuntariamente, a
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problemática da morte da arte apresenta-se, pois, como uma auspiciosa possibilidade de renascimento da estética, não mais como um campo da filosofia da arte, mas como uma reflexão geral sobre o papel da sensibilidade na existência contemporânea, tendo em vista, não apenas as artes, mas outras manifestações culturais como o esporte, a culinária e a moda. A SENSIBILIDADE COMO PERCEPÇÃO E GOSTO
Além de forçar-nos a admitir que a sensibilidade não se reduz à percepção sensorial e que esta última não é passível de apreensão apenas pelo jogo entre estímulos físicos e representações mentais, os debates acerca da sensibilidade no terreno da filosofia obrigam-nos a ampliar consideravelmente o horizonte de nossa discussão e nos levam a reconhecer, neste âmbito, o papel decisivo das emoções. Mas já na filosofia grega, na diferença entre as abordagens de Platão e Aristóteles, vemos anunciar-se uma clivagem em torno do estatuto ontológico da sensibilidade, que será continuamente atualizada no debate filosófico subsequente, opondo idealismo e realismo, especialmente na esfera dos estudos sobre a arte. Enquanto a desvalorização platônica do corpo e das artes sugere, por contraste, que o acesso ao conhecimento verdadeiro exige a superação das paixões, a defesa aristotélica das sensações e das representações, como base de todo tipo de conhecimento, reforça a importância da catarse, que acompanha a fruição estética, “sublinhando os efeitos libertadores e purificadores que a obra trágica produz na sensibilidade do público” (FERRUCCI, 1992, p. 123). Só no Renascimento, esta conexão entre esfera gnosiológica e esfera artística volta a colocar em pauta o significado e o valor da intuição sensível. Partindo da natureza sensível, mas seguindo a imaginação, o artista-teórico renascentista é o emblema do modo de apreensão e assimilação características de uma sensibilidade capaz de “agarrar e sintetizar tanto os dados da realidade natural como os impulsos do sentimento” (Ibid., p. 124). Postula-se, então, uma construtiva colaboração entre as esferas da sensação, da inte-
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lecção e da imaginação com a dimensão emocional explorada pela arte. Aliás, do ponto de vista da atitude de cada época frente à sensibilidade e a seu confronto com o entendimento, o que há de mais importante a observar na cultura renascentista é a surpreendente conciliação entre dois regimes discursivos que, a partir de então, passarão a se opor cada vez mais até se constituírem como campos autônomos: o da estética e o da epistemologia. No racionalismo cartesiano e também, mais tarde, na dialética do espírito absoluto, de Hegel, a beleza artística se sustenta na medida em que manifesta a verdade e a objetividade racional, acessível apenas mediante a superação da realidade sensível. Por essa razão, a estética hegeliana elege a poesia como arte absoluta, uma vez que só no discurso verbal o material sensível se nega como tal para se tornar “o meio da extrinsecação do espírito (em direção) ao espírito”. A estética kantiana vincula os aspectos ativo (produtivo) e passivo (receptivo) da sensibilidade, mediante a ideia da adequação exercida, pelo gênio criativo, entre o conceito do que deve ser a obra e as condições socioculturais que caracterizam o gosto do público que irá recebê-la. Neste sentido, portanto, a específica capacidade do artista para comunicar o conceito da obra sem a coação das regras vigentes no domínio intelectual, encontra correspondência na comunicabilidade universal proporcionada pelo gosto. Mas a introdução do conceito de gosto, para designar a capacidade de sentir e julgar a arte, havia sido a singular contribuição do empirismo inglês à compreensão da própria atividade artística, enquanto investimento construtivo regulado por sua recepção. Tomando como modelo a imaginação criadora do artista da renascença, o pensamento inglês dos séculos XVII e XVIII (Hobbes, Locke, Hume, entre outros) caracteriza a criatividade artística como combinação de sensibilidade e “engenho”. A partir disto, ele propõe, como critério mais flexível de apreciação e julgamento, entre a rigidez da “vocação” medieval e o irracionalismo do “gênio” romântico, a noção de “bom gosto”, como discernimento, sentido de medida e capacidade de discriminação, ao mesmo tempo espon-
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tânea e passível de aperfeiçoamento. Tomando de empréstimo, uma vez mais, as palavras de Ferrucci: o gosto (…) representa o conjunto das normas extremamente fluidas e largamente inconscientes que, num dado contexto cultural, definem a propriedade de linguagem e de estilo sem a qual o deleite que a obra estabelece não seria alcançado, e canalizam a sensibilidade privada do artista de modo a fazê-la coincidir com a sensibilidade coletiva (Ibid., p. 127).
Por outro lado, o reconhecimento de que o gosto obedece a regras, ainda que inconscientes, pode também abrir espaço para um discurso moralizante, disposto não só a reconhecer tais regras como a prescrevê-las. Desta forma, este caráter regulador do gosto pode eventualmente justificar seu uso normativo e, em certas circunstâncias, até mesmo diretivo, aproximando o “bom gosto” e o “bom senso”, como paradigmas para o controle das paixões. Portanto, contrariando o senso comum, temos que admitir que o gosto se discute, sim, se não num sentido epistemológico, certamente num sentido compreensivo, uma vez que, como toda norma, ele não é universal nem estritamente individual, mas resulta da instituição histórica de uma convergência comunal, que se dá no plano axiológico e é anterior a todo contrato explícito! A FADIGA POÉTICA DA ARTE CONCEITUAL E A REABILITAÇÃO ESTÉ TICA DO GOSTO
No âmbito dos movimentos modernistas do século XX, a “sensibilidade” do artista é magnificada e separada da sensibilidade mediana e muito das estratégias poéticas da arte de vanguarda, desde então, resume-se ao “revolucionário” projeto de contrariar e mesmo chocar o gosto do público (embora procurando agradar o gosto dos críticos), como forma de assegurar a sua “pureza” artística... Essa apologia da sensibilidade artística moderna (e “pós-moderna”) opera, pois, como uma eficiente forma de denegação da sensibilidade “normal”; do mesmo modo, no horizonte do
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“novo espírito científico”, atua a ênfase no corte epistemológico, concebido como ruptura radical entre o saber legítimo e o espúrio “senso comum” (Bachelard, inicialmente, proclamava que, para “o novo espírito científico”, a intuição é muito útil, pois “serve para ser abandonada”...). Nas palavras de Ferrucci, “esta fratura que a nova “estética militante” institui entre a sensibilidade inspirada e a percepção “neutra” do mundo, entre a sensibilidade do artista e a do homem comum, é acentuada pela teorização de uma arte que, além de se debruçar sobre os abismos do inaudito e do invisível, se liberte de qualquer envolvimento emotivo” (Ibid., p. 135), em aberto contraste com a “sensibilidade média” dos contemporâneos, considerados obtusos e “filisteus”. Pretendendo, pois, criticar, e mesmo atacar, os hábitos emotivos e perceptivos do público, o modernismo estético, assim como, agora, a “estética pós-moderna” (isto é: o discurso estético hipermoderno derivado das poéticas digitais), produz uma forma de arte que se refugia no formalismo e no intelectualismo, para exorcizar o suposto “gosto médio” da massa ignara. McLuhan perguntava-se se não seria precisamente devido ao fato de termos estabelecido uma separação tão profunda entre a cultura intelectual e os novos meios de comunicação que teríamos nos tornado incapazes de encarar esses meios como veículos legítimos para a cultura séria. Hoje, talvez devêssemos perguntar se não é por considerarmos os novíssimos meios de comunicação da atualidade como meros transmissores de informação numérica, voltada a uma tradução formal e a uma interpretação supostamente mental, que temos dificuldade para compreender a dimensão cultural de sua assimilação na vida cotidiana. Parece-nos que é justamente esta tensão entre as formas artísticas e simbólicas, supostamente dirigidas a nossa atividade emocional e nossa capacidade de fruição e avaliação propriamente estéticas, por um lado, e as formas do mundo físico, dirigidas a nossa atividade cognitiva, através das nossas capacidades perceptiva e intelectiva, por outro lado, o que deveria ser investigado, para melhor compreendermos as relações entre as discussões sobre a sensibilidade
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e os estudos sobre recepção. Esta “tensão atrativa” reaparece na complexa relação entre gosto e conhecimento, mas parece significar mais do que um simples reflexo da relação entre sensibilidade e entendimento. Na verdade, quando revisitamos o debate sobre o gosto, damo-nos conta de que esta associação da experiência estética com a atividade de um sentido considerado inferior, como o paladar, esconde o reconhecimento de que ela se refere a uma forma profunda, embora inconsciente, de compreensão, a qual, se não pode ser definida como conhecimento, não pode deixar de ser associada a algum tipo de saber. Tal vinculação entre o gosto e o saber, através do sabor, não é, nova, aliás, já tendo sido, ao contrário, explorada por autores como Nietzsche e Barthes. Como afirma Agamben, entre os séculos XVII e XVIII, procurava-se uma faculdade específica à qual confiar o juízo e o gozo da beleza, e foi justamente o termo “gosto”, oposto metaforicamente à sua primeira acepção, como paladar, “que se impôs, na maior parte das línguas europeias, para indicar aquela forma especial de saber que goza o objeto belo e aquela forma especial de prazer que ajuíza da beleza” (AGAMBEN, 1992, p. 139). Por outro lado, acrescenta ele, “a reflexão setecentista sobre o belo e sobre o gosto culmina no reenvio a um saber, que não se pode explicar porque se apóia num puro significante (...), e um prazer que permite julgar, porque se apoia não numa realidade substancial, mas naquilo que no objeto é pura [relação de] significação” (Ibid., p. 147). Trata-se, portanto, de desvendar a natureza mesma desse “outro saber” que é, ao mesmo tempo, um “outro prazer”; um saber que não pode explicar o seu conhecer, mas goza-o, como assinalava Montesquieu, já em 1755, em seu pioneiro Ensaio sobre o gosto. O discurso estético, à medida que é referido à sensibilidade, entretém-se, justamente, na busca desse “não sei quê”, que impregna toda recepção. Ainda conforme Agamben, “o gosto aparece como um sentido supranumerário, que não pode encontrar lugar na divisão metafísica entre sensível e inteligível, mas cujo excesso define o estatuto particular do conhecimento humano” (Ibid., p. 145).
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MONCLAR VALVERDE
O belo suscita em nós um tipo de satisfação indissociável da surpresa. O gosto pelo que é belo é, portanto, uma forma de compreensão que não se poderia reduzir ao simples reconhecimento da adequação entre os nossos modelos de interpretação e explicação e a realidade que eles pretendem representar. O que gozamos no belo é “o puro remeter de uma coisa a outra coisa; por outras palavras, o seu caráter significante, independentemente de qualquer significado concreto” (Ibid., p. 146). Por esta razão, Diderot definiu o belo como um “significante excedente” e Kant, antes dele, como “um excesso da representação sobre o conhecimento”, excesso este que se apresenta, justamente, como prazer propriamente estético. As experiências estéticas predominantes no mundo atual parecem não só sustentar, mas enfatizar essa ideia, que o presente livro discute e ilustra, em vários aspectos e domínios*.
MONCLAR VALVERDE é Professor Titular do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências, da Universidade Federal da Bahia. Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com pós-doutorados na Sorbonne (Paris V, 2002), na Universidade Federal do Paraná (2008) e na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (2018). Organizou as coletâneas As formas do sentido (Rio de Janeiro: DP&A, 2003) e Merleau-Ponty em Salvador (Salvador: Arcadia, 2008) e é autor da Breve fenomenologia da comunicação (Salvador: Arcadia, 2017), da Pequena estética da comunicação (Salvador: Arcadia, 2017) e de A instituição do sensível (Aracaju: J. Andrade, 2018).
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Este texto retoma ideias da Aula Inaugural proferida, pelo autor, no Programa de Pósgraduação em Comunicação da UFRB, em 15 de agosto de 2017, bem como da palestra proferida no XIII Congresso de Estética, dedicado ao tema “Os fins da arte” e realizado na UFMG, em outubro do mesmo ano. Alguns dos temas que foram tratados então e são retomados agora, foram abordados, inicialmente, no livro Estética da comunicação (Salvador: Quarteto, 2007 – atualmente esgotado) e reapresentados na sua versão compacta, editada como Pequena estética da comunicação (Salvador: Arcádia, 2017).
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Referências AGAMBEN, G. Gosto. Enciclopédia Einaudi – Criatividade e Visão. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1992, p. 139-157, v. 25. BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a arte. São Paulo: Ática, 1985. DEBRAY, Régis. Vida e morte da imagem. Tradução de Guilherme Teixeira. Petrópolis: Vozes, 1993. DEWEY, John. A arte como experiência. Tradução de Vera Ribeiro. São Paulo : Martins Fontes, 2010. DUFRENNE, Mikel. Estética e filosofia. Tradução de Roberto Figurelli. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1981. FERRUCCI, C. Sensibilidade. Enciclopédia Einaudi – Criatividade e Visão. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1992, p. 122-138, v. 25. HUME, David. Do Padrão do gosto. Tradução de João Paulo Gomes Monteiro. In DUARTE, Rodrigo (Org.). O belo autônomo: textos clássicos de estética. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1997, p. 55-73. JAUSS, Hans Robert. Experiencia estética y hermenéutica literária. Traducción de Jaime Siles y Ela Maria Fernandez-Palacios. Madrid: Taurus, 1986. KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Tradução de Antônio Marques e Valério Roden. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, s/d. McLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. Tradução de Décio Pignatari. São Paulo: Editora Cultrix, s/d. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1994. PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. Tradução de Maria Helena Nery Garcez. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1989. QUINTÁS, Alfonso Lopez. Estética. Tradução de Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 1992. VALVERDE, Monclar. Pequena estética da comunicação. Salvador: Arcádia, 2017. VALVERDE, Monclar. A instituição do sensível. Aracaju: Editora J. Andrade, 2018.
Primeira Parte
Criações visuais
Gina Rocha Reis Vieira & Renata Pitombo Cidreira
O PRAZER DO BELO: NA TELA E NA APARÊNCIA
Belo, é tudo quanto agrada desinteressadamente. (Immanuel Kant)
“É difícil pintar uma moça bonita?”, questiona o mecenas de Johannes Vermeer no filme Moça com brinco de pérola (2003). Tal pergunta instiga o espectador que, a esta altura, já se encontra completamente envolvido pela bela obra de Peter Webber que nos conta uma possível narrativa do processo criativo que dá origem ao famoso quadro do artista holandês, de 1665, que nomeia a película. A beleza, aliás, aflora de modo intenso através da obra do diretor e do pintor. À princípio, poderíamos até afirmar que: É belo o filme, é bela a tela, é bela a moça, é bela a pérola. Mas se consideramos que a beleza é um sentimento que emerge diante de obras, paisagens e pessoas, a partir de uma perspectiva kantiana, concordamos que a beleza não está no filme, no quadro, na moça ou mesmo na pérola, uma vez que o belo não é uma propriedade intrínseca de um objeto, paisagem ou pessoa. O belo, como nos alerta Kant, é justamente o sentimento que nos invade quando nos defrontamos com algo ou alguém que nos suscita prazer...
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O BELO COMPARTILHADO
Para Kant, o belo associa-se a uma complacência universal, necessária e desinteressada (sem finalidade prática, instrumental ou utilitária); é, portanto, um juízo que emitimos diante de algo ou alguém, que tem uma dimensão subjetiva, embora não individual. Nesse sentido, não há como determinar previamente que um objeto será belo, a partir de determinadas características, pois não existe uma receita ou pré-requisitos para se obter um objeto belo. Enfim, não podemos determinar a beleza antecipadamente. Assim, Kant nos apresenta uma alternativa a toda uma tradição empirista, que procurava exatamente determinar a beleza a partir de “características” do objeto. Outro aspecto importante é que embora Kant reconheça que o belo é um juízo subjetivo, o mesmo não deve ser considerado individual, pois o sentimento de beleza advém de um sentido comum (sensus comunnis) de uma comunidade que, em última instância, configura nossos valores e padrões culturais compartilhados. Desse modo, os juízos acerca da beleza não se encontram apenas no âmbito da subjetividade; quando somos tomados pelo sentimento do belo pretendemos que todos possam perceber e sentir essa beleza e compartilhá-la; trata-se do “dever-ser” e, portanto, tem uma dimensão pública. É essa a ideia que norteia a universalidade do sentimento de beleza, que não se baseia em conceitos, mas sim em valores. Aqui nos damos conta dessa universal capacidade de comunicação de um estado de ânimo na contemplação de algo, alguém ou de uma paisagem. Mais uma consequência das considerações kantianas é que a beleza não visa uma utilidade, um fim, embora seja conforme a fins, na medida em que obedece às próprias “leis” da obra, como diria Luigi Pareyson (2001). É uma sensação desprovida de interesse, movida pela excitação harmoniosa dos sentidos. É o sentimento de prazer que interessa na beleza! Aliás, essa associação do belo ao prazer não aparece apenas em Kant, já se anunciava nos diálogos de Platão. Como podemos constatar, a última definição do diálogo
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nos diz: “E se chamássemos belo aquilo que nos causa prazer, não qualquer espécie de prazer, mas aqueles que provêm da visão e da audição, como poderíamos defender essa opinião?” (PLATÃO apud FIGUEIREDO, 2017, p. 21). Mobilizando as faculdades do entendimento e da imaginação num circuito dinâmico, Kant nos faz compreender que: Para distinguir se algo é belo ou não, referimos a representação, não pelo entendimento ao objeto em vista do conhecimento, mas pela faculdade da imaginação [...] ao sujeito e ao seu sentimento de prazer ou desprazer (KANT, 1995, p. 47).
Assim, quando percebemos um objeto belo, a imaginação, uma das mais potentes faculdades sensíveis, estabelece uma associação de imagens sem que esta ligação se estabeleça por conceitos. Esse acordo livre entre as faculdades da imaginação e do entendimento não é previsível e muito menos controlável. É uma espécie de reconciliação entre o sensível e o inteligível que caracteriza o julgamento do gosto e que nos faz perceber algo como belo. Tais questões, desenvolvidas por Kant, que hoje retomam fôlego, foram ignoradas até o Romantismo, em que a beleza era considerada a grande lei da arte. Prezando pela harmonia e perfeição, tendo em geral a imitação da natureza como referência, a arte elegeu essas características como requisitos para o reconhecimento da bela forma. Rompendo com esta tradição, os séculos XVIII e XIX acabam instaurando um outro princípio que irá conduzir as produções artísticas e que é muito bem sintetizado por Luigi Pareyson em suas reflexões sobre estética: “a beleza não é lei, mas resultado da arte: não seu objeto ou fim, mas seu efeito e seu êxito” (PAREYSON, 2001, p. 182). Para Pareyson (2001), a única lei da arte é o critério do êxito. E a obra “[...] triunfa porque resulta tal como ela própria queria ser, porque foi feita do único modo como se deixava fazer, porque realiza aquela [...] adequação de si consigo que caracteriza o puro êxito” (2001, p. 185). Segue seus próprios fins, sem buscar um fim
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e por isso é desinteressada. E, nesse sentido, podemos reconhecer que Moça com brinco de pérola triunfa porque triunfa, ou seja, segue a “regra individual da obra”, como alerta Pareyson, em que o artista obedece a própria obra que está produzindo. A película tem a capacidade de exibir o processo artístico; nos mostra as tentativas, hesitações... idas e vindas na elaboração do criador e seu processo criativo até que o mesmo possa se sentir satisfeito com a obra e, na condição de espectador, diga que a mesma está concluída porque diante dela vê algo belo, uma forma finalizada e exitosa. Moça com brinco de pérola evidencia com maestria a articulação dinâmica entre poética e estética, ou seja, nos apresenta, por um lado, o caráter programático e operativo envolvido no fazer artístico, ao explorar o preciosismo do pintor na confecção dos materiais, dos pigmentos (malaquita, cinábrio, carvão de osso, moedor, etc.). O amarelo conseguido através da urina de vacas alimentadas com manga... O lápis-lazúli!) e ao mostrar alguns artefatos técnicos como a câmara escura; por outro, nos brinda com a reação dos espectadores, com o efeito que a obra lhes provoca. Para uns “Perfeita!”, para outros “Obscena!” E para muito poucos... “Olhou dentro de mim!”. Produção e afetação juntos e se retroalimentando na busca e no reconhecimento do êxito ou da bela forma. A tela de 1665 tem como ponto focal um brinco de pérola, e é considerada uma das obras primas da humanidade. Retrata o rosto enigmático de uma jovem moça, num jogo de luz e sombras, produzindo um efeito de grande realismo. Podemos dizer que nos apresenta uma poética da delicadeza, que nos encanta, e que partilhamos uma experiência, a qual não podemos explicar através de conceitos científicos (como queria o racionalismo clássico), mas apenas vivenciá-la em conjunto e por isso mesmo falar sobre ela, sobre o modo como nos afeta.
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Figura 1 – Moça com brinco de pérola (1665), de Vermeer. Fonte: Disponível em: https://www.mauritshuis.nl/en/explore/the-collection/artworks/ girl-with-a-pearl-earring-670/ Acesso em: 28 mar. 2019.
Ainda que diante da imagem tenhamos, cada um, um sentimento particular e íntimo, sua beleza revela concepções sobre o que compreendemos como belo. É por isso que Moça com brinco de pérola pode transcender a subjetividade particular de cada um de nós e suscitar um sentido comum. A obra desperta em nós sentimentos e emoções, mas também representações intelectuais; o que nos permite discutir a sua beleza sem, no entanto, demonstrá-la. Não se trata aqui, portanto, de tentar realizar uma decifração do quadro de Vermeer (1665) e muito menos do filme de Webber (2003). Ao contemplá-los, somos invadidos pelo sentimento da beleza e é esse sentimento que nos interessa: “a sensação vívida do belo é declarada
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no olhar pela sua esplêndida serenidade, pelas feições do sorriso e muitas vezes, por um claro regozijo” (KANT, 2015, p. 36). De certo, alguns elementos da tela nos chamam atenção. A aparência da moça é realçada por alguns detalhes fundamentais: os lábios umedecidos, o brinco de pérola, e os tecidos do turbante em tons de azul e amarelo que cobrem os cabelos. O rosto nos instiga! Esta parte visível do corpo nos revela; expõe puramente o sentido da nossa aparição fenomenal, em que há uma justificação recíproca dos elementos de superfície. Como observa Georg Simmel (1981), o rosto sintetiza os elementos essenciais da vida do homem. “[...] ele resume por seus traços tudo que aconteceu nas profundezas da alma [...]. Graças a sua figura um homem é compreendido por seu aspecto, antes de ser compreendido por seus atos” (p. 228). A unidade de um rosto significa que a forma de cada parte é determinada necessariamente pela forma de cada outra, logo esta ação recíproca dos elementos situados uns ao lado dos outros é condensada na unidade da alma [...]. O sucesso do retrato, quando se compromete a fazer da figuratividade do ser humano a apresentação em si a mais harmoniosa, a mais poderosa, a mais necessária, é medida por sua capacidade de nos convencer da alma desse ser (SIMMEL, 2007, p. 83).
E esta nos parece ser a conquista de Moça com brinco de pérola, a tela corroborando o que exclama a personagem, ao contemplar o próprio rosto no quadro: “Olhou dentro de mim!”. O PROTAGONISMO DA PÉROLA EM VERMEER
A partir da compreensão do corpo como primeira e incondicionada propriedade à ampliação da personalidade (SIMMEL, 2014, p. 69) é necessário notar o protagonismo do brinco de pérola no processo criativo evidenciado na pintura de Vermeer e na película de Webber. O virtuosismo do brinco de pérola em tais obras aguça para o potencial do adorno à composição da aparência, atraindo especial atenção e agrado para quem o usa e para o outro que aprecia.
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No filme, Vermeer inicia a feitura da tela com a personagem Griet usando uma touca branca que limita a visão completa do seu rosto. Até então, as tentativas do artista à composição da sua obra mostram-se frustradas. “Preciso ver seu rosto [...]. Pegue outro pano”, afirma o pintor. Ao vê-la com seus cabelos soltos, com sua face exposta, o pintor reconhece o caminho a seguir para o êxito da sua criação. Por outro lado, para Griet, seu rubor à frente do artista a despiu completamente, personificando no seu rosto uma expressividade reveladora de si. Ao requerer o uso da joia a Griet, Vermeer, ao que parece, apreende o sentido e o efeito daquela pérola no seu modo de formar (PAREYSON, 1993). Um ponto de luz que, em associação com o corpo, é capaz de arrebatar e guiar o olhar do outro que a admira. Para Simmel, o adorno se torna uma propriedade particular produzindo “o alargamento do eu, a maior expansão à nossa volta, que enchemos com nossa personalidade” (SIMMEL, 2014, p. 70). O autor destaca o adorno como sendo o elemento estético capaz de sintetizar as grandes pretensões da alma e da sociedade. É importante salientar ainda que esses anseios não estão isolados, ensimesmados; mas essencialmente entrelaçados em uma esfera conflituosa do “ser para si e ser para o outro”. Sendo assim, contempla-se a joia como um adorno cultural prescindível e independente, acessado de maneira incessante à constituição teatral do corpo social. Os adornos de metais e pedras preciosas, por sua vez, são aqueles que conseguem proporcionar ao sujeito a máxima extensão do seu ego. Proporcionam uma ambiência irradiante com brilho e texturas que suscitam uma atenção sensorial sedutora e até mesmo delirante. Como relata Aldous Huxley, em Céu e inferno (2015, p. 80), a luz e a cor preternaturais1 aparecem nos relatos de todas as experiências visionárias e em todas as tradições culturais, no folclore e na religião, ilustrando paraísos e reinos mágicos. Revelam uma beleza extraordinária, difícil de ser descrita com transparência, pre1 Preternatural, segundo Huxley (2015, p. 80), é a matéria da qual os antípodas da mente são feitos.
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cisão. Essa luminosidade preternatural e intensidade da coloração e esse significado preternatural caracterizariam, como aponta Huxley, “Outros Mundos” e a “Era do Ouro”. A atração humana por joias e as atribuições de virtudes terapêuticas e mágicas das pedras preciosas viriam, assim, da capacidade desses metais e pedras auto luminosos nos aproximarem, mesmo que de maneira rarefeita, das experiências transcritas em um mundo fantástico. Mesmo que seja uma atitude inconsciente, o desejo de posse de tais pedras e metais aponta para um desejo latente de ter para si algo precioso e pertencente a um “Outro Mundo”. Para a maioria de nós, na maior parte do tempo o mundo da experiência cotidiana parece cada vez mais frágil e monótono. Mas para algumas poucas pessoas, com alguma frequência, e para um número um pouco maior, ocasionalmente, parte do esplendor da experiência visionária transborda, por assim dizer, em uma visão comum, e o universo do cotidiano é transfigurado (HUXLEY, 2015, p. 76).
Na trama cinematográfica de Webber, ao descobrir que sua criada Griet usou seu brinco de pérola ao ser pintada por seu marido, Essie exclama com raiva, indignação e ciúmes: “É verdade que ela usou minhas pérolas? Como pôde?!”. Tais emoções soam amplificadas por esse sentido de retenção, em que a joia pode ser revelada como um objeto transportador “da mente na direção de seus antípodas, fora do Aqui cotidiano e na direção do Outro Mundo da Visão” (HUXLEY, 2015, p. 85). Para Huxley, a arte do ourives, do joalheiro é, sem dúvida, aquela que consegue induzir de maneira mais intensa o homem a tais visões, reconhecendo os metais polidos e pedras preciosas como os mais enérgicos transportadores por natureza. São essencialmente sobrenaturais. Outro aspecto expressivo é que o quadro (datado em 1665) e o filme estão contextualizados dentro do movimento artístico Barroco (particularmente, entre 1600 a 1750); que teve apoio para sua difusão, sobretudo, da Igreja Católica, a fim de frear as ideias protestantes que cresciam após a Reforma Protestante. A arte Barroca surge,
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deste modo, alicerçada em um catolicismo vigoroso, considerado, inclusive, um estilo absolutista. Na Europa, desenvolvia-se, principalmente nos Países Baixos do Norte (onde fica a Holanda hoje), a “pintura de gênero”2 – com estilo sóbrio, um belo dramático, vinculado ao real, à representação de cenas cotidianas. Entre os grandes nomes das artes que se destacaram no período está Johannes Vermeer3. É nesse cenário que nasce sua Moça com brinco de pérola. Humanistas (e, até certo ponto, cientistas) como os do período anterior – o Renascimento – , os artistas do barroco se distinguiram dos seus antecessores porque, nessa fase, o pensamento científico e filosófico ampliou-se (ficou mais complexo, abstrato e sistemático), e, em seu âmbito, incluiu as artes, suas técnicas e reflexões, passando a fazer parte, também, do domínio do artista. (GOLA, 2008, p. 73)
A associação do período artístico à potencialidade da pérola pode ser percebida, especialmente, se recuperarmos a etimologia da palavra “barroco”. Maffesoli (1996, p. 205) a descreve como uma pérola4 irregular, assimétrica, movimento de aspecto desordenado, até de desordem, ideia de excesso de vida. Barroco como imperfeição natural, dinâmica permanente e crescimento vital. Segundo Eliana Gola, em A joia: História e design (2008, p. 74), foi precisamente no século XVII (auge do movimento Barroco), que a joalheria deixa de caminhar conforme as Belas Artes5, e passa a enfatizar seu processo 2 O período do século XVII é conhecido como Era de Ouro da Holanda. Aclamada mundialmente nas áreas do comércio, da ciência e das artes. O século XVII foi o grande século da pintura neerlandesa. Além de Vermeer, elenca-se aqui outros artistas importantes do período: Rembrandt, Willem Kalf, Adriaen van Ostade, Gerard Terborch, Albert Cuyp, Jakob van Ruisdael, Jan Steen, Pieter de Hooch, Willem van de Velde e Meindert Hobbema (VARELLA, 2019). 3 Entre as obras mais significativas de Vermeer, pode-se destacar também A leiteira, criada entre 1657e 1658. 4 A chamada pérola barroca compõe, inclusive, a variedade de pérolas naturais e cultivadas. As gemas que têm esse formato são denominadas assim por conta das suas formas dissonantes, que são também propriedades do estilo Barroco.
Belas Artes, no sentido estrito, associado à época, referem-se às artes plásticas: Pintura, escultura, gravura, arquitetura, etc. Entretanto, atualmente, esse sentido foi ampliado, incluindo outras expressões como a música, a dança, o teatro e o cinema.
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criativo no aprimoramento das técnicas e na valorização das pedras. Conforme aponta Gola (2008, p. 74), “tal preocupação sobrepujou a expressão de conceitos intelectuais, de status, ou os de expressão política ou crenças religiosas”. A propósito, tal evidência é perceptível no filme se observarmos a caixa de joias da esposa de Vermeer, cujos exemplares que se sobressaem são aqueles em que as pérolas são os personagens principais. No entanto, é importante destacar que esse protagonismo da pérola é notável desde os primórdios das civilizações. Segundo Dinah Bueno Pezzolo, em A pérola: história, cultura e mercado (2004, p. 40), a presença clássica do colar de pérolas, surgido no século XV, coincidiu com a idade de ouro da joalheria: “Seu uso foi difundido de tal forma que o grão-duque Cosme de Médicis (1519-1574) promulgou um decreto proibindo o uso de colares cujo valor excedesse 500 escudos”. A autora, entretanto, ressalta que a lei só foi aplicada aos cidadãos comuns, já que as nobres mulheres dos Médicis continuaram exibindo seus suntuosos fios de pérolas. Na China antiga, a pérola representava preciosidade e pureza, uma “metáfora para o gênio escondido” (PEZZOLO, 2004, p. 13). Na Grécia, Platão usou a pérola para representar a união entre macho e fêmea em um único ser humano (hermafrodita); que, segundo o filósofo, possuiria “perfeito conhecimento do divino, e constituía, assim, uma verdadeira ‘pérola da sabedoria’” (PEZZOLO, 2004, p. 13). Realça-se ainda o simbolismo da gema orgânica – retirada do seu berço de nascimento pronta e polida – considerada uma das primeiras gemas preciosas da humanidade. No simbolismo, em que as verdades espirituais são representadas de modo concreto, a pérola é revestida de inúmeros significados: pureza, castidade, humildade (...). A simbologia servia como suporte aos ensinamentos da Igreja. Tudo tinha um significado espiritual, e as pérolas, vistas como símbolo de pureza até então, passaram também a representar a fé no mundo católico. Os cristãos, apoiados nessa simbologia, transformaram a pérola
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numa metáfora para o nascimento virginal de Cristo. Ela representava a alma pura, inocente, cheia de fé e sabedoria, alojada num corpo terrestre, cercado pelas corrupções do mundo (PEZZOLO, 2004, p. 15).
Figura 2 – O nascimento de Vênus, de Botticelli (1485), a deusa da beleza também chamada de Pérola (PEZZOLO, 2004, p. 13). Fonte: Disponível em: https://www.museusdeflorenca.com/galleria-degli-uffizi/Acesso em: 28 mar. 2019.
Com aparência de gota – formato este considerado um dos mais valiosos “com brilho intenso e jogo de cores” (BONEWITZ, 2013, p. 209) – a pérola que compõe a grande obra de Vermeer é, sem dúvida um elemento valioso, que evidencia essa poética da delicadeza que nos arrebata. Mas, ao mesmo tempo, instiga por sua resistência e poder transformador. CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Faça o senhor”, solicita Griet, ao decidir furar sua orelha. Este é, decerto, o grande momento na película de Webber. A bela moça – agora, com o brinco de pérola na orelha recém furada –
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deixa escapar uma lágrima. “Olhe para mim, vire a cabeça, não os ombros. Olhe para mim... Isso, assim!”, convoca Vermeer. Parecenos que é singularmente nessa sequência de gestos, evidenciados ao espectador, que se chega ao êxito da obra, à sua bela forma. Todo o caminho percorrido em busca de um fim bem-sucedido ou de uma bela forma parte desse processo orgânico criativo de amadurecimento, que envolve percepção, revelação, projeto, tentativas e acabamento. Mas que, acima de tudo, nos motiva a sermos tomados pela experiência do belo. Assim como a pérola, concebida em sua essência por um movimento fantástico da natureza, a moça à frente de Vermeer se mostra pronta para ser arrancada, revelada. É especialmente dessa agressão consentida que brota, pelas mãos de um “intruso”, a pérola, ou melhor dizendo, a moça. Antes incrustada na sua concha, a moça com brinco de pérola nasce junto à obra. Ela é a pérola. E, se de fato, toda arte tem a capacidade de modificar a perspectiva através da qual abordamos a realidade e, acrescentaríamos, a nós mesmos, pressentimos que tanto o quadro, quanto o filme nos envolvem num sentimento comum que promove algum tipo de alteração do nosso modo de estar no mundo. Diante do filme, experimentamos o percurso de transformação e de conquista de plenitude da personagem Griet. Diante do quadro, somos arrebatados por essa força transformadora que encontra sua síntese numa imagem. Imagem que nos aguça os sentidos e nos afeta de tal forma que também, cada um de nós, é capaz de experimentar esse impulso que transmuta. Acreditamos, desse modo, que as duas telas têm a potência de nos provocar uma reação subjetiva (mas não individual), justamente porque lhes atribuímos valor. Por isso mesmo conseguem nos confrontar com o sentimento do belo, nos provocando prazer e nos possibilitando transformação. E assim, nascemos de novo junto com as obras!
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VIEIRA, Gina R. Reis. Um diálogo entre a cultura local e o design de moda. Dissertação de mestrado. (Programa Multidisciplinar de Pósgraduação em Cultura e Sociedade) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2017. WAIZBORT, Leopoldo. O rosto. In: As aventuras de Georg Simmel. São Paulo: Editora 34, 2000. Site VARELLA, Paulo. Entenda a pintura de gênero holandesa (séc. XVII) – Barroco. Arte|ref, 2012. Disponível em: https://arteref.com/movimentos/ pintura-genero-holandesa/ Acesso em: 28 mar. 2017.
Beatriz Ferreira Pires
DIGRESSÕES SOBRE BELEZA, CIDADES, CORPOS E SUAS MODIFICAÇÕES
Iniciaremos o percurso deste artigo, que abordará a relação entre o corpo humano e os padrões de beleza estabelecidos pela sociedade ocidental contemporânea, mais especificamente pela sociedade brasileira, com as reflexões de dois pensadores: o historiador holandês Johan Huizinga (1872-1945) e o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017). Huizinga, no controverso livro O Outono na Idade Média, que aborda a transição da Idade Média para o Renascimento/Idade Moderna através da arte visual e da literatura, nos coloca a seguinte situação: Toda época anseia por um mundo mais belo. Quanto mais profundos o desespero e a consternação diante de um presente incerto, tanto maior será esse desejo (HUIZINGA, 2010, p. 47).
