Pedro e Inês de Castro

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HELENA GOMES UMA HISTÓRIA DE AMOR E GUERRA

TRGD Editorial Via das Samambaias, 102 – Sala 04 Jardim Colibri – Cotia/SP – CEP: 06713-280

São2021Paulo HELENA GOMES

© Textos 2021 Helena Gomes Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empre gados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros. Assistente editorial: Letícia Nakamura Preparação: Juliana Gregolin Revisão: Tássia Carvalho e Nathalia Ferrarezi Arte e capa: Valdinei Gomes Diagramação: Cristiano Martins G614pGomes, Helena, 1966Pedro e Inês de Castro : uma história de amor e guerra / Helena Gomes. 1. ed. –– São Paulo : TRGD, 2021. 256 p., il., color. ISBN 978-85-54179-13-7 1. Literatura infantojuvenil 2. Pedro I, Rei de Portugal, 1320-1367Ficção infantojuvenil 3. Castro, Inês de, 1320?-1355 - Ficção infantoju venil I. Título 20-4609 CDD 028.5 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 1ª edição – 2021

Apresentação 9 Capítulo 1 13 Capítulo 2 17 Capítulo 3 57 Capítulo 4 66 Capítulo 5 100 Capítulo 6 111 Capítulo 7 175 Epílogo 225 Sobre os personagens 231 Sobre Pedro e Inês de Castro – Uma história de amor e guerra 237 Sumário

onsiderada uma das mais importantes de todos os tempos, a história de amor entre Pedro e Inês atravessou sécu los emocionando gerações. Ao contrário de vários casais famosos da ficção, os dois protagonistas existiram de verdade: eles viveram no século XIV, um período marcado por guerras, medo, fome e doenças. Embora real, a história foi cercada por lendas e mitos. Esta minha versão, dirigida ao público jovem leitor, é uma ficção que se baseia tanto na mitologia quanto nos fatos históricos.

Pouco estudada no Brasil, a Idade Média na Península Ibérica perde feio diante do espaço dado em livros, filmes e até séries de TV para a mesma era na Inglaterra e na França, países sobre os quais, ao que parece, a maior parte dos medievalistas prefere se debruçar. Uma enorme injustiça, na verdade, pois as tramas mirabolantes que envolvem os nobres portugueses e espanhóis daqueles tempos renderiam histórias incríveis.

C

Nos reinos de Portugal e Castela (este último formaria a atual Espanha ao incluir os territórios de Aragão, Granada e parte de Navarra), os poderosos da vida real envenenavam adversários, mudavam sua lealdade de lado conforme as vantagens e os benefí cios oferecidos, cometiam assassinatos grotescos, inclusive contra a própria família, promoviam guerras entre si, casavam por inte resse, uniam-se a amantes e se livravam deles ou delas conforme a necessidade, enfim, pensavam em si antes de mais nada.

Apresentação

10 Pedro e Inês de Castro No meio de tanto material que renderia inúmeros projetos, precisei me limitar ao que estivesse ligado de forma direta ou indireta aos meus protagonistas. Mesmo assim, são informações em considerável quantidade, que procurei resumir ao máximo para não confundir o leitor. No começo, eu me perdi entre tantos livros e dissertações sobre o assunto. Quem me ajudou a encontrar o ponto de partida foi o historiador Carlos Roberto Figueiredo Nogueira, professor da Universidade de São Paulo (USP) e o maior especialista brasileiro no tema “O reinado de Pedro I de Portugal e a crise do século XIV”. Muito gentil, ele me concedeu uma entrevista e ainda respondeu a vários e-mails, auxiliando-me a compor a personalidade de Pedro, distorcida por lendas e pelo próprio Fernão Lopes, cronista do século XV e fonte imprescindível para se estudar a trajetória do soberano.Oprofessor Nogueira também me apresentou aos estudos de Adelaide Pereira Millán da Costa, professora da Universidade Aberta em Lisboa, sobre as três mulheres mais importantes da vida de Pedro. Esse trabalho de fôlego, publicado na premiada coleção portuguesa Rainhas de Portugal, teve como base a análise de fontes e, como esclarece a própria Adelaide, foi completado por interpretações plausíveis e hipóteses referenciadas. Orientei-me por suas indicações em relação a datas e a vários eventos, opção que algumas vezes contradiz as versões tidas como oficiais. Não procurei apenas respeitar ao máximo os fatos históricos. Investi no mito em alguns momentos, como, por exemplo, quando reconto a cerimônia de beija-mão da rainha, um evento possivel mente criado pelas lendas. E, claro, tomei várias liberdades. Minha concepção dos paços não tem nada a ver com a realidade, e sim com a necessidade de colocar personagens circulando aqui e ali. Na medida do possível, procurei reproduzir o que existe ou existiu a partir de informações

Pedro e Inês de Castro variadas sobre os locais, inclusive fotos e vídeos. Em um deles, do Núcleo da Cidade Muralhada, a chefe da Divisão de Museologia, Berta Duarte, oferece informações detalhadas sobre a formação de Coimbra, dados muito úteis para quem, como eu, ainda não teve a oportunidade de visitar a cidade. Outra fonte que me levou a entender o cotidiano medieval foi o livro História da vida privada em Portugal, de José Mattoso.

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Quanto aos personagens, incluí fictícios interagindo com os reais. Com os últimos, nem sempre o que escrevi para eles aconte ceu mesmo. Estêvão Lobato, por exemplo, é quase ficcional, pois o que encontrei sobre o verdadeiro foi tão pouco que mal lhe caberia um papel de figurante. Recriado para a trama, ele ganha um papel de importância. Aproveitando a liberdade de criação, inventei reviravoltas embasadas no contexto histórico, trouxe motivações diferentes aos personagens, ou seja, fiz a minha própria mistura de ficção e realidade. O que mais pode provocar confusão para os leitores são os nomes dos próprios personagens. Há vários Pedros, Álvaros, Afon sos e Marias, por exemplo. Para facilitar nossa vida, grafei alguns de modo diferente. Então, Afonso XI de Castela é Alfonso, assim como Branca de Bourbon é Blanche e João Afonso de Albuquerque, Juan Alfonso. Apesar desses cuidados, no final deste livro há uma lista com praticamente todos os personagens, tanto reais quanto fictícios, explicando quem é cada um. Optei também por usar apenas o “tu”, esquecendo de propósito o “vós”, mais cerimonioso, quando é dirigido a uma única pessoa. Resolvi ainda utilizar nos diálogos somente o idioma português, apesar de vários personagens serem castelhanos. Sobre a lingua gem, eu a trabalhei pensando no jovem leitor de hoje, mantendo meu estilo narrativo. É, portanto, uma história portuguesa contada por uma brasileira, na visão dela e com todas as características que ela traz por ser brasileira e neta de portugueses.

12 Pedro e Inês de Castro Entre Pedro e Inês, preferi me centrar na vida dele por ser um dos reis portugueses menos estudados e por acabar em segundo plano quando se resolve contar a história de seu grande amor. Tampouco pude resistir a inventar meus próprios designers para os belíssimos túmulos de Alcobaça. Até hoje sua verdadeira auto ria é considerada um mistério. Falar mais sobre esses túmulos ou o grande amor de Pedro é antecipar o que vem nas próximas páginas: uma versão feita com cuidado, pesquisa, muito carinho e uma delicada dose de Amagia.autora

Ele amassou sem pressa a carta de sua mãe, a rainha Beatriz, mais uma entre tantas que recebera nos últimos seis meses, e a jogou para a frente, sem fazer pontaria. Ao encontrar o chão, a bola de papel deu uma cambalhota e rolou mais uma vez antes de parar. A brisa, que entrava pela abertura da tenda, estremeceu-a antes de, timidamente, começar a abri-la. A letra caprichada de Beatriz nova mente tornou-se visível. Palavras que apelavam ao bom senso do filho falavam do amor a Deus e ao próximo. Beatriz pedia o impos sível. Como perdoar a traição? Não. Pedro iria até o fim. Destruiria a obra dele, daquele que lhe roubara o presente e o futuro. Bocejou, exausto, espiando a manhã ensolarada fora da tenda. O mês de agosto mal começara. P ortugal , 1355 1

D esvario. Loucura. Colheitas queimadas. Tanto sangue derramado…Pedronão perdera apenas o controle sobre si. Perdera o controle dos homens que estavam sob o seu comando. Sabia disso, mas preferia não enxergar.

– U-Uma mu-mulher?! – disse Pedro, gaguejando como de costume. Sempre ela, a gagueira que o torturava desde a infância nos momentos mais improváveis, seja fazendo com que repetisse sílabas ou provocando longas pausas que não deveriam existir numaMesmofrase.desarmada,

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Pedro e Inês de Castro O cerco que promovia à cidade do Porto já durava dias demais. No acampamento com seus homens, ele apenas esperava. Desde que devastara as terras ao norte do reino, aquele cerco era o primeiro obstáculo que enfrentava e, apesar de sua sede de vingança, hesi tava em atacar. Talvez porque o prior Álvaro Pereira, responsável pela defesa da cidade, fosse um amigo, alguém de confiança que jamais tramaria contra ele.

a jovem avançou contra ele. Se conseguisse matá-lo com as mãos, era o que faria.

Ergueu-se da arca onde se sentara. Pela primeira vez, sentiu as roupas folgadas. Emagrecera bastante. Alguns fios brancos tinham lhe tomado a barba e os cabelos castanho-claros, que lhe batiam aos ombros. Olheiras profundas lembravam as muitas noites insones. Há quanto tempo não sorria? E o riso alegre e solto, a companhia do povo em suas andanças noturnas, embaladas por vinho e canções? Onde tudo isso fora parar?

Agora só havia os corpos mutilados por sua espada nas inva sões e nos saques contra sua própria gente. Em um gesto automático, olhou para as mãos. No que se trans formara?–Assassino!

– gritou alguém, às suas costas. Perto demais. Pedro reagiu como o guerreiro que aprendera a ser, o penúltimo da linha sucessória de tantos outros, forjados nas lutas contra os mouros. Ágil, tirou a espada da bainha e, enquanto se virava, reba teu o golpe com facilidade. A espada que pretendia matá-lo voou para longe. Sobrou apenas seu quase executor, uma jovem morena que usava roupas masculinas. Devia ter uns 17 anos, quase a metade dos 35 anos que ele completara em abril.

– Tu mataste gente inocente! – ela berrou. – Que mal eles te fizeram? Nenhum! Mas são os que sempre morrem quando os poderosos brigam entre si! Gente que tu devias proteger! Que rei serás, hein? Onde está tua justiça? A gritaria atraiu quem falhara na vigilância da tenda, colocando em risco a segurança do infante, herdeiro do trono português. Dois soldados correram em seu auxílio. O criado Estêvão Lobato veio atrás deles. A jovem foi arrancada da prisão improvisada. Recebeu um soco de um dos soldados e ia apanhar mais do outro.

– E o que faço com ela, senhor? – perguntou. Pedro não hesitou. Naquele jogo imundo de conspirações, havia apenas uma pessoa em que poderia confiar todos os seus segredos.

– Calma… – pediu. Em vão.

– Parai! – mandou Pedro. Foi obedecido. A jovem caíra sentada. Sangue escorria-lhe do nariz e dos lábios, o lado esquerdo do rosto ficaria roxo e incharia. Ela ergueu o queixo altivo e dirigiu um olhar cheio de ódio a Pedro. Com um calafrio, ele reconheceu a intensidade daquele sentimento que também o movia desde que… – Diriges teu ódio às pessoas erradas – murmurou a jovem.

O anjo vingador resgatará tua justiça, sussurraram lembranças muito antigas na consciência ainda embotada de Pedro. Lobato viu a espada que ela trouxera, esquecida em um canto, e deduziu o restante.

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Pedro e Inês de Castro Com dificuldade, Pedro prendeu-a por um dos pulsos e teve de se livrar da espada para agarrar o outro. Ela se debatia, xingava, chutava-lhe as pernas. Para imobilizá-la, ele conseguiu girá-la e a aprisionou junto a si, apertando-a com seus braços.

– Manda-a para a senhora.

– Chama o prior – disse. Diante da surpresa do criado, ele foi direto. – Chega de matar inocentes. Precisava de tempo e tranquilidade para planejar a vingança em detalhes. Só então agiria para punir os verdadeiros culpados.

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Pedro e Inês de Castro Após inclinar de leve a cabeça, Lobato fez um sinal para que os soldados retirassem a prisioneira. Também ia sair, mas o infante tinha uma nova ordem.

P ortugal , 1330 ( vinte e cinco anos antes )

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Sem pressa, Pedro saboreava uma pera, colhida de uma das árvores próximas ao rio Mondego. Estava imundo da cabeça aos pés de tanto brincar no lamaçal que se formara às margens do rio após uma noite de chuva torrencial.

Nem sempre o garoto conseguia visitá-la, atrás das histórias que somente ela sabia contar tão bem. O avô, o falecido rei Dinis, fora um ótimo governante e um trovador talentoso. Reinara preo cupado em povoar de fato o reino de Portugal, incentivando a ocupação das terras mais distantes e próximas ao litoral.

Naquela tarde gostosa de primavera, tudo o que o menino de dez anos queria era fugir dos estudos. Não que fosse mau aluno; até gostava de estudar. Mas a fuga atrás de brincadeiras fazia parte de sua natureza inquieta. Além do Mondego, a paisagem de campos arados, protegida na retaguarda pela floresta, enchia seus olhos. Daquele lado ficavam o Mosteiro de Santa Clara e a residência de sua avó paterna, Isabel, uma mulher bondosa que o povo considerava santa por ajudar os pobres e desamparados.

Pedro e Inês de Castro O garoto conhecera-o aos quatro anos de idade, quando final mente Dinis fizera as pazes com o filho legítimo Afonso, pai de Pedro, ao reconhecê-lo como herdeiro ao trono. Isso depois de travar com Afonso uma guerra civil e desistir de apoiar outro filho, um de seus bastardos. Um dia que ficara marcado para sempre no menino como a primeira vez em que envergonhara o pai. Diante do avô poderoso e intimidante, Pedro gaguejara. Algo, aliás, que nunca mais deixa ria de fazer. Jamais esqueceria o olhar de decepção que Afonso lhe dirigira e o tédio no rosto de Dinis, possivelmente por compa rar o neto legítimo aos netos mais espertos que seus bastardos já tinham lhe dado.

– Melhor voltarmos, senhor – disse seu criado, Estêvão Lobato, que acabara de sair do rio após um mergulho.

Apesar de encharcado, Estêvão parecia mais limpo do que o infante, que conhecia desde os cinco anos. Tinham a mesma idade, estudavam com o mesmo preceptor e compartilhavam o gosto pela vida ao ar livre, com suas caçadas, cavalgadas, a falcoaria, os jogos de destreza guerreira e, claro, as armas. Jogavam pião, giravam os

Naquele mesmo dia, Afonso decidira tirar o filho da proteção materna e entregá-lo para ser criado por um conselheiro seu, Lopo Pacheco. Era um hábito bastante difundido entre a nobreza, que vivia mandando seus filhos para serem criados por aliados e, em troca, recebiam deles suas crianças para cuidar. De qualquer forma, a decisão soara como um castigo doloroso para Pedro. Não tivera outra oportunidade para tentar impressionar o avô exigente, que morrera um ano depois. Com o pulso, o garoto retirou parte do sumo da pera, o qual lhe escorreu até o queixo. Estava de costas para a colina, onde se localizavam as muralhas da cidade de Coimbra, com suas torres imponentes. Sob essa proteção ficava também o castelo, chamado de paço, uma das residências do rei português.

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Pedro e Lobato não titubearam. Dispararam numa corrida veloz de volta à cidade muralhada. Nem um pouco interessado em retor nar a pé, Diogo não se dispôs a lhes oferecer o cavalo. Partiu na frente, talvez pensando em ganhar tempo para o atraso do infante. Os garotos logo alcançaram a colina. Cruzaram um dos portões da cidade, passando por baixo da torre de Almedina pelo seu arco

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– o reforçado portão construído na época em que os mouros domi navam a maior parte do reino –, e continuaram subindo. As ruas eram estreitas, ladeadas por casas de um ou dois andares, cons truções simples e apertadas que iam ganhando mais sofisticação e espaço conforme se aproximavam do paço real. Graças à vinda da

– Por que nunca estás onde deverias?! – gritou ele para o infante.

Pedro e Inês de Castro arcos de madeira para depois correr atrás deles, escalavam pare des, pulavam muros, atiravam pedras, nadavam no Mondego e já nem sabiam mais a quem pertenciam os cavalinhos de madeira e os moinhos de vento com que brincavam quando eram mais novos.

– Acabamos de chegar, trazendo a comitiva de D. Branca!

O outro deu de ombros ao ter descartado mais um de seus sábios conselhos. Não demorou para Diogo, o filho legítimo de Lopo Pacheco, surgir em pessoa para buscá-los. Apenas alguns anos mais velho do que Pedro, o rapaz vinha a cavalo e estava furioso por ser obrigado a procurá-lo quando o que mais queria era descansar após uma longa e desgastante viagem.

– Ainda é cedo – disse o verdadeiro infante.

Lobato era outra das crianças que Lopo Pacheco educava, um dos seus filhos de criação. Vinha de uma família nobre inferior, conhe cida por ocupar cargos de criadagem para os fidalgos mais ricos e influentes. Não tinha as bochechas fofas, a tendência para engordar e o jeito desengonçado de Pedro. Bonito, dono de modos elegantes e sempre preocupado em causar uma boa impressão, curiosamente era Lobato quem correspondia à imagem ideal que se esperava de um herdeiro ao trono.

ocorrera com várias infantas antes dela, termi naria de ser criada na terra em que iria viver e ser rainha. Era o costume. Acontecera o mesmo com Beatriz, mãe de Pedro, que viera criança para Portugal e fora criada pela sogra. Beatriz, aliás, também era castelhana e irmã do pai de Branca. Havia outros

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residência

Casamentos entre a realeza e, como consequência, entre os nobres não passavam de lucrativos negócios de família. Com eles, ganhava-se poder, influência e heranças polpudas. Os acordos matrimoniais eram tratados pelos pais, obrigando os filhos a se casarem ainda na infância. A partir dos doze anos, as meninas podiam consumar a união. Já os meninos conquistavam a maiori dade aos Branca,catorze.como

Pedro e Inês de Castro comitiva, havia uma circulação maior de pessoas, um movimento que lembrava o cotidiano da Judiaria, o bairro dos judeus que, como os mouros e sua Mouraria, tinham um espaço próprio e limi tado para morar e fazer seu comércio.

Estabanado, Pedro trombou com uma mulher. Ela vendia reta lhos na porta de uma loja que, no andar superior, funcionava como da família. O garoto caiu, rolou no chão e, sem demora, pôs-se novamente em pé. Ouviu a mulher xingá-lo em voz alta, sem reconhecê-lo, enquanto voltava a correr feito doido. A tal Branca tinha de chegar justo quando estava tão longe do paço? Para falar a verdade, ela nem precisava se dar ao trabalho de chegar. Podia ficar em Castela, de onde viera especialmente para se casar com o garoto. Um casamento, na verdade, que demorara anos para ser acertado e que envolvia dotes, terras e vários acor dos políticos, inclusive um que casara a irmã mais velha de Pedro com o rei de Castela. Um ano mais velha do que o infante português, Branca – filha de uma princesa aragonesa e de um falecido príncipe castelhano –era uma peça fundamental no intenso jogo de tabuleiro que movia a política na Península Ibérica.

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– Deixa comigo! – ofereceu uma serva idosa que estava com a família Pacheco havia anos. Prática, ela encheu a mão de cuspe e, após esfregá-lo nos cabelos do infante, resolveu a questão à sua maneira.

Pedro e Inês de Castro parentescos envolvendo as famílias reais portuguesa, castelhana e aragonesa, que costumavam casar seus filhos entre si. Para casar Pedro, que era primo de Branca, Afonso IV precisara obter uma autorização do Papa, pois a Igreja proibia a união tão próxima entre membros da mesma família. Pedro, que não tinha a menor vontade de se casar, pensava nos jogos e nas brincadeiras que seria obrigado a abandonar para tomar conta da esposa. Foi diminuindo o ritmo da corrida, dese jando retornar ao rio. Poderia ficar pescando até o anoitecer, daria um mergulho e… Ao perceber suas intenções, Lobato retrocedeu para puxá-lo pela camisa. – Senhor, não provoques teu pai – aconselhou ele. Pedro teve de ceder. Mais uma entre tantas outras vezes que faria a vontade do pai. No paço, o pátio externo estava tomado pelas comitivas de Branca e dos Pacheco, um caos de cavalos, carroças, arcas e pessoas. Diogo, que voltara bem antes dos garotos, já avisara seus criados. Eles estavam a postos para receber o infante, levá-lo ao primeiro aposento do caminho, limpá-lo e trocar sua roupa na maior rapidez possível. No mesmo local, Lobato vestiu roupas secas, ajeitou os cabelos escuros e mandou uma das criadas fazer o mesmo com os cabelos de Pedro, empapados com a lama que começava a secar. Não daria tempo de lavá-los. Apesar do pente, a mulher não teve sucesso.

Pedro sentiu que o pai o analisava de cima a baixo, criticando sua aparência. Para completar, o rosto do menino estava verme lho devido à correria e o suor escorria da testa, do pescoço e das axilas. E tudo ficaria ainda pior quando tivesse de dizer algumas palavras de boas-vindas aos recém-chegados. Iria gaguejar, com certeza. Novamente Afonso passaria vergonha por culpa do filho.

– Tens um filho muito bonito, senhor – elogiou. Seu olhar estava em Lobato, o único que, com sua postura altiva, se compor tava como esperavam que o filho de Afonso se comportasse. Ao perceber a confusão, o garoto deu alguns passos para trás e sutilmente misturou-se à multidão. A princesa fitou o rei, sem entender nada. Ele precisou indicar seu herdeiro.

O silêncio tornava-se embaraçoso. A princesa aragonesa, mãe de Branca, tomou a iniciativa de quebrá-lo.

Pedro estacou. Não queria entrar. Lobato suspirou e, ainda puxan do-o, abriu seu melhor sorriso para todos. O infante baixou a cabeça para contemplar o piso de pedras, resignando-se a cumprir seuOpapel.amigo largou-o apenas quando pararam diante do rei, da rainha, de Lopo Pacheco, de Diogo e dos castelhanos. Ao seu redor, estavam todos os nobres que ocupavam funções reais em Coimbra, além de outros convidados do clero e da nobreza, comerciantes e ainda gente do povo que apareceu apenas para conhecer a futura rainha de Portugal.

– Este é Pedro, senhora – explicou, numa voz cansada. Ela mal disfarçou a decepção. O garoto desistiu de cumprimen tá-la, fechando-se num mutismo desesperado. Para amenizar o constrangimento, Beatriz encheu a princesa de perguntas sobre

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Pedro e Inês de Castro Lobato espiou-o com um olhar reprovador, porém não disse nada. Voltou a prender o infante pela roupa e seguiu arrastando-o até a porta da sala térrea e ampla, local de festas, cerimônias e recepções, como a que estava acontecendo naquele momento.

Soube ali mesmo que amaria Branca até o fim de seus dias.

Tímido, Pedro sorriu para ela, apenas para ela. Ele a enten dia. Branca retribuiu o sorriso, automaticamente ganhando uma aura de beleza que somente o garoto enxergou. Havia sofrimento, mas também muita bondade em seu espírito. Ele reparou em seus cabelos castanhos, no tom azul dos olhos, nas covinhas que lhe marcavam os cantos dos lábios.

Na hora do juramento, óbvio que Pedro gaguejou muito, para aflição do rei e desespero da rainha. A avó Isabel, no entanto, diri giu-lhe um olhar de incentivo e confiança. Branca sorriu, dando-lhe total apoio. Os demais convidados, impassíveis, fizeram de conta que a gagueira não existia. Logo o garoto esqueceu aquele suplício com as festas que se seguiram. No paço, diante da família, comportou-se como deveria,

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Uma semana mais tarde, com toda a pompa necessária para a ocasião, Pedro e Branca casaram-se na Catedral da Sé por palavras de presente, como mandava a tradição. Quando o garoto tivesse catorze anos, a idade oficial para consumar a união, as bodas seriam completadas.

Pedro e Inês de Castro Branca, seus hábitos, seu temperamento, os alimentos preferidos, enfim, tudo o que deveria saber sobre a filha que ganhava a partir daquelePedrodia.reuniu coragem de conhecer sua futura esposa. Espiou-a. Para sua surpresa, ela também o espiava, curiosa e amedrontada. Era uma menina frágil e miúda com um rosto comum, nada que a destacasse entre as outras mulheres. Os olhos estavam vermelhos por tentar bloquear o choro. Devia ser difícil para ela ganhar uma família desconhecida de uma hora para outra, mudar de reino, ser separada da mãe e, pior, acabar prisioneira de um casamento com um menino que nunca vira antes.

Pedro e Inês de Castro muito sério, mas, quando conseguiu escapulir para a rua, cantou e dançou com o povo, divertindo-se bastante. Com as pessoas simples, podia ser ele mesmo. Tinha o riso fácil, alegre, de bem com a vida.

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Na semana seguinte, a mãe de Branca partiu para Aguilar de Campo, em Castela, para tomar posse efetiva como senhora da vila que pertencera ao marido e que ela finalmente conseguia ter sob seu poder com o casamento da filha. Largou-a sozinha no meio de um punhado de nobres castelhanos e aragoneses que gerenciavam a “casa” da menina, o espaço que ela passara a ocupar no paço. Beatriz também tinha a sua “casa”, assim como Isabel tivera uma antes de vestir o hábito de monja e se recolher junto ao Mosteiro de Santa Clara. Como rei, Afonso também tinha a sua. Tratava-se não somente de um espaço de proteção, mas também de poder para os nobres, pois ocupar um cargo junto à realeza dava status e podia render excelentes negócios. O maior desafio de Pedro foi driblar a vigilância feroz de dois aragoneses responsáveis por Branca: a aia Berengária Garcia e o vedor, oficial responsável pela economia, provisão e fiscalização da “casa”. Pedro era teimoso e tanto fez que, no começo de uma tarde qualquer, no mês de maio, conseguiu se esconder atrás de uma tapeçaria, no quarto da quase esposa. Teve de esperar uma eternidade para que ela ficasse sozinha no local. Sem fazer barulho, aproximou-se. Branca estava sentada em um banco. Costurava um tecido fino, uma das tarefas que Berengária lhe dera. O rosto, abatido desde a partida da mãe, mantinha-se inalterável. Pedro, que sempre a via tão entristecida na missa diária no início da manhã, resolvera fazer alguma coisa para ajudar. Por isso estava ali, arriscando levar uma merecida bronca do pai de criação ou até uma surra do pai de verdade. O primeiro nunca o machucara, preferindo lhe dar conselhos e orientações. Já Afonso batera-lhe com o cinturão nas pernas uma vez, depois que o menino

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Ele procurou falar palavra por palavra para evitar a gagueira.

Com um sorriso travesso, ele lhe estendeu a mão, que ela acei tou sem hesitar.

Todo castelo costuma ter passagens secretas e não era dife rente com o paço em Coimbra. Após escaparem do quarto sem serem vistos, os dois tomaram um corredor e, a seguir, uma das passagens que levava a um túnel longo e tortuoso. O caminho terminou numa porta de madeira, esquecida em um estábulo aban donado, na Judiaria.

Ao reconhecê-lo, ela se acalmou. – Senhor, como entraste aqui? – perguntou.

– E-eu… – Pedro começou, temendo assustar a garota.

– Mas… como sairemos daqui? – indagou, preocupada.

– Vim… te… convidar… para… um… passeio. Branca sorriu. – Minha aia não vai permitir. – E-ela não… pre-precisa saber.

Pedro e Inês de Castro ateara fogo sem querer ao manto do altar da catedral, o que poderia ter provocado um incêndio de grandes proporções na cidade.

Não deu certo. Branca pulou de susto, largando a costura.

Pedro, que tinha pensado em cada detalhe da aventura, tirou de um saco escondido no feno um vestido simples, usado pelas servas.–Não podes andar por aí com tuas roupas de infanta – disse ele, que já viera disfarçado. A camisa e a calça comprida eram muito velhas, os sapatos tinham furos. Peças comuns para quem vivia na pobreza. Pela primeira vez, não gaguejara nem tampouco hesitara ao falar com a garota. Começava a se sentir à vontade diante dela,

– Pronto – disse, após ajustar o último laço do vestido. – Agora não sou mais uma infanta. Pedro virou-se e corou ao admirá-la em seu novo visual. Ela soltara os cabelos, que viviam numa trança enrolada junto à nuca, e sua habitual palidez a abandonara para o tom cor-de-rosa trazido pela timidez a seus lábios e bochechas.

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– Tens amigos aqui?

Pedro e Inês de Castro talvez por estar longe das formalidades da corte. Ele lhe deu o vestido e ficou de costas para que ela pudesse se trocar.

– Tenho. E também na Mouraria. Amanhã te levo lá. Então haveria outros passeios? Branca procurou não demons trar sua empolgação. Era a primeira vez que a resgatavam da cela que sempre fora sua vida.

– Meu avô usava essa passagem secreta quando queria ter alguma conversa reservada com os judeus – contou Pedro. – Ao contrário do meu pai, que os obriga a andar com aquela estrela amarela colada no chapéu ou no capote para diferenciá-los dos cristãos, D. Dinis tinha os judeus como aliados.

– Estás mu-muito… be-be-be-bela. Encabulada, Branca baixou o rosto. Não estava acostumada a elogios. Sempre fora a valiosa herdeira de seu pai na disputa política e territorial entre Castela e Aragão e apenas isso. O pai morrera em um acidente em Granada antes mesmo que ela nascesse. A gravi dez da mãe fora vigiada de longe pelo preocupado avô materno, o rei de Aragão, que não mediu esforços para protegê-la, a mesma postura que manteve depois que a menina veio ao mundo. Mãe e filha passaram por várias peripécias, entre elas o acesso sempre negado à fortuna que lhes cabia, a consequente falta de dinheiro, a possibilidade de rapto e até assassinato da menina e as alianças fracassadas com os nobres de Castela, ora a favor e ora contra o rei daquele reino. Sempre viveram presas às artimanhas de uma perigosa teia de intrigas e conspirações. Pedro não fora o

Pedro mais uma vez estendeu-lhe a mão.

Pedro e Inês de Castro primeiro pretendente de Branca. Quando ela estava com apenas dois anos de idade, tinham tentado casá-la com o rei castelhano, que também era seu primo.

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– Vem comigo – convidou. Os dois perambularam pelas ruas da Judiaria e por seu comér cio efervescente. Na casa do amigo sapateiro de Pedro, a menina conheceu mais sobre o ofício de fazer e consertar calçados. Ao passarem pela loja do alfaiate Judah, ganharam bolos de mel e brincaram com as crianças da família. A tarde divertida terminou muito rápido. Anoitecia quando o garoto, usando a passagem secreta e depois o corredor, levou a quase esposa de volta ao quarto. A aia Berengária era a única que os esperava.–Peloque eu soube da fama de arteiro do teu marido, imaginei que estivesses mesmo com ele – disse ela, após um longo suspiro. A felicidade de sua menina, um sentimento que não via nela havia meses, impedira-a de aplicar a bronca merecida. – Primeiro achei que tinhas sido raptada. Pensei o pior, quis chamar o vedor e os guardas, mas então lembrei que estás segura aqui, em Portugal. Ainda bem que eu estava certa. Caso contrário…

– Amanhã… levarei D. Branca para… para um novo passeio – disse Pedro, erguendo o queixo com a autoridade que ainda aprendia a Berengáriaexercer.abriu

a boca para protestar. Não conseguiu. Via o casalzinho de mãos dadas, ele ameaçando proteger a menina se fosse necessário. Lembrou os tantos casamentos reais que tinham fracassado devido à ausência de amor entre marido e mulher.

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Pedro e Inês de Castro Aquelas crianças, pelo visto, eram cúmplices em algo maior do que uma simples fuga para passear pela cidade. Estavam aprendendo a gostar um do outro.

Sem que Pedro percebesse, ela o preparava para, no futuro, assu mir o trono. Já o garoto admirava a inteligência que jamais suspeitara existir numa mulher, confiando-lhe segredos que jamais tivera coragem de contar ao melhor amigo Lobato. Gostava de lhe dar presentes para vê-la sorrir ainda mais, coisas simples de criança, em geral pães recém-assados ou frutas maduras e suculentas. Branca não tinha o mesmo apetite de Pedro, que adorava se fartar, mas sempre aceitava um bocadinho para fazê-lo feliz. Para ela, o melhor presente, sem dúvida, foi um filhote de cachorro que

– Está bem, eu vos darei cobertura – cedeu a aia, ganhando auto maticamente o lindo sorriso de Branca e o olhar desconfiado de Pedro. – Mas vou querer saber por onde andais e o que fazeis, hein?

Óbvio que nenhum dos dois contou à aia a verdade sobre seus passeios secretos. Para não levantar suspeitas, Pedro fingia que ia caçar com Lobato e, disfarçado, escapava da vigilância dos adultos na primeira oportunidade. O criado, como sempre, encobria suas travessuras.Brancaconheceu o lado bom da infância que nunca pudera experimentar. Revelou-se uma grande amiga, a conselheira que o infante aprendeu a ouvir com atenção. A experiência de vida da garota mostrou-lhe o funcionamento da complicada política ibérica, com reis e fidalgos que mudavam sua lealdade de lado a cada instante, dependendo dos interesses envolvidos, e raramente cumpriam suas promessas, trapaceando a maior parte do tempo.

Tão vulnerável, ela parecia uma figura etérea, uma donzela encan tada das histórias mouras. Embora desejasse mais, Pedro controlou-se naquele e nos vários beijos que marcaram os passeios seguintes. Faltava pouco para as bodas e não seria ele a adiantar a feliz vida de casados que teriam pela frente.

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Mais uma vez Afonso preferiu não comentar o assunto. Diante das novas perspectivas de alianças políticas, o casamento com

Pedro e Inês de Castro ele encontrara abandonado nas ruas. O animal passou a ser a companhia constante da menina, principalmente nos momentos solitários em seu quarto. No momento em que a infância foi embora, cedendo espaço à adolescência, Pedro deu-se conta de que Branca se transformara numa jovem atraente e delicada. Não gostava dos olhares mascu linos que ela atraía sem desejar e, ciumento, arrumou briga com um e outro rapaz mais insistente. Recebeu socos e chutes por isso, porém deixou seus rivais com o nariz quebrado e a certeza de que não deviam cobiçar a mulher do próximo. Em um agradável final de tarde, quase três meses após Pedro completar treze anos, ele finalmente ousou beijar os lábios de sua quase esposa. Estavam à beira do rio Mondego, os últimos raios avermelhados de um sol de verão espalhando-se sobre a superfície da água. A luminosidade tornara dourados os cabelos de Branca.

Logo a ansiedade dos adolescentes foi percebida na troca de olhares entre eles, nas mãos dadas que escondiam sob a mesa nas festas da corte. Alguém reparou que os dois sumiam juntos após seu rotineiro passeio pela cidade, que deixara de ser secreto havia muito tempo. Não demorou para o burburinho chegar aos ouvi dos–reais.Devemos terminar de casá-los o quanto antes – insistia a rainha Beatriz com o marido. – Incomoda-me saber que eles andam se beijando às escondidas e fazendo sabe-se lá mais o quê…

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Pedro e Inês de Castro Branca corria o risco de perder sua importância. Tudo indicava que, muito em breve, haveria uma esposa bem mais interessante paraAlguémPedro. que atenderia melhor aos interesses do reino.

Naquele mesmo ano, 1333, nasceu Enrique, que seria senhor de Trastâmara, mais um bastardo do rei castelhano Alfonso XI com a Guzmán, como se referiam à sua amante. A esposa Maria, irmã de Pedro, vivia sendo humilhada pelo marido. Seu único menino, herdeiro legítimo de Castela, nasceria apenas no ano seguinte.

Foi nos primeiros dias de primavera de 1334 que Pedro, Lobato e mais alguns homens partiram numa caçada para o leste de Coim bra. O infante prometera à avó doar toda a carne que conseguisse ao Mosteiro de Santa Clara, que a distribuiria aos pobres. Havia alguns meses a fome transformara-se numa companhia apavorante para as camadas mais empobrecidas da população, principalmente nas cidades, um problema que também afetava outras regiões da Península Ibérica. Após deixar um vasto campo de milho para trás, o grupo afundou na floresta atrás de javalis, gamos, cabritos monteses e até ursos, comuns nas matas mais fechadas. Se não tivessem sorte, sempre poderiam contar com lebres, coelhos, gansos-bra vos e pequenos pássaros, como pardais e gralhas. Caçar era uma atividade habitual e, para Pedro, sua chance para gastar ener gia e ainda colaborar com o fornecimento de carne, fosse para consumo no próprio paço ou, no caso, para alimentar os mais desafortunados.Começarambem e no terceiro dia caçaram um furioso javali. Ele deu bastante trabalho e, se não fosse pela pontaria precisa da lança de Pedro, teria ferido Lobato com gravidade.

Continuaram a viagem, tomando como referência a grandiosa Serra da Estrela, no horizonte. Aquelas terras tão selvagens e ao mesmo tempo tão ricas sempre fascinavam Pedro. Se pudesse escolher seu destino, era o que pretendia para si: uma vida de aventuras em todos os lugares que pudesse conhecer. No sexto dia, enquanto perseguiam um gamo com seus cavalos e cachorros, uma situação inusitada desviou-lhe a atenção. Aos pés de uma colina, três camponeses surravam uma idosa, que gritava porAutomaticamente,socorro.

Realmente não se enxergava como herói. Numa caçada, todos dependiam de todos, num tremendo exercício de confiança, pois um erro tolo poderia custar a vida de alguém. Desse modo, era rotina um sempre salvar o outro de alguma encrenca.

Pedro desviou seu cavalo e foi naquela dire ção. Lobato seguiu-o. Os demais não interromperam a perseguição ao animal.Achegada dos dois cavaleiros alertou os agressores.

Após confirmar que os camponeses sumiam entre a vegeta ção, Pedro parou o cavalo, desceu num pulo, guardou a espada na bainha e correu para ajudar a mulher. Lobato também desmontou. Manteve-se vigilante, a alguma distância.

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– Covardes! Deixai essa mulher em paz! – mandou o infante, aproximando-se para atropelá-los se fosse necessário. Diante da colisão iminente, eles fugiram. Estavam a pé e desar mados. Não seriam páreo para os cavaleiros que, apesar de muito jovens, vinham com suas espadas em punho.

– Estás muito ferida? – perguntou Pedro ao ajudá-la a se levan tar. Um corte sangrava na testa e hematomas surgiriam nos

Pedro e Inês de Castro – Salvaste minha vida, senhor – disse o garoto, na tentativa de agradecer.–Nãoexageres

– retrucou o infante.

A mulher exibiu a gengiva desdentada num sorriso generoso para tranquilizá-lo.

– Hum… – começou a bruxa, estreitando o olhar para as linhas em destaque na palma da mão. – Vitalidade… Ótima saúde… Ela só faltará no final. O rosto dela iluminou-se.

pela Igreja, a bruxaria integrava o cotidiano do povo, embora provocasse temor na maioria. Eram as mulheres, mesmo as mais ricas, que costumavam recorrer aos feitiços das bruxas para conseguir um marido, curar os filhos doentes ou se livrar de alguma gravidez indesejada.

Pedro voltou para perto do cavalo e tirou do alforje o pão e os figos que o alimentariam naquela noite, quando parassem para acampar. Entregou-lhe tudo. Rápida, ela escondeu os alimentos nos bolsos do vestido.

– Dá-me tua mão – pediu. Como o garoto hesitasse, ela o prendeu pelo pulso direito e o obrigou a expor a palma da mão.

Lobato estremeceu, deduzindo o que o outro ainda não enten dera.–Senhor…

Pedro arregalou os olhos, tentou retirar a mão.

Demonstrando força demais para sua idade tão avançada, a bruxa só iria libertá-lo quando desejasse. Ele respirou fundo, dese jando que ela fosse como as bruxas das histórias que sua avó lhe contava, alguém que surgia no caminho dos príncipes e das prin cesas apenas para orientá-los.

Pedro e Inês de Castro antebraços, que as mangas de seu vestido imundo e remendado não escondiam. – Quebraste algum osso?

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Graças a ele, não se ferira com gravidade.

– Tenho fome – disse ela.

– chamou, aflito. – Ela é uma bruxa… Por isso batiam nela.Combatida

– Homens de poder, como tu. Combaterás a fome, a miséria, a guerra… E a mais terrível das doenças, que ceifará inúmeras vidas. Sentindo-se desconfortável, o garoto mudou o peso de uma perna para a outra.

– Haverá várias mulheres na tua vida, mas uma delas… – pros seguiu a bruxa, ainda decifrando as linhas. – Com essa mulher viverás o amor verdadeiro, o mais intenso que existe no universo, tão poderoso que será capaz de quebrar encantamentos e atrair a inveja dos deuses. Conhecerás a felicidade suprema que todos ambicionam, mas que raros conquistam. Então… Ela hesitou, assustada.

– Anjo vingador, é? – resmungou Lobato, sem se conter.

– Ficarás perdido até que o anjo vingador te encontre.

– Então? – quis saber Pedro, àquela altura bastante impressio nado. Lobato, impaciente, apertava o punho da espada.

–perigosos.Que-queinimigos?

– É assim… que… que… mo-mo-morrerei? – ele quis confirmar.

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Pedro e Inês de Castro – Serás um homem de muito poder, com amigos fiéis e inimi gos

– O anjo vingador resgatará tua justiça. O infante não estava entendendo nada. Bufou, contrariado. Não a surravam porque era bruxa, e sim por ser louca.

– Liberta-me – disse.

– Teu coração será arrancado.

– Não. Continuarás vivo, mas sem teu coração, entendes?

– E como isso é… po-po-possível? Ela suspirou.

– Vejo sangue, destruição, loucura. O gosto amargo da vingança. Foi a vez de Pedro estremecer. Novamente quis se libertar, porém a bruxa ainda não terminara.

– interessou-se ele.

Ela o ignorou. Esquecera as linhas para fitar Pedro com olhos profundos, como se desnudasse seu espírito.