Já Bauman, no livro O Mal-Estar da Pós-Modernidade, afirma que: Todas as sociedades produzem estranhos. Mas cada espécie de sociedade produz sua própria espécie de estranhos e os produz de sua própria maneira, inimitável (BAUMAN, 1997, p. 27).
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Tomando como ponto de partida a colocação de Huizinga – Bauman nos auxiliará num momento posterior – e o fato de que vivemos numa época em que a incerteza impera em todas as áreas, tanto nas relacionadas ao âmbito público, como nas relacionadas ao âmbito privado, poderíamos supor que a obsessão de grande parte das pessoas na busca pela aparência corporal perfeita ocorre por ser o corpo a nossa materialidade passível de transformação mais acessível. Alvo de tais incertezas, é ele, o corpo, que sofre direta ou indiretamente com a escassez proveniente da precariedade das políticas públicas e econômicas, com a inóspita configuração da maioria de nossas cidades e, consequentemente, do ambiente em que habita e circula. É ele, o corpo, que cotidianamente sofre com a violência física e/ou psicológica a que é submetido, com a qualidade dos alimentos, do ar, dos sons, das relações táteis e visuais que o nutrem. É ele, o corpo, que cotidianamente sofre com o desequilíbrio de diversas de suas funções e da composição química de seus fluídos provocados pela ansiedade, pelo estresse, por diversas síndromes e fobias. Atualmente, somam-se às circunstâncias presenciais desencadeadoras de tais estados afetivos, as virtuais. Inclui-se à conjuntura descrita acima o fato dele ser foco de incontáveis procedimentos médicos e estéticos, e de inumeráveis pesquisas nestas áreas. Materialidade de grande exposição, o corpo está, cada vez mais, sob os holofotes que buscam adequar sua aparência física às métricas de beleza pertinentes ao período e ao local em que habita. CORPO CIDADE
O corpo contracena com seu ambiente de imersão. Seja este concreto ou imaterial, presencial ou virtual. Até pouco tempo o ambiente imaterial era, majoritariamente, resultado da capacidade imaginativa individual. Hoje, cada vez mais, o intangível, o fisica-
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mente inexistente, criado por programas de computador ou existentes na internet, preenchem os espaços destinados aos devaneios. A imersão física nas relações e nos espaços propiciados pelas grandes cidades faz com que o corpo tenha todos seus órgãos sensoriais afetados. Em outras palavras, faz com que materialmente todos os seus sentidos sejam atingidos. A imersão imaterial nas relações e nos espaços propiciados pela realidade virtual faz com que o corpo se imagine estimulado sensorialmente pelas propriedades do local, do tempo e da situação que lhe é apresentada virtualmente. Espaços materiais e espaços imateriais. Ambientes diferentes que atuam, em muitas ocasiões, simultaneamente sobre o mesmo organismo. Como consequência da relação de mão dupla entre a forma como nos constituímos e agimos e o espaço no qual habitamos, entre a valoração do indivíduo, da unidade em detrimento do coletivo, do conjunto, é notoriamente verificada no modo como a maioria das cidades se organizam. Nelas, prevalece a desconexão entre as construções, a quase total inexistência de equipamentos urbanos, as más condições das vias de circulação. Há muito, não se pensa a urbe como um local de convívio. Há muito, no planejamento das cidades, não se considera como um dos quesitos fundamentais de sua constituição a harmonia estética. Vivemos em cidades cada vez mais feias e menos acolhedoras. Nos dias de hoje, a forma mais empregada para deslocar a percepção do espaço físico no qual se está é a utilização de aparelhos eletrônicos móveis. São eles que permitem agregar à vida cotidiana estímulos visuais e sonoros dissociados dos proporcionados pelo local no qual o corpo físico se encontra. Imerso na esfera de efeitos especiais, tais como trilha sonora personalizada, o indivíduo não repara nos trajetos que percorre, nos edifícios que o rodeiam, nas condições em que a cidade se encontra. São eles também que possibilitam a veiculação ininterrupta de imagens de corpos considerados belos, perfeitos e que permitem ao
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indivíduo registrar e divulgar imagens de seu próprio corpo, retocadas por programas de computador ou não. CORPO IMAGEM
Recortes da realidade cotidiana, inúmeras imagens fotográficas feitas pelos aparelhos móveis e também por eles postadas nas redes sociais, buscam incessantemente mostrar a beleza que povoa a vida de quem as registra. Dentre estas postagens, destacam-se três tipos de imagem. As ligadas aos ambientes, que realçam o belo existente no local. As ligadas ao corpo/face do próprio indivíduo. As ligadas à culinária, área que, cada vez mais, se dedica a associar sabores e beleza, paladar e visão. A selfie, como é conhecida, atua como prova “irrefutável” de como o indivíduo se alimenta, dos locais por onde circula, das vestimentas que usa, do corpo/face que possui. Em todos estes três tipos de imagem, o ponto focal é o corpo. No primeiro tipo, destaca-se o ambiente no qual ele está inserido; no segundo, ele próprio; e no terceiro, o que nele se insere. Com o avanço da tecnologia, existem inúmeros recursos e programas de computador que facilmente permitem que as imagens sejam manipuladas pelo próprio indivíduo que as fez. Tal facilidade possibilita ao mesmo modificar as formas de seu corpo e de sua face, apagar suas rugas e marcas de expressão, alterar a cor de seus cabelos, olhos, etc. Ver imageticamente o corpo que se quer ter aumenta o desejo de possuí-lo. Para muitos, os retoques que fazem em seus autorretratos funcionam como projeto. Projeto corporal a ser conquistado através da utilização de diversos produtos e procedimentos estéticos, que compreendem desde simples maquiagens ou dietas alimentares até grandes e arriscadas intervenções médico-cirúrgicas. Vale lembrar que até bem pouco tempo, a técnica de modificar virtualmente a silhueta era utilizada somente por cirurgiões plásticos, especialistas na área.
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Umberto Eco, em seu livro História da Beleza, nos apresenta uma importante reflexão sobre a equivocada relação entre o sentimento do belo e o desejo de posse. Enquanto o primeiro, resultado da livre contemplação na qual o observador não é o proprietário do objeto observado, desencadeia um estado de encantamento, de arrebatamento desinteressado, voltado para o que extrapola o indivíduo, o segundo, resultado da vontade de reter para si ou em si a beleza contemplada, desencadeia um estado no qual a atenção do observador está voltada, principalmente, para ele próprio. Conforme o autor, “(...) o sentido da beleza é diverso do sentido do desejo” (ECO, 2012, p. 10). Tais afetos não se coadunam. O ato de deleitar-se com a beleza de algo é um sentimento, uma sensação que brota independentemente do fato de se desejar possuir o objeto desencadeador de tal afeto. O desejo de possuir este objeto está associado ao orgulho, à inveja e ao ciúme. Estados emocionais complexos que por sua natureza paralisam o indivíduo e o impedem justamente da ação intrínseca ao sentimento do belo que é a fruição. CORPO
Neste contexto, para muitos integrantes da sociedade ocidental contemporânea, possuir um corpo portador de atributos que esteticamente se assemelhem o máximo possível das características momentaneamente estabelecidas como belas, seja no que se refere à textura e à homogeneização da coloração do tecido epidérmico e capilar, seja no que se refere aos volumes, dimensões e formas de cada uma das partes que compõem a silhueta, tornou-se uma questão de grande relevância. Em uma relação que ocorre concomitantemente nos dois sentidos, a expansão das possibilidades que permitem a realização de tal demanda está diretamente associada à ampliação das necessidades de alterar o corpo para se aproximar do modelo da vez e aos diversos métodos de persuasão que incutem, no indivíduo, o desejo de obtê-las.
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O não esgotamento do mercado pressupõe constantes inovações, tanto dos produtos, técnicas e procedimentos destinados à obtenção do resultado desejado, como do processo de convencimento que estimula o consumidor a adquiri-los. Quando, momentaneamente, se esgotam as formas de alterar determinada parte da silhueta, outra entra em evidência e uma nova série de cosméticos, técnicas e procedimentos são desenvolvidos e abastecem o mercado. Deste modo, ao padrão de beleza vão sendo acrescidos infindáveis requisitos. Por exemplo, ora o ideal são seios grandes, ora seios pequenos. Neste caso, aquelas que desejam que seus corpos se assemelhem ao padrão e possuem condições para tal podem se submeter num primeiro momento a mamoplastia de aumento e, posteriormente, a mamoplastia redutora. Exemplo menos invasivo, mas não isento de causar danos ao organismo, uma das mais novas modas corporais é a intervenção para branquear a esclera (parte branca do globo ocular). Para obter a coloração desejada faz-se necessário a aplicação de colírios vasoconstritores, que para diminuir a circulação de sangue no globo ocular, contraem seus vasos sanguíneos. O uso frequente destes colírios pode trazer consequências para a visão. Se outrora a beleza estava diretamente associada àquilo que é verdadeiro – que está em conformidade com os fatos ou a realidade; que não é fictício, imaginário ou enganoso1 – e àquilo que é bom – que corresponde plenamente ao que é exigido, desejado ou esperado quanto à sua natureza, adequação, função, eficácia, funcionamento, etc.2 –, atualmente, no que diz respeito ao corpo humano, ela está fortemente atrelada à juventude e ao conceito atual de saúde: estado de equilíbrio dinâmico entre o organismo e seu ambiente, o qual mantém as características estruturais e
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Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Versão digital.
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funcionais do organismo dentro dos limites normais para a forma particular de vida (raça, gênero, espécie) e para a fase particular de seu ciclo vital (HOUAISS, versão digital).
A vinculação da beleza com a saúde reforça a responsabilidade imputada ao indivíduo de que ele é responsável por ambas e reforça também o constrangimento, o mal-estar que alguns observadores sentem diante de corpos que não se adequam às regras, aos padrões pré-determinados. Alguns dos procedimentos utilizados para a aquisição da beleza, tais como interferências médico-cirúrgicas para a colocação de próteses de silicone em determinadas partes do corpo, afastam esta característica das qualidades elencadas acima. Nos dias de hoje, desvinculada do que é verdadeiro, bom e saudável, a beleza corporal atua, para um número significativo de pessoas, como bem de consumo. CORPO MATÉRIA MOLDÁVEL
Tendo em mente a ideia de Bauman e a situação apresentada por Huizinga, citadas no início deste texto, podemos dizer que se toda época anseia por um mundo mais belo, cada época anseia por um belo em particular e cada época elege determinados objetos e determinadas linguagens para expressar sua ideia de beleza. Sabemos que a mesma materialidade pode ser confeccionada ou alterada através de diferentes linguagens. Tratando-se da materialidade corpo humano, as várias linguagens utilizadas para que ocorram as transformações a ele destinadas são agrupadas sob a nomenclatura body modification. A princípio, a body modification pode ser dividida em dois grandes grupos. O primeiro, a que este artigo se refere e conforme já descrevemos, é formado por indivíduos que buscam se aproximar o máximo possível do padrão de beleza vigente no período e na localidade em que se encontram. Neste grupo, as intervenções corporais adquiridas não reproduzem e não utilizam formas que não sejam semelhantes às inatas. De forma oposta, o segundo grupo é
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formado por indivíduos que buscam se distanciar não apenas do modelo de beleza pré-estabelecido para a face e para o corpo, como também das formas, cores, texturas, volumes, saliências e reentrâncias que constituem a espécie a que pertencem. Para explicitar a diferença entre estes dois grupos, utilizaremos os adornos corporais feitos com a utilização da técnica de implante como exemplo. Indivíduos pertencentes ao primeiro grupo adquirem, exclusivamente, implantes que reproduzem formas humanas inatas. Tais implantes são unicamente do tipo subdermal – ficam totalmente sob a pele. É o caso, por exemplo, dos implantes cujas próteses são destinadas a adequar o volume e o contorno dos seios, das panturrilhas, dos glúteos, etc. Já os indivíduos pertencentes ao segundo grupo adquirem, somente, implantes que não reproduzem formas humanas inatas. Estes, tanto podem ser sub, como transdermal – uma parte fica sob e outra sobre a pele. É o caso, por exemplo, dos implantes de próteses em forma de chifre, que são do tipo subdermal, dos implantes de pinos metálicos, que são do tipo transdermal, etc. Cada um dos dois grandes grupos formados por adeptos da body modification pode ser subdividido em subgrupos constituídos conforme critérios que, entre outras formas de escolha, podem ser determinados pela técnica utilizada para a feitura da interferência corporal, pela parte do corpo a ser modificada, pela quantidade de modificações adquiridas, pelo modelo a que se quer assemelhar, etc. Recentemente, à listagem de modelos possíveis utilizada pelos membros do primeiro grupo, que até então era constituída somente por corpos humanos – seres dotados de vida –, foi acrescida a listagem de corpos de bonecos – seres inanimados. Ao escolher um boneco como modelo, o indivíduo deseja se assemelhar esteticamente a um objeto que, por sua vez, ao ser projetado teve como modelo o corpo humano considerado belo. Tal acréscimo à lista de modelos que inspiram modificações corporais coloca nossa sociedade, através dos indivíduos que pertencem ao grupo aqui tratado, em uma posição diferente de todas as outras, desde as constituídas por nossos ancestrais mais longín-
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quos que, mesmo pertencendo ao segundo grupo, elencavam como modelos seres dotados de vida. Em nossa sociedade, até pouco tempo, no que se refere às práticas de modificação corporal, a categoria estranho – formada pelos que confundem a ordem – compreendia somente aqueles que fazem parte do segundo grupo. A obsessão de alguns indivíduos pertencentes ao primeiro grupo em conquistar o corpo perfeito, através de infindáveis tratamentos, procedimentos e cirurgias, fez com que os mesmos excedessem o limite, ultrapassem a forma corporal modelar e passassem a fazer parte desta categoria. Como exemplo, podemos citar o caso da atriz e modelo erótica americana Chelsea Charms (1976), que se submeteu a três mamoplastias de aumento. Nas duas primeiras recebeu implantes mamários salinos – conchas de silicone preenchidas inteiramente com solução salina. Na terceira, implantes mamários de polipropileno, também conhecidos como String Breast Implants – implantes mamários de cordas (PIRES, 2016).
O implante mamário de cordas, atualmente proibido, foi criado pelo cirurgião plástico norte-americano Dr. Gerald W. Johnson. O material utilizado para sua feitura absorve os fluídos corporais e, por conseguinte, propicia o contínuo crescimento da região corporal na qual é inserido. Outro caso, este agora do brasileiro Rodrigo Alves (1984), exemplifica não somente as modificações corporais que extrapolam o modelo escolhido, como também aquelas cujo modelo escolhido é um boneco, mais especificamente o boneco Ken, namorado da boneca Barbie. Alves já se submeteu a inúmeros procedimentos médico-estéticos entre eles: várias rinoplastias, cirurgias na mandíbula e queixo, próteses no peito, abdômen, panturrilha e coxas, botox na bochecha e nos lábios, lipoaspirações, peeling químico, tratamento com luz de led, pílulas de colágeno, aplicação de Aqualift – hidrogel de preenchimento e aumento do volume corporal – nos braços, e mais recentemente a retirada de seus dois pares de costelas flutuantes.
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Não satisfeito, continua modificando seu corpo mesmo após ter se assemelhado ao modelo escolhido. Tal continuidade fez com que a aparência física de Alves se afastasse, e até mesmo ultrapassasse a do modelo. Em entrevistas recentes, Rodrigo declarou que nunca teve Ken como modelo e que a associação de sua aparência com a do boneco é de exclusiva responsabilidade da mídia. Estranhos pelo excesso, este indivíduos passam a habitar uma zona nebulosa, situada à margem do espaço que queriam conquistar. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste percurso, das inúmeras questões contemporâneas e dos inúmeros entrelaçamentos possíveis entre elas que levam à insaciável insatisfação com a aparência do próprio corpo, divagamos sobre as características estéticas do espaço material e imaterial no qual o corpo está imerso e, consequentemente, do qual todos seus sentidos recebem estímulos. Considerando que a sensação de descontentamento propiciada pelo ambiente material é rapidamente revertida quando da imersão no ambiente virtual, e que este último, entre outros fatores, possibilita ao internauta o fácil acesso a lugares, corpos e objetos possuidores de beleza, podemos supor que tal imersão acirra o desejo de viver em contato com o belo, esteja este associado aos lugares, aos objetos e às pessoas, esteja este associado ao próprio corpo. Voltando nossa atenção à afirmação inicial de Bauman, se cada sociedade produz, de modo que não se pode imitar, sua própria espécie de estranhos, a nossa, no que concerne aos indivíduos pertencentes ao primeiro grupo aqui tratado, a produz com base na junção de duas coisas que, segundo Umberto Eco, não se vinculam: o sentimento do belo e o desejo de posse.
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Referências BAUMAN, Zygmunt. O Mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. ECO, Umberto. História da beleza. 2 ed. Rio de Janeiro: Record, 2012. HUIZINGA, Johan. O outono na Idade Média. São Paulo: Cosacnaify, 2010. PIRES, Beatriz Ferreira. O corpo como suporte da arte – piercing, implante, escarificação, tatuagem. São Paulo: SENAC, 2005. PIRES, Beatriz Ferreira. Corpos Acordantes, Corpos Discordantes – Reflexões sobre Algumas das Inúmeras Técnicas Contemporâneas de Modificação Corporal e sobre Alguns dos Inúmeros Comportamentos Sociais a elas Vinculados. Anais do II Congresso Internacional sobre Culturas. Annamaria Palácios, Edilene Matos, Joevane Sena (Orgs.), Salvador, 2016. Sites Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Versão digital. Rodrigo Alves – Entrevista no Programa This Morning (ITV), 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zBGxPuqCOIY. Acesso em: 02 jul. 2018. TV FOCO. Ken Humano retira costelas e mostra os ossos na TV, 2018. Disponível em: https://www.otvfoco.com.br/ken-humano-retira-costelase-mostra-os-ossos-na-tv/. Acesso em: 02 jul. 2018.
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o DANDISMo DE ARTHUR BISPo Do RoSÁRIo: A vIDA coMo oBRA DE ARTE1
Na introdução de Devemos ser uma obra de arte ou vestir uma: O Dandismo como Medium-de-Reflexão na Arte (2016), Angélica Adverse destaca dois aspectos a serem considerados quando abordamos uma análise sobre o Dandismo. O primeiro, diz a autora, corresponde ao caráter incerto de sua origem e genealogia; um outro ponto diz respeito à dinâmica de sua condição, ou seja, as insurgências cíclicas e fragmentadas. Sob outros aspectos, para compreendermos o Dandismo é necessário atentar para suas sublevações em devir (2016), ou seja, suas manifestações nos interstícios da história, no interior das diferentes formas culturais onde ele emerge como uma potência antagônica. Posto essas considerações, nos interessa uma aproximação desta noção e verificar como seus sentidos foram sendo reconfigurados ao longo dos tempos, de modo que nos permita friccionar, a partir de uma abordagem contemporânea, com o estilo de vida do artista sergipano Arthur Bispo do Rosário. 1 As discussões travadas neste artigo, correspondem a noções preliminares que serão discutidas na tese de doutorado, onde a abordagem, em uma perspectiva mais ampla, analisa as dimensões do Estilo, Dandismo, Aparência e Escultura-de-si como elementos aglutinadores da gestualidade e a da presença de Arthur Bispo do Rosário.
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A dimensão Dândi é pouco destacada ou nem abordada nos estudos sobre o artista. Dessa forma, a partir de uma mirada contemporânea, lançando mão do relato de José Castello (2009) e da entrevista de Arthur Bispo do Rosário para Hugo Denizart, em ‘O prisioneiro da passagem’ (1982), este artigo busca sublinhar algumas características Dândi(s) na vida do artista sergipano, contribuindo como mais um vetor de análise e abordagem sobre Bispo do Rosário; estas características estão circunscritas em dois vetores indissociáveis: o atitudinal e a reinvenção da aparência como formas de ser e estar no mundo. A escolha por estas fontes não é desinteressada. O relato de Castello destaca a potência da aparência e altivez de Bispo a partir da recepção da presença que se impõe ao olhar do jornalista, ou seja, como o mesmo fora surpreendido pelo espetáculo da aparição daquele homem, naquelas circunstâncias. O filme, por sua vez, revela o próprio personagem falando de si, dando-se a ver diante da câmera. Ambas as fontes trazem em comum a aparência e o corpo como catalisadores da performance em cena. Isso nos permite compreender esses fragmentos sugestionáveis como uma ressignificação bispiana da estética Dândi, tanto no cuidado da aparência, quanto nas condutas para transformar sua vida em uma obra de arte. Todavia, é importante frisar, como já sublinhado por Adverse (2016), que dada a fisionomia movente, a genealogia do Dandismo é de difícil apreensão linear e monolítica na história. Em vista disso, ao destacar a condição de inacabamento do Dandismo, a autora retoma alguns elementos que brevemente acionaremos ao longo do texto. Ela destaca alguns movimentos quanto ao surgimento do Dandismo. Primeiramente, muitos autores credenciam o surgimento do movimento Dândi às dinâmicas urbanas entre França e Inglaterra do século XVII. Assim, como destaca a autora, “alguns ingleses acreditam que o Dandismo foi uma influência da cultura francesa dos salões representada pelas personagens do l’honnête homme ou das Précieuses” (ADVERSE, 2016, p. 85), por exemplo. Esta compreensão, segundo ela, apontava para o entrelaçamento, ao modo estoico, de aperfeiçoamento moral, através das leituras, escri-
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tas e mediações que esmeravam o espírito a ponto de transformar as ações dos indivíduos em manifestações de prudência, equilíbrio e sabedoria. Desse modo, Adverse (2016) lança mão do Mapa da Ternura de François Chaveau, com o objetivo de mostrar como os primeiros traços do ideal de homem elegante estavam presentes nesta cartografia dos processos a serem perseguidos para que seja dominada a arte da sedução. O mapa revela a fisionomia de uma boa conduta moral que deve ‘estilizar’ as ações e os gestos do sujeito moderno. Conforme a autora, é possível uma aproximação da cartografia da ternura com a noção que anima os exercícios morais do Dândi em suas técnicas de aprimoramento. O mapa, segundo Adverse (2016), se configura como lugar utópico do homem ideal, pois, enquanto itinerário, ele oferece as pistas prescritivas como o indivíduo deve se guiar no processo de reinvenção de si, em um projeto criativo de aprimoramento dos sentidos, que, por sua vez, são compartilhados de forma sensível através do afeto. Portanto, “a elegância estaria relacionada aos modos e à partilha das sensibilidades a partir de uma topografia imaginária dos afetos” (ADVERSE, 2016, p. 86), que, transformando as atitudes masculinas, estas seriam demonstradas no entorno social. Ao tratar desse aspecto que corresponde à noção de arte de viver, Adverse (2016) assinala que esta arte de viver aponta para o aspecto sensível do Dandismo no que diz respeito ao dar-se a ver em público. Em outras palavras, estamos diante da dimensão estética e comunal do Dândi que perpassa os modos de apresentação do corpo, mas sobretudo, a conjugação moral e espacial dessa apresentação em caráter atitudinal com e para o outro. Essa é uma das razões que inscreve a elegância no âmbito de sociabilidade, diz a autora, ao revelar que, compreendido sob essa perspectiva, o Dandismo é um gesto de comunicabilidade, embora circunscrito em potência de ruptura, enquanto performance, insere-se na comunhão de sentidos, no interior de um dado contexto. Por outro lado, se existem concepções que compreendem o Dandismo na emergência das trocas culturais entre França e
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Inglaterra, alguns pesquisadores creditam esta emergência à vida urbana de Edinburgh no fim do Século XVIII, diz Adverse (2016), ao lembrar que o étimo de origem inglesa designa os jovens integrados na vida moderna e o aparecimento das novidades nesta efervescência. Embora devamos considerar a condição incerta de suas origens, a palavra dândy remonta ao início do século XIX, na Inglaterra, e seu uso inaugural é “atribuído ao poeta Lord Byron ao nomear de Dândis, através de uma carta datada de 1813, George Bryan Brummel e seus companheiros” (CATHARINA, 2006, p. 63). Todavia, mantendo sua condição incerta e fugaz, o Dandismo se caracteriza pela adaptabilidade de suas máscaras ao longo dos anos, seja como personagem social ou literário, ou mesmo no trânsito dessas duas condições. Em ambas, o Dândi prefigura a tensão antagônica com o seu contexto sem dele se retirar. Em outras palavras, não se pode compreender o Dândi ou o Dandismo apenas por uma concepção, mas nos fluxos de sua movência e nas suas erupções ao longo do tempo2. A movência do Dândi e Dandismo ao longo da história, do perfil negativo balzaquiano da Comédia Humana ao alcance estético e moral acentuado por Charles Baudelaire, nos permite compreender a sua condição transversal na cultura ocidental e em todas as épocas, mantendo, em todas os tempos, uma característica inalterada; a saber, a acentuação do alcance estético da existência, isto é, em suas diversas configurações, o Dândi e o Dandismo estiveram sempre misturados ao artístico da vida, empenhando o corpo como primeira matéria para instituir novos contornos de beleza na relação com o tempo e com o espaço. Essa é uma das razões de seus ressurgimentos intempestivos que, na nossa perspectiva, percebemos em Arthur Bispo do Rosário, através da sua insubmissão ao presente, por meio da aristocracia de espírito, prefigurada na aparência e no modo atitudinal se ser e 2 Para aprofundamento a respeito dos aspectos semânticos, recomendamos a leitura do ensaio: CATHARINA, Pedro Paulo Garcia Ferreira. As muitas faces do dândi. In: Luiz Edmundo Bouças Courtinho e Latuf Isaias Mucci (Orgs.) Dândis, estetas e sibaritas. Rio de Janeiro: Confraria do Vento e Faculdade de Letras da UFRJ, 2006, p. 62-69.
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estar no mundo. Em outras palavras, em sua força desafiadora das formas, na transfiguração da trivialidade, a partir de uma autonomia diante da experiência-limite na qual esteve imerso. Portanto, a insurgência de Bispo reúne a capacidade de se perceber no mundo, refletindo, de modo prático e imaginário, como reposicionar-se através da remodelação da aparência; mas, sobretudo, sem estar limitado a ela, ou seja, uma remodelação para a amplitude do eu onde se cruzam a estética, ética e a beleza. BISPODÂNDI: A ESCULTURADESI
Nossa compreensão está circunscrita, como dissemos, em uma perceptiva “contemporânea”, tal como proposto por Renata Pitombo Cidreira (2016), em suas análises a respeito da reelaboração da estética Dândi exercida por alguns grupos da comunidade de Brazzaville, na República Democrática do Congo: “les sapeurs”, que, através de suas roupas exuberantes, acessórios coloridos e combinações inusitadas, demarcam uma maneira de expressão estabelecendo novos contornos de beleza e aparência, reconfigurando formas e modos de aparecer. Cidreira (2016), através de suas análises sobre a potência do vestir ou do pôr-se em cena, assinala uma perspectiva que nos permite compreender a estética Dândi dos Les sapeurs como um gesto insubmisso contra a precariedade das circunstâncias e que, ao se afirmar como uma poética gregária, revela a força de comunhão que a composição da aparência efetiva em torno de uma insurgência através do vestir, mas sobretudo, do modo de se pôr em cena também para o outro. Assim, podemos dizer que os Les sapeurs, tal como os Dândis do século XIX, deslocados de seu tempo, protestam e se posicionam antagonicamente contra o presente sem dele se descolar. Nas palavras de Cidreira (2016), a estética Dândi dos Les Sapeurs “propicia que estes homens descubram na beleza e na ‘composição da aparência’ uma possibilidade de sobrevivência e, mais do
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que isso, a possibilidade de uma existência potente” (CIDREIRA, 2016, p. 377)3 do corpo e suas formas de aparecer. Ao propor a acentuação do gesto Dândi de Bispo, sublinhamos a teatralização da composição de si e os vetores de sentidos que operam na poética do fazer aparecer “o não-ser ao ser na presença”4, como possibilidades de transfiguração da experiência existencial, cujo domínio reside na potência de artisticidade da “escultura-de-si” ao instituir novas convergências visuais para o corpo e como este se impõe ao olhar do outro. Portanto, na estilização, cujo étimo latino evoca a técnica de forjar impressões, traços ou volumes visíveis em uma dada superfície maleável5. O corpo para o Dândi torna-se, assim, a primeira matéria que a escultura-de-si pode revelar no entrelaçamento da força e da forma como expressividade entre atores sociais. Para Jose Castello (2009), a forma da apresentação de si de Bispo, na ocasião da entrevista acompanhada de Walter Firmo, causou-lhe espanto pela força atitudinal daquela presença. Diz Castello (2009): O Bispo é, segundo as normas eclesiásticas, um padre na plenitude se seu sacramento. É também uma peça que, no jogo de xadrez, só pode ser movida na diagonal, isto é, que avança para os lados. Era o que eu ia encontrar em Arthur Bispo do Rosário: brilho, e não escuridão, e também movimentos tortos, que pareciam insensatos, mas, na verdade, construíam uma obra atordoante. Ao contrário de mim, o repórter que vacilava, meu entrevistado não tinha nenhuma dúvida a respeito do que estava destinado a fazer. Comportava-se impecavelmente – e, convicto, emprestava solenidade a seus atos (CASTELLO, 2009, p. 288, grifo nosso).
3 CIDREIRA, P. Renata. A potência da aparência: entrelaçamentos entre cultura, moda e arte. In: Diálogos Brasil Portugal. Anais Do II Congresso Internacional Sobre Cultura. Org. Annamaria Palacios, Edilene Matos, Joevane Sena. Salvador, 2016, p. 373-379. 4
AGAMBEN, Giorgio. O homem sem conteúdo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
No Dicionário Etimológico (1982) de Antônio Geraldo Cunha, a palavra estilo segue a seguinte descrição/denominação: Estilete: punhal de lâmina fina. Do francês: stylet, derivado do italiano stiletto, de stilo ‘punhal’. Estilo: espécie de ponteiro antigamente usado para escrever sobre a camada de cera nas tábuas ‘maneira de escrever, falar’. Do latim stilus. CUNHA, da. G. Antônio. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 1ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. 5
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Em outro trecho Castello (2009) narra a experiência da “escultura” de Bispo e o aspecto teatral de seu modo de compor a aparência: Diante de mim, sua imagem era mesmo a de um bispo: a batina bordada com inscrições sagradas, os paramentos escorrendo pelo corpo, o porte de um religioso na plenitude de seus sacramentos. Andava com o queixo erguido, como um perdigueiro; os braços, abertos em cruz, o ajudavam a suportar o peso das ombreiras, e os cabelos tempestuosos, com fios endurecidos em forma de estrela, emprestavamlhe uma aparência solene[...] Primeiro eu vi a testa quadrada, sebosa, dominada por uma meia careca absolutamente lisa, reta como um desfiladeiro, que se estendia até o alto da cabeça e lhe dava uma dignidade um pouco dramática. Do topo, saía um chumaço forte de cabelo ainda negro, grudado em borras de sujeira e gordura, um cetro natural, que dispensava coroações. Bispo vestia seu manto sagrado, que mais parecia um tapete e que trazia bordados desenhos indecifráveis, traços que evocavam vagamente um mapa astral. Em torno do pescoço, trançadas em amarelo-ouro, ombreiras largas, com seus penduricalhos, simulavam as condecorações militares. Dos ombros escorriam ainda longas tiras de cordas coloridas, que se derramavam até abaixo dos joelhos. Era, sem dúvida, uma indumentária que impunha respeito e que lhe conferia um aspecto teatral (CASTELLO, 2009, p. 290, grifo nosso).
As longas citações da narração de Castello mantêm um ponto em comum de convergência que corresponde à performatividade da aparência, somando-se ao aspecto cerimonioso do pôr-se em cena de Bispo. Nas linhas desta narrativa, a experiência de Castello deixa sublinhada a surpresa diante do personagem, cujo corpo adornado se apresentava de modo antagônico ao seu contexto. Temos assim, portanto, uma apresentação plasmada pela condição artística de uma aristocracia do espírito, tal como um Dândi. O corpo em atitude e plasticidade parece reafirmar a unidade expressiva da experiência do Eu, engajando, ao mesmo tempo, a acentuação estética da individualidade, cujos atributos manifestam a autonomia das possibilidades inventivas da aparência, através de uma
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estética da existência. E a condição comum dessa unidade expressiva que corresponde às experiências intersubjetivas que se presentificam em nós como pertencimentos daqueles que nos antecederam, como, por exemplo, no caso de Bispo, as sentenças religiosas de um catolicismo afro-brasileiro e as sentenças militares evocadas nos adornos do Manto da Apresentação, como descritas acima nas palavras de Castello (2009).
Figura 1 – Arthur Bispo do Rosário com o Manto da Apresentação. Rio de Janeiro, 1985. Foto: FIRMO, Walter. (2013, p. 09).
O gesto Dândi de Bispo, circunscrito em seu contexto de precariedade, assinala um modo de experiência que também é posto em cena nos fragmentos sugestionáveis captados por Hugo Denizart em O prisioneiro da passagem (1982). Sob outra perspectiva, o que se propõe em relevo é a expressão de Bispo permitindo-se à teatrali-
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dade e espetacularidade6 diante das câmeras, performando os rituais que são tecidos na prática cotidiana enquanto estética da existência, cuja potencialização encontra na midiatização, o terreno fértil para invenção da espetacularização. Entre os minutos 1:58 e 5:41 do filme, em um processo intercambiável entre delírio e consciência de si, Bispo revela o projeto de sua obra como resultado efetivo para cumprir sua missão em refazer o mundo, onde não haverá diferenças, separações ou abismos, uma evidência do desejo de outro lugar, conforme seu projeto. Contudo, o que nos interessa nesse trecho é a transversalidade do devir do corpo que se afirma pelo ritmo das respostas, onde o gestual revela sobre o modo de pôr-se em cena transcendendo o enunciado. Bispo responde a Denizart vestindo seu Manto da Apresentação, indumentária solene, reveladora exibição do espetáculo da aparência. Luciana Hidalgo (2012), ao seu turno, destaca esse momento do pôr-se em cena de Bispo como: O efeito na tela é um registro singular de Bispo, pleno em sua soberania, seguro nas respostas às perguntas consistentes, muito bem conduzidas (...). Absoluto em seu universo, no Manto da Apresentação, Bispo respondia às questões de Hugo. A câmera entrava e saía do universo de Bispo para o hospício ao redor. De volta ao protagonista, Hugo o encontrava sempre pronto, altivo. (HIDALGO, 2012, p. 65).
Sobre o contexto descrito por Hidalgo, vejamos o que o trecho do diálogo de Hugo Denizart com Bispo nos revela através da gestualidade: Hugo: As miniaturas permitem a sua transformação? Bispo: Pois é. Hugo: Como é que permite? Bispo: Não tem a representação? Vou me apresentar corporalmente. Minha ação corporal é esse brilho que eu botei. Hugo: E essas miniaturas são representações. Para aprofundamento sobre essas noções: BIÃO, Armindo. Etnocenologia e a cena baiana: textos reunidos. Salvador: P&A Gráfica e Editora, 2009.
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Bispo: É material existente na terra dos homens. Hugo: É uma representação de tudo que existe na Terra? Bispo: É, são trabalhos que existem. Hugo: E você vai se transformar em Jesus Cristo, como é que é? Bispo: Não vou me transformar não, rapaz, você está falando com ele. Tá mais do que visto. Mas pra quem enxerga; pra quem não enxerga não dá pé (HIDALGO, 2012, p. 66 grifo nosso).
Uma das características Dândi de Bispo que percebemos no filme está no caráter atitudinal diante do mundo, “pôr-se em cena”’ reunindo um projeto indissociável da moral e da estética com vistas ao alargamento do próprio eu, conjugando a imaginação e o contexto, a realidade e o sonho, em uma dinâmica de combate à trivialidade7 do presente, gesto de resistência contra a degradação. No trecho em questão, o diálogo que ora sublinhamos, tem a precedência do gesto, ou seja, o corpo se empenhando em direção à resposta com o pressuposto de que o entrevistador já saiba da plenitude daquela presença diante da câmera. O contexto, portanto, como se faz notar no filme, é a segunda matéria do processo de estilização da vida para Bispo, pois, no manicômio, a sua missão ganhava estatuto de verdade. O manicômio é parte fundamental de seu processo, considerando que ele não estava fora de sua obra e, sobretudo, porque Bispo é um crítico da instituição, ou seja, a criticidade do presente é outra característica Dândi, como salienta Adverse, ao demonstrar que o Dandismo é uma ação reflexiva sobre seu tempo: Os dândis são obras de arte cuja reflexividade configura-se pela construção e pelo devir. As irrupções do Dandismo (suas figurações ao longo do tempo) são desencadeadas pelo contínuo trabalho reflexivo imanente às obras. O Dandismo nos leva a pensar em uma outra dinâmica temporal: ele está intimamente ligado às cisões, aos cortes e às fraturas que desencadeiam os ressurgimentos. São as imagens da sobrevida que ressurgem na arte a partir das correspondências entre o passado e o presente (ADVERSE, 2016, p. 90). 7
(BAUDELAIRE, 1996, p. 46).