34 Pedro e Inês de Castro Não era um pedido. Submissa, ela obedeceu e se afastou. Movido por seus bons modos, Lobato viu-se obrigado a lhe pagar pelo serviço. Jogou-lhe algumas moedas, que a bruxa capturou no ar com bastante agili dade.–Muito obrigada, moço bonito. Desejas que eu também leia teu futuro?Elerangeu os dentes e voltou para a sela. – Terás filhos – a bruxa disse a Pedro. – E um deles, um mestre, será tão importante que dará início a uma nova era em nosso reino. Sem paciência para supostas previsões, o infante montou em seu cavalo e, com o amigo, saiu a galope atrás de seus homens. Ainda tinha uma caçada à sua espera. O resultado da caçada foi bastante satisfatório. Além do javali e do gamo, conseguiram as carnes de vários animais menores. Pedro, então, despachou na frente Lobato e o restante dos homens direto para o mosteiro. Foi na retaguarda, sozinho. A bruxa dera-lhe muito para refletir. Pensou na tal mulher que amaria… Ou que já amava. Ela morreria, era isso? Branca iria morrer? Cada vez mais preocupado, não percebeu que aumentava a distância entre ele e os homens. Quando mais de um dia já os sepa rava, o infante escolheu um trajeto alternativo para ganhar tempo. Desembocou duas horas mais tarde, por volta do meio-dia, numa trilha usada por quem preferia passar despercebido, pois assim evitava as estradas mais movimentadas.

Despertaram-lhe o interesse algumas marcas feitas na terra pelas ferraduras de um cavalo. Eram recentes. O cavaleiro ia poucos minutos na dianteira.

35 Pedro e Inês de Castro Temeroso, o garoto apertou o punho da espada. Ainda estava longe de Coimbra e sabia muito bem que era perigoso viajar sozinho. Não havia segurança nas fronteiras do reino e muito menos em seu território, sempre ameaçado por vagabundos, ladrões e soldados sem liderança atrás de roubos e saques. Em certo ponto, o tal cavaleiro abandonou a trilha. Mais para a frente, novos rastros revelavam que ele encontrara alguém vindo da direção oposta. Tinham descido juntos até um riacho próximo.

Arriscando-se a ser descoberto, rastejou até um punhado de arbustos que mal o ocultava. Dessa vez, o vento decidiu cooperar e trouxe-lhe algumas palavras.

Avistou-os em pé, junto à margem do riacho. Uma das monta rias pastava a alguns metros. A outra não era visível. Cobertos por longas capas de viagem, os dois homens conversavam em voz baixa, o que obrigou Pedro, escondido atrás de uma árvore, a apurar os ouvidos. O barulho da correnteza, no entanto, atrapa lhava seus planos. Precisou se aproximar ainda mais.

Talvez não devesse dar importância ao fato, mas, enfim, a curio sidade de Pedro levou a melhor. Ele desmontou, escondeu seu cavalo na vegetação e, sem fazer barulho, seguiu os dois.

– Estamos acertados – dizia um dos homens, enquanto entre gava ao outro uma pequena caixa de madeira. – A infanta deve morrer antes do final deste mês. Pedro gelou. De que infanta falavam? Branca?

O outro fez uma pergunta que não pôde ser ouvida. Estava de costas para o infante, sob a sombra da copa robusta de uma árvore. O garoto enxergava apenas seu vulto.

– Não duvides – respondeu o primeiro. – D. Juan Manuel sabe recompensar seus aliados. Referia-se a um dos mais poderosos nobres castelhanos, neto de reis e dono de terras de importância estratégica para seu reino.

Pedro e Inês de Castro No momento, era um inimigo não declarado do rei castelhano por ele ter repudiado anos antes Constança, a filha preferida de Juan Manuel, humilhando-o diante de todos.

Por fim, mandara assassinar o mais importante desses aliados antes de desfazer o casamento e trancafiar Constança no castelo de Toro, garantindo assim um aparente controle sobre as ações de Juan Manuel. Satisfeito com a própria esperteza, o rei castelhano partira para um acordo mais vantajoso: tomara a infanta portu guesa Maria como esposa e unira Branca a Pedro, o que lhe permitira se apropriar de parte da herança paterna da prima. Juan Manuel, entretanto, rebelara-se, atacando povoados e destruindo plantações. Dois anos mais tarde, o rei castelhano devolvia-lhe a filha. Um acordo de paz fora firmado. Mas será que, após tanto tempo, o ressentido Juan Manuel tramava algum tipo de vingança que, na certa, iria lhe devolver o poder e ajudá-lo a acumular mais riquezas? Pedro apertou os olhos, tentando acompanhar os movimentos do segundo homem. Ele já se deslocava numa rota que o colocaria fora do alcance do infante. Ainda restava o primeiro homem, aquele de quem Pedro arran caria toda a Tomandoverdade.omáximo

Pedro só teria uma chance. Arriscou.

Na realidade, tudo não passara de uma estratégia do rei caste lhano para enganá-lo e, principalmente, quebrar a aliança dele com outros nobres que cobiçavam o trono. Atraíra-o para o seu lado, enchendo-o de promessas e casando-se por palavras de presente com Constança, na época ainda uma criança, ao mesmo tempo em que o afastara dos aliados.

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cuidado para não ser visto, o garoto subiu numa árvore e aguardou. O sujeito teria de passar por ali, após retomar o cavalo, se quisesse ir para a trilha. Foi o que aconteceu.

Pedro e Inês de Castro Assim que o outro passou debaixo dos galhos em que se pendu rara, o garoto pulou sobre ele, surpreendendo-o. Ambos caíram da sela e rolaram declive abaixo até o riacho. Quando pararam, Pedro foi mais rápido. Sacou sua espada e, prendendo o homem ao chão com a parte de cima de seu corpo, encostou-lhe a lâmina contra a garganta, exigindo respostas.

– Que infanta D. Juan Manuel quer morta? O que tinha dentro daquela caixa?

O sujeito era maior, mais velho e muito mais forte do que ele. Arreganhou os dentes num sorriso de desdém. A ameaça não surtiaPedroefeito.teve de se esforçar mais. Provocou-lhe um talho com a arma. Sangue brotou em seguida. De repente, uma adaga atravessou um pedaço da camisa do garoto, rasgando-lhe pele e carne de raspão na lateral de seu abdô men. Apesar de sua pouca mobilidade, o sujeito conseguira tirar a arma de algum bolso, movera a lâmina para cima e, sem muita pontaria, desferira o golpe.

O instinto de sobrevivência fez Pedro retroceder em vez de degolar seu prisioneiro, que o empurrou com violência para trás, se pôs em pé com agilidade e, trocando a adaga pela espada que tirou da bainha, avançou para retalhá-lo.

Outra vez no chão, o garoto ergueu a arma para se defender.

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O golpe veio e foi rechaçado. Com as pernas, Pedro empurrou o adversário, ganhando milésimos de segundos para se levantar. Vieram novos golpes, uma ofensiva que não lhe dava oportunidade de reagir. Mal e mal conseguia se defender. Foi recuando, sentindo que se aproximava cada vez mais do riacho. Um último ataque arrancou-lhe a espada. Indefeso, o garoto jogou-se de costas na água, ao mesmo tempo em que a lâmina adversária cortava o ar, a ponta raspando-lhe o peito de lado a lado enquanto ele caía. Conhecia bem aquele riacho. Tinha pouca

Pedro engoliu ar e afundou. A flecha bateu na superfície da água e perdeu o impacto. Vieram outras enquanto ele, aflito, nadava para fugir. O sujeito caminhava pela margem, seguindo-lhe os movimentos que, mesmo debaixo d’água, eram visíveis para ele.

Pedro e Inês de Castro profundidade, mas o suficiente para que pudesse imergir e nadar paraMinutoslonge. depois, quando teve de ir à tona para respirar, viu que o perigo se tornara muito pior. O sujeito correra até o cavalo, que parara a poucos passos da árvore, e de lá trouxera um arco e uma aljava cheia de flechas, que pendurara ao ombro. Naquele instante, mirava o garoto numa pontaria que se mostrava exata. Disparou a flecha.

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Em algum momento o garoto precisaria respirar. Quando foi obrigado a emergir, Pedro arriscou tudo. Imediata mente uma flecha passou zunindo junto à sua orelha. Ele inspirou uma enorme quantidade de ar e mergulhou. Outra flecha quase o nadando. Além dos peixes que fugiam dele, vislum brou um punhado de raízes submersas de uma árvore enorme que, inclinada, mantinha o restante das raízes presas com firmeza no solo da margem oposta. Pedro bateu os pés com mais intensi dade, alcançou-as e, escondendo-se entre elas, pôs a cabeça para foraOd’água.sujeito, porém, previra sua manobra. Permanecia no outro lado do riacho, mas subira numa pequena elevação. De lá, disparouAnovamente.setademetal cravou-se numa das raízes atrás do garoto, milímetros acima de seu ombro, prendendo-o pelas roupas. Apavorado, Pedro tentou escapulir por baixo, livrando-se delas. O pé esquerdo ficou preso em algum lugar, ele começou a se deba ter. Sentiu dor quando outra seta veio fazer companhia à primeira, dessa vez acertando-lhe o ombro.

atingiu.Continuou

alguém o libertou e o puxou dali. Em terra firme, Pedro vomitou e quase perdeu a consciência, lutando para se manter lúcido.

Pedro contou-lhe o que ouvira da conversa entre os dois homens. Diogo coçou a barba, pensativo.

– Vão… ma-matar a infanta.

– Tua irmã mais nova, D. Leonor? – preocupou-se o rapaz.

Pedro e Inês de Castro A água invadiu seus ouvidos, o nariz, a boca. Ele sufocava e engolia mais água. As flechas não seriam mais úteis. Morreria afogado.Foiquando

Pedro teria caído na gargalhada se a situação não fosse tão grave.–Obri-bri-gado.

– Meu pai enviou-me para cuidar de um assunto no norte. Vim pela trilha, então descobri teu cavalo e fiquei preocupado. Segui teusOrastros.garoto tivera mesmo muita sorte.

– É desse modo que me agradeces? Criticando minhas ações? Fiz o que era necessário: matei teu futuro assassino e ainda tive de entrar na água para te salvar! As roupas elegantes de Diogo estavam imprestáveis. Os cabelos, sempre penteados e na altura dos ombros, exibiam-se escorridos e sem graça, assim como a barba. Lembrava um bode que apanhara chuva.

Como… me achaste… aqui?

– Por que sempre te metes em confusão? – censurou uma voz conhecida.Pertencia a Diogo, o filho de Lopo Pacheco. Fora ele quem mergulhara para salvá-lo. Com dificuldade, o garoto sentou-se. Na margem oposta, o sujeito estava estendido de bruços no chão. Diogo atravessara-lhe as costas com a espada. – Ele não… podia morrer – disse Pedro.

– Talvez… Mas acho… acho que é D. Branca.

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Porém, se o filho estivesse falando a verdade… Afonso fran ziu a testa. Se fosse isso, estavam agindo sem a sua autorização. De qualquer forma, não pretendia interromper uma iniciativa que só lhe traria benefícios. Para ele, os fins sempre justificavam os meios. E Pedro, como futuro rei, tinha de aprender essa lição de um jeito ou de outro. Para ensiná-lo, Afonso aplicou-lhe uma sova de cinturão, que bateu sem piedade várias vezes em suas pernas. Rebelde e cabeça -dura, o garoto não derramou nem uma lágrima sequer. Foi Beatriz quem desatou a chorar por ele, o que obrigou Afonso a interromper o castigo. – O que achas que aconteceria ao reino se eu perdesse meu único herdeiro? – o pai esbravejou por fim. – Sempre me decepcio nas. Por Pedroquê?não respondeu, sua raiva e humilhação juntas no único olhar que fitava o vazio à sua frente.

40 Pedro e Inês de Castro – Deves contar a teu pai – aconselhou.

Afonso não acreditou numa só palavra do filho. Reuniões secretas junto a riachos, caixinhas misteriosas, Juan Manuel como mandante de um assassinato contra uma infanta… Pedro realmente tinha muita imaginação para explicar por que quase fora morto por um ladrão qualquer. Um perigo que ele mesmo provocara ao arriscar a própria vida após dispensar a escolta. Mais uma vez desobedecia ao pai e ao tutor só para andar sozinho por aí.

– Achas mesmo? Afonso não era exatamente um pai que o apoiaria… – É o mais acertado. Bom, vou te levar de volta a Coimbra. Mas antes vamos cuidar destes teus ferimentos. Estás sangrando.

Inês apaixonou-se pela cidade de Lisboa. Perdera o fôlego ao contemplar o majestoso Tejo, o rio que parecia convidar para viagens em mares cheios de mistérios e perigos. Subira em morros para ver a cidade do alto, conhecera as ruínas romanas, quase se perdera em Alfama, o bairro mouro, e no castelo de São Jorge. Nos arredores da cidade em que estava desde o outono, descobrira bosques encantadores, praias e aldeias à beira-mar.

41 Pedro e Inês de Castro Aborrecido, Afonso partiu horas depois para o castelo de Montemor. Beatriz recusou-se a acompanhá-lo. Preferiu ficar com Pedro que, após tomar os remédios ministrados pelo médico da “casa” da rainha, mestre Martinho do Rosmanial, estava tão sono lento que não conseguia sair da cama.

– Espera até conhecer Coimbra – dissera-lhe Teresa, senhora de Albuquerque e sua mãe de criação.

Filha bastarda do nobre Pedro de Castro, conhecido como Senhor da Guerra, e de uma dama de Teresa, a menina de nove anos saía pela primeira vez em muito tempo do castelo de Albuquerque, em Castela. Nascida na Galícia, fora muito criança viver com a nova família, junto com o irmão Álvaro. Nunca estivera antes em Portugal, o que aumentava seu entusiasmo.

Viúva de Afonso Sanches, o irmão bastardo que tentara roubar o trono de Afonso IV, Teresa tinha propriedades e livre trânsito por terras lusas, para onde viera para resolver alguns negócios. Graças à influência da mãe de Afonso, Isabel, que a tinha em grande estima, obtivera o perdão real pelas afrontas do falecido marido. Em Lisboa, ficaram na casa que Teresa possuía no local. No início da primavera, chegaram a Coimbra, onde visitaram primeiro Isabel e depois se hospedaram no paço, a convite da própria rainha Beatriz. Ela e a viúva não eram exatamente amigas, mas já tinham

Beatriz encantou-se com Inês. Também tinha duas meninas. Maria, a mais velha, que se tornara rainha de Castela, e Leonor, de seis anos, que era criada pelo casal Pacheco, responsável também pela educação do herdeiro da coroa. Segundo a rainha, Pedro estava em seu quarto, recuperando-se da luta que travara contra um ladrão. Que corajoso!, admirou-se Inês. – Foram as mãos de Deus que guiaram D. Diogo Pacheco para ajudá-lo – disse Beatriz. – Não sei o que seria de mim se algo acon tecesse ao meu Pedro…

42 Pedro e Inês de Castro se unido no passado, sob o incentivo de Isabel, para influenciar seus respectivos maridos a assinarem a paz.

Inês aprendia rápido. Apesar de deslumbrada com a corte, escondeu o que sentia, adotando uma postura gentil e tranquila, como se estivesse bastante acostumada à rotina real. Sua esper teza desde cedo conquistara o respeito do irmão de criação, o jovem Juan Alfonso de Albuquerque. “Para tua sorte e azar das belas, serás a mais bela entre elas”, ele sempre elogiava. Dizia fazer grandes planos para a menina, porém nunca revelava quais eram, explicando que tudo tinha o tempo certo para acontecer. Único filho de Teresa e Afonso Sanches, ele permanecera em Albuquerque, administrando seus assuntos por lá.

Ocupavam uma antecâmara onde a rainha recebia os amigos mais próximos. Teresa estava acomodada numa cadeira, a anfitriã em outra, à sua frente, com a anã que sempre lhe fazia companhia, Maria Migueis, sentada no chão ao seu lado. Inês estava em pé atrás delas, assim como outras damas da “casa” e as damas que pertenciam à comitiva da visitante. Para recepcioná-las, havia frutas, bolos e vinho doce numa mesinha. A conversa durou mais algum tempo até que Teresa e suas damas de companhia se retiraram para os aposentos destinados a hóspedes. O grupo não demoraria mais do que uma semana em

– Tira-me daqui… – cochichou-lhe Pedro. – Agora…

Pedro e Inês de Castro Coimbra, pois ainda teria um longo percurso pela frente até Albu querque.Inêssó ficou decepcionada ao descobrir que talvez não houvesse tempo para conhecer o rei português. Ele partira na véspera para Montemor e ninguém sabia informar a data de seu regresso.

Após a menina cuidar de seus afazeres, Teresa a dispensou para que ela pudesse passear à vontade, mas desde que não fosse muito longe nem saísse às ruas. Feliz, Inês beijou a face de sua mãe de criação, foi calmamente até a porta e, quando se pôs longe de sua vigilância, saiu correndo como a criança que ainda era.

A muito custo, Pedro sentou-se na cama. A cabeça e as pálpe bras pesavam, devido à sonolência induzida pelos remédios. Tinha alguns curativos pelo corpo, hematomas e inúmeros arranhões. O pior vinha das pernas, que latejavam de dor. O cinturão deixara várias marcas roxas e promovera cortes em alguns pontos.

Em pé ao lado da cama, Lobato parecia sofrer mais do que ele.

– Eu não devia ter te deixado sozinho, senhor – culpou-se.

A ama que o vigiava já pegara uma tigela de sopa fumegante e apressava-se para servi-lo. Uma aia apareceu na porta, sorriu e retornou ao corredor.

– Esta sopa vai queimar a língua do infante – disse Lobato para a ama. Ela não lhe deu ouvidos. Ele respirou fundo, forçando-se a adotar uma atitude gros seira que jamais aprovaria. Puxou a mulher pelo braço, fazendo-a

Lobato, indeciso, analisou o final de tarde lá fora. Depois espiou Pedro, que abria a boca para tomar a sopa dada em prestativas colheradas pela ama. Seu olhar implorava urgência.

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O infante não podia fugir pela porta. Mas havia a janela…

44 Pedro e Inês de Castro derrubar a tigela. O líquido espalhou-se sobre a cama, por sorte longe de Pedro.

gosa.Lobato

– Vou contigo, senhor. – Não podes. Tens de recolher a corda depois que eu pular e escondê-la novamente. – Mas estás fraco. E se caíres? – Estamos no primeiro pavimento. Não será uma queda peri não teve escolha. Com um empurrão seu, Pedro subiu na janela. Ele se prendeu à corda e foi deslizando até o chão. Somente quando o viu em segurança é que o criado puxou a corda paraAquelecima. lado do paço dava para o horto, o que proporcionava uma vista bucólica e a proteção das árvores, flores e plantas para as fugas Pedrohabituais.controlou a dor e, mancando, esgueirou-se até entrar na porta mais próxima, outra vez no interior da construção. Precisava garantir que nada aconteceria a Branca.

– Olha o que fizeste, D. Estêvão Lobato! – reclamou ela, com razão. – Contarei tudo a D. Lopo! Indignada, recolheu a tigela, guardou a colher no bolso do vestido e saiu. O garoto correu para trancar a porta.

Num esforço tremendo, Pedro colocava-se em pé. Rápido, Lobato pegou as roupas simples que o infante costumava usar em seus disfarces e a corda que também escondia atrás de uma pedra solta, na parede. Não era a primeira vez que ele fugia pela janela. Ajudou-o a vestir a calça comprida, tirar o camisolão, colocar a camisa e pôr os sapatos. A seguir, amarrou uma ponta da corda no madeiramento da cama e lançou a outra ponta para fora da janela.

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Onde será que fica a cozinha?, perguntou-se. Seguiu um palpite e distanciou-se dos principais aposentos do paço. Devido ao risco constante de incêndios, a cozinha ficava no térreo, numa área mais afastada.Onarizinho

Alguém passara um pouco antes por lá, carregando a refeição para servi-la a outra pessoa, e sem perceber deixara o aroma para trás.

Pedro e Inês de Castro Lobato agiu rápido. Soltou a ponta da corda, escondeu-a no buraco na parede antes de recolocar a pedra, jogou o camisolão de Pedro por cima das próprias roupas, improvisou alguns curativos no rosto e nos braços, respirou ainda mais fundo e foi destrancar a porta. No segundo em que a ama a abriu, trazendo a tigela nova mente cheia de sopa, ele a ultrapassou numa corrida desabalada.

O estômago de Inês reclamou de fome. Para não parecer mal-edu cada diante da rainha, limitara-se a comer um minúsculo pedaço de bolo.

– Ai, meu Jesus, o infante fugiu! – Ouviu-a gritar antes de desa parecer no corredor.

Um aroma delicioso de sopa vinha de um dos corredores.

da menina logo farejou o cheiro da carne que preparavam na grelha. O estômago roncou de novo. Foi se apro ximando, a rotina barulhenta da cozinha cada vez mais intensa. Parou na porta. O local era imenso, esfumaçado e um tanto sinistro. O fogo, aceso em um buraco no solo e coberto por uma fileira de pedras, aumentava bastante a temperatura daquele final de tarde. Havia tachos, potes, panelas, caldeirões, cutelos e colhe res de cozinha, entre outros utensílios de cerâmica, madeira, ferro e cobre espalhados pelo chão e em poucas mesas. Cozinheiros e outros serviçais – o que incluía servos e mouros, ambos considera dos escravos domésticos – iam de um lado para outro, atarefados.

Estás perdida, senhora? – ele perguntou.

Pedro e Inês de Castro Um deles, uma menina mais nova do que Inês, espetava ramos de alecrim em grossas postas de peixe já temperadas, que seriam passadas na farinha e cozinhariam com azeite na brasa. Trabalhava sob a supervisão de uma cozinheira envelhecida precocemente pelo excesso de trabalho, ocupada em também cortar alhos e cebolas.

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Inês entrou, deu uma volta pelo aposento, pegou um punhado de castanhas cozidas, guardou-as no bolso e saiu de fininho. Pensava em encontrar um lugar mais tranquilo para fazer sua refei ção quando uma serva, que caminhava à sua frente levando uma tigela de caldo – pelo aroma, de galinha –, escondeu-se numa reen trância na parede. Achando que ninguém a observava, ela tirou um vidrinho que guardava entre os seios, sob o decote do vestido, e lançou ao caldo o conteúdo, uma pitada do que parecia ser farinha. De modo desajeitado, mexeu o caldo com o dedo, endireitou-se e retomou o caminho. Orientada por um mau pressentimento, Inês resolveu segui-la. A serva usava preso à cabeça um lenço largo, como preferiam muitas mulheres para esconder seus cabelos. Alguns fios ruivos, porém, escapavam da prisão. Ela era alta, jovem e tinha pressa. No pavimento superior, tomou a direção do quarto da infanta Branca, um trajeto que a menina fizera antes de sentir o aroma da sopa e rumar para a cozinha. A poucos metros do aposento, a serva fez uma reverência a um jovem fidalgo. Chamou-o de D. Diogo ao cumprimentá-lo, o tom de voz trêmulo, e logo depois entregou a tigela a uma das damas da “casa” de Branca, que a aguardava. Deu meia-volta e, ao reparar em Inês, lançou um olhar preocupado para o rapaz e apressou o passo antes de desaparecer de cena. Diogo, porém, não prestava mais atenção nela. Olhava para Inês.–

– É veneno… – murmurou. O rapaz fechou as sobrancelhas.

– Tenho de avisar D. Branca! – ela gritou, com medo. – Querem começava a machucá-la. Como ela resistisse, Diogo prendeu-a pelo pescoço. Levava-a para as sombras, um trecho mais afastado e deserto naquele instante. Demorariam a encon trar o cadáver da criança intrometida. Diriam que ela escorregara, o pescoço se quebrara na queda…

envenená-la!Oaperto

– A serva pôs veneno no caldo de D. Branca! – atropelou Inês. Se o garoto não a ajudasse, não teria outra chance de sobrevivên cia. – Temos de salvá-la! O garoto puxou-a pela mão, arrancando-a de Diogo, e correu com ela até o quarto. Entraram sem bater, esbaforidos, perturbando

– Algum problema, D. Diogo? – perguntou alguém.

– Veneno… É o que havia no vidrinho. Eu vi quando a serva jogou o veneno no caldo. De modo brusco, ele pegou a menina pelo antebraço e se pôs a arrastá-la para longe dali.

– A menina está perdida e… – mentiu o rapaz.

47 Pedro e Inês de Castro A dama que recebera a tigela acabava de entrar no quarto de Branca. Inês sentiu um calafrio, seu mau pressentimento deduzindo o pior.

– Estás enganada… – disse, ameaçador. – Por que não vais brincar com tuas bonecas?

– O que queres dizer?

Rapidamente o rapaz livrou o pescoço de Inês, apesar de ainda segurá-la pelo antebraço. Fingiu um sorriso inocente. Havia um garoto nas sombras. Era gordinho, estava abatido, vestia roupas comuns e tinha curativos no rosto. Os cabelos castanho-claros eram ondulados e atingiam seus ombros. O olhar escuro mirava Diogo com frieza.

– Não sei – admitiu o garoto. – A não ser… – O quê? – Que desejem para ti um casamento mais vantajoso. – Mas já sou casado contigo! Boquiaberta, Inês espiou o garoto maltrapilho ao seu lado. Então aquele era Pedro… Discretamente retirou a mão que ele ainda segurava.

– Não bebas! – gritou o garoto. Branca interrompeu o gesto, olhou para ele e não entendeu o motivo de tanto drama.

– Acho, senhora, que o caldo está envenenado – explicou Inês.

– É muito feio caluniar um nobre tão importante quanto D. Juan Manuel! – ralhou. – Sabes muito bem, senhora, que ele é teu tio e…

– E pai da minha prima Constança… – completou Branca. Pensa tiva, olhou para a porção de caldo na colher que ainda segurava, analisou-a por alguns segundos e devolveu-a à tigela. – Por que ele desejaria minha morte?

– Ah, Constança – Branca limitou-se a dizer.

– Achas? – disse ela. – Significa que não tens certeza?

– É que não tive a oportunidade de te contar antes sobre o plano que ouvi – disse o garoto. – D. Juan Manuel mandou assassinar uma infanta. – Eu?! – A-acho que sim. – Também não tens certeza? Berengária fechou o livro com estrondo.

Pedro e Inês de Castro a tranquilidade do local. A dama, que a menina soube depois ser a aia Berengária, folheava um livro de rezas, sentada em um banco. A seus pés, um cachorro vira-lata lambia um pouco do caldo que ela lhe servira em um pote. Já a adolescente que devia ser Branca estava numa cadeira, com a tigela no colo. Levava uma colherada de caldo à boca.

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O médico chegou naquele minuto. Os gritos de Berengá ria tinham atraído uma multidão. Outras mãos tentaram acudir Branca, e logo Pedro e a loirinha foram afastados. A infanta contorceu-se uma última vez e não se mexeu mais.

– D. Branca ainda respira – disse o médico ao examiná-la. Pedro não podia fazer mais nada por ela. Engoliu o desespero e virou-se para a loirinha.

Pedro e Inês de Castro Ela olhava para o cachorro, que acabava de entrar em convul são. Berengária apavorou-se e, gritando pelo médico da “casa”, voou para fora do quarto.

Branca também entrou em convulsão. Desesperado, Pedro correu até ela para ampará-la. A menina loira de olhos cinzentos, que tirara do poder de Diogo, foi ajudá-lo. A infanta debatia-se, babava. A tigela caiu de seu colo e espatifou-se no tapete, que absorveria o caldo.

– Conta-me tudo – exigiu. Lobato correu para valer. Despistou guardas, dois fidalgos que também resolveram persegui-lo, uma aia e até um bando de crian ças que brincavam no pátio externo. Terminou a odisseia numa das torres, escondido em um buraco. Permaneceu alguns minutos ali, esperando tudo se acalmar.

– Pedro… – disse Branca. Lágrimas escorriam-lhe pela face. O coração do cachorro parou de bater. – Quando entraste, eu já tinha tomado uma colher do caldo…

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Quando se sentiu seguro, deixou o esconderijo e, cuidadoso, foi

50 Pedro e Inês de Castro até a janela para ver a quantas andava o rebuliço causado pela fuga do suposto infante. Esquadrinhou o pátio… A rotina de sempre. No alto da muralha, metros abaixo de onde estava, a situação também parecia tranquila. Havia apenas um casal de namorados que, aproveitando a semiescuridão trazida pelo final da tarde, beijava-se ardentemente em um canto mais discreto. Pelas roupas, ela talvez fosse uma serva. Ele lhe tirou o lenço da cabeça e pare ceu se perder na vasta cabeleira ruiva da jovem antes de despi-la da cintura para cima… Lobato não conseguia piscar. Não reparou no rapaz, que estava de costas para ele e usava um longo manto escuro. Só tinha olhos para a anatomia feminina, a pele muito branca que se destacava na penumbra…Seututor,Lopo

Pacheco, pretendia casá-lo com uma das jovens da “casa” de Beatriz, mas nada, por enquanto, fora acertado. Muito tímido com as mulheres, embora bastante assediado por elas, o garoto ainda não tivera a oportunidade de conhecê-las mais inti mamente.Nominuto

em que os sinos da catedral, seguidos pelos sinos das demais igrejas e mosteiros, tocaram para anunciar o momento da oração do Ângelus, marcando o pôr do sol e, como consequên cia, o fim do dia, Lobato fez o sinal da cruz e começou a rezar. No alto da muralha, o rapaz quebrava o pescoço da jovem e arremes sava-a para o lado de fora da cidade, direto para a ribanceira que levaria o cadáver até escondê-lo em um matagal. Horrorizado, o garoto interrompeu a “Ave-Maria” e acompa nhou com os olhos a fuga do rapaz na direção oposta à torre até ele se perder na escuridão.

Fatos terríveis que Pedro só poderia provar se encontrasse a serva.–Vamos

Pedro e Inês de Castro Na cozinha, o infante procurou por Brites, a única serva ruiva e jovem que conhecia. Sempre que aparecia por lá, ela lhe dava generosas porções de assados e enchia sua caneca de vinho.

– Ela deve ter fugido – opinou a menina loira.

O que Diogo pretendia ao ameaçar uma menina indefesa? Matá -la por que ela vira demais? Ou talvez a pergunta devesse ser outra: não era coincidência demais o filho de Lopo Pacheco estar na trilha, avistar o cavalo que Pedro escondera tão bem na vegeta ção e aparecer para salvá-lo justo quando o garoto mais precisava de ajuda? Aliás, por que o salvara? Para evitar uma crise sucessória em Portugal? Ou apenas para manter vivo o noivo de um casa mento mais vantajoso?

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continuar procurando – disse para a menina. Já tinham subido para o pavimento superior quando os sinos chamando para o Ângelus se puseram a replicar. Ambos benze ram-se e rezaram.

Pedro tinha as respostas. Diogo era o segundo homem, aquele que recebera a caixa. Por isso estava tão perto para ver o infante em perigo, voltar rapidamente para salvá-lo e, de quebra, se livrar do único que poderia denunciá-lo: o representante de Juan Manuel. Quanto à caixa… O que havia dentro dela? “O vidrinho com o veneno”, concluiu o garoto, sombrio. Já a serva Brites, considerada uma pessoa de confiança pela família real, executara o plano ao envenenar o caldo destinado a Branca.

Pedro mordeu os lábios, inquieto, o raciocínio tirando conclu sões, a memória oferecendo uma nova interpretação para o que vira e ouvira na floresta, sua luta contra o homem que trouxera a caixinha de madeira…

Brites não estava em lugar nenhum e ninguém sabia dela.

Com muita dificuldade, Pedro conteve o choro. Pedia a Deus pela vida de Branca.

Pedro abriu a boca. Fechou-a, pois não tinha o que informar.

– Senhor, quem é essa? – perguntou.

– Ela não tem nome?

– Sou D. Inês de Castro – apresentou-se a menina. – Filha de criação de D. Teresa de Albuquerque. Lobato meneou a cabeça.

– Se D. Diogo a encontrar, ele a mata – preocupou-se Pedro. Inês encolheu-se. Não tinha pensado na possibilidade de Diogo insistir em calá-la para sempre.

– Sei quem é. Mas não a reconheci. Ela estava muito longe.

– Brites… Lembra-te dela, não?

– D. Estêvão… – disse o infante. – D. Diogo envenenou D. Branca a mando de D. Juan Manuel.

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– Vi algo que… – ele tentou contar. Tremia, muito pálido.

– Quê?! Pedro contou tudo, em detalhes, gaguejando quando ficava mais nervoso. O amigo ouviu-o em silêncio.

– A loirinha que viu demais.

– Uma serva ruiva? – ele quis confirmar.

os cotovelos. Parara de tremer. Só então pareceu notar a presença de Inês.

– Isso fica cada vez pior – lamentou. – Agora temos os Castro e a família de Afonso Sanches envolvidos nessa história.

– Tu a Lobatoviste?abraçou

Pedro e Inês de Castro Novamente no térreo, eles iam para o pátio, porém um garoto, que se refugiara atrás de uma tapeçaria, pôs a cabeça para fora e chamou-os para se juntarem a ele no esconderijo. Devia ter a idade de Pedro, vestia um camisolão por cima das roupas e, como Inês reparou, usava falsos curativos que não enganavam ninguém.

– Não podes provar nada – continuou Lobato. – E depois…

Pedro permaneceu quieto por alguns minutos. Quando falou, olhava para Inês.

Hesitava em revelar a extensão da verdade. Pedro retirou as mãos para fitá-lo. Uma expressão dura marcava-lhe os traços.

– Como podes saber? – questionou Pedro.

– Eu estava na torre e vi quando aconteceu. O infante cobriu o rosto com as mãos.

– Senhor…

– D. Estêvão, nós precisamos protegê-la.

O desaparecimento de uma serva não despertou a atenção da nobreza, mais interessada em saber se Branca sobreviveria ao mal súbito que a vitimara. Se Berengária acreditou em Pedro, preferiu

– Pareces D. Branca falando. – E estou errado, senhor?

– Achas que meu pai está envolvido nisso – disse.

quebrou o pescoço dela e jogou-a da muralha, para fora da cidade. A menina sufocou um gemido de terror.

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– É o que somos, não? Simples peões nesse jogo imundo…

– Talvez não. De qualquer forma, ele não fará nada contra um filho dos Pacheco ou ao próprio D. Juan Manuel. Uma infanta morta é mais uma fora do caminho para o casamento com outra que trará novas alianças e mais fortunas. Quantas histórias nós já não ouvimos sobre maridos que, enquanto enterravam as falecidas esposas, já planejavam uma nova união?

– Se ela contar a verdade a meu pai, nós poderemos provar que…–Alguém

Pedro e Inês de Castro – Tu viste a Brites? – retomou o infante. O amigo assentiu. – Diz logo onde ela está!

54 Pedro e Inês de Castro não dizer. Calou-se como Inês e Lobato. Testemunhas de assas sinatos e envenenamentos podiam perder a vida em acidentes banais, provocados por quem desejava silenciá-los.

Quanto a Pedro, naquele momento restavam-lhe duas priorida des. Uma delas era cuidar para que Inês deixasse Portugal sã e salva. O primeiro passo foi aconselhá-la a não sair de perto de Teresa e apenas comer o que fosse servido a ela e à sua comitiva. O segundo foi colocá-la sob a vigilância discreta de homens de confiança, que a seguiram à distância na viagem de regresso a Albuquerque. Lá a menina estava segura. Para garantir que Diogo ou qualquer outro Pacheco não a alcançasse, ela deveria contar tudo ao irmão de cria ção e primo de Pedro, o poderoso Juan Alfonso. Ele tomaria suas providências para protegê-la. A outra prioridade era Branca. Pedro não saiu de perto dela, acompanhando a evolução de seu quadro. O veneno, por ter sido ingerido numa quantidade mínima, não a matara, mas lhe provo cara um derrame. Como consequência, o lado esquerdo de seu corpo ficara paralisado. Por sorte, a fala e o raciocínio não foram afetados.–Vais melhorar – dizia-lhe o infante. Diariamente, ajudava Berengária a exercitar a perna e o braço esquerdos de Branca, que ainda recebiam óleos e pomadas para incentivar sua movimentação. Com a ponta dos dedos, ele massa geava o rosto da jovem, estimulando-lhe os músculos. Ela voltaria a sorrir, tinha certeza. Pedro não comemorou sua maioridade, ocasião em que obteve o controle de seu dinheiro e suas terras, nem tampouco a “casa”

O cadáver de Brites demoraria anos até ser encontrado e não faria mais nenhuma diferença. Ao que tudo indicava, seu assas sino era Diogo. Após descobrir que Inês a vira envenenar o caldo, ele correra para eliminar qualquer prova que o ligasse àquela cons piração. Levara a serva para a muralha, possivelmente já eram amantes. Ela confiara nele e morrera por isso.

Pedro e Inês de Castro que passou a ter sob a sua responsabilidade. Afonso indicou Lopo Pacheco para atuar como mordomo-mor, ou seja, como o primeiro oficial responsável pela administração da nova “casa”.

Em 1335, as relações entre o rei castelhano Alfonso XI e a esposa Maria pioraram ainda mais. Com a política de conceder privilégios aos seus bastardos e à família da amante Guzmán, ele desagradava aos nobres castelhanos. Perdia aliados importantes, que se uniam contra ele. Preocupado com a filha e a perda da influência em Castela, o rei português Afonso IV tornou oficial o repúdio a Branca ao enviar representantes ao reino vizinho e a Aragão para comunicar o fato a seus respectivos soberanos. A princípio, o rei aragonês não aceitou o repúdio; após enviar seus médicos a Coimbra para examinarem Branca, foi obrigado a concordar com Afonso. Diante dos médi cos, a jovem assumira uma expressão vazia e idiota para que

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Ao final daquele ano, Pedro confirmou o óbvio. Desde março, antes mesmo da caçada em que descobrira a conspiração de Juan Manuel, o abandono de Branca como esposa e o novo casamento com Constança já apareciam nas correspondências diplomáticas entre Portugal, Castela e Aragão. Na mesma época, houve apenas uma notícia que o alegrou. Além de mover timidamente a ponta afetada da boca num sorriso torto, Branca conseguiu se sentar sozinha. Em breve, com muita dedicação e o auxílio de uma bengala, voltaria a andar.

Pedro pensou em recusar, porém mudou de ideia. Duvidava que o tutor, o homem decente e honesto por quem nutria grande admiração, concordasse com as ações traiçoeiras de Diogo. Já esse rapaz rece beu do rei um novo título e mais propriedades, em agradecimento a serviços prestados à coroa, um deles por ter livrado o infante da morte. Afonso não disse qual era o outro serviço, mas também não precisava. O filho sabia muito bem o que o jovem ambicioso fizera para agilizar os novos negócios do reino.

No começo do ano seguinte, Branca e os membros de sua “casa” foram enviados a um mosteiro nos arredores de Coimbra. Ficaram sob a vigilância do bispo de Silves, um homem intransigente que, obedecendo a ordens expressas do rei português, não permitiu que Pedro se aproximasse da infanta. Quanto mais cedo o garoto se separasse dela, Afonso acreditava, mais rápido a esqueceria.

Somente em meados de 1341, Branca pôde seguir para territó rio castelhano. Sua partida foi envolta em tanto mistério que Pedro só descobriu quando era tarde demais para tentar qualquer despe dida.Apenas

jurou que iria encontrá-la, nem que para isso tivesse de virar o mundo do avesso.

Pedro tentou de tudo: entrar disfarçado no mosteiro, invadi-lo, subornar os religiosos, enviar secretamente cartas e recados a Branca. Nada deu certo. Nesse meio-tempo, a tensão entre Afonso IV e o genro Alfonso XI foi se tornando insuportável. Ainda em 1336, estourou a guerra entre Portugal e Castela, o mesmo ano que Isabel, vítima de um tumor no braço, não resistiu e morreu. Foi um novo golpe para Pedro. Ele ainda teve de suportar a cerimônia de seu matrimô nio por procuração com Constança, em Évora. Como a noiva ainda não saíra de Castela, foi representada por um nobre.

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Pedro e Inês de Castro duvidassem de sua sanidade. Afastar-se das conspirações matri moniais era a única opção que lhe restara para se manter viva. Pedro, arrasado, teve de aceitar o repúdio. A menina que ele amava desde os dez anos seria devolvida e outra viria ocupar seu lugar.

3

C astela , 1356 Ele viera, como fazia pelo menos uma vez por ano desde que a descobrira vivendo no Mosteiro das Huelgas, em Burgos.

Mandava-lhe em segredo um bilhete por pessoas de confiança e então a esperava em um ponto remoto não muito longe dali. Tanto um quanto outro tomavam todas as precauções para garantir o completo sigilo daqueles encontros. Era ele quem mais enfrentava riscos. Se algum inimigo o descobrisse em território castelhano, seria uma presa fácil. Na mais otimista das hipóteses, poderiam capturá-lo e pedir resgate, uma prática bastante comum. No ano anterior, ele assinara um tratado de paz após levar o caos ao norte de Portugal. Chegara inclusive a cercar a cidade do Porto. Ficara fora de si, enlouquecido. Um período sangrento, de desvario.Como uma pessoa que valorizava tanto a vida pudera agir daquele jeito? Claro que ele não era mais o menino que ela conhe cera. Estava com 36 anos, homem feito e destemido, mas, mesmo assim…Branca suspirou. Exatamente como previu a bruxa havia mais de vinte anos, tinham arrancado o coração de Pedro. Não literalmente,

Pedro e Inês de Castro é verdade. Ele continuava vivo, atrás da vingança que jamais lhe trariaApóspaz.ajeitar seu hábito de monja, Branca estreitou os olhos para a paisagem à sua frente. Nenhum sinal de civilização, a não ser pela simplória casa térrea metros adiante, quase oculta por um punhado de árvores, visível apenas para os viajantes que, como a monja e sua pequena escolta, saíam da trilha pela floresta.

– Eu o entendo, senhora – disse o criado. – Obrigaram-me a ser o garoto de recados e… Ele não conseguiu completar a frase. Não precisava. Branca já entendera.–Foste

– Como vais, meu querido amigo? – ela cumprimentou. – E tua esposa e filha? – Estão bem, minha senhora. Ele a ajudou a descer do cavalo e a buscar firmeza na bengala, sua companheira pelo resto da vida. Deu-lhe o braço e, sempre gentil, conduziu-a em direção à casa.

Do lado de fora da construção, dois cavalos pastavam. Lobato abriu um sorriso e veio recebê-la.

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tu que lhe deste a notícia? – perguntou.

– E D. Pedro? Está se recuperando? – Muito devagar, senhora. – Diz-me, D. Estêvão, como ele pôde provocar tanta destruição?

–ElaFoi.apertou de leve seu braço, dando-lhe apoio. Lobato empali decera, os pensamentos tomados pelas lembranças dolorosas.