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O devir Dândi não anula a totalidade existencial de fisionomia institucional que Charles Baudelaire destaca no ensaio O dândi (1996). O Dandismo, lembra Baudelaire, é uma instituição à margem da lei, mas com leis rigorosas para aqueles que a ele se submetem. Nesse sentido, estamos falando do alcance simbólico do Dandismo, ou seja, do que não se restringe apenas ao culto à indumentária – símbolo de distinção que coloca em cena a superioridade aristocrática do espírito do Dândi. A indumentária compõe todo um conjunto que move o Dândi em direção a “uma originalidade dentro dos limites exteriores das conveniências” (BAUDELAIRE, 1996, p. 44). Portanto, ela é parte fundamental da expressividade Dândi, que se configura de forma indissociável como amálgama do espírito. Para os que são ao mesmo tempo seus sacerdotes e suas vítimas, todas as condições materiais complexas a que se submetem, desde o traje impecável a qualquer hora do dia e da noite até as proezas mais perigosas do esporte, não passam de uma ginástica apta a fortificar a vontade e a disciplinar a alma (BAUDELAIRE, 1996, p. 45).
Eis como compreendemos a experiência contemporânea Dândi de Bispo: um processo de reconfiguração do modo de ser, estar e aparecer no mundo, através da transformação das indumentárias que, ao transformar a matéria vestimentar, descobre o seu modo de estilizar a si mesmo, solicitando e impondo, em seu gesto de diferenciação e expressão, alinhamento do espírito com todo empenho do corpo, o comprazimento do outro. Em outras palavras, é uma atitude gregária junto àqueles que ‘”fizeram da aparência a sua razão de ser, da vida uma obra de arte” (CIDREIRA, 2012, p. 12). É o gesto de fusão entre o ser e parecer como efetivação da dinâmica existencial, entrelaçando acordos performativos, teatrais e espetaculares. Intenso comércio entre o corpo e os adornos, entre a singularidade do eu e a irradiação para o outro, através da dimensão estética que, por fim, revela o caráter transversal e histórico do Dandismo, manifestando a força de presentificação para além dos limites temporais e geográficos que marcam seu surgimento.
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No contexto bispiano, a reinvenção da aparência era uma estratégia elementar, profundamente marcada pela estilização de si em busca da forma exitosa que encontrava, no olhar do outro, a confirmação de sua experiência expressiva, distinta e singularizada, cuja profundidade se revelava na superfície dos fardões, ricamente bordados e estruturados, dando ênfase à retidão e elegância do corpo. Ou seja, na amplificação do eu traduzida pela extensão das indumentárias e adornos que eram impostos à visualidade. Todavia, essa retidão e exuberância da aparência, contrastantes com o contexto asilar de abandono, misturava-se ao aperfeiçoamento atitudinal, ao modo de pôr-se no mundo. Seja pelo rigoroso primor dos regimes comportamentais, pautados por estreitas disciplinas que iam das regras sobre uso das indumentárias às dietas que Bispo se submetia antes dos momentos de “produção intensa da obra”8, passando pelo cuidado com a aparência, que no fundo se revelava em desobediência às normas institucionais disciplinadoras, Bispo zelava pela sua composição da aparência. Prova disso era o gesto em transformar a roupa/farrapo em exuberantes fardões e mantos que indicavam essa insubmissão através da recomposição da aparência. Indicavam também, por seu turno, uma busca pela beleza, na reconfiguração das peças ora desprovidas de graça. O desdobramento transformador das possibilidades da experiência, a partir da remodelação de si mesmo, como uma postura crítica, plasticamente política, dotada de novos sentidos de percepção e comunicação, parece nortear o gesto Dândi como movimento de afirmação da presença e instituição de novos sentidos. Por isso, é preciso considerar a gestualidade de Bispo como uma construção reveladora dos jogos performativos da exibição do eu que foram 8 Em um dos diálogos com a estagiária Rosângela, diz Bispo: “Você trata daqueles malucos naquela sala? Eles são malucos, não vai adiantar. Não dizem coisa com coisa, são sujos, não tomam banho, não têm educação. Bispo repetia-se, mencionava a passagem, esmerava-se em jejuns sazonais. Certa vez, Rosângela notou que ele não se alimentava, ficava calado, lento, abatido. Bispo: “Preciso deixar de comer para ficar todo brilhoso, dos pés à cabeça, e aguardar minha ordem. Vou ficar transparente para subir ao céu na hora da passagem” (HIDALGO, 1996, p. 165).
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minimamente urdidos, cuja manifestação expõe uma pessoa com ar de segurança, simplicidade e dominação em seus gestos tal como um “Hércules desempregado”9. Posto como um herói em meio a decadência, Bispo manifesta, por meio de seu gesto, a condição transversal da identidade Dândi em fluxos históricos, rompendo as especificidades que a coloca na circunscrição apenas de um dado período ou localização. Ou seja, o Dandismo de Bispo põe em tensão o contexto de sua emergência ao se impor como uma ruptura e produção de outras formas de vida. Seu Dandismo parece sugestionar esses movimentos voltados ao desafio, libertando-se “magnificamente com elegância e ironia”, substituindo um previsível delírio desarrazoado de “mania de grandeza”, proferido por um corpo rebotado pela decrepitude, resultante do abandono do estado, por uma exuberante “perfeição de uma máscara, de uma fachada, de uma aparência” (BOLLON, 1993, p. 181). Assim, é preciso concordar com Patrice Bollon na afirmação de que, enquanto artifício humano criado entre os humanos, a aparência nos destina à diferenciação, o que nos leva à vida compreendida como arte, retomando as palavras de Oscar Wilde a respeito de Dorian Gray, perfeitamente adequadas à atitude Dândi de Bispo do Rosário: E, sem dúvida, para ele a Vida era, em si mesma, a primordial, a mais grandiosa de todas as artes, e, por isso mesmo, todas as outras artes pareciam ser os preparativos para a Vida. A moda, que torna a verdadeira extravagância momentaneamente universal, e o Dandismo, que, a seu modo, é uma tentativa de afirmar a absoluta modernidade da beleza, não deixavam de exercer sobre ele o seu fascínio (WILDE, 2000, p. 87). 9 É justamente essa leveza de atitudes, essa segurança nas maneiras, essa simplicidade no ar de dominação, esse modo de vestir uma casaca e de conduzir um cavalo, essas atitudes sempre calmas, mas revelando força, que nos fazem pensar, quando nosso olhar descobre um desses seres privilegiados em quem o belo e o temível se confundem tão misteriosamente: “Aqui talvez esteja um homem rico, mas, com maior probabilidade, um Hércules sem emprego”. (BAUDELAIRE, 1995, p. 52)
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Por fim, as características que aproximam Bispo de um gesto Dândi revelam uma atitude de requinte e conquista, nos lembra Bollon, que posto entre a presença e o apagamento, a atitude de Bispo pode ainda ser compreendida como o avesso de uma vida nua, cuidado e clínica de si, revanche e enfrentamento. Escolha pela beleza da escultura de si contra o abandono e esquecimento, uma revolta através do estilo. “Essa maneira de celebrar o mundo em sua aparência, e mesmo como pura aparência, lhes servia tanto como modo de vida e de ética (...) eles concebiam a vida como uma arte” (BOLLON, 1993, p. 181). Com isso, é preciso reconhecer o gesto estilizante de um corpo atlântico que, ao envergar-se em si mesmo, no empenho pelo estilo, também desvelava o desafio de pôr-se diante do poder com todas as suas fragilidades e potencialidades inventivas. Sua ação corporal, como disse o próprio Bispo a Denizart (1982), era “esse próprio” brilho que ele havia colocado em si. Nesta entrevista, Bispo aciona o dispositivo teatral demonstrando, através do modo de aparecer, a potência em diferenciar-se exibindo um rico conjunto de indumentárias para as câmeras. Esse gesto reafirma como sua aparição é um evento incontornável na cultura das artes brasileiras. É bastante significativo seu interesse em oferecer às lentes de Denizart um personagem que despertava curiosidade e admiração ao mesmo tempo que se colocava distante e descolado daquele contexto. De outro modo, Bispo parecia conhecer a potência de sua importância e o que a composição da aparência representava como uma espécie de catalisador da coparticipação dos outros no mundo, cujo centro era seu corpo brilhoso, lugar incontornável da insubmissão e demonstração da força criativa de culto à beleza. Em outras palavras, artista de si, escultor da própria forma que, no fim, fez confluir em um mesmo acontecimento do protagonismo do corpo, as cênicas e as plásticas.
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Referências ADVERSE, Angélica. Devemos ser uma obra de arte ou vestir uma: o Dandismo como medium-de-reflexão na arte. Tese (Doutorado em Artes) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016. BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna. Teixeira Coelho (Org.). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. BOLLON, Patrice. A moral da máscara: merveilleux, zazous, dândis, punks, etc. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. CASTELLO, José. Arthur Bispo do Rosário: o mordomo do apocalipse. In: Inventário das sombras. Rio de Janeiro: Record, 2006. CATHARINA, Pedro Paulo Garcia Ferreira. As muitas faces do dândi. Luiz Edmundo Bouças Courtinho e Latuf Isaias Mucci (Orgs.) Dândis, estetas e sibaritas. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2006, p. 62-69. CIDREIRA, Renata Pitombo. Moda e Performance. In: 8º Colóquio de Moda. Rio de Janeiro, 2012. Anais eletrônicos, 2012. Disponível em: http://www. coloquiomoda.com.br/coloquio2017/anais/anais/edicoes/8-Coloquio-deModa_2012/GT08/ARTIGO-DE-GT/101417__Fashion_and_Performance. pdf. Acesso em: 22 mar. 2019. CIDREIRA, Renata Pitombo. A potência da aparência: entrelaçamentos entre cultura, moda e arte. In: Anais do II Congresso Internacional sobre Culturas. Annamaria Palácios, Edilene Matos, Joevane Sena (Orgs.), Salvador, 2016, p. 373-379. FIRMO, Walter. Um olhar sobre Bispo do Rosário. Flávia Corpas (Org.), Rio de Janeiro: Nau: Livre Galeria, 2013. HIDALGO, Luciana. Arthur Bispo do Rosário: o senhor do labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 2012. O PRISIONEIRO DA PASSAGEM. Direção de Hugo Denizart. Brasil: Ministério da Saúde, 1982. DVD (30 min). Acervo do Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira, RJ. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=PjgP1LYLZOU. Acesso em: 22 mar. 2019. WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.
Hanna Cláudia Freitas Rodrigues
UM CORPO EM ONDAS: A POÉTICA DO ESTUDO DA ÁGUA DE ISADORA DUNCAN
Há quem nunca tenha ouvido falar desta mulher, como há quem tenha tido a vida diretamente marcada por sua filosofia libertária. Isadora Duncan (1877-1927) foi uma bailarina norte-americana que irrompeu os preceitos do ballet clássico e deu luz à era da dança moderna, postulando com tal ruptura, uma nova estética do movimento, uma subversão do referencial de beleza do corpo ideal para dança, e uma nova poética artística a partir da emancipação do corpo feminino. Nesta transição entre a Dança Clássica e Moderna, destaco fenômenos importantes que se deram como fissuras capazes de desbancar paradigmas e convenções de um corpo em dança: Ao renegar os coques, os collants, as sapatilhas de ponta, os pomposos palcos, e a postura da realeza como referenciais de movimento – em detrimento dos pés no chão, dos cabelos soltos ao vento, das túnicas , da natureza como cenário e da inspiração de movimentos a partir das ações do cotidiano – Isadora não só lança uma estética do corpo em dança, como também inaugura uma poética do movimento. Ela revoluciona o belo, o liberta das formas postas, o fluidesce. É sobre tal revolução que se desdobra esta investigação, mais precisamente sobre o repertório intitulado Estudo da Água,
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criado pela artista e executado pela bailarina Nadia Chilkovsky Nahumck (1908-2006), no Museu Nacional de Mulheres nas Artes, em 1994. Este solo me foi ensinado em 2015 e relatarei aqui esta experiência, tomando a própria vivência da aprendizagem da dança como caminho metodológico para se chegar ao entendimento da poética desta coreografia e do primado legado de Isadora na emersão de novas referências de beleza e de linguagem a partir do corpo. Portanto, pretende-se entender as concepções da beleza deste corpo libertário da Dança Moderna de Isadora Duncan, tendo como objeto de análise a coreografia Estudo da Água, e apostando na metodologia de caráter inferencial do meu processo perceptivo na aprendizagem do repertório. Serão desdobramentos essenciais para entendermos esta poética: as concepções do belo; o imbricamento político de uma estética emancipadora do corpo feminino; e o processo de criação artística envolvidos no nosso tomo central – Um corpo em ondas. UM OUTRO CORPO QUE DANÇA: A FILOSOFIA DE ISADORA E A DANÇA MODERNA
É preciso, antes de tudo, tornar lúcido um recorte espaço-temporal que se assume em se tratando da Dança Moderna. Ao falarmos aqui do período moderno para as danças, estaremos nos referindo à conjuntura norte-americana e europeia na qual está implicado o pioneirismo de Isadora. São contribuições inegáveis a uma libertação do corpo da mulher em dança, mas é primordial entender que a própria visibilidade e acessibilidade a estas teorias – seja no campo artístico, seja no universo acadêmico – se dão pelo privilégio que tem o eurocentrismo e a dominação semiótica norte-americana, na imposição de legitimidade e juízo estético no território das Artes. A escolha de pensar a revolução do belo e da linguagem do corpo em dança, a partir da obra de Isadora, se faz pela aproximação e relevância de sua filosofia na minha trajetória artística, e não
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em função de legitimar ou enaltecer este feito como sendo o único ou mais importante movimento de subversão política dos corpos em dança em detrimento de inúmeros atores latino-americanos, da cultura popular e das danças tradicionais que muito antes reivindicaram as mudanças de paradigmas da estética dos corpos, por meio das suas vidas e em suas rodas de resistência. Neste cenário de que tratamos, no final do século XIX, incita-se um descontentamento ao rigor das Danças clássicas em consequência de uma crítica ao corpo enquanto máquina de reprodução técnica do movimento. Passa-se a pensar no corpo como fluidor da expressão de si mesmo, um corpo poiesis. É possível associar que os movimentos inovadores da linha de expressão das coreografias de Isadora Duncan teriam sido reflexos da necessidade, num contexto de Primeira Guerra, de se criar a imagem de um corpo forte, resistente, versátil, que sucumbisse simbolicamente o corpo dócil, esquálido e frágil da dança clássica. Talvez este seja o impulso inconsciente e criativo que fez nascer um novo estilo, cuja torção, tônus e contração, tão marcantes nos movimentos do repertório Duncan, parecem plasmar um novo corpo. Somado, é claro, a um desejo de aproximação do público, já que movimentos que expressam hábitos cotidianos, ou cuja postura se assemelha ao caminhar e ao existir de um sujeito entre vários, comunica muito mais do que um corpo que assume o caminhar da realeza ou os bailes dos castelos, geralmente representados nos repertórios do Ballet Clássico. A partir dos tensionamentos políticos da época, dos ideias iluministas e do consequente afastamento da metafísica e da teologia como norteadores da existência humana, tem-se, no campo da dança, um desprivilégio de uma beleza formal – aquela inerente a um gesto codificado, à reprodução técnica da realidade, de um corpo útil apenas para a execução do movimento – em troca da busca de uma beleza interior, na qual a alma humana é a motriz geradora do movimento. Neste sentido, Isadora postula uma ideologia de autenticidade do movimento – cada corpo produz seu próprio gesto, e uma noção
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de organicidade do corpo que dança – não é o corpo escravo da forma imposta pelo movimento; e sim criador dele, já que, para ela, o movimento é expressão de existência. O Bourcier (2001) aduz bem a necessidade que teve Isadora de libertar a dança da forma para trazê-la à potência de ser expressão do espírito e da alma: A técnica lhe parece sem interesse. Fazer gestos naturais, andar, correr, saltar, mover seus braços naturalmente belos, reencontrar os ritmos inatos do homem, perdidos há anos, ‘escutar as pulsações da terra’, obedecer à lei de gravitação, feitas de atrações e repulsas, de atrações e resistências, consequentemente encontrar uma ligação lógica, onde o movimento não para, mas se transforma em outro, respirar naturalmente, eis seu método. Quanto aos temas de sua dança inspiram-se na contemplação da natureza; será ‘onda, nuvem, vento, árvore’ (BOURCIER, 2001, p. 248).
Seriam, portanto, as inspirações de movimento na Dança Moderna de Isadora Duncan, antitéticas à mecânica do bailado acadêmico1, cuja trajetória determinada do movimento, as repetidas pausas em poses estruturadas, as proporções geométricas, métricas e harmônicas, constituem uma forma qualificada como perfeita, que exigem um padrão de corpo – e consequentemente de beleza – capaz de executá-las. O Jean Maisonneuve e Marillou Bruchon-Schweitzer (1999, p. 5), respondendo à pergunta “o que é a beleza de um corpo humano?” afirmam que, desde os gregos, os arquétipos e critérios definidores do belo, estão sempre relacionados à presença de uma ordem baseada na medida, na proporção e que “essa elaboração antropométrica do arquétipo ideal implica vários elementos de subjetividade, segundo as interpretações da imagem visual e o recurso à escolha e à opinião” (MAISONNEUVE E BRUCHON-SCHWEITZER, 1999, p. 5).
1 Esta é uma outra nomenclatura possível para se falar da Dança Clássica. São termos também utilizados Dança Acadêmica ou Danse d’Ecole (Banes, 1980; Bourcier, 2001).
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É notória a subjugação do corpo da bailarina clássica às métricas de peso, altura, às texturas musculares, aos traços faciais, à cor da pele, às proporções compatíveis com os padrões do corpo tido como belo, até os dias de hoje. Não reduzo também ao extremo de achar que o corpo para a Dança Moderna na linha de Isadora esteja destituído de uma pretensão ao belo ou se abstenha da finalidade de, por meio de suas composições coreográficas, produzir beleza. Não se trata disso. Enquanto pesquisadora e bailarina do repertório de Isadora Duncan, reconheço uma exigência da sua técnica de dança em cumprir harmonias visuais, em compor esteticamente os corpos em determinada disposição espacial e outros agenciamentos cênicos e imagéticos que tornam uma dança bela, leve, marcada de signos que a volvem reconhecível enquanto linha de expressão da Dança Moderna. A questão é que esta beleza se compõe de maneira simultânea à beleza da expressão daquele que dança. Qualquer corpo e todo corpo é bem-vindo à técnica de Isadora, já que o corpo é belo quando está em organicidade fusional ao movimento. Belo é o movimento natural do corpo, criado, ou mesmo reproduzido, a partir da imanência do ser. De ser quem é. Como evoca Lepecki (2010, p. 19): A dança vai buscar no corpo a coisa que o corpo sempre foi – amálgama de orgânico e inorgânico, humano e bicho, cuspe e matéria, opacidade e luminescência, mineral e planta (LEPECKI, 2010, p. 19).
O BELO EM SI NÃO É O BELO DE SI: O MOVIMENTO ENQUANTO AUTO INSCRIÇÃO
Por um olhar filosófico, seria possível, talvez, contrapor a concepção do belo em Kant, na sua Crítica da Faculdade do Juízo (2005), à aposta do belo na “filosofia” de Isadora. Trata-se de negar uma certa unanimidade do objeto percebido como belo, para pensá-lo
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além dos parâmetros fixados para um julgamento estético universal. De todo modo, é necessário compreender que o belo em Kant visa uma universalidade no sentido que diante de algo belo se partilha um sentimento de prazer. Seria cogitar o belo que não é em si e por si, mas que é criação de si, a partir do movimento. De maneira linear, a concepção do corpo na tradição filosófica platônica – cuja referência do modelo de pensamento fundantes na história da metafísica conduzem o pensamento ocidental até os dias de hoje – pressupõe o corpo cindido do pensamento, enquanto matéria que serve de obstáculo ao saber. Lega a noção de que é no momento em que se dispende das sensações, do sofrimento e do prazer, que a razão melhor atua. Para Platão (1991, p. 118), a percepção do “belo em si”, assim como o do “bom em si”, e “justo em si”, seria apenas apreendida pelo pensamento em si mesmo e não pelos sentimentos dos quais o corpo é instrumento. O corpo, “coisa má” que é, afasta a alma do seu objeto de desejo: a verdade. À contramão deste enunciado, temos um corpo diluído ao pensar, um corpo que, na “filosofia” do movimento Duncan, cria a si mesmo, se faz, se inscreve no mundo, corpora. O pesquisador Cláudio Ulpiano2, à luzes deleuzeanas, atesta a existência de um corpo orgânico – sempre a serviço da espécie e do indivíduo – e um corpo estético, ou histérico: aquele lidado à produção da beleza. Teríamos, então, a intersecção destes dois corpos atrelada às práticas de si através dos gestos. No século XX, com o rompimento da arte figurativa, a emergência da arte abstrata e, mais adiante, a expressionista, fora possível se pensar uma estética das sensações, na qual o corpo, em deformação aos modelos clássicos, passa a ser capaz de produzir, por suas posturas e gestus (Brecht), um novo paradigma da arte, que ultrapassa um mero procedimento de entreter e se dá enquanto luta, produção de si, confronto interior de liberdade. 2 A autora/o poderá encontrar aulas transcritas do autor em seu acervo online: https:// acervoclaudioulpiano.com
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O oposto de uma arte antropomórfica, na qual o homem projeta o seu organismo sobre representações também humanas e que, portanto, supõe o movimento a partir de um modelo ideal, tem-se a arte de forças instintivas e intuitivas, capaz de se relacionar com o caos e, por meio dele, produzir novas formas, novas figurações corpóreas que instalam novas linhas estéticas. É exatamente isto, ao meu ver, que faz a dança moderna de Isadora Duncan: funda uma poética do belo que não é em si, imanente, universal, mas que é de si, e se perfaz enquanto dança. Esta auto-poiesis pelo movimento anela pensar o corpo que é pele do mundo3, ou, como sustenta Hansen (2006, p. 94): Nós não podemos mais confinar a corporificação ao corpo, não podemos mais contê-la dentro da pele (orgânica) porque as técnicas contemporâneas facilitam a dissolução da distinção mundo-corpo (uma não divisão) que é fundamentalmente informacional em sua (im)aterialidade e porque a atividade humana corporificada é, de alguma maneira, o agente desta dissolução (HANSEN, 2006, p. 94).
Este corpo em dança pode ser comparável também ao “corpo em crise”, da Eliane Robert Moraes (2002, p. 62), aquele fragmentado, não codificado pela descrição realista e representações figurativas, um corpo “totalmente desprovido de dimensões estáveis”. Assim como o corpo desmontável de Salvador Dali, em As novas cores do sex-appeal espectral4, que ratifica, por imagens, o desejo ao caos, o decompor, o dispersar da subjetividade humana, tão expressivos na poética modernista e que, de acordo com a autora, é como atesta Bataille, “um poder de ‘alterar os objetos com uma violência até então desconhecida’”. (MORAES, 2002, p. 60). Temos, então, a perspectiva do que chamo estética da fenda ou do que já chamara Guattari (1992, p. 133) de Caosmose: um novo O termo é de Benayoun em From Virtual to Public Space: Toward an Impure Art. Disponível em http://netzspannung.org/cat/servlet.
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DALI, Salvador. Los nuevos colores del sex-appeal espectral. Gloria Martinengo (trad.). Barcelona: Ariel, 1977.
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paradigma estético, que irrompe uma subjetividade padronizada por uma comunicação que inibe as “composições enunciativas trans-semióticas”. Este paradigma proto-estético – já que se refere à criação nascente e emergente– é capaz de produzir entidades coletivas a partir de um pertencimento do próprio eu, uma estética constituinte de um território existencial. Neste sentido, nos é sensivelmente aplicável a ponderação de Arthur Danto (2006, 2012). Para Danto, as apropriações mais clássicas sobre a arte e o belo não acompanharam os movimentos de transformação social que implicavam à arte a necessidade de repensar-se, de gerir novos conceitos por meio de irrupções estéticas, ao ponto de o visual dar lugar ao conceitual, de o estético liberar território à verdadeira natureza filosófica da arte. Para Danto, é contraproducente a uma arte ser julgada a partir do parâmetro de uma “boa” arte. Um crítico pluralista e democrático não julga a partir do seu critério estético, o seu papel é interpretar a arte relacionando-a com o mundo da arte ao qual pertence cuja circunscrição envolve o espaço institucional da arte e o espaço discursivo da arte – bastante cristalizados pelo modelo progressivo da história da arte. Também para o autor não deve prevalecer a separação entre o estético e o prático que fez prevalecer uma certa autonomia da arte, que nega a ela mesma toda possibilidade de contaminação com a vida. A dança contemporânea, que só existe graças a transição estética e ideológica procedente da Dança Moderna, em seu engajamento político, sua crítica institucional, suas novas formas de produção coletivas e práticas de intervenção cotidiana, são uma evidente recusa à essa pureza. A ideia é a de naturalizar a estética e de entender o senso estético enquanto função orgânica e biológica de um conjunto de reações ante um objeto. Um corpo em ondas remete ao fluxo de uma prática de si, pela indissolubilidade do lugar arte-vida.
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EXPERIÊNCIA VIBRÁTIL: SOBRE O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DA COREOGRAFIA ESTUDO DA ÁGUA 1924
Figura 1 – O estudo da Água Fonte: https://clickamericana.com/topics/celebrities-famous-people/dancer-isadora-duncan-killed-in-bizarre-accident-1927 Acesso em: 12 maio 2019.
Nasci junto ao mar e já notei que todos os grandes acontecimentos da minha vida sempre ocorreram na sua proximidade. A minha primeira ideia do movimento da dança veio-me certamente do ritmo das águas. Vim ao mundo sob o signo de Afrodite, Afrodite, que também é filha do mar e quando a sua estrela sobe no céu os acontecimentos são-me propícios (DUNCAN, 1989, p. 78).
A partir da conexão entre a Escola Contemporânea de Dança5, dirigida pela bailarina e pesquisadora Fátima Suarez (Salvador/BA) e o Isadora Duncan Dance Foundation6, instituído por Lori Belilove (Nova York), aprendi, em 2015, o solo Estudo da Água, criado por 5 A (o) autora(o) poderá encontrar detalhes do centro artístico em: http://www. econtemporanea.com.br/ 6 Aos que se interessarem em conhecer o trabalho artístico, indico Acesso em: http:// isadoraduncan.org/
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Isadora em 1924. Aprendi nas águas do mar a dança que torna imagético um corpo em ondas. O trabalho destes dois espaços de arte é marcado por uma pesquisa, técnica e ética, bastante refinadas, que perpetuam o legado do repertório coreográfico e filosófico da bailarina modernista. Adotam um sistema metodológico de vivências criativas em dança que conclamam a natureza como elemento estético essencial do processo de aprendizagem e da utilização da cultura oral, cuja herança artística é passada de uma outra geração de mulheres. O solo Estudo da água combina sequências gestuais que alternam entre as propriedades de peso, equilíbrio e flexibilidade em curvas, e evoca imageticamente a lei do movimento das ondas, cujo fluxo e refluxo das ondulações infinitas, os redemoinhos e texturas do mar, remetem metaforicamente à continuidade do processo de autoconhecimento, à incomensurável prática de criação de si. A poética desta dança lança mão da criação de um corpo que transgride a mera imitação das águas ou a equivalência entre o movimento ondular do corpo e a referência perceptual da onda. Não se trata de uma trivial representação corpórea da realidade ou de uma aproximação a um elemento da natureza, via sensações. Para além, um corpo em ondas – inventado por/em mim no processo de aprendizagem do Estudo da Água – é o reconhecimento das ondas que habitam meu corpo, é a compreensão da fluidez do deixar ser.
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HANNA CLÁUDIA FREITAS RODRIGUES
Referências BOURCIER, Paul. História da dança no ocidente. São Paulo: Martins Fontes, 2001. DANTO, Arthur. O abuso da beleza: a estética e o conceito de arte. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2015. DANTO, Arthur. O mundo da Arte. In: O belo autônomo: textos clássicos de estética. Rogério Duarte (Org.). Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. DUNCAN, Isadora. Minha vida. São Paulo: Editora José Olympio, 1989. GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 1992. LEPECKI, André. O síndrome de Stendhal (I): o corpo colonizado. Revista Gesto, n° 2, 2003. MAISONNEUVE, Jean. BRUCHON-SCHWEITZER, Marilou. Les corps et la beauté. Paris: PUF, 1999. MORAES, Eliane Robert. O corpo impossível. São Paulo: Iluminuras LTDA, 2002. PLATÃO. Diálogos. Seleção de textos de José Américo Motta Pessanha. São Paulo: Nova cultural, 1991.
Segunda Parte
PLURALIDADES CORPORAIS
Baga de Bagaceira Souza Campos
PRIMEIRO, A BIXA É BONITA, SEGUNDO, ELA FECHA: A DIMENSÃO SENSÍVEL ATRAVÉS DAS VESTES DE TIKAL
É babado, fechação e purpurina! Entre festas, procissões e andanças pelas cidades de Cachoeira e São Félix, interior e coração do Recôncavo baiano, é impossível não se deparar com moradores tão ilustres e que compõem as belezas das cidades “irmãs”. Tikal é um deles, um senhor de 57 anos, negro, gay, que diz “viver e andar por mistério”; arrasa nas cidades com sua indumentária. Uma mistura de paetês, torços, adereços coloridos e formas próprias completam o cenário. O ensaio, aqui apresentado, tem como objetivo ressignificar as concepções do belo, enquanto conceito normativo e assimilacionista sobre o corpo, a partir das intersecções com a sexualidade, o gênero e a raça, convocando Tikal e as sensibilidades que suas imagens acionam no tocante à análise de suas vestes. Numa dinâmica de rompimento com o ideal de beleza, utilizamos as apreensões sensíveis que os seus modos de ser no mundo provocam levando em conta o que é/foi subjugado sobre seu corpo vestimentado e na crença de sua presença como inferiorizada e abordando, portanto, suas formas, arranjos e combinações de cores e tecidos. A metodologia escolhida para o trabalho se desenvolve na perspectiva do encontro da fenomenologia com as determinações his-
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toricizadas e sociais do seu corpo adornado para que, assim, possamos compreender as sensibilidades que nos evoca. Para tanto, será levada em conta uma breve entrevista realizada com Tikal sobre as formas, cores e texturas que compõem suas vestes e que serão apresentadas ao logo das seções deste trabalho. Dessa forma, ver, observar, sentir e perceber tornam-se as primeiras experiências, ditas pela fenomenologia, para melhor acessar as sensibilidades que as indumentárias aqui analisadas suscitam. E para dar esse suporte, destacamos, além dos aspectos fenomenológicos (MERLEAU-PONTY, 1996), as contribuições nos campos da estética, do corpo e das vestes (MAISONNEUVE e BRUCHON-SCHWEITZER, 1999; ECO; 2004; CIDREIRA, 2005; SVENDSEN, 2010), os estudos de raça (SODRÉ, 2000; GOMES, 2002) e a intersecção entre as temáticas de gênero e sexualidade (BUTLER, 1998), tão caras à análise. A BELEZA DE SER O QUE É
No que se refere ao ideal de beleza e levando em conta o que Lars Svendsen (2010) observa sobre as distintas características físicas e mentais entre homens e mulheres, percebemos que se tornou necessário, para a manutenção dos padrões, formas e conceitos distintos, entre ambos os gêneros, ditar para um e para o outro o que é beleza e os modos corretos de adornar-se. Desse modo, “a Beleza é vista como uma qualidade do objeto que percebemos como belo e por isso recorre-se a definições clássicas, como ‘unidade na variedade’ ou ‘proporção’ e ‘harmonia’” (ECO, 2004, p. 275) e que, aqui, serão postas em xeque. Seguir os padrões da beleza refere-se não somente ao corpo, mas também como o mesmo se modela e se ajusta às normas, sejam elas advindas da experiência da vestimenta, sejam elas em conformidade com os padrões comportamentais atribuídos aos gêneros. Podemos observar que entre as zombarias e olhares indesejados, as formas encontradas por Tikal no modo como se adorna assombram e questionam o que é considerado belo. Por isso mesmo, ele e seu corpo
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são, por vezes, punidos, pois se trata de um corpo que não veste as regras, mas rompe com elas. Como mencionado acima, é preciso entender que beleza não está relacionada somente aos atributos do belo no corpo, mas de como pode relacionar-se com o olhar dos outros nos aspectos das vestes, saúde, gênero, sexualidade, etc. Os autores Jean Maisonneuve e Marilou Bruchon-Schweitzer comentam que: No ser humano, parece que são os rostos mais simétricos que obtém a preferência, tanto dos homens para as mulheres quanto das mulheres para os homens. Essas escolhas são acompanhadas de avaliações positivas quanto à beleza, a atração sexual, a saúde e a superioridade das pessoas envolvidas. Essa constatação se ancora à teoria darwiniana na medida em que a beleza (ligada à simetria) seria percebida como signo de vigor e de recursos em todos os aspectos (MAISONNEUVE e BRUCHON-SCHWEITZER, 1999, p. 16, tradução nossa).
A beleza está instaurada e é confirmada a partir do outro, e deste modo, o “olhar do outro e os signos de atração que ele nos mostra ou nos recusa, vêm, assim, a confirmar ou não a experiência do nosso espelho, fortificando ou mortificando a nossa imagem do corpo” (Ibid, p. 33, tradução nossa). As circunstâncias em que Tikal sente-se bem e, consequentemente belo, pelo modo como se adorna, não retira o olhar de repulsa dos outros sobre ele e de não aceitação de suas vestes, pois “aquilo que é belo é definido pelo modo como nós o apreendemos, analisando a consciência daquele que pronuncia um juízo de gosto” (ECO, 2004, p. 275). Outros parâmetros são estabelecidos enquanto belo, como no caso a idade, evidenciado por Tikal, ao dizer que os jovens são vistos como mais atraentes e desejáveis, localizando mais uma estigmatização. Aqui, levamos em consideração os aspectos de raça para pensarmos como o ideal de beleza para esses corpos são questionados, tomando a fenomenologia e sua contribuição sobre o olhar do outro. Segundo Muniz Sodré (2000, p. 194), a categorização, por
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exemplo, de alguém belo/a, em se tratando de negros/as, é demarcado pela raça, os tornando muitas vezes sujeitos/as excêntricos/as em virtude de suas diferenças fenotípicas. O SENTIR E O PERCEBER ATRAVÉS DOS MODOS DE VESTIR
Esta seção dedica-se a explanar os processos violentos vividos por Tikal e os seus modos de enfrentamento, diante do processo de perceber a si a partir do olhar do outro. Os gestos, movimentos, que seu corpo e vestes convocam fazem parte do seu processo enquanto ser e que nos convidam a refletir sobre a transgressão que seu corpo vestido representa na sociedade. Merleau-Ponty (1996) completa nos dizendo que: O gesto está diante de mim como uma questão, ele me indica certos pontos sensíveis no mundo, convida-me a encontrá-lo ali. A comunicação realiza-se quando minha conduta encontra neste caminho o seu próprio caminho. Há confirmação do outro por mim e de mim pelo outro (MERLEAU-PONTY, 1996, p. 252).
A sexualidade, assim como o gênero e as roupas, são expressões sensíveis do nosso corpo no mundo, no modo como nos percebemos e somos percebidos pelo outro; assim, o sentir e o perceber são partes do processo fenomenológico. Junto a isso, os modos de encarar as vestes de Tikal a partir de uma visão que julga, condena, criminaliza, tornam-se modos tóxicos de culpabilizar o outro, que se põe numa posição de afronta aos padrões de beleza vestimentar, simétrica e coerente. Numa aproximação com a teoria fenomenológica, Judith Butler (1998, p. 297, tradução nossa) afirma que “o gênero, quando instituído pela estilização do corpo, deve ser entendido como o modo mundano em que gestos, movimentos e normas corporais de todos os tipos constituem a ilusão de um ‘eu’ de gênero permanente”. Dessa maneira, há por parte de algumas pessoas na sociedade a concepção de que o gênero é um construto inato ao ser, e que quando
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Tikal convoca outras vestes e assume publicamente sua sexualidade e brinca com o gênero masculino e feminino, ele está afrontando o “natural” e não participando das reiterações sociais destinadas aos corpos no vestir-se. Assim, o modo como o gênero se perpetua, reiterativamente, nos demonstra que: E se o fundamento da identidade de gênero é a repetição estilizada de atos no tempo, e não uma identidade aparentemente de peça única, então, na relação arbitrária entre esses atos, nos diferentes modos possíveis de repetição, na ruptura ou a repetição subversiva desse estilo, haverá possibilidades de transformar o gênero (BUTLER, 1998, p. 297, tradução nossa).