Lobato mordeu o lábio inferior. Lançou um olhar rápido para os membros da escolta que ficaram para trás e desmontavam. Cada qual ia cuidar de sua montaria.

– Não foi apenas ele… – disse. – Todos enlouqueceram. De dor, de ódio, de revolta. Não pensavam, só agiam. Precisavam extrava sar toda aquela loucura.

– Também senti a tua. Ele lhe beijou a testa e a levou para se sentar na única cadeira disponível. A casa limitava-se a um aposento de terra batida, sem nenhum outro móvel. Havia apenas uma janela, por onde o sol entrava para espantar a penumbra. Branca tomara o hábito de monja em 1343, dois anos após deixar Portugal e esperar uma longa negociação entre Portugal, Castela e Aragão envolvendo seu destino e a posse de suas propriedades que o rei castelhano já tinha distribuído aos filhos bastardos. No

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Pedro e Inês de Castro – E agora? O que restou? O criado mirou-a com seus olhos verdes. Mínimas rugas ao redor deles amadureciam a beleza daquele homem que, como Pedro, sempre poderia ter quantas mulheres desejasse.

– Restou somente o vazio, senhora. Mas a vida tem de conti nuar, não? – Sim, ela Chegavamcontinua.àporta, que estava entreaberta. Ele se afastou, pois permaneceria do lado de fora.

Deixou o banco, estendeu-lhe as mãos e foi até ela. Abraçou-a carinhosamente. – Senti tua falta, Branca.

Ele estava sentado em um banco, distraído, e não se levantou ao vê-la.–Engordaste – observou. – E desde quando se diz isso a uma mulher? – ela protestou, brincalhona.Pedrosorriu.

– Ajuda-o, senhora – sussurrou-lhe para que Pedro não o ouvisse.Branca entrou no local. Como Lobato, o infante também usava roupas de camponês, apesar de sua aparência desleixada e um tanto sombria deixá-lo mais parecido com um dos salteadores tão habituais em solo ibérico.

Após uma dura batalha contra a doença, a monja recuperara-se. Pedro partira e, um ano depois, providenciara a casa na floresta. Também passara a ajudá-la com seu sustento ao descobrir que nem sempre ela recebia a renda que lhe fora prometida.

O infante demorou a escolher as primeiras palavras, gague jou muito e, então, o desabafo e o desespero vieram torrenciais. Quando o choro o subjugou, Branca foi até ele e aninhou-o junto a si. Para Pedro, ela era a única em quem confiava para se permi tir ficar tão vulnerável. Fora seu primeiro amor. Para Branca, ele sempre seria o primeiro e único homem que amaria. Em algum momento, Pedro recuperou o autocontrole. Ela retor nou para a cadeira e ele, grato pelo carinho, esperou seu veredicto. Branca, porém, não pretendia julgar seus atos. Precisava, com a máxima urgência, dar-lhe um rumo.

A monja espiou Pedro, que estalava os dedos das mãos como se desejasse ganhar tempo. Ela teria de tomar a iniciativa. – Conta-me o que houve – pediu, compreensiva.

Apesar de tudo o que lhe acontecera, Branca estava feliz com sua vida no mosteiro. Deixara havia muito de integrar o circuito matrimonial e não tivera de conviver com o maior medo de espo sas e amantes: uma gestação malsucedida e, na maioria das vezes, mortal para a mãe e o bebê. Jamais conheceria a intimidade do leito nupcial, mas a experiência não lhe fazia falta. Não se sentia menos mulher por esse motivo.

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Pedro e Inês de Castro final das contas, ele lhe dera o direito a uma renda periódica. Do lado de Portugal, a devolução de parte do dote pela não realização do casamento, cláusula prevista em contrato, jamais ocorreria.

Pedro encontrara Branca meses mais tarde. Aparecera com Lobato no mosteiro, ambos fingindo-se de galegos e disfarçados de frades.Emmarço de 1346, o infante viera correndo ao descobrir que ela estava gravemente doente. Trouxera com ele um médico judeu, que também tivera de se disfarçar de frade.

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– Quem é essa moura?

– Sou assim tão transparente para ti? – resmungou. – Lês até meus pensamentos!

– Só os mais importantes.

– Quem esculpiu esta peça foi a jovem que me enviaste no ano passado – Branca explicou. – Ela nunca quis dizer seu nome, por isso eu a chamo de moura.

Pedro e Inês de Castro – Deves transformá-la numa rainha – sugeriu.

Pedro endireitou-se no banco. O raciocínio juntou possibilidades, mostrou-lhe escolhas. Seus olhos brilharam.

a peça com gosto e admiração.

– Um artista como esse poderia fazer o túmulo – indicou Branca. – Ou então os desenhos.

– Sim, ela receberá as honras de uma rainha – disse.

– Há algo que quero que vejas. Do bolso do hábito, a monja tirou uma pequena obra de arte, um cenário esculpido em madeira que retratava um menino Jesus recém-nascido na manjedoura, ladeado pela mãe e pelo marido dela. As figuras humanas eram bem-feitas e traduziam o talento do escultor.Pedroexaminou

– Quem fez esta peça?

– A Incrédulo,moura.

– Ela não é moura, mas é tão morena que se parece com uma. Possivelmente tinha sangue muçulmano misturado ao cristão, herança de algum antepassado, como ocorria com boa parte da população da Península Ibérica. Efeitos de uma época em que os dois grupos conviviam em paz no mesmo espaço, antes da reto mada cristã que gerava tanto ódio entre eles.

o infante arregalou os olhos, fazendo uma curiosa associação de ideias. Pensava em Zaynab. Branca não pôde deixar de rir.–Não me refiro à princesa nasrida – esclareceu. Ele fez uma careta.

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– Muito. É uma pessoa atrevida, de temperamento difícil, e muito mal-educada. Mas também é uma artista capaz de produzir obras belíssimas.

– Queres que eu saia também? – a senhora perguntou para Pedro.Ele meneou a cabeça. Preferia tê-la por perto para não perder o bom senso.

Pela manhã, o infante entrou na casa para conversar com a garota que tentara matá-lo meses antes. Ela estava sentada no chão, comendo uma fruta. Largou-a e levantou-se com agilidade ao vê-lo.Estava pronta para enfrentá-lo. Os olhos faiscavam de ódio, os ombros tensos, as narinas abertas e o peito subindo e descendo numa respiração acelerada. Uma fera pronta para o bote. A ajudante de Branca fez um sinal da cruz e retirou-se.

– Tu a trouxeste, como pedi? – Ela está lá fora, com a comitiva. Pedro, estás me devendo essa história. Quem é a jovem? Ele cruzou os braços. Uma expressão resignada tomou-lhe a face.–

Pedro e Inês de Castro – Ela ainda me odeia?

Acho que… Ela é o anjo vingador que a bruxa viu em sua previsão.Ànoite, as mulheres dormiram na casa e os homens do lado de fora, ao redor de uma fogueira. Na comitiva, havia ainda uma monja que auxiliava Branca em sua restrita mobilidade, pois a senhora recuperara o controle sobre parte do lado esquerdo do corpo, afetado pela paralisia, mas não o suficiente para se virar sozinha. O sorriso que Pedro tanto amava permanecera torto, porém jamais perderia a doçura.

– Muito bem, Peres. Quero contratar teus serviços.

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Pois não estou à venda!

Pedro e Inês de Castro – Qual é teu nome? – perguntou para a jovem arisca. Ela se empertigou ainda mais.

– Podes ir agora, se desejares.

– Peres era o nome do meu marido – grunhiu.

– Não podes pagar meu preço – ela esnobou. – Sou tua prisioneira?

– Sou livre para partir? – quis confirmar.

Pedro fitou Branca, que assentiu. A jovem ultrapassou-o para ganhar a porta e, enfim, a liberdade. Ele respirou fundo, aliviado por não gaguejar na frente dela. Não quisera lhe dar esse gostinho.

Entregou-lhe algumas moedas. Após fitá-las com repulsa, ela as jogou no chão.

– Eu me enganei – disse para Branca. – Ela não é o anjo vingador.

– Para esculpir um túmulo. – Não trabalho com pedra. Só madeira.

Peres não acreditou na explicação.

Peres mostrou-se surpresa.

Arrogante, a jovem dirigiu-lhe um sorriso de desprezo. Conti nuava se vestindo como homem, os cabelos negros metidos em um chapéu. Era alta, atraente, mistura de beleza e perigo.

– Quero levar o cavalo que usei na viagem até aqui.

– Não. – Escrava, então?

– Podes fazer os desenhos que outros esculpiriam na pedra.

– Nem uma nem outra.

– Para que queres meu talento?

– É assim que esperas que eu poupe tua vida? Comprando-me?

– Não desejo te comprar, e sim… contratar teu talento como escul tora. A senhora me contou que… também desenhas muito bem.

Pedro e Inês de Castro Branca e sua comitiva partiram antes de Pedro e Lobato. Apro veitariam a luz do dia para vencer o maior trecho do percurso até Burgos.Minutos antes de retomar a trilha, Branca sentiu um aperto no coração e, na sela, virou-se para trás. Parado na porta, Pedro acenou-lhe,Entristecida,sorrindo.elateve

a certeza de que nunca mais o veria.

Como imaginava, ela apareceu, sorrateira, acreditando que iria surpreendê-lo. Apertava uma faca entre os dedos. No instante em que a sentiu ao seu lado, Pedro ergueu os olhos para contemplá-la. Não se enganara, afinal. Peres era mesmo o anjo vingador. Ele não se moveu, paciente. Não tinha mais medo da morte. Se ela o atingisse naquele minuto, finalmente poderia descansar.

Os dois homens dirigiram-se para a Galícia, onde Pedro pretendia se reunir com o fidalgo Fernando de Castro, meio-irmão de Inês. Agora que assumira o poder de aplicar a justiça em Portu gal, uma das funções reais que lhe foram garantidas pelo acordo de paz, o infante passara a governar o reino junto com o pai. Tinha muitas responsabilidades e ações para colocar em prática. A terceira noite da jornada foi mais uma entre tantas noites insones, intercaladas por raros cochilos. Quando conseguia enga tar um sono profundo, vinham os pesadelos e ele novamente despertava. Dormia cada vez menos.

Lobato ressonava a alguma distância, mais perto da fogueira que os aquecia na floresta. Era uma bênção dormir tão bem. Sempre se revezavam na vigilância, mas ultimamente era o infante quem permanecia mais tempo acordado, atento aos sons noturnos.

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Ela entregou a faca a Lobato e foi arrumar um canto para dormir. Pegou no sono quase instantaneamente. Lobato abriu a boca, ia dizer alguma coisa, mudou de ideia, rangeu os dentes com alguma crítica que preferiu não dizer e também foi se deitar.

– Cumpre tua ameaça – Pedro encorajou-a. Sua voz despertou Lobato, que se ergueu num salto, apanhando a espada que repousava junto de si, e avançou para ameaçá-la.

65 Pedro e Inês de Castro A mão da jovem tremia. Seria muito fácil desarmá-la.

Pedro permaneceu acordado, outra vez prestando atenção aos sons da noite, o olhar sem vida fitando as chamas que dançavam na fogueira.

– Se tentares matá-lo, eu acabo contigo – prometeu. Peres não se intimidou. Olhava nos olhos de Pedro, lendo seus tormentos, o vazio que lhe ocupava a alma e, principalmente, a culpa que esmagaria seus ombros até o fim.

– Não vou abreviar teu sofrimento – decidiu. – Aceito fazer os desenhos para ti desde que eu possa te ver morrendo aos poucos, sufocado por tua própria consciência. Este é o meu preço.

Do lado português, Afonso IV temia que o neto, filho de Maria e herdeiro legítimo de Castela, perdesse o direito ao trono, pois os bastardos de Alfonso XI com a Guzmán continuavam a ganhar terras e títulos, retirados de outros nobres. Para piorar a crise, Maria, constantemente humilhada pelo marido e pela amante dele, refugiou-se em terras lusas. Foi Castela que deu o primeiro passo para a guerra. Como resposta, os homens do rei português promoveram cercos e devas tações em solo inimigo. Por sua vez, Alfonso XI reconquistou a lealdade de um dos nobres que tramavam contra ele, o Senhor da Guerra Pedro de Castro. Para atraí-lo, o rei castelhano utili zou o mesmo tipo de artifício que já usara com Juan Manuel:

P ortugal , 1340 ( dezesseis anos antes )

4

Contra todas as expectativas, a nova esposa de Pedro, Constança, foi impedida por Alfonso XI de sair de Castela após o casamento por palavras de presente, que ocorrera em Évora em 1336 sem a presença da jovem. Essa ação do rei castelhano mais uma vez tinha um objetivo político: impedir o consequente fortalecimento da aliança entre o pai da jovem, Juan Manuel, seus aliados e o rei de Portugal.

Para combater o perigo tão próximo, a Igreja Católica entrou em ação e despachou seus representantes para alertar os cris tãos desunidos e obrigá-los a esquecer suas diferenças. Uma nova guerra contra os mouros estava prestes a arrebentar.

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A traição teve um peso muito grande para o rei português. Pedro de Castro crescera na corte lusa, um menino inteligente a quem ensinara a caçar e a manejar uma espada. Ele fora o filho que desejava ter gerado, o guerreiro hábil e corajoso que não temia o perigo. O oposto de Pedro, o filho verdadeiro que, em vez de estar ao lado do pai aprendendo táticas de guerra, perambulava pelo reino ajudando a amenizar suas consequên cias junto à população. Se por um lado revelava o mesmo tino administrativo do avô Dinis, por outro se preocupava demais com as pessoas, perdendo o foco nos resultados que poderia obter se aprendesse a manipulá-las. Para o rei português, isso demonstrava fraqueza e o afligia profundamente. Tinha certeza de que Pedro seria um péssimo soberano. O confronto entre os dois reinos prosseguiu com novos ataques e contra-ataques. Sem querer, entregou uma excelente oportuni dade a Yusuf, o emir de Granada, vizinho de Castela e o único reino mouro ainda existente na Península Ibérica após a retomada cristã. Ele aproveitou o caos, pediu reforços a seus aliados muçulmanos do norte da África e preparou-se para assumir o controle sobre o Estreito de Gibraltar, parte de uma rota marítima imprescindível para o comércio da Europa. Seria também o momento perfeito para recuperar territórios sob o domínio castelhano e português.

Pedro e Inês de Castro a possibilidade de casar com um dos bastardos reais uma filha legítima do Senhor da Guerra, meia-irmã de Inês, a loirinha que salvara a vida de Branca. Matrimônio realizado, Pedro de Castro ganhou novas propriedades na Galícia, trouxe o apoio do amigo Juan Alfonso de Albuquerque, filho de Teresa e Afonso Sanches, e rumou para sitiar Juan Manuel em sua fortaleza.

Em agosto, o rei português soube que a comitiva da filha de Juan Manuel aproximava-se de Lisboa, onde seriam celebradas as núpcias. Ocupado com os preparativos da ofensiva contra os mouros, o soberano estava a caminho de Santarém. Não chegaria a tempo para recepcioná-la. Enviou, então, um mensageiro a Pedro.

No dia 1º de julho, em Sevilha, embaixadores de Portugal e Castela chegaram a um acordo. Em desvantagem contra o pode rio muçulmano, o rei castelhano teve de engolir o orgulho. Aceitou tratar melhor a esposa Maria, separar-se temporariamente da Guzmán e ainda permitir a viagem de Constança a Portugal.

Ele que fosse receber a nova esposa.

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Pedro e Inês de Castro O ano era 1340.

Com o apoio da mãe, Pedro passara a cuidar dos assuntos inter nos do reino que Afonso deixara de lado para se dedicar às suas disputas com Castela. Estudara todas as leis e aprendia a gerenciar os mecanismos que colocavam aquela sociedade em funciona mento. A guerra aumentara a fome, a miséria e a violência. Os camponeses abandonavam seus cultivos, com medo tanto das tropas castelhanas quanto das portuguesas, e iam para as cidades, onde não conseguiam emprego.

O mensageiro de Afonso encontrou Pedro numa aldeia próxima a Lisboa, na casa da bela Sancha, filha de um comerciante local. O infante reunia-se com um grupo de pescadores para discutir questões relacionadas à captura do bacalhau no Atlântico Norte, situação em que se enfrentava a concorrência desleal dos ingleses.

Aos vinte anos de idade, Pedro continuava gago, acima do peso e desengonçado, porém ganhara mais força, altura e agilidade. Jamais seria o tipo bonitão e irresistível para as mulheres. Isso, no entanto, não era problema algum. Elas sempre apareciam ao

Pedro deu uma moeda ao mensageiro, dispensou-o e foi encer rar a reunião. Chegaria a Lisboa no começo da tarde.

Com as nobres não era diferente. Mas, ao contrário das mulhe res do povo, que se contentavam com pequenos presentes e até um punhado de moedas, elas queriam propriedades e títulos para si e para seus pais e irmãos. Pedro achava mais sensato não se envol ver com nenhuma delas. De quebra, evitava gerar um bastardo que lhe traria algum aborrecimento ao entrar em disputas por poder.

Pedro e Inês de Castro reconhecê-lo, interesseiras na maioria, algumas deslumbradas por estarem na companhia de um infante. Sancha era uma delas, assim como Violante, a filha de um artesão em Coimbra, e mais uma ou outra pelos vários caminhos que Pedro costumava percorrer.

A grandiosa comitiva de Constança, digna da filha preferida de Juan Manuel, fora obrigada a parar a menos de uma hora de Lisboa. Uma das carroças afundara parcialmente em um buraco, outra tivera o eixo quebrado pelo mesmo motivo. O mau estado de conservação das estradas apenas refletia o interesse do rei em outros assuntos que considerava mais importantes.

Com Sancha, que lhe dera uma menina no ano anterior, e com Violante, mãe de seu menino recém-nascido, era tudo mais simples. Jamais poderia reconhecer as crianças, porém garantia que nada lhes faltasse.

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Pedro logo alcançou a comitiva. Desceu do cavalo, entregou as rédeas e a espada a um dos homens de sua pequena escolta, mandou que o esperassem e foi espiar o que estava acontecendo. Resolvera ir desarmado para não chamar a atenção enquanto

O recado de Afonso já era, de certo modo, esperado. A ameaça dos mouros levara à trégua e, com ela, os nós que impediam a vinda de Constança foram desatados.

Ainda a segurava no instante em que ela reparou melhor nele, nas roupas simples que vestia e na sua aparência de homem do povo.–Solta-me, vagabundo! – ordenou, o nariz empinado e o olhar cheio de indignação.

Pedro lamentou a falta de sorte e ia reencontrar a escolta quando uma jovem à sua frente tropeçou e perdeu o equilíbrio. Ele apenas reagiu. Agarrou-a com firmeza, impedindo-a de cair e se machucar, e depois a recolocou em pé.

– Mas eu… –PedroSolta-me!afastou-se, as mãos erguidas, tentando desfazer a confusão.– Ias ca… cair. Ela percebeu a gagueira. – Eu ia o quê? – decidiu humilhá-lo. – Repete, vagabundo! – Ca-ca… cair. A jovem esperou a reação dos que estavam à sua volta e assis tiam à cena. Risos e zombarias vieram como o previsto.

O rapaz misturou-se à multidão castelhana de nobres, damas, menestréis, servos, escravos e vários outros acompanhantes que iriam compor a “casa” de Constança em Portugal.

Juan Manuel não estava na comitiva. Segundo um dos servos, viera com ela até a fronteira, despedira-se da filha e fora para Sevilha resolver seus assuntos bélicos, dessa vez dirigidos contra os mouros.

70 Pedro e Inês de Castro procurava pelo único que lhe interessava encontrar: seu inimigo Juan Manuel. Pretendia avaliá-lo à distância antes de ser obrigado a encará-lo numa situação formal.

Devido à demora em consertar as carroças, praticamente todos andavam de um lado para o outro e iam formando rodas de conversa, observados de longe e com muita curiosidade pelos camponeses que viviam nas redondezas.

– D. Rui, este vagabundo tocou em mim – queixou-se ela para o nobre, ninguém menos do que seu mordomo-mor, Rui Garcia do EleCasal.se mostrou ultrajado e, a um gesto seu, um dos criados avançou contra Pedro com um chicote. O rapaz evitou o golpe ao agarrar a ponta do couro, puxar quem tentava agredi-lo e derru bá-lo com um soco. Três criados vieram em socorro do primeiro, porém foram necessários mais alguns para imobilizar Pedro e amarrá-lo contra a roda de uma das carroças. O chicote voltou a ser usado. Acertou-lhe as costas cinco, seis vezes, arrancando-lhe sangue, e só não continuou a surrá-lo porque a própria Constança, que ria da cena com suas aias, viu-se obrigada por um sacerdote de sua comitiva, Gonçalo Vasques, a suspender o castigo.

era a filhinha de Juan Manuel? Pedro fechou o semblante e analisou sua nova esposa de cima a baixo. Filha de uma princesa aragonesa, ela era morena, bonita, elegante, dois anos mais velha do que ele, vestia-se com trajes caros e não dispensava as joias. Fora rainha de Castela, acabara repudiada pelo marido Alfonso XI e agora, após oito anos de espera desde as primeiras negociações para o novo casamento até a liberação para seguir viagem, finalmente assumiria seu posto de esposa do futuro rei português.

Pedro e Inês de Castro – O que houve, D. Constança? – perguntou um dos nobres, apro ximando-se.Entãoessa

– Devemos ser piedosos, D. Constança – ele ralhou. – Ainda mais com o próximo que nos ajuda. Gonçalo vira o que realmente ocorrera. A jovem lançou-lhe um olhar de desdém e retirou-se, acompanhada pelas aias. Os demais, inclusive o mordomo-mor, foram cuidar da própria vida. O espetá culo perdera a graça.

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Lobato, que permanecera no paço real em Lisboa para tratar de assuntos particulares, foi correndo chamar o médico da rainha enquanto Pedro aproveitava para se lavar. Chegara antes da comitiva, o que lhe daria tempo para descansar um pouco e se preparar para receber a nova esposa e sua gente. Após os curativos e a bronca da mãe, que veio lhe puxar as orelhas por mais uma vez não se preocupar com a própria segu rança, Pedro finalmente ficou a sós com Lobato. O infante ignorou seus trajes de luxo, feitos especialmente para a ocasião, e escolheu uma camisa e uma calça comprida que usava para caçar. Um par de botas velhas seria a combinação perfeita.

– Eu não. És tu que estarás. Lobato franziu o nariz. O que o amigo estava aprontando…?

– Veste tua melhor roupa – disse Pedro. – Hoje tu serás o infante.

Na sala principal do paço, a corte reuniu-se para receber a comitiva, que deixara seus transportes, bagagens e o rico enxoval

– Senhor, já esqueceste tua aparência no dia em que recebemos a comitiva de D. Branca? – perguntou o criado, espiando com reprovação o visual desleixado, porém infinitamente mais limpo do que aquele que o infante exibira anos antes, numa solenidade semelhante. – Devias estar impecável.

Pedro e Inês de Castro A uma ordem do sacerdote, Pedro foi desamarrado. Bastante dolorido, o rapaz pôs-se em pé, beijou-lhe a mão e agradeceu sua interferência.–Vaiem paz, filho – disse Gonçalo, entregando-lhe algumas moedas. – E procura ficar longe de confusão, está bem?

– Sê bem-vinda, senhora – disse Lobato, no seu tom de voz mais charmoso.Elasuspirou.

Não escondia a felicidade. Ele era muito melhor do que imaginara, muito melhor até do que o sedutor ex-marido Alfonso XI.

– Muito obrigada, D. Pedro. Beatriz olhou para o rapaz. Bufou, aborrecida, e só então desco briu que o filho se escondera.

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Assim que Constança pisou o local, o infante deu alguns passos para trás, colocando-se discretamente sob a sombra de seu antigo tutor, Lopo Pacheco. O filho dele, Diogo, acompanhava Afonso na viagem a Orgulhosa,Santarém.afilha

de Juan Manuel avançou até a família real. Andava como uma rainha, com gestos comedidos e ensaiados à exaustão. Aquele era seu grande momento, a entrada triunfal que aguardara com tanta ansiedade. Não olhava para ninguém, uma figura superior aos pobres mortais que a conheciam naquele instante e lhe admiravam a beleza, a sofisticação, os modos refina dos e o vestido que, junto com suas joias, devia valer uma pequena fortuna. Rui, Gonçalo e outros membros mais importantes de sua futura “casa” vinham logo atrás dela. Diante de Beatriz e Lobato, eles pararam. Constança fez-lhes uma reverência e sorriu, os olhos gostando do que encontravam no rapaz que julgava ser o infante. Seria o par perfeito em elegân cia e boa aparência.

– D. Pedro, isso não tem mais graça – reclamou. – Vem logo receber tua Constançaesposa!piscou, sem entender nada. E empalideceu violenta mente ao reconhecer o verdadeiro Pedro, que se colocou ao lado da

Pedro e Inês de Castro da noiva, distribuído em várias arcas, no pátio com seus servos e escravos. Lobato e Pedro ladeavam a rainha Beatriz, junto ao grupo de nobres que ocupava posições e cargos mais privilegiados.

O sacerdote ia lhe dar algum conselho, mas mudou de ideia. Ficaria para mais tarde.

Horas após Afonso IV chegar a Lisboa, a segunda etapa do casamento foi realizada. Pedro, claro, perdeu-se nas festas para comemorá-la. Embalado pelo vinho, foi terminar a noite com Sancha, esquecendo-se por completo da esposa que o esperava no quarto dela, usando uma delicada camisola que bordara especial mente para as núpcias.

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Constança voltou-se para Lobato, na esperança de que tudo não passasse de um engano; ele não prestava mais atenção nela. Esbo çava um sorriso carinhoso para a esposa, uma das aias de Beatriz, que segurava no colo a filhinha mais velha do casal.

A filha de Juan Manuel impediu o choro, humilhada, forçando para o noivo um sorriso que ele fez questão de esnobar. Conviver com alguém como Pedro seria seu pior castigo. Satisfeito, ele logo se cansou da brincadeira. Foi até Gonçalo e devolveu-lhe as moedas.

– Vem, D. Estêvão, vamos caçar – chamou Pedro. – O dia ainda nãoSemterminou.sepreocupar

– Obrigado por tua bondade – disse-lhe. – Irônico como… o próximo pode ser quem… quem menos se espera, não é mesmo?

Pedro repetiu as palavras de Lobato, porém caprichando na gagueira. Arrasada, Beatriz mirou o teto. A frase levou minutos intermináveis até ser concluída.

Pedro e Inês de Castro mãe. Um burburinho percorreu a comitiva. Rui não teve coragem de manter o rosto erguido para o infante. Baixou a cabeça e manteve-se nessa posição. Gonçalo começou a rezar, prevendo o pior.

com mais nada, os dois rapazes abandona ram a sala, para indignação de Beatriz e alívio de Constança.

– Por que ainda não dormiste com tua esposa?

Pedro segurou a vontade de rir de tanta hipocrisia. A tal cláusula fora imposta por Juan Manuel, ele mesmo pai de filhos bastardos, um deles seu braço direito. Já Afonso, com suas leis que prioriza vam a moral e os bons costumes, inclusive punindo severamente o adultério, tinha pelo menos duas filhas fora do casamento.

– Resolverás a questão com tua esposa quando voltarmos de Castela.–Vou con-contigo? E que-que-quem vai cuidar do… do… do reino?Na frente do pai, Pedro sempre gaguejava muito. Envergo nhado, evitou seu rosto severo.

– Filho, eu não viverei para sempre – murmurou.

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Pedro e Inês de Castro Nos dias que se seguiram, quando retomou suas andanças, o infante não viu Constança. E nem a veria tão cedo. Afonso tinha outros planos para ele. Numa manhã, o pai mandou chamá-lo ao paço. Aguardava-o em sua antecâmara e foi direto ao ponto.

Afonso desviou o olhar para a claridade da manhã, retratada por uma das janelas. Sorriu com tristeza.

– Não haverá mais reino se os mouros não forem detidos – disse Afonso, com pesar. – E depois, quero que aproveites a oportuni dade e aprendas a lidar com os poderosos que estarão reunidos para essa luta. Um dia, assumirás o trono e terás de enfrentá-los se não quiseres ser destroçado por eles.

Pedro não tinha uma desculpa melhor. – Ela anda indi… indi…indis-pos-posta.

– E tu, ao que me parece, continuas disposto até demais para correr atrás de tuas mulheres. Diante da surpresa do filho, ele acrescentou: – Achaste mesmo que eu não sabia? Portugal inteiro comenta sobre elas. A partir de agora, exijo que sejas um marido fiel. Há uma cláusula sobre isso no teu contrato de casamento, não esqueças.

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Após uma breve conferência a que Pedro assistiu de boca fechada, seu pai despediu-se de Alfonso XI e foi conversar com Diogo, Lopo Pacheco e outro de seus homens de confiança, Martins Teles. Estavam às margens do rio Guadiana. Perto dali, na casa em que se hospedavam, Beatriz colocava a conversa em dia com a filha.Noinstante em que o rei castelhano ficou sozinho com Pedro, resolveu puxar conversa. Além de cunhado, Alfonso XI era dupla mente primo do rapaz, pois a mãe dele fora irmã do pai de Pedro. Já o pai dele fora irmão de Beatriz.

– Eu gostaria que colocasses a teu serviço o filho bastardo de meu aliado Pedro de Castro. É um jovem corajoso, muito bom no manejo das armas. Foi criado junto com nosso primo Juan Alfonso de Albuquerque.Pedroespiou

Era a primeira vez na vida que lhe dirigia a palavra. – Qual…, senhor?

– D. Pedro, eu gostaria de te pedir uma gentileza – disse-lhe.

o pai, que continuava falando com seus conselheiros. Afonso teria cólicas de fúria se o filho acolhesse alguém da família do traidor Senhor da Guerra.

O rei castelhano abriu um sorriso irônico. Acertava em cheio ao apostar na rebeldia de Pedro, confirmando que pai e filho jamais se entenderiam.

– Será… uma honra – disse o infante. – Ele veio… contigo?

Pedro e Inês de Castro A irmã de Pedro, Maria, foi ao encontro dele e dos pais em Évora. Depois, junto com suas tropas, seguiram para o vilarejo de Juromenha, na fronteira entre Portugal e Castela, onde os dois reis, o português e o castelhano, finalmente se encontraram.

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– Que planos? – Não sei. Ele nunca diz. Aqueles senhores encrenqueiros e seus planos mirabolantes para conquistar mais poder e fortuna… Pobre Inês. Na certa, acaba ria presa a um dos bastardos de Alfonso XI. Pelo menos, esperava Pedro, continuaria fora do alcance de Diogo Pacheco. De qualquer forma, aparentemente Inês não era mais ameaça para ele. Alguns anos já tinham se passado desde a tentativa de envenenamento, Branca fora repudiada, o casamento com Constança já ocorrera e o filho de Lopo Pacheco acumulava cada vez mais influência junto ao rei português.

– Este é D. Álvaro de Castro – apresentou Alfonso.

ago-gora?Ojovem

Pedro e Inês de Castro Com um gesto, chamou um jovem loiro que devia ser uns dois anos mais novo do que Pedro. Ele veio correndo e, ao parar diante do rei e do infante, fez-lhes uma reverência.

– D. Inês ainda está solteira, pois D. Juan Alfonso recusa todos os pretendentes. Diz que tem outros planos para ela.

– És bem-vindo ao me-meu serviço, D. Álvaro – disse Pedro, odiando gaguejar na frente do primo. – Que-queres começar

aceitou, empolgado, e agradeceu-lhe efusivamente. Tinha o mesmo tipo de nariz e os olhos acinzentados da irmã Inês. Sem mais nada para tramar, Alfonso XI e o punhado de homens que o acompanhava subiram a bordo de alguns barcos e cruzaram o rio. Na margem oposta, os cavalos estavam à sua espera para a viagem até Sevilha. – E como vai D. Inês? – perguntou Pedro a seu novo subordi nado.–Muito bem, senhor – disse Álvaro.

– Com que-quem se casou? Não sei notícias dela há… anos.

– Não irás comigo! – encrencou Pedro.

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– Estás trazendo as disputas de Castela para tua “casa”. E depois, quando teu pai souber… Se Afonso IV teve cólicas de fúria, Pedro não pôde confirmar, mas a punição veio exemplar: o rapaz foi proibido de ir a Sevi lha com ele e Maria. Deveria seguir com a mãe até o castelo de Estremoz, em terras lusas, onde perderia todas as reviravoltas emocionantes da luta contra os mouros.

Pedro fez que obedeceu e, assim que chegou a Estremoz, inven tou para a mãe que ia caçar. Beatriz fez que acreditou, deu-lhe um beijo na testa e implorou que tomasse cuidado. Rapidamente ele pegou um cavalo e sumiu a caminho de Sevilha. Mal amanhecera. Lobato alcançou-o numa trilha meia hora mais tarde.

– És meu criado e de-de-deves me obedecer!

Claro que Lobato não gostou nem um pouco de descobrir um Castro por perto.

– Também sou teu amigo – ele enfatizou. – E não irás sozinho para confrontar D. Juan Manuel.

Pedro e Inês de Castro Mesmo assim, às vezes o passado é difícil de esquecer. Para Pedro, era impossível. Odiava Diogo ainda mais do que Juan Manuel.Um dia, os dois pagariam muito caro pelo sofrimento que tinham causado a Branca.

– Vou, sim – teimou o outro. – Vais voltar para Estremoz. – Não vou.

– Senhor, não devias ter aceitado esse galego – disse, ranzinza.

– É uma ordem! Lobato e seu cavalo não saíram do lugar.

Pedro e Inês de Castro Como ele sabia…? Pedro desistiu. Lobato sempre podia prever seus passos.

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Álvaro fora mais um que saíra no rastro do infante. Ao se apro ximar, ele puxou as rédeas e fez sua montaria interromper o ritmo. O cavalo relinchou, mal-humorado.

– Sou eu! – acenou o cavaleiro ao se tornar visível para eles, vindo pela mesma trilha. Era Álvaro de Castro.

– Senhores, posso ir convosco? – perguntou.

– Mas eu sei andar por Castela, ao contrário de vós. Posso ser vossoInfanteguia.e criado entreolharam-se. O galego estava certo.

– Não! – disseram Pedro e Lobato ao mesmo tempo.

Pedro não esperava o desabafo. – Estás certo – cedeu. – Eu prometo. Lobato pareceu tirar de si um peso imenso. Voltou a ficar tenso ao ouvir o som de cascos de cavalo cada vez mais próximos. Tira ram a espada da bainha.

– Promete que nunca mais viajarás sozinho por aí – o amigo inti mou. – E promete também que sempre me chamarás para cuidar da tua segurança nessas viagens. – Eu não… – Promete! – Não tenho que prometer nada a ti! – Tens, sim! Nunca mais quero sentir de novo a culpa daquele dia, quando te deixei para trás na caçada, e ter ainda de ser grato àquele miserável do D. Diogo só porque não cumpri o meu dever. Vais prometer ou não?

Pedro girou o rosto zangado para Lobato. Aquela fuga era para ser –secreta!Éóbvio que eu não iria trazê-lo! – protestou o criado.

– Não confio em ti – decretou Lobato. – Podes nos trair e vender D. Pedro a algum inimigo de Portugal.

– Será? O Senhor da Guerra não hesitou em trair a confiança do nosso rei. – Não sou meu pai.

– Senhor, precisas vir para o chão – lembrou Lobato, impaciente.

– Quem é ele? – perguntou Pedro. Álvaro ia responder, mas rapidamente o menino se libertou e, fazendo uma reverência ao infante, apresentou-se:

Pedro cedeu mais uma vez. Desmontou e colocou-se diante de Álvaro, que se ajoelhou. Após deixar a seus pés a própria espada, o galego jurou solenemente que sua lealdade sempre estaria com o infante. Apesar das palavras sinceras, Lobato manteve-se descon fiado.–Minha

– Mas eu também quero lutar contra os mouros! – disse o menino.–Ainda és muito novo para isso.

– Sou mais forte e mais alto do que os garotos da minha idade e também quero defender Portugal!

– O que fazes aqui? – ralhou o galego ao reconhecê-lo. – Não te falei para permaneceres em Estremoz?

Pedro e Inês de Castro – Eu jamais trairia o infante! – indignou-se Álvaro.

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– Então deves fazer um juramento. Os dois subordinados desceram da sela e esperaram Pedro, que contemplava o trajeto à sua frente. Estavam perdendo tempo.

irmã só está viva hoje graças a ti, D. Pedro – disse Álvaro. – Jamais poderei pagar o que fizeste por minha família. À noite, quando os três interromperam a cavalgada para descansar os animais e dormir junto a uma fogueira, descobriram que mais alguém vinha atrás deles. Armaram uma emboscada e esperaram.Ansioso para mostrar suas habilidades guerreiras, Álvaro derrubou o desconhecido do cavalo e arrastou-o com facilidade até a luz da fogueira. Tinha capturado um menino de dez anos.

– Com certeza, senhor. Mesmo que o obrigassem a revelar a informação, Telo iria segui-los naquela viagem arriscada. A única maneira de protegê-lo era incluí-lo no grupo.

– Muito bem, D. João Afonso Teles, aceito teu serviço – disse o infante. Apreensivo com as consequências daquela decisão, Lobato só meneou a cabeça. – A partir de… agora, fazes parte da minha “casa”.

O menino deu um pulo de felicidade, erguendo os braços para cima. Pedro bocejou, cansado, pensando no canto que o esperava junto à fogueira. Ainda teria de esperar mais alguns minutos antes de poder Álvarodormir.dirigiu um olhar de censura para a euforia do primo, roubando a fala de Lobato.

O pai do menino, Martins Teles, fora ao encontro de Afonso IV em Juromenha. Trouxera o filho e, antes de seguir com o rei, despachara-o para a segurança de Estremoz. Com tantos rostos novos nos últimos dias, nem Pedro nem Lobato tinham reparado no menino.–Senhores, posso ir convosco? – Telo perguntou.

– Que mapa? – perguntou Lobato.

– Então deves fazer um juramento – disse.

– O que vi com meu pai. Sei exatamente onde todos os senhores castelhanos e portugueses colocarão suas tropas antes de avançar contra Granada.

– Mas eu decorei o que havia no mapa!

– Não! – disseram os três rapazes ao mesmo tempo.

– Ele é o Telo, meu primo do lado português da minha família –resmungou Álvaro. – É filho de uma tia, irmã da minha mãe.

81 Pedro e Inês de Castro – Sou D. João Afonso Teles, filho de D. Martins Teles, conse lheiro do senhor rei, teu pai – disse muito dignamente. – E peço permissão, meu senhor, para me colocar ao teu serviço.

– Sabes onde ficarão as tropas de D. Juan Manuel? – disse Pedro.

82 Pedro e Inês de Castro De Sevilha, as tropas dos reis e de seus aliados partiram para Tarifa. Em La Peña del Ciervo, tiveram a noção exata do poderio do exército muçulmano. Se não o vencessem naquele momento deci sivo, seria cada vez mais difícil deter a invasão.

Na madrugada do dia 30 de outubro, Pedro e seus três compa nheiros alcançaram o acampamento dos homens de Juan Manuel. Passaram despercebidos entre a multidão que se preparava para a batalha. Cavaleiros e mercenários conferiam suas armas e montarias, arqueiros testavam o alcance de suas flechas, a maioria rezava e uns poucos conseguiam dormir. A tensão consumia o ar, sufocante. Com seu numeroso contingente de soldados, o pai de Constança atuaria na vanguarda das forças castelhanas.

– Vamos espiar – decidiu o infante. Tinham um plano. Com seu rosto inocente, Telo foi encher de perguntas os dois vigias que ladeavam a abertura da tenda. Não estranhariam a presença de uma criança naquele ambiente frequentado por mulheres e seus filhos. Elas acompanhavam os soldados em troca de dinheiro, muitas obrigadas por eles mesmos a entrar na prostituição, e acabavam carregando em sua rotina as crianças geradas nesses encontros.

Enquanto Telo cumpria sua parte, os rapazes colocaram a nocaute os outros três guardas, que cuidavam da vigilância atrás da tenda. A seguir, Pedro usou uma faca para abrir um rasgo no tecido e entrou no local. Lobato e Álvaro permaneceram do lado de fora para lidar com qualquer emergência.

À parte do grosso dos homens, havia uma tenda, vigiada por cinco deles. Lobato apostou que Juan Manuel estaria ali, mas Pedro tinha outro palpite. O castelhano não precisaria contar com uma vigilância tão redobrada no meio da própria gente. O que, então, estaria protegendo?

mordeu os lábios, ainda com medo. Nenhum grito denunciou a presença do rapaz. – Sou Pedro. E tu, quem és? Ela não respondeu.

– O homem que te prende aqui é meu inimigo – ele explicou.

– Não tenho como te levar até lá, mas posso te devolver ao teu povo.–Prometes?–Prometo.E

Um véu cobria-lhe a cabeça e algumas joias confirmavam seu valor como refém. Sem dúvida, Juan Manuel pretendia cobrar da família dela um resgate exorbitante.

– Não vou te fazer mal – disse ele para acalmá-la, em árabe. Aprendera o básico do idioma nas inúmeras visitas à Mouraria durante sua Funcionou.infância.Amenina

A menina estava de joelhos, encolhida, apertando junto a si um caderno. Chorava baixinho. Ao notar Pedro, assustou-se. Ia gritar.

– Tu vieste me libertar? E por que não? Manter um refém era uma imensa covardia, ainda mais quando se tratava de uma criança. Além disso, era tentador atrapalhar os planos de Juan Manuel e, de quebra, dar-lhe um bom prejuízo.

83 Pedro e Inês de Castro No interior da tenda, uma única vela iluminava a prisioneira, uma menina morena de uns sete anos, de origem árabe, vestida com trajes finos usados pelas famílias mais ricas daquele povo.

– Sim, vou te libertar.

– E me levarias para casa? – Onde moras? – Em Granada.

não deixarei que ninguém te machuque. Se fosse mais velha, a menina jamais confiaria em um cristão.

Sua inocência levou-a a abrir um sorriso, aceitar o manto que o

– Pior. Os guardas me contaram que D. Juan Manuel já mandou avisar Yusuf que a irmã dele é sua prisioneira, mas não pediu nada em troca. Na verdade, pretende humilhá-lo.

84 Pedro e Inês de Castro rapaz tirou do corpo para cobri-la e segui-lo pelo rasgo na tenda paraÁlvarosair.

e Lobato não estranharam a atitude do infante em resgatá-la bem debaixo do nariz de Juan Manuel. Ajudaram-no a conduzi-la rapidamente até um esconderijo atrás de algumas árvo res, onde tinham deixado os cavalos. Telo apareceu alguns minutos mais tarde com as últimas novidades na ponta da língua.