Inspirados pela tradição fenomenológica, compreendemos que é sendo tocado ou afetado pelo o que determinadas vestes e corpos provocam que, por exemplo, determinadas repulsas são acionadas em outros sujeitos como sinônimo de ódio. Portanto, a relação do corpo de Tikal com suas vestes pode ser pensada enquanto existência e resistência por, justamente, quebrar com as regras do que é considerado um belo ideal e instaurar um movimento de quebra nas relações com o social, pois como afirma Nilma Lino Gomes (2002, p. 49), “o cabelo e a cor da pele podem sair do lugar da inferioridade e ocupar o lugar da beleza negra, assumindo uma significação política”, acrescentando a essa citação as vestes no corpo de Tikal enquanto potências de beleza do sujeito. Assim, refletir sobre essa instituição de sentido que se forma na bolha social e que, apontada pelo outro, restitui as obediências de sexualidade, raça, jovialidade para designar o que é belo, se mostra falha. É nesse sentido que podemos expressar o encontro das vestes com o social pelos caminhos fenomenológicos, considerando que “a nossa sociedade continua, ainda hoje, reproduzindo padrões de beleza, impondo certas condutas em busca da sedução e do reconhecimento do outro” (CIDREIRA, 2005, p. 35) para ser aceito.
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O UNIVERSO DAS CORES DE TIKAL
Ao observar mais cuidadosamente os modos de se vestir de Tikal, nos damos conta de que há um uso frequente da imaginação, em que a presença do paetê enquanto matéria-prima se faz quase sempre presente quando o mesmo concebe um look. As roupas de Tikal realmente se sobressaem e se distanciam daquilo que nos acostumamos a ver e observar cotidianamente, e isso está intimamente ligado à sua ousadia e irreverência em usar peças, tecidos e cores inabituais, nos convocando a sair da zona de conforto. Tikal luta para combater a discriminação tanto pelos modos como se adorna, mas também pela questão racial, evidenciando, assim, a força política no cotidiano através da exibição de um corpo que vive a beleza de si e não a padronizada pelo olhar alheio. Nesse sentido, vale destacar a percepção de Gomes ao comentar que: Foi a comparação dos sinais do corpo negro (como o nariz, a boca, a cor da pele e o tipo de cabelo) com os do branco europeu e colonizador que [...] serviu de argumento para a formulação de um padrão de beleza e de fealdade que nos persegue até os dias atuais (GOMES, 2002, p. 42).
A proporção e simetria logo se mostram como um legado grego e não é à toa que sua relação está ligada com o fator de conformidade estabelecido socialmente. Não é por acaso que as associações do “esta cor é de menina”, “essa modelagem não é para homens” ou “brilhos, paetês, adereços são do universo feminino” são fortemente compartilhadas socialmente. O que nos chama a atenção, ou melhor, o que nos salta aos olhos nas vestimentas do corpo de Tikal são as cores vibrantes de suas roupas. Sempre buscando combinar suas vestes com alguns acessórios e sua maquiagem. Tikal nos revela que suas roupas possuem relação com sua fé nos Orixás, e com isso nos apresenta a relação que estabelece entre as cores e sua reverência a alguns orixás. Apesar de não se preocupar muito com a combinação das cores,
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Tikal nos diz que usa vermelho em referência a Yansã e o azul para saudar Ogum. A chita1 é um dos seus tecidos favoritos, mas também podemos vê-lo com roupas que contêm muito brilho, paetês e cores diversas. Apesar de afirmar que usa coisas simples e baratas para se ornamentar, percebemos o quão ricas e potentes são suas vestes e adereços. Sobreposições de cores e combinações de tecidos ornamentam a plasticidade investida por Tikal no uso de suas vestimentas e, portanto, “as roupas reescrevem o corpo, dão-lhe uma forma e uma expressão diferente” (SVENDSEN, 2010, p. 87). Ainda que suas criações surjam do que sente no momento, suas vestes são bem elaboradas e preocupadas com o cobrimento de cada parte do corpo, onde cada peça de roupa e adereço possuem sua importância. O turbante, por exemplo, além de significar a força do povo negro, é usado por ele no dia a dia; assim como Tikal não abre mão de uma maquiagem e diversos adereços que complementam suas roupas. Quando não usa o turbante, sempre procura uma peruca para ficar mais bonito, como na figura seguinte:
1 Tecido com estampas florais coloridas bastante utilizado na moda e decoração, ou melhor, nos diversos campos do design brasileiro. Apesar de sua associação direta às composições identitárias nacionais, a chita é originária da Índia, chegando ao Brasil, sobretudo, pelas mãos dos portugueses a partir do século XVII, que a utilizavam como moeda de troca o tráfico de escravos.
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Figura 1 – Tikal Fonte: Baga de Bagaceira, 2018.
Se para muitos a moda é sinônimo de busca de beleza, da harmonia das formas, cores e texturas; para alguns, não tão poucos quanto imaginamos, a moda pode ser compreendida como o retrato do excesso, do mau gosto, do ridículo (CIDREIRA, 2005, p. 32).
É pelas vestes e o corpo que as comporta que observamos as violências contra Tikal e com tudo que cada peça e suas combinatórias nos dizem, acabamos por apontar o outro enquanto sujeito que rompe com certas tradições e padrões estabelecidos em/pela sociedade. É a partir dessa concepção que leva em conta um padrão de beleza e de conduta que se legitimam determinadas violências, pela incompreensão das formas encontradas por Tikal para se auto plasmar.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Temas de grande relevância e inesgotáveis na sua relação com o ser e o estar no mundo, as vestes e o corpo de Tikal nos revelam outras possibilidades de se apresentar socialmente ao mundo. Possibilidades que não esgotam os sentidos produzidos por suas vestes, na relação com o corpo e com o entorno social. Ainda que persistam perpetuações em indicar o que é correto, simétrico, coerente, belo, etc., observamos que existem focos de resistência que promovem renovações acerca da noção de beleza e mesmo da determinação de gênero, bem como uma aceitação das questões raciais. Tikal é um desses exemplos que se afirma enquanto um ser que rompe com a política de uma poética correta, pois apresenta as intersecções de um corpo que foge aos ideais harmônicos de sexualidade, gênero e raça. Enquanto corpo negro, gay e que não se define em suas vestes enquanto masculino ou feminino, Tikal questiona o que é ser, estar ou vestir-se belo. Portanto, a baixa estima localizada sobre os prismas do racismo com relação às atribuições do corpo negro necessita ser combatida por completo. Aqui, propomos uma reflexão sobre um corpo desobediente através do seu modo de ser, estar e vestir-se no mundo. Portanto, a existência de um ideal de beleza que não prioriza o corpo negro como modelo, assim como as intersecções de sexualidade e gênero desobedientes que carregam consigo, e as formas corretas de adornar-se, reproduzem uma questão posta sobre como essa imagem foi imposta por um outro corpo e sobre uma visão que mais julga do que sente.
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Referências BUTLER, Judith. Actos performativos y constituición del género: um ensayo sobre fenomenología y teoria feminista. Debate feminista, v. 18, Ciudad de México, 1998, p. 296-314. ECO, Umberto. História da beleza. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2004. CIDREIRA, Renata Pitombo. Os sentidos da moda: vestuário, comunicação e cultura. São Paulo: Annablume, 2005. GOMES, Nilma Lino. Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo crespo: reprodução de estereótipos ou ressignificação cultural? Revista Brasileira de Educação. nº 21, 2002, p. 40-51. MAISONNEUVE, Jean. BRUCHON-SCHWEITZER, Marilou. Le corps et la beauté. Paris: PUF, 1999, p. 05-30. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução de Carlos Alberto R. de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1996. SODRÉ, Muniz. Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2000. SVENDSEN, Lars. Moda: uma filosofia. Tradução de Maria Luisa X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
Clécia Junqueira
KEEPING UP WITH THE KARDASHIANS: A NATURALIZAÇÃO DOS REALITY SHOWS E A NOVA CONCEPÇÃO DE CORPO FEMININO
A visibilidade é uma armadilha. (Michel Foucault)
O vigiar no contemporâneo vem assumindo uma nova perspectiva. Já não se tem aquele estranhamento de antes. O monitoramento do comportamento dos indivíduos vem se tornando moeda de troca e a exibição de um corpo belo tornou-se primordial. A vigilância já não é mais símbolo de medo, de invasão de uma determinada privacidade, mas sim sinônimo de um status e reconhecimento daquilo que se pretende ser dentro da visibilidade das câmeras. A cidade contemporânea é atravessada, visível e invisivelmente, por um conglomerado de dispositivo de controle e vigilância. Esses dispositivos de monitoramento, embora apresentem uma configuração física mais discreta, vêm, por outro lado, mais invasivos e invisíveis de modo que produzam fortemente nos indivíduos uma sensação de naturalidade e familiaridade com a vigilância excessiva. No cenário das reflexões de controle e vigilância dos indivíduos, esse artigo se concentra nos desdobramentos dessas redes de moni-
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toramento nos indivíduos e na sociedade como um todo. As câmeras com as mais diversas potencialidades atuam em uma perspectiva de registrar os mais variados acontecimentos da esfera pública, ou ainda, de provocar outras concepções que atravessam as técnicas e permeiam os caminhos do invisível e dos deslocamentos internos provocados por esse movimento que mescla visibilidade e aparência. Dentro dessa emergente vigilância, novas tiranias camufladas são inseridas, ocasionando em novas condições para pensarmos o comportamento do indivíduo diante das câmeras e as rotulações criadas por essas imagens produzidas. Nessa pesquisa, o arsenal conceitual tem o sentido de relacionar a potência das câmeras de monitoramento dentro de um de seus produtos que seriam os reality shows. O intuito é compreender como acontece uma determinada naturalização dessa vigilância nesses programas audiovisuais e como a produção dessas imagens acarretam os mais variados sentimentos tanto em quem é filmado, quanto em que vê aquela imagem. São diversos os efeitos que são gerados, desde o comportamento e a aparência, até a relação do indivíduo com o mundo. Para compreender melhor como o fenômeno dos reality shows vem sendo compreendido dentro dessa lógica de videovigilância incessante, analisaremos o programa que exibe a vida da família Kardashian predominantemente composta por mulheres que são monitoradas por câmeras e passam uma imagem de comportamento naturalizado por meio dessa vigilância. O reality Keeping Up with the Kardashians1, que completou 10 anos em 2017, mostra a trajetória das irmãs e como elas também conseguiram, ao longo dos anos, mostrar uma nova concepção de beleza e de corpo feminino que, de alguma maneira, rompe com algumas ideias já estabelecidas. Nesse cenário de excessiva visibilidade, muitas figuras célebres acabam tornando-se um novo seguimento de desejo de imagem e 1 A série de reality show americano vai ao ar no canal pago E!. O programa estreou em 14 de outubro de 2007 e tornou-se uma das séries mais longas no país. A 15ª temporada do seriado estreou em 5 de agosto de 2018.
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comportamento. A forma como é exibido o reality show produz uma sensação de familiaridade no receptor principalmente por abalizar uma dinâmica de naturalidade em frente às câmeras, que trabalha em uma perspectiva de aproximação da cotidianidade do outro. Os reality shows, como aponta Maria Rita Kehl (2004), trabalham em um sistema ilusório, que apresenta uma caraterística de cotidianidade sob uma concepção de espetáculo, ganhando um viés mercadológico na tentativa de se tornar um reflexo da esfera pública. Por essa mesma razão, o reality acaba por apresentar uma gama de discursos que giram em torno da concepção de imagem de corpo feminino no contemporâneo. As “Kardashians”, como são popularmente conhecidas, apresentam dentro desse contexto de vigilância novas formas de concepção de beleza, que acabam indo na contramão de padrões estabelecidos, apresentando, assim, novos fenômenos e novos estereótipos em relação ao corpo dentro dessa dimensão dos holofotes. O conteúdo do reality Keeping Up with the Kardashians é um dos mais vistos nos Estados Unidos, e no Brasil é exibido pela emissora E!, contando com uma audiência predominantemente feminina. VISIBILIDADE: A RELAÇÃO ENTRE REAL E IMAGINÁRIO NOS REALITY SHOWS Nesse monopólio da aparência, tudo que ficar do lado de fora, simplesmente não é. (Paula Sibilia)
O que antes era privado, hoje se torna exibicionismo exacerbado. Os desdobramentos dos fenômenos da vigilância romperam com toda e qualquer concepção de privacidade. O que era impossível acontecer no âmbito público se naturaliza nas imagens contemporâneas. As relações institucionais que controlavam os comportamentos e ações dos indivíduos assumem uma nova roupagem. Aparece um cenário em que somos controlados discretamente com a concepção de uma “liberdade” de visualidades. Esse controle acontece como um despertar para um imaginário onde tudo acon-
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tece naturalmente como forma de entretenimento e aproximação com quem aparece na tela. Nesse contexto emergente podemos compreender que: Na sociedade do espetáculo, em que o espaço da politica é substituído pela visibilidade instantânea do show e da publicidade, a fama torna-se mais importante do que a cidadania; além disso a exibição produz mais efeitos sobre o laço social do que a participação dos sujeitos nos assuntos da cidade/sociedade, ou do que a produção de novos discursos capazes de simbolizar o real (KEHL, 2004, p. 143).
A partir dessa perspectiva, nota-se que as concepções em torno dessa visualidade que atravessa os reality shows geram um sintoma na esfera pública que penetra na vida das pessoas com uma grande velocidade e, ao mesmo tempo, mexem com o imaginário dos indivíduos e naturaliza as ações desses fenômenos. O ver se torna mais importante do que todo e qualquer comportamento social. A ação perde espaço para o campo do ilusório, criando um ciclo que propõe o “devorar”. Devorar de imagens, comportamentos, símbolos e novas estruturas de padrões que impactam diretamente nos mais variados âmbitos, desde os modos de agir em sociedade até o que o indivíduo irá vestir. No devir incessante do contemporâneo, o que torna perceptível é que essas produções de visibilidades denominadas reality shows promovem no espectador uma promessa de reprodução fiel do cotidiano. Um sentimento que faz o indivíduo se sentir representado e que vem fortemente com um conglomerado de padrões emergentes, que consequentemente levam o espectador a consumir aquilo que de alguma maneira apresenta uma ideia de representação. Na medida em que esses reality shows se incorporam na cotidianidade social, torna-se por sua vez natural querer ser/parecer com aqueles indivíduos que embora se apresentem como relatos da vida real, atuam como personagens do espetáculo da visibilidade. O ser vigiado para quem é monitorado tornou-se uma ferramenta
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de poder e aparição. Em matéria da Revista online da Vogue, Kim Kardashian, uma das irmãs participantes do reality, declara abertamente que sua visibilidade abriu espaço para um maior poder aquisitivo que construiu, a partir das redes sociais e do reality, um “Império de beleza”. Nessas proporções, observa-se que a própria Kim Kardashian acredita que o cenário da visibilidade da sua figura apresentou novas formas emergentes de ver e compreender a poética do corpo feminino sob a potência dessas ferramentas de vigilância da imagem. A grande visibilidade que a família Kardashian alcança no contemporâneo se deve a essa sensação de proximidade com o espectador que se apresenta como uma relação banal; mas que, ao mesmo tempo, potencializa esses pseudo-personagens, gerando uma comodidade visual elevando essas figuras emergentes a um patamar de celebridade influenciadora. É o que os contextos digitais chamam no contemporâneo de digital influencer. “Hoje, nenhuma celebridade adquire reconhecimento público sem a ajuda de intermediários culturais”, observa Rojek (2008, p. 12). Kim Kardashian, que era uma assessora da socialite Paris Hilton, hoje se caracteriza como um fenômeno da moda, do comportamento e do corpo. Dentro desse sistema de excessiva vigilância e de um viés que prioriza que ser vigiado é algo natural, a família Kardashian hoje alcança um espaço que a coloca como um exemplo de genealogia a ser seguido e, principalmente, aparece para o público como algo reconhecível; o espectador tende a se reconhecer na cotidianidade das Kardashians, mesmo não compartilhando de todo aquele controle luxuoso das suas mansões, nem possuindo um terço de toda a fama que elas possuem. Esses programas que formulam uma naturalidade cotidiana atuam nessa perspectiva de uma invasão minuciosa, imperceptível que vem se tornando cada vez mais consentida. O ser vigiado tem alcançado uma lógica de naturalidade. É a recriação de um sistema ilusório, apresentação de paredes de vidro e experiências empobrecidas já alertadas por Walter Benjamin. Um cenário que Maria Rita Kehl (2004) denomina como “cativeiros luxuosos”, onde aparece a
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concepção de sonhos empobrecidos cujo foco está em uma espetacularização das ações que tendem a priorizar o aparecer para ser/ter. Sobre essa reflexão podemos compreender que: Os reality shows, a adesão dos espectadores às cenas da banalidade cotidiana representadas pelas diversas ‘casas’ de artistas ou de anônimos, as gincanas em que os concorrentes disputam para mostrar quem vai mais longe à direção oposta a dos ideais são o sintoma do sofrimento do sujeito contemporâneo, que perdeu a dimensão pública de seus atos e de sua existência e tenta substituí-la pela dimensão espetacular, do aparecimento de sua imagem corporal (KEHL, 2004, p. 160).
O fortalecimento desses reality shows, principalmente o da família Kardashian, está essencialmente associado a uma exarcebação da “aparição da imagem corporal no campo do outro” (KEHL, 2013, p. 159). É a visibilidade que atravessa nosso imaginário, proporcionando a sensação de espontaneidade desses programas que fortalecem essas celebridades emergentes e as colocam no centro dos modelos de comportamento e beleza. Nesta cultura das aparências do espetáculo e da visibilidade, já não parece haver motivos para mergulhar naquelas sondagens em busca dos sentidos abissais perdidos dentro de si mesmo. Em lugar disso, tendências exibicionistas e performáticas alimentam a procura de um efeito: o reconhecimento nos olhos alheios e sobretudo, o cobiçado troféu de ser visto. Cada vez mais, é preciso aparecer para ser. Pois tudo aquilo que permanecer oculto, fora do campo de visibilidade – seja dentro de si, trancado no lar ou no interior do quarto próprio – corre o triste risco de não ser interceptado por olho algum. E, de acordo com as premissas básicas da sociedade do espetáculo e da moral da visibilidade, se ninguém vê alguma coisa é bem provável que essa coisa não exista (SIBILIA, 2008, p. 111).
Como se percebe, assiste-se à espetacularização da aparência e nesse “viés interpretativo pode-se pensar que a expressão dos modos de aparecer através da moda, ou seja, da modelação da aparência
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corporal, estabelece um dos primeiros vínculos entre os homens aculturados” (CIDREIRA, 2013, p. 119). Nesse espaço em que um indivíduo se consagra enquanto ídolo, aparecendo através das ferramentas de visibilidade, são elas que provocam esse sentimento de realidade diante da abstração. É uma visibilidade excessiva, mas que vem se tornando plausível mediante as máscaras positivas que se criam para denominar esses programas, mas especificadamente os reality shows. VISIBILIDADE DO CLÃ KARDASHIAN: SÍMBOLO DE BELEZA E CORPO PERFEITO NO CONTEMPORÂNEO
Um fator incontestável no contemporâneo é que a concepção de aparência está inteiramente ligada a uma perspectiva de beleza na qual as figuras célebres se tornam intermediárias desse processo. O poder de influência das irmãs Kardashians, também conhecido como o clã Kardashian, se apoia nesse sistema de visibilidade “naturalizada” e vem cada vez mais ganhando espaço quando o quesito é beleza e definição de corpo feminino. A disseminação dos modos comportamentais das Kardashians atinge todas as percepções, generalizando a partir de suas dimensões de beleza aquilo o que é visualizado enquanto belo e digno de contemplação. Houve, no decorrer da história, um deslocamento das concepções de corpo e beleza, que nos trouxeram ao contemporâneo a partir de novas reformulações do que realmente é digno de representação feminina. Sobre o panorama dessas mudanças, Lars Svendsen (2010) apresenta: O corpo se torna algo que estará sempre aquém do objetivo. O ideal muda constantemente, em geral tornando-se mais extremo, de modo que alguém que, acaso consiga um corpo ideal, logo ficará aquém do próximo. Até modelos têm dificuldades em corresponder às normas: já nos anos 1950 não era raro que algumas se submetessem a interversões cirúrgicas para se aproximar da norma, por exemplo extraindo
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terceiros molares para obter faces sulcadas, ou costela para dar ao corpo a forma correta (SVENDSEN, 2010, p. 94).
De fato, é reconhecível que os sistemas de violência contra as formas corporais femininas perduram, entretanto se torna mais interessante tais reflexões quando podemos vislumbrar que as irmãs Kardashians, principalmente a Kim Kardashian, nos apresenta uma nova maneira de conhecer e se reconhecer a partir dos seu corpo que está potencialmente abarcado por curvas visivelmente modeladas e por vestimentas que revelam ainda mais as suas nuances corporais. Em uma sociedade que sempre esteve acostumada com a concepção de beleza enquanto magreza, que faz o contraponto do corpo com “o sublime enquanto um efeito da arte” (Eco, 2004) enquanto ligação a um culto heroicizado, observar a imagem de Kim Kardashian gera um determinado impacto para quem está acostumado às regras de visibilidade do corpo feminino. É o que podemos visualizar nos comentários de modelos e artistas abaixo: — Como pode? Eu, que sou modelo, visto 38. Aquele bundão ali deve ser 42 — comenta a top Bianca Klamt, que já foi modelo de prova de Vera Wang e Valentino. — As famosas têm atenção especial dos estilistas e, com certeza, eles ajustam para ela. Sem falar do marido, que a ajudou a criar essa imagem fashion. A modelo e apresentadora Talytha Pugliesi, manequim 36, vai um pouco mais longe: — Por conta de seu quadril gigante, acho que ela usa 46. A top Raica Oliveira tem outra teoria: — Acho que a roupa dela é toda sob medida. Pelo tamanho do quadril, nada caberia ali. (JUNIOR, Gilberto. Revista Ela, 2016).
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Figura 1 – Kim Kardashian e marido Kanye West, rapper e produtor musical Fonte: Foto reprodução site Ela (O Globo) Disponível em: https://oglobo.globo.com/ela/beleza/ descobrimos-manequim-de-kim-kardashian-fashionistas-ficam-divididos-com-revelacao-16948185#ixzz5L5NRQDwl. Acesso em: 10. jun. 2018
Como se vê, as proporções dessas modulações corporais remetem a um choque nas composições da aparência compreendidas na esfera pública. Nesse âmbito do visível, em que as críticas e os modos de vigilância pela perspectiva “selfista”2 são incessantes. Há tanto uma espetacularização das imagens, quanto um incômodo em perceber novas nuances corporais, como uma nova concepção de observar as formas de corpo e beleza. É nesse conflito entre uma “composição da aparência” (CIDREIRA, 2013) e uma naturalização da imagem de Kim Kardashian que acontece a sua forte influência, como já apresentamos aqui pelo termo digital influencer. Ana 2 A self, ou melhor, a fotografia de si mesmo se tornou uma das atitudes mais emblemáticas do universo das redes sociais contemporâneas. Kim Kardashian é considerada a “Rainha das selfies”, inclusive lançou, em 2015, pela editora Rizzoli um livro de selfies que ficou entre os mais vendidos nos Estados Unidos e na Inglaterra. "Selfish" tem 352 páginas repletas de fotos da Kardashian.
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Lúcia de Castro (2007, p. 14) auxilia para uma maior compreensão sobre esse fenômeno de uma visibilidade excessiva: (...) a construção da aparência – envolvendo adornos, posturas e modos de vestir – passa a depender cada vez mais das formas e volume corporais e torna-se elemento central no projeto reflexivo do self. Daí, a crescente importância do fitness e do vestir para o desenvolvimento da auto narrativa do self, ou da re(definição) constante da identidade na condição contemporânea. Como sugere Giddens (1997), tanto o planejamento da vida como a adoção de opções de estilo de vida se tornam integrados com regimes corporais, ou seja, diante da complexidade e fragmentação contemporâneas, o corpo torna-se elemento central na busca de sentidos e referências mais estáveis, talvez por constituir-se em único domínio ainda controlável pelos indivíduos (CASTRO, 2007, p. 14).
Como se percebe, pelo menos no que diz respeito a essa cultura “selfista” contemporânea, a relação do corpo enquanto reflexo de uma aparência se torna ainda mais intensa devido ao número de aparatos tecnológicos e às falsas sensações de naturalidade e facilidade proporcionada por eles. As curvas das irmãs Kardashians e os seus modos de se vestir, que se caracterizam por vezes como “sexy”, exibicionista, e “avantajado”, conseguiram proporcionar uma determinada quebra nos padrões de beleza femininos, impactando e levando o público a criar um imaginário de reconhecimento daquele corpo enquanto uma visualidade de semelhança. É ainda dentro desse contexto das ferramentas digitais que as Kardashians propagam seu poder de influência no mundo da moda e acabam promovendo novas reflexões sobre o corpo feminino. A dimensão da influência da família Kardashian aparece, como já citado neste trabalho, enquanto uma dimensão de poder que associa aparência e corpo. Vivemos no auge de uma corrida pela excessiva visibilidade e quando essa concepção de aparência surge como um novo sistema de moda e beleza, consequentemente abre um espaço para novas reflexões sobre esses sistemas. É como observa Cidreira (2013, p. 153):
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É cada vez mais frequente a observação de certa exibição corporal pelos indivíduos no seu dia a dia, nas suas tarefas corriqueiras; e é aqui que o universo da moda se fortalece, juntamente com todas as esferas que auxiliam na composição da aparência, permitindo uma aparição espetacular (CIDREIRA, 2013, p. 153).
A aparência se tornou sinônimo de interação e representação de um corpo, aparecendo como um cartão de visita, mexendo com as mais variadas dimensões interpretativas. Diante desse contexto, compreendemos que o espetáculo está dentro das dimensões visuais das Kardashians. Mas o que não se pode negar é que, embora haja toda uma padronização dos comportamentos dessas atrizes sociais, elas conseguiram de alguma maneira mostrar uma nova percepção tanto em relação ao vestir, quanto em relação ao corpo feminino. Elas conseguem abrir um espaço onde “a existência é determinada pela aparência idealizada e construída para ocupar e/ou invadir o espaço da cidade com as transgressões das normas já instituídas” (CARVALHO, 2015, p. 98).
Figura 2 – Imagens das Kardashians. Foto que marcou os 10 anos do reality Keeping Up with the Kardashians. Fonte: https://vogue.globo.com/moda/gente/noticia/2017/08/10-anos-das-kardashian-revista-faz-ensaio-com-familia-mais-famosa-do-showbizz.html. Acesso em: 10. jun. 2018
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa se propôs a realizar uma análise sobre os efeitos da excessiva vigilância e as formas de naturalização que acometem os reality shows. O estudo da relação entre visibilidade, corpo e beleza com foco nas figuras célebres emergentes no contemporâneo, as Kardashians, demandou um pensar aberto e disposto a refletir sobre essas reformulações da aparência propiciadas pelo controle da visibilidade. Não há como negar que as ferramentas de vigilância proporcionaram que a família Kardashian pudesse ditar novos sentidos comportamentais e arrastar uma legião de fãs que imitam, seguem, representam e, principalmente, distribuem likes3 de forma instantânea e imediata. Mas se torna também interessante perceber como são as incessantes formas de visualizar o âmbito da beleza. Dentro das teorias confluentes dos autores que trazemos aqui, podemos perceber que mesmo com um caráter exibicionista e inseridas em uma era “selfista”, as novas percepções sobre o corpo e a beleza trazidas pelas Kardashians nos levam a reflexão de que as coisas se deslocam, o cenário se transforma e que podemos observar as formulações de corpo e beleza sobre outras visualidades. Talvez seja nesse limiar entre o reconhecimento de um corpo que essa naturalização dos reality shows penetre de maneira mais fácil na vida dos indivíduos. O “reconhecer-se” dentro daquele sistema ilusório de naturalidade pode ter muito haver com o sentimento que aquela aparência passada nas imagens desperta no público. Por fim, foi perceptível, a partir dessa pesquisa, observar que a visibilidade da família Kardashian consegue gerar novas concepções a partir dessas relações entre aparência, beleza e laços familiares, produzindo um caminhar em torno de uma naturalidade que afeta seus públicos, reconfigura algumas percepções sociais e, principalmente, oferece novas ações de comportamento e mutações constantes na composição de aparências (CIDREIRA, 2013). 3 Palavra de origem inglesa que significa curtir, apreciar, gostar de algo a partir de um click nos perfis expostos nas redes sociais.
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Nesse sentido, é importante esclarecer que o presente estudo não procurou fazer um juízo de valor, nem mostrar um viés positivista da vigilância excessiva. O que se procurou foi, de alguma maneira, apresentar esse sistema que mexe com o olhar do outro, que ressignifica as formas de agir em sociedade e de como essas mudanças vão se tornando por vezes sintonizadas ao mundo contemporâneo e, ao mesmo tempo, perceptíveis nas novas reflexões sobre a beleza e o corpo feminino.
Referências BUCCI, Eugenio. KEHL, Maria Rita. Videologia. São Paulo: Boitempo, 2004. CARVALHO, Agda. Corpo/vestir: uma experiência. In: Moda, vestimenta, corpo. Beatriz Ferreira Pires, Glaucia Garcia e Suzana Avelar (Orgs). São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2015. CASTRO, Ana Lúcia de. Culto ao corpo e sociedade: mídia, estilos de vida e cultura de consumo. São Paulo: Annablume, 2007. CIDREIRA, Renata Pitombo. As formas da moda: comportamento, estilo e artisticidade. São Paulo: Annablume, 2013. ECO, Umberto. História da beleza. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2004. ROJEK, Chris. Celebridade. Rio de Janeiro: Rocco, 2008. SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2008. SVENSEN, Lars. Moda: uma filosofia. Tradução Maria Luiza X. De A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. Site JUNIOR, Gilberto. Descobrimos o manequim de Kim Kardashian – fashionistas ficam divididos com a revelação. Revista Ela [on-line], 2016. Disponível em: https://oglobo.globo.com/ela/beleza/descobrimos-manequim-de-kimkardashian-fashionistas-ficam-divididos-com-revelacao-16948185 Acesso em: 10 jun. 2018.
Renata Costa Leahy
CORPO, MODA E BELEZA: DESFILES DE MODA COMO CAMPO DE POSSIBILIDADES CORPORAIS
Atualmente, presenciamos reivindicações de indivíduos e grupos em relação a uma diversidade de direitos legais e sociais para o devido respeito à sua existência. Dentre eles, o direito à aparência é uma das questões cruciais, já que se relaciona estreitamente a problemas caros à humanidade e especialmente à sociedade brasileira, como o racismo, o machismo, a homofobia e a gordofobia, por exemplo, relacionados a valorações sociais que estão implicados nas formas de aparição e no campo da imagem. Através da aparência dos nossos corpos, em sua relação com as roupas e a moda, podemos expressar nossas verdades e medos, desejos e inseguranças. Desde que a LAB, marca de moda do rapper Emicida e de seu irmão Evandro Fiotti, levou às passarelas da São Paulo Fashion Week 42 em outubro de 2016 uma diversidade de corpos para além do corpo magro – como o gordo e com vitiligo –, tem-se observado a inserção mais constante de outros tipos corporais no escopo dos desfiles de moda no Brasil, para além dos sempre exigidos corpos magros, principalmente das modelos femininas. Nesse sentido, a reivindicação e/ou aparição de corpos diversos nas passarelas vai colocar em relevo sobretudo a questão da beleza, pois não podemos deixar de considerar que o julgamento social parte, em grande
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medida, da imagem dos indivíduos, em que o belo – no caso, o corporal – é um dos elementos de estima e mesmo de valorização de normalidade e de competência. A moda, assim como seus desfiles, é um dos lugares onde essas imagens são propostas e veiculadas, e de onde emerge um dos ícones de beleza contemporâneo, que é a modelo de moda. Se, por vezes, seus corpos são questionados quanto a uma magreza extrema ou quanto a sua efetiva representatividade como modelos de corpos “reais”, ao mesmo tempo sua imagem não deixa de ser celebrada nas redes sociais, e são elas que ainda predominam e são divulgadas através da moda; são esses corpos os utilizados pelo mundo da moda para vestirem e desfilarem nas apresentações de novas coleções nas passarelas. Com isso, podemos lançar alguns questionamentos frente à preponderância dos corpos magros e à entrada de outros tipos corporais nos desfiles de moda atuais: os desfiles de moda já nascem com essa prerrogativa do corpo magro como “o corpo belo”? Em que medida a aparência do corpo das modelos de moda é o parâmetro ideal para fixar regras de beleza? Atentando a essas questões, nossa proposta neste artigo é discutir sobre padrão de beleza feminino, atentando a como a moda se relaciona com as ideias sobre o belo e em que medida estas podem ser reelaboradas a partir do espaço dos desfiles de moda, tomando como foco o cenário brasileiro. Com isso, pretende-se contribuir, mediante o âmbito acadêmico, com as discussões sobre a relação entre corpo e beleza, sobretudo vinculada ao campo da moda. CORPOS E BELEZA NO MUNDO DA MODA
A fama e popularização da figura das modelos de moda, que aconteceu a partir dos anos 1980 com as supermodelos – dentre as quais estavam nomes como Cindy Crawford, Naomi Campbell e Linda Evangelista –, nos remete à ideia de medidas e padrões de beleza bem determinados. Mas, em verdade, o surgimento do ofício da manequim ou modelo de moda aconteceu bem antes, acompa-
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nhando a criação dos próprios desfiles de moda na segunda metade do século XIX, desde o surgimento dos famosos costureiros da Alta Costura, em uma estrutura bastante aleatória na escolha de modelos para apresentar suas criações em desfiles: as então manequins eram parentes, damas da sociedade e as próprias vendedoras disponíveis no momento. A história dos desfiles de moda e das modelos, como apresentada por Harriet Quick em Défilés de mode: une histoire du mannequin (1997), revela que, no início, não existia propriamente um tipo padrão de corpo para as modelos que desfilavam. Na maison parisiense de Charles Worth, creditado por muitos como o criador dos desfiles de moda e da utilização de manequins humanas para as passarelas, elas não seriam nem tão altas, nem tão bonitas, mas deveriam andar bem; ele buscava mulheres que fossem como “espelhos” para suas clientes. Já o costureiro Paul Poiret evidenciava três de suas modelos preferidas, mas bastante diferentes entre si: a bela Andrée; a pequena Yvette; e Paulette, loira de olhos claros, braços roliços e ombros arqueados. O estabelecimento de especificações demandadas quanto ao corpo e à beleza para manequins começou a aparecer de forma difusa, com base nas preferências de cada costureiro. Um tipo magro e esguio, por exemplo, ficou conhecido por ter sido uma preferência de Coco Chanel nos anos 1920, que desejava modelos escolhidas à sua semelhança corporal e gestual, e na Nova Iorque de 1923, a magreza já figurava como qualidade almejada a manequins de desfiles de moda. Ainda assim, pelo menos durante a primeira metade do século XX, os tipos de corpos belos das modelos eram estabelecidos ora de acordo com os caprichos criativos e conceituais dos costureiros, ora oscilando com os padrões de beleza sociais, como o próprio visual esguio do estilo garçonne1 dos anos 1920 e os volumes e curvas dos anos e 1950. Os corpos das modelos começariam a ser vinculados popularmente à magreza, de fato, a partir dos anos 1960, quando despontou 1 Por meio de uma silhueta reta, proporcionada pelas roupas da moda da época, e cabelos bem curtos, remete a um visual “à maneira de um menino” (em tradução literal do francês).
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uma cultura de moda jovem, que tinha a magérrima modelo britânica Twiggy como um dos ícones, promovendo um visual quase infantil. No entanto, seria também a partir dessa década, na esteira de desfiles mais experimentais, que outros tipos femininos começaram a ser pontualmente usados, de forma a figurarem como contraste àqueles considerados usuais ao ambiente de desfiles de moda. Esse contexto inventivo advinha especialmente dos novos estilistas que surgiam e reivindicavam outras formas e proposições de corpo e de moda, que consequentemente reverberaram nos tipos corporais e de beleza apresentados: Yves Saint Laurent utilizou como modelos uma mulher de cabeça raspada, uma grávida e gêmeas em um desfile, e viria a seguir uma tendência norte-americana de diversidade e mestiçagem na moda junto a estilistas como Givenchy e Kenzo – este com modelos latinas e asiáticas, pouco comuns até então (LÉCALLIER, 2014). Apesar disso, os anos 1980 foram cruciais por estabelecer seus ícones da moda – as supermodelos – com determinadas medidas consideradas perfeitas, gerando uma valoração da modelo de moda como ícone mundial de beleza. A partir daquele momento, a função de espelho mudava de sentido, e eram as vidas das modelos, seu modo de ser e sua profissão as mostradas e espelhadas, desejadas pelas mulheres e meninas, bem como suas características visuais em rosto, cabelo e corpo, elevando as modelos de moda a super mulheres, padrão, ícone do belo corporal feminino. Mesmo a magérrima modelo Kate Moss, surgida para a moda na passagem para os anos 1990, a partir da tendência londrina de um visual considerado “menos perfeito” e mesmo doentio, emerge no contexto de toda a estima pela qual as modelos da moda já tinham sido elevadas na década anterior. Seu tipo visual heroin chic (uma referência à droga heroína) e o seu valor “modelo de moda” foram uma das grandes influências nos valores de beleza corporal naquele momento, tanto no meio da moda como, posteriormente, no restante da sociedade ocidental, na qual as imagens da moda – e da modelo de moda – eram veiculadas de forma globalizada.