Telo mal ocultou a revolta que a informação lhe provocava.

em que ela viajava para a África foi capturado pelos aragoneses. Os homens foram mortos ou escravizados e as mulheres que acompanhavam a princesa acabaram entregues aos soldados. Já a menina foi enviada a D. Juan Manuel como um–presente…Daíeledecidiu pedir um resgate ao emir.

– O que D. Juan Manuel vai fazer com ela? – perguntou Álvaro, sem entender o que os outros dois rapazes já tinham concluído.

– Ela é uma princesa da dinastia nasrida, irmã mais nova do emir Yusuf – contou.

– Do próprio rei de Granada? – quis confirmar Álvaro, impres sionado.–Onavio

Pedro fitou a menina. Por sorte, falavam em português, um idioma que ela visivelmente não entendia.

– Ele a prometeu como prêmio ao homem que for mais cora joso na batalha de hoje – disse. – O vencedor ficará com as joias, fará com a menina o que bem entender durante uma noite e depois a entregará para a diversão dos soldados. O que sobrar dela será enviado a Yusuf. Álvaro perdeu a cor do rosto. Jamais imaginara que um caste lhano pudesse cometer tamanha atrocidade. Aprendera desde cedo que eram os mouros os inimigos responsáveis pelos atos

– D. Guiomar e Telo estão prometidos em casamento.

– A filha de D. Lopo Pacheco? – disse Pedro, apreensivo. Se aquela ação contra Juan Manuel caísse no conhecimento de Diogo, este não hesitaria em usar a informação a seu favor.

Subiram nas montarias e, discretos, deixaram o esconderijo. Sentada à frente de Pedro na mesma sela, a menina ergueu o rosto para ele.

– Espero mesmo que saibas.

– Vamos devolvê-la ao povo dela – disse Pedro.

– Ela não pode ir vestida como uma princesa moura – comentou Telo. Discretamente ele foi até a sela de seu cavalo e, de um alforje, tirou uma túnica e uma calça comprida. Depois, fez a menina vestir as peças, bem maiores do que ela, por cima das roupas e embalou-a com o manto. Um capuz cobriu o véu e as joias foram escondidas nos bolsos da calça. – Bem melhor agora, hein? Não muito, na verdade, mas pelo menos disfarçava numa primeira análise a identidade da menina.

– Minha lealdade está com D. Pedro! – argumentou o menino, vermelho de raiva. – Sei muito bem quando um assunto é segredo.

– Meu nome é Zaynab – disse, confiante. Ainda apertava o caderno em suas mãos. No mesmo instante, um dos guardas descobria os homens desacordados atrás da tenda. Em segundos dariam pela falta da prisioneira.

– Primeiro temos de sair daqui – avisou Lobato, espiando os dois homens que vigiavam a abertura da tenda. Ainda não tinham descoberto sobre a fuga.

85 Pedro e Inês de Castro mais bestiais, por isso deveriam ser combatidos. Uma justificativa que mascarava uma realidade muito mais complexa.

– Não contes nada sobre isso a D. Guiomar, entendeste? – disse Álvaro para o primo.

– Senhor, como pretendes fazer isso? – perguntou Álvaro.

Pedro foi cercado por dois homens. Um deles feriu-o de raspão no braço, foi morto pelo infante, mas outro conseguiu degolar seu

86

Numa curva do córrego, foram surpreendidos por um punhado de castelhanos. Desembainharam a espada, lutaram. Apavorada, a menina agarrou-se a Pedro, que a protegia com o braço livre.

Ele matou um dos homens que os atacava e, com uma estocada certeira, impediu que outro atingisse Telo, ocupado demais em combater um sujeito maior do que ele. Álvaro lutava contra três ao mesmo tempo e Lobato derrubava um antes de encarar outro.

Aencalço.únicavantagem

dos fugitivos estava naqueles poucos minutos de dianteira. A cavalgada foi enlouquecida, ultrapassou obstáculos à frente, derrubou soldados pelo caminho. Flechas foram dispara das contra eles, por sorte não acertando nenhum alvo.

Pedro e Inês de Castro Pedro estreitou-a com firmeza em seus braços e esporeou o cavalo para ganhar velocidade. Os amigos acompanharam-no. Atrás deles, gritos de fúria e soldados ensandecidos viriam em seu

– Vamos para o lado português! – gritou Pedro para os amigos, tendo em mente o mapa que Telo lhe descrevera, com a localização de todos os aliados. Haveria uma chance se pudessem se refugiar entre sua própria gente. Eles tomaram um córrego de águas rasas como referência e seguiram seu curso para oeste. A lua cheia facilitava a visão do trajeto a percorrer, mas prejudicava a fuga ao deixá-los visíveis à perseguição dos inimigos.

Os cavalos cruzaram um riacho e atravessaram uma planí cie onde o gado dormia ao relento. O acampamento foi ficando para trás. Logo à frente havia outro, sob as ordens de um segundo nobre castelhano.

Pedro e Inês de Castro cavalo. O rapaz e a menina despencaram na água, ela gritou, ele fez o possível para não cair em cima dela. Ergueu-se, rápido, e amparou com a espada um golpe que visava seu pescoço, desferido pelo mesmo adversário que o derrubara e que tinha a vantagem de ainda estar em sua montaria. Pedro puxou-o de lá, com um murro jogou-o na água e, usando a lâmina, atravessou-lhe o coração.

Quando ia subir na montaria deixada pelo inimigo, um deles desistiu de atacar Álvaro e lançou-se, com cavalo e tudo, para atro pelar o infante. Sem conseguir alcançar a sela, Pedro teve de correr, os pés batendo contra as pedras escorregadias que a água do córrego não cobria por completo. Uma flecha quase o feriu, disparada pelos perseguidores ainda muito distantes para uma pontaria certeira. Telo livrou-se do grandalhão e foi voando para ajudá-lo. Pedro entregou-lhe a menina, mandou que a tirasse dali e virou-se para o adversário que, após contornar o cavalo que o rapaz pretendia usar, prosseguia em sua firme decisão de atropelá-lo.

Pedro acudiu-a, pegando-a no colo e dizendo-lhe em árabe que ela precisava ser corajosa, que tudo ficaria bem.

Segundos antes da colisão, Pedro desviou-se a tempo. O animal empinou, o adversário perdeu o domínio sobre ele, a chance para o infante derrubá-lo da sela e ocupar seu lugar. Novas flechas foram disparadas; só acertaram o vazio. À frente, Telo e Zaynab ganhavam uma margem de segu rança maior contra elas. Já Lobato derrubou quem o atacava e, com a ajuda de Pedro, livrou Álvaro dos dois homens. Sob uma nova chuva de flechas, partiram desabalados atrás de Telo, que já sumira de vista. Bem mais próximos, os arqueiros tinham mais chances de acer tá-los. O cavalo de Lobato foi morto, ambos tombaram. Ferido no

De olhos fechados e agarrada ao caderno, Zaynab chorava.

87

O numeroso grupo que os perseguia estava cada vez mais próximo.

– Ireis morrer por minha culpa – lamentou ele.

Pedro e Inês de Castro ombro esquerdo por outra das setas, o rapaz ficou com uma das pernas presa sob o peso do animal. Álvaro retrocedeu para buscá-lo. Ao descobrir o que acontecia, Pedro fez o mesmo.

– Não parai por mim! – gritou Lobato, desesperado para salvá -los.Não adiantou. Os dois desmontaram e correram até ele, enfrentando as flechas que, por sorte, passaram zunindo. Escon deram-se atrás do animal e, com alguma dificuldade, conseguiram libertar Lobato.

88

– Direi quem sou e eles pouparão nossas vidas – disse Pedro.

– Por outro lado, não temos mais cavalos – observou Lobato. Os animais que sobraram fugiam com medo das flechas.

– Não sejas tão pessimista – brincou Álvaro para espantar o medo da morte. – Ainda temos nossas espadas.

– Achas mesmo que haverá tempo para conversas? Como sempre, ele tinha razão.

– Nesse caso, o jeito é correr – disse o galego. Mas para onde? Estavam numa área descampada. Se corressem, iriam se tornar presas muito fáceis de ser abatidas. Se ficassem no mesmo lugar, seriam trucidados. Do nada, uma luminosidade surgiu atrás deles, formando um extenso semicírculo. Vinha das chamas de algumas tochas, trazi das por alguns homens a cavalo entre os vários que quase os cercaram.Asflechas cessaram. Em menor número, os castelhanos interromperam a persegui ção. Não ousariam enfrentar os monges guerreiros da poderosa Ordem dos Hospitalários, fundada séculos antes em Jerusalém para proteger os peregrinos cristãos que visitavam a Terra Santa. A valentia e a destreza dos hospitalários em combate eram temi das tanto no mundo cristão quanto no muçulmano.

– E quem resgatastes para vós? Por acaso foi esta menina muçul mana?Após um sinal de Pereira, um subordinado avançou condu zindo pelas rédeas o cavalo de Telo. O garoto fora desarmado e tinha uma espada apontada contra seu pescoço. À sua frente na sela, a menina tremia, apavorada. Ao ver Pedro, ela se esforçou para parecer mais corajosa. O rapaz sorriu para ela, confortando-a.

nu-nu-numa… missão de… de… de resgate.

Pedro mediu bem suas palavras, mas não pôde segurar a gagueira.–Estamos…

Pedro e Inês de Castro – O que me impedirá de vos entregar a vossos perseguidores? –indagou um dos hospitalários aos três rapazes. Pedro reconheceu-o. Era o líder, Álvaro Pereira, um valoroso fidalgo português de quase quarenta anos, que recebera o prio rado da ordem graças aos seus feitos como guerreiro. Ele estivera presente nas bodas do infante, representando seu grão-mestre.

– Eles não te farão mal – disse-lhe em árabe. Ela lançou um olhar para Pereira que, surpreso, descobriu a amizade que unia os dois.

– Aproximai-vos – mandou Pereira, dirigindo-se aos três rapa zes.Eles guardaram as espadas e obedeceram, Lobato amparado por Pedro. O ferimento ensopava-lhe as roupas de sangue e come çava a enfraquecê-lo. A análise começou por Álvaro.

89

– Sim – confirmou ele, no mesmo idioma. – Nós não te fare mos mal. A ameaça dos perseguidores ainda podia atingi-los com flechas. Uma ordem depois e um grupo de hospitalários partiu para cima deles que, temerosos, deram meia-volta. Preferiam enfrentar a ira de Juan Manuel.

90 Pedro e Inês de Castro – És um dos filhos do Senhor da Guerra, não? – disse Pereira. –

foi o próximo a ser avaliado. Automaticamente, ele fitou o vazio.–Não

me recordo de onde te conheço – admitiu Pereira. – Sei que és um criado. É este o serviço sujo que fazes para teu senhor? Roubar crianças? Talvez esperes pelas sobras para tua própria diversão…Acostumado

Já te vi ao lado de D. Juan Alfonso de Albuquerque. – Sou D. Álvaro de Castro. – E o que pretendíeis fazer com uma criança? Divertir-vos?

demais a ouvir provocações e levar broncas desde a infância por encobrir as travessuras do infante, Lobato não perdeu a calma. O prior passou para o último rapaz, Pedro. Estreitou os olhos, lembrou-se da gagueira e, a seguir, do casamento a que assistira. – Mas tu és… Não completou a frase. Estava perplexo. – Como eu disse, caro prior, estamos… nu-numa missão de resgate – disse Pedro. – Poderíamos… conversar em particular? No acampamento dos hospitalários, Lobato seguiu com um dos homens até o médico. Já Pedro e os demais foram conduzidos por Pereira à sua tenda. O infante, então, explicou-lhe quem era a menina e o destino que Juan Manuel reservara para ela. – Não concordo com… essa barbárie – disse, por fim. – Vou entregar a menina… ao povo dela.

Uma vermelhidão tomou o rosto do rapaz. Mesmo fervendo de raiva por ser considerado alguém sem honra, Álvaro não abriu a boca.Lobato

91

– E achas mesmo que conseguirias manter em segredo por muito tempo a presença de uma criança tão importante?

– Pensas que desconheço o risco que assumi?

– Senhor, não podes simplesmente te aproximar do exército muçulmano – disse Pereira. – Serias morto antes de entregá-la. E, caso tivesses sucesso, não poderias deixá-la com qualquer um.

A verdade é que Pedro ainda não tinha pensado naquela etapa do plano.–Darei um jeito – disse. – Nem que eu tenha de levá-la para Portugal e de lá, com a ajuda de algum comerciante da Mouraria, mande-a de navio até Granada.

– Penso que teu coração justo e generoso te cega para os peri gos que nos rodeiam – respondeu ele, com honestidade.

Pedro e Inês de Castro Sentada em um canto, Zaynab lambiscava um pedaço de pão que Álvaro lhe dera. Seu olhar, ansioso, estava preso a Pedro, tentando adivinhar o que os dois homens decidiam sobre seu futuro.

– Seria uma jornada longa demais. – Mas não impossível.

– Tenho aliados de confiança. Pereira suspirou diante de sua teimosia e inexperiência. Para ele, Pedro não devia passar de um garoto mimado querendo bancar o herói.–Qualquer ajuda ao inimigo é vista como alta traição – disse.

– E o que farias no meu lugar? Permitirias que… uma criança… servisse de diversão aos soldados? O prior não respondeu.

– Não me conheces o suficiente para afirmar tal coisa.

– Será que não? Tua lealdade está com meu pai. É para ele que irás nos entregar, não? Sabes o que ele… fará com a menina?

– Jamais irias… te indispor contra D. Juan Manuel – disse Pedro, julgando-o. – Farias de conta que aquela menina ali não existe. Quem é o cego, afinal, senhor prior?

– É com ela que estás realmente preocupado?

– E com quem mais seria? Se ela fosse minha filha e estivesse nas mãos dos meus inimigos… Também sou pai. Posso imaginar o que a família dela está sentindo neste momento. Álvaro e Telo apertavam o punho de suas espadas, prontos para agir se fosse necessário. Zaynab engoliu o último pedaço de pão. Soterrada pelas roupas de Telo, parecia ainda menor e mais vulnerável. Pereira olhou para eles antes de tomar sua decisão.

Pedro e Inês de Castro – Irá despachá-la de volta ao aliado D. Juan Manuel. – Exato. – Não temes o que ele te fará quando souber da tua travessura?

– Tenho alguns conhecidos entre os muçulmanos – confiden ciou. – Farei com que um recado chegue ao vizir de Yusuf. Ele pode pensar que é uma armadilha, mas temos de arriscar.

– Posso mesmo contar contigo? Pereira inclinou a cabeça, numa postura de respeito e admira ção.–

92

Neste mundo em que seus líderes se preocupam apenas com a própria ambição, ganhei o privilégio de ser útil a um futuro rei que valoriza a vida e é capaz de agir com justiça – disse, sincero.

– Travessura?! Ainda sou uma criança para ti? Pois bem, meu pai é da mesma opinião. Ele vai me humilhar como de costume, ganharei algum castigo e pronto. Nada comparado ao que aconte cerá a essa menina.

Pedro, que esperava pelo pior, não escondeu uma expressão de espanto.–Estarás correndo um risco maior do que eu – disse. – Se desco brirem, perderás teu novo cargo, as honrarias que conquistaste e até tua vida… – E, se eu não agir de acordo com o que acredito, estarei traindo minha consciência.

Pedro e Inês de Castro – Sim, meu senhor, podes contar comigo. Não vou desperdiçar esta oportunidade.Comasprimeiras

Às vezes Lobato erguia as pálpebras, tentava acompanhar a cena com curiosidade, porém a sonolência levava a melhor. Parecia finalmente usufruir de todo o sono que as preocupações com a segurança do infante tinham lhe negado durante anos.

– Os cristãos venceram a batalha – disse. – Quanto aos inimigos, eles estão fugindo de volta a Granada.

.

luzes da manhã, as tropas luso-castelhanas desabaram sobre os mouros junto às águas de um ribeirão conhe cido como Salado. A batalha durou horas, então Pedro preferiu passar ao lado de Zaynab, na tenda, e vigiar o sono de Lobato. A flecha não ferira o amigo com gravidade. Mesmo assim, ele preci sava de repouso e cuidados para que a ferida não infeccionasse. Estavam sozinhos. De um ponto seguro, Álvaro e Telo assistiam à luta, enquanto Pereira liderava seus homens no ataque Os sons da batalha chegavam distantes, abafados e não menos assustadores. Milhares matavam ou morriam em um dia que definiria o destino da Península Ibérica. Pedro jurou que jamais permitiria que a guerra, seja ela qual fosse, invadisse o território português.Paradistrair

93

À noite, Pereira retornou à tenda. Estava exausto, imundo e parcialmente coberto com o sangue dos inimigos que abatera. Ele espiou os desenhos que ocupavam todos os espaços no chão, esbo çou um sorriso e deu a notícia que esperavam.

Zaynab, ele inventou de desenhar na terra com um galho. Não era tão bom desenhista quanto Lobato, mas até que se saiu bem diante do talento da menina para as artes. Os traços dela eram firmes, apesar de sua pouca idade, e demonstravam poten cial para atingir trabalhos mais maduros e criativos.

– Não deves te expor – cochichou Pereira para o infante. – Se descobrem quem és, tu é que viras refém. Pedro assentiu. O prior desmontou e pegou a menina para colocá-la no chão. Foram até metade do caminho e pararam. O representante do vizir, então, deixou a montaria e caminhou até

– Sim. Temos de ir agora mesmo ao seu encontro.

O vizir não viera em pessoa. Mandara um representante pronto a morrer por ele caso o encontro não passasse de uma armadilha. E só o enviara por acreditar na reputação de Pereira, um homem digno, respeitado pelos muçulmanos.

Frente a frente, os dois grupos mediram-se mutuamente. Montavam cavalos velozes, tinham armas e estavam preparados para retalhar um ao outro.

O representante não estava sozinho. Trouxera cerca de cinquenta homens. Do outro lado, estavam os hospitalários que protegiam Pedro e Zaynab, ambos dividindo a mesma sela, além de Telo, Álvaro e um teimoso Lobato, que insistira em acompanhá-los.

94

Pedro e Inês de Castro – E o vizir? – perguntou Pedro. – Ele respondeu ao teu recado?

O encontro ocorreu numa clareira obscura, após uma viagem acelerada de horas noite adentro percorrendo terras repletas de sangue e cadáveres junto ao Salado. Uma corrida contra o tempo. Com os cristãos em seus calcanhares, ávidos por mais mortes, os mouros – ou muçulmanos, como Pereira preferia chamá-los – não poderiam esperar mais. Segundo o prior, a palavra “mouro”, utilizada pelos portugueses, depreciava um povo que ele admirava pela cultura refinada e pelo conhecimento avançado em várias áreas.

Enquanto os muçulmanos procuravam respostas na ciência, os atra sados cristãos ainda insistiam em acreditar em superstições.

– E o que ele lucra com isso?

95 Pedro e Inês de Castro eles. Reconhecera a princesa, que exibia para ele um sorriso gigan tesco. Foi objetivo.

– O que queres em troca? – perguntou em árabe.

– Ele deseja a paz entre Portugal e Granada – acrescentou Pedro, no mesmo idioma, fingindo ser um dos homens do infante. – É tudo o que meu senhor quer em troca.

– Que este ato de boa vontade seja creditado ao infante D. Pedro de Portugal.

– E para quê? – murmurou ele. – Para que o quê? – Para que confrontar D. Juan Manuel? Para que confrontar um homem que virara seu sogro e que se tornaria avô dos filhos que Pedro teria com Constança? Para

O representante fitou-o por alguns segundos e depois concor dou com um movimento de cabeça. Quando estendeu a mão para que Zaynab o acompanhasse, a menina olhou para trás e correu até o infante. – Vai me visitar! – ela convidou. Depois sorriu, dando-lhe de presente o Emocionado,caderno.Pedro

– Para onde agora, senhor? – perguntou Lobato. Após as pilhagens de praxe, apossando-se de tudo o que os vencidos deixavam para trás, os vitoriosos reis e seus nobres iriam comemorar em um único lugar, Sevilha. Lá Pedro finalmente poderia confrontar Juan Manuel.

retribuiu o sorriso e apertou junto a si aquele tesouro tão precioso para ela. Zaynab retornou correndo para seu povo, foi colocada em outra sela e ficou acenando para o rapaz até ser levada para longe. Os dois grupos foram se afastando aos poucos, cada um pronto para revidar ao primeiro sinal de quebra de confiança.

– E Nesseprecisas?instante, Álvaro emparelhou seu cavalo ao de Pedro. Como os demais, não ouvira a conversa.

Atrás de Pedro, seguia Pereira, a quem ele devia o sucesso daquele resgate. Um homem que o livrara da morte antes mesmo de saber que salvava o único herdeiro do trono. Álvaro e Telo iam ao lado do prior, os dois novos amigos que tinham provado sua coragem e lealdade. Vidas que eles entregariam sem piscar para cumprir uma ordem do infante. No caderno, sobrara uma última folha em branco. Cabia a Pedro desenhar o final feliz. Lobato, impassível, ainda esperava uma resposta.

– D. Pedro decidiu retornar ao castelo de Estremoz – adiantou Lobato. – É lá que esperaremos por D. Afonso.

96

– Vamos para Sevilha, senhor? – perguntou, ansioso.

Pedro e Inês de Castro matá-lo? A morte dele não apagaria o que ele fizera a Branca nem devolveria a ela a saúde e o papel de esposa do infante.

– Desta vez seguirei teu conselho – disse Pedro. – Mas eu não disse nada, senhor!

– Podes ir, se quiseres.

Pedro mirou-o, sem entender. Num gesto automático, abriu o caderno e o folheou. Em suas várias páginas havia desenhos feitos à tinta por Zaynab. Primeiro paisagens felizes, pessoas e bichinhos sorrindo, o sol brilhando. Depois, borrões, gente caída, morta, vilões, cená rios sombrios, pânico. Ali a menina narrava sua curta existência. Uma vida que ganhara uma chance graças à interferência de Pedro.

Diante dela, o tão aguardado confronto com Juan Manuel tornava-se vazio, sem sentido.

– Talvez a resposta esteja no caderno – sugeriu Lobato.

– Não, não. Vou para onde decidires ir.

– Sabias que D. Álvaro foi aceito na “casa” de D. Pedro?

– Concordo. Ele é ingênuo, um pouco tolo até, e certamente conquistará a amizade do infante. Mas teu irmão foi apenas o primeiro passo de um plano maior.

97 Pedro e Inês de Castro

Na primeira oportunidade que teve para colocar seus assuntos em dia, ele mandou chamar a irmã de criação, Inês, em sua ante câmara. Aquele assunto era prioridade e não podia esperar mais.

– Sim, meu senhor. Contaram-me quando descobri que ele não voltou contigo.

A menina crescera e, aos quinze anos, cumpria a previsão de ser a mais bela entre as belas. O próprio Juan Alfonso refreava a muito custo a vontade de tê-la para si, pois, sabia, Inês estava destinada a mudar o futuro de um reino.

– Foi uma sugestão minha que nosso rei aceitou. Aliás, foi ele quem colocou teu irmão junto ao infante.

A notícia da vitória dos cristãos na Batalha do Salado correu por solo ibérico igual ventania e logo tomou o restante do mundo cristão. Em suas terras, Juan Alfonso de Albuquerque foi recebido como herói. Da mesma forma que os demais nobres castelhanos e portugueses, desempenhara um papel fundamental para derro tar os inimigos.

– Temos de aproveitar este momento único de amizade com os portugueses – disse o homem, irônico. – Nunca sabemos quanto tempo vai durar. A jovem ergueu uma sobrancelha, desconfiada do que ele planejava. Não lhe fez nenhuma pergunta.

– D. Álvaro vai se sair muito bem, tenho certeza.

Juan Alfonso entrelaçou os dedos das mãos. Estava sentado em sua cadeira. Em pé à sua frente, Inês arregalava os olhos, a mente veloz reunindo peças e armando teorias. Mais perigosa do que uma mulher bonita, era uma mulher bonita e inteligente.

– Senhor, eu…

Inês contraiu os lábios, preocupada. Ainda temia qualquer represália por parte de Diogo Pacheco.

Juan Alfonso levantou-se com calma. Por que mulheres tinham tanta dificuldade em ser objetivas? Até mesmo uma garota esperta como aquela não conseguia enxergar as recompensas de uma jogada tão infalível? Ele tocou o queixo de Inês e a obrigou a fitá-lo.

A jovem fechou os punhos. – Queres que… – Sê amiga do infante, faz-lhe companhia, aconselha-o. Ele já gosta de ti, uma vez salvou tua vida. Aproveita essa vantagem para beneficiar nossas famílias e nosso rei.

98 Pedro e Inês de Castro – Desejas que eu também vá para Portugal – concluiu.

– Já conversei com o rei português. Como um gesto de cortesia, ele te colocará na “casa” de D. Constança Manuel.

admirou o colo perfeito, a cintura fina e a pele clara de Inês. Os longos cabelos loiros estavam presos e os olhos cinzentos duvidavam de suas palavras. – Não aprovo a influência que D. Juan Manuel exercerá sobre D. Pedro por intermédio da filha Constança, principalmente se ela tiver filhos – prosseguiu. – Isso ainda descontenta nosso rei e também teu pai. Por isso tu irás para a corte portuguesa. Quero que garantas a simpatia de D. Pedro para nosso lado.

– São esses os planos, senhor, que fizeste para mim desde a minha infância? Devo me tornar a amante de um fidalgo?

– Faz o que uma mulher sabe fazer de melhor. Preciso ser mais claro?Ela baixou a cabeça.

– Não tenhas medo de um passado que não pode mais te alcan çar – disse o Discretamentenobre.ele

– Não serás a amante de um fidalgo qualquer, mas de um futuro rei. Então, D. Inês, terás Portugal a teus pés.

99

Pedro e Inês de Castro – És uma bastarda, por isso nunca poderás ser uma rainha como mereces – disse. – Mas o verdadeiro poder não está no casamento, e sim no coração. E aquele infante gago e incompetente, tão desprovido de beleza quanto de inteligência, será uma conquista fácil para ti. Poderás controlá-lo conforme tua própria vontade.

Satisfeito, Juan Alfonso sorriu. A jovem entendia perfeitamente qual era sua função.

– Não a minha, senhor, mas segundo a tua vontade.

g alí C ia , 1356 Pedro pensava em Zaynab. Quantos anos a princesa nasrida teria agora? Uns 23, provavelmente. Talvez estivesse casada, com filhos. O talento para as artes, sem dúvida, não teria sido desperdiçado. Ele apenas imaginou os mesmos dese nhos do caderno, que guardava com carinho havia dezesseis anos, em versões mais adultas e aprimoradas.

Às vezes, tinha vontade de enviar alguma correspondência secreta para ela por meio de seus amigos muçulmanos, mas sempre adiava a decisão. E se Zaynab não se lembrasse mais dele? O resgate acontecera havia tanto tempo e ela era tão pequena na época… Na Galícia, Pedro, Lobato e a arisca Peres não demoraram a entrar nas terras de Fernando de Castro, o filho legítimo do Senhor da Guerra. Álvaro chegara dias antes ao castelo do meio-irmão. Os dois não eram exatamente os melhores amigos, mas costuma vam ter interesses em comum. E Fernando era um dos melhores aliados de Pedro. Quanto a Telo, ele permanecera em Portugal para agilizar o projeto político do infante. À tarde, a poucas horas de distância do castelo de Fernando, Pedro decidiu parar em um vilarejo. Uma grande festa de casa mento ocorria no local e, como havia muito não participava de

5

Na única rua do lugar, tomada por dezenas de convidados, Lobato arrumou três canecas de vinho. Peres tomou a dela quase de um gole só, a cara amarrada como sempre. Aguentou o excesso de alegria por poucos minutos antes de desaparecer entre os convidados. Lobato também engoliu todo o conteúdo da caneca e, comportando-se como o cão de guarda que sempre fareja algum perigo, resolveu segui-la. Pedro bebericou um pouco do vinho, a mente desejando apenas um pouco de paz. Fez amizade com um parente do noivo, que lhe contou várias piadas, ganhou a compa nhia de uma mulher ansiosa para distraí-lo e nada de Lobato e Peres retornarem.Eramelhor

Todo o horror de uma violência semelhante imobilizou a jovem. Ela não conseguia mais reagir.

Nada poderia amenizar a dor, o ódio e a tristeza que a consumiam. Nos limites do vilarejo, refugiou-se no quintal de uma das casas. Retornaria apenas quando os últimos bêbados fossem dormir. A jovem fechou os olhos, a mente desejando apenas um pouco de paz. Foi quando mãos grosseiras arrancaram-na do esconderijo, alguém que a seguira até ali. Ela abriu os olhos, tentou se defender, gritou, recebeu um murro no rosto. O sujeito bebera demais e viera com dois amigos que também cheiravam a bebida. Um a segurou enquanto os outros prendiam suas pernas. Pretendiam despi-la da cintura para baixo.

101 Pedro e Inês de Castro alguma comemoração, não resistiu à vontade de ficar obser vando as danças, as cantorias, o menestrel que não parava de tocar seu alaúde, as músicas que dominavam o ar e a felicidade das pessoas à sua volta.

ver o que estava acontecendo. Peres afastou-se o quanto pôde daquela festa, da barulheira que a perturbava, das risadas que martelavam em seus ouvidos.

– Vou passar agora este remédio e tu não darás nem um pio! –vociferou ele, vermelho.

– Sou eu. Estêvão Lobato. Estás segura agora.

encontrou-os no estábulo onde tinham deixado os cavalos. Com muita paciência, Lobato tentava pela milésima vez convencer Peres a permitir que ele aplicasse uma pomada no hematoma enorme em seu rosto. Estavam sentados no chão, um diante do outro.

A voz transmitia confiança. Peres agarrou os próprios cotove los e forçou-se a abrir os olhos. O criado de Pedro estava ajoelhado à sua esquerda. Atrás dele, os três homens estavam esparramados no chão, inconscientes, vítimas de seus socos certeiros. Nem preci sara tirar a espada da bainha. A jovem sentou-se e permitiu que ele a amparasse. Tinham de sairPedrodali.

102 Pedro e Inês de Castro De modo brusco, o ato foi interrompido antes mesmo de come çar. Os homens largaram-na, ela voltou a cerrar as pálpebras e se encolheu. Não ouviu nada, não quis entender o que acontecia em minutos que pareceram durar horas.

– Deixa-me… – Não! – Vai piorar se não for tratado. – Some daqui! Igual a todo mundo, Lobato também tinha seus limites.

– Peres… – chamou uma voz que soou conhecida. A garota não se mexeu. O dono da voz tentou ajudá-la a se levantar. Ela gritou, arranhou-o, debateu-se em desespero.

– Não preciso de remédio nenhum! – berrava a garota, com seus modos grosseiros.

– Mais para a direita… – orientou Lobato. – Eu falei direita! Não sabes a diferença entre direita e esquerda?

– Queres que eu a amarre? – propôs Pedro. Os dois olharam para ele. Descobriam-no ali naquele minuto.

– Isso arde e dói! – reclamou ela. – É uma porcaria de remédio!

Lobato, a quem a última pergunta era dirigida, fechou o pote e foi guardá-lo no alforje pendurado na sela de seu cavalo. Não responderia nem sob tortura.

– Paguei uma fortuna por ele.

– Eu sei, mas não me arrependo de te ajudar. E farei de novo se for Ofegantepreciso. e possessa, a jovem preparava uma enxurrada de ofensas.–Posso interromper esta conversa muito civilizada? – introme teu-se Pedro. – Como a Peres se machucou desse jeito?

– E tu, uma ingrata! – Não pedi tua ajuda.

– É, Numpercebi.gestorude, Peres arrancou da mão de Lobato o pote com o remédio.–Eumesma

faço isso. Sem qualquer tato, ela espalhou a pomada sobre a pele.

103 Pedro e Inês de Castro Peres cerrou os dentes. Iam se engalfinhar.

– Estamos tendo uma conversa muito civilizada.

– A minha direita ou a tua direita? – a jovem resmungou. Foi a vez dele tirar-lhe o pote. Com as pontas dos dedos, pegou uma quantidade generosa da pomada e, sem que Peres pudesse impedi-lo, cobriu a dimensão completa do ferimento.

– Se estás pensando em voltar para a festa, podes ir mudando de ideia – disse Peres para o infante.

– Pois foste enganado! És mesmo um idiota.

– Não é necessário, senhor – descartou o criado, ainda nervoso.

ao castelo de Fernando no começo da manhã. Foram recebidos por ele e por Álvaro, tiveram refeições decentes, um quarto para cada um, água para a higiene pessoal e roupas limpas. Álvaro foi o único que pareceu reparar em Peres. Perguntou a Lobato quem era e ouviu uma resposta lacônica: – É a Nenhumdesenhista.nome,nenhuma

informação complementar. No quarto para onde a encaminharam, Peres tomou banho e, sem alternativa, colocou um vestido que uma serva lhe entregara. Preferia mil vezes vestir-se como homem para nunca mais se sentir uma mulher Descontente,indefesa.elarumou

– Ahn… Eu… é… vou providenciar. Ao se dar conta de que não estava convenientemente arrumado para conversar com uma mulher, correu para colocar uma camisa.

para o aposento de Lobato, que termi nara de se lavar. Ele estava descalço e usava apenas uma calça roupas masculinas – ela foi logo avisando. Impressionado com aquela visão tão feminina, de longos cabe los negros, soltos e ainda molhados, ele demorou segundos para reencontrar o raciocínio.

– Que cicatriz é essa no teu ombro? – ela perguntou.

104 Pedro e Inês de Castro – Houve uma briga e não é mais seguro ficarmos no vilarejo –contou o Nenhumcriado.dos dois revelaria detalhes sobre a tal briga. Pedro pensou na mulher que o esperava, nos momentos agradáveis de uma festa que teria de abandonar. – Sim, vamos embora – concordou. – Não há mais nada aqui paraChegaramnós.

comprida.–Exijo

Lobato gravou na memória cada detalhe daquela entrega total ao sono para que pudesse desenhá-la mais tarde. A jovem inocente que Peres fora uma vez estava ali, desarmada e confiante, antes do trauma que a lançara ao ódio e à agressividade contra qualquer um que tentasse se aproximar. Sua reação ao ataque da véspera comprovava que ela fora brutalizada no passado.

As roupas masculinas que ele lhe trazia foram deixadas sobre uma arca, assim como o par de sapatos. Lobato mais uma vez admirou a garota, as mãos jogadas ao lado do corpo, os pés descal ços, o visual arrebatador destacado pelo vestido.

105 Pedro e Inês de Castro – Foi uma flecha, há alguns anos.

– Disparada por um mouro?

– Ela não é para mim – murmurou, conformado. – Está destinada a ele. Só consegue enxergá-lo. Um dia, o ódio por Pedro iria se desmanchar e ela estaria tão envolvida que seria impossível não amá-lo. Aquela certeza era tão forte que Lobato quase podia tocá-la. Imediatamente se esfor çou para pensar na esposa imposta por um acordo matrimonial. Não a amava, mas gostava dela. Eram felizes daquela maneira.

– Não. Castelhano. Longa história. Ela não se interessou mais pelo assunto. Deu meia-volta e foi para seu aposento. Ainda teria de esperar mais de uma hora pelas roupas que o criado iria providenciar.

Como a porta do quarto de Peres estava entreaberta, Lobato entrou sem pedir licença. Encontrou-a adormecida na cama, respirando pausadamente, os cabelos espalhados ao seu redor. Graças à pomada, o inchaço no rosto diminuíra bastante; o hematoma ainda demoraria a sumir.

– Estou lidando com um dia de cada vez. O criado tomou a direção da mesa. Encheu novamente a caneca e engoliu o vinho como se estivesse sedento.

Pedro acabava de cair na gargalhada com a nova cantiga de escárnio apresentada por um dos trovadores. A letra maldosa fazia referências indiretas a um conhecido nobre castelhano que sempre perdoava a esposa que o traía com o primeiro a lhe bater à porta.

Desenhar ajudaria Peres a lidar com seus problemas do mesmo modo que sempre o ajudara a lidar com os dele.

Pedro exagerou na bebida, riu muito, gaguejou e recebeu aten ção exclusiva de uma das jovens solteiras. Em pé num canto e sem se misturar ao ambiente descontraído, Lobato entornou sua quinta caneca de vinho. Depois dela perderia a conta. No lado oposto da sala, sentada no chão, Peres desenhava sem parar no caderno que, pelo olhar desconfiado que lançara a Pedro ao encontrá-lo antes do jantar, pensou ter sido presente dele. Nunca tivera antes um mate rial de tão boa qualidade para executar seu talento.

– D. Pedro está se divertindo – comentou Álvaro ao ir até Lobato.

– Nenhum de nós nunca mais será o mesmo, amigo. E quanto a ti? Não me pareces nada bem.

Pedro e Inês de Castro

106

Antes de sair, ele colocou sobre a cama um caderno com folhas em branco e uma caixa de madeira cheia de giz de carvão.

Após uma longa reunião entre Pedro, Álvaro e Fernando, a noite foi animada por menestréis, trovadores e principalmente pelas damas que acompanhavam as mulheres da família. O período de luto já tinha passado para os Castro.

– Enfim o período de luto terminou para ele. – Estás enganado. Ele nunca mais será o mesmo.

107

Como previu, Pedro apareceu logo depois no quarto que ocupava no castelo. Sentou-se numa cadeira, a cabeça também latejando e, sonolento, aceitou o chá.

Pedro não escondeu uma careta.

Pedro e Inês de Castro No fim da noite, Pedro foi com a jovem dama para o quarto dela, Peres sumiu com o caderno debaixo do braço e Lobato, bêbado demais para acertar qualquer trajeto, rolou escada abaixo, quase quebrou o pescoço e despertou horas mais tarde com o sol da manhã batendo-lhe no rosto e um dos cachorros de Fernando lambendo-lhe a boca. Com a cabeça estourando de dor, correu o mais rápido que pôde para seu aposento, lavou-se, vestiu roupas limpas e, exibindo sua postura impecável, foi até a cozinha. Lá, uma das cozinheiras preparou-lhe uma caneca de chá de ervas, infalível para combater ressacas. Era para o infante.

– Qual é mesmo o nome da jovem com quem passei a noite? –perguntou.–D.Teresa

– O gosto é horrível – irritou-se.

– Desejas conversar sobre isso justo agora? – retrucou, mal-hu morado.–Não

Ele não quis responder. Virou-se para Lobato.

Lourenço, senhor.

– Teresa, Teresa… Certo, não posso esquecer o nome. Saí sem despertá-la, o que não é muito educado. Vou voltar lá.

– Se queres que eu faça desenhos para o túmulo, deves me falar sobre a pessoa que vai ocupá-lo.

tens pressa para ver o trabalho pronto?

– Bebe tudo, senhor. Ele só conseguiu tomar a metade do líquido. Peres surgiu naquele momento e, sem qualquer sutileza, arrastou um banco para se sentar diante dele. O som que a madeira produziu no piso de pedra pareceu ensurdecedor.

– Quando D. Pedro estiver pronto para falar no assunto, ele te contará tudo. Sê paciente.

108

Eufórica por ser a nova preferida do infante, Teresa Lourenço acompanhou-o na comitiva de Álvaro no retorno a Portugal. Em Lisboa, Pedro instalou-a numa casa confortável e ia visitá-la de vez em quando. O único filho deles, João, nasceu em abril do anoSeguindoseguinte.o costume, Pedro recompensou a jovem com terras e deu títulos a seu pai e irmãos. Depois, sem mais nem menos, desistiu dela e foi dormir com Margarida, uma tecelã em Coimbra. A mulher era viúva, estéril, mais velha do que ele e adorava prepa rar seus pratos favoritos. Seria sua companhia eventual durante anos e somente isso, uma simples companhia. Pedro jamais volta ria a amar de verdade. Em maio, Beatriz mandou avisá-lo de que Afonso estava muito doente e pedia sua presença. Não viveria muito mais. O filho, que caçava ao norte do reino, não mudou seus planos. Apareceu em

Pedro e Inês de Castro Ainda zonzo, ele se levantou, devolveu a caneca e foi atrás da jovem. Acabaria passando o restante da manhã, a tarde inteira e uma nova noite com ela. Lobato sentou-se na cadeira e tomou o que sobrara do chá. Nunca mais pretendia se entupir de tanto vinho. – Fala-me tu da pessoa que ocupará o túmulo – insistiu Peres. –

O criado fitou-a, sentindo-se tão exaurido que nem mesmo uma tempestade teria forças para arrancá-lo daquela cadeira.

– Não consigo falar sobre ela – admitiu. – E ele também não consegue.Peresmeneou a cabeça, sem entender.

Como posso trabalhar se não sei nada sobre ela?

109

Pedro e Inês de Castro Lisboa apenas quando a morte do pai foi confirmada, pronto para assumir o Preocupadotrono.com aquele excesso de indiferença, Lobato instigou Peres a retomar a pergunta sobre a pessoa que ocuparia o túmulo.

– Mas não me disseste para ter paciência?

– Ele não conseguirá carregar tudo sozinho. D. Branca está longe e ele tem vergonha de desabafar seus problemas comigo.

– Podias tentar.

– Ele gosta de ti. – De mim? – ela duvidou. – Quase o matei duas vezes! E o que mais desejo é vê-lo morrer aos poucos, sufocado pela própria consciên…–Sei,sei.–Éverdade!–Entãoesta

será tua melhor oportunidade para assistir de perto a seu sofrimento. Agora vai!

O criado abriu a porta da antecâmara de Pedro e enxotou-a para dentro. No lado externo do paço, a noite encobria vagarosamente a cidade.Erafinal de maio de 1357 e Portugal amanheceria com um novo rei, aquele que finalmente teria plenos poderes para concretizar sua aguardada vingança contra os outros três assassinos. Ao pensar nisso, Lobato sentiu um calafrio. Perdera a noção do ponto a que o amigo seria capaz de chegar. Escondido junto à porta, no corredor, cruzou os braços. Peres parara diante de Pedro que, em pé, contemplava a vista além de uma janela.

– Na minha única tentativa, terminei com duas costelas quebra das.– E por que achas que ele confiará em mim?

– Força-o a falar sobre o assunto.

110 Pedro e Inês de Castro – Preciso que me fales sobre a pessoa que ocupará o túmulo –exigiu a garota. – Depois. – Não. Tem que ser agora. Ele fixou nela olhos atormentados. – Ago-go-ra? –SoavaAgora.como uma cobrança impiedosa. Mesmo sabendo que aquilo era necessário, Lobato arrependeu-se de tê-la enviado. Pedro foi se sentar na cama. Pareceu muito mais velho do que era aos 37 anos de idade. Contaria tudo o que Peres desejasse saber.