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Não por acaso, desde o final dos anos 1990 foram os corpos mais magros que se estabeleceram como padrão do mundo da moda, quando conhecemos a brasileira Gisele Bündchen, que, em sua magreza “saudável” – um contraponto da própria moda ao heroin chic –, personifica até hoje um dos maiores ícones do ideal de beleza corporal. Ainda que outros tipos corporais fossem e sejam considerados belos, criou-se o mito da perfeição justamente sobre as figuras nomeadas de “modelo”, estas vinculadas ao mundo da moda, passando a figurar como ícones e grandes representantes da beleza mundialmente. BELEZA: ENTRE MEDIDAS E GOSTOS
O “corpo modelo” da moda passa a ser considerado não somente padrão de beleza, mas a carregar também uma espécie de beleza conceitual, calcado em uma ideia bastante racional de perfeição. O mundo da moda geralmente argumenta uma necessidade da utilização desse tipo de corpo, cujas medidas devem estar em favor do seu trabalho para proporcionar o caimento perfeito das roupas que elabora e apresenta – daí a beleza parecer estar ligada a uma relação quase matemática, à fixidez de medidas que determinariam a perfeição para a aparição de um corpo vestido feminino. Tal ideia parece se sustentar em noções como as de simetria e harmonia, por exemplo, preceitos de beleza corporal que remetem ao período grego antigo, como nos mostra o filósofo Marc Jimenez (1997) em Qu’est-ce l’esthétique? Segundo tais preceitos, a beleza viria de medidas e atributos precisos, predeterminados, e, com isso, o que se subtraía era a capacidade de julgamento do belo de acordo com a percepção, o gosto de cada pessoa. Parece que tal ideia acabou por perdurar, ou ao menos influenciar o pensamento sobre o belo em épocas diversas, como afirmam Jimenez e também o filósofo Umberto Eco (2010), na obra História da beleza. Este autor afirma que as ideias da Grécia antiga sobre o belo, a harmonia, a perfeição e a proporção foram trabalhadas através dos séculos, refle-
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tindo, assim, no entendimento de senso comum que se tem hoje sobre a beleza. Eco mostra que um esforço para entender o julgamento do belo para além das definições clássicas, que giravam em torno justamente da existência de regras para a beleza, foi empreendido durante o século XVIII por pensamentos como o do filósofo Immanuel Kant: passa-se a considerar a dimensão subjetiva na percepção e no prazer, e o sentimento que envolve cada indivíduo na contemplação e consideração do belo, para além de conceitos e regras. Especialmente Kant relacionou a beleza a uma experiência estética advinda de um prazer desinteressado: [Para Kant] Belo é aquilo que agrada de maneira desinteressada, sem ser originado por ou remissível a um conceito de gosto: o gosto é, por isso, a faculdade de julgar desinteressadamente um objeto (ou uma representação) mediante um prazer ou um desprazer; o objeto deste prazer é aquilo que definimos como belo. (ECO, 2010, p. 264)
Mas, então, se o belo se vincula a essa dimensão individual de um prazer pessoal, como certas ideias e gostos parecem ser, de fato, generalizadas, como a que fixou, na contemporaneidade ocidental, os corpos magros das modelos da moda justamente como “modelos”, ideais? Como Eco ainda esclarece, a perspectiva kantiana considera que, mesmo subjetivo, o gosto tem a pretensão de ser universal – ainda que seja somente uma pretensão, pois ‘não pode assumir de modo algum valor de universalidade cognitiva’ (p. 264). Podemos sugerir, assim, que o gosto acaba ganhando efetivamente uma parcela de universalidade, ao levarmos em conta ao menos dois aspectos. Primeiro, que a subjetividade na apreciação e no julgamento sobre o belo não pode desconsiderar a inserção e o desenvolvimento do gosto das pessoas no interior de uma sociedade e cultura. Isso coloca os indivíduos para além de subjetividades, mas operando como intersubjetividades, ou seja, têm suas capacidades perceptivas e valorativas conformadas por sua relação com o seu entorno, com o meio sociocultural do qual fazem parte.
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A própria cultura se encontra em um lugar que nos permite identificar, de um lado, um modo de vida geral e certas práticas e características perpetuadas, mas, de outro, também a inventividade, já que cultura e sociedade são elaboradas e vividas por indivíduos – portanto, por eles constantemente ressignificadas e reelaboradas. Como afirma o antropólogo Clifford Geertz (2008, p. 64), ‘[…] nós nos tornamos individuais sob a direção dos padrões culturais, sistemas de significados criados historicamente em termos dos quais damos forma, ordem, objetivo e direção às nossas vidas.’ É justamente a convivência e o embate entre o individual e o coletivo que conformam a cultura, meio no qual se elaboram e difundem ideias sobre o belo. Assim, são forjados padrões de beleza – e estes, por sua vez, mudam com o tempo, pois os valores e formas de percepção dos indivíduos também mudam e se vinculam à sociedade a que dão “forma” e “ordem”. A condição intersubjetiva da vida em comunidade nos remete, ainda, a uma ideia de compartilhamento nas relações desse conviver. Deste modo, vamos reconhecer, junto a Valverde (2007), o caráter comunicacional do gosto, que, segundo o autor, não se refere propriamente a preferências estéticas idênticas nesse compartilhamento, mas a juízos distintos que ‘[…] revelariam a vigência de um mesmo padrão de julgamento’ (p. 283). As subjetividades não são apagadas pelo coletivo, mas este acaba por funcionar como guia para os juízos de valor. Por isso, vimos os corpos mais esguios da década de 1920 como uma tendência de beleza auxiliada pela roupa e pela moda – e, em certa medida, modelos de moda assim escolhidas em ocasiões na época – e corpos mais curvilíneos festejados na década de 1950, por exemplo. Em cada contexto sociocultural e epocal, tais formas corporais passam a ser padrão de beleza difundido e creditado pela maioria, até que novas percepções, oscilações de gosto e preferências dos indivíduos sejam colocadas no jogo social. Ao reconhecermos os indivíduos como produtos das relações intersubjetivas e o caráter comunicacional do gosto, temos que observar que certa universalidade do gosto seria potencializada, em
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segundo lugar, pela posição de poder de quem julga e justamente também em sua capacidade de divulgar e estabelecer determinado padrão de gosto como norma. Svendsen (2010) atenta para a existência do poder disciplinar que estaria envolvido nos processos sociais do gosto relacionado ao corpo e à moda, indicando o poder dos meios de comunicação e da mídia atualmente2. Quanto ao mundo da moda, ele parece se destacar e ser um dos grandes polos emissores das ideias vinculadas à beleza corporal, como instituição poderosa sobre os desejos mundanos. Se essa afirmativa é bem verdade, não podemos, no entanto, deixar de considerar também que o mundo da moda não existe a priori, mas foi criado por indivíduos; além disso, não esqueçamos que ele é inserido na sociedade como uma de suas instituições, não sendo dela separada. Logo, ainda que detendo papel privilegiado sobre os meios de produção, difusão e persuasão, a instituição moda – com sua poderosa indústria criadora e propagadora das modas vestimentares do momento – figura como mais um elemento no interior das sociedades e culturas contemporâneas e do processo de comunicabilidade do gosto, dialogando e tensionando, em alguma medida, com os anseios sociais. Assim, instituições sociais e indivíduos agenciam ideias de beleza que fazem sentido e parecem ser “naturais” em determinado contexto. […] dificilmente podemos afirmar que uma prática é mais “natural” que outra, já que o que pode ser visto como “natural” é tão mutável quanto a própria moda. […] No início do século XVII, Rubens provavelmente não teria se impressionado com o corpo de Kate Moss, e as modelos típicas do pintor jamais seriam aceitas nas passarelas hoje em dia, pois certamente teriam dez vezes o tamanho adequado. Um ideal de beleza bastante exclusivo de nossa época são ossos aparentes. (SVENDSEN, 2010, p. 95-96)
2 O autor procura ir além do conhecido poder disciplinar nas prisões apresentado por Foucault.
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Portanto, presenciamos na vida corrente que certas características corporais acabam por ser consideradas socialmente como regras de beleza. No entanto, essas “regras” ou esse “natural” só podem ser considerados contextuais, estabelecidos socialmente em determinado momento e lugar; e é justamente por ser contextual que não se pode fixá-los como um conceito para o estabelecimento de um corpo belo ideal. Se levarmos em conta, por exemplo, as ideias da antiguidade a respeito das regras de harmonia e proporção que ainda hoje reverberam na consideração sobre o belo do corpo, vamos observar que os parâmetros dessa simetria e dessa harmonia mudaram ao longo do tempo. Do mesmo modo, se o padrão de beleza corporal nem sempre foi o magro das imagens da moda contemporânea, vamos reconhecer e afirmar que esse parâmetro não pode significar, de fato, a medida única da beleza. DESFILES DE MODA: ENTRE PADRÕES E POSSIBILIDADES
Ao mesmo tempo que a beleza cunhada sobre uma aparência é sinal de apreciação, pode também ser usada como motivo de estigmatização e depreciação do outro, quando estabelece características socialmente privilegiadas e marca negativamente o que é considerado o seu oposto. Deste modo, a definição de um corpo “modelo”, considerado parâmetro de beleza e tomado como ideal, acaba, ademais, operando como um dos mais efetivos marcadores sociais dos “outros”, dos “diferentes”, por um princípio de contraste. É o que Tomaz Tadeu da Silva (2000, p. 83) parece evidenciar em A produção social da identidade e da diferença: ‘A força da identidade normal é tal que ela nem sequer é vista como uma identidade, mas simplesmente como a identidade. Paradoxalmente, são as outras identidades que são marcadas como tais.’ O autor reconhece que identidade e diferença são produzidas no interior das sociedades, de modo a serem mutuamente determinadas; portanto, a própria diferença é o processo pelo qual identidade e diferença são elaboradas. Por isso, marca-se simbolicamente “diferentes sociais”, ou seja, aqueles que são considerados como diferentes simples-
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mente porque não se enquadram no que é socialmente classificado como “normal” ou não estão dentro das margens regulares de um “padrão”. Nesse ponto, a questão das relações de poder novamente aparece, elevando certos parâmetros a “natural” a partir do ponto de vista de quem determina, demarcando, com isso, privilégios e fronteiras. Como vimos, claramente é possível localizar o mundo da moda como um desses polos que possuem o poder de estabelecer os critérios de privilégio e as fronteiras ao belo, sendo uma das principais protagonistas quando se trata de abonar a beleza corporal, tendo estabelecido seus parâmetros nas “modelos”. Além disso, vamos observar que, de outro lado, o mundo da moda certamente acaba espelhando realidades socioculturais excludentes em relação à aparência, como, por exemplo, a situação do corpo negro na sociedade, refletida na pouca presença de pessoas negras em desfiles de moda: em 2009, o percentual de modelos negros na São Paulo Fashion Week (SPFW) era de 3%3 (SAMPAIO, 2009), e ainda mais recentemente, em 2016, os principais desfiles mundiais da temporada do segundo semestre apresentaram 7 entre 10 modelos brancas – ainda que esse relatório tenha mostrado avanços, indicando ter sido esta a temporada mais diversa até então em relação à cor da pele (TAI, 2016). Notoriamente, corpos gordos também não aparecem de maneira representativa nas passarelas dos mais importantes circuitos da moda – as Semanas de Moda de Paris, Nova Iorque, Milão e Madrid –, desta vez com reforço ainda mais determinante do mundo da moda, cujo padrão pedido é justamente o oposto; não a toa, criou-se um estilo específico de eventos e modelos que visa atender a esse público, o plus size.
3 Em 2001, um grupo de modelos negros realizou uma manifestação no primeiro dia da temporada de abril da SPFW, protestando pela inclusão de pessoas negras na moda, o que ocasionou na aprovação de uma cota de 10% de negros e indígenas nos desfiles. Segundo a JusBrasil (2009), a cota foi estabelecida por um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), assinado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo e pela empresa organizadora da SPFW à época, a Luminosidade.
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Portanto, além de poder, como reflexo do social a instituição moda tem responsabilidades para com a sociedade que a segue e a qual pertence. Será que a moda pode ser pensada positivamente no interior desse cenário? Vimos que algumas experimentações já eram feitas quanto aos tipos de corpos em desfiles nos anos 1960, refletindo propostas de estilistas a respeito de corpos vestidos femininos. Principalmente as passarelas, espaços inaugurais da moda que apresentam pela primeira vez ao público e a especialistas suas ideias de corpos vestidos, passaram a promover combinações e visuais que propunham inventividades na relação corpo e roupa, chegando a ocasiões que, por vezes, o aproximaram a verdadeiras performances a partir dos anos 1980. Com o desenvolvimento dos desfiles de moda, os mais diferentes formatos passaram a ser realizados e são bastante comuns hoje, arranjando de forma criativa elementos cênicos e maneiras de desfilar para objetivos diversos4. Como já afirmamos em outro trabalho (LEAHY, 2016), devemos levar em conta que o formato “desfile de moda” não se limita, portanto, a espaço mercadológico de mostra de roupas; suas visualidades múltiplas, elaboradas a partir do jogo criativo de vários elementos, reforçam sua dimensão artística e mesmo estética, pois visa justamente instigar sentimentos e sensações no público. Nesse intuito, o corpo aparece, junto a cenário, iluminação, som e às próprias roupas, como um dos elementos de arranjo inventivo dos desfiles de moda. Vamos compreender, assim, o espaço dos desfiles de moda não somente como o de mostras de roupas, mas também como espaço expressivo de visões de mundo e de gostos, de experimentações 4 No artigo O maior espetáculo da terra: os desfiles de moda contemporâneos e sua relação com a arte performática, Ginger Gregg Duggan (2002) propõe ao menos cinco categorias de desfiles de moda: desfiles Estrutura, que prezam pelas formas possíveis da relação corporoupa, na proposição de outras maneiras de uso e de novas formas à visualidade do corpo humano; desfiles Ciência, que dão foco às possibilidades técnicas e tecnológicas da roupa e suas funções; desfiles Substância, onde há o privilégio do processo e do conceito; desfiles Afirmação, formas de contestação política e social; e desfiles Espetáculo, de característica bastante expressiva, cujo objetivo é reificar a imagem da marca através de uma apresentação espetacular e indicativa.
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e de possibilidades, e, essencialmente, de proposição de formas de presença. Para além da roupa, mira-se uma forma de apresentação feminina global, no que diz respeito à vinculação da roupa a uma forma de corpo, a um modo de andar a ela vinculado e a um mundo imaginário no qual esse corpo vestido estaria e mostraria, de forma pretensamente universal, sua atmosfera de sentidos. Há, portanto, uma potencialidade nos desfiles de moda como palco de investidas criativas e de elaborações sugestivas sobre modos da aparência e de aparição de corpos vestidos. Nas passarelas, eleva-se, assim, a dimensão da veste à da aparição e a da mostra à da inventividade, o que faz com que possamos compreender que os desfiles são equipamentos potenciais da moda, pois figuram também como espaços propositivos de corpos vestidos. Por isso, citamos o desfile da LAB como um acontecimento simbólico em desfiles de moda – ainda que outros casos já tenham pontualmente acontecido. Vinda da área da música, do cenário do hip hop e da periferia negra, a marca paulistana Laboratório Fantasma (LAB) expandiu sua frente de moda debutando justamente na referida SPFW42, em 2016. Com direção criativa do estilista mineiro João Pimenta, apresentou seu DNA urbano misturado às culturas africana e asiática, pondo a desfile uma diversidade de corpos em suas formas e tons. Foram 27 looks desfilados por homens e mulheres com corpos magros e gordos, e uma incomum maioria de corpos negros para passarelas de moda. A presença desse desfile na SPFW representou uma fratura na lógica normalizada do evento e da própria moda, tanto pela presença de uma marca advinda do meio muitas vezes estigmatizado da periferia e da cultura negra brasileira, quanto por apresentar a diversidade de forma latente. O desfile da LAB trouxe, portanto, os “diferentes sociais”, tomando as potencialidades da instituição moda para si, em favor da diversidade e das possibilidades de corpos vestidos. A preponderância do negro nesse desfile supera a margem do diverso, e, sendo maioria, se apresenta como reivindicação de presença. De modo semelhante, aposta de modo evidenciado na presença do corpo gordo, cujas medidas não são “amansadas” por certo padrão plus
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size5, mas mostradas como contrastante da relação magro-gordo. O corpo gordo se firma, assim, como diferença, que, por sua vez, se impõe também como possibilidade, uma vez presente no lugar pretensamente propositivo dos desfiles de moda e no espaço privilegiado da SPFW. O desfile da LAB é um exemplo que coloca o padrão de beleza em cheque a partir da lógica do contraste, aproveitando, de fato, a dimensão propositiva da moda e esgarçando ainda mais a dimensão de possibilidades de desfiles de moda. Desde então, pudemos observar um aumento na incidência de desfiles brasileiros em que outros corpos para além do padrão foram utilizados como propostas de corpos vestidos. Na mesma temporada do desfile da LAB citado, Ronaldo Fraga levou corpos de mulheres transsexuais às passarelas, em tipos físicos variados e desempenhos particulares sob uma mesma modelagem de vestido para todas, demonstrando, assim, a diversidade na aparição tanto em formas corporais como nas possibilidades da relação corpo-roupa. Um ano depois, levou diversidade corporal ao seu desfile praiano, com idosos, deficientes físicos e plus size. Em 2018, a grife de moda praia Água de Coco também apostou, em dois de seus desfiles – apresentados em abril e julho, respectivamente –, em sair da linha demarcatória dos corpos padrão das modelos, apresentando, além destas, mulheres grávidas, deficientes físicos, algumas curvilíneas e plus size e mulheres e homens mais velhos. No entanto, embora tais investidas venham permeando desfiles de moda, não podemos afirmar que a aparência desses corpos já entraria em conformidade com os valores sobre o belo partilhados pela maioria, e não sabemos até que ponto conseguirá operar uma mudança efetiva no julgamento e na perspectiva pelos quais a 5 Embora a moda venha se abrindo a possibilidades corporais com o plus size, segundo a pesquisadora Rosane Gomes (2018) muitas pessoas gordas não se sentem representadas por esse segmento. Tal nomenclatura ainda indica, de certa forma, uma ancoragem a padrões que estabelecem parâmetros a um corpo gordo aceitável: “A palavra GORDA ainda é carregada de matizes negativas, sempre associadas ao mau gosto, desleixo, compulsão, falta de controle e o grotesco. Já o termo PLUS SIZE está associado à moda, e suas relações com o belo, o proporcional […]” (GOMES, 2018, p. 5).
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sociedade atualmente considera os corpos em sua beleza: a SPFW, por exemplo, ainda expõe uma grande maioria de corpos magros, e notícias como a de que uma das modelos plus size mais famosas do Brasil, ‘Fluvia Lacerda cria próprio vestido de gala após negativas de marcas’ (MORO, 2018) ainda não indicam uma mudança no pensamento da coletividade. O padrão de beleza continua assentado socialmente nas imagens do não-gordo, do branco e do jovem, por exemplo, mirando o corpo “modelo” que é afirmado constantemente pela instituição moda, inclusive em seus desfiles. Devemos considerar, ainda, que a presença do “diferente social” em desfiles de moda pode acontecer tanto como um recurso estilístico do designer de moda e sua marca, apresentando, através do elemento corpo, o incomum e o inovador, como também um recurso de marketing em si, para chamar a atenção para sua apresentação, frente à recente onda de reivindicações que finalmente conquistam voz e inevitavelmente ganham espaço midiático. Mas vamos reconhecer também a importância dos próprios movimentos de reivindicação sociais, pois, sem eles, tais investidas, embora mercadológicas, dificilmente viriam a ocorrer em um meio já tão estabelecido e cujo padrão de beleza é bastante enraizado em certas características visuais. Trata-se de ir de encontro justamente a quem tem o poder de produzir, difundir e definir sentidos como norma, consequentemente normalizando imagens corporais específicas. ‘Questionar a identidade e a diferença significa, nesse contexto, questionar os sistemas de representação que lhe dão suporte e sustentação.’ (SILVA, 2000, p. 91). A inserção do “diferente social” em um evento como a SPFW, maior evento de moda da América Latina, com reconhecimento e repercussão mundiais, acaba por funcionar como polo de onde emergem não só padrões, mas lugar onde tais questionamentos, quando apresentados, têm o aval do próprio polo emissor da normalização. É justamente devido ao poder da moda em influenciar e divulgar valores à sociedade a respeito do belo, e pela dimensão propositiva de seus desfiles, que a conquista da presença da diversidade nesse espaço ganha dimensão de possibilidade.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Reivindica-se atualmente na moda a mudança de parâmetros de beleza com vistas à valorização das individualidades, das diferenças e da diversidade, como mais uma investida importante para que se abra o leque das formas de presença também pelo viés da aparência e da beleza. A modelo do tipo magra predomina especialmente no espaço dos desfiles de moda, o que interdita o acontecimento do que acreditamos ser esse potencial dos desfiles de moda. No entanto, vimos que a beleza dos corpos não pressupõe regras fixas e que a instituição moda não existe antes dos indivíduos que a elaboram; logo, é possível aos agentes culturais – indivíduos e instituições – mudanças de paradigmas em relação ao belo do corpo. Uma vez criado com o pretexto da mostra de novas coleções de roupas de moda, o desfile de moda atualmente ultrapassa tal finalidade e se revela, além de um espaço mercadológico e artístico, como um espaço de experimentações e de possibilidades, ambiente de concretização de maneiras diversas de se mostrar e sugerir formas de presença humana através da ludicidade, que chama o público a observá-lo como aparições instigantes. O desfile é o espaço da moda, mas a inserção de manequins, desde o seu início, o coloca igualmente como espaço do corpo, em que são sugeridas formas pelas quais o humano, através de sua relação com a roupa, pode aparecer, se compor e ser vislumbrado. Quando reconhecemos os desfiles de moda como espaços de experimentação da relação corpo-roupa e de sugestão de formas de presença, acreditamos que as passarelas não são exclusivas a corpos magros, como uma essência da instituição moda, e sim equipamentos do seu trabalho, que seria justamente o de propor à sociedade inventividades sobre as formas com que se pode aparecer. Para isso, não só a criatividade na roupa é necessária, mas a experimentação e proposição das roupas em corpos em suas variadas possibilidades físicas. Com isso, o corpo magro não sai de cena, mas figura como mais um dos tipos corporais possíveis.
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Rosane da Silva Gomes
IDENTIDADE E IDENTIFICAÇÃO: O CORPO GORDO, A BELEZA E A MODA PLUS SIZE
Quero comunicar quem eu sou e como eu quero ser vista através das minhas roupas. A indústria da moda não considera o meu corpo importante, mas eu considero a Moda importante para que eu me sinta bem comigo mesma. E aí, como a gente faz? Eu, Lina Levien, me rebelo. Eu olho direito nos olhos da indústria da moda e digo “Não. Tu não vais controlar o quê e quando eu visto, tampouco a frequência com que eu compro. Eu vou.” “Eu te desafio.” – ela me diz. Desafio aceito. E de lá pra cá, é o que têm sido, um grande divertido desafio toda a vez que quero comprar uma peça de vestuário. Às vezes, perco, mas na maioria delas sou bem-sucedida; e às vezes nos encontramos no meio do caminho (Depoimento de Lina Levien no seu Instagram, em 6 fev. 18).
Ao escolher falar sobre identidade e identificação nas relações que se estabelecem entre as pessoas gordas1, penso na importância de refletir acerca de muitas questões relacionadas à aceitação e autoestima, motes constantes nas discussões sobre os corpos gordos na atualidade. Texto publicado nos Anais do XIV Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (ENECULT), promovido em 2018, na Universidade Federal da Bahia (UFBA).
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Assim sendo, pensar em identidade, ou identidades, significa refletir sobre as conexões dentro e fora dos grupos, sobre o processo de definição de pertencimento e diferença, a produção simbólica e a delimitação de fronteiras. As pesquisas na área das ciências sociais apresentam a noção de identidade, assim como o processo de identificação, como um dos principais pontos de análise e debate. De acordo com Woodward (2012), a construção da identidade é tanto simbólica quanto social. Quer dizer que, construída a partir de símbolos, a identidade configura e reconfigura as práticas sociais. Fora isso, a autora aponta que o processo de construção de identidades está ligado a causas e consequências materiais. Desta maneira, uma das principais características da identidade é uma delimitação da diferença, fazendo conexões com os sentidos de pertencimento, participação, igualdade e, igualmente, de segregação e distanciamento (WOODWARD, 2012). Neste ponto, verificamos o quanto de delimitação se constrói ao se marcar um espaço de identidade dos gordos, ao se afirmarem com seus corpos e ao valorizarem uma beleza peculiar e própria das pessoas gordas. Seguindo esse pensamento, estabelecem-se críticas a noções originárias de identidade, representando algo que em seu âmago pode se apresentar cristalizado, um processo estático de identidade. Assim, analisando a dinâmica nas relações de identificação, os diversos sujeitos, individuais e coletivos, se encontram inseridos em um conjunto de práticas que podem reforçar ou enfraquecer movimentos de pertencimento e exclusão. É importante ressaltar, segundo Tomaz Tadeu da Silva (2012), que a identidade não se opõe à diferença, ou seja, a inclusão não é o oposto da exclusão. Na verdade, a identidade é dependente da diferença, são elementos do mesmo processo, definidos através de sistemas de classificação. A posição dos sujeitos em um sistema de representação também se relaciona com a divisão material e instrumental da sociedade, em uma relação dialógica entre simbólico e social (SILVA, 2012). Assim, para o autor:
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A identidade, tal como a diferença, é uma relação social. Isso significa que sua definição – discursiva e linguística – está sujeita a vetores de força, a relações de poder. Elas não são simplesmente definidas; elas são impostas. Elas não convivem harmoniosamente, lado a lado, em um campo sem hierarquias; elas são disputadas (...). Na disputa pela identidade está envolvida uma disputa mais ampla por outros recursos materiais e simbólicos da sociedade (SILVA, 2012, p. 81).
Vale destacar que, seguindo a argumentação deste autor, o posicionamento dos sujeitos em um sistema classificatório não é um processo voluntário e consensual. Este campo simbólico também é um campo de disputas, de discursos, de práticas e ações coletivas. Os fenômenos da inclusão e exclusão em quadros de representação estão marcados através de relações desiguais, mediadas e disputadas pelos indivíduos e grupos. São geradas por mecanismos de reafirmação de poderes. “A identidade e a diferença estão, pois, em estreita conexão com relações de poder” (Idem, p. 82). As fronteiras delimitam a separação das pessoas em grupos. Ao mesmo tempo que dizem quem está “out”2, também determinam quem está “in” 3, produzindo sentimentos de similaridade e de filiação. As diferenças e similitudes, além de serem definidas e pensadas, são também desempenhadas pelos indivíduos, sendo as fronteiras uma importante forma para a disputa por status e ganhos de poder. Destacamos que as fronteiras não definem somente campos opostos e polarizados, mas que também produzem formas híbridas e outros modos de categorização. O processo de identificação não é resultante de um caminho de mão única. Defendemos que a identidade deve ocorrer num processo dialógico e dinâmico, permitindo o espaço das práticas sociais na compreensão dos processos de identificação. O tema da identidade é abordado pelo teórico Michel Maffesoli, ao traçar outros olhares acerca da sociologia na pós-modernidade. A 2
Do inglês, quer dizer “fora”.
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Do inglês, quer dizer “dentro”.
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pesquisa de Maffesoli analisa o homem comum e, nele, a passagem de uma forma de identidade (ligado ao ideológico) para uma forma de identificação (ligado ao imaginário). A identidade seria uma característica da modernidade, enquanto a identificação da pós-modernidade. Maffesoli prefere pensar as categorias sociológicas não firmadas nos dualismos entre razão e emoção e, assim, trabalha com a ideia de sensibilidade pós-moderna que promove mudanças na civilização. Nesse sentido, Michel Maffesoli sugere a substituição da noção de identidade pela de identificação, pois o conceito de identidade se relaciona a uma maneira de ser estável e coerente, enquanto a identificação se coaduna a “máscaras variáveis” – podendo ser descartadas – a relações “informais” e “afetivas” entre os sujeitos. O autor aborda questões que definem a socialidade contemporânea, como também aborda o surgimento das neotribos, rediscutindo a identidade no contemporâneo. Maffesoli (1996) aponta que a discussão sobre o individualismo e, consequentemente, da identidade, precisa ser analisada, em conjunto com a reflexão sobre a socialidade, de maneira relativa e não linearmente nas diferentes configurações históricas. Assim, o autor aborda a ideia de identificação, afirmando que a identidade, como foi conhecida e consolidada na modernidade, não satisfaz para explicar as relações e compartilhamentos que envolvem afeto e sentimentos. Identidade não mais regida pela modernidade, como algo intrínseco ao indivíduo e carregado por ele em todos os contextos e relações cotidianas; não mais a ideia de projeto, de projeção futura e estabilidade. Maffesoli também salienta a ideia de que a “identidade” possa ser construída a partir da relação com o externo, com o “Outro” e com a comunidade. Seria o que ele denomina como o “mito da identificação”, o que leva as pessoas a realizarem diferentes papéis nas mais diversas socialidades. Na visão de Maffesoli (1996, p. 303), “essa nebulosa da identificação é um dos mitos pós-modernos” e se identificar é fazer parte de uma cultura, em que o essencial não é o objeto da identificação ao redor do qual se forma o corpo social, mas sim o “estar-junto”
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e experimentar em comum, integrar-se. Assim, “(...) o transe ou a moda mostram-nos a pluralidade das relações que vão constituir a pessoa na sua relação consigo mesmo, com outrem e com o mundo. Ao contrário das atitudes, das representações ou dos modos de vida que tendem à redução, à reductio ad unum, elas lembram em maior escala que os gênios continuam a habitar o espírito e o corpo do homem” (MAFFESOLI, 1996, p. 277). Considerando a relação entre identidade e identificação, ele diz que ela se dá por meio de um processo, uma passagem. Neste ponto, gostaríamos de problematizar algumas discussões recorrentes em grupos de identificação gorda, que têm sido também um ponto de investigação de nossa pesquisa. Vez por outra, as discussões giram em torno de gordos maiores e menores e na diferenciação entre pressão estética e gordofobia. Pessoas militantes do movimento gordo sempre salientam tal diferenciação para tentar explicar, dentro de um contexto social, o quanto uma pessoa com um peso maior sofre a mais do que aquela que, mesmo considerada gorda, não passa pelos mesmos constrangimentos e dificuldades. Pensamos que a questão da identificação se coloca de maneira fundamental neste ponto. Pessoas que se veem gordas encontram identificação em grupos de militância e passam a participar das discussões porque, em algum nível, sentem-se deslocadas do padrão de corpo e beleza corporal imposto pela sociedade. Pela identificação, constroem uma identidade gorda que, na maioria dos casos, passa pela questão estética – “quero me afirmar bela, mesmo sendo gorda”. Então podemos notar o quanto importa, para a formação da identidade gorda, uma valorização da beleza que se relaciona com o aspecto físico. Uma discussão recorrente é sobre a dicotomia entre o corpo do gordo e a moda plus size. Muitas vezes, mulheres e homens gordos reclamam que não se sentem representados nas/nos modelos que fazem a divulgação de roupas para pessoas maiores, a chamada moda PLUS SIZE. Muitos dos que pesquisam sobre o corpo gordo até preferem utilizar a nomenclatura MODA PARA GORDOS,
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por achar que define melhor a moda para pessoas com pesos maiores e que assim são melhor representadas. A palavra GORDA ainda é carregada de matizes negativas, sempre associadas ao mau gosto, desleixo, compulsão, falta de controle e o grotesco. Já o termo PLUS SIZE está associado à moda e suas relações com o belo; o proporcional e o bem vestido são facilmente verificáveis quando fazemos uma rápida busca pelos dois termos no Google Imagens.
Figura 1 – Imagem capturada em pesquisa pela palavra GORDA
Figura 2 – Imagem capturada em pesquisa pela palavra PLUS SIZE
Fonte: Google Imagens. Acesso em: 26 fev. 2018.
Aqui, gostaríamos de salientar alguns aspectos que circundam o preconceito contra os gordos. O que nos parece fundamental, diferentemente do que ocorre com outras minorias, é que o gordo está alijado da conjuntura aceitável na sociedade apenas por uma questão estética. É o que seu corpo mostra que o torna inaceitável, a repulsa física acarreta o preconceito social. Gordos pertencem a quaisquer classes sociais e, a priori, não se identificam com nenhum grupo “moralmente” transgressor. Também não carregam em si o peso de séculos de discriminação social, por serem de uma etnia específica de dominação. O gordo é excluído por somente ter um corpo com um volume e tamanho maiores, geralmente classificado
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como disforme, e distante do um certo ideal de beleza imposto socialmente. Tal ponto é bastante relevante quando se pensa a moda também como meio de combate à gordofobia, pois é justamente no aspecto estético que se baseiam todas as falas preconceituosas com relação aos gordos. Há a chamada “ditadura da beleza” que impõe, principalmente, à realidade feminina uma disputa contra o corpo que foge aos padrões, criando uma luta do indivíduo contra si mesmo e fazendo com que as percepções sobre sua imagem sejam construídas a partir daquilo que o Outro determina, sempre reforçado por um discurso da falta. Assim, existe uma cobrança, principalmente com relação às mulheres, por uma imagem que está incessantemente precisando se aperfeiçoar, fazendo com que tais corpos se sintam deslocados, sempre em busca de um impossível corpo idealizado. A imagem construída de um corpo é o reflexo daquilo que se espera dele, a partir de padrões da beleza instituídos socialmente. Assim sendo, as preocupações com o corpo estão subjugadas a um julgamento alheio. Nesse sentido, as pessoas que estão fora dos padrões estéticos estabelecidos sofrem um desânimo perante a constatação de que seu corpo mostra um fracasso no agenciamento do próprio corpo e de seus limites. Esta supervalorização da beleza influencia na construção da identidade pessoal, constantemente em contraponto com um outro corpo, numa atitude de comparação. Esse movimento forma um grupo de pessoas que ficam estigmatizadas. Desse modo, tais pessoas tentam “disfarçar” sua imagem real para assim aumentar suas chances de aceitação social. Neste ponto, faremos uma inserção de alguns aspectos da obra de Goffman (1988) a respeito da ideia de estigma, cujo ponto central ressalta os aspectos sociológicos e psicológicos de indivíduos que estão à margem da sociedade. Para o autor, estes indivíduos ficam marcados por conta de peculiaridades físicas e psicológicas, pois eles são considerados como diferentes e inferiores em relação
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à maioria da sociedade. Para que possam construir uma identidade social, tais indivíduos precisarão lutar por seus direitos. Goffman (1988) analisa a situação de pessoas estigmatizadas e revela os mecanismos dos que estão à margem para sobreviver às vicissitudes. Ao traçar um percurso na História a respeito desse tema, vê-se que tais estigmas são aspectos considerados fora dos padrões da normalidade do mundo e das sociedades. A palavra estigma surge na Grécia Antiga; era uma demonstração para toda a sociedade local das castas no qual cada pessoa pertencia, pois, essa era uma forma de diferenciação de cada cidadão grego. Em várias sociedades e em diferentes eras, o estigma é o produto do estranhamento inicial que redunda em conceitos advindos de percepções negativas e erradas: Enquanto o estranho está à nossa frente, podem surgir evidências de que ele tem um atributo que o torna diferente de outros que se encontram numa categoria em que pudesse ser – incluído, sendo, até, de uma espécie menos desejável – num caso extremo, uma pessoa completamente má, perigosa ou fraca. Assim, deixamos de considerá-lo criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída. Tal característica é um estigma, especialmente quando o seu efeito de descrédito é muito grande – algumas vezes ele também é considerado um defeito, uma fraqueza, uma desvantagem – e constitui uma discrepância específica entre a identidade social virtual e a identidade social real (GOFFMAN, 1988, p. 6).