6

Evitar Constança ao máximo tornou-se mais um motivo para o temperamento irrequieto de Pedro justificar sua eterna vontade de viver para cima e para baixo no reino. Mal parava muito tempo em um mesmo lugar.

P ortugal , 1340 ( dezessete anos antes )

Semanas após a Batalha do Salado e mais uma vez cobrado pelo pai, Pedro teve de resolver sua pendência com Constança. Para ele, foi como cumprir uma obrigação, sem qualquer troca de carinho com uma mulher que não conseguia disfarçar o quanto o desprezava. Uma obrigação que precisaria levar adiante, pelo menos periodicamente, para que ela lhe desse filhos e, assim, cumprisse seu esperado papel de esposa.

Foi por culpa dessa movimentação incessante que só descobriu a presença da nova donzela na “casa” da esposa no final do ano, quando a família real se reuniu em Coimbra para as comemora çõesInêsnatalinas.deCastro estava de volta à corte portuguesa.

– És louca? – disse, aflito, o homem que a capturara. – E se D. Diogo ainda quiser se vingar de ti? Não posso te proteger o tempo todo!

Inês corou, lembrando que se esquecera de lhe fazer uma reve rência. Num movimento que julgou elegante, inclinou a cabeça e dobrou pausadamente os joelhos. Ao se endireitar, viu, frustrada, que o rapaz não reparara no cumprimento, mais ocupado com os próprios pensamentos.

– D. Juan Alfonso acha que aqui terei mais oportunidades.

– Não sei. O que ambicionas, D. Inês?

Ela procurou caprichar na voz suave, erguendo os olhos e fixando-os nos dele, valorizando-o como o único que lhe interessava na face da Terra. Sempre funcionava para impressionar os homens caso sua beleza não fosse suficiente.

112 Pedro e Inês de Castro Inês saía da missa na catedral da Sé quando, sem qualquer sutileza, foi arrastada pelo cotovelo para detrás da primeira árvore do caminho.

– Por quê? Não há mais bons pretendentes para ti em Castela?

As palavras não o convenceram. Pedro resmungou algo ininte ligível, ainda preocupado. A jovem sorriu. Ele não mudara muito desde que o conhecera. Transformara-se em um adulto, é verdade, porém jamais deixaria de ser também um pouco criança. E daque las bem arteiras.

– Ainda não descobri, senhor. Ele contraiu os lábios. Não registrara a tentativa de sedução.

– Achas mesmo que é só isso que uma mulher ambiciona?

– Então trata de descobrir logo. D. Diogo é perigoso e não quero tua morte na minha consciência.

– Creio que não corro nenhum risco, senhor. Cheguei ao reino na primavera e, desde então, D. Diogo já me viu e me cumprimen tou várias vezes. Se realmente quisesse se vingar, já teria feito.

– Por que vieste para cá? – ele perguntou.

113

– Não é o menino que eu deveria ter gerado – disse Constança, azeda. Pedro compreendeu as entrelinhas. Para gerar outra criança, novamente ela teria de suportar a presença periódica do marido em seu leito. E essa certeza provocava-lhe nojo. – Maria será uma menina feia e gorda. A infeliz se parece contigo, senhor.

Tão logo Constança engravidou, Pedro viu-se livre por meses do compromisso de procurá-la. Só apareceu em Évora, para onde ela viajara, na época em que a criança viria ao mundo. Estava ansioso demais para conhecê-la.

Deitada no leito em seu aposento, Constança espiou o bebê com raiva. A maioria das mulheres de sua “casa”, inclusive Inês, estava ao redor para paparicá-la.

Maria, sua menina, nasceu em 6 de abril de 1342, dois dias antes de o pai completar 22 anos. Quando finalmente pôde tê-la em seus braços, Pedro a muito custo segurou a emoção.

Pedro e Inês de Castro Inês ia convidá-lo para um passeio desejando prolongar a conversa, mas o infante acrescentou que tomasse cuidado e sumiu atrás dos seus compromissos do dia.

Insegura, a jovem permaneceu no lugar. Como seduzir alguém que ainda a enxergava como uma menina de nove anos?

O comentário não gerou nenhum mal-estar entre as castelha nas, muito acostumadas a ouvir sua futura rainha reclamar dos modos rústicos do marido, da sua feiura e do excesso de peso, da falta de elegância e da mania de se enfiar no meio do povo como se fosse um qualquer. Pedro sentiu o olhar triste de Inês para o bebê e depois para ele. Era a única ali que ainda tinha bondade no coração.–D.Constança, se ousares desprezar minha filha – rosnou Pedro –, juro que te envio de presente ao meu primo Alfonso, teu

114 Pedro e Inês de Castro primeiro e inesquecível marido, para que ele a trancafie de novo em Toro. E, desta vez, que seja pela eternidade! A esposa perdeu a cor do rosto. O infante nunca a ameaçara antes. E, até onde sabia, ele sempre cumpria suas promessas. Um silêncio profundo instalou-se no local. Ainda com sua menina no colo, Pedro foi dar um passeio. Queria aproveitar cada segundo daquela adorável companhia.

O ano de 1343 foi triste e solitário para Inês. As cartas de Juan Alfonso, cobrando-lhe resultados junto a Pedro, pressiona vam-na com uma frequência cada vez maior. Ela não sabia mais o que lhe responder. A verdade é que o infante visitava Constança apenas para ver a filha e, se por acaso encontrava Inês, limitava-se a cumprimentá-la e perguntar se ia bem de saúde. Quanto a seu casamento, a situação piorara. Nas raras opor tunidades em que, por obrigação, passava a noite com a esposa, ele simplesmente não a tocava, como ela mesma, aliviada, fazia questão de confidenciar na manhã seguinte às suas damas mais próximas que, obviamente, espalhavam para as demais exigindo segredo sobre o assunto. Para Inês, era impossível entender por que Constança desde nhava tanto o marido. Pedro era gentil e alegre, preocupava-se com todos, vivia para cuidar do reino. Sabia ser um bom pai, muito melhor do que o próprio pai de Inês, alguém que ela, aliás, mal conhecia nem teria oportunidade de conhecer melhor. O Senhor da Guerra morreria naquele mesmo ano, vítima de uma epidemia durante um cerco contra os muçulmanos em Algeciras. Sentindo-se imensamente sozinha em Portugal, a jovem sonhava em ir para a Galícia, onde passara os primeiros anos de vida ao lado da mãe. Lembrava-se de brincar ao ar livre, de correr

– Se agisses como esposa, senhora, talvez teu marido apre ciasse tua companhia – dissera, atraindo automaticamente a ira de Constança.–Eoqueentendes de casamento, galega tola? – disparara ela, as sobrancelhas unidas. – És uma solteirona que envelhecerá sozi nha porque acreditas que nenhum pretendente é bom o suficiente para ti. Ou, por acaso, estarias de olho no meu marido?

Foi o mordomo-mor de Constança, Rui Garcia do Casal, quem conduziu a solenidade. Cada um dos súditos beijou a mão da criança, muito risonha no colo do avô, e, a seguir, pronunciou o juramento.Orgulhoso da filha, Pedro não escondia a felicidade. Para Cons tança, aquele reconhecimento era a humilhação pública de sua suposta incapacidade de gerar filhos. Não era culpa dela, como cuspira entre-dentes pela manhã em seu aposento, quando Inês e outras damas foram auxiliá-la com a toalete. O único responsável era Pedro, que se negava a agir como marido.

115 Pedro e Inês de Castro pelos campos, de ser apenas uma criança que jamais imaginaria ser a escolhida para roubar o coração de um príncipe. Quanto mais descobria sobre Pedro, mais a missão que Juan Alfonso lhe impusera tornava-se repulsiva. Alguém tão simples e generoso como o infante não merecia ser manipulado segundo a vontade de poderosos que pensavam apenas neles mesmos.

Pela primeira e única vez, Inês pensara alto demais.

Em janeiro do ano seguinte, o fato de Constança ainda não ter gerado um herdeiro afligia todo o reino. Bastante preocupado com o futuro de sua dinastia, Afonso promoveu semanas mais tarde, no paço que a mãe Isabel mandara construir junto ao Mosteiro de Santa Clara, uma cerimônia em que seus nobres ou representantes, vindos de todos os pontos de Portugal, juraram obediência à neta Maria no caso de Pedro morrer sem deixar um filho legítimo do sexo masculino.

116

antes que Constança reassumisse sua pose de futura rainha orgulhosa e inatingível, Inês sentiu um aperto no coração. Perderia qualquer chance de se aproximar de Pedro. E isso, estranhamente, doía muito mais do que o fracasso de uma missão e o consequente desprezo que receberia de Juan Alfonso.

Maria pegou no sono, eles a deixaram no quarto sob a vigilância da aia e, no corredor, foram conversando sobre a criança

– Perdoa-me, senhora. Eu só queria ajudar… – Dispenso teus conselhos. Agora sai daqui e não ouses apare cer tão cedo na minha frente! Xingando a si mesma, a jovem obedecera. Durante a cerimônia, manteve-se fora do campo de visão de Constança.

Pedro, no entanto, logo a avistou. Sorriu-lhe, demonstrando sem querer a cumplicidade que os unia. Constança, que acompa nhava suas reações, seguiu-lhe o olhar. Uma carranca distorceu-lhe o rosto por segundos ao descobrir Inês parcialmente escondida atrás de um grupo de damas. Enxergou nela a rival que poderia lhe tirar o marido. Não que se preocupasse com as mulheres do povo com quem Pedro se relacionava, pois elas não representavam nenhuma ameaça. Mas a galega de sangue nobre, uma Castro, era outraNaquelehistória.instante,

Na festa que se seguiu à cerimônia, Pedro estranhou a atitude da esposa. Ela fez questão de ficar o tempo todo ao seu lado com a filha. Ao final da noite, quando ele pretendia escapulir para conti nuar comemorando em alguma taberna, Constança pediu-lhe que o ajudasse a colocar a menina para dormir. Que mudança de atitude, afinal, era aquela? Apenas encenação diante dos sogros que a adoravam? Desconfiado, Pedro fez-lhe a vontade.Quando

Pedro e Inês de Castro Inês recuara, humilde, fitando o chão.

– Sê realista, senhor – disse a esposa, compreensiva. – Nossa menina terá de cumprir o papel dela como infanta e realizar um casamento vantajoso para o reino. Sem perceber, ele sorriu ao ouvir o pronome possessivo. Cons tança nunca se referira a Maria como “nossa”. Ela retribuiu o sorriso. Era uma jovem linda, que conhecia com exatidão o efeito de sua beleza sobre os homens. Ela interrompeu o passo e se virou para ele, obrigando-o a parar. Pedro admirou-lhe os olhos escuros, os cabelos que ela soltara após deixar a filha no berço. Eram ondulados, castanho-escuros, e caíam rebeldes até a cintura.

– Nosso casamento não começou bem e… – ela murmurou, inse gura. – Fui imatura, tola. O que quero dizer, meu senhor, é que temos uma filha e que, por ela, precisamos nos entender.

117 Pedro e Inês de Castro enquanto caminhavam sem um destino específico. Constança confidenciou-lhe que, na opinião dela, a filha deveria se casar com o herdeiro da coroa inglesa, mas estava pensando em outras possi bilidades, pois Afonso sonhava realizar aquela aliança com outra noiva, sua filha caçula Leonor.

– Maria ainda é uma criança! – rebateu o rapaz.

– Vem para o meu quarto – ela convidou, carinhosa.

O que a movia naquele momento? Alguma vontade repentina de torná-lo um aliado? Ou, talvez, um amigo… O rapaz sempre imaginava se Constança tinha conhecimento dos planos do pai para se livrar de Branca. Provavelmente não. Também fora mais uma peça do jogo de Juan Manuel.

– Po-podemos tentar, senhora. Numa ousadia incomum para uma esposa tão formal, ela se aproximou do marido e se pôs na ponta dos pés para lhe alcan çar os lábios. Beijou-os com suavidade. Atônito, Pedro não reagiu, duvidando que aquela fosse a mesma Constança com quem tivera de se casar.

Pedro ressentiu-se de sua postura, mas preferiu não arrumar confusão. Estavam se entendendo na medida do possível, uma amizade ainda muito tênue. Num grande esforço para que o casamento desse certo, ele se afastara de suas mulheres, Sancha e Violante, e procurava passar mais tempo com a esposa e os filhos após o nascimento de Fernando, Pedro teve de largar tudo e, com Lobato, correr em segredo para Castela, levando com eles um médico judeu de extrema confiança. Branca estava gravemente doente e levou semanas para recuperar a saúde.

118

Pedro e Inês de Castro Para a alegria de Afonso e de Portugal inteiro, o herdeiro de Pedro, Fernando, nasceu em 31 de outubro de 1345, em Lisboa. Tinha os traços da mãe e cativara-a de imediato. Aquela, sim, era a criança perfeita, digna de ter sido gerada por Constança Manuel.

Cincolegítimos.meses

Constança não se mostrou nada feliz com a proximidade do marido, que a engravidara antes da viagem. Talvez estivesse com

Culpando-se por não tê-la visitado no ano anterior, o infante prometeu a si mesmo que a veria todos os anos. Arrumaria uma casa na floresta, algum lugar seguro em que pudessem conversar à vontade. Para que ninguém desconfiasse de suas viagens, usaria a desculpa de sempre: longas caçadas em lugares remotos. De volta a Coimbra, levou uma bronca homérica do pai por demorar tanto numa caçada e se esquecer da esposa e dos filhos. Disposto a passar um mês inteiro com Constança para compensar a ausência, o rapaz cancelou uma reunião em Lisboa na semana seguinte. Lobato, exausto da viagem a Castela, agradeceu aos céus pela oportunidade de descanso. Como a rainha Beatriz também estava em Coimbra, ele aproveitaria a companhia da esposa e de suas duas meninas, com quem mal convivera nos últimos meses.

– Ah, eu me esqueci de pegar um queijo! – disse, com uma careta. – Vou buscar.

– Sempre pensas em tudo?

– Sempre assaltas a cozinha, D. Inês?

– Sempre que não consigo resistir a algum aroma delicioso. As cozinheiras já me conhecem e fazem de conta que não estou ali.

Numa tarde quente, o rapaz resolveu passar pela cozinha, atraído pelo aroma irresistível de pães assando no forno. Chegou logo atrás de Inês, igualmente interessada na primeira remessa que a cozinheira acabava de depositar numa mesa.

– Eu diria que já me esqueci antes do queijo. E da faca também…

– Não é necessário, senhor – garantiu a garota. Sorrindo, tirou do bolso do vestido exatamente o que precisavam. – E ainda peguei uma faca!

Agindo em conjunto, os dois jovens apoderaram-se dos mais crocantes e escapuliram para o horto, nos fundos do paço. Ainda riam quando se sentaram sob a sombra de uma árvore para lanchar. Pedro descobria alguém tão guloso e tão interessado em pratos saborosos quanto ele.

– Elas sempre enchem meus bolsos de comida.

Pedro e Inês de Castro raiva por quase emendar uma gestação na outra, mas de qual quer forma isso não fez muita diferença. Pedro preferia investir seu tempo livre em Maria e Fernando a se esforçar para entender a esposa.Inês,por outro lado, estava sempre por perto. Parecia viver em um mundo à parte, isolada na medida do possível da rotina na “casa” de Constança. Não gostavam dela, e a jovem, como Pedro, também não gostava deles.

– És o infante. E elas só querem te ver feliz.

Olharam um para o outro. Ela estremeceu de leve, ele continuou a enxergá-la como uma criança vulnerável.

119

Voltaram a rir.

– D. Estêvão? – chamou.

Quando deram por si, estavam juntos havia mais de duas horas. Encabulado, ele pediu desculpas por lhe tomar tanto tempo. Ela, adorável, agradeceu a conversa animada e, após uma rápida reve rência, tomou a direção da cozinha. Ia devolver a faca. Pedro permaneceu no lugar, tentando entender por que se sentia tão à vontade com Inês.

120 Pedro e Inês de Castro – Vamos abrir esses pães e recheá-los com o queijo antes que esfriem – sugeriu a jovem. – O calor derrete o queijo e… – O sabor fica ainda melhor. É o que sempre faço.

No final daquela mesma tarde, Constança finalmente encontrou quem procurava em um dos corredores próximos a seu quarto. Eram tão raras as ocasiões em que o via… Ela ajeitou o vestido, deu atenção especial ao decote, que desejou ser mais ousado, confir mou a silhueta ainda esbelta, arrumou os fios de seus cabelos presos em um coque e foi à luta. Aquele rapaz maravilhoso não poderia lhe escapar por muito mais tempo.

– Sabes cozinhar, senhora? – Um pouco. Prefiro cozinhar a costurar ou bordar. Cá entre nós, meus bordados são horríveis… Riram, mudaram de assunto, falaram sobre crianças, Inês lembrou sua infância, Pedro, a dele. O rapaz reparou que ela sempre usava uma luva só. Perguntou o motivo, ela riu e confessou que adorava o acessório, mas que vivia se esquecendo de colocar a segunda luva e sempre a largava sem perceber em algum lugar.

Deliciaram-se com os pães, lembraram receitas que adoravam ou detestavam, ela lhe passou alguns segredos de culinária que aprendera na cozinha em Albuquerque, ele lhe contou sobre o preparo de peixes e o melhor tempero para acompanhá-los.

– Acho que não lhe contaram a verdade, senhora – disse ele, envergonhado. – Meus desenhos são muito ruins. Sorria, o que o deixava ainda mais charmoso. Seria tudo tão perfeito se ele fosse seu marido e não um estúpido que ela preci sava suportar com um sorriso, como se gostasse dele. Todo aquele fingimento esgotava Constança. Para piorar, vieram a nova gravidez e seus riscos. O lado posi tivo é que assegurava uma reputação de esposa fértil. Além disso, se Lobato cedesse, não haveria nenhum risco de gerar uma criança bastarda. E o rapaz ia ceder, tinha certeza, apesar de sua fama de marido fiel, algo muito difícil de se ver entre os nobres casados. Afinal, ele era homem e ela aprendera a usar seu poder de sedução.

Pedro e Inês de Castro Ao ouvi-la, Lobato interrompeu seu ritmo sempre apressado, girou nos calcanhares e virou-se para ela. Fez-lhe uma reverência.

121

– Não sei se o desenho teria qualidade e…

– Será um presente nosso para D. Pedro. O que achas? Lobato mordiscou os lábios.

– Sim, minha senhora? Constança aproximou-se, o coração batendo forte, mais perto do que seria aconselhável para uma mulher casada. Instintiva mente ele recuou. Ela imaginou a sensação de se deixar envolver por aquele corpo grande e flexível, de músculos bem definidos, o prazer de ser tocada por alguém que a atraía. Respirou fundo, ansiosa por esquecer o asco que Pedro ainda lhe inspirava e expe rimentar a paixão que nunca pudera conhecer.

– Oh, por favor, D. Estêvão! Serias capaz de recusar o pedido de uma mãe? – Eu… ahn…

– É que deixei há pouco D. Fernando dormindo no berço – disse Constança. – E ele está tão meigo, o rostinho sereno, os olhos cerrados… Eu gostaria tanto de registrar esse momento!

– Eu soube que desenhas muito bem.

122

– Terei de fazer tudo sozinha? – reclamou ela.

– Senhora, por favor, sou casado!

– Ele tem outras mulheres. E eu quero ficar contigo agora, antes que meu filho acorde e eu precise voltar para meu papel de mãe e esposa exemplar.

Pedro e Inês de Castro – Melhor não mostrar para ele – disse, inseguro.

– Quanta gentileza, senhor! Vai correndo, pois tenho medo que o bebêEnquantoacorde…o

– Nós dois temos de suportar casamentos que nos foram impos tos. Por que não podemos satisfazer nossas vontades?

– Mas D. Pedro…

– Beija-me… – mandou Constança. O rapaz fechou os olhos, não ousou se mexer.

rapaz ia atrás do material, a jovem rumou com pressa para o quarto de Fernando. Dispensou a aia e conferiu o sono pesado do filho. Nem mesmo um tremor de terra, como ocor rera em Lisboa dois anos antes, seria capaz de despertá-lo. Assim que Lobato apareceu, ela esperou que ele começasse a desenhar e, com o coração aos pulos, discretamente trancou a porta.Era agora ou nunca. Anexo ao aposento existia outro, menor, carregado de arcas e brinquedos. Constança dirigiu-se para lá e, após alguns segundos, chamou o rapaz. Solícito, ele foi até ela, acreditando que a ajuda ria a pegar algum objeto. Ainda não se dera conta de que não havia mais nenhum adulto por perto. A jovem empurrou-o contra uma parede, espremendo seu corpo junto ao dele. Teria lhe dado um beijo ardente se fosse possível alcançar seus lábios. Ele era ainda mais alto do que Pedro.

– Só preciso buscar o caderno e a caixa de giz de carvão.

– Isso significa que farás o desenho? Ele assentiu.

123 Pedro e Inês de Castro – D. Pedro é meu melhor amigo. Não vou trair a confiança dele.

– Não sou bonita para ti, é isso? Vamos, D. Estêvão, olha para mim! É uma ordem! Ele, porém, apertou ainda mais as pálpebras. Como era teimoso!

Aflita com a demora e temendo ser descoberta, Constança acelerou o processo. Abriu a camisa do criado, percorreu com os lábios o peito em que sonhara tantas vezes se aninhar, deslizou as mãos pelo corpo masculino. Lobato não conseguia mais resistir. EstavaConstançaAlguémcedendo.pigarreou.puloupara

ElaInês.estivera o tempo todo ali, arrumando alguns brinquedos atrás de uma tapeçaria. Lobato, de olhos bem abertos, estava em pânico por ter sido descoberto naquela situação comprometedora.

– Perdoa-me por interromper, senhora – disse a galega, com sua cara de sonsa. – Já arrumei os brinquedos de D. Fernando, como mandaste.–Deiessa

caminho daqui – disse –, encontrei D. Pedro. Ele está à procura de D. Estêvão. Era a deixa para o criado desaparecer dali. Sem pedir licença à futura rainha, ele retornou apressado até o quarto do bebê, reco lheu o material de desenho, destrancou a porta e saiu.

ia ameaçá-la, na tentativa de impedir que revelasse a Pedro ou a qualquer um o que presenciara. A galega foi mais rápida.–A

ordem há horas – rosnou a outra jovem. – Por que só a cumpriste agora? Aliás, onde estiveste a tarde inteira? Inês corou, mas não perdeu a vantagem. – Posso me retirar? – pediu. –ConstançaDeves!

longe, ajeitou automaticamente o vestido e viu quem os observava.

Como Inês esperava, Lobato estava a vários metros de distân cia, ainda no corredor. Parara a fuga para fechar a camisa, respirar e pôr suas roupas em ordem.

124 Pedro e Inês de Castro – Tens minha palavra de que nada do que vi e ouvi sairá daqui

– Não. Nunca. Nem a ele nem a ninguém. E de agora em diante tomarei todo o cuidado para não entrar em armadilhas semelhantes.– Não creio que ela tente de novo. É só uma mulher infeliz, D. Estêvão.–Ebastante egoísta também. Ela quase destruiu minha vida.

– Prometi a ela que o ocorrido será um segredo. Ele endossou a decisão com um movimento de cabeça. Depois, pediu licença e foi retomar suas tarefas. Inês pensou na tarde inocente que experimentara ao lado de Pedro um pouco antes, um momento em que simplesmente fora ela mesma, sem qualquer tática de sedução. Se não fosse por ele, se não o tivesse encontrado na cozinha, se não passassem mais de duas horas conversando, ela não se atrasaria para a arrumação dos

– Contarás a ele?

– disse Inês, surpreendendo Constança. – Posso ser uma solteirona que envelhecerá sozinha por não considerar nenhum pretendente

– Muito obrigado, senhora – disse ao vê-la. – Se não estivesses ali, eu… E depois eu seria torturado por minha consciência, não poderia mais encarar D. Pedro e…

Após uma reverência, a galega deixou o local. Sozinha, a esposa de Pedro caiu de joelhos, chorando, frustrada e cheia de raiva.

bom o suficiente, mas posso imaginar como deve ser horrível para uma mulher suportar um marido que detesta e desejar o amor de outro homem que não pode ter.

que passou em Coimbra, Pedro sempre dava um jeito de conversar com Inês. Gostava cada vez mais dela, de seu coração bondoso, de sua visão sobre o mundo. Como ele, a garota também se preocupava com o povo e conseguia enxergar além dos interes ses dos nobres.

125 Pedro e Inês de Castro brinquedos. Terminaria antes da chegada de Constança ao quarto do filho, Lobato cairia em tentação e ninguém estaria lá para impedi-los.No fundo, a confiança de Pedro na esposa e em seu melhor amigo não fora quebrada graças ao aroma irresistível de um punhado de pães no forno. Curioso como detalhes podiam mudar o futuro…Nosdias

Às vezes, o infante aproveitava para saber a opinião dela sobre algum assunto, da mesma forma que agia com Lobato, Álvaro e o mais novo de seus amigos, Telo. O garoto crescera e tornara-se um rapaz muito bem relacionado, o político nato que parecia conhe cer todo mundo. No verão, após visitar Branca em Castela, Pedro foi conhecer de perto o trabalho de amparo aos doentes e aos pobres, realizado pelos hospitalários. Junto com Lobato, Telo e Álvaro, foi hóspede do prior Pereira, que os levou a vários vilarejos no Alentejo.

Retornaram em setembro a Coimbra, o infante remoendo-se de saudades de Inês. Constança, na etapa final da gestação, andava insuportável. Fernando já aprendera a engatinhar, atordoando as aias com sua velocidade, e Maria, muito precoce, aprendia com a avó Beatriz as primeiras letras. Os bastardos de Pedro, filhos de Sancha e Violante, também estavam ótimos. Tudo se encaminhava bem, sem sobressaltos ou problemas, até que, no final do mês, a filha caçula de Lobato faleceu, vítima de

– Quem, senhor? Olheiras escuras afundavam o olhar esverdeado de Lobato, conferindo-lhe um aspecto doentio.

– D. Inês de Castro, ora! – Ah, ela? Não, senhor.

– O que tem ela, senhor? – Tu a amas? – D. Telo é apaixonado por ela, D. Diogo a cobiça e eu…

– A tempestade será devastadora – avisou.

126 Pedro e Inês de Castro uma infecção de ouvido. A esposa dele, que sofrera dois abortos espontâneos nos últimos anos, chorou a morte tão precoce, mas a aceitou com resignação. Lobato, no entanto, ficou transtornado.

Não se alimentava, não conseguia dormir. Pedro quis dispensá-lo do trabalho para que se recolhesse a suas terras com a família durante o tempo necessário de luto, porém o criado se recusou a partir. Tinha de manter a mente ocupada, justificou.

Para a surpresa de Pedro, Inês era a única que Lobato parecia escutar. E ainda se forçava a engolir algum alimento quando ela lhe enviava uma serva com as refeições. Enciumado, o infante arrastou-o para uma pescaria no rio Mondego, numa manhã de outubro quase tão negra quanto a noite.

– Eu sei – resmungou Pedro, impaciente. – E quanto a D. Inês?

– Tens certeza? – Tenho. – Mas ela te ama. – Não ama, senhor. – Ela se preocupa contigo. O criado contemplou o rio diante deles, as águas crispadas graças à turbulência do vento. Acima de suas cabeças, nuvens negras devoravam o céu.

– Tu a amas? – Foi direto ao ponto antes mesmo que o criado colocasse a isca no anzol.

– D. Inês cresceu, senhor. Repara melhor nela quando a encontrar.– Tu a amas ou não? – Não amo, senhor. – Tens certeza? – Tenho. – E quem amas, então? – Minha família. – Refiro-me a uma mulher. Por quem és apaixonado?

– Porque não me deixo guiar pela emoção.

– A única pessoa que a ama de verdade está parada na minha frente.–Eu?! Não, estás enganado. – E D. Inês é louca por essa pessoa. O comentário perturbou Pedro. Não, a jovem não podia amá-lo. E ele… Como pudera permitir que sua amizade por ela se transfor masse em um sentimento mais profundo?

– Sobre D. Inês, tu…

127 Pedro e Inês de Castro – D. Diogo? – repetiu Pedro, furioso. – Aquele canalha que se atreva a tocar nela para ver só o que lhe acontece!

– D. Inês é uma mulher bonita. É natural que atraia vários inte ressados.–Mas ela é só uma criança! Lobato encarou-o, ameaçando sorrir. Se não estivesse tão bravo, Pedro ficaria feliz em vê-lo reagir a algum assunto pela primeira vez em dias.

– Ele não é o único que a cobiça. – Não?!

– Serás um velho ranzinza! – Pedro deu risada.

– E por que não?

– Por ninguém. Nunca houve e nunca haverá paixões avassaladoras no meu destino, ao contrário do teu.

– Acho que já sou um, senhor.

A jovem sentiu um friozinho gostoso no estômago. Ele estava com ciúme! E também tão desconfortável em fazer aquela pergunta que gaguejava, o que raramente acontecia quando conversavam.

– Porque não sou cego, senhor. Que tal voltarmos ao paço? A tempestade está prestes a desabar.

E ela veio, alagou ruas e destruiu casas em Coimbra. Em seu rastro, trouxe manhãs cinzentas e uma decisão que custaria a Pedro muito sofrimento.

– Senhora, sei que… não é da… da… da minha conta, mas… por que te… preocupas tan-tanto com… D. Estêvão?

128 Pedro e Inês de Castro – Como consegues saber essas coisas? – perguntou.

– És linda… – sussurrou. Com as pernas bambas de emoção, ela apoiou as costas contra o tronco da árvore. O rapaz ficou ainda mais próximo, sua respira ção misturando-se à dela. Iria beijá-la…

– D. Pedro? – disse uma terceira pessoa.

– Porque ele é uma pessoa decente, senhor. Merece nossa aten ção.– Só por isso? – E por que mais seria? – Tu o amas? Amo a ti!, ela quis gritar. Deteve-se, com medo de quebrar a análise atenta de que era alvo. Pedro corou, finalmente enxergan do-a como uma mulher adulta. Soltou-lhe o cotovelo, ergueu a mão, seus dedos contornaram os olhos de Inês, o nariz, os lábios. Pararam no queixo.

Pedro jamais aprenderia a ser alguém sutil. Mais uma vez ele surpreendeu Inês saindo da missa e puxou-a pelo cotovelo até se colocarem atrás da árvore mais próxima.

129

não disse mais nada, apostando na ação da consciên cia pesada de Pedro. Que o infante tivesse mulheres longe da corte, ainda era possível fazer vista grossa. Mas humilhar Constança ao assediar uma das donzelas da “casa” dela, debaixo do nariz de todos, era inadmissível. O rapaz deu meia-volta e foi para o paço. O ciúme dava-lhe sossego. Inês não amava Lobato nem ele tampouco lhe nutria paixão. Era certo que dedicava à jovem apenas a mesma admiração que tinha por Branca, respeitando-a como sua senhora, a companheira de seu senhor. Pedro sorriu. O criado sempre estava um passo à frente, ante vendo situações que ainda não eram claras para o infante.

Sim, os três amavam Inês, cada um à sua maneira. E Pedro entendeu o que vinha sentindo havia tempos, desde que o aroma

O rapaz afastou-se, sem esconder a culpa. Morta de vergonha, Inês virou-se para o recém-chegado.

Pedro e Inês de Castro O sacerdote Gonçalo, confessor de Constança, descobrira-os.

Também não precisava se preocupar com a paixonite de Telo. Para ele, Inês era a musa, a mulher inatingível, fonte de inspiração para cantigas de amor que nunca cantava para ninguém. A jovem tratava-o como se fosse um irmãozinho caçula, com a mesma aten ção maternal que dirigia a Álvaro, sempre atrás do irmão mais velho para obrigá-lo a tomar o remédio contra sua rinite crônica.

– Senhor, acredito que tua esposa esteja à tua espera – disse ele, lançando-lhes um olhar reprovador. A jovem pediu licença e, o mais dignamente que pôde, foi para longe. Lágrimas embaralhavam-lhe a visão, a felicidade ocupando cada pedacinho de sua existência. Pressentia, sentia, sabia, confirmava e reconfirmava. Pedro amava-a.Gonçalo

Torturado pela possibilidade, não conseguiu mais disfarçar o interesse pela jovem toda vez que a via, mesmo de longe. Não escondeu que preferia ficar conversando com ela e somente com ela nas noites de festa na corte. Não notou os comentários maldo sos às suas costas, os olhares furiosos de Afonso e Beatriz, o ultraje mudo que minava Constança.

Assim que Pedro foi conhecê-lo no quarto da esposa, soube da novidade pela própria. Por sugestão dela, Inês e Diogo seriam os padrinhos da criança. Era uma estratégia brilhante para defi nitivamente afastar a jovem galega. Ao se tornar a mãe espiritual de um filho de Pedro, ela criava laços de parentesco com o rapaz diante da Igreja. Qualquer relação entre os dois, a partir daquele momento, seria considerada incestuosa.

No dia 11 de novembro, ela entrou em trabalho de parto. Seu menino nasceu por volta da meia-noite e recebeu o nome de Luís.

Constança ordenou a todas as mulheres presentes em seu quarto, inclusive Inês, que se retirassem. Foi obedecida de imediato. O marido deixou o pequeno Luís no berço e, em pé, aguardou o que viria. – Devias me agradecer e não exibir esta cara zangada para mim – disse a esposa.

130 Pedro e Inês de Castro de um punhado de pães no forno o levara para uma tarde inocente ao lado de Inês. Sobrara para ele a paixão avassaladora que Lobato temia para o próprio destino. Não. Era mais do que isso. Sobrara-lhe o amor verdadeiro, o mais intenso que existe no universo, capaz de quebrar encantamentos e atrair a inveja dos deuses. Exatamente como previra a bruxa. Mergulharia nesse sentimento de cabeça, sem pesar conse quências, ávido pela vertigem de se saber amado, ardendo pelo desejo de ter Inês apenas para si, de acordar abraçado a ela todas as manhãs, de se perder em seu sorriso, nas suas palavras, em seus pensamentos. Mas… E se ela não o amasse?

Constança era tão meticulosa e preocupada com aparência quanto Lobato. Mas, enquanto nele o primeiro adjetivo era um traço de sua personalidade e o segundo uma necessidade para camuflar suas origens de baixa nobreza, nela soavam como atitu des irritantes de quem desejava se mostrar superior.

– Não acredito.

– Talvez queiras ler uma das cartas que ele periodicamente envia a Castro… Ela é tão descuidada com os pertences como és com os teus. Deve ser a única coisa que tem em comum contigo, pois o restante é tão falso… Cada atitude calculada minuciosa mente com o único objetivo de te envolver. És tão ingênuo, senhor. Sempre foste e sempre serás.

– Que… que… ca-ca-carta?

Sorrindo em triunfo, ela apontou para uma caixinha de madeira sobre uma mesa. De seu interior, as mãos trêmulas de Pedro

vel diante do pai de seu novo filho. Os cabelos estavam soltos e penteados, uma camisola limpa e perfumada substituíra a ante rior, suja de sangue, suor e placenta. Constança fora banhada, os lençóis tinham sido trocados. Com exceção do bebê, nada parecia contar que um parto ocorrera havia pouco no local.

– Agradecer, senhora?

– Estou te livrando da influência direta de D. Juan Alfonso de Albuquerque.Pedroestreitou

131 Pedro e Inês de Castro Estava na cama com as costas apoiadas em travesseiros junto à cabeceira, pálida e abatida devido ao esforço do parto, mas já preparada pelas aias para se exibir na melhor forma possí

os olhos. Não pensara naquela possibilidade. Consciente de que atingira uma questão delicada, Constança resolveu criar uma ferida no coração do marido e ainda se divertir cutucando-a com a unha.

– Ela é uma Castro, meu querido. E foi mandada para cá pelo próprio D. Juan Alfonso para te seduzir e te manipular de acordo com a vontade daquele asqueroso inimigo do meu pai.

132 Pedro e Inês de Castro encontram as folhas dobradas, abriram-nas. Havia um texto escrito e assinado por Juan Alfonso, as cobranças por resultados sobre a missão de Inês em Portugal. E, por último, a recomendação para que a carta fosse queimada, o mesmo final que a jovem devia dar a outras semelhantes. Com dificuldade, o rapaz segurou o ímpeto de trucidar as folhas. Dobrou-as antes de guardá-las em um dos bolsos da calça Não olhou para Constança. Saiu, passos firmes, porém ferido demais para confrontar aquela verdade com Inês.

comprida.

O batismo de Luís foi realizado dias mais tarde na catedral da Sé, uma cerimônia em que Inês não conseguiu pronunciar direito suas palavras como madrinha. Pedro ignorava-a desde o nascimento da criança, fechado em ódio e mágoa. Lobato, a pessoa mais próxima a ele, não sabia o motivo e prometeu contar à jovem assim que descobrisse. Álvaro achava que havia mais naquela atitude do infante do que raiva por ganhar Inês como comadre e perdê-la como mulher. Telo, amuado, tentava se acostumar com a ideia de que era Pedro quem ela amava.

Padrinho do bebê, Diogo estava exultante pela oportunidade de dividir com Inês uma honra desejada por tantos fidalgos. Aprovei tava cada instante para roçar seus dedos nas mãos da jovem e, em pé ao seu lado, contemplar de perto o famoso colo feminino. Colo de garça, como diziam. Um apelido que Inês detestava, pois não considerava exatamente um elogio ser conhecida por aquela parte do seu corpo e ainda comparada a uma ave. Tampouco gostava de sua pele tão clara, sensível a qualquer raio de sol mais potente que a castigava com vermelhidão e marcas indesejadas. Mas nada daquilo, no momento, era importante. Pedro estava ali, porém longe dela, inacessível, desprezando-a. O amor que ela vislumbrara parecia não existir mais.

Arrasada, Inês suportou muito mal as semanas seguintes. Ouviu comentários que se referiam a ela como a Castro, a amante imoral do futuro rei que destruíra um casamento feliz, a galega sem-vergonha que traíra a confiança da esposa honrada, essa uma quase irmã que a acolhera de braços abertos quando chegara a Portugal. Descobriu que o apelido “colo de garça” podia ser um sinônimo para prostituta – segundo comentavam, aquela ave costuma se acasalar também fora do período de procriação. Vários nobres viraram-lhe a cara, um ou outro mais indignado xingava-a em voz baixa.

A situação tornou-se ainda mais insustentável quando Luís não resistiu a dois dias de febre alta. A perda abalou Pedro, acusado veladamente por muitos de querer a morte do filho para libertar Inês de sua condição de madrinha. Para ela, as acusações foram mais claras. Culpavam-na de enfeitiçar o infante, de envenenar o bebê, chamavam-na de bruxa.

Após o enterro do filho, Pedro resolveu desaparecer numa caçada rumo ao norte, apesar do frio intenso e da neve que cobria aquela parte do reino. Inês não titubeou. Precisava conversar com ele, apoiá-lo em um período tão doído. Arrumou um cavalo e dispa rou atrás do grupo de caça, que partira meia hora antes.

Alcançou-o com alguma dificuldade, após quase se perder na floresta. Ao descobri-la ao seu encalço, Pedro interrompeu a caval gada e esperou. Lobato fez o mesmo e, como os outros homens do grupo hesitassem em continuar sem eles, sinalizou para que seguissem em frente. Iriam depois.

– Devias ter mais respeito – disparou Pedro no instante em que a jovem parou a poucos metros de distância. – Acabei de enterrar meu filho.

133 Pedro e Inês de Castro Vitoriosa, Constança apreciava seu dia de glória. Os sogros apoiavam-na, do mesmo modo que a maioria dos nobres presentes. Eles se apiedavam da triste sina da mulher casada com um homem que cometia adultério com a suposta amiga dela.

134 Pedro e Inês de Castro Ela estranhou seus modos estúpidos.

O que ele queria dizer? Inês fez menção de descer da montaria. Como o infante não se abalou, Lobato teve de desmontar e correu para ajudá-la.

– Deixa-nos a sós, D. Estêvão – disse a jovem. O criado ia se afastar. Pedro impediu-o.

– Mais uma das tuas atitudes dissimuladas, suponho. Não me enganas mais, senhora.

– Tu ficas, D. Estêvão – ordenou. Era a solução que encontrava para evitar um momento a sós com a garota. O que temia? Que ela o enfeitiçasse?

– Por favor, D. Estêvão, vai – disse Inês. Estava ali para apoiar Pedro numa perda difícil e não para envolvê-lo numa cena de sedu ção.– Fica, D. Estêvão. – Não, ele vai! – Ele fica! – rosnou o infante.

Sempre queimava as cartas de Juan Alfonso, como ele mesmo exigia. Mas aquela… Sim, havia uma… Ficara na dúvida se a quei mara… Como não a encontrara entre seus pertences, concluiu que tinha se livrado dela e se esqueceu do problema.

Lobato, constrangido, não se moveu mais.

Pedro tirou do bolso algumas folhas dobradas, amassou-as para formar uma bola e arremessou-a aos pés da jovem. Ela sentiu um calafrio ao reconhecê-las. Como foram parar com o rapaz?

– Por favor, D. Pedro, vamos conversar – ela implorou. Ele levou minutos para se decidir. Por fim, pulou da sela, mas não foi ao encontro da jovem. Permaneceu junto ao cavalo.

– Por que estás me tratando como uma inimiga? – perguntou Inês. – Mereço uma explicação.

– Vim conversar contigo, senhor. Apoiar-te…

A caçada, claro, foi um desastre. Pedro não tinha cabeça para se concentrar, Lobato não prestava atenção em nada e os demais

– Senhor, antes vou acompanhá-la até Coimbra – avisou.

– Irás me contar o que houve, senhora, ou preferes que eu leia a carta? – disse Lobato, indicando a bola de papel. Inês não aguentou mais. Abraçou-o, chorando desesperada.

Pedro passara a odiá-la.

Não conseguiu contar o quanto a tal missão a enojava e, mesmo se conseguisse, Pedro não acreditaria em sua sinceridade. Ele assu mira uma expressão impassível.

– Sei muito bem quem eu sou e quem tu és! Mas não vou deixar uma mulher sozinha na floresta e muito menos fazê-la cavalgar sozinha com tantos malfeitores espalhados por aí.

135 Pedro e Inês de Castro – Eu te amo, Pedro – murmurou Inês num impulso, o choro embargando-lhe a voz. Era a única explicação que realmente importava. – E te amarei até o fim do mundo.