Para Goffman (1988), as pessoas têm uma identidade real e uma virtual. A identidade real é formada por uma gama de atributos que os indivíduos costumam ter, quer dizer, o que seria sua identidade pessoal, todos os seus costumes e preferências. A identidade virtual é formada como um obstáculo, mostrando para os outros indivíduos as características que fingimos ter, para que, desta forma, as pessoas não percebam o nosso verdadeiro eu, restando sempre uma realidade maquiada sobre o que realmente é a identidade pessoal de cada indivíduo.
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As pessoas consideradas “normais” impõem para os estigmatizados a forma como eles deveriam ser, deixando-os ainda mais marginalizados. O estigma é um aspecto ruim que deve ser sempre combatido de forma repressora, não permitindo que essas características venham a se destacar. Para o autor, o estigma é uma identidade deteriorada, devendo ser combatida e evitada, porque é considerada como um elemento negativo dentro da sociedade. Baseados nessa premissa, os discursos contra os corpos gordos são construídos, quase sempre se mostrando preocupados com a saúde dos gordos e com sua perspectiva de vida. O indivíduo estigmatizado, assim, se vê numa arena de argumentos e discussões detalhados referentes ao que ela deveria pensar de si mesma, ou seja, à identidade de seu eu. A seus outros problemas, ela deve acrescentar o de ser simultaneamente empurrada em várias direções por profissionais que lhe dizem o que deveria fazer e pensar sobre o que ela é e não é, e tudo isso, pretensamente, em seu próprio benefício. Escrever ou fazer discursos defendendo qualquer uma dessas saídas é, em si, uma solução interessante, mas que, infelizmente, é negada à maior parte dos que simplesmente leem e escutam (GOFFMAN, 1988, p. 107, 108).
As consequências geradas pela conquista de uma aparência corporal ideal, que favorece o mecanismo de qualificar ou desqualificar as pessoas, levam-nos a refletir como a exigência estética que permeia o cotidiano nos grandes centros urbanos influencia a construção da identidade da população submetida à sua pressão. Tal pressão é bastante incisiva sobre os corpos gordos, que os classificam como doentes e indolentes, gerando uma marginalização advinda do processo de estigmatização desses corpos. Para aprofundarmos um pouco mais tal discussão, citaremos algumas reflexões de Anthony Giddens, principalmente retiradas do seu livro Modernidade e identidade. Ao tratar da identidade, o autor lança questionamentos de como as mudanças na sociedade
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moderna podem influenciar a formação do eu, criando, a partir das identificações com grupos e culturas, uma autoidentidade. O ideal de construção da sua própria identidade se distancia de um ser solto, perdido, desorientado e extremamente suscetível à necessidade de velocidade imposta pelo ritmo de vida contemporâneo, gerando uma ansiedade existencial praticamente inevitável. As pessoas se sentem altamente cobradas por resultados positivos, tendo que conviver com pressões externas de serem melhores cada vez mais. Nessa direção, é fácil sentirem-se desnorteadas e podem se tornar vulneráveis aos discursos que as desqualificam, por não atenderem a um ideal. Giddens examina os impactos desses discursos na vida cotidiana dos indivíduos, que são inescapáveis e nos encerram num mundo de dúvida radical e múltiplas fontes de autoridade. A construção do eu e da identidade é feita de forma reflexiva (os indivíduos sabem o que estão fazendo e por que estão fazendo), mas dentro de variadas opções e de possibilidades de agir. Novas possibilidades num mundo que gera ansiedades. De acordo com Giddens (2002), o corpo é um dos aspectos fundamentais da construção da autoidentidade. O autor apresenta, baseado em Goffman, a questão de controle do corpo como mecanismo de construção do eu na interação com os outros indivíduos: O controle regular do corpo é um meio fundamental através do qual se mantém uma biografia da autoidentidade e, no entanto, ao mesmo tempo o eu está quase sempre em exibição para os outros em termos de “corporificação”. A necessidade de manejar esses dois aspectos do corpo simultaneamente, que se origina nas primeiras experiências da criança, é a principal razão por que uma sensação de integridade corporal – de que o eu está seguro no corpo – está tão intimamente ligada à apreciação regular dos outros. O que Goffman chama de “aparências normais” são partes dos conteúdos como o eu, o corpo não pode mais ser tomado como uma entidade fisiológica fixa, mas está profundamente envolvido com os reflexos da modernidade. O corpo era tido como um aspecto da natureza, governado de maneira fundamental por processos “naturais” e apenas
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marginalmente sujeitos à intervenção do homem. O corpo era um “dado” à parte, muitas vezes inconveniente, do eu. Com a crescente invasão do corpo pelos sistemas abstratos, isso é alterado. O corpo como o “eu”, torna-se o lugar da interação, apropriação e reapropriação, ligando processos reflexivamente organizados ao conhecimento especializado e sistematicamente organizados (GIDDENS, 2002, p. 59).
Sabendo que o corpo é parte determinante para a construção da identidade humana, cremos que as roupas que o vestem e a moda que conduz às tendências para influenciar tais vestimentas são fundamentais para a compreensão da composição positiva de uma autoestima. Desta maneira, a reconstrução do corpo é, em parte, motivada por certa insatisfação diante das características naturais do corpo anatômico. A roupa e a moda podem então se tornar recursos de remodelagem do corpo. Uma transformação no corpo que gera novas configurações acaba por produzir outras significações. E isso surge da necessidade dos indivíduos em constituir sua identidade e de também gerar significação para si e para os outros. Dessa forma, quem faz as roupas acaba por ser uma agente na reconfiguração do corpo através da moda e, assim, influencia as construções simbólicas referentes à visão corporal. A roupa é um outro tipo de regime. Em todas as culturas, a roupa é muito mais que um simples meio de proteção do corpo — é manifestamente um meio de exibição simbólica, um modo de dar forma exterior às narrativas da autoidentidade (GIDDENS, 2002, p. 62).
Voltando aos grupos de discussão no Facebook relacionados à identidade gorda, ao olhar as postagens dos últimos dias, verificamos que quase a metade delas estão ligadas à moda, roupas e tendências. Muitas vezes, as postagens falam de um descontentamento com relação à falta de opções de roupas para os gordos. Procuram um tipo específico de roupa, uma padronagem, roupas mais baratas ou algo que seja mais moderno e jovem. E tais reclamações surgem tanto de gordos menores, como de gordos maiores.
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Isso indica que, apesar de tantas ações afirmativas com relação aos corpos gordos nestes últimos tempos, a indústria da moda e o próprio consumo ainda não atendem de modo satisfatório esse público que compõe uma parte significativa da população brasileira. O que significa que os consumidores gordos ainda não foram incluídos nas engrenagens que alavancam e mantêm a estrutura da moda funcionando: seus corpos deixaram de ser ignorados, estigmatizados pela mídia, mas ainda não completamente pela indústria da moda, que não considerou de fato esses corpos como uma fatia representativa no mercado que pode ser bastante lucrativa. A observação de campanhas publicitárias de grande alcance midiático voltadas a esse nicho mercadológico concretizou modos como se produz uma euforização e efeito de “real beleza” em padrões outros que não sejam apenas o dos discursos da “magreza”. Ademais, destacou-se o fato de que as mídias expõem positivamente plus-size, mas que a indústria e o mercado da Moda e do consumo ainda não estão respondendo com satisfação a esse público (salvo poucas iniciativas de algumas marcas e lojas, e principalmente de ações de oferta e venda de produtos que se desenvolvem por meio das redes sociais). Finalmente, é preciso reconhecer, não obstante a grandiosidade das campanhas da “real beleza”, que ainda estamos presos a modelos de corpos “medidos”. Os perfis de modelos plussize pautam-se em modelos bastante simétricos, embora diferentes dos modelos de corpos macérrimos com os quais disputam espaço. Além disso, questiona-se, por vezes, a presença de uma modelo para apresentar uma coleção de plus-size, considerando que o seu corpo não corresponde ao corpo desse público-alvo. De uma maneira ou de outra, apesar da investida midiática que amplia os parâmetros de beleza, os corpos apresentados não abarcam a diversidade de corpos existentes (MARTINS; VILELA, 2015).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Retornando a Giddens (1988), para que tal configuração mude e que pessoas acima do peso possam se afirmar em sua identidade
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gorda, é necessário pensar em outras formas de aceitação dos corpos fora dos padrões aceitáveis na sociedade. A proposta da “política-vida” é o argumento final de Modernidade e Identidade. Giddens (2002) apresenta sua concepção de política emancipatória como sendo uma política voltada para a libertação, justiça e igualdade social, enquanto a política-vida, através do privilégio da reflexividade, possibilitaria ao sujeito ser autor do seu projeto de vida, decidindo o estilo de vida que ele adotaria, decisão produto de sua liberdade de escolha e do seu poder como capacidade transformadora. “A emancipação pressupõe uma transformação na política-vida” (Idem, p. 211). Desta forma, seguindo o pensamento de Giddens (2002), podemos pensar a identificação como uma espécie de movimento de empatia, possibilitando a experiência dos outros e da identidade num eu e corpo contínuos. Vivenciamos atualmente um estado de urgência, em que se verifica a necessidade premente por mudanças. A falta de empatia é uma problemática real vivenciada cotidianamente, decorrente da onda do individualismo e da globalização. Desta forma, posso viver plenamente com o corpo que trago em mim, ao descobrir positivamente que outros corpos como o meu estão igualmente satisfeitos em suas configurações. Ao nos depararmos com pessoas felizes com seus físicos, podemos verificar uma ruptura nos modos de pensar os corpos a partir de padronizações. Tal pensamento empático proporciona uma quebra nas normas culturais que reproduzem as desigualdades, ao mesmo tempo que luta por rupturas com os discursos hegemônicos e com os assujeitamentos.
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Referências GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. GOFFMAN, Erving. Estigma – notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4 ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1988. MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 2010. MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. Rio de Janeiro: Vozes, 1996. MARTINS, Marcelo Machado. VILELA, Ilca. Susana. Lopes. Corpos em construção midiática e mercadólogica. In: 10ª Colóquio de Moda. Curitiba, 2015. SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Tomaz Tadeu da Silva (Org.), Petrópolis: Vozes, 2000. WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: Tomaz Tadeu da Silva (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 12 ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
Terceira Parte
APARÊNCIAS MIDIATIZADAS
Henrique Sena dos Santos
CORPO, BELEZA E ESPORTE NA IMPRENSA BAIANA: 1916 – 1928
‘Dez maneiras de um emagrecimento saudável’, ‘Como conseguir uma barriga negativa em vinte dias’, ‘Dez passos para um abdômen sarado’... A lista de indicações e recomendações sobre o cuidado com o corpo e com a sua visualidade é infinita. Em igual medida, a lista dos suportes sobre os quais consumimos este conteúdo também é enorme. Desde as grandes revistas já estabelecidas, passando pelos blogs e agora, mais recentemente, as redes sociais como Instagram. Todos estes veículos nos têm algo a dizer como construir as aparências e visualidades no afã de alcançar um corpo belo e fitness. Seja na grande imprensa ou nas redes sociais, o que as unem é a constante preocupação pelo corpo dito esteticamente belo, através do cuidado com o controle alimentar ou na prática esportiva que contribuem para embutir o corpo de uma ideia de saúde. É fato que boa parte do que se consome nas mídias, sejam elas as revistas ou as redes sociais, é um conteúdo voltado para a constituição de uma certa corporeidade fundamental para a consolidação de uma determinada cultura visual. Neste texto, gostaria de chamar atenção para o fato de que, ao contrário do que se pensa, o fenômeno da busca incessante pelo corpo belo nas configurações da modernidade – cujo melhor
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suporte e via para alcançar este ideal são as mídias – não é novo. Ele remonta aos meados do século XIX, sobretudo pela consolidação de uma cultura das aparências em franco desenvolvimento ao menos desde o século XVIII, expressa no desejo de uma nova visualidade de si como consequência do desenvolvimento de sociedade industrializada marcada pela competitividade, individualismo e pelo triunfo do liberalismo e do ideal civilizatório (SENNETT, 1988; ELIAS, 1994). Nesta direção, com este ensaio procuro contribuir para historicizar o processo de uma nova constituição de uma nova beleza e visualidade corporal através do esporte. A partir da leitura de algumas edições de revistas ilustradas editadas e publicadas em Salvador no início do século XX, a minha intenção é oferecer ao leitor a possibilidade de perceber como o discurso de um corpo belo, saudável e atlético foi fundamental para a formação de uma imprensa moderna. Por sua vez, este mesmo campo, ao absorver novas tecnologias no âmbito da comunicação, foi determinante para que o próprio discurso do esporte e da beleza corporal tivesse uma potencialidade considerável. Enfim, ao final do texto, espero que eu consiga ensaiar, ainda que de forma incipiente, a ideia de que este processo histórico aponta continuidades no modo como as mídias tradicionais e redes sociais atualmente têm na moda e nos esportes e no fenômeno fitness uma forma altamente comercial e rentável de estar em evidência. Por outro lado, os próprios personagens desta cultura corporal como editores, colunistas, blogueiros, youtubers e os digitais influencers, em uma relação dialógica com as mais variadas mídias sociais encontram nestes uma forma de constantemente manter a pauta moderna do sonho do corpo perfeito atualizada. AS REVISTAS REVISTANDO SALVADOR: UM BREVE PERFIL GRÁFICO
Ainda no final século XIX, alguns periódicos soteropolitanos davam os seus primeiros passos rumo ao processo de modernização e formação da grande imprensa local. Todavia, é a partir da década
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de 1910 que a imprensa da cidade passa por substanciais mudanças quantitativas e qualitativas. Significativo neste momento foi o surgimento do jornal A Tarde, fundado por Ernesto Simões Filho, em 1912. O diário inovou ao apresentar uma diagramação diferenciada, introdução de fotografias, um recurso pouco utilizado até então nos jornais da cidade. Estas mudanças fizeram muito sucesso e foram incorporadas pelos outros jornais como o Diário de Notícias e o Diário da Bahia, que passaram a estampar colunas mais mundanas bem como segmentar melhor o seu conteúdo (SANTOS, 1985). Estes jornais com conteúdo e abordagens inovadores se tornaram um espaço profícuo de debate da relação de Salvador com o novo contexto social, político e cultural. Naquele momento, a elite soteropolitana, assim como de outras capitais do país, também desejava estar em sintonia com o imaginário da modernidade cujas cidades como Paris e Londres eram as referências (COSTA, SCHWARCZ, 2000; LEITE, 1996; BARREIROS, 1997). Os editoriais de jornais como Diário de Notícias e a A Tarde discutiam a necessidade das reformas urbanas para a cidade. Por sua vez, as colunas sociais, ao noticiar as festas, os esportes, o footing e o cinema, se esforçavam para aproximar Salvador de um ideal de civilidade e modernidade europeu ou norte americano. Por fim, alguns periódicos, numa operação de fortalecimento de uma identidade regional, discutiam a necessidade de a Bahia recuperar a importância nos destinos da nação através da modernização sócio espacial da sua capital. É nesta direção que emergem as revistas ilustradas da cidade acompanhando o surgimento de uma série de outros periódicos do gênero no Brasil como O Malho, Fon-Fon, A Cigarra, entre tantas outras que buscaram apresentar aos leitores novas possibilidades de construção de um novo espaço social moderno, bem como uma nova visualidade corporal de si (OLIVEIRA, VELOSO, LINS, 2010; MARTINS, 2010). É possível datar a presença de revistas na capital baiana desde o final do século XIX. Localizamos revistas ilustradas como A Revista do Brazil, O Petiz, Revista Cívica e a Paladina do Lar no mínimo
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desde 1906. Estes periódicos já ensaiavam algumas questões relacionadas às sociabilidades urbanas (Revista do Brazil, 1906–1912) ou sobre a condição feminina naqueles novos tempos (A Paladina do Lar, 1910–1917). Entre meados da década de 1910 e o final dos anos 1930, que este tipo de imprensa, principalmente com as ilustradas, alcança consideráveis progressos no que tange as inovações gráficas, iconográficas de diagramação e tiragem. É por este caminho que os periódicos ilustrados se tornaram os principais impressos mundanos naquele momento, na Bahia e no Brasil. Em Salvador, acredito que esta mudança tenha relação com as transformações em curso na cidade. Naquela década, a cidade da Bahia experimentava uma relativa efervescência econômica, resultado do crescimento no setor do comércio. Além disso, entre 1912 e 1916, J. J. Seabra empreendeu uma série de reformas que favoreceram a constituição de novas sociabilidades muito discutidas e difundidas pela imprensa (LEITE, 1996). Esta gestão, anos mais tarde foi precedida por Francisco Góes Calmon que, entre 1924 e 1928, de certa forma continuou com as políticas urbanizadoras. É neste contexto, mais precisamente, entre 1916 e 1922, que surgiram as principais revistas ilustradas da cidade, como A Renascença (1916), Artes & Artistas (1920) e a Semana Sportiva (1921). Aqui, apresentaremos um pouco sobre a primeira e a última. A Renascença foi fundada em 1916, por Diomedes Gramacho e José Dias da Costa, personagens ligadas à fotografia e ao cinema, atividades que traziam as marcas da modernidade. Eles aprenderam o ofício com Rodolfo Lindemann, alemão radicado em Salvador e que foi um dos principais fotógrafos da cidade, a quem fizeram questão de homenagear ao intitular a empresa que fundaram de Photografia Lindemann, destacada em seu gênero e que deu origem à revista. A revista destinava em média 20 páginas para a publicidade de uma série de produtos e serviços, em sua maioria prometendo uma visualidade do corpo marcada pelo desejo, um corpo saudável e bem vestido. Por fazer parte de uma empresa fotográfica, A
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Renascença se destacava entre as suas concorrentes por publicar uma variedade infindável de imagens sobre Salvador e suas elites, retratando os indivíduos em questão sempre como cidadãos antenados com as mudanças advindas da modernidade. Já a Semana Sportiva foi idealizada pelos editores Celestino Britto e Mário Oliveira, personagens já conhecidos pelo envolvimento no universo esportivo da cidade através das suas presenças como sócios de clubes de futebol e remo de Salvador. Nas páginas do semanário, as práticas esportivas surgem como um fenômeno não só útil ao lazer da cidade, mas principalmente responsável por levá-la a um novo patamar de evolução racial, física e moral. Neste sentido, o tratamento que a imprensa deveria dar ao esporte tinha quer ser especial e não atrelado às colunas sociais ou meros divertimentos. Daí a necessidade de uma imprensa especializada, a única capaz de orientar o leitor no desenvolvimento atlético, belo, gracioso, funcional, enfim, correto do seu corpo (SANTOS, 2013). Acompanhando o tímido desenvolvimento urbano da cidade, estas revistas apresentaram uma série de colunas, editorais e, principalmente, fotografias sobre como o corpo deve ser e ser visto na nova Salvador. Em outras palavras uma pedagogia da visualidade de si é empreendida por estes impressos. Como realizar e se comportar em festas, como morar e estar nos espaços públicos, as ideias de amor e casamento, entre uma série de outras indicações e concepções sobre estilo de vida estão presentes nas páginas ilustradas. Seguramente, ao menos em relação à revista A Renascença e à Semana Sportiva, o mote delas era a preocupação com a visualidade do corpo nesta nova sociedade. Neste sentido, o esporte e a educação física foram pautas primordiais para os editores destes impressos. Vejamos como as fontes falam deste universo. UM CORPO ESPORTIVO, UMA BELEZA ATLÉTICA
Embora a presença das práticas esportivas, em Salvador, date desde o final do século XIX, nos anos 1920 é que ele foi, junto com o cinema, a principal forma de sociabilidade das elites locais. Naquela
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década, a cidade já contava com calendários esportivos consolidados, como os campeonatos de futebol e remo. Este e outros eventos tinham como principal espaço de manifestação as praças esportivas da cidade como a península de Itapagipe, que abrigava as pugnas de remo e os campos de futebol espalhados pelos mais diversos bairros. O grande destaque ficava por conta do Campo da Graça, um estádio moderno no centro e Salvador que, ao acomodar centenas de torcedores, atuava como um grande espaço de convergência de uma cultura esportiva na cidade. Além disso, existiam algumas dezenas de clubes que não só participavam das competições, como faziam das suas sedes sociais um espaço de festas reuniões, carnavais e outras práticas como o tênis e atletismo. Enfim, toda esta efervescência fazia parte de um contexto nacional e internacional de emergência de uma cultura esportiva que tinha como principais anseios uma excitação civilizada, o cuidado higiênico e eugênico do corpo que resultaria em uma nova visualidade de si, em sintonia com as próprias mudanças visuais da cidade em decorrência das reformas urbanas (LUCENA, 2000; ELIAS, DUNNING, 1992; JESUS 1999). Para completar, o desenvolvimento de uma imprensa moderna, que tinha nas revistas ilustradas e nas imagens fotográficas o grande carro chefe, forneceu as bases para que as mulheres e homens buscassem no desenvolvimento do corpo um modo de, assim como a cidade, ver e ser visto nos impressos. Podemos considerar que a relação entre corpo, esporte e cidade encontra um ápice na década de 1920 devido aos desdobramentos da Primeira Guerra na medida em que aquele conflito exigiu da sociedade: [...] o seu engajamento físico, em condições que rompam com a rotina do cotidiano e o consenso dos hábitos e ideias. Só desse modo elas podem vir a desempenhar um papel ativo, integrando uma força coletiva que adquire assim uma corporeidade extra-humana. Nesse desempenho físico em que o corpo é a peça central, os agentes da “ideia nova” se expõem a um intenso bombardeio sensorial e emocional, que se torna a substância enérgica em si mesma da ação, não devendo, pela lógica da sua própria economia, se desdobrar em considerações reflexivas ulteriores. Neste
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sentido, não é que a ação preceda o pensamento, mas mais do que isso, ela se nutre exatamente da abstinência dele (SEVCENKO, 1992, p. 32).
A educação física, neste sentido será a pedra de toque deste processo uma vez que, para os intelectuais, consistia em no único conjunto de saberes científicos e disciplinadores capaz de dar ao corpo a beleza necessária e desejada. Por possuir os recursos modernos da comunicação de texto e imagem, as revistas ilustradas serão fundamentais na vulgarização deste saber para além das faculdades de medicina e sua linguagem altamente científica. Não raramente é possível encontrar este tipo de mensagem nas páginas dos impressos locais: A educação física é o elemento primacial na formação das nacionalidades que desejam ser fortes para se impor ao respeito dos povos estranhos, sendo mais ainda uma circunstância de poderosa concorrência entre os que trabalham para o desenvolvimento intelectual das raças. Ser forte deve ser o ideal de todo homem (A RENASCENÇA, Salvador, nº 63, 26 de setembro de 1920, p. 39).
Em outras passagens, os editores procuram demonstrar os equívocos relacionados à visão que as pessoas tinham da educação física. Quando se diz educação física, nem todos compreendem o mesmo. Para alguns é um meio de substituir o médico por uma prática cotidiana de movimentos mais ou menos suecos, que devem impedir a extraordinária obesidade. Para outros, é a distração cotidiana de uma hora ou de alguns instantes, que deve evitar a neurastenia. Para outros, finalmente, é o acesso às pistas de corrida, às salas de armas, à piscina, à água, com a esperança de ser um dia campeão e de entrar na glória pela cinematografia ou pelo eco diário (SEMANA SPORTIVA, Salvador, nº 41, 14 de janeiro de 1922, p. 13).
Ao buscar deslegitimar o modo como parte da sociedade se relacionava com as práticas corporais, os editores da revista buscam compartilhar junto com os médicos e higienistas o monopólio do discurso correto sobre a educação física e a sua relação com o corpo.
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Tal ação parece ter uma função também comercial, pois credencia a revista a ser o suporte essencial para que se leia e se conheça a educação física com uma linguagem mais palatável. Exemplo disso é a distinção entre a ideia complexa de educação física defendida por médicos e intelectuais, jornalistas e a ideia simples seguida pela população. Enfim, para a Semana Sportiva: O nosso ideal é mais complexo: repousa na grande fórmula de Dement: “Saúde, Beleza e Virilidade”. Beleza – a educação física é o meio, o esporte é o fim: mas nem todos podem praticar o esporte, eis porque o médico é o nosso colaborador constante. É ele que, pelos seus estudos de laboratório, pelas suas experiências físicas e químicas nos dá os limites nos quais nos podemos mover. São os estudos que nos ensinam a fazer os movimentos de compensação, para dar mesmo aos especialistas de um esporte, o desenvolvimento harmônico de todo o corpo (SEMANA SPORTIVA, Salvador, nº 41, 14 de janeiro de 1922, p. 13).
Observem que a beleza complexa do corpo deve envolver o seu desenvolvimento harmônico e este resultado só pode ser alcançado na sua relação com a educação física, que só pode ser entendida de uma forma mais didática pela leitura da revista, a melhor tradutora da linguagem científica. Em uma sociedade cujos índices de alfabetização eram extremamente baixos, as imagens assumiam um papel central na pedagogização desta beleza corporal. Os editores buscam mobilizar amplamente os seus recursos da comunicação para publicar imagens de corpos firmes, retesados e em movimentos bruscos e ágeis. Estas imagens ocupam grande parte das páginas e na capa dos impressos. Muito comum, por exemplo, são as imagens de corpos seminus revelando o detalhe dos músculos bem trabalhados e definidos. BELEZA ATLÉTICA E BELEZA FEMININA
Consequentemente, a defesa de uma beleza atlética e higiênica não deveria ser indiscriminada. Pelo contrário, deveria respeitar
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as diferenças dita natural entre os sexos e a constituição física e funcional dos corpos. Tal controle sobre o tipo de corpo atlético a ser alcançado afeta particularmente as mulheres. Enquanto nos homens é valorizada a virilidade, a força dos músculos, na mulher as recomendações são para a prática de esportes que ratifiquem a delicadeza, graça e suavidade, entre outras características naturalizadas do corpo e beleza femininos naquele contexto. Em uma das suas edições, ao reproduzir um artigo de um escritor espanhol com o título ‘Comprometerão os desportos a beleza e a graça feminina?’, os editores da Semana Sportiva procuram orientar e justificar às leitoras e leitores quais as modalidades esportivas são mais importantes para o corpo e beleza femininos. O intelectual inicia questionando ‘onde e por quem, com autoridade, se disse que propaganda desportiva em todos os desportos e exercícios ao ar livre contribuíam para desenvolver a beleza do corpo feminino?’. Em seguida, ironiza ao dizer que ‘sempre queria ver o tipo de beleza de uma jogadora de foot-ball, depois de uns anos de lutas e a cara dos cientistas que lhe tivesse aconselhado aquele excelente desporto para a obtenção das formas que imortalizaram Afrodite’. Continua advertindo que caso todos os esportes fossem recomendados, ‘não faltariam, depois, ao ver esse produto de tal propaganda ‘autorizada” passear às avenidas ou “boulevards”, vozes que gritassem estridentemente: ‘o desporto está tirando a graça, o encanto e até a “coquetterie” da mulher...’ Podemos notar que a sua ideia de beleza feminina é inspirada nos estereótipos da Grécia clássica de, nas palavras dele, ‘desenvolvimento harmonioso de todas as partes do corpo’. Finalmente, conclui seu argumento defendendo que: Nestas condições, o tipo de beleza feminina que nos convém é o que já brilhantemente defenderam os ilustres escritores que me precederam, o tipo mais apto a procriação, à função mais sublime da mulher, que tem feito a grandeza de povos os mais civilizados (...). Se de fato nos recordamos que as mulheres fortes que fazem uma raça forte; com que a fraqueza das mães começa a dos homens; que não é possível nenhum progresso social durável se a
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mulher não intervém para beneficiar-se dele e ajudá-lo, mal podemos atinar com o desconhecer-se por momento o valor biológico dos geradores necessários e suficientes para obter um filho são, viável e suscetível de se beneficiar ao máximo dos efeitos da educação física. Para a mulher, pois, para a sua beleza e para a conservação de sua graça muito contribuem a ginástica sueca, as danças clássicas e a natação. Principalmente este último que é o mais adequado ao organismo feminino. É o exercício próprio para a mulher, naturalmente indicado para ela, pois além de ser um modificador do medo, emotividade peculiar ao sexo, dá-lhe o domínio de si mesmo harmonizando-lhe as formas (Revista Semana Esportiva, Salvador, Nº 117, 21 de julho de 1923).
As recomendações do intelectual são textos bastante expressivos sobre a forma como a beleza atlética do corpo feminino deve ser desenvolvida. Não necessariamente em ordem de importância, primeiro deve-se preservar no corpo atlético a feminilidade moderna, o que corresponde à um corpo esportivo delicado, gracioso. Qualquer coisa contrária a isso é extremamente maléfica à mulher, uma vez que pode masculinizar o seu corpo, algo que seria tido como antinatural. Em segundo lugar, a beleza do corpo feminino deve garantir a grande função “natural das mulheres”: sua capacidade de reproduzir e gerar filhos saudáveis, indispensáveis ao país em tempos de emergência de uma ideologia eugênica e militar que ao entender a ideia de raça enquanto a nação visava a regeneração desta. Em outras palavras, o corpo e a beleza esportivas são atravessados pelas diferenças de gênero: Baseados na teorização darwinista de que a atividade física atuava no fortalecimento orgânico e, portanto, no aprimoramento da espécie, muitos dos discursos e práticas que circularam no Brasil do início do século XX mencionavam que o refinamento da raça estava diretamente relacionado com o fortalecimento da população. Nesse sentido, não pouparam esforços para criar condições de educar, fortalecer e aprimorar o corpo feminino branco, observado como o principal instrumento para atingir uma raça branca, representada como superior e perfeita (GOELLNER, 2004, p. 4).
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Não foi à toa que os editores da Semana Sportiva constantemente reforçavam em suas páginas o desejo de ver as senhorinhas baianas praticarem modalidades esportivas que ratificassem aquele tipo de beleza em um esforço da constituir nas meninas baianas uma cultura física, tal como ocorria em outras cidades (DEVIDE, 2004; SCHPUN, 1997). Nada mais gracioso, elegante e distinto, portanto, que o cultivo do tênis, pois dotava as moças de uma elegância que ia desde os trajes utilizados nas pugnas aos movimentos suaves com a raquete e a bola. Para os editores do seminário: As formosas e promissoras jovens brasileiras, devem, pois, ao nosso modo de ver, lutar, com a mais absoluta das precisões, para que, dentro em breve, rivalizem, em simpatias, com o cultivamento do tênis, os demais esportes que já são comuns no Brasil. Os nossos votos e os nossos esforços não se farão recusar, cuja eficácia consiste nos atrativos que o jogo de tênis oferece, assim como, nos encantos que vulgarmente residem no belo sexto, tudo, portanto lhe sendo útil. Estamos certos que, futuramente as baianas fundarão um clube de tênis e a sua prioridade nesse particular servirá de exemplo as suas rivais dos outros estados do país, continuando a Bahia com a grande ventura de ser mãe, mais uma vez, das coisas auspiciosas e fecundas para a nossa raça (SEMANA SPORTIVA, Salvador, Nº 110, 12 de maio de 1923).
Ao longo das edições da Semana Sportiva, estes e outros textos eram acompanhados de uma série de imagens que eram dispostas em tamanhos consideráveis, geralmente ocupando uma página inteira ou mesmo a capa do semanário. As atividades esportivas mais recomendadas para o “belo sexo” eram o tênis e a natação. Na imagem seguinte encontramos uma legenda com os seguintes dizeres: ‘Lindas criaturas que realizam o encanto das praias cariocas, praticando a natação. Desenvolvem-se fisicamente e deslumbram os olhos dos enamorados da beleza’.
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Figura 1 – Semana Esportiva Nº 153 – (03 maio 1924, p. 18)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mais do que concluir uma ideia, eu espero que este pequeno texto possa problematizar mais a questão de como a beleza, mais do que socialmente construída, deve ser situada historicamente, de modo que entendemos como um corpo belo hoje carrega uma série de rupturas e continuidades sobre o modo como as sociedades conceberam e concebem o corpo. Embora atualmente uma ideia de beleza do corpo pela educação física não carregue mais uma conotação eugênica e higiênica tão latente como tempos atrás, a tentativa de legislar ou monopolizar as concepções de beleza do corpo, sobretudo o das mulheres, ainda são fortemente presentes. Por outro lado, assim como no passado, qualquer tentativa de controlar os sentidos da beleza e do corpo encontra sempre narra-
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tivas contrárias, o que me faz defender que não é possível pensar o corpo e a beleza sem pensar no conflito, nas tensões e circularidades que envolvem a forma como as pessoas se relacionam com estas representações e práticas. Ainda hoje, as mulheres que adotam uma beleza que defina o seu corpo fora do hegemônico ou do status quo são estereotipadas como homens ou masculinas. No entanto, o discurso ontem e hoje não tem sido capaz de impedi-las de dialogicamente pensar no seu corpo de forma relativamente autônoma. Enfim, espero que, ao pensar na historicidade do conflito que envolve ter um corpo cuja beleza pode ser entendida como uma forma de resistência ao estabelecido, pode-se fortalecer um conceito de beleza mais ambivalente, dialógico e menos impositivo ou estruturalista. Todo o debate envolvendo os discursos, representações e práticas sobre o corpo e a beleza não existe por si só, mas deve ser pensado na relação com os suportes que as dão materialidade. Problematizar sobre quem fala, aonde fala e como fala sobre o corpo e a beleza é fundamental para entender a diversidade e a tensão em torno das representações. Espero que a minha reflexão de não pensar no corpo e na beleza por si, mas nas revistas que publicavam estes conteúdos naquele momento, possa ajudar a considerar historicamente as mídias atuais não como instrumentos de dominação e controle de narrativas, mas também como espaços de disputas. Do ponto de vista político, espero que estas preocupações teóricas à luz do passado possam estimular as mulheres e os homens a continuarem buscando, na história e no cotidiano, formas múltiplas de beleza dos seus corpos. Não penso aqui no passado como um exemplo a ser seguido, mas como um conjunto de experiências que revelam que, por mais que determinados grupos ou mídias sociais tentem impor “o belo”, as pessoas sempre estarão se movimentando dentro e fora destas próprias mídias e buscando formas contra hegemônicas de ser e estar na sociedade. O fato de isso não ser uma novidade pode influenciar a continuar a acreditar na beleza que não necessariamente seja a de O Boticário.
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Referências BARREIROS, Márcia Maria da Silva. Educação, cultura e lazer das mulheres de elite em Salvador, 1890-1930. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1997. COSTA, Ângela Marques da. SCHWARCZ, Lilia Moritz. 1890-1914: no tempo das certezas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. DEVIDE, Fabiano Pries. A natação como elemento da cultura física feminina no início do século XX: construindo corpos saudáveis, belos e graciosos. Movimento. n. 10, v. 2, Porto Alegre, 2004. ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric. A busca da excitação. Lisboa: Difel, 1992. GOELLNER Silvana Vilodre. “As mulheres fortes são aquelas que fazem uma raça forte”: esporte, eugenia e nacionalismo no Brasil no início do século XX. In: Recorde: Revista de História do Esporte, Rio de Janeiro, n. 1, v. 1, 2008. JESUS, Gilmar Mascarenhas de. Construindo a cidade moderna: a introdução dos esportes na vida urbana do Rio de Janeiro. In: Estudos Históricos, n. 23, v. 13, Rio de Janeiro, 1999, p. 17-40. LEITE, Rinaldo Cesar Nascimento. E a Bahia civiliza-se...: ideais de civilização e cenas de anti-civilidade em um contexto de modernização urbana: Salvador, 1912-1916. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1996. LUCENA, Ricardo de Figueiredo. O esporte na cidade: aspectos do esforço civilizador brasileiro. Tese (Doutorado em Educação Física) – Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000. MARTINS, Ana Luiza. Revistas em revista: imprensa e práticas culturais em tempos de República. São Paulo (1890-1922). São Paulo: Edusp, 2001. OLIVEIRA, Cláudia de. VELLOSO, Monica Pimenta; LINS, Vera. O moderno em revistas: representações do Rio de Janeiro de 1890 a 1930. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. SANTOS, José Wellington Aragão. Formação da grande imprensa na Bahia. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1985.