Pedro rangeu os dentes, engoliu o orgulho, esporeou a monta ria e foi para sua caçada. Sabia que o criado estava com a razão.

– Vamos embora, D. Estêvão – disse, após voltar para a sela. –

– Escuta, criado, sou o infante e…

Será uma longa caçada. Lobato, porém, olhava apreensivo para Inês.

– Vou obedecer, senhor, mas antes levarei D. Inês a Coimbra.

Lobato reuniu-se ao grupo no segundo dia da caçada. Não falou nada sobre Inês. Ficou apenas rondando, à espera de uma chance para tocar no assunto.

– Eu te dei uma ordem, D. Estêvão. – Que eu já escutei. – Exijo ser obedecido.

– Senhor, devíamos retornar a Coimbra – comentou o criado numa noite, sentando-se ao lado de Pedro, distante da fogueira que aquecia os outros homens. Nevara o dia inteiro, reforçando a cobertura branca sobre a maior parte da vegetação.

– Por que sempre achas que és o dono da verdade? – encrespou -se o infante.

136

– Cuidado… Estás falando da minha esposa e mãe dos meus filhos.

– Quem te entregou a carta, senhor? Aposto como foi D. Cons tança.–Não te metas nos meus assuntos particulares.

– Preferes acreditar na filha de D. Juan Manuel a conversar com a mulher que salvou a vida de D. Branca?

– Já te disse para… – D. Constança envenenou-te o coração. Ela é cruel, egoísta e…

Pedro e Inês de Castro seguiam ordens desencontradas de dois rapazes que não estavam mais se Aumentandoentendendo.ainda mais a tensão entre todos, o inverno espan tava a caça para longe e obrigava-os a avançar cada vez mais pela floresta. Naquele ritmo, a jornada infrutífera jamais terminaria.

–MasCala-te!ocriado não se calou.

– Foi apenas uma sugestão, senhor. Se desejas manter esta caçada, é o que será feito. Lobato continuava a dar voltas, procurando a melhor maneira de forçá-lo a desabafar, a admitir que amava Inês loucamente, que não dera a ela nenhuma chance para se defender e ainda por cima agira como um covarde ao querer abandoná-la na floresta. Pedro, no entanto, morreria de vergonha se tivesse de revelar suas fraquezas.

– Não ouviste a versão de D. Inês sobre os fatos – arriscou Lobato. Foi seu erro.

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permitir, senhor, que jogues tua felicidade fora porque a infeliz da tua esposa…

– Mais uma palavra e te arranco a língua!

– Porque sou o único amigo que tens com coragem de te falar essaUmverdade.socodo infante atingiu-lhe o rosto. Lobato cambaleou para trás, quase perdeu o equilíbrio. Endireitou-se, tirou com as costas da mão parte do sangue que começava a lhe escorrer do nariz.

– Não, senhor.

– Não, senhor. – Esqueceste que posso te matar por me faltares com o respeito?

Pedro e Inês de Castro – Uma esposa que te foi imposta e te despreza!

– Esqueceste teu lugar? – vociferou Pedro.

Pedro colocara-se em pé. O criado também se levan tou.– Estás agindo como um tolo, senhor.

– Então some daqui antes que eu resolva te executar!

Pedro desistiu da arma e resolveu usar os punhos. Os dois troca ram murros, arrancaram sangue um do outro. Mediram forças e teimosia. Nenhum dos espectadores interferiu. Após um bom tempo, quando a agressão perdeu o motivo e os dois rapazes, esgotados, estavam caídos um ao lado do outro, Lobato recuperou o início da discussão.

Lobato livrou-se da própria espada e, com as mãos nuas, deu um passo à frente.

– Como te atreves a…?

–Possesso,Chega!

Àquela altura, o restante do grupo acompanhava, incrédulo, uma briga a que jamais imaginara assistir. O criado, irmão de cria ção e melhor amigo de Pedro, morreria transpassado pela espada que o infante tirava da bainha. Apesar do risco, ele insistia em enfrentá-lo.–Nãovou

– É o único modo de me calar – desafiou.

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Lobato supervisionou o trabalho de todos que prestavam serviço à “casa” do infante, fez a conferência dos gastos, deu algu mas sugestões ao porteiro que vigiava a porta da antecâmara e

Lobato sorriu com tristeza, pensando nas intrigantes constru ções mouras que Pereira lhe dissera existirem em Granada, um dos lugares que o criado sempre sonhara conhecer. Sonhos tolos que nunca se realizariam. Sem a ajuda de ninguém, ele trocou os curativos e reforçou a faixa que enrolara em si para lidar com as fraturas. Depois, bem devagar, deitou-se em sua cama, sentindo-se o mais solitá rio dos seres vivos. A esposa acompanhava Beatriz numa viagem a Lisboa. Não a veria tão cedo. Sua filha estava com elas, pois era criada pela rainha. Antes mesmo de o sol nascer e após um sono reconfortante, o rapaz foi cumprir suas obrigações. Não tinha um cargo específico, mas era a pessoa que respondia a Pedro pela administração de sua vida, acima inclusive dos nobres oficialmente responsáveis por ela.

Pedro e Inês de Castro – Senhor, devíamos retornar a Coimbra – sugeriu, esforçando -se para manter a voz firme e livre da dor que lhe faria companhia porPedrodias. teve de concordar. Insistir naquela caçada era mesmo inútil.De volta ao paço, Lobato foi chamar o médico para Pedro e a seguir arrastou-se para o próprio quarto. Ao contrário do infante, que não quebrara nenhum osso, ele tinha fraturado duas costelas. Fora uma tortura suportar a viagem de regresso, a nevasca que os pegara no começo do trajeto e, acima de tudo, a vontade tentadora de abandonar a corte e viver para sempre muito longe de Portugal e de todos os seus problemas.

– Melhor para mim! – disse, sem muita convicção.

– E por que ele faria isso? – Para que não possas mais retomar tua amante agora que ela não é mais tua comadre.

Pedro e Inês de Castro alertou pela terceira vez o reposteiro-mor sobre a importância da manutenção da lanterna grande na entrada do paço, que andava negligenciada. À noite, foi conferir se Pedro estava bem.

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Pedro prendeu a respiração. A novidade ainda não tinha chegado até ele.

Zangado, Lobato devolveu os pratos à mesa, jogando-os de qualquer jeito. Um deles rachou ao meio. Como aquele cabeça -dura podia ser tão desinformado?

– Não é o que ele e os outros acham.

– Por quanto tempo ficarás sem falar comigo? – resmungou o infante, cansado. Lobato lançou-lhe um olhar agressivo. – Se pensas que tua mudez me forçará a falar com a Castro, estás muito enganado!–Assim que o tempo melhorar, ela partirá para Albuquerque.

– Diz logo, D. Estêvão! O que mais queres me contar?

– D. Inês nunca foi minha amante!

Desde a briga, Lobato não sentia vontade nenhuma de lhe dirigir a palavra, limitando-se ao mínimo indispensável. Trouxera-lhe uma caneca de chá, que depositou secamente numa mesa. Depois, reco lheu sem nenhum cuidado os pratos sujos do jantar, esquecidos por alguma serva. Precisaria chamar a atenção dela logo pela manhã.

Encontrou-o sentado na cama, folheando um livro que não lhe despertava nenhum interesse.

– É teu pai quem a manda ao exílio.

– Pensei que tivesses ido embora para tuas terras – disse Pedro, surpreso por encontrá-lo trabalhando.

– Não preciso te contar nada, senhor – cuspiu. Tinha ganas de sacudi-lo e arrastá-lo pelas orelhas até Inês. – Acredito que devas

Não havia mais nenhuma tarefa para cumprir ali. O criado deixou o quarto, sem notar que batia a porta com estrondo ao fechá-la atrás de si.

– Subestimas minha influência neste reino, senhora.

– Posso conseguir que permaneças em Portugal – disse uma voz atrásInêsdela.voltou-se para o homem que a seguira, Diogo Pacheco.

– Não creio, senhor, que possas decidir a questão – dispensou ela.

Havia tanta musicalidade no ar… Era o que gostaria de levar daquele reino que aprendera a amar tanto quanto a Galícia.

– Uma palavra tua e o rei reconsideraria meu exílio?

Entristecida, percorreu os vários corredores do paço, aprovei tando a fraca luminosidade da manhã de inverno para ver pela última vez cada detalhe do cenário. Passou na cozinha, sorriu e, sem escolher nenhuma direção específica, foi parar sob a copa da mesma árvore onde, numa tarde inesquecível, pudera conversar com Pedro sobre receitas e também infâncias que jamais se repetiriam.

Quando as geadas incomuns que assolavam a cidade de Coimbra deram sinais de fraqueza, Inês arrumou suas arcas. Estava pronta para partir na comitiva que Álvaro organizara para levá-la. Senti ria muitas saudades de Portugal, de suas paisagens encantadoras, da impulsividade de seu povo, das cantorias alegres nas festas.

140 Pedro e Inês de Castro saber como tratam uma mulher acusada de dormir com o marido de outra.Sim,ele sabia. Pareceu gelar com a certeza dos insultos e das humilhações que a jovem galega sofria injustamente. Isso porque nem desconfiava que até poções e encantamentos tinham sido encomendados a feiticeiras por algumas damas de Constança com o objetivo de separar os supostos amantes.

Pedro e Inês de Castro Ele preferiu ignorar o tom de zombaria que a jovem imprimira à pergunta. Avançou, sua sombra cobrindo-a por completo.

– Podes apostar que sim.

141

– Larga-me!

– Já sabes a resposta, não? Ela quis recuar, ele a prendeu pelos pulsos.

– xingou entredentes. Agarrou-a por trás, pelos cabelos, enquanto a jovem tentava escapar e, enfurecido, bateu a cabeça dela contra o tronco da árvore. Inês gritou, quis soltar-se, arranhá-lo. Ele a esmurrou na altura do abdômen e a largou no chão, onde pretendia chutá-la.

– Basta me dares o que já deste ao infante. Assim, terás dois homens a te proteger. Ele publicamente e eu agindo nos bastido proposta era repulsiva! Sem hesitar, Inês acertou a virilha de Diogo com uma joelhada possante. Ele ganiu de dor, libertando-a.–Cadela!

Foi impedido por Lobato, que veio correndo com a espada em punho para atacá-lo. Diogo rebateu o golpe com sua arma, ganhou vantagem sobre o rapaz que, ainda bastante machucado pela briga com Pedro, não podia resistir por muito tempo. Inês levantou-se, dolorida, apoiando-se na árvore. Tinha de buscar ajuda.

Mal deu alguns passos e Diogo desarmou o criado, lançando a espada dele para longe, e desferiu-lhe um murro no estômago, o que o derrubou com facilidade. Depois, sem pressa, encostou-lhe a ponta da lâmina contra o pescoço, prestes a executá-lo.

– E por que farias isso por mim?

res…Aquela

– Não! – berrou Álvaro, a alguma distância. Diogo refletiu melhor, adiando aquela morte para priorizar outra que considerava mais importante. Afinal, um Castro valia muito mais do que um nobre de segunda categoria. Com indisfar çável satisfação, recebeu o irmão mais velho de Inês para o duelo.

142

– Parai já com isso! – gritou o infante. A ordem não foi acatada. Pedro avançou contra os dois nobres. Teve de usar a própria espada para apartá-los.

– Por favor, D. Pedro, vem comigo! – Inês pediu, puxando-o pela mão.–

– Eu jamais mataria D. Estêvão! Desarmei-o, isso sim, e ia lhe explicar sobre o tombo de D. Inês quando esse galego estúpido quase provocou um grave incidente. Nisso a jovem concordava com ele. Se Diogo matasse Álvaro, a reação da família Castro e de seus aliados provocaria estragos incalculáveis nas relações entre os nobres portugueses e castelha nos. Se fosse Diogo o defunto, o resultado seria o mesmo.

– Eu caí, me machuquei e D. Diogo me ajudou com suas mais respeitosas intenções – mentiu Inês. Álvaro fuzilou-a com olhar, porém não a contradisse.

Acompanhou-a na corrida até o horto. No chão, Lobato ainda tentava se levantar sozinho, sem sucesso. As lâminas de Diogo e Álvaro continuavam a se bater, violentas, ambas ansiando destro çar seu adversário.

Pedro e Inês de Castro A jovem precisava impedir aquela tragédia. Apesar da dor, correu o mais rápido que pôde até o paço. Por sorte, encontrou quem procurava na cozinha, experimentando um ensopado que uma das cozinheiras preparava especialmente para ele.

– Um grande mal-entendido, senhor – adiantou-se Diogo. –

Tua testa… Estás sangrando! – ele disse, preocupado.

– O que houve aqui? – exigiu saber.

D. Inês tropeçou na barra do vestido, caiu e bateu a cabeça numa pedra. Eu estava passando e fui acudi-la. Então teu criado incom petente apareceu, tirou conclusões erradas e quis me matar. Logo depois D. Álvaro surgiu e o equívoco ganhou novas proporções.

– Ele ia matar D. Estêvão! – argumentou Álvaro, possesso. – Sei muito bem o que vi!

– Não vejo necessidade de puni-lo.

– Um dia, D. Estêvão, pagarás muito caro pela afronta ao mais importante conselheiro do rei.

– Perdoa-me, senhor, por ter feito mau juízo de tuas ações –disse,Faltavasubmisso.oinfante

O nobre retesou a mandíbula, nada à vontade por ser descar tado de modo tão rude.

– Claro que não – disse Pedro.

– Então por quê…?

143

Pedro e Inês de Castro Pedro olhou-a de esguelha e foi ajudar Lobato a se erguer. O criado sufocou um grito de dor quando conseguiu se endireitar, as costelas quebradas exigindo atenção. Consciente de seu papel naquela farsa, ele inclinou a cabeça numa reverência para Diogo.

– Se é o que pensas… Diogo dirigiu uma reverência a Pedro. Antes de se retirar, não perdeu a oportunidade de fazer uma promessa.

– Como queira, meu senhor – forçou-se a dizer. – Ah… Tenho apenas um pedido. Que a punição a teu criado seja exemplar.

– Agora que está tudo esclarecido – disse ele para Diogo –, não vejo mais motivo para tua presença aqui.

Lobato optou pelo silêncio. Avaliou-o com desprezo antes de ir, cambaleante, buscar sua espada, que fora parar atrás de um arbusto.–Acreditaste

naquele canalha, senhor? – cobrou Álvaro no instante em que Diogo desapareceu de vista.

– Para evitar o pior – simplificou Inês. – Agora, D. Álvaro, vai buscar um lenço para cobrir minha cabeça. Não posso entrar no paço com este corte à vista de todos.

endossar a mentira.

– Que eu escutei e vou cumprir assim que D. Inês me liberar –calmamente disse o criado.

– Não importa mais, senhor. Estou partindo para Albuquerque. Pacientemente ela esperou pela próxima atitude de Pedro. Preci savam conversar. Aquela era a última oportunidade que teriam.

– Vai logo, D. Estêvão. – Fica, D. Estêvão. – Não, ele vai!

144 Pedro e Inês de Castro O irmão saiu resmungando e o infante resistiu à vontade de limpar o sangue que escorria da testa da jovem, de cuidar dela e daquele ferimento. Como Diogo tivera coragem de agredi-la?

– Ele fica! – teimou a jovem. Lobato não se mexeu mais.

– Senhor, tu viste a carta de D. Juan Alfonso – disse Inês, desviando a atenção de Pedro para ela –, mas não leste minha resposta.–Eoque respondeste? – Disse-lhe que tentei te seduzir e não tive sucesso. Essa sempre foi minha resposta para todas as cartas que ele me enviou.

– Ele te insultou, não foi?

– Ela não está mais sozinha numa floresta e muito menos amea çada por algum malfeitor! Some logo daqui! Lobato não saiu do lugar. Como era teimoso!

– E por que não lhe contaste sobre teus progressos comigo? Que tua missão teria êxito em breve e… – Não concordo com essa missão.

– Por que vives me desobedecendo? – atacou o infante. – Eu te dei uma ordem!

– Deixa-nos a sós, D. Estêvão – disse ele. Plantado à esquerda do casal, o criado ia se afastar. Inês impe diu-o.–Fica, D. Estêvão, por favor. Queria uma testemunha por perto.

– E por que não?

– Mas não posso te incluir no meu destino – ele recusou, sentindo uma pontada de dor no próprio coração. Inês inter rompeu o avanço, de repente sem saber onde colocar os braços. Jogou-os atrás do corpo. – És uma Castro, foste criada pelo meu primo, filho de Afonso Sanches, o grande inimigo do meu pai. Não posso trazer as disputas de Castela para minha casa.

E tentador. –LágrimasNão.

– E como vou saber se não é mais uma encenação tua? Ela abriu a boca, incrédula por lidar com uma desconfiança que inventava planos mirabolantes para se justificar. Controlando-se para não se intrometer, Lobato bateu as mãos contra as pernas.

inundaram o rosto de Inês.

– Não me amas, senhor? Apesar da presença constrangedora de Lobato, Pedro não podia mentir.–Amo-te, Inês, mais do que tudo nesta vida – confessou. – E te amarei até o fim do mundo.

– Até o fim do mundo… – ela repetiu, emocionada por ele se lembrar de suas palavras.

145 Pedro e Inês de Castro Ele meneou a cabeça. Não queria acreditar.

– Dá-me uma chance para provar meu amor – a jovem insis tiu. – Não falaremos sobre política, não influenciarei tuas decisões como infante, não comentarei contigo nada o que sei sobre a família Albuquerque e juro que de mim eles não saberão nada sobre ti e tuaPareciagente.justo.

– E também depois dele. A jovem abriu um sorriso lindo. Ameaçou ir até Pedro, abraçá-lo, começar o beijo que ainda não recebera.

– Porque eu te amo, Pedro. Romperei com a família Albuquer que se isso provar o que sinto por ti.

Pedro e Inês de Castro – E desde quando segues meus conselhos? – surpreendeu-se Lobato.–Sigo alguns. E estás correto quando defines D. Constança como cruel, ambiciosa e infeliz. Ela faz o mesmo jogo da famí lia Manuel, inimiga dos Castro, dos Albuquerque, do meu outro primo, rei de Castela, e de sei lá mais quantos portugueses e caste lhanos. Só sei que já estou dentro desse caldeirão e não quero trazer mais riscos a este reino.

– Ótimo. Agora tu vens comigo. Vou te levar ao médico.

Lobato baixou a cabeça, envergonhado por não conseguir se cuidar sozinho e, ainda por cima, dar-lhe trabalho. Àquela ordem ele teria de obedecer.

O afastamento de Inês foi matando Pedro aos poucos. Depri mido, o rapaz deixou de se envolver na vida do reino. Perdeu a alegria, a vontade de participar das festas, de visitar a cozinha para beliscar os pratos durante a preparação. Lembrava-se a todo instante de Inês, pensava nela, imaginava se a jovem sofria tanto quanto ele.

– Queres que eu te quebre outra costela?

– É o que sou para ti? – perguntou Inês, magoada. – Um risco?

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– Não. Tu és minha perdição. A jovem não quis ouvir mais nada. Fugiu dali, refugiou-se no paço, no quarto que guardaria sua tristeza até o momento da partida. Pedro fincou os pés no chão, lutando contra o desejo de ir atrás dela, de viver com intensidade até o último segundo de sua existência o amor que jamais poderia concretizar.

– Não é necessário, senhor. Já aprendi minha lição.

– Estás agindo como um tolo, senhor – repetiu Lobato. Pedro mirou-o com uma expressão ameaçadora.

Sem demonstrar reação, Pedro levou a carta à vela mais próxima e, quando a chama se expandiu para o papel, largou-a sobre um prato na mesa. Ficou assistindo até que fosse consumida por–inteiro.Nunca

– Não há nada que possamos fazer – lamentou o galego.

– E agora? – perguntou Telo, preocupado. – Se nós não os ajudarmos, os dois vão morrer! Embora fosse uma possibilidade dramática demais, Álvaro foi obrigado a concordar com o primo. Pedro e Inês emagreciam a olhos vistos, poderiam adoecer. Não eram mais eles mesmos.

Novamente em Coimbra, Álvaro esperou a primeira oportunidade de entregar a carta ao infante na maior discrição possível. Estavam na antecâmara e havia apenas Lobato e Telo por perto.

– Ela está sofrendo muito… – disse Álvaro.

Foi Álvaro quem lhe deu a ideia de escrever para Pedro. Uma simples carta, só uma, disse-lhe inúmeras vezes. Inês resistiu ao máximo, não aguentou e fez-lhe a vontade que também era a dela.

– Tem, sim – disse Lobato, como se pensasse em voz alta.

Pedro e Inês de Castro No exílio em Albuquerque, a jovem também sofria. Não tinha ânimo para nada. Preferia a solidão dos cantos do castelo, chorava às escondidas. Pensava no rapaz o tempo todo, imaginando se ele sofria tanto quanto ela.

mais me tragas uma carta dela – disse, por fim. E saiu do aposento.Álvarosuspirou, desgostoso.

– E o que sugeres? – indagou Telo. O criado encarou-o, como se notasse naquele minuto que pensara em voz alta. Sem responder, ele também deixou o local. Apareceu atrás de Álvaro somente no dia seguinte, com uma carta nas–mãos.Entrega em segredo para D. Inês – disse-lhe. Sorridente, o galego reconheceu a letra de Pedro. – E que nem D. Juan Alfonso saiba sobre isso, entendeste?

147

preocupava Beatriz, que volta e meia chamava o médico para examiná-lo, e passou a incomodar Constança, a quem evitava ao máximo. Foi a vez de ela ser intimada por Afonso. Uma esposa de verdade agiria com pulso firme para que o marido esquecesse a amante exilada, cobrou o rei. Sem saída, Constança obedeceu. Voltou a criar situações para seduzir o marido, que escolhia ficar de fora de suas armadilhas. Não queria se envolver com nenhuma mulher, nem com a própria esposa. Apenas Inês existia para seu coração e seus pensamentos.

148 Pedro e Inês de Castro – Prometido, D. Estêvão!

O ano de 1348 foi um período de perdas. Em junho, o pai de Constança, Juan Manuel, faleceu em Castela. No final de outubro, a irmã caçula de Pedro, Leonor, casada no ano anterior com o rei aragonês, morreu vítima de uma terrível epidemia que também chegava a Portugal: a peste negra. A doença matava numa veloci dade espantosa, sem diferençar ricos e pobres, apavorando o reino de ponta a ponta.

– E depois entrega a resposta para mim. Eu mesmo a encaminharei a D. Pedro. – Como o fizeste mudar de ideia? – Não fiz – respondeu ele, enigmático. Após dar meia-volta, sumiu no corredor com seus passos semprePedroapressados.nãorespondeu

a nenhuma das cartas de Inês entregues por Lobato e continuou a queimá-las sem qualquer hesitação. Às vezes, esperava para vê-las reduzidas a cinzas. Em outras ocasiões, não aguentava a própria tortura e ia embora antes do final.

Por que ela insistia tanto em manter contato? Ele não fora claro o suficiente?Seusofrimento

– Só mesmo um fraco sofre desse jeito por uma mulher – dizia Afonso, com frequência.

de Pedro que Inês leu e releu várias vezes. Ele não era de escrever muito, ao contrário da jovem, e não era sempre que respondia ao que ela lhe perguntava na carta anterior, o que era muito esquisito. Tampouco fazia planos que a incluíssem. Falava muito dos filhos, de quem se orgulhava bastante, da rotina de andanças, das aflições que a peste trouxera a Portugal. Temia pela segurança de judeus e mouros perseguidos pelos cristãos que os culpavam pela epidemia. Às vezes, descrevia lugares para onde viajava e que ela não conhecia, contava os problemas do povo e do reino que sempre o sensibilizariam. Eram textos de um Pedro econômico em pala vras, na maioria das vezes apenas um simples narrador de fatos. Demonstrava um pouco de afeição apenas ao se despedir dela, repetindo sempre que a amava e que a amaria até o fim do mundo. Cartas estranhas, sem dúvida, mas que a mantinham viva e cheia de esperança. Talvez um dia ele enfrentasse o pai e a chamasse de volta…

149

Maisescrever.umacarta

Pedro ouvia o desprezo sem se manifestar. Continuava pensando em Inês, sempre e apenas nela, amando-a mais e mais, morrendo de saudade dela. Não sabia que, em Albuquerque, a jovem vivia em função das cartas que ele jamais tivera coragem de lhe

Pedro e Inês de Castro Foi ela quem arrancou Pedro de sua solidão, obrigando-o a acompanhar o pai na administração de mais aquela crise. E era Lobato que, eternamente preocupado, corria atrás do infante com as refeições, fazia com que se alimentasse direito, cuidava para que não adoecesse.

– D. Inês deve ter uma vantagem – disse, quase um cochicho. Juan Alfonso não se conformava com o fracasso da jovem. E apostava tanto em seu método para garantir infantes sob controle que já preparava outra bela jovem, Maria Padilha, para seduzir muito em breve o herdeiro do trono de Castela, filho de Alfonso XI e sobrinho de Pedro. Que vantagem?, perguntou-se Inês, apurando os ouvidos.

Aquela carta também contava sobre a doença de Lopo Pacheco, o que entristecia bastante Pedro. Seu pai de criação morreria em dezembro daquele mesmo ano, 1349.

O som de passos tornou-se mais pesado e a voz de Juan Alfonso destacou-se. Ele não vinha sozinho.

150 Pedro e Inês de Castro Ela não queria ser a futura rainha e muito menos tirar de Cons tança o que lhe pertencia de direito. O único lugar que desejava ocupar era o coração do infante. Mais nada.

– Tira do caminho D. Constança – prosseguiu Juan Alfonso, satisfeito por agir do mesmo modo que Juan Manuel agira anos antes, ao decidir por também tirar do caminho uma esposa, no caso Branca, que atrapalhava seus planos de casar a filha dele com Pedro. – Um infante viúvo precisará de companhia. Um calafrio percorreu Inês. Tomando o máximo cuidado, ela se esticou para ver quem era o interlocutor do irmão de criação. Viu apenas a batina de um sacerdote. Precisava alertar Pedro com a máxima urgência.

Ao ouvir que alguém se aproximava, Inês encolheu-se atrás da tapeçaria em um dos corredores do castelo. Como sua corres pondência com o infante era um segredo muito bem guardado, preferia esconder-se toda vez que se dedicava à sua leitura, como fazia naquele instante.

151

– Sim. Foi a que D. Estêvão me entregou como de hábito. Por quê?Álvaro adorava Juan Alfonso como um irmão mais velho, quase um pai, um ídolo a seguir. Não seria Inês a estragar aquela idola tria.Só restava uma única pessoa em que podia confiar.

Pedro e Inês de Castro Mais uma carta de Inês que seria queimada. Lobato respirou fundo, torcendo para que pudesse salvá-la, ao menos em parte, como conseguira com umas poucas que impedira de queimar por completo assim que Pedro as abandonava ardendo em chamas.

Em Albuquerque, Inês cansou de esperar uma resposta de Pedro. Ela só chegou com Álvaro, quando ele apareceu por lá quase um mês depois para visitar a família de criação.

– D. Pedro não te falou mais nada? – ela perguntou ao irmão no segundo em que pôde ficar a sós com ele.

Aquela carta, em especial, parecia urgente. Se não fosse, por que Inês enviaria um mensageiro em vez de esperar as visitas periódicas do irmão a Albuquerque para mandá-la por ele, como costumava fazer?

Não conseguiu. Ele a entregou ao infante e, aflito, teve de assis tir à extinção total das folhas. Pedro só sossegou após assoprar as cinzas para longe.

– Sobre o quê?

– Tens certeza de que ele só mandou esta carta?

Desesperada, a jovem constatou que Pedro não fazia nenhuma referência ao alerta que ela lhe enviara, na carta anterior despa chada com o mensageiro.

– Chama teu mensageiro de maior confiança e separa para ele teu cavalo mais veloz – a jovem pediu. Álvaro não entendeu nada,

– Recebeu, não leu, queimou e ainda ficou assoprando as cinzas – remoeu o criado, falando sozinho. – É mesmo um imbecil!

Graças ao tempo perdido entre uma carta e outra, o cúmplice de Juan Alfonso tinha a vantagem da situação. Constança estava em perigo e, embora não gostasse dela, Lobato não podia permitir que fosse assassinada.

Lobato deu algumas moedas ao mensageiro, pediu a um servo que lhe servisse uma refeição e a outro que cuidasse de seu cavalo. Depois se distanciou para ler a carta, que narrava exatamente o que Inês vira e ouvira atrás de uma tapeçaria. Ela ainda perguntava se Pedro tinha recebido a carta anterior.

Estêvão.Omensageiro

encontrou Lobato no pátio do paço em Coim bra, na tarde do dia seguinte após o retorno de mais uma longa e secreta viagem acompanhando Pedro em sua visita anual a Branca. Afonso, Beatriz e Constança também estavam na cidade. A ameaça da peste negra deixava-os mais unidos do que jamais estiveram.

152 Pedro e Inês de Castro mas atenderia ao seu pedido. – Ele vai levar uma carta minha a D.

O combate à peste negra era o principal assunto da reunião. Na véspera, uma sinagoga fora depredada e quase vítima de um incêndio criminoso por parte da maioria cristã. Em alguns vilare jos mais distantes, os judeus eram executados pela população, que

Saiu correndo feito louco, direto para a reunião da qual Pedro participava a portas fechadas com o rei e seus conselheiros. Não podia desperdiçar nenhum segundo.

– E por que ela escreveria justo para ti? – esbravejou Pedro, o ciúme assumindo o poder.

– Estás maluco? – disse Pedro, com raiva, logo que pisaram o corredor. – Acabaste de me humilhar na frente do meu pai!

– És um abusado e…

também enfrentavam a mesma acusação.

– Lê antes de me trucidar.

a presença de Lobato no aposento quando ele lhe cutucou o ombro.

– Porque queimas as cartas dela, esqueceste?

Pedro, gaguejando, sugeriu medidas urgentes para protegê-los, como construir muros ao redor dos seus bairros. Foi ignorado. O rei, no entanto, prometeu estudar alguma medida que os poupasse daquela

– Sai – sussurrou o criado. – É urgente.

153

– Não? E para quem é esta carta?

– Não és o destinatário – contou.

– Não quero nada dessa Castro, sabes muito bem disso! O criado esboçou um sorriso malicioso. Sabia exatamente como obrigá-lo a ler.

Lobato, então, entregou-lhe uma carta. Ao reconhecer a letra, o rapaz se recusou a ler, a fúria ganhando vontade de sacu dir o criado pelo pescoço. Como ele se atrevia a tirá-lo de uma reunião de extrema importância apenas para lhe dar mais uma carta de Inês?

– Lê, senhor. É urgente.

Pedro e Inês de Castro os considerava responsáveis por evocar a doença em seus rituais desconhecidos.Osmuçulmanos

Pedroinjustiça.sónotou

– Para mim.

Afonso pigarreou. O que significava aquela interrupção? Lobato não lhe deu tempo de perguntar. Empurrou o infante para fora, dizendo que o devolveria o mais breve possível.

– Tua vida. Pela primeira vez, ela sorriu de verdade para o marido. Sem fingimentos, sem se forçar a nada. E sutilmente puxou-o para um beijo, que ele retribuiu com vontade. Se tivesse que esquecer Inês, então que fosse com a pessoa certa, a esposa.

Pedro e Inês de Castro Ele leu. E o medo de mais uma perda aniquilou a fúria e o ciúme, ambos perdendo força automaticamente. – Constança… – murmurou.

– E o que te impede, senhor? – Não importa agora.

– Apesar de tudo, gosto de ti. E não quero te perder.

– Senhora, preciso cuidar da tua segurança e…

Ele falava a verdade.

Pedro encontrou a esposa na antecâmara do quarto dela. Pediu para conversarem a sós e foi atendido. As mulheres ao redor de Constança abandonaram o local.

– Se eu a quisesse ao meu lado, nosso casamento não me impediria de ir Constançabuscá-la.estremeceu.

– Depois… – sussurrou ela.

– Não acho que alguém tente me matar – disse a jovem.

Pedro tomou-lhe as mãos e mirou-a no fundo dos olhos.

Quando ele lhe contou que ela corria perigo, sem revelar quem a ameaçava e como obtivera a informação, teve de lidar com sua descrença e, depois, desconfiança.

– Se ficasses viúvo, poderias retomar tua Castro – ela provocou.

– Teu pai tinha inimigos. – Sim, tinha. Ele já morreu, como bem sabes. E desde quando te preocupas comigo?

154

– E o que importa?

Constança queria ficar ainda mais bonita para Pedro. Riu ao se dar conta de quanto mudara sua opinião sobre o marido. Ele conti nuava feio, rústico, deselegante. Nem ao menos a magreza lhe caía bem. A jovem riu novamente ao pensar que sentia falta daquelas bochechas fofas e dos quilos a mais.

O que mudara, então? “Tudo”, definiu. Pedro preocupava -se com ela, de verdade. E ainda lhe tinha carinho, apesar das maldades que ela lhe fizera. Enfim Constança compreendia por que o amavam tanto. Não sentia mais nojo de seu toque… Pedro esqueceria Inês, apostava. E seriam felizes juntos, rodeados por suasQueriacrianças.finalizar

Em conjunto com Lobato, Telo e os integrantes de maior confiança da “casa” de Constança, Pedro armou uma eficiente rede de proteção ao redor da esposa e da criança que ela esperava para o fim do ano. Os filhos do casal também passaram a contar com proteção extra. O preparo de suas refeições era vigiado de perto, assim como tudo que estivesse relacionado à família.

o bordado em sua nova camisola com uma linha dourada, um trabalho a que se dedicava havia quase uma semana. Pediu a uma dama, Mécia, que fosse buscá-la no mercado e, quando a mulher retornou, pôs-se a trabalhar. Constança era uma bordadeira excepcional. Mãos de fada, como sempre a elogia vam.

155

Pedro e Inês de Castro O infante não voltou à reunião. A tarde rendeu-lhe mais um filho e uma reconciliação definitiva com a esposa, duas novidades que se propagaram pela Península Ibérica mais rápido do que as notícias sobre as novas vítimas da peste negra.

O cúmplice de Juan Alfonso jamais teria sucesso em atingir a segunda esposa do infante.

156

O bordado, apenas um detalhe, completava um todo.

– Como te sentes? – perguntou Pedro.

– Que irritação é esta em tua pele? – perguntou.

Pedro e Inês de Castro Igual a todo homem, claro que Pedro nem repararia no bordado na hora de lhe tirar a camisola… Mas isso era o de menos. O importante era ofuscar a beleza da concorrente ao ressaltar a da esposa.

A suavidade da linha foi aproveitada no contorno de detalhes no decote. A camisola era de seda, macia e sensível ao toque. O tecido, que exalava um delicioso perfume floral, fora costurado com esmero por freiras castelhanas. Mais uma preciosidade para a jovem acostumada a acumular verdadeiros tesouros em roupas e joias. Ao terminar o bordado, quis experimentar a camisola e checar o resultado final. Mécia ajudou-a a se arrumar. Diante de um espe lho na parede, a esposa de Pedro soltou os cabelos, que desabaram rebeldes e graciosos em seus ombros e nas costas.

– Manda chamar D. Pedro… – murmurou a jovem. O mundo rodava, ela estava prestes a desmaiar. Veio a escuridão. A luz surgiu ao recuperar a consciência, mais tarde. Abriu os olhos e o marido preencheu em destaque seu campo de visão. Estava sentado à sua direita, no leito em que ela fora deitada. Mestre Martim, o médico de Beatriz, examinava-a, à esquerda. Atrás dele, Lobato passava os olhos atentos pelo aposento. Ao fundo, algumas damas estavam apreensivas com a saúde de sua senhora.

– O que foi, senhora?

Constança ia sorrir, igualmente satisfeita com o visual. Uma tontura súbita a fez se segurar em Mécia para não cair.

– Estás belíssima, senhora – elogiou a dama.

–EleCansada.acariciava sua mão, a ponta dos dedos roçando-lhe a pele com delicadeza. Então, seus olhos estreitaram-se. Puxou parte da manga da camisola para cima.

157 Pedro e Inês de Castro Constança não soube responder. O médico subiu a manga esquerda da camisola, avaliou o braço e as pernas da jovem, também tomadas por manchas vermelhas.

– Esta camisola é nova? – quis saber o infante, inclinando-se para aspirar o perfume do tecido. Ela assentiu. Quis sorrir. Desde quando ele reparava em suas roupas?–Terminei de bordá-la há pouco – disse a esposa. – Pois vamos tirá-la. Lobato virou-se de costas enquanto Martim e Pedro a despiam. A irritação espalhava-se pelo corpo. Evoluía rápido demais. – Coça, senhora? – perguntou o médico. Sim, coçava. – Foste tu mesma que costurou esta camisola? – disse Pedro. Não. Fora um presente enviado pelas freiras de algum lugar… De onde mesmo? Quem o trouxera fora um sacerdote recém-che gado de Castela, que fizera questão de entregá-lo pessoalmente à futura rainha após a missa, alguns dias antes. Ela jamais recu saria um presente de altíssima qualidade como aquele, digno de umaFoirainha.oque contou ao marido.

Nas horas seguintes a jovem teve alucinações, febre alta, dores abdominais, vômitos, diarreia. Pedro não saiu de perto dela,

– Um sacerdote? – ele repetiu, alarmado. Ela confirmou com um movimento de cabeça.

Pedro cobriu-a com um lençol e depois chamou Lobato, que pegou uma manta e, com ela, embrulhou a camisola, evitando tocá-la.–Temos de testá-la… De alguma maneira, sem ferir ninguém –disse-lhe o infante em voz baixa para que as outras mulheres não ouvissem.–Pensarei em alguma coisa, senhor. Testar o que em quem?, perguntou-se Constança. A sonolência embaralhava-lhe a consciência, fechou-lhe os olhos.

Nenhuma das mulheres da “casa” de Constança soube descre ver o tal sacerdote. Nem mesmo os guardas que cuidavam da segurança suspeitaram de um presente tão inofensivo, entregue por um homem de Deus, e que encantara tanto o bom gosto de Constança a ponto de aceitá-lo sem perguntas ou desconfianças.

A mesma irritação de pele tomou conta da paciente e trouxe-lhe os demais sintomas que tinham acometido Constança, desse modo acelerando sua morte. Embora o médico garantisse a Lobato que, mesmo sem o veneno, a idosa não tinha mais salvação, o rapaz não se perdoou. Respon sabilizou-se pelo enterro e ainda deixou um bom dinheiro com a família dela, comerciantes empobrecidos pela crise em Portugal. A peste negra inibia a circulação de pessoas e, portanto, prejudicava o comércio, afastando-as ainda das cidades e dos campos onde aparecia alguma vítima.

Novamente Pedro ficaria de mãos atadas. Não tinha provas para relacionar Juan Alfonso ao envenenamento e muito menos podia revelar que Inês era sua única testemunha contra ele. Mais uma vez a jovem estaria em perigo se o irmão de criação suspeitasse de que lado estava a lealdade dela. A morte de Constança, então,

158

O veneno que impregnava a camisola não tinha a intenção de matar Constança, e sim de enfraquecê-la, fazê-la abortar e, dessa forma, colocar sua vida em risco. Foi a conclusão a que o médico judeu, o mesmo que cuidara de Branca havia três anos, chegou após testar a camisola numa paciente sua, uma idosa muito doente, com pouco tempo de vida.

Pedro e Inês de Castro mesmo quando dores violentas levaram o bebê que jamais nasce ria. Constança perdeu muito sangue. Morreria devido às complicações do aborto. Seu último olhar foi para o marido de quem finalmente aprendera a gostar.

159

Pedro e Inês de Castro foi considerada um fato corriqueiro, mais uma mulher que perecia vítima dos riscos da gravidez. Se Pedro valorizou a prova de amor que Inês lhe dera, não demons trou. E muito menos se animou a redigir uma carta ou responder a que ela lhe enviou após saber do falecimento de Constança.

O rapaz não disse nada. Acabaria obedecendo, seria infeliz pelo resto de sua existência e Lobato teria de se conformar com a situa ção. Mas antes disso ele lhe daria a oportunidade de escolher. Após entregar uma nova carta a Álvaro, que partiu imediata mente para Albuquerque, Lobato esperou alguns dias antes de comentar com o infante que não caçavam havia tempos, que o inverno chegaria, sabe, muita neve e frio, que teriam de esperar o anoPedroseguinte.mordeu

a isca e logo cismou que uma caçada era o que realmente precisava para esquecer um pouco os problemas que assolavam Portugal. Foram para o norte, outra sugestão do criado que não demoraria a lhe pedir um grande favor.

Ir para a região do Minho? Desde quando Lobato tinha negó cios por lá? Intrigado, Pedro aceitou abandonar o grupo de caça e seguir com o amigo por mais alguns dias de viagem. Afinal, Lobato sempre o acompanhava em qualquer viagem e, pelo que se lembrava, nunca lhe pedira favor algum naqueles vinte e tantos anos em que se Atravessaramconheciam.vinhedosque

margeavam rios e subiram a região montanhosa, com picos de granito, passando por aldeões que

Já Afonso agiu rápido. Alegando que o filho não saberia educar sozinho os filhos legítimos, tomou para si a criação deles. E mal esperou que três meses se passassem após o enterro para avisá-lo de que já estava negociando um novo casamento para ele. Dessa vez, Pedro iria se casar com uma nobre aragonesa.

Do lado de fora, havia uma pequena comitiva, com quem deixa ram suas montarias. Pedro adivinhou quem encontraria na cabana. Mesmo assim, não pôde mais resistir à vontade de revê-la. Entrou, Lobato à sua frente. Inês de Castro recebeu-os com um sorriso imenso. Álvaro estava ao seu lado.

Os três voltaram-se para Lobato. Sem ter onde se refugiar, ele mirava o chão.

– Eu mandei? – Sim, meu senhor. E entreguei a carta para ela.

160 Pedro e Inês de Castro

– Como ousas…? – ruminou o infante. A jovem e o irmão entreolharam-se, estranhando aquela reação. – Fui buscá-la como mandaste, senhor – justificou o galego.

– Que carta? – Ora, a que escreveste…

– Então quem respondia às cartas dela?

– D. Estêvão imita minha letra desde os tempos em que eu me esquecia da lição que o preceptor passava – disse Pedro. – Ele a fazia no meu lugar para que eu não levasse bronca.

pastoravam seus rebanhos. O Minho desembocava em praias selva gens, muitas ainda a salvo do toque humano. Nas montanhas, os dois rapazes alcançaram uma velha cabana, atrás de uma pedra gigantesca. O sol recolhia-se, a escuridão avançava. No interior da construção, algumas velas iluminavam o ambiente.