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SCHPUN, Mônica Raisa. Beleza em jogo: cultura física e comportamento em São Paulo nos anos 20. São Paulo: SENAC, 1997. SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo: sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
Larissa Molina Alves
A IMAGEM DO CORPO E A IMAGEM BELA DAS REVISTAS DE MODA
O mundo que a moda nos apresenta é constituído predominantemente de imagens. A depender do local e do período histórico, elas auxiliaram a difundir certos padrões de beleza, alguns destes, bastante excludentes e inalcançáveis. Mas continuamos seguindo a moda, pois ela permite acompanhar ou adotar para si o que é o belo no momento. E quando percebemos algo como belo, geralmente identificamos isso como algo ligado aos nossos sentidos e ao reconhecimento de admiração e prazer. Por outro lado, também avança na contemporaneidade, a ideia de que é possível outras possibilidades de apreciação do belo. Em paralelo, tem surgido um novo e complexo cenário comunicacional, no qual tem se reivindicado algumas demandas sociais, incluindo a moda. Diante desses aspectos, o presente texto traz uma reflexão envolvendo as imagens de moda, os corpos e a beleza a partir de duas questões estreitamente relacionadas. A primeira é sobre apresentação de padrões de beleza para os corpos impostos pelas imagens das revistas de moda e as possíveis abordagens sobre o belo atualmente pela mídia especializada no tema, diante de mudanças de comportamento. Já a outra reflexão que queremos propor se refere à experiência proporcionada pelas imagens de moda nesse contexto
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midiático, capaz de incentivar e despertar variadas sensações. Nesse sentido, o que buscamos não é trazer respostas, mas promover essa discussão sobre o belo diante da relevância simbólica das revistas de moda para o tema da beleza e do corpo, levando em conta as transformações da sociedade contemporânea. MÍDIA, MODA E IMAGINÁRIOS CORPORAIS
Segundo Maisonneuve e Bruchon-Schweitzer (1999), para diversos pensadores e artistas, a beleza sempre foi algo em que o corpo humano esteve como primeiro grau de referência. A compreensão do belo também foi interrogada por pesquisadores de todo tipo como filósofos, artistas plásticos e poetas, psicólogos sociais e psicanalistas, sociólogos e historiadores do gosto. O tema da beleza ou o julgamento se algo é belo ou não geralmente é algo que todos se consideram aptos a falar. Além disso, todos desejam a conquista de um corpo e de uma aparência bela de si. Assim, está estabelecido na cultura e no comportamento a necessidade de atender a um ideal de um corpo belo e, ainda, fashion de acordo com as tendências da moda. As pessoas, além de se utilizarem do vestuário, também se submetem a diferentes intervenções corporais, como as cirurgias plásticas, procedimentos estéticos e exercícios, e a utilização de cosméticos, cortes de cabelo, penteados, tatuagem, entre tantos outros procedimentos, em busca do belo. Deste modo, na era pós-moderna, como aponta Svendsen (2010), a configuração da identidade pessoal é um projeto corporal e, por sua vez, o corpo se tornou um objeto privilegiado da moda. Sabemos que as nuances do padrão de beleza variam conforme o tempo e lugar e se dão muitas vezes nos detalhes, no entanto, a moda vem estimulando, mais recentemente, e principalmente para as mulheres, padrões de beleza nos quais predominam o ideal de um corpo magro, alto, pele clara, além de estimular um corpo jovem como sinônimo de corpo saudável, onde o envelhecimento e as marcas do tempo é algo a ser atenuado. Mas para cada parte do
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corpo haverá regras e, desse modo, é que observamos o quanto estes padrões podem ser excludentes e inalcançáveis. Svendsen (2010, p. 94) diz que a televisão, os jornais, revistas e a mídia operam enquanto um poder disciplinador que nos propõem um ideal para o eu físico sempre fora do alcance de quase todos. Assim, a moda privilegia determinados corpos e os que não se adequam as suas regras e formas, não conseguirão atender ao ideal de beleza. Segundo o autor, a nossa percepção do corpo humano é sempre dependente das modas dominantes de uma época e, por sua vez, a nossa percepção das modas depende de como elas são representadas visualmente em pinturas, fotografias e outros meios. E é nesse sentido que acreditamos que é importante refletir sobre os sentidos que as imagens de moda provocam. Sobre a expressividade e os sentidos estimulados pela imagem de moda, Cidreira (2011) aponta que a fotografia de moda, principal meio de difusão iconográfica da indústria da moda, seja através de anúncios publicitários, de ensaios fotográficos ou editoriais de moda, não é, necessariamente, artística, mas é estética, na medida em que responde a uma certa expectativa e seu efeito visa o envolvimento do público, estimulando o desejo. Também pontua que neste tipo de imagem, o movimento corporal e a expressividade são fundamentais, bem como a apresentação do vestuário que está relacionada também ao belo, à sedução, do que propriamente a funcionalidade ou materialidade da roupa. Nesse contexto, devemos levar em conta a relevância simbólica que as revistas de moda passaram a ter para o tema da beleza, auxiliando a criar muito do que compõe o imaginário de um corpo belo na sociedade. Esse é um formato que por muito tempo atuou como principal meio de difusão de divulgação da moda, desenvolveu um estilo próprio no conteúdo que mescla imagem e texto, informação e entretenimento, e sobretudo, a partir de suas imagens que são concebidas tendo em vista a apreciação da beleza, há uma valorização das fotografias, do design e da produção, a partir das roupas, maquiagem, cenários, utilizando manequins e formando imagens com o objetivo de serem perfeitas.
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Vigarello (2006, p. 174) mostra que as revistas de moda foram multiplicadas a partir dos anos 1960 em países como a França, e auxiliaram a generalizar uma cultura da estética e dos cuidados com o corpo. Neste período, foi quando se pode observar que o peso do visual se impôs e foram realçados na cultura, principalmente no universo feminino. As mulheres passaram a consumir cada vez mais tais revistas. Elas inauguraram, segundo o autor, a “beleza mercadoria” ou a “beleza publicitária”, em que um modelo de corpo da manequim passou a ser influenciado com “a profusão da imagem e a cultura generalizada da revista” (VIGARELLO, 2006, p. 174). E nesse contexto em que o corpo se tornou “o mais belo objeto do consumo”, aos poucos, a beleza se transformou numa beleza “para todos”, e não aquilo que até então parecia se revelar como natural (desprovido de intervenções) ou como uma exceção. No entanto, muito antes, o modelo de beleza e de comportamento feminino foi propagado através da visualidade. Segundo Mendonça (2014), foi inicialmente com as pandoras, depois com as gravuras e só mais tarde é que as fotografias nas revistas femininas passaram sugerir amarras e moldes para aquilo que seria a “mulher”. E não se pode esquecer que, como indica Maisonneuve e Bruchon Schweitzer (2004), os cânones de beleza, como os padrões, emanam geralmente de classes privilegiadas, além do que é possível observar na história que pintores, escultores e costureiros modelaram a imagem da feminilidade. “Em muitos casos mulheres são representadas vestidas (ou despidas) por homens e não por elas mesmas” (MAISONNEUVE e BRUCHON-SCHWEITZER, 1999, p. 7, tradução nossa). Mendonça (2014) também traz a perspectiva de que aimagem da revista de moda sugere uma experiência estética e oferece uma oportunidade de adentrar num “um mundo de sonho”, que existirá só ali, que é ao mesmo tempo fonte de beleza, prazer e desejo, como também de ansiedade e tirania. “Assim a imagem que oprime é a mesma que liberta” (MENDONÇA, 2014, p. 33). Daí entendemos como é possível que as mulheres estabeleçam, muitas vezes, uma relação paradoxal com as revistas de moda, pois estimulam a
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satisfação, a beleza e a expressão e a liberação do corpo, mas também aprisionam esse mesmo corpo em padrões e despertam sensações de frustração. Mesmo que a moda e a mídia continuem instituindo tais padrões de formas corporais e de beleza de modo predominante, percebemos quanto o momento atual tem sido marcado por contestações aos ideais de beleza retratados por tanto tempo, principalmente pelas revistas de moda, femininas e as relacionadas a saúde. No entanto, o cenário midiático tem se transformado diante da adesão a diferentes tecnologias, o que impactou profundamente a moda e seu sistema. Além disso, naturalmente também ocorrem mudanças nos valores da sociedade e no comportamento. Questões relacionadas ao racismo, igualdade de gênero, crise econômica, cidadania e sustentabilidade, por exemplo, estão em expansão. Assim, a experiência cultural contemporânea é marcada pela emergência de diversas demandas sociais e o questionamento dos valores que estão sendo levados em consideração na produção midiática. Todas essas questões em algum aspecto se relacionam com o comportamento. Mas no contexto da moda e da beleza, observamos que se destacam as que desejam refletir sobre como promover mais diversidade e representatividade em suas imagens, para que não apenas alguns grupos sociais continuem sendo privilegiados. É neste sentido que algumas revistas nos últimos anos têm atuado, até mesmo para continuar sendo um formato relevante, já que têm perdido espaço em relação as outras mídias na divulgação da moda. É possível observar que têm aderido a esses valores na sua produção e agora suas edições encontram-se repletas de porta-vozes dessas demandas sociais, geralmente a partir de pessoas de grande projeção. Nas imagens das revistas de moda, portanto, vemos, cada vez mais, pessoas que representam algumas causas, possuem características fora do ideal já estabelecido ou mesmo que pertença a algum tipo de minoria social, como de pessoas negras, gordas, velhas e trans, entre outras. E nas imagens das revistas de moda, isso significa que a beleza acaba sendo representada por elas também.
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É claro que devemos considerar que esse é um contexto ainda pouco consolidado, pois em muitos casos ainda são iniciativas pontuais, além de atenderem a uma demanda de mercado de consumo. No entanto, demonstra importância pela repercussão e alcance que essas imagens geralmente ganham. Isso abre espaço para que mais pessoas se identifiquem também como belas e se sintam incluídas na dinâmica da moda e da beleza. É algo que pouco se questionava na mídia especializada em moda há pouco tempo e que certamente continuará ganhando outros contornos diante do impacto que tais discussões têm provocado. Dentre alguns exemplos recentes de imagens veiculadas em revistas em sintonia com essas questões, podemos destacar a produzida pela revista Elle Brasil em maio de 2015 com uma capa-espelho, convidando a leitora a se ver na capa da revista. Ela também espalhou a imagem de Juliana Romano, uma jornalista e blogueira gorda, numa foto que ela aparecia nua e sem retoques. Já a Vogue Brasil, em maio de 2016, estampou a modelo Naomi Campbell e trouxe imagens dela com outras mulheres negras brasileiras, entre elas, a jornalista Maju Coutinho, a cantora Alcione, e a ex-senadora Marina Silva. E em janeiro de 2019, a Vogue México exibiu na capa a atriz Yalitza Aparício, de origem mixteca, que foi indicada como melhor atriz no Oscar pelo filme Roma, como referência de talento e beleza para seu país.
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Figura 1 – Imagem da revista Vogue Brasil (2016) Fonte: <https://vogue.globo.com/moda/moda-news/noticia/2016/05/maju-coutinho-pousa-ao-lado-de-naomi-campbell-em-editorial-de-moda.html>Acesso em: 31 mar. 2019.
Além desses exemplos, a nível do conteúdo de imagens e dos textos das revistas, é possível observar que algumas novas perspectivas sobre o comportamento e a beleza também têm orientado o conteúdo jornalístico de moda. Como a moda é considerada um tema feminino, era comum orientações de conduta e hoje são defendidos a liberdade sobre o próprio corpo. Assim, observamos que, no momento atual, alguns não indicam mais a roupa ideal para cada corpo, como ter um “corpo de verão”, afinar o rosto com maquiagem ou apresentar o cabelo liso como única opção de cabelo bonito. Sendo assim, propaga-se uma beleza mais livre e não para agradar o outro ou para atender algum ideal, mas para satisfazer a si mesmo.
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A revista Elle Brasil, em setembro de 2017, lançou a campanha #VamosPensarSobreBeleza. Ao utilizar essa hashtag na rede social Instagram, os leitores eram convidados a apresentar a sua foto para que a revista pudesse divulgar vários tipos de beleza possíveis, incentivando quebrar padrões e alcançar uma beleza mais autêntica e menos consumista. Meses depois, a campanha virou uma coluna fixa no site e na revista impressa que passou a funcionar como um espaço de diálogo para repensar o olhar do indivíduo em relação a sua imagem. Alguns assuntos tratados foram: a desmistificação do corpo magro como sinônimo de corpo saudável; o significado sociocultural do uso de tranças; a opção pelo visual de cabeça raspada; a liberdade para o uso dos fios grisalhos; entre outros modos de aparecer. IMAGENS DE MODA E O BELO
Já podemos discutir a função essencial das narrativas midiáticas e das imagens da moda para difusão de padrões de comportamentos na sociedade e, do mesmo modo, o quanto elas refletem valores do que é considerado certo ou errado, bonito e feio, agradável ou não. Assim, possuem as suas especificidades e são concebidas com o objetivo de gerar variadas sensações. Por isso, também gostaríamos de procurar refletir neste texto sobre a experiência proporcionada por essas imagens de moda num contexto também midiático, mais em diálogo com as concepções que se tem feito para o entendimento do belo e do sublime. Segundo Cidreira (2014, p. 97), a noção de belo está associada a certa complacência em torno de algo ou alguém que suscita a contemplação. Segundo a autora: “O belo é uma questão de gosto pois ele é uma espécie de sentido comum não fundado em conceitos, mas na comunicabilidade dos juízos em relação aos sentimentos” (CIDREIRA, 2014, p. 297). No entanto, os valores e padrões de cada comunidade é que legitimam o que é considerado belo, pois eles interferem nos hábitos perceptivos e promovem variações sobre
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o que afeta os nossos sentidos. E é por isso que eles podem mudar, pois o gosto reage as transformações históricas. Neste sentido é que, de acordo com Eco (2004, p. 277), além da ideia de algo como belo relacionado ao prazer e as coisas agradáveis, em ambientes filosóficos diversos também avança a ideia de sublime. Esta não é nenhuma novidade contemporânea, já sendo discutida desde o século 17 e que coloca em jogo a participação sentimental do criador e do fruidor na obra de arte ao identificar nelas coisas ou fenômenos terríveis, apavorantes e dolorosos, nem sempre despertando apenas o prazer. Mesmo assim, segundo o autor, a experiência do sublime adquire muitas daquelas características atribuídas anteriormente à experiência do belo e assim, as duas instâncias não se apresentam totalmente separadas. É a partir disso que podemos compreender que apreciação do belo também passa por imagens incômodas, confusas e que não representam situações tidas como aceitáveis ou mesmo agradáveis em determinado contexto cultural. Conforme Galard (2015, p. 17), está havendo uma ampliação do campo da percepção estética que normalmente suscita reprovação pois, em algumas imagens, a exemplo das fotografias de Sebastião Salgado, é possível sentir que a beleza pode combinar com a dor. Assim, entendemos que a imagem pode ser bela no sentido de suscitar emoção estética, mesmo que mostre situações referentes ao que geralmente não se considera belo. Tal percepção também pode ser identificada nas imagens de moda contemporâneas que têm reivindicado, em alguns contextos, uma apreciação mais libertária, evidenciando situações diferentes do que geralmente retratam e exibindo formas que não representam o que é normalmente aceito. Cidreira (2014) afirma que hoje experimentamos um período bem democrático quanto ao que seria um ideal de corpo belo “em que o que atrai o olhar, o que suscita admiração, o que nos arrebata, tanto pode ser um corpo de formas suntuosas, silhuetas que ressaltam a feminilidade ou ainda figuras andróginas” (CIDREIRA, 2014, p. 97-98).
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Um exemplo de revista de moda brasileira que investe em imagens próximas dessa percepção é a FFWmag. Diferente das revistas que tratam da moda sugerindo ideias de tendências e elegância das quais já mencionamos, ela investe em imagens de aparências estranhas, que trazem a ideia de desconforto e nas quais modelos aparecem com olhares, gestos e posturas fora dos padrões e até mesmo podem se referir a um comportamento violento. Embora também apresente peças para consumo, as imagens atendem a expectativa de um público aberto a outra proposta de beleza nas imagens. Como ocorre, por exemplo, na edição de número 46, de 2016, quando na imagem de capa a modelo, além de estar enumerada como um animal, está com o corpo desalinhado e coberto por verduras e sacos plásticos.
Figura 2 – Capa da revista FFWMag (2016) Fonte: <https://ffw.uol.com.br/app/uploads/ffwmag/2016/11/ffwmag-42-capa-final3-654x925.jpg Acesso em: 01/04/2019.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da exposição dessas ideias, destacamos que a moda e a mídia influenciam no comportamento e auxiliam a definir o que é belo. As revistas de moda, que historicamente se constituíram como fonte de referência de elegância, refinamento e beleza, contribuem na percepção corporal e em aspectos da estruturação da sociedade. Num cenário comunicacional complexo, esses veículos não ditam mais sozinhos os padrões de beleza para o corpo, mas continuam estimulando o desejo, possuindo relevância simbólica e auxiliando a definir o que é uma aparência bela. Neste processo, também convém refletir sobre a experiência sugerida a partir das suas imagens, capaz de despertar variadas sensações. Diante das mudanças de comportamento e valores partilhados na sociedade contemporânea, a pouca diversidade nas imagens de moda se apresenta como um desafio. Por influência da circulação das imagens e as novas maneiras de interação social possibilitadas pelas redes sociais digitais, as revistas de moda têm buscado atender a algumas demandas sociais em expansão na atualidade, criando novas maneiras de representar o belo na imagem de moda. Acreditamos que somente assim refletem o momento do tempo presente e é o que certamente fará com que continuem sendo um formato midiático relevante. Além disso, outros grupos sociais procuram projeção positiva, mas também são novos possíveis consumidores. E como as revistas atuam como intermediárias das grandes marcas, compreendemos que tal conduta também ocorre no contexto de ampliação dos mercados de consumo. Também procuramos discutir se certos padrões de beleza estão se modificando, e observamos que alguns ideais ainda se mantêm como referência no imaginário social com auxílio das narrativas da mídia, por isso não necessariamente poderá significar a quebra de padrões. Na percepção de Lipovetsky e Serroy (2015, p. 353), pode ser que no futuro haja a multiplicação de mídias que exibam mulheres mais reais, de uma beleza menos padronizada, o que já é algo positivo, mas não se conhece sociedade sem modelo ideal de beleza,
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sem valorização e desejabilidade do belo; e a atenção do corpo belo conforme os padrões vigentes têm sido uma cobrança mais acentuada e um objetivo buscado cada vez mais também por homens. Este é um momento de transição no qual se abrem novas e muitas possibilidades de beleza, pois entendemos que o belo é referente ao gosto, e este também pode mudar conforme as transformações históricas. Tendo como fundamento as considerações de Cidreira (2014) e Eco (2004), argumentamos que o belo se refere também as sensações do sujeito que julga o belo, não apenas nas formas dos objetos. Deste modo, há uma ampliação no campo da percepção estética, do qual as imagens de moda fazem parte e estão abrindo a possibilidade de outros padrões de beleza e abordagens para o tema junto aos valores sociais atuais. Em tempos de generalização das imagens no cotidiano, principalmente das fotografias efêmeras das redes sociais, atualmente as revistas também buscam atuar nessas plataformas. É neste espaço que privilegia a fotografia e em que qualquer um pode ser um produtor de conteúdo é que circula a imagem de moda contemporânea. Ainda é influenciada pela mídia especializada que introduziu no imaginário social alguns padrões que estão se modificando ou sendo associados. Portanto, o texto não traz respostas definitivas, mas busca promover a reflexão sobre o belo diante da relevância simbólica das revistas de moda.
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Referências CIDREIRA, Renata Pitombo. A moda numa perspectiva compreensiva. Cruz das Almas: EDUFRB, 2014. CIDREIRA, Renata Pitombo. Moda, aparência e representação. VIII Colóquio Internacional Franco-Brasileiro de Estética da Bahia, Salvador, 2011. ECO, Umberto. O sublime. In: História da beleza. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2004. GALARD, Jean. Imagens belas demais. In: Beleza exorbitante: reflexões sobre o abuso estético. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Editora Fap-Unifesp, 2015. LIPOVETSKY, Gilles. SERROY, Jean. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista. Tradução de Eduardo Brandão. Companhia das Letras: São Paulo, 2016. MAISONNEUVE, Jean. BRUCHON-SCHWEITZER, Marilou. Le corps et la beauté. Paris: PUF, 1999, p. 05-30. MENDONÇA, Carla Maria Camargos. A experiência estética: a revista Vogue e os blogs de moda e fitness. dObras, São Paulo, n. 15, v. 7, 2014. Disponível em: https://dobras.emnuvens.com.br/dobras/article/view/71. Acesso em: 20 mar. 2019. SVENDSEN, Lars. A moda e o corpo. In: Moda: uma filosofia. Tradução de Maria Luisa X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. VIGARELLO, Georges. História da beleza. Tradução de Léo Schlafman. Ediouro: Rio de Janeiro, 2006.
Fernanda Barbosa dos Santos
O CORPO BELO NA PUBLICIDADE E NA MODA
Assimilando o conceito de Belo, presente na moda, em nossas relações pessoais e na comunicação, especialmente na propaganda, temos como objetivo visualizar a participação da mulher negra nas campanhas publicitárias1; bem como problematizar a noção do corpo belo feminino. Para isso adotaremos uma abordagem estética, preocupada com o Belo, tendo o campo da moda e da comunicação como ambientes para nossa investigação. Tal perspectiva se deve principalmente porque a comunicação e a moda são, neste caso, os vínculos fundamentais do diálogo presente nas sociedades e servem de guia para as nossas primeiras impressões sobre a atuação da mulher negra na publicidade de moda. Assim, podemos observar o que tem sido considerado Belo, as características físicas e estereotipadas de modelos, que normalizam um padrão de beleza e comumente é reproduzida de forma preconceituosa e excludente pela mídia, a mulher negra. 1 Esse texto faz parte de uma pesquisa apresentada como resultado de trabalho de conclusão de curso. E como objeto de pesquisa analisamos os anúncios com alguma representatividade negra na revista de moda Glamour, no período de março a dezembro de 2017.
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Apresentaremos, portanto, alguns exemplos de anúncios publicados na revista de moda Glamour na qual questionamos como tem sido representada a beleza negra nos anúncios veiculados nela, já que a revista é uma das mais populares no mercado editorial brasileiro de moda, de acordo com informações do Instituto Verificador de Comunicação (IVC). Faremos considerações sobre a relevância do corpo para esse padrão instituído por intermédio da moda e da comunicação, protagonizado assim nos anúncios publicitários. E para isso utilizaremos como metodologia os referenciais teóricos que reiteram as questões sobre o tema com base em alguns autores como: Umberto Eco, História da beleza (2004), Renata Pitombo Cidreira, A moda numa perspectiva compreensiva (2014), Sueli Carneiro, Identidade feminina (1993) e Nízia Villaça, A edição do corpo: tecnociência, artes e moda (2007). Além de outros autores para fundamentar nosso questionamento dentro da comunicação e, especificamente, nos anúncios impressos, que adota o corpo humano, ou partes dele, como personagem, geralmente protagonista, usufruindo dos benefícios trazidos pelo produto ou serviço anunciado. Nesse sentido, uma das questões que guiam a presente análise é a seguinte: O corpo da mulher negra está no status de “corpo belo”? Buscamos compreender, dessa forma, o que esses anúncios revelam sobre as questões da moda, do Belo e do corpo da mulher negra na publicidade de moda. CONSIDERAÇÕES SOBRE O CORPO E A MODA
O corpo é configurado como símbolo da sociedade, nele é atribuído sentidos de caráter, valores e aspectos ligados à cultura e ao sistema de cada comunidade. É através dessa percepção de corpo que surgem as primeiras roupas para cobri-lo, sendo uma maneira de constituir a aparência e, mais tarde, as distinções sociais e de classes. Atrelado à vestimenta, cria-se uma identidade social, que interage e forja regras de relações entre os grupos. É na transição do século XIX e XX que o corpo se torna objeto de preocupação na relação com a visualidade e aparência – temas
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que nos interessam particularmente –, em função da revolução industrial, da modernidade e da sociedade de consumo, consequentemente, “assim como podemos considerar a beleza como um valor associado à civilização, o culto ao corpo é aspecto intimamente ligado à construção do moderno” (CASTRO, 2007, p. 22). E a roupa – peça mais próxima do corpo –, revela uma série de aspectos relativos ao sujeito. Por isso, Villaça, reforça: A aderência ao corpo mais evidente é certamente a roupa: embalagem que vela e desvela, simula e dissimula. Fisicamente autônoma, ela é, entretanto, intimamente ligada ao corpo do qual recebe odores e calor e ao qual oferece um estatuto. O tecido cortado ou drapeado torna-se imagem no momento em que é vestido (NIZIA VILLAÇA, 2007, p. 142).
Fomos historicamente vestidos desde o nosso nascimento, mostrando o valor da roupa, para cobrir e configurar as pessoas. Nesse sentido, o corpo ganha, portanto, com a vestimenta, a adequação possível de transformação que caracteriza a persona, ou seja, ela é fundamental para o aspecto visual e comportamental dos seres, que vai além da aparência; mas que também é constituído por ela. Não é por acaso que as revistas de moda vendem as roupas em manequins e não simplesmente desenhadas ou fotografadas. Na sua variedade, a roupa decide o que mostrar ou esconder e fixa, simbolicamente, certas partes anatômicas (VILLAÇA, 2007, p. 142).
Verificamos essa perspectiva nas peças publicitárias onde o corpo é utilizado como cabide nos mais variados anúncios que, algumas vezes, aparece “protegido por uma camada” (VILLAÇA, 2007, p. 142) que intermedeia esse aparecimento. Podemos observar, por exemplo, a figura 1: nessa configuração, o corpo serve de cabide para as joias anunciadas, a fim de evidenciá-las e fixá-las. Apenas partes do corpo são cobertas na tentativa de fixar os olhares nas joias, gerando o desejo de possuir. A roupa utilizada não tem muitos detalhes, justamente para prender esse olhar. A modelo
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é a ativista, cantora e compositora Lady Gaga; conhecida por ser extravagante, que pode simbolizar uma mulher forte, ajudando a promover o produto.
Figura 1 – Lady Gaga em campanha para marca de joias. Fonte: Revista Glamour, nº 63, 2017.
Neste anúncio, o movimento do corpo, principalmente das mãos, juntamente com a roupa que cobre partes deste corpo, ressalta as joias utilizadas pela modelo. Um exemplo do uso constante do corpo pela publicidade e, principalmente, pela moda, com objetivo de demonstrar as possíveis transformações corporais com objetos, adereços e roupas, possibilidades estas, criadas por intermédio da moda e publicizadas pela propaganda de moda, levando ao desejo de consumo. E esse corpo, protagonizado nos anúncios, segundo Novaes (2011), adquire, na contemporaneidade, um estatuto nunca antes
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experimentado. Tornou-se também objeto do sujeito e de maior importância, principalmente, para a moda, como verificamos no anúncio acima destacado. O corpo vestido ressignifica a aparência da modelo, em companhia com a roupa, o cabelo e a maquiagem que cobrem o corpo, evidenciando o produto anunciado sem negligenciar o corpo – principal suporte para o produto, para demonstrar seu uso e para chamar a atenção do leitor. Sem desprezar a edição de arte e fotografia. Quando pensamos especificamente na moda, reconhecemos que logo depois que as criações são produzidas estão nos manequins e à venda para os consumidores. Cria-se uma expectativa no desfile, mantém-se essa expectativa com os manequins nas vitrines das lojas e é dada uma continuidade com os anúncios publicitários, despertando o desejo no consumidor para adquirir o produto. Essa influência exercida pela moda e pelo regimento sedutor da comunicação declara a forma de se vestir e de aparecer, expressa na dinâmica do comportamento das pessoas, e lança pistas sobre a nossa identidade, considerando as roupas importantes para definir essa imagem. É, portanto, uma representação simbólica, histórica e cultural, constatando esse processo de consumo, como efêmero. E mesmo tendo como função vestir, proteger e cobrir o corpo, limitando ou ampliando nossas possibilidades de movimento, a moda também atua gerenciando aspectos sociais e culturais. Com seu efeito transitório, a moda eleva o grau de consumo, permitindo experimentar novas tendências referentes à aparência que envolve, principalmente, o corpo e sua forma. As curvas e cinturas tão desejadas pelas mulheres da década de 1950, por exemplo, ou as cirurgias modeladoras do século XXI são ações que acionam o comportamento e os modos de aparência com uma promessa da forma ideal. Desse modo, a moda é “inegavelmente um fenômeno cultural”, como afirma Ruth Joffily (1991), um estímulo para a sociedade, considerando o modo de aparência e os costumes de cada cultura, de cada população e de cada época; são acordos feitos e
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admitidos pelas sociedades, mesmo que de forma inconsciente, em alguns casos. CONSIDERAÇÕES SOBRE O BELO
O Belo, para a estética, está associado a um processo de criação, fruição e expectativa. O Belo é muitas vezes identificado ou confundido com a própria criação, mas também está relacionado a uma sensação de prazer a partir da presença ou percepção de um objeto. Para tentar esclarecer alguns aspectos sobre o Belo, acionaremos, portanto, Umberto Eco, (2004), que diz: Na concepção neoclássica, como de resto em outras épocas, a Beleza é vista como uma qualidade do objeto que percebemos como belo e por isso recorre-se as definições clássicas, como “unidade na variedade” ou “proporção” e “harmonia” (ECO, 2004, p. 275).
As definições da qualidade do objeto que percebemos como Belo, a harmonia e a proporção são características do Belo, mas como destaca Eco (2004), não se pode negar que existe uma linha de gosto e graça que reside no objeto e independe do seu criador. Segundo Umberto Eco (2004), no século XVIII, começaram a impor alguns termos como “gênio”, “gosto”, “imaginação” e “sentimento”, que deixam entender que estava se formando uma nova concepção do Belo. As ideias de “gênio” e “imaginação” remetem a quem inventou ou produziu algo Belo, ou aquela capacidade de produzir com criatividade. E o “gosto” seria a capacidade do expectador, uma sensação pessoal, característica de quem aprecia o objeto. Eco ressalta que o mais importante é perceber que o que interessa não são as características do objeto em si, mas o sentimento que um objeto é capaz de provocar: diz respeito às qualidades, às capacidades ou às disposições do sujeito: “Seja aquele que produz, seja aquele que julga o Belo”. E ainda no século XVIII, se iniciam as definições da experiência do Belo de acordo com as capacidades
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estéticas do sujeito, ou seja, Belo é algo que como tal se mostra para nós (ECO, 2004, p. 275). E da mesma forma que Eco contextualiza a ideia do Belo no século XVIII, sendo resultado do modo como aprendemos e como analisamos o gosto, isso se refere como percebemos o efeito que ele produz e como se mostra para nós, estando ligado aos sentidos e ao reconhecimento de um prazer. Umberto Eco (2004) salienta as considerações que o filósofo Immanuel Kant fez na Crítica da faculdade de juízo. Para Kant, as características do Belo são: prazer sem interesse, finalidade sem escopo, universalidade sem conceito e regularidade sem lei. A beleza, portanto, não é suscetível a uma definição, sua intenção é firmar parâmetros para o julgamento estético não sustentado em conceitos, mas em regras implícitas que poderiam eventualmente ser assumidas por todos. Embora a noção de Belo seja comumente definida como aquilo que é ordenado, sincronizado, agradável, e por despertar o sentimento de admiração, as motivações, a reciprocidade e a forma como é exposto o objeto são fundamentais para construção do que é Belo ou do que pode ser considerado como Belo. Como destaca Cidreira: De todo modo, sabe-se que a beleza é comumente associada à simetria, à proporção, justamente porque esses elementos supostamente geram uma sensação agradável. A grande questão em torno da simetria é que ela tanto pode ser agradável e proporcionar uma sensação de prazer quando se dá o ato perceptivo, quando pode ser monótona, ao eliminar a variedade. Ainda assim, afirmar que a sensação de prazer se dá na justa relação entre as coisas não significa estabelecer qual seria a medida desta justa relação (CIDREIRA, 2014, p. 96).
Assim, observamos que o Belo, nas concepções mais contemporâneas, não pode ser compreendido, apenas como algo organizado, harmonioso, simétrico e regular. Isso vem perpassando a arte, a moda e a comunicação, instâncias fundamentais para construção
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da consciência social, de compreensão de grupos e da própria noção de identidade. O que é considerado como Belo pode ser uma característica presente em determinado período da história, revelando um padrão estabelecido pelo senso comum, mas a nossa capacidade de compreensão e imaginação se constitui ao longo das épocas. O CORPO “BELO”
Motivado por um desejo de modelar o corpo, a moral e a ideologia da alma se submetem ao corpo, que se submete a roupa, a fim de alcançar um ideal estético que agrade a sociedade, tornando-se uma cena do cotidiano. É cada vez mais comum ver pessoas vestidas com roupas super apertadas, assim como faziam as mulheres que usavam espartilhos para moldar o corpo, com objetivo de “reescreve o corpo, dando forma e expressão diferentes”, pois a roupa é seu principal aliado nessa nova regra, da remodelação e rearranjo corporal e gestual. E sendo o corpo, o lócus principal de construção identitária, que aos poucos foi ganhando ênfase, por causa das motivações formadas pela interação na sociedade, buscando sempre um corpo ideal, na tentativa de monopolizar essa configuração de identidade e essa sociedade. As imagens femininas, por exemplo, foram exploradas ainda mais nas propagandas, com as transformações, o movimento modernista e a industrialização, estimulando o consumo de produtos. A partir das observações dos autores sobre o Belo, tentaremos identificar o que tem sido estabelecido como corpo Belo, atentando não só “às regras de Beleza, pois elas são tiradas de modelos estabelecidos e da observação daquilo que agrada e desagrada, quando apresentados” (ECO, 2004, p. 276), mas também a construção da recepção, presente, principalmente, nas mídias de comunicação e veiculação, demandando a aceitação desses corpos na contemporaneidade.
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Apesar disso, gozar da beleza não significa possuí-la, é um sentimento que todos nós podemos ter. Ao estabelecer um juízo de gosto ou de valor, estamos dizendo que tal corpo é Belo e outro não. O corpo também pode ser visto Belo independente do padrão estético estabelecido. Nesse sentido, uma flor é um exemplo típico de coisa bela, e justamente nesse sentido entende-se também porque faz parte da Beleza a universalidade sem conceito: porque não é juízo estético aquele que afirma que todas as flores são belas, mas aquele que diz que tal flor particular é bela, e porque a necessidade que nos leva a dizer que esta flor é bela não depende de um raciocínio estético baseado em princípios, mas de nosso sentimento. Temos então, nessa experiência, um “livre jogo” entre a imaginação e o intelecto (ECO, 2004, p. 296).
Compreendemos então que os sentidos são ativados no estado de contemplação do objeto, acionando o sentimento para perceber o Belo como uma sensação de prazer. A partir das observações de Eco e Kant sobre o Belo, podemos considerar também que para o corpo ser Belo não se institui um conceito, contudo trata-se do que diz respeito à aparência, ao contexto social, e aos padrões estabelecidos, que interferem nas percepções. As configurações que nos fazem reconhecer alguma coisa como Belo são influenciadas também pela moda, pois, como já citamos, ele se refere à aparência. A arte também tem sua parcela de contribuição em suas manifestações artísticas, os estilistas e criadores das roupas bebem dessa fonte, do que é comunicado como Belo pela arte. Se inspirando e trazendo para o corpo e para aparência uma nova dimensão de volume, cor, corte e modelagem, ou seja, um novo traje, que pode desenvolver nosso mundo pessoal. Considerando cada período da história, a moda e a arte produzem possibilidades perceptivas e visuais, seguindo em um ciclo de orientação coletiva, tanto para os criadores inspirados pela arte, como para as pessoas que são estimuladas por ambas,
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cooperando nas produções de moda, podendo até voltar ao passado, mas com um objetivo em comum: definir o que é Belo naquele momento. A moda e a comunicação são “ferramentas visuais e funcionais, que nos reenviam a imagens do nosso tempo” (CIDREIRA, 2005, p. 82), numa expressão que orientam os indivíduos, mesmo que de maneira imperceptível, ao Belo. A moda é compreendida como reflexo da arte, mas ela própria também é dinâmica de artisticidade e de afirmação do corpo Belo, que direciona o gosto pessoal com suas multiplicidades e efemeridade. Podemos considerar ainda que mesmo quando não é assimilada como Belo, a figura representada através da moda sempre transmite algo, estabelecendo uma experiência visual e quem sabe estética, referindo-se às criações artísticas da arte e da moda. E ao longo dos séculos, um padrão de beleza é gerado pela indústria cultural, concebida como uma única forma de ser, e que hoje está sempre mudando. Mas no que diz respeito à publicidade, ela ainda é excludente: por exemplo, a beleza que se vê são de mulheres magras, brancas e de cabelos lisos. Pois como afirma Carneiro (1993): “As mulheres negras fazem parte de um contingente de mulheres que não são rainhas de nada, que são retratadas como as antimusas da sociedade brasileira, porque o modelo estético de mulher é a mulher branca” (CARNEIRO, 1993, p. 191). Tivemos nossa identidade construída a partir de elementos históricos, culturais e religiosos, onde fazemos parte de um grupo de mulheres idealizadas como objetos, antes pertencentes às sinhazinhas e senhores de engenhos, hoje as empregadas domésticas ou mulatas para exportação. Projetadas como produto de consumo, mas não como detentora de uma beleza, presente apenas para apontar sua existência. Tomamos como exemplo o anúncio veiculado em julho de 2017.
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Figura 2 – Anúncio mostra mulher negra como coadjuvante entre modelos brancas. Fonte: Revista Glamour, nº 63, 2017.
Neste anúncio publicado na edição da revista do mês de Junho, observa-se o exemplo da modelo negra contracenando com outras modelos brancas. Ela está em cena, mas não assume o papel principal; a posição corporal e sua expressão gestual revelam sua posição de coadjuvante e direcionam o olhar para as outras modelos em evidência. A mulher negra aparece integrando o anúncio assinado pela Levis, marca de Jeans. O corpo da mulher negra não está no status de “corpo Belo”, o problema da beleza negra está na construção da identidade social dessa mulher, que está fora dessa categoria de beleza; está associado às construções concebidas sobre essa mulher. Em primeiro lugar, o ser negro era relacionado a pessoas pobres, que trabalhavam exaustivamente sob o sol e que exerciam a força bruta, ou seja, contraria-
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mente aos princípios de ideal do Belo: claro, ordenado e prazeroso; gerando uma subalternidade das pessoas negras, e se opondo ao reconhecimento de outros padrões existentes, tendo como modelo de beleza a mulher branca, tipicamente europeia: nariz e lábios finos, magra e de cabelos lisos. Conforme apresenta Schaun (2008), na propaganda, o corpo é utilizado como personagem, idealizado e manifestado como objeto de desejo e paixão, um corpo esteticamente perfeito dentro dos padrões de beleza da época, compondo juntamente com o texto o anúncio, que emerge para uma sociedade machista e de consumo, ou seja, a beleza da mulher negra, não é evidenciada como tal. De acordo com Ana Lúcia de Castro, em seu livro Culto ao corpo (2007), das cirurgias realizadas no Brasil, 80% tem finalidade estética, enquanto apenas 20% são reparadoras, isto é, têm uma relação direta com a saúde. Há, portanto, um rompimento nas fronteiras de limites do corpo com o crescimento do mercado de beleza e a preocupação de estar dentro desse “padrão” estabelecido pela moda; as mulheres são as mais preocupadas com a aparência e o corpo. E isso se dá nos processos das relações sociais entre os agenciadores e instituições, indivíduo-sociedade, provocando uma obsessão pela aparência, centralizando o corpo nessa cultura contemporânea. E de acordo com Ana Lúcia de Castro, “a mídia [...] explora este traço cultural, mediando a relação indivíduo-sociedade, sinalizando tendências, impondo e reciclando demandas dos mais diversos segmentos de leitores-expectadores” (CASTRO, 2007, p. 44). Para provocar o desejo do expectador, a publicidade impulsiona essa relação através da mídia. Ela utiliza dessa predisposição da sociedade – o comportamento – para conquistar os olhares dos expectadores, para criar imaginários e sonhos, na tarefa de “seduzir consumidores e vender bens simbólicos ou materiais”. Sendo assim, não podemos dissociar o corpo da moda, principalmente vestido, e da publicidade. Pois são associações que caracterizam um conjunto de atitudes, gostos, comportamentos e de visualidade, ou seja, estão ligados e compõem a identidade das pessoas, dos grupos e das sociedades.
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A partir de uma estratégia de comunicação, cria-se uma narrativa que informa as particularidades dos produtos ou serviços, mas também se incentiva o consumo, que nem sempre é um produto, mas, pode ser um de estilo de vida, uma ideia, uma sensação e, com isso, gera o sonho de uma recompensa. É aqui que o corpo entra em cena para compor essa idealização. “A imagem serve de polo de agregação às diversas tribos que formigam nas megalópoles contemporâneas” (VILLAÇA, 2007, p. 138). Nos anúncios referentes à moda, é inegável o uso do corpo, pois se destacam nos sentidos. Primeiro cria-se uma espécie de referência, segundo de beleza e terceiro de padrão, e modificando a regra e o papel dos objetos, de agregar valor social e econômico, revolucionando com a apresentação do corpo. Assim, o esforço por um corpo midiático e Belo associou-se ao cotidiano das pessoas, e para satisfazer a esse padrão, elas fazem regimes alimentares na tentativa de modificar o corpo, ou recorrem às cirurgias modeladoras e plásticas para “colocar no lugar” o que não está ou está fora do padrão, além disso, há também massagens modeladoras que unidas a práticas de esportes e alimentação adequada, prometem redução das medidas. Ou seja, há uma grande expectativa por esta adaptação do corpo como se todos fossem únicos. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nos últimos anos, o corpo tem ganhado cada vez mais espaço na sociedade e nas discussões referentes ao regimento da subjetividade e identidade, desse ser expansivo. É sobre a presença deste corpo, utilizado pelas marcas que estamos refletindo. O organismo biológico corporal se tornou objeto de mercado e suas delimitações múltiplas e plásticas são cada vez mais modificadas. As tecnologias que moldam o corpo em função de um corpo ideal, que é vislumbrado pelas agenciadoras do consumo, as grandes marcas que exploram o uso do corpo como se fosse uma mola propulsora da sociedade, interferem no sentido de viver das pessoas,
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consequentemente, nas suas decisões corporais, criando um sonho de corpo perfeito. O anúncio publicitário vem, portanto, sendo um intermediador da cena de consumo, utilizando o corpo como protagonista, gozando dos benefícios do serviço e/ou produto anunciado nessa narrativa. Neste sentido, o corpo supera os limites do próprio organismo, modificando-se e transformando-se em prol do culto ao corpo, do corpo ideal, servindo como um meio de comunicação e interação para as marcas e produtos, que de maneira geral, procuram ressaltar os valores sociais e gerais que ela projeta para o consumidor e a personalidade que a marca atribui ao usuário. Desse modo, nossa maior inquietação é pela representatividade da mulher negra em anúncio publicitário. Vimos que sua beleza é inquestionável e que, não cabe a nós julgá-la como feia ou bela. O que queremos compreender é se ela está sendo projetada nesta perspectiva de status que o corpo tem atingido na contemporaneidade. As estratégias comunicacionais e de publicidade têm impulsionado um ideal de corpo feminino. Mas é preciso fugir de um padrão, de uma unidade. Ou da aparência, da cor e do cabelo. A pluralidade dos anúncios depende dessas imagens, dessas pessoas que são tão numerosas em nosso país e, no entanto, pouco representadas nas mídias. Trata-se de uma questão de conscientização do corpo da mulher negra como imagem de representação, fundamentando valores e identidade social. E, ciente das modificações corporais e do que antes era considerado como Belo e hoje não é mais, dentro dos padrões de exteriorização e aparência, pudemos constatar que a identidade é uma construção social, corespondente de uma definição social. Sendo assim, reconhecemos que o corpo da mulher negra foi marcado como propriedade, como objeto de gozo e como geradora de mão de obra escrava para os escravocratas, forjando assim, uma incongruência sobre a mulher negra como objeto sexual, e não como uma mulher para idealizar como bela. A partir da compreensão do Belo pela perspectiva da estética para identificar qual corpo tem sido definido como Belo, levando
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em consideração os padrões de beleza utilizados ao longo dos séculos e da análise e classificação dos anúncios como ferramenta de identificação do corpo feminino negro na revista Glamour, podemos evidenciar – pelos dados da pesquisa – que o corpo utilizado como padrão de beleza ainda é o de modelos brancas, magras e de olhos claros. Revelando assim, o poder que a cultura e a moda têm em estabelecer e reverberar distinções étnicas e sociais, demonstrando até hoje como essas interações e desigualdades são marcadas, principalmente, com as mulheres negras. A mulher negra aparece em muitos anúncios analisados apenas como presença, e não como representatividade. Os aspectos da beleza negra genuína são muito raros nos anúncios estudados, ou seja, o corpo da mulher negra não está no status de “corpo Belo”, e pode até aparecer, mas a representação dada não é de associação com a beleza.
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Referências CARNEIRO, Sueli. Identidade feminina. In: Cadernos Geledés IV. São Paulo: Geledés – Instituto da Mulher Negra, 1993. Disponível em: https://www. geledes.org.br/wp-content/uploads/2015/05/Mulher-Negra.pdf Acesso em: 06 set. 2017. CASTRO, Ana Lúcia de. Culto ao corpo e sociedade: mídia, estilos de vida e cultura de consumo. 2 ed. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2007. CIDREIRA, Renata Pitombo. A moda numa perspectiva compreensiva. Cruz das Almas: UFRB, 2014. CIDREIRA, Renata Pitombo. Os sentidos da moda: vestuário, comunicação e cultura. São Paulo: Annablume, 2005. ECO, Umberto. História da beleza. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2004. JOFFILY, Ruth. O jornalismo e a produção de moda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991. NOVAES, Joana de Vilhena. Beleza e feiura. Corpo feminino e regulação social. In: História do corpo no Brasil. Mary Del Priore, Marcia Amantino (Orgs.) São Paulo: Editora Unesp, 2011. SCHAUN, Angela, SCHWARTZ, Rosana. O corpo feminino na publicidade: aspectos históricos e atuais. Jornal da ALCAR – Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia, nº 3, 2012. Disponível em: http:// www.ufrgs.br/alcar/jornal-da-alcar-no-3-agosto-de-2012/O%20corpo%20 feminino%20na%20publicidade.pdf. Acesso em: 06 set. 2017. VILLAÇA, Nízia. A edição do corpo: tecnociência, artes e moda. Barueri: Estação da Letras Editora, 2007.
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CORPOS MAGROS, CORPOS BELOS: IDEAL DE BELEZA E MÍDIA
Concebemos o corpo enquanto sede da significação e dos processos simbólicos (MERLEAU-PONTY, 1999), através do qual apreendemos objetos e sensações e somos colocados como ser-no-mundo em relação com o outro, atuando com gestualidades e comportamentos diversificados. Justamente por se tratar da sede da experiência, a forma de aparição do corpo é uma forma de deixar-se ver, uma doação de um mundo sensível ao sujeito da experiência (CIDREIRA, 2013). A autora (2013) pontua que, para compreender a existência, a aparência é abordada nas variadas formas de apresentação do corpo, especialmente nas suas relações com os modos de vestir, uma vez que a expressão dos modos de aparecer, seja através da vestimenta ou modelação corporal, estabelece um dos primeiros vínculos entre os homens aculturados. A questão das aparências para Maisonneuve e Brucho-Scheweitzer (1999) envolve sobretudo o agradar ao outro enquanto agrada a si mesmo: o olhar do outro e os signos de atração que ele nos mostra ou nos recusa, vêm, assim, confirmam ou não, a
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experiência do nosso espelho, fortificando ou mortificando a nossa imagem do corpo, lugar bastante sensível da nossa identidade (MAISONNEUVE; BRUCHO-SCHEWEITZER, 1999, p. 27, tradução nossa).
O corpo, além de estar ligado à natureza (funções e necessidades comuns à sua espécie), entra em interação com os semelhantes, vivenciando uma experiência de imagens, afetos, códigos e rituais (MAISONNEUVE; BRUCHO-SCHEWEITZER, 1999). Neste sentido, a discussão neste trabalho centra-se nas significações atribuídas aos corpos a partir de convenções sociais que modificaram a relação dos indivíduos com os próprios corpos. Gradativamente, o corpo vem assumindo posição central no tocante à configuração da identidade, existindo enquanto algo plástico que pode mudar constantemente para se adequar às novas normas à medida que elas emergem (percebemos a capacidade de modificar para agradar) (SVENDSEN, 2010). Serão observados elementos pertinentes na mídia voltada à corporeidade, englobando saúde, beleza e bem-estar, especificamente na revista Boa Forma. A revista se declara ser uma fonte de informação confiável relativa à mudança de vida, dedicando-se às dietas, nutrição, fitness e beleza. Para este ensaio, foram averiguadas seis capas da revista publicadas, desde janeiro até junho de 2018, nas quais elementos textuais e imagéticos são levados em consideração. CORPOS MAGROS: COMPORTAMENTO E DISCURSO MIDIÁTICO
Diversos autores datam uma intensificação do culto ao corpo a partir do século XX, e há elementos variados que corroboram para estas perspectivas. O desnudamento do corpo através da flexibilização da roupa fez com que a aparência física dependesse mais do corpo e o cuidado com este tornou-se uma necessidade. “As saias se encurtam, as meias valorizam as pernas e os tecidos vão sendo substituídos por mais macios que salientam as curvas do corpo” (PROST, 1992, apud CASTRO, 2007, p. 27).
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Del Priore (2000) observa as modificações na família – famílias menores, urbanas com mulheres ocupando o mercado de trabalho – bem como um aumento da longevidade enquanto elementos cruciais da sociedade que valoriza a juventude e o progresso. Assim, o corpo da mulher se despiu das vestimentas e se cobriu de cremes, vitaminas, colágenos e procedimentos cirúrgicos, a fim de enfrentar o envelhecimento e a possibilidade de ganho de peso. A autora (2000) defende que a tríade que configura a identidade do corpo feminino estaria composta de beleza, saúde e juventude. A obesidade começa a tornar-se um critério determinante de feiura, representando o universo do vulgar, em oposição ao elegante, fino e raro. Curiosamente, esbeltez e juventude se sobrepõem. Velhice e gordura, idem (DEL PRIORE, 2000, p. 75).
Não surpreendentemente a magreza é o componente que convoca esses três elementos, sendo intensificado pela busca pelo bem-estar que vem acompanhado de uma harmonia. Para Lipovetsky (2016), este culto ao bem-estar é uma das manifestações da cultura hedonista, que se apoia na valorização do corpo e dos seus prazeres na qual o neonarcisismo está “obcecado tanto pela imagem padrão do corpo quanto pelo desejo de encontrar prazeres oferecidos pela sensação de leveza física e interior” (LIPOVETSKY, 2016, p. 85). Esta obsessão pela magreza (que seria uma leveza subjetiva) é descrita por Lipovetsky (2016) como parte da busca por tornar a vida mais leve, sob a qual prevalecem produtos e cozinha “mais leves”, fobia do sobrepeso e dietas visando emagrecimento. Del Priore (2000) sustenta justamente o caráter libertário da magreza, com a qual as mulheres teriam mais mobilidade, teriam corpos mais ágeis e rápidos. Até a Idade Média, a magreza causava horror por evocar elementos como fome, pobreza e melancolia, sendo considerada a mulher bela a “gorda e carnuda” (LIPOVETSKY, 2016). A mudança para os perfis esbeltos é indicada a partir do século XIII, chegando ao momento em que “a espessura e o volume começam
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a perder seu prestígio, o medo de engordar se afirma ainda mais” (LIPOVETSKY, 2016, p. 89). A magreza que era marca de pobreza hoje é um ideal estético, apoiado em argumentos médicos associado a uma mudança de comportamento – o excesso de peso é apresentado como perigoso e as imagens midiáticas corroboram na necessidade de um corpo magro (LIPOVETSKY, 2016). O papel da mídia (jornais, revistas, cinema, publicidade, redes sociais digitais) nesta propagação de um ideal corporal é um papel prescritivo e disciplinador, tratado com Del Priore (2000) como um algoz. Provoca-se uma tirania da perfeição física do ideal corporal, que é inalcançável até mesmo para os profissionais, modelos, mesmo sendo os que mais se aproximam da norma, tem ainda seus corpos alterados por edição computadorizada de imagens (SVENDSEN, 2010). “Com as modelos esqueléticas ou anoréxicas, a leveza obedece a uma lógica hiperbólica e publicitária, típica da hipermodernidade” (LIPOVETSKY, 2016, p. 92). Castro (2007) destaca o papel da imprensa escrita para a divulgação de informações relativas ao corpo, apoiadas em especialistas, a fim de dar dicas relativas a cuidados com o corpo no campo da sexualidade, moda, dieta, beleza e atividade física. O papel do veículo de comunicação seria o de filtrar e “traduzir” o conhecimento científico para o universo e linguagem das leitoras. A fotografia de moda, por exemplo, busca progressivamente apresentar uma imagem na qual o corpo da modelo é portador de valores simbólicos (SVENDSEN, 2010). Nos últimos anos, algumas celebridades se expressaram publicamente insatisfeitas em relação a edição de imagens em revistas voltadas para o público feminino, a exemplo de Lupita Nyong’o que criticou a revista britânica Grazia UK por ter alterado os seus cabelos crespos em novembro de 20171, ou da cantora brasileira Manu Gavassi que demonstrou descontentamento com a alteração das suas formas corporais na revista
1 http://activa.sapo.pt/celebridades/2018-02-28-Famosas-contra-o--ab-uso-dePhotoshop. Acesso em: 28 maio 2018.
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VIP em 20162, em ambos os casos, a insatisfação não foi suficiente para tirar as impressões das bancas. O não reconhecimento de si ocorrendo por parte das próprias celebridades que são fotografadas endossa a ideia de um corpo inalcançável mesmo para os sujeitos em evidência; o que Svendsen (2010) chama de uma ficção, mesmo que sejamos cientes da edição computadorizada, esta ficção não perde sua função normativa para leitoras e consumidoras daqueles produtos midiáticos. A formação de uma mídia específica voltada para o corpo segue um processo semelhante, narrado por Castro (2007). No Brasil, as duas publicações voltadas a corporeidade de maior destaque são a Corpo a Corpo (Editora Escala) e Boa Forma (Editora Abril). Castro (2007) observa que, no processo de transformação de guia para um revista, houve uma modificação sobretudo na abordagem do corpo, em que se enfatiza a busca pela qualidade de vida. Dentre os aspectos detectados pela análise, Castro (2007) constata que a revista se tornou um dos artifícios “de autoajuda disponíveis aos indivíduos nas sociedades atuais, colaborando para a reflexividade, fundamental para a construção do projeto self, ou para a elaboração das identidades na contemporaneidade” (CASTRO, 2007, p. 53). A autora acrescenta ainda que ao observar a trajetória das revistas é possível perceber como o culto ao corpo se posiciona e se dissemina na sociedade. Para este trabalho, centramo-nos na análise da revista Boa Forma por se tratar da publicação com maior tiragem do segmento, segundo o Instituto Verificador de Comunicação (IVC)3, com uma circulação de mais de 78 mil exemplares, além dos 1,3 milhão de seguidores na rede social Facebook 4, 622 mil seguidores
2 https://emais.estadao.com.br/noticias/gente, manu-gavassi-critica-propria-capa-da-vipe-reclama-de-edicoes-exageradas, 100000371200. Acesso em: 28 maio 2018. 3 Fonte: http://publiabril.abril.com.br/marcas/boa-forma/plataformas/revista-impressa. Acesso em: 30 maio 2018. 4
Fonte: https://www.facebook.com/revistaboaforma/ Acesso em: 30 maio 2018.
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no Instagram5, 90.800 seguidores no Twitter 6 e, conforme o próprio site da revista, uma visitação de quase 2 milhões de usuários7. Castro (2007) aponta que Boa Forma tematiza a estética, utilizando a linguagem da musculação, do universo fitness, dialogando com a possibilidade de um corpo condicionado fisicamente e bonito; capitalizando uma tendência de comportamento que vai além das dimensões de estética e saúde (CASTRO, 2007). REVISTA BOA FORMA: ELEMENTOS CONSTITUTIVOS
No mercado desde 1984, a revista Boa Forma já passou por alguns reposicionamentos, quando deixou de ser uma espécie de guia para esportistas profissionais e tornou-se uma revista voltada para um público não especialista, universitário e feminino em meados de 1992 e 1993, segundo Castro (2007). Atualmente, a própria revista descreve-se como fonte de informação para a mulher que busca mudança de estilo de vida, tal concepção já discutida por Featherstone (1995), enquanto aspectos de uma individualização, auto expressão e consciência de si estilizada, no qual o estilo é um projeto de vida, manifestado através da individualidade e na especificidade do conjunto – roupas, práticas, experiências, aparências e disposições corporais. Especializada em dieta, nutrição, fitness e beleza, a marca desafia e motiva a leitora a transformar seus hábitos e seu corpo. Ao estabelecer metas atingíveis e inspiradas em histórias reais, BOA FORMA estimula a autoconfiança dela para dar o impulso inicial e, depois, seguir firme em todos os seus novos objetivos.8
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Fonte: https://www.instagram.com/boaforma/ Acesso em: 30 maio 2018.
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Fonte: https://twitter.com/revistaboaforma Acesso em: 30 maio 2018.
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http://publiabril.abril.com.br/marcas/boa-forma/plataformas/site. Acesso em: 30 maio 2018.
Fonte: http://publiabril.abril.com.br/marcas/boa-forma/plataformas/revista-impressa. Acesso em: 30 maio 2018. 8
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Percebemos, apenas nesta breve descrição, aspectos elencados por Castro (2007) – são argumentos estéticos e técnicos (utilizando-se de médicos ou profissionais de educação física, por exemplo) para o convencimento de tornar-se bela e atraente, mantendo uma vida saudável e, sobretudo, procurando sentir-se bem. De forma multimidiática, a revista situa-se na versão impressa mensal, em um site atrelado a rede MdeMulher (portal do grupo Abril), nas redes sociais Facebook, Instagram e Twitter e com um aplicativo Atitude Boa Forma (disponível para smartphones com sistemas Android ou iOS). Nas páginas do Facebook e Twitter, o engajamento ocorre através da replicação das matérias do site, compartilhando o link originário do site da revista. No perfil @boaforma no Instagram9, as capas mensais são divulgadas, bem como são repostadas fotografias e vídeos de celebridades em momentos de treino ou relaxamento, bem como pessoas anônimas que utilizam a tag10 #atitudeboaforma em suas postagens. Verificamos ainda postagens de imagens com mensagens motivacionais (alguns temas foram objetivos da semana, sonhos, persistência) ou interativas (perguntas sobre os exercícios favoritos ou imperativos interpelando os comentários na publicação). Há a possibilidade de fotografias e relatos que utilizam a tag serem publicados nas páginas da revista impressa. A apropriação dessas redes (RECUERO, 2009) por um veículo de imprensa (e não um indivíduo) contribui para o processo de seleção e difusão dessas informações especializadas, processo que pode ser de conflito, competição e cooperação – sendo o último o que verdadeiramente aparece, através da colaboração dos
9 Nesta rede social, há uma presença relevante de pessoas públicas que fazem publicações voltadas à corporeidade e ao universo de saúde, bem-estar e beleza; tais personalidades, conhecidas como blogueiras fitness são objeto de análise da pesquisa de mestrado em andamento.
As tags servem como marcação para associar uma publicação a um tema ou discussão, servindo como link de busca. Quando o usuário clica na tag é direcionado a todas as postagens relacionadas ao tema.
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leitores que utilizam a tag proposta pela própria revista nas suas publicações pessoais. O aplicativo Atitude Boa Forma promete auxiliar na busca de uma vida saudável, oferecendo direcionamentos personalizados para as atividades físicas, dietas e peso ideal. Existe a possibilidade de se tornar um usuário com mais benefícios caso se torne assinante do serviço. O site da revista publica matérias classificadas nas sessões: dieta, fitness, beleza, nutrição, culinária saudável, saúde, moda, celebridades e estilo de vida; e dispõe de uma área de vendas para produtos divulgados e recomendados na revista e no site e uma outra área para o serviço de assinatura de produtos do gênero alimentício, como pães, doces e snacks. A presença destas duas ferramentas de compra no site da revista atestam elementos da cultura de consumo (FEATHERSTONE, 1995), onde não há apenas o consumo de valores de uso ou utilidades materiais, mas um consumo de signos. “A publicidade da cultura de consumo sugere que cada um de nós tem a oportunidade de aperfeiçoar e exprimir a si próprio, seja qual for a idade ou a origem de classe” (FEATHERSTONE, 1995, p. 123). Algumas das matérias do site fazem parte da publicação impressa, sendo adaptadas conforme o veículo. Mesmo com a variedade de sessões citadas acima, na capa da revista impressa ganham relevância apenas três destas: fitness (treinos), dietas e estilo de vida. Examinando as seis capas da revista publicadas em 2018 (de janeiro a junho), verificamos aspectos comuns aos corpos apresentados e elementos textuais. Das seis mulheres que foram fotografadas, apenas uma havia sido modelo profissional anteriormente (Ana Hickman); as outras eram atrizes (Erika Januza, Thaís Araújo, Bianca Bin), a cantora Claudia Leitte e a jornalista Fátima Bernardes. Tais personalidades representariam bem os Olimpianos descritos por Edgar Morin (1997), que articulam o imaginário e o real para os leitores – são pessoas públicas, articuladas à grande mídia, cujo aspecto “humano” é revelado na matéria da revista.
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Com este propósito, a revista aciona a capacidade de identificação, tratando-as como modelos de conduta.
Figura 1 – Capa de Janeiro a Junho de 2018 da revista Boa Forma Fonte: https://boaforma.abril.com.br/ Acesso em: 30 maio 2018.
As vestimentas deixam barriga, braços ou nádegas expostas, sendo trajes de banho (biquíni ou maiô) ou trajes esportivos (shorts ou calças), vemos assim uma identidade procurada no corpo e as roupas são efetivamente uma continuação imediata deles, uma vez que reescrevem o corpo, dando-lhe forma e expressão diferenciados (interferindo assim na sua plasticidade) (SVENDSEN, 2010). O cenário das fotografias predominante é o ambiente de praia (apenas uma das capas tem uma pista de corrida como cenário), no qual é mais comum os corpos estarem descobertos, deixando suas formas em evidência.
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Não há dobras nas barrigas, nem marcas de estrias ou celulites em nenhuma destas, o que reforça o ideal estético da magreza, apoiado no argumento médico, em que o excesso de peso é considerado perigoso e incompatível com a beleza feminina, e na mudança comportamental e cultural, oriunda desta nova leveza afetada diretamente pela moda, o cinema, novas práticas de lazer relacionadas aos esportes e à praia (LIPOVETSKY, 2016). É possível categorizar as chamadas de matérias de capas em três grupos: treinos, dietas e estilo de vida (havendo as que se enquadram em mais de um grupo). As matérias atribuídas às modelos de capa variam entre orientações de treinos utilizados para alcançar aquela forma física em evidência na imagem, bem como estratégias alimentares para uma melhoria pessoal. Listamos abaixo as matérias e suas respectivas personalidades: t Janeiro: “A série #lacradora de Claudia Leitte para definir o corpo e ter energia no Carnaval”; t Fevereiro: “A reviravolta de Bianca Bin: Como ela ganhou definição e controlou a ansiedade sem radicalismo”; t Março: “Erika Januza: Conheça o treino HIIT na esteira e os cuidados da atriz com o cabelo crespo”; t Abril: “Mais feliz, Mais livre – Fátima Bernardes – Ela prova que é possível: Se reinventar após os 50 + Ter pique para dançar todos os dias + Emagrecer 7 kg sem grandes restrições; t Maio: “Thais Araújo: as estratégias alimentares que controlam a alergia respiratória, melhoram o sono, dão energia e mantêm a forma da atriz”; t Junho: “Ana Hickman: Hoje peso 10 kg a mais do que na época de modelo, mas ganhei músculos e fôlego com muay thay”; Diante apenas destes elementos textuais, constatamos a noção de um corpo que pode ser constantemente esculpido e modelado, na busca de uma forma corporal que traga mais satisfação pessoal. “Do joelho ao culote, do braço à panturrilha, o corpo é visto como
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fragmento; cada parte podendo ser reesculpida, consertada, desconectada de um todo” (DEL PRIORE, 2000, p. 93). Além desta característica plástica do corpo, o bem-estar é um dos elementos de busca oferecidos pela revista em suas matérias. Este culto ao bem-estar é uma das manifestações da cultura hedonista, que se apoia na valorização do corpo e dos seus prazeres na qual o neonarcisismo está “obcecado tanto pela imagem padrão do corpo quanto pelo desejo de encontrar prazeres oferecidos pela sensação de leveza física e interior” (LIPOVETSKY, 2016, p. 85). Um outro aspecto desta amostra é a presença majoritária de mulheres com mais de 30 anos (Ana Hickman, 37; Erika Januza, 33, Claudia Leitte, 37; Thaís Araújo, 39) destacando a presença de Fátima Bernardes, a única que teve a idade citada enquanto aspecto relevante no conteúdo sobre si (55 anos). Conforme a área de publicidade da revista Abril, o público da Boa Forma é composto em 73,9% por mulheres com mais de 30 anos (entre faixas etárias de 30 a 39, 40 a 49 e mais de 50 anos). Verifica-se uma exposição de figuras com as quais as leitoras devem identificar-se, seja pela faixa etária (omitida) ou pelas características físicas e comportamentais, ou projetar-se, enquanto metas a serem alcançadas, com a mídia reforçando dois elementos: uma crença de cada um em sua imagem e uma preocupação de se identificar com uma imagem de si que seja bem sucedida (NOVAES, 2011). CONSIDERAÇÕES FINAIS
Enquanto mídia, a revista Boa Forma oferece ao seu público elementos de culto ao corpo diluídos em temáticas pertinentes ao dia a dia de uma mulher, das classes A, B e C (audiência da mesma). A abordagem de dietas que auxiliam na perda de peso com “lanchinhos proteicos”, “elementos compatíveis” ou “mudanças de hábitos” nas edições observadas demonstra o mérito atribuído à alimentação para que se alcance esta boa forma conceituada pela revista. A prática de atividade física é aludida de maneira praticável para todas; “vai que dá” ou “apenas 12 minutos por dia” são alguns dos
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tratamentos aos exercícios que irão ajudar a moldar os corpos das leitoras que se dispuserem a adotar as medidas deste “manual”. Por último, o elemento crucial que conecta os anteriores é o estilo de vida, seja pela mudança de hábitos (alimentares, práticas de exercícios ou forma de pensamento) ou pela alusão de uma autoestima, inspirada por pessoas “comuns” ou personalidades que dão forma física a estes ideais propostos pela revista. Deste modo, as imagens das mulheres na capa da revista acompanhadas dos elementos prescritivos citados acima atestam o caráter de guia e orientação da revista nos quais há um destino final, um objetivo ou uma referência a ser seguida; e há os direcionamentos, as orientações para alcançá-los, perpetuando a concepção de que há um corpo cuja forma é uma boa forma e há maneiras de obtê-lo – o esforço para chegar a este ficaria a cargo da leitora em sua rotina. Observamos, então, que existe uma aspiração pelo reconhecimento entre o possível modo como a leitora desejaria aparecer buscando primeiramente agradar a si mesmo (com o reforço da autoestima), mas também agradando aos outros, e os corpos que efetivamente aparecem na capa da revista; nesta conexão, as imagens propiciam uma experiência de códigos e rituais pelos quais a leitora deveria se submeter.
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Referências CASTRO, Ana Lucia de. Culto ao corpo e sociedade: mídia, cultura de consumo e estilos de vida. 2 ed. São Paulo: Annablume, 2007. CIDREIRA, Renata Pitombo. As formas da moda: comportamento, estilo e artisticidade. São Paulo: Annablume, 2013. DEL PRIORE, Mary. Corpo a corpo com a mulher: pequena história das transformações do corpo feminino no Brasil. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000. FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo. Tradução de Julio Assis Simões. São Paulo: Studio Nobel, 1995. LIPOVETSKY, Gilles. Da leveza: rumo a uma civilização sem peso. Tradução de Idalina Lopes. Barueri: Manole, 2016. MAISONNEUVE, Jean. BRUCHON-SCHWEITZER, Marilou. Le corps et la beauté. Paris: PUF, 1999, p. 05-30. MORIN, Edgar. Cultura de massa no século XX: neurose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. NOVAES, Joana de Vilhena. Beleza e Feiura: Corpo feminino e regulação social. In: Del Priore, Mary. Amantino, Marcia (Org). História do corpo no Brasil. São Paulo: Editora Unesp.
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PERFIL DOS AUTORES
RENATA PITOMBO CIDREIRA Coordenadora do Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura Doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA (2003). Tem pós-doutorado em Sociologia pela Université René Descartes (Paris V – Sorbonne/2011). Professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e coordenadora do Mestrado em Comunicação, da mesma Instituição. Vice-presidente do Colóquio de Moda e autora de “Os sentidos da moda” (Annablume, 2005) e “A moda numa perspectiva compreensiva” (EDUFRB, 2014), entre outros. E-mail: pitomboc@yahoo.com.br BAGA DE BAGACEIRA SOUZA CAMPOS Mestrando em Comunicação (PPGCOM) na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Bacharel em Comunicação Social – Jornalismo (2017) pela mesma instituição. Membro do Coletivo Aquenda de diversidade Sexual e de Gênero e do Comitê de Políticas Afirmativas e Acesso à Reserva de Cotas da UFRB. Integra o Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura (CNPq). E-mail: bagadebagaceira1992@gmail.com BEATRIZ FERREIRA PIRES Doutora em Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte pela UNICAMP (2006). Tem pós-doutorado em Moda, Cultura e Arte pelo Centro Universitário SENAC/SP (2009). Professora do Curso de Têxtil e Moda da EACH/USP. Autora de “O Corpo como Suporte da Arte – Piercing, Implante, Escarificação, Tatuagem” (SENAC, 2005); “Corpo Inciso, Vazado, Transmudado – Inscrições e Temporalidades” (Annablume, 2009). E-mail: beatrizferreirapires@usp.br CLÉCIA JUNQUEIRA Mestranda em Comunicação no Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM), da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Bacharela em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo também pela UFRB. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura (UFBA e UFRB), cadastrado no CNPq. E-mail: ccleciacarvalho@outlook.com
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ETEVALDO S. CRUZ Doutorando no Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade – Universidade Federal da Bahia (UFBA). Pesquisador da obra de Arthur Bispo do Rosário, membro do Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura – UFRB/UFBA/CNPq. E-mail: etevaldoc@ufba.br FERNANDA BARBOSA DOS SANTOS Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Desenho, Cultura e Interatividade-PPGDCI da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Graduada em Comunicação Social com habilitação em Publicidade e Propaganda, CAHL- Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). E-mail: barbosa.f@hotmail.com GINA ROCHA REIS VIEIRA Doutoranda no Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade (Pós-Cultura), da Universidade Federal da Bahia (UFBA); Mestre em Cultura e Sociedade também pelo Programa Multidisciplinar de Pósgraduação em Cultura e Sociedade da UFBA; e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura (UFBA e UFRB), cadastrado no CNPq. Desenvolve estudos na linha de Cultura e Desenvolvimento. E-mail: gicarr@gmail.com HANNA CLÁUDIA FREITAS RODRIGUES Mestranda em Comunicação, Arte e Memória pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB), especialização, em andamento, em Filosofia Contemporânea na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), graduada em Direito (FSBA). Membro do Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura e Grupo de Estudo e Extensão em Arte, Audiovisual e Patrimônio (UFRB), e do Grupo de Pesquisa em Filosofia e Psicanálise (UEFS). E-mail: hannacfr@gmail.com HENRIQUE SENA DOS SANTOS Mestre em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana, professor da Licenciatura em História na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Integrante do Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura (UFRB e UFBA). E-mail: henrisena@hotmail.com
LARISSA MOLINA ALVES
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Mestre pelo Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Graduada em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Integra o Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura (CNPq). E-mail: larimolina.gmail.com NAIARA MOURA PINTO Mestranda em Comunicação no Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM), da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) – Linha Corpo e Expressão. Bacharela em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo também pela UFRB. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura (UFBA e UFRB), cadastrado no CNPq. E-mail: nmp.naiara@gmail.com RENATA COSTA LEAHY Doutora em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia, e em Civilisations Romanes: portugais pela Université Paris Nanterre. Mestre em Cultura e Sociedade. Bacharel em Artes Políticas e Gestão da Cultura, e em Comunicação Social – Jornalismo. Membro do corpo editorial da revista acadêmica franco-brasileira Plural Pluriel e do Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura. E-mail: renatagrd@gmail.com ROSANE DA SILVA GOMES Pós-doutoranda no Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade, da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Minas Gerais (2011), e Mestre em Literatura Brasileira (Letras Vernáculas) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2004). E-mail: asbacantes@gmail.com
CAPA
Fernanda Barbosa, pesquisadora do nosso Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura, usa turbante montado em malha azul com estampa Amores de Oxum, assinada pela designer baiana Goya Lopes, finalizado com cetim dourado (acervo de produção). Na orelha, brinco de pérola feito exclusivamente para a produção pela marca baiana A&T Joias. Jaqueta e camisa alfaiataria branca, tudo acervo de produção. Fotos assinadas pelo fotógrafo e designer gráfico Leto Carvalho, no jardim do Museu Carlos Costa Pinto (Salvador, Bahia, Brasil). Agradecimentos especiais a Leto Carvalho, Ana Coelho (IPAC/ SECULT-BA), Bárbara Santos (Museu Carlos Costa Pinto), Simone Trindade (Museu Carlos Costa Pinto), Ana Rubra (A&T Joias), Flávia Melo (A&T Joias), Goya Lopes e Rico Soares. Direção de Arte: Renata Pitombo Cidreira e Leto Carvalho Direção de Estilo: Gina Reis Produção de Estilo: Gina Reis, Larissa Molina, Renata Leahy e Etevaldo Cruz Modelo: Fernanda Barbosa