– É lá que pernoitaremos – explicou Lobato.

– Só escrevi a D. Inês o que tu escreverias – defendeu-se o criado.

– Não escrevi carta alguma. Aliás, nunca escrevi uma carta sequer a D. Inês.

– Como podes saber o que eu escreveria? – Acredita, senhor, eu sei.

Pedro estacou e virou-se feroz para o criado, que se esgueirava velozmente para longe de seu alcance.

– D. Estêvão, o que tanto tinhas a contar a D. Inês? – Pedro zangou-se ainda mais. Imaginou-a lendo e relendo os textos de Lobato, suspirando com as palavras de amor que o rapaz dedi cara a Aliviado,ela… descobriu que as cartas se limitavam a relatar sua rotina com a família e o trabalho. Um estilo seco, sem emoção, acompanhado pela mesma despedida ao final, palavras que tanto Inês quanto Pedro conheciam muito bem. “Até o fim do mundo”.

– Que erros, senhor? – perguntou Lobato. O infante mostrou-lhe uma das cartas.

– Mas eu não escreveria apenas isso. E não desta forma tão… ahn… desprovida de sentimentos. E definitivamente não comete ria tantos erros.

161 Pedro e Inês de Castro Pedro não se conteve. Avançou contra ele e aplicou-lhe um tapa na orelha.Aflita, Inês correu para garantir que seu queridinho não fosse mais castigado, interpondo-se entre os dois.

– Lê as cartas, senhor – pediu Inês. – Eu as trouxe comigo. De dentro de um alforje, ela tirou um bom punhado de folhas, várias delas.

Pedro teve de assentir.

– Esta palavra é com z… Esta é com s… E essa… hum… A frase está confusa aqui… E aqui também. Púrpura de vergonha, o criado baixou de novo a cabeça. Nunca fora bom em redigir textos, por mais curtos que fossem.

Lobato encolheu-se, massageando a área atingida e comportan do-se como a pobre vítima indefesa diante da truculência de seu senhor. Mas, ao se ver em segurança, espiou Pedro com um irri tante ar vitorioso.

– E então? – cobrou Inês, ansiosa. – É o que escreverias?

– Farias isso por mim? – Faço por mim. – Fugir de tudo? – ela quis confirmar.

Dessa vez, se dependesse de Pedro, o criado receberia tantos tabefes que acabaria sem as orelhas. Foi Álvaro quem as salvou, tirando Lobato dali com a maior ligeireza. Enfim sozinho com a jovem, Pedro demorou a falar. Escolheu palavras, quase foi vencido pela gagueira, hesitou por interminá veis minutos. Ela esperou, paciente. Tinha todo o tempo do mundo apenas para ele.

– Mas podes ler agora – interveio Lobato. – Estas aqui eu conse gui Solícito,salvar. entregou ao infante algumas folhas chamuscadas.

– Desejas que eu volte para lá? E perdê-la para sempre? A possibilidade oprimia-lhe o coração.

– Tu queimavas minhas cartas… – constatou Inês, entristecida.

– Não li as cartas porque eu te amo – disse Pedro. – Se lesse, mandaria te buscar em Albuquerque.

Pedro e Inês de Castro – Esses erros não são importantes – disse Inês, agindo mais uma vez em sua defesa. – Pelo menos leste minhas cartas, senhor? Pedro fitou-a. Não mentiu.

– Jamais poderei casar contigo, fazer-te uma rainha. Ela sorriu.

– Uma vez me perguntaste o que eu ambiciono. – E?

– Minha única ambição é ficar contigo. Mesmo que isso signi fique viver escondida da corte, longe de tudo, da política, de qualquer tipo de poder. Não quero teu dinheiro e tua fortuna.

– Tua vida como infante? – assustou-se ela.

162

– E se eu largar tudo?

– E se eu me livrasse de tudo aquilo, das cobranças e obriga ções, das interferências na minha… na nossa vida?

– Não ficarias magoado?

– Serias feliz fugindo para sempre? Tens teus filhos, teu amor por este reino…

– É um preço muito alto para nós dois. Haverá ainda mais ódio contra ti.

– E como achas que D. Juan Alfonso reagirá quando se der conta de que ele não me controla através de ti? Ele ficará…

O sorriso da jovem ganhou uma aura travessa.

– Não deixarei de amá-los. E cuidarei deles, mesmo que seja à distância.–Éum preço muito alto, Pedro.

– É este o tipo de vida que ambicionas? – ele perguntou.

– Posso conviver com isso.

– Colérico – completou. – Ah, eu adoraria ver a cara dele quando issoPedroacontecer!aproximou-se, os braços resistindo para não a abraçar.

– Ainda duvidas? Ele não aguentou mais. Envolveu-a junto a si, trêmulo, o corpo de Inês tocando suavemente seu corpo. Tirou o lenço que lhe cobria os cabelos, sentiu que se perdia em seus olhos acinzenta dos. Lábios ficaram cada vez mais próximos, o abraço tornou-se mais apertado. Antecipava a emoção com que Pedro tanto sonhara. Beijaram-se, ansiosos, felizes, paixão e amor ditando o presente e o Anoitecera,futuro.

163

– Talvez sim. Ou não. Acho que… eu me sentirei livre.

as estrelas parecendo tão próximas, salpicando aqui e ali. No lado externo da cabana, misturados à comitiva

Pedro e Inês de Castro – Fugir de tudo. Eu jamais me tornarei rei, pois meu pai não hesitará em deixar o trono diretamente para meu filho Fernando.

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Pedro jamais fora tão feliz. Houve tristeza com a morte de seu primeiro filho com Inês, o pequeno Afonso, poucas semanas após o nascimento, mas o amor que unia o casal foi superando a dor, dando-lhes força. Viviam em Moledo, um vilarejo distante no Minho, perto de uma praia de beleza tão irreal que parecia tirada de alguma lenda celta. Desde seu reencontro com Inês, Pedro não retornara a Coim bra. Para os filhos legítimos e ilegítimos, sempre enviava cartas e presentes, mantendo com eles uma correspondência intensa. Telo ia visitá-lo com frequência, assim como Álvaro, trazendo-lhe as novidades e colocando-o a par dos problemas.

Pedro e Inês de Castro junto a uma fogueira, Álvaro e Lobato aguardavam o desfecho daquele encontro, o criado desenhando para despejar no papel o turbilhão que o invadia. E se tivesse errado? Pela primeira vez em sua vida, permitira que a emoção ditasse suas ações. A razão, ignorada, dizia-lhe que fora imprudente, que as consequências seriam desastrosas. No interior da construção, finalmente as chamas das velas foram apagadas. Pedro fizera sua escolha. – És um sujeito perigoso, D. Estêvão – comentou Álvaro, batendo em seu ombro num gesto camarada. Lobato relaxou um pouco. O plano fora um sucesso. Sobrava apenas um pressentimento ruim, talvez influenciado pelo restante da previsão da bruxa. Temia o futuro que ela revelara.

Ensandecido e ultrajado pela decisão do filho, Afonso vivia mandando-lhe ultimatos para que reassumisse sua posição na corte. Pedro, naturalmente, recebia os mensageiros com hospitali dade e depois os enviava de volta sem nenhuma resposta.

Uma nova ameaça surgia com o poder e a influência que um dos irmãos bastardos do Cruel, Enrique de Trastâmara, vinha acumu lando. O rapaz casara-se com uma filha de Juan Manuel, irmã de Constança e herdeira legítima da fortuna da família. Sem dúvida, no futuro ele tentaria destronar o meio-irmão.

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Pedro e Inês de Castro A peste negra mantinha seu rastro de vítimas, porém com menos voracidade. Em Castela, a morte de Alfonso XI levou ao poder seu filho com a irmã mais velha de Pedro, um adolescente chamado Pedro que logo ganharia o apelido de Cruel. Sua primeira providência, acon selhado pela mãe, foi mandar executar a amante do pai, a Guzmán, recebendo em troca o ódio dos irmãos bastardos e dos nobres que os apoiavam. A seguir acabaria loucamente apaixonado por Maria Padilha, apresentada a ele por Juan Alfonso de Albuquerque, o mais influente senhor de Castela no momento. Enquanto o novo rei se distraía com a jovem, Juan Alfonso tinha espaço e liberdade para implantar reformas que julgava importantes naquele reino.

Na pacata vida de Pedro e Inês, as reviravoltas emocionantes aconteceram com a chegada do segundo e do terceiro filhos, João e Dinis. Foram noites insones de troca de fraldas, choro, aleitamento e comuns a todos os pais, apesar das amas de leite, aias e pajens que trabalhavam para o casal. Sobrava até mesmo para Lobato, o único nobre da “casa” do infante que sempre estava porEle,perto.aliás, vivia uma situação familiar bastante complicada. A esposa e a filha apoiavam a decisão da rainha Beatriz em reprovar a atitude de Pedro e ignorar os novos netos. Estavam, portanto, em lados opostos. Ele não se atrevia a visitá-las, e as duas não pode riam recebê-lo se tentasse se aproximar. Solidária com sua tristeza, Inês fazia de tudo para incluí-lo no dia a dia alegre da família que formava com Pedro. Como se isso fosse preciso, pensava o infante. Lobato já se metia em tudo mesmo…

preocupações

Naquele mesmo ano, as questões de Castela mais uma vez preocuparam os reinos vizinhos. O novo rei Pedro Cruel, bastante envolvido com Maria Padilha, repudiara a nobre francesa Blanche de Bourbon, com quem fora obrigado a se casar para atender aos interesses políticos e econômicos da mãe dele e de Juan Alfonso de Albuquerque.Ironicamente

o método desse nobre em manter infantes sob controle se voltou contra ele. O fracasso do casamento de Cruel com Blanche foi sua desgraça, pois o rei, agindo rápido, captou contra ele o apoio temporário dos irmãos bastardos, inclusive de Enrique de Trastâmara, prometendo-lhes mais poder e riquezas.

Para evitar qualquer atrito com a realeza, o meio-irmão de Inês, Fernando, filho legítimo do Senhor da Guerra, retirou-se para a Galícia. Já Álvaro partiu em defesa de Juan Alfonso, que se refu giou nas terras que possuía junto à fronteira com Portugal. Como

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Pedro e Inês de Castro Um dia, Pedro quis mudar de ares e foram para outro vilarejo, Canidelo. Foi lá que nasceu Beatriz, sua filha caçula. O ano era 1353.Acomplexa

logística de levar crianças tão pequenas em viagens não impediu o rapaz de estar em movimento sempre que possível. Perambulavam pelo Minho e também pela região do Douro, ele se inteirando cada vez mais da situação do povo, ajudando sempre que possível. Não podia evitar aquele envolvimento. Inês não se queixava de sua vontade de ser nômade. Apoiava-o e, sem perceber, conquistava o respeito das pessoas simples com quem conviviam. Não era a rainha distante e inatingível, mas a companheira do infante que se preocupava com todos e o tornava um homem ainda melhor. Pedro só não a levava, bem como as crianças, nas visitas anuais a Branca que, para a companheira, não manteve em segredo. Após deixá-la sob a proteção de Telo, a quem mandava chamar especial mente para essa tarefa, seguia com Lobato para Burgos.

Pedro e Inês de Castro nada demoveu a decisão do Cruel e temendo pela própria segu rança, Álvaro foi viver em Canidelo com a família da irmã. No reino castelhano, a situação de Juan Alfonso só piorou. As tropas do Cruel atacaram seus domínios. O soberano, apostando na lealdade dos irmãos bastardos, colocou-os para vigiar os movi mentos de Juan Alfonso que, a raposa velha que era, reverteu o quadro com maestria. Aliou-se aos bastardos e pôs-se a tramar o próprio plano: colocar no trono de Castela o infante que ele acre ditava agir sob a influência direta de Inês. Ao saber das intenções de Juan Alfonso, comunicadas por um empolgado Álvaro, Pedro não se aguentou de tanto rir.

Na primavera de 1354, Pedro foi chamado por Beatriz para assistir ao casamento da filha dele, Maria, com um infante de Aragão, em Estremoz. Como nem pudera opinar sobre o destino da menina, não poderia deixar de apoiá-la naquele momento tão importante para ela. Inês permaneceu em Canidelo com as crian ças, sob a proteção do irmão. Ao reencontrar Maria, com seus doze anos, e Fernando, que faria nove em outubro, Pedro uniu-os em um mesmo abraço aper tado. Já Beatriz cumprimentou o filho com frieza e Afonso fez de conta que ele não existia, a mesma postura de alguns nobres e suas famílias. A irmã, transformada em rainha-mãe de Castela após a ascensão do Cruel ao poder, tratou-o com desconfiança, possivelmente a par das fofocas que o nomeavam pretendente ao trono castelhano.

Diante da negativa do infante, Juan Alfonso passou para seu recurso seguinte. Encheu Inês de cartas que ela ignorou, intiman do-a a trabalhar a seu favor.

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– Agora ele deve estar com aquela cara colérica que eu tanto queria ver – disse a jovem. Nenhum dos dois levou a sério a ameaça que o plano mirabolante poderia representar para eles.

– Qual é a graça, senhor? – disse o galego, desconcertado. Ele realmente acreditava que Pedro aceitaria aquela ideia absurda.

Dois dias mais tarde, o infante e o criado integraram a escolta que levaria até a fronteira a comitiva da rainha-mãe de Castela, que depois continuaria a viagem sob a proteção de um dos nobres da “casa” dela, Martim, o irmão mais velho de Telo.

A rainha-mãe aproveitou para espremer o irmão em busca da verdade. Devia se preocupar com o suposto interesse dele pela coroa de Castela?

– Sempre seremos irmãos de criação – disse Diogo a Pedro. –Apesar de hoje estarmos em lados opostos, este laço jamais será quebrado.Pedroergueu

Pedro e Inês de Castro Já Diogo Pacheco demonstrou sua amizade ao passar a maior parte da cerimônia de casamento perto do infante. Lobato, que já escapara para matar a saudade da esposa e da filha sem que Beatriz percebesse, ficou à espreita, vigiando-o.

uma sobrancelha, Lobato franziu a testa e os dois, mais do que desconfiados, não responderam quando Diogo se despediu, alegando compromissos inadiáveis.

Como Pereira, prior dos hospitalários, resolveu acompanhá-los, Pedro aproveitou para pôr a conversa em dia com ele. Precisava de informações mais recentes sobre os assuntos do reino. Canidelo, às vezes, podia ser longe demais.

Pedro foi categórico com um sonoro não. Ela se acalmou e Pereira sorriu, apoiando-o. Aquela viagem, no entanto, seria considerada por Afonso como parte de um plano maligno para destronar o neto Cruel, jogar Portugal no centro das disputas castelhanas e levar Pedro de vez à ruína, conduzido pela manipu ladora família Castro. Disposto a impedir o suposto desastre iminente, o rei portu guês enviou dois nobres de confiança para conversarem com o filho assim que ele regressou a Canidelo. Chamava-o mais uma vez para reassumir suas funções de infante na corte e, como prova de

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Pedro e Inês de Castro boa-fé, oferecia o paço junto ao Mosteiro de Santa Clara, em Coim bra, para ser a residência da nova família do filho. A segunda proposta dava a Pedro a oportunidade de se casar com Inês, o que ele recusou sem titubear. Tornar oficial seu rela cionamento significava nas entrelinhas envolver a jovem nos assuntos de estado, na perigosa rede de intrigas tanto internas quanto externas, da mesma forma que ocorrera com Branca e Constança. Enquanto isso não acontecesse, sua companheira esta ria a Quantosalvo. à primeira proposta, Pedro ficou tentado a aceitar. Afonso andava adoentado, o neto Fernando ainda era muito novo para herdar um reino. Inês, como prometera, não deu nenhum palpite. Lobato também não se manifestou, um feito raro para alguém tão intrometido. Já Telo incentivou-o a ir em frente. Em breve Pedro seria rei, acre ditava, e aí teria poderes para agir como bem entendesse. Álvaro preferiu não falar mais no plano de Juan Alfonso. Custara a enten der que o infante amava demais o reino para envolvê-lo numa disputa na vizinhança. Pedro adiou a decisão por mais alguns dias, mas a saudade de Fernando e dos filhos de Sancha e Violante falou mais alto. No verão, estava de volta a Coimbra, retomando sua “casa” e todos os seus privilégios como herdeiro. Lobato pôde recuperar o contato com a família dele, e Inês, cautelosa, preferiu se limitar à casa nova em Santa Clara, tendo apenas o rio Mondego separando-a de Afonso e sua corte. Mas não longe o suficiente de Diogo Pacheco e, indiretamente, perto demais das confusões que sua família aprontaria.

com as tropas reais dominaram o território castelhano. Em setembro, Juan Alfonso foi morto, possivelmente a mando do Cruel. Dois meses depois, a própria rainha-mãe resolveu dar um basta aos atos do filho, ajudando os rebeldes a capturá-lo e transformá-lo em prisioneiro.

Naquele mesmo ano, em Castela, o Cruel, apesar de oficialmente marido da francesa Blanche de Bourbon, casou-se num impulso com Juana de Castro, filha legítima do Senhor da Guerra e meia -irmã de Inês. A ligação entre eles durou apenas a noite de núpcias e, pela manhã, a jovem foi descartada. A fúria dos Castro pelo vexame foi monumental. Fernando e Álvaro uniram-se contra o Cruel e obtiveram o apoio de Juan Alfonso de Albuquerque, de Enrique de Trastâmara e dos outros bastardos, dos nobres que apoiavam Blanche, feita prisioneira pelo próprio marido, e até dos infantes aragoneses, entre eles o genro de Pedro.Osconfrontos

Atordoado com aquela avalanche de notícias, Afonso tentou analisar friamente o panorama político. Sua filha apoiara os rebel des contra o próprio filho, talvez influenciada pelo amante Martim, irmão de Telo, um dos homens de confiança de Pedro. Fernando de Castro tinha acabado de se casar com uma filha bastarda da Guzmán, irmã de Enrique de Trastâmara. Dessa forma, Álvaro tornava-se cunhado dela. Ambos tinham liderado a revolta e agora entravam para a bastarda família real castelhana. Eram amigos de Pedro e, respectivamente, meio-irmão e irmão de Inês, uma mulher que não parava de gerar bastardos, crianças que no futuro dispu tariam o trono português com o herdeiro legítimo.

Afonso via repetir a mesma história que vivenciara em sua luta sofrida contra o meio-irmão Afonso Sanches, que anos antes tentara lhe roubar o reino. Não queria que o neto terminasse assas sinado traiçoeiramente por uma das crias de Inês de Castro.

170 Pedro e Inês de Castro Os piores temores de Afonso ameaçavam se concretizar.

Afonso tinha de trazer Pedro de vez para o seu lado, livrá-lo para sempre da influência dos Castro. Tinha de cortar o mal pela raiz, libertando-o da única pessoa que realmente o controlava.

Pedro e Inês de Castro E Pedro… Ah, aquele filho sempre lhe dando aborrecimentos…

Quanto a Juana, o principal motivo da revolta, o desprezo do Cruel não a impediu de sustentar até a morte o título de rainha de Castela. Segundo comentavam suas damas mais próximas, a jovem o seduzira a tal ponto que, para tê-la por uma noite, ele fora obri gado a se casar antes com ela. Previsível que a estratégia perdesse o efeito na manhã seguinte, como realmente perdeu.

Ele lhe dissera várias vezes que não tinha nenhum interesse em ser rei de Castela, mas quem poderia garantir que falara a verdade?

Seus homens de confiança estavam ligados direta ou indireta mente ao que acontecia naquele reino.

Mesmo com o mundo desmoronando em Castela, Pedro não recusou o convite de Telo para caçar pelas redondezas. Não se afastaria muito de casa. Tanto quanto Inês e Lobato, ele sabia que, no final das contas, o Cruel acabaria comprando os nobres revol tosos com títulos e terras, principalmente Fernando e Álvaro, que seriam os mais beneficiados. E mais uma vez os castelhanos fariam as pazes. Isso até a nova crise.

– Temos de agir agora, senhor – soprou-lhe seu melhor conse lheiro, Diogo Pacheco. – D. Pedro está numa caçada…

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No paço que a falecida rainha Isabel tanto amava, ao lado do Mosteiro de Santa Clara, a família de Pedro tinha uma rotina tran quila, isolada do costumeiro caos no reino vizinho. Nada, portanto, mais natural que Pedro aproveitasse para se distrair em um de seus passatempos preferidos. Cuidara para que Lobato tomasse

do dia 7, Lobato foi avisado pelos guardas de que o rei português em pessoa, na companhia de Diogo e seus melhores aliados, Pêro Coelho e Álvaro Gonçalves, acabavam de chegar, escoltados por um grupo de soldados. Devia ser alguma emergência. Desde que Inês se mudara para o local, Afonso nunca aparecera para uma visita, ainda mais àquela hora tão tardia. O criado dirigiu-se até o pátio, onde a comitiva já deixara seusNocavalos.mesmo instante foi imobilizado por cinco soldados. Os demais rapidamente dominaram a guarda pessoal de Pedro, pega de surpresa.Afonsonão reparou no criado. Mandou que fossem buscar a condenada. Condenada?, apavorou-se Lobato. Inês fora julgada à revelia? Ele tentou se libertar, tinha de tirá-la dali, salvar as crianças… Diogo deu a ordem para que o surrassem, mas não a ponto de deixá-lo inconsciente, conforme ressaltou. Precisaria de sua lucidez.

172 Pedro e Inês de Castro conta de Inês e das crianças somente para não as deixar sem a proteção de um dos nobres de sua “casa”. Estavam em janeiro, nos primeiros dias de 1355. O frio inibia passeios ao ar livre e convidava a dormir debaixo de mantas de lã e peles de animais. Praticamente ninguém se atrevia a deixar suasNaresidências.madrugada

Imóvel no centro do pátio, Afonso enxergava apenas Inês, arran cada do quarto do casal por dois soldados. Ela estava de camisola, os cabelos soltos e descalça, pois dormia antes que a tirassem de lá. Não vinha sozinha. Suas três crianças, que lhe faziam compa nhia na cama, corriam assustadas atrás dela.

O rei não esperava ver os netos que ainda não conhecia. O mais velho tinha apenas quatro anos e a mais novinha, Beatriz, quase

O primeiro soco atingiu o estômago de Lobato, seguido de inúmeras pancadas que o dobraram no chão.

173 Pedro e Inês de Castro dois. Era o menino de três anos quem a puxava pela mão. Nenhum adulto os deteve. As aias e os demais servos ainda despertavam em seus cômodos, tudo acontecia depressa demais.

Gonçalves recitou a sentença de morte decidida pelo rei e por seus conselheiros. Inês de Castro era culpada de alta traição por conspirar a favor de Castela e contra Portugal. O carrasco, trazido especialmente para a execução, apertava o punho da espada numa das mãos.

Empurraram-na, ela tombou de joelhos. Seguravam-lhe os braços, o corpo, impediam-na de se mover. O rei olhava para as crianças, que eram separadas de Inês por um dos soldados.

– Matarás a mãe de teus netos? – ela apelou, desesperada. Ele hesitou. Com um gesto, quis desistir da sentença. Diogo aproximou-se, prestativo.

– Senhor, sou inocente! – gritou a jovem para Afonso.

– O mal deve ser cortado pela raiz – lembrou-lhe Diogo.

Bajulações nunca funcionaram com Afonso.

– Ela sonha em ser a rainha de Castela – disse Gonçalves. – E destruirá Portugal com essa ambição.

– Não! – defendeu Lobato. – São mentiras! Muito pálido, o rei não se decidia.

– Vê como a bruxa age, meu senhor? Ela também deseja te enfeitiçar.Alguns servos e duas aias apareceram naquele minuto; amedrontados, não interferiram. Os chutes que atingiam Lobato cessaram. Mesmo todo arrebentado, ele tentou se arrastar. Segu raram-no.–Elaé traiçoeira, senhor – acrescentou Coelho. – Mas não te enganará, pois és o Bravo, nosso grande herói da Batalha do Salado!

Recebeu em troca um olhar vazio. Afonso deu meia-volta, subiu em sua montaria. O conselheiro foi atrás. Tinha de cobrá-lo.

O carrasco avançou para matar Inês, mas ela não olhava para ele. Avistara Lobato, a poucos metros de distância.

Pedro e Inês de Castro – E então, meu senhor?

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– Diz a Pedro… – pediu. – Até o fim do mundo… Foi arremessada para a frente, seus cotovelos apararam a queda. O carrasco ergueu a espada. Arrancou-lhe a cabeça com precisão.Omundo

tornou-se vermelho de sangue. Lobato não se mexia, não registrava mais nada da cena. Ouviu a voz de Coelho mandando as aias levarem as crianças dali, o som dos cascos dos cavalos, a movimentação dos soldados que se preparavam para a partida. Gonçalves ordenou que alguém chamasse a abadessa. Era melhor retirarem logo o cadáver, que o enterrassem na capela do mosteiro. De repente, o vermelho desapareceu diante de Lobato, coberto pelas botas imundas de Diogo. Ele parara à sua frente. – Agora, criado incompetente, como não estás em condições nem de ficar em pé, mandarei te colocarem na sela de algum cavalo – disse o nobre, satisfeito em vê-lo reduzido a um mero especta dor. – Partirás em seguida para avisar D. Pedro.

– Faz o que deve ser feito. As crianças choravam, o avô não se importou. Partiu a galope, covarde, deixando para os outros a traição que cometia contra o próprio filho.

Ao impedi-lo de salvar Inês e ainda transformá-lo na pessoa que narraria ao infante todos os detalhes da execução, ele se vingava do rapaz de baixa nobreza que, anos antes, tivera a ousadia de enfrentá-lo.–Afinal, manter teu senhor muito bem informado faz parte do trabalho da criadagem, não é mesmo?

– Sim. Eu queria destruir Portugal inteiro. Queria derramar muito sangue, desejava que ele sofresse, que pagasse por ter traído minha confiança, por matar D. Inês…

– Foi Lobato, então, quem foi atrás de ti na caçada e te contou sobre a execução? – perguntou Peres.

– E depois? – perguntou Peres.

– Não acreditei nele. Corri para casa, precisava ver com meus próprios olhos. Já tinham lavado o sangue no pátio. Fui para a capela e mandei meus homens desenterrarem o corpo… Ele cerrou os olhos.

– Então enlouqueceste.

P ortugal , 1357

A jovem parecia não sentir mais nenhum prazer em ver Pedro naquele estado, tão vulnerável, seus tormentos ganhando palavras para se expressarem.

Lobato seguia acompanhando a conversa sem que Pedro suspeitasse de sua presença.

– Do teu pai?

Ele Sozinhoassentiu.nocorredor,

7

– Eu queria destruir a obra dele.

– Álvaro e Fernando também? – Sim. Eles se uniram a nós com suas tropas.

– Não. E ainda tomou sob seus cuidados minhas crianças com D. Inês. Sabes o que é irônico? Dias antes da execução, meu sobrinho Cruel fugiu do cativeiro e reconquistou a simpatia dos adversários, os irmãos Castro entre eles, com presentes e doações de terras. Naquele dia 7 de janeiro, não existia mais nenhum plano para me coroar rei em Castela.

Pedro ergueu as pálpebras. Mirou-a com a intensidade do ódio que ainda preenchia seu espírito. – Não. Todos nós enlouquecemos.

– Tu me mostraste que eu me vingava das pessoas erradas. Não atingia apenas meu pai, mas também o povo, que não tinha culpa alguma pela morte de D. Inês.

– Enfim conquistaste o respeito do teu pai? – ela quis saber. Ele estranhou a pergunta. – Eu finalmente o enfrentei – corrigiu.

– E vós devastastes o norte de Portugal.

176 Pedro e Inês de Castro – E o Telo? Ele tentou te impedir?

– A verdade é que perdi o controle sobre os soldados, sobre meus próprios atos.

Ainda no corredor, Lobato cruzou os braços, encostando-se na parede. Peres acabava de se dar conta de seu poder sobre as deci sões do novo rei.

– E tua mãe?

– Eu?!

– O que tem ela? – Apoiou teu pai?

– Se pretendias destruir o reino inteiro, por que não foste adiante?–Porque apareceste. A jovem arregalou os olhos, espantada.

– Claro, ele foi meu pai. Mas fico aliviado de não tê-lo mais por perto para estragar minha vida. Sem perceber, Peres apoiou a mão sobre o pulso dele. Aquela conversa revelara à jovem que ela também se vingava da pessoa errada. Assim como Pedro, corrigia sua rota, unindo-se a ele para cumprir o mesmo objetivo em comum.

Pedro sorriu, a crueldade guiando seu passo seguinte.

Um calafrio dominou Lobato. Soubera horas antes que Diogo Pacheco e os dois aliados, Coelho e Gonçalves, tinham fugido para Castela, aconselhados por Afonso em seu leito de morte.

– Descobriu somente depois, como eu, quando os Castro vieram para cá. Foi quando ele teve certeza de que a morte de D. Inês foi totalmente desnecessária.

– Ele a matou, Peres. Nada muda isso.

177 Pedro e Inês de Castro – E teu pai sabia disso?

– Achas que ele se arrependeu do erro?

– Sentes a morte de Afonso? – ela perguntou.

– Mais uma caçada, Peres – respondeu. – A vingança ainda não terminou.Presoa

A jovem foi se sentar ao seu lado, desarmada de sua agressivi dade contra ele. Pedro torturava-se continuamente por ter sido tão tolo, por ter levado Inês a Coimbra, pelas atrocidades que come tera em sua loucura contra o povo que tanto amava. Culpa que carregaria até o túmulo. Não precisava de nenhum anjo vingador para lembrá-lo disso, o que automaticamente livrava Peres de sua única função.

seus compromissos como rei, Pedro nunca mais deixa ria Portugal. No rastro dos assassinos de Inês, colocou Álvaro.

– E agora, rei, o que vai ser? – intimou.

Os problemas pessoais também afetaram o criado. Uma doença nos rins matou sua esposa. A filha, que se casara com um nobre da desfeita “casa” de Afonso, fora repudiada por não gerar herdeiros. Graças à influência da rainha Beatriz, tomou o hábito no Mosteiro de Santa Clara. A única motivação de Lobato era acompanhar o trabalho de Peres.Para o túmulo de Inês, Pedro sugerira cenas da vida de Cristo, mas não pedira nenhum detalhe específico. Peres, então, perdia-se em esboços e rabiscos, sem encontrar a melhor forma de contar a história. Algo escapava de sua sensibilidade como desenhista e isso a afligia profundamente. Numa tentativa de orientá-la, volta e meia o criado lia para ela passagens do Novo Testamento, pois a jovem era analfabeta. Peres também acompanhava o rei nas viagens em que tinham incorporado uma nova estratégia: traçar uma linha de defesa interna e externa no território português, em especial na fronteira. Para concretizá-la, Pedro entregava fortalezas em vários pontos do

Já Branca achou um modo de continuar exercendo seu papel de conselheira. Passou a enviar cartas secretas e periódicas a Pedro, a que ele sempre respondia, pedindo-lhe para ter cautela, reinar com justiça e sem os arroubos de maldade tão comuns aos governantes e a seus nobres sedentos de poder.

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Pedro e Inês de Castro Qualquer transação política que fosse necessária para capturá-los ficou a cargo de Telo, que receberia em breve o título de conde de Barcelos e se tornaria o terceiro homem mais poderoso do reino, abaixo apenas do soberano e de seu herdeiro.

Quanto a Lobato, restaram mais responsabilidades e trabalho como o homem que agora cuidava da administração da vida de um rei, ainda mais um que não parava muito tempo no mesmo lugar e enfrentava um novo surto de peste negra no reino, a fome cres cente da população miserável e um sem-número de outras crises.

– Eles me atrapalham – justificou. Foi um auxílio que ele realmente lamentou lhe prestar. Apre ciava tanto aqueles fios longos… E ainda teve de aturar as risadas de Pedro, zombando dele por medir os fios para assegurar um corte perfeito.

Pedro e Inês de Castro reino, que conhecia profundamente, a seus nobres de confiança. Criava, desse modo, uma malha de solidariedade necessária para proteger sua gente contra possíveis ameaças vizinhas, caso o Cruel ou qualquer outro resolvesse cobiçar terras alheias.

Como sempre, o rei castelhano aprontava das suas. Dois anos antes, mandara assassinar Martim, o amante da mãe. Ela morrera de desgosto meses mais tarde. Pedro comentara com os mais próximos que temia pela segurança da francesa Blanche de Bour bon. O Cruel apelara a todos os meios legais para anular seu casamento com a moça, que continuava a manter como sua prisio neira. Fracassara em todas as tentativas. Muito em breve daria um jeito de ficar viúvo.

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Peres, que não se interessava por política, vivia com a cabeça em outro mundo e nos próprios desenhos. Uns diziam que era amante do rei; outros, de Lobato. Os comentários bem-intenciona dos achavam que ela não passava de uma serva; outros, maldosos, de uma prostituta. Os mais picantes chegavam a afirmar que Peres, na verdade, era um rapaz e que Pedro gostava tanto de meninas quanto de meninos. Alheia às fofocas a seu respeito, a jovem refor çou ainda mais seu visual masculino ao solicitar que Lobato a ajudasse a cortar os cabelos na altura das orelhas.

– Quando as damas descobrirem, não farás outra coisa da vida a não ser podar suas cabeleireiras! – dizia. Talvez tivesse um pouco de razão. Havia tempos que Lobato adotara algumas manias. Vivia arrumando o material de desenho que Peres largava em qualquer lugar, não dormia antes de checar três vezes toda a segurança ao redor do rei, cuidava dos pertences

O desabafo evocou lembranças dolorosas. Pedro empalidecera. Os semblantes melancólicos de Álvaro e Telo iam dele ao criado. Lá fora, o sol brilhava em um dia que começara com a reunião entre o rei e seus conselheiros para tratar de assuntos administrativos. Ocupavam o aposento de um dos castelos da região do Algarve hóspedes de um dos nobres daquelas terras ao sul do reino. – Muito bem, Lobato – disse Peres. – Mostra-me algum exemplo de arte que não consideres medíocre.

180 Pedro e Inês de Castro dele com tanto zelo e sempre do mesmo modo que beirava a irri tação. Sempre meticuloso, impecável. Perfeito. Para provocar Lobato, todos os dias Peres fazia questão de espalhar o giz que ele guardava na caixa. Exausto, o criado respi rava fundo e recomeçava a arrumação. Assim que terminava, ela derrubava de novo. E lá ia ele reunir tudo. Numa manhã em que Pedro, Telo e Álvaro riam às suas custas graças às intermináveis arrumações na caixa de giz, Lobato arran cou-a das mãos de Peres, que se preparava para bagunçá-la pela vigésima vez, e arremessou-a para longe. Obteve de imediato o silêncio atônito dos três amigos. Depois, zangado, descontou nos esboços que a jovem espalhara pelo chão, rasgando-os um por um. Estupefata, ela não tentou impedi-lo. – São medíocres! – decretou o criado. – Copias o mesmo estilo dos túmulos de reis, rainhas e tantos nobres nas igrejas que te levei para conhecer nos lugares para onde viajamos. Deves procu rar teu próprio caminho, algo único, inusitado, diferente. Tens talento de sobra para isso, mas ainda não reuniste coragem para aceitar de fato o desafio. Desperta, mulher! Não estás desenhando para um túmulo qualquer. Esse precisa encantar as próximas gerações, mostrar em detalhes o grande amor de um rei por sua amada, alguém que deve se manter viva nas cantigas, lendas e histórias por séculos, até o fim do mundo. Não entendeste ainda? Estás desenhando para D. Inês de Castro!

Pedro e Inês de Castro Ele esboçou um sorriso. Era sua vez de provocá-la.

Peres não encontrou nenhuma novidade na arquitetura católica e em seus afrescos. Lobato, zombeteiro, indicou-lhe uma parede em um canto apagado e quase oculto. Próximo ao chão, havia um único pedaço do que sobrara de um mosaico composto por uma elaborada combinação de formas geométricas, semelhantes a plan tas. A jovem nunca vira nada igual. – O que é? – perguntou, agachando-se para tocar o mosaico e examiná-lo melhor.

Ainda zangado demais para demonstrar seus modos polidos, Lobato foi até a porta e saiu, sem esperar por Peres. Sabia que ela o seguiria.–D.Estêvão

– Mas quero conhecer essa tal arte.

não consegue esconder quanto se sente atraído por ela – disse Álvaro assim que o criado e a desenhista abandonaram o aposento.–Émais profundo – definiu Telo. – Ele a ama. Sorrindo, Pedro recostou-se na cadeira. Lobato, enfim, teria de enfrentar a paixão avassaladora em seu destino.

– Pode ser uma arte muito complexa para teu entendimento. – Talvez – ela disse, entre-dentes. Empinara o nariz, endirei tando-se na postura feroz que pretendia estraçalhá-lo se tivesse a oportunidade.

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Havia uma capela em um vilarejo a menos de duas horas de cavalgada. Após chegar, os dois amarraram as rédeas dos animais numa árvore a alguns metros do local e foram andando até lá.

182 Pedro e Inês de Castro – Arte islâmica. Na época que os muçulmanos dominavam esta região, aqui era uma mesquita. Peres já ouvira falar de igrejas que tinham passado a ocupar construções religiosas antes pertencentes tanto a mouros quanto a judeus. Lugares que eram modificados para perder as caracte rísticas originais e apagar por completo sua inspiração nem um pouco cristã.

– Este mosaico é lindo – disse Peres, outra vez olhando para o trabalho que seus dedos percorriam com cuidado.

ruins, mas podem te dar uma visão do que já encontrei – ele emendou, sem graça.

– Desenhas? Eu não sabia.

– Estudas os vários tipos de arte…

– Fiz outros também, reproduções do interior e do exterior de mesquitas, de arte judaica, de locais que visitei de norte a sul em Portugal e também alguns em Castela. Registrei ainda o que sobrou de algumas ruínas romanas e de povos ainda mais antigos que viveram na Península Ibérica. Impressionada, a jovem girou o rosto para fitá-lo. O criado enrubesceu.–Sãodesenhos

– Acho que ele traduz o conceito do infinito, a natureza divina da criação.

– Quando visitei esta capela há uns vinte anos, o mosaico estava completo e ocupava toda a parede – contou Lobato. – O teto era de madeira, decorado com pinhas e conchas. Existiam azulejos aqui e ali…–Pena que foram destruídos. Gostaria muito de vê-los.

– Um pouco. Não me sobra muito tempo para isso.

– Eu os reproduzi em desenhos naquela época.

– Tu me ensinarias? Ainda mais embaraçado, ele concordou. Não se sentia à vontade em lhe mostrar desenhos que raramente alguém devia ver.

O túmulo de Inês seria sustentado por seis criaturas disformes representando seus assassinos e difamadores. Em vez de mostrar os desenhos a Pedro, a jovem preferiu escul pi-los antes em madeira, ansiosa para experimentar o cinzel e as goivas que Lobato comprara para ela. Desse modo, testaria seu

– Onde estão esses desenhos? – Em Coimbra. Quando voltarmos, eu os mostrarei para ti.

183

Aos poucos, Peres foi encontrando o próprio estilo. Prestava atenção nas orientações de Lobato e estudava com afinco suas reproduções, desenhos que de ruins não tinham nada. Ele era talentoso, porém inseguro demais, medroso até. Vivia à sombra de Pedro, de preferência quase invisível, muito quieto e vigiando tudo e todos para entender as motivações das pessoas, suas reações, o que pensavam. Era tão solitário quanto a jovem. Ao contrário dela, escolhera aquela vida para si. Os desenhos para o túmulo de Inês foram surgindo natural mente. A partir dos palpites daquele que passou a considerar seu mestre, Peres criou várias cenas a serem esculpidas em alto relevo no calcário por artesãos experientes. Elas ocupariam as quatro faces ao redor do túmulo, cada cena uma diminuta escultura a ser interligada às outras. Numa das laterais, contaria da anun ciação à apresentação de Cristo no templo e depois, na outra, da última ceia ao caminho até o calvário. Na cabeceira, para arrematar a vida e a morte de Cristo, decidiu-se por uma grande composição do calvário. Na outra ponta, aos pés, uma imagem do Juízo Final.

Pedro e Inês de Castro A aula já tinha começado? Ela teve de reconhecer que o criado era mais do que um homem bonito de cara amarrada, todo certinho e cheio de manias, que andava para cá e para lá arrumando a bagunça dos outros.

184 Pedro e Inês de Castro projeto na prática, verificando o que funcionava e corrigindo o que fosseFaltavanecessário.pensar na parte de cima do túmulo. Peres descartou a inspiração fornecida pelas esculturas de mulheres sempre retrata das rezando ou tendo em mãos livros de orações. Imaginou Inês como a jovem comum que brincava com o próprio colar e usava luvas, um acessório que, segundo Pedro, ela adorava. Distraída, colocava uma e se esquecia da outra, que carregava até largá-la sem querer em algum lugar.

Anjos iriam rodeá-la… Dois deles estariam erguendo das almo fadas sua cabeça, como se a despertassem para a vida após a morte.

– Mas ela nunca foi rainha. – Ela será coroada. – Depois de morta? – estranhou a garota. Ele não respondeu.

– Não é ela – disse-lhe, secamente. – E falta a coroa.

Lobato emocionou-se com a ideia, que Peres correu para pôr no papel. Esperava de Pedro a mesma reação, mas ele não reconheceu Inês em seu desenho.

Pedro estava mais inquieto e mal-humorado do que nunca. Telo conseguira fechar um acordo de extradição com o Cruel, uma troca recíproca de prisioneiros. Da parte de Portugal, Pedro enviou um grupo de nobres castelhanos que o sobrinho consi derava seus inimigos. Da parte de Castela, o Cruel despachou os mais odiados inimigos do tio.

Os assassinos de Inês.

– Desenha D. Inês para ela – disse, falando com Lobato. E saiu de sua antecâmara no castelo em Estremoz, lugar para onde tinham se dirigido na semana anterior, em plena primavera. Viviam o ano de 1360. A rainha Beatriz morrera meses antes e, no lado de lá da fronteira, o Cruel até que andava bem comportado.

numa mesa, Pedro consumia uma refeição suculenta enquanto assistia a um espetáculo macabro. No centro da sala, Coelho e Gonçalves estavam de joelhos, com os pulsos amarrados, e sangravam muito. Recebiam em suas costas golpes de correntes,

– D. Pedro impediu-me. Dois soldados, parados junto à porta, vigiavam-no para que não desobedecesse à ordem. Para a jovem, eles permitiram a passa gem.Instalado

– E se eu a descrevesse? – ele tentou. – Não é a mesma coisa. Ele suspirou, resignado. E a enrolou por três dias, justificando que estava sem tempo. No quarto dia, Álvaro chegou com os dois assassinos de Inês, que Pedro recebeu na sala principal. Chamada para participar da execução, Peres encontrou Lobato do lado de fora, desenhando freneticamente.–Nãovaisentrar?

185 Pedro e Inês de Castro Álvaro, que fora buscá-los, estava para chegar, porém anteci pou a má notícia por um mensageiro. Apenas Coelho e Gonçalves tinham sido entregues. Diogo Pacheco escapara para o reino de Aragão ao ser avisado por um mendigo, a quem sempre dava esmolas, que os soldados do Cruel estavam à sua procura após vê-los rondando a casa do nobre.

– ela lhe perguntou.

Ao saber da novidade, na véspera, Pedro dera murros e chutes enfurecidos na porta da antecâmara, entortando-a. Peres, que nunca o vira fora de controle, mantivera-se cautelosamente à distância. Lobato apenas esperara que ele voltasse ao normal antes de chamar um carpinteiro. Assim que o rei fechou com estrondo a porta recém-consertada atrás de si, Peres virou-se para Lobato. – Desenharás Inês para mim? – quis confirmar diante da indeci são que lia em seu rosto.

– Agora vós sentireis o mesmo… – disse, a gagueira como sempre ameaçando-o nas situações mais formais. – Que eu senti. Sob seu olhar atento, os carrascos agiram. Arrancaram os cora ções de Coelho e Gonçalves. Um pelo peito. Outro, pelas costas. Os corpos desabaram aos pés do rei, ainda resistindo à morte. Por fim, ficaram imóveis.

Pedro mastigou e engoliu um pedaço de carne antes de, com um gesto, interromper a tortura. Os assassinos imploravam por sua misericórdia. Não a teriam. Ele se levantou e foi até os dois.

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Pedro e Inês de Castro aplicados à vontade por dois carrascos. Pela aparência deplorável dos assassinos, houvera antes outros castigos. Ao vê-la, Pedro indicou-lhe um lugar entre Telo, Álvaro e mais alguns nobres, os demais espectadores. Exceto pelo rei, estavam todos em pé, atrás dele. A jovem firmou-se sobre as duas pernas, os ombros tensos, a respiração entrecortada.

Todo aquele comportamento de vilão sádico diante dos assas sinos e dos demais fidalgos… Apenas encenação, o único tipo de recado que seus inimigos entenderiam. Se tentassem atingir as pessoas que ele amava, agora sabiam o que os esperava.

Peres pressentiu que ia desfalecer. Álvaro e Telo seguraram-na para que não caísse. Ela lutou para manter a consciência, conseguiu dispensar o apoio. Pedro voltava para a mesa, onde terminaria a refeição em silêncio. Na sequência, deixou a sala, rumando direto para seu quarto, sem reparar em ninguém. Peres foi atrás dele. No aposento, encontrou-o de joelhos, vomitando, devastado com o que tivera de conduzir. Tremia. A jovem ajoelhou-se e, abra çando-o pelas costas, apoiou a cabeça no corpo dele.

Iria conhecer o gosto da vingança.

– Sim, é ela – endossou. – Igual à última vez em que a vi. O criado não fez nenhum comentário. Juntou o material de limpeza e foi embora. Peres nem percebeu seus movimentos.

Peres fez uma careta.

Sorria com ternura para a bela Inês, seu rosto redondo e os quilos a mais que ela ganhara após quatro gestações e por dividir com Pedro a mesma paixão por pratos irresistíveis. Quantas vezes ela cozinhara para ele ou simplesmente convocara-o como ajudante para cortar cebolas e mexer panelas? Peres imaginou-os entre os aromas diversos de uma cozinha, alegres, ele beliscando alguma refeição durante seu preparo, ela puxando-o para um beijo.

Após alguns minutos, Lobato apareceu e, ao se certificar de que o amigo não tinha mais nada para vomitar, ajudou Peres a deitá -lo na cama. A seguir foi buscar balde, água e panos de chão para limpar a sujeira. Ninguém deveria nem sequer desconfiar que Pedro passara mal com a execução dos assassinos. A imagem que ele moldava para si não podia ser arranhada.

– Ele sabe se virar sozinho – retrucou.

– Vai atrás de D. Estêvão – pediu-lhe o rei, a voz cansada.

187 Pedro e Inês de Castro Pedro, o Justo, o Justiceiro ou com qualquer outro apelido pelo qual ficaria conhecido, transformara-se em um rei a ser temido.

– Ora, rei, ele nem assistiu a essa encenação sangrenta e…

– Não, ele não sabe. E está pior do que eu, pois só aprendeu a guardar o que sente.

Após auxiliar Lobato com a tarefa, a jovem voltou para perto do rei. O criado analisou-a de esguelha e, taciturno, tirou do bolso uma folha dobrada. Era o desenho que terminara e que Peres conferiu com admiração.

– Esta é D. Inês – disse ele. Pedro, que os observava, avaliou a imagem. Lágrimas enche ram-lhe os olhos.

– Nem ele e muito menos os dois infelizes que ainda devem estar lá na minha sala. – Tu falas de…

– Ajuda D. Estêvão a enxergar o único culpado, a mente perversa que agiu nos bastidores para destruir D. Inês – disse o rei.

– Não. Foi a época mais feliz da minha vida.

– Ele acha que Inês estaria viva se não tivesse falsificado tuas cartas… – ela deduziu. – Nem me obrigado a fazer uma escolha.

– Se não fosse por ele, tu e ela não teríeis vivido juntos. Teus filhos mais novos não existiriam. Talvez ela ainda morasse em Albuquerque e… – E eu estaria casado com uma nobre aragonesa.

188 Pedro e Inês de Castro – Eu o poupei para que não sofresse ainda mais. Esqueceste que ele testemunhou a morte de D. Inês? A jovem fitou-o. Sim, esquecera.

– Eu não vi, mas ele… viu tudo – prosseguiu Pedro. – E ainda carrega uma culpa maior do que a minha.

– Tu te arrependes de ter tomado Inês como tua companheira?

cabeça-dura era teimoso demais para acei tar qualquer teoria que não fosse a que cismasse ser a correta.

– Teu pai?

– D. Diogo Pacheco. Aquele que ainda caçamos.

– Achas que… se ela soubesse o que lhe aconteceria, teria desis tido de ti?

– Ela enfrentaria o destino de cabeça erguida – disse Pedro. E sorriu.–Já disseste isso a Lobato? – E Tinhaadiantaria?razão.Aquele

duvidou que o casamento tivesse mesmo ocorrido. Pedro não deixaria de mencioná-lo naquela conversa em que lhe revelara tudo sobre Inês. Além disso, sempre se referia a ela como sua companheira e nunca como esposa.

Comovido, o rei elogiou seu trabalho, dando-lhe, sem perceber, a direção que Peres tanto buscava para sua existência.

– Onde ficará o túmulo? – ela perguntou, disfarçando a própria emoção.–No Mosteiro de Alcobaça. Não ficava longe de Coimbra.

– E quero que lideres a equipe de artesãos – ele acrescentou. Peres, eufórica, quase pulou de alegria. Partiu imediatamente, sem se despedir de Lobato e carregando as peças de madeira, os desenhos e todo o seu material. Não estava em Cantanhede, em julho, quando Pedro reuniu povo, clero e nobreza para declarar oficialmente que, sete anos antes, tinha se casado com Inês por palavras de presente. Ela fora, portanto, sua esposa legítima, um reconhecimento que também legitimava os filhos do casal.

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Pedro e Inês de Castro Peres não teve oportunidade de tocar no assunto com Lobato que, trancado numa suposta indiferença, ergueu um muro intransponível entre eles. Com vontade de magoá-la, não compareceu ao momento em que ela apresentou as peças de madeira a Pedro, habilmente agrupadas para lhe dar a dimensão do resultado. Se ele aprovasse, poderiam passar para a próxima etapa.

Como testemunhas, o rei chamara o bispo e médico de suas crianças, Gil da Guarda, que teria realizado em Bragança a união clandestina, além do indispensável Lobato. Como nenhum dos dois se lembrasse da data do casório, o criado jurou que acontecera no início de janeiro, uma época, entretanto, bastante incomum para esse tipo de Desconfiada,cerimônia.Peres

Por outro lado, Lobato, que levava muito a sério promessas e juramentos, cumprindo-os à risca, jamais juraria em falso. A não ser que acreditasse nas palavras de Pedro, que poderia muito bem ter inventado uma história qualquer para convencê-lo. Ou, então, revelado que aproveitara alguma viagem com Inês para se casar com ela sem que o melhor amigo suspeitasse.

Pedro e Inês de Castro

A declaração em Cantanhede ecoou com estrondo pelo restante da Europa por mudar radicalmente o status de Inês. De amante ela passara a quase rainha. Seus assassinos não tinham mais execu tado uma mulher qualquer, e sim a esposa de um infante, agora rei, temido pela barbárie a que poderia chegar para vingá-la.

Aquela declaração pública do amor de Pedro por Inês, na verdade, seria apenas a primeira. Algo ainda mais contundente estava em seus planos.

Em um período marcado pela violência, ele a diluía em acordos entre as partes envolvidas, fazendo com que ambas perdessem em alguns pontos e ganhassem em outros. Era generoso com seus nobres de confiança, mas não permitia que abusassem de seuDevidopoder.à

pressão dos mais conservadores, reafirmou as leis de Afonso, que privilegiavam a moral e os bons costumes. Por outro lado, não promoveu nenhuma perseguição a quem as transgredisse, apesar de alguns cronistas, no futuro, resgatarem lendas sobre

No ano seguinte, 1361, Pedro esteve comprometido com as Cortes, ocasião em que recebeu representantes de várias camadas da população para ouvir seus problemas e pensar em soluções.

190

Por estar mergulhada no trabalho, Peres mal prestava atenção nas conversas sobre o assunto, embora se interessasse em saber o que comentavam a respeito do governo de Pedro.

191 Pedro e Inês de Castro um rei louco e sádico que chicoteava pessoalmente os infratores e castrava homens que dormissem com mulheres casadas.

Na esfera pessoal, era um pai atencioso, que amava os filhos legítimos e bastardos, um homem que respeitava suas mulheres, tratando-as bem e pensando no futuro delas, e um amigo sempre atento aos problemas de quem merecia sua amizade.

Peres, que nunca recebera uma visita de Pedro ou de Lobato em Alcobaça, só os encontrou novamente em 1362, após ser chamada a Coimbra.Otúmulo de Inês estava pronto. Tempo demais longe de Peres, pensava Lobato. Lutara todos os dias contra a vontade de visitá-la em Alcobaça, firme em seu propósito de esquecê-la. Cedo ou tarde, a jovem pertenceria a Pedro. Bastava lembrar o carinho e a preocupação que ela lhe dedi cara após a execução dos assassinos. Para o criado, sobrava se conformar com o inevitável.

Aquele era o Pedro que os súditos amavam, fazendo todo o possível para deixar Portugal fora dos conflitos nos reinos vizi nhos ao mesmo tempo em que, internamente, procurava amenizar as graves crises sociais e econômicas daquele período.

Ele era a favor, sim, de que todos os homens portassem armas para que pudessem se proteger dos salteadores nos diversos cami nhos pelo reino. Quanto aos mouros e judeus, fez o possível para defendê-los. Cercou seus bairros, isolando-os de possíveis confli tos com a maioria cristã. Eles também foram proibidos de circular fora de seus muros após o Ângelus. Uma proibição, na prática, bastante flexível, pois a duração dos dias podia ser muito longa nos meses mais quentes.

192

Pedro e Inês de Castro Bem que ele tentou substituí-la por outras mulheres, com quem eventualmente dormiu desde que terminara seu período de luto pela morte da esposa. Mas na manhã seguinte não tinha ânimo para investir no relacionamento e logo demonstrava seu lado mais metódico, entediante e cheio de manias para espantá-las. Tinha consciência de que agia de propósito porque nenhuma delas o forçava a sair de sua zona de conforto, experimentar algum desa fio, esquecer seu papel de nobre prestativo e eficiente. Nenhuma delas poderia salvá-lo das próprias escolhas.

Peres conheceria o local do assassinato de Inês, o pátio externo do paço junto ao Mosteiro de Santa Clara. Apinhados do lado externo, os nobres mais importantes do reino esperavam desde a madrugada a autorização para entrar, detidos pelo enorme portão de ferro ainda fechado. Tinham sido convocados para uma cerimô nia, mas ninguém sabia direito do que se tratava. Apostavam numa missa ao ar livre para a defunta. Mal a claridade do novo dia começou a absorver a escuridão para desvendar as cores do mundo, o portão foi aberto.

A única que desejava para seu destino apareceu em Coimbra na manhã em que ocorreria o translado dos restos mortais de Inês. Eles seriam retirados da capela no Mosteiro de Santa Clara para depois seguir em um imponente cortejo até Alcobaça. Mas, antes que tivesse início a derradeira declaração pública do amor de Pedro, ele transformaria sua esposa em rainha.

Peres acabou ficando para trás. Apreensiva, ouviu os gemidos e os gritos de horror abafados de quem caminhava à sua frente. Arrepiou-se com o medo que rapidamente se espalhou. Quando chegou sua vez de pisar o pátio, teve a atenção desviada para o cenário montado ao centro do local. A jovem hesitou, um misto de perplexidade e adoração.

cumpriu sua obrigação, foi até Lobato que, à distância, assistia a tudo com uma expressão transtornada que revivia os detalhes do assassinato, dolorosamente buscando possi bilidades do que poderia ter feito para impedi-lo. O galego apoiou a mão em seu ombro, disse-lhe algumas palavras de conforto e depois se dirigiu até o meio-irmão, Fernando. Peres conhecia muito bem a opressão que esmagava o criado. Também assistira à morte de quem amava sem poder interferir, vítima da maldade, violência e degradação.

Já a cabeça… Separada do corpo pelo carrasco, não fora reco lada no lugar, uma recordação a todos do crime covarde que vitimara Inês numa madrugada como aquela.

Em pé ao lado do trono, Pedro parecia uma estátua. Impassí vel, sem vida ou reações. Foi Telo quem conduziu o ritual em que todos os nobres juraram sua lealdade à nova rainha, beijando-lhe a mãoAssimenluvada.queÁlvaro

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Pedro e Inês de Castro Numa atmosfera tétrica e mágica, a aurora tocava com deli cadeza o cadáver de Inês e refletia-se no inacreditável trono de vidro que ele ocupava, digno da rainha de um mundo sobrenatural.

A jovem chegou mais perto de Lobato, segurou-lhe a mão e entre laçou seus dedos aos dele. Seu mestre fitou-a, surpreso, e então se permitiu fechar os olhos para impedir a visão do trono transpa rente e uma Inês transformada em rainha depois de morta. Não se sentia mais tão sozinho.

Sonho e realidade ao mesmo tempo. Pesadelo irreal para a maio ria de seus súditos.

O crânio estava em seu colo, os cabelos soltos e penteados. Uma suave coroa de pedras preciosas sobre ele atribuía a Inês a legitimidade como esposa e rainha.

O corpo, apenas ossos, dentes e unhas, fora vestido de modo magnífico. A mão direita usava uma luva e apoiava-se no braço do trono, enquanto a esquerda, nua, repousava no outro braço num gesto gracioso.

Pedro e Inês de Castro Após a cerimônia, o cadáver foi devolvido a seu caixão de madeira que, coberto por um manto fino, bordado por fios de ouro e prata, terminou em cima de uma carroça, puxada por dois visto sos garanhões brancos.

O cortejo fúnebre deixou o paço, acompanhado pelos nobres, os homens a cavalo e as mulheres em carroças, todos com suas melhores roupas e joias, Pedro liderando-os no trajeto coberto por flores e acompanhado por cânticos e muita comoção. As margens do caminho estavam tomadas por súditos vindos de todas as partes do reino para o último adeus. Portugal em peso desmancha va-se em lágrimas por Inês de Castro. Em Alcobaça, o caixão foi transferido para o túmulo de calcá rio que o aguardava na igreja do mosteiro, iluminada por círios e velas menores que valorizavam o jogo de luz e sombras sobre o piso, os arcos góticos, as paredes, janelas e passagens. Uma missa foi realizada e, ao final, todos puderam se aproximar do túmulo, apreciar a beleza daquela arte inovadora e, claro, fazer sua oração pessoal a Inês.

A filha dele, a única família que lhe restava, falecera horas antes. Uma morte súbita, o coração que simplesmente desistira de bater.

194

O povo, em fila, aguardava do lado de fora. Entraria tão logo os nobres saíssem, numa visitação contínua que duraria horas, dias, semanas. Séculos, como desejava Lobato. O mito tinha enraizado sua base com firmeza e começava a crescer para conquistar a eternidade.Pedro só deixou a igreja quando os amigos conseguiram convencê-lo de que precisava descansar. O suplício, no entanto, não terminava para Lobato, que recebeu de um mensageiro uma carta urgente enviada pela abadessa do Mosteiro de Santa Clara.

– Tu conheces minha vida melhor do que eu! – ele retrucou. –Pensarás em algo.

– Nem sei o que contar na pedra! – defendeu-se. Seu argumento foi derrubado por Pedro num estalar de dedos.

Foi Telo quem leu a carta para ela e depois avisou Pedro. Junto com Álvaro, eles retornaram de imediato ao Mosteiro de Santa Clara. Lobato não cuidou sozinho do enterro da filha. Recebeu ajuda e o apoio dos amigos.

Tinha mais um enterro à sua espera.

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Pedro não viu alternativa exceto aproximá-lo de Peres.

– O meu. Agora vós deveis eternizar na pedra meu amor por D. Inês.Lobato, inseguro, não quis assumir nenhuma tarefa relacionada ao novo projeto.

– Chama-o para trabalhar contigo no novo túmulo – disse para a jovem, após puxá-la pelo cotovelo até um canto reservado. – Fazei juntos as pesquisas necessárias, os esboços, o planejamento, os desenhos, as peças em madeira, tudo!

– Que novo túmulo? – ela quis entender.

Quando tudo terminou e o rei quis dispensá-lo do trabalho por alguns dias, o criado negou-se a parar, teimando que tinha respon sabilidades, muitas delas, e que a vida precisava continuar.

Pedro e Inês de Castro – O que houve? – perguntou Peres, que permanecera o tempo todo perto dele.

O criado não conseguiu explicar sua dor. Entregou-lhe a carta, esquecendo que ela não sabia ler, e partiu sozinho para Coimbra.

pensativo,

– Se o túmulo de D. Pedro ficasse ali… – disse. – Um ficaria de frente para o outro. – Isso. No Juízo Final, quando D. Inês e D. Pedro despertassem para a vida eterna no paraíso…

– Vai já ajudar a Peres! Quero-te trabalhando com ela. Lobato amarrou a cara e foi cumprir a ordem. Logo as ideias vieram e ameaçaram abalar sua insegurança crônica. Foram espe rá-lo em Alcobaça, para onde ele levou sua parceira de trabalho uma semana mais tarde. Na igreja, ele parou diante do cenário esculpido do Juízo Final no túmulo de Inês. Refletiu por minutos, virou-se para Peres, atrás dele, espiou além dela, mordeu os lábios e concentrou-se de novo na escultura.Sempaciência, a jovem cruzou os braços, consciente de que ele era capaz de gastar horas em suas análises. Gostou de vê-lo o olhar sonhador destoando do rosto sempre sério. Ao contrário de Pedro, que envelhecia depressa, Lobato aparentava ser mais jovem do que os 42 anos que completaria no segundo dia de setembro. Mantinha-se esguio, o corpo bem cuidado por uma alimentação sem exageros e pelos treinos constantes de esgrima que conseguia encaixar em sua correria diária. Era o sonho e o desejo de muitas mulheres. – Devemos pensar em um conjunto – disse ele. – Ahn…? – O segundo túmulo deve completar o primeiro. Apontou para a imagem do Juízo Final e, a seguir, para o espaço vazio atrás de Peres.

196 Pedro e Inês de Castro – Mas…

– Eles se ergueriam de seus túmulos e… – A primeira coisa que veriam… – Seria um ao outro! Lobato sorriu.

– Já sei. Falta o que encantará gerações, vai se transformar em poesias, lendas e histórias através dos séculos e blá-blá-blá. Diz, qual é tua sugestão? Os olhos do criado brilharam.

– O túmulo poderia ser sustentado por seis esculturas de leões – ela propôs.

– Um animal que representa sentimentos nobres e elevados. Símbolo de realeza. Sim, é um contraponto interessante para as criaturas vis que carregam nas costas o túmulo de D. Inês.

– Falta a inovação.

– Uma rosácea. Não era tão empolgante assim colocar um elemento arquite tônico comum, ainda mais que a rosácea seria de calcário e não montada como um vitral que transmitiria a luz do sol para evocar a ascensão ao divino.

– Só interessante? Lobato, o que estás ensaiando para me dizer?

– Cachorros são úteis numa caçada, certo? Podemos colocar um a seus pés. O que achas? – É interessante.

Claro que ele corou até não se aguentar mais.

197 Pedro e Inês de Castro – É perfeito! – disse ela. – Não sabia que eras tão romântico.

– Nas laterais do túmulo, o rei quer cenas da vida de São Barto lomeu – Peres contou. – Seis de cada lado, como no túmulo de Inês.

– Esse santo foi esfolado vivo… – O rei se sente como ele, não? Lobato confirmou.

– Acho que a escultura na tampa pode combinar com a de Inês. Teríamos anjos para despertar o rei, erguer sua cabeça coroada. Ele estaria usando suas vestes mais solenes, armado com sua espada…–Não esqueças que ele é também um caçador.

– Gostas? – perguntou Lobato. De novo ela, a insegurança oculta pela postura de um homem aparentemente muito seguro de si, mas que morria de medo de errar e assumir riscos. – Vou precisar que dividas comigo os desenhos – disse Peres. –Esse túmulo dará mais trabalho do que o primeiro.

198 Pedro e Inês de Castro – Não seria uma rosácea com temas sagrados – ele acrescen tou, travesso. – Nenhum anjo, santo e…? – Exatamente. – E o quê…? – Ela teria cenas da vida de D. Pedro e D. Inês.

Um desenho geométrico que estilizava as pétalas de uma rosa partia de um ponto central e ia se expandindo de forma circular ao agregar cenas marcantes da trajetória do rei. Cenas que pode riam se opor ou se complementar, permitindo uma leitura sem começo, meio e fim definidos, um ciclo que se repetia, um círculo sem fim que poderia inspirar interpretações diferentes e contra ditórias. O registro de uma história para a posteridade. A roda da vida e da morte. A sugestão era inédita e deliciosamente audaciosa.

Escolher as cenas para a rosácea seria um imenso desafio: elas deveriam contar momentos simbólicos no desencadeamento da história de amor entre o rei e sua rainha. Deixaram-na por último, dedicando-se primeiro às passagens vivenciadas por São Bartolo meu, a escultura de Pedro na tampa e depois à imagem na face aos pés do túmulo. Ela traria dois momentos da chamada boa morte cristã, com o soberano recebendo os sacramentos finais antes da morte e o perdão por seus erros cometidos em vida. Poderia,

– Aqui colocaremos uma frase – disse Lobato. – Qual? – perguntou Peres, curiosa.

199

O planejamento durou meses, pois Lobato não abria mão de suas tarefas. As viagens, como de hábito, eram constantes. Para adiantar o processo, Peres aproveitava para esculpir em madeira o que já tinham desenhado.

– “Até o fim do mundo”. Palavras que a princípio remetiam à promessa do reencontro entre Pedro e Inês no dia do Juízo Final, quando finalmente estariam livres para reviver seu amor no reino de Deus. Mas também palavras que possuíam um significado diferente, conhecido apenas pelo rei e por seu criado. Peres aprendera com Lobato que a observação para um artista era tão indispensável quanto respirar. E, como ele, passara a repa rar melhor nas pessoas, na natureza, nos ambientes internos e externos, no mundo ao redor.

No final de 1363, começaram a escolher as cenas da rosácea.

Na primeira roda, a interna de acabamento duplamente arredon dado, seis delas mostrariam o amor platônico entre Pedro e Inês antes do reencontro na cabana no Minho, a oposição de Afonso à união e, seu quadro mais impactante, um monstro alado, a ameaça sinistra prevista pela bruxa prestes a se concretizar, pairando sobre o casal enquanto se prepara para destruir o tênue equilíbrio daquele mundo.

Pedro e Inês de Castro enfim, ocupar seu lugar entre os eleitos no Juízo Final, represen tado no túmulo de Inês.

A segunda roda, composta de doze momentos e com acaba mento arredondado triplo, cercaria a primeira para apresentar situações do cotidiano do casal, a presença dos filhos, a sentença de morte, a execução de Inês, a vingança de Pedro contra um dos assassinos e, por fim, o corpo do rei em seu túmulo, o final que antecede o começo.

200 Pedro e Inês de Castro Foi numa dessas observações que descobriu que Pedro, embora amasse todos os filhos, tinha o seu preferido. Em 1364, ele entregou a João, o caçula que tivera com Teresa Lourenço, o título de Mestre de Avis, o mais importante daquela ordem religiosa e mili tar formada por cavaleiros. De suas crianças, João era o mais levado e o que mais sentia sua falta, ressentido da presença cons tante do meio-irmão Fernando e dos filhos de Inês na rotina do pai.

– Qual é a emergência? – perguntou, a voz grogue de sono.

Numa madrugada em que não conseguia dormir, sentindo-se incapaz de atingir a leveza que uma das montagens exigia, Peres não pensou duas vezes. Com a folha debaixo de um braço e caixa de giz numa das mãos, foi bater à porta do quarto de Lobato. Esta vam em Coimbra. Ele a abriu com uma expressão sonolenta, os cabelos e a barba amassados. Estava descalço, enrodilhado numa manta de lã e vestido apenas com uma calça comprida.

APortugal.observação

– Não! Já é amanhã! Entrou sem ser convidada. Uma única vela ardia numa mesa. Para iluminar o ambiente, a jovem distribuiu a chama entre outras velas ao redor da primeira. A luz revelou que o maior especialista em arrumação era também o maior especialista em bagunça. O caos imperava no local, com roupas espalhadas pelo

– Não podes deixar para amanhã?

Sempre que os compromissos reais permitiam, Pedro mandava buscá-lo e às vezes o levava em alguma viagem. João prestava atenção em tudo e queria aprender tudo, enchendo-o de porquês. Segundo confidenciou Lobato a Peres, se a bruxa acertasse mais uma previsão, aquele menino inteligente seria o responsável por uma nova era em do mundo, no entanto, nem sempre bastava para resolver dilemas estéticos.

– Não consigo resolver a estrutura da roda interna da rosácea.

– Suponho que não devas trazer para cá tuas convidadas – disse Peres.–Ninguém

vem. Nunca. Ele desabou sentado sobre a cama que mais parecia um roda moinho de lençóis. Pelo menos, estavam limpos.

Peres agachou-se à sua frente, mostrou a folha com o desenho e exigiu uma opinião. O criado fechara os olhos. Voltava a ador

– chamou ela, beliscando-lhe o braço. Sobressaltado, ele ergueu as pálpebras.

– Vê o desenho! – mandou a garota. Ele viu. – Está muito estreito – disse. – Onde? – À direita. – A minha direita ou a tua? Lobato fez uma careta. Ela ainda não aprendera a diferença entre direita e esquerda? – Tanto faz… – resmungou. – Dá mais espaço para a composi ção, areja a área de cima. Peres arrumou outra folha, sentou-se na cama e pôs-se a realizar as mudanças. Não gostou do efeito final. Lobato, que escorregara para o outro lado, dormia de bruços. A manta fora parar em cima de uma arca abarrotada de desenhos. Obviamente Peres foi espiá-los. Havia desenhos antigos e recentes retratando pessoas, paisa gens e momentos de Lobato com a esposa e as filhas que perdera, Pedro com a família dele, Inês, Telo, Álvaro, inimigos, aliados. E

201 Pedro e Inês de Castro chão, inúmeras pilhas de papéis e livros, arcas abertas e reviradas como se um tornado tivesse acabado de passar. E, mais irônico, pedaços de giz em todos os cantos possíveis e imagináveis.

mecer.–Lobato!

Peres não quis ver mais nada. Devolveu os papéis à arca e voltou -se para o sono pesado e a respiração tranquila de seu mestre.

Pedro e Inês de Castro Peres em muitas cenas, uma delas adormecida numa cama na Galí cia, na última vez em que usara um vestido. No fundo da arca, Lobato escondia seus fantasmas. Uma imagem desbotada pela ação do tempo trazia uma mulher, pelas roupas uma serva, e um homem que lhe quebrava o pescoço, no alto de uma muralha. Em outra, Inês era degolada pelo carrasco numa reconstituição tão real que Peres estremeceu. Mais desenhos exibiam as sangrentas consequências do desvario de Pedro e seus homens enquanto atacavam o norte do reino.

Ao reparar na cicatriz no ombro dele, a jovem sorriu. O que tinha sido mesmo? Ah, uma flecha moura… Não, castelhana. Uma longa história que Lobato nunca lhe contara.

Como sentira falta daquele homem no período em que trabalhara em Alcobaça… Gostava de seus conselhos, embora reclamasse deles o tempo inteiro. Apreciava o som de seus passos ágeis e quase sempre abafados para não revelar sua presença quando queria ser invisível. A voz de Lobato era grave, e o sorriso, tão raro, encantador. A jovem deitou-se à sua direita. Contemplou por alguns minu tos o rosto parcialmente voltado para ela. E não resistiu em beijar os lábios Timidamenteentreabertos.Lobato retribuiu o carinho. Talvez o considerasse parte de algum sonho. Ele se reposicionou, capturou a garota para si, seus lábios ainda unidos aos dela, aumentando a intensidade do toque, desejando muito mais… Peres sentiu medo, quis fugir das mãos que desejavam acariciar seu corpo. Debateu-se para afastá-las. – Não! – quase gritou. Num movimento brusco, o criado sentou-se. Seus olhos demo raram a focalizá-la. O raciocínio, entorpecido, tentava entender.

202

– Fizeste as alterações? – Lobato perguntou.

– De quem foi a ideia? – murmurou.

Como ela não responderia, ele encontrou o novo desenho, levou-o para a mesa, vestiu uma camisa e, após pegar um pedaço de giz, debruçou-se sobre uma folha em branco.

203 Pedro e Inês de Castro Mas não havia nada para entender. A jovem ainda não estava pronta para aprofundar a relação entre eles.

– Dele – retificou ela.

– Esquecestes minhas bochechas gordas – disse, brincalhão, apontando para a escultura que o retratava e ocuparia a tampa.

O choro nublou a visão de Pedro quando viu as cenas da rosá cea. O projeto completo do túmulo, já todo esculpido em madeira, era-lhe apresentado.

Peres levantou-se e foi até ele. Traba lhariam juntos até o nascer do sol.

– Dela – mentiu Lobato, indicando Peres.

– Aliás, minha aparência ficou muito elegante, não?

Pedro impediu as lágrimas e tratou de direcionar o assunto para outro ponto.

– Queres que eu mude? – indagou a jovem.

– Ah, não, deixa como está! – dispensou ele. – Pelo menos na morte minha imagem corresponderá ao que esperam que eu seja. Não havia ressentimento em suas palavras. Havia muito não dava a mínima importância para seu excesso de peso e a opinião dos outros sobre isso. Ele elogiou o projeto do túmulo, deixando o amigo encabulado e a jovem muito orgulhosa de si.

– Queres que eu te mostre o que pensei para a estrutura da roda interna? – perguntou, comportando-se como se o beijo jamais tivesseGrataacontecido.pelacompreensão,

– Senhor, não tenho a mínima ideia de como esculpir em calcá rio – disse Lobato. – Os artesãos te ensinam.

– A verdade é que não entendo de esculturas!

– Peres te ensina. – Não posso ficar em Alcobaça com ela!

– Senhor, tenho minhas obrigações contigo e… – Há outros que podem realizá-las. Lobato engoliu saliva, pronto para brigar pelo que julgava seus me dispensando? – rosnou.

– E por que não? – É, por que não? – repetiu a jovem. Os dois homens voltaram-se para ela, que novamente fez a cobrança.–Porque não, Lobato? Ele baixou o rosto, sentindo o peso do universo em seus ombros. – Porque não – limitou-se a dizer.

– Não estou te dispensando – corrigiu Pedro. – Só estou te passando mais uma tarefa, que durará até que o túmulo esteja pronto. Então reassumirás teu trabalho como meu criado. Peres olhou para um e depois para outro. Lobato não ia ceder tão facilmente e Pedro não lhe daria opção. Para a garota, seria ótimo se pudesse também contar com seu mestre na etapa de execução do túmulo.

– Não irás me obedecer?

direitos.–Estás

204 Pedro e Inês de Castro – E tu vais para Alcobaça com a Peres – decidiu, o dedo indica dor direcionado para Lobato. – Ela precisará de um ajudante para liderar os artesãos com o calcário. O criado ficou pálido. – Não… – gemeu, quase sufocando.

integrar Lobato à nova rotina, o que se revelou bastante fácil. Ele logo trocou suas roupas de fidalgo por outras mais simples e, numa postura humilde de aprendiz, misturou-se aosOsartesãos.meses voaram. Peres nunca o vira tão feliz, à vontade como o desenhista que, como ela, revia constantemente o projeto para os ajustes inevitáveis. Lobato sorria mais, falava mais, era mais ele mesmo. Uma personalidade muito mais agradável do que nos seus tempos de criado sisudo. Continuava cheio de manias, obviamente, o que sempre virava motivo de piadas entre os artesãos, mas ainda assim um homem melhor, livre e com muita vontade de viver.Osmonges, lisonjeados por Pedro ter escolhido a igreja deles e não outra para os túmulos, comportavam-se como da primeira vez. Não interferiam na rotina da equipe, que começava logo após a missa matinal e ia até o Ângelus.

A escolta não foi necessária. Mudo e emburrado, Lobato foi com Peres até Alcobaça. Nos seus primeiros dias por lá, sentiu-se como um peixe fora d’água. Andava pelo mosteiro de um lado para o outro, perdido, sem ideia do que fazer. A jovem chamara a mesma equipe de artesãos que executara o túmulo de Inês. Além de serem ótimos no que faziam, a muito custo tinham aprendido, anos antes, a trabalhar sob as ordens daquela mulher que, pouco a pouco, ouvindo seus conselhos e aprendendo com eles, conquistara-lhes o respeito. Não haveria problemas.Faltava

205 Pedro e Inês de Castro – Irás por bem ou por mal, escoltado por meus soldados – disse Pedro para encerrar aquele surto de rebeldia.

Naquela noite, ela conseguiu na cozinha uma jarra de vinho, rapidamente levada para a cela que ocupava na ala mais distante do mosteiro, reservada aos hóspedes. Faria sozinha a própria comemoração.Noinstante

206

Peres fechou as sobrancelhas, a imagem dele com outra garota atrapalhando-lhe a objetividade.

em que ia experimentar o vinho, alguém bateu à porta.Era Lobato. Ele tinha caprichado na aparência, muito elegante, apesar das roupas comuns. Seus cabelos, penteados com cuidado, ainda esta vam úmidos e a barba fora aparada. Lavara-se havia pouco e, como conferiu com prazer o olfato da jovem, sua pele cheirava a limpeza.

– Por que és sempre tão mal-educada? – reclamou ele.

Peres, claro, jamais era convidada. Não que fizesse questão, mas se enfurecia ao imaginar Lobato nos braços de outra.

– Não! – disse, com raiva. E bateu a porta na cara de Lobato.

Desde aquele único beijo, ele nunca mais tentara tocá-la, mantendo-se sempre a uma distância respeitosa. E isso magoava a jovem sem que pudesse impedir.

– Eu sou assim! Não consigo evitar.

– Gostarias de ir conosco à taberna? – convidou, tímido.

– E ainda fazes questão de ignorar as boas maneiras e todas as regras de comportamento admissíveis para uma mulher! Ages como homem, te vestes como um. És rude e malcriada! E quanto ao tratamento respeitoso que deverias utilizar com os fidalgos? Para ti, isso não existe. D. Telo é só Telo para ti e D. Álvaro, só Álvaro.

Pedro e Inês de Castro No começo de outubro de 1366, o túmulo foi finalizado. Para comemorar, os artesãos e seu aprendiz planejaram beber na taberna do vilarejo, um hábito que tinham adotado para relaxar um pouco e, muitas vezes, terminar a noite com alguma mulher.

– Irás comigo na viagem, não?

– Estou tonta… – murmurou.

– Voltamos amanhã para Coimbra? – perguntou Peres.

– Sim. Vou reassumir minhas obrigações junto a D. Pedro.

recusar o convite. Não ficava bem entrar no aposento de Peres.Poroutro lado, não havia ninguém por perto para falar mal da reputação da jovem e, além disso, seria apenas uma rápida caneca de vinho. Ele não iria perder o controle justo agora, depois de lutar bravamente, dia após dia, contra a vontade de repetir aquele beijo. No local, manteve-se perto da porta. Tomou a bebida quase num gole só, Peres imitou-o, ambos embaraçados. Ele aceitou uma segunda dose, ela encheu de novo a própria caneca.

– Lobato, entra logo e vem tomar uma caneca de vinho! –rosnouLobatoela.ia

207

Pedro e Inês de Castro E D. Pedro, então? Nunca o chamas dessa forma. E ainda devias me chamar de D. Estêvão e não de… Peres abriu a porta de supetão. Ele parou de gesticular, impe dindo o restante da frase.

– Então este foi nosso último dia juntos?

o trajeto até Coimbra, os dois sabiam que aquela noite marcava o fim de um período que não iria se repetir. Cada um acabaria seguindo um caminho diferente. Pedidos de desenhos e esculturas não faltariam a uma jovem tão talentosa. Ele quis mais vinho. Ela também. E começou a rir, o álcool fazendo efeito muito rápido.

– Sim, Mesmoirei.dividindo

208

Aquela mulher pertencia a Pedro, a quem amava. E Lobato estra gara tudo ao se aproveitar de uma noite de vinho que a deixara tão –indefesa…Perdoa-me

– murmurou antes de sair. Peres não entendeu nada. O que deu nele?, perguntou-se. O mesmo muro intransponível de antes foi novamente erguido por Lobato. Durante a viagem até Coimbra, ele falou apenas o necessário, frio e distante ao extremo. Na cidade, onde encontraram Pedro, o criado não teve cora gem de encará-lo. Fitou o chão ou o vazio a maior parte do tempo. E, na primeira oportunidade, correu para se refugiar em suas anti gasBastantetarefas.

envolvido com os assuntos do reino, Pedro não pôde lhes dar muita atenção. Apenas pediu a Peres que ficasse por perto, desenhando o que bem entendesse. Conversariam assim que possível.

A manhã encontrou-os dormindo, nus e abraçados. As bada ladas do sino do mosteiro, o anúncio do novo dia que também convocava os monges para a missa, retumbaram dentro da cabeça de Lobato como se ela fosse oca. O criado sentou-se, confuso. Peres despertava sorrindo. Quando as lembranças da noite anterior se tornaram claras, ele saltou da cama, vestiu-se apressadamente e voou para a porta.

Pedro e Inês de Castro Lobato levou-a para se sentarem na cama. Continuaram bebendo, o criado para esquecer o futuro entediante à sua espera e a desenhista ainda na comemoração de mais um trabalho pronto.

De repente ele a beijou, esquecendo o bom senso e estreitan do-a junto a si. Ela quis mais e começou a despi-lo.

– Só aconteceu no mês passado?! – espantou-se. Como a jovem não entendesse, teve de explicar o que era óbvio para ele. – D. Estê vão te ama há uns dez anos, desde aquela viagem à Galícia.

– O que houve entre ti e D. Estêvão? – perguntou. – Vós brigas tes?– Não. Dormimos juntos.

– Aconteceu no mês passado e… Foi a vez de ele se mostrar surpreso.

209

apoio do filho Fernando e dos conselheiros, enviou Telo e Álvaro para escoltarem o sobrinho até a Galícia. O plano, porém, tinha outro objetivo. No meio do caminho, Telo e Álvaro escapa ram, levando a filha adolescente de Enrique de Trastâmara que o Cruel tinha sequestrado. A jovem foi devolvida ao pai, o que permitiria que um acordo entre ele e Portugal fosse assinado mais tarde. Quanto ao Cruel, ele teve de seguir sozinho com a própria escolta para a Galícia, onde provocou mais problemas. Somente após contornar mais aquela crise, na segunda metade de novembro, é que Pedro teve um pouco de tranquilidade para conversar com Peres. Estavam a sós na antecâmara e era quase meia-noite. Ele encerrara uma reunião importante com três de seus conselheiros, que já tinham se retirado. Como de hábito, a jovem estava sentada no chão, desenhando. Pedro acomodou-se ao seu lado.

– Finalmente! – ele comemorou, para surpresa da garota.

Pedro e Inês de Castro As relações entre Portugal e Castela andavam azedas. O Cruel, que nos últimos anos ordenara a morte de irmãos bastardos, inimigos e até da primeira esposa Blanche de Bourbon, resolvera se esconder em solo português, fugindo de seu perseguidor Enri que de Trastâmara. Pedro agiu rápido, recusando auxílio e, desse modo, evitando que a guerra entre os dois castelhanos invadisse seuComreino.o

– Quando eu era casada, tive uma filha, minha Catarina…

– Ah, se eu soubesse que só o vinho vos daria coragem, já vos teria embebedado há tempos! Mas Peres não achou graça nenhuma. Angustiada, abraçou os grávida. O rei ia parabenizá-la, empolgado. Preferiu se conter.

– Imaginas o que lhe aconteceu, não? – disse Peres.

– E não é uma boa notícia? – achou melhor confirmar.

Pedro começou a rir.

O assunto relacionava-se com a vingança que ainda a movia. Pedro inspirou fundo, muito sério e tenso.

– Foi o que pensei no começo, antes de descobrir que tua loucura era consequência de algo muito maior. E que o único responsável era outra pessoa: Diogo Pacheco.

210 Pedro e Inês de Castro Dez anos?! Não, não podia ser. Ninguém guardaria por tanto tempo um sentimento tão intenso sem demonstrá-lo, exceto… se a pessoa fosse Lobato. Sim, seu mestre agiria daquele jeito se simplesmente resolvesse agir daquele jeito.

da companhia de D. Estêvão?

– Gostei muito – ela admitiu. – Estávamos felizes e… bêbados.

joelhos.–Estou

Numa vingança infantil contra ele, Peres largou o bloco de desenho e esparramou pelo piso todo o conteúdo da caixa de giz de carvão.–Nãogostaste

– Cinco desses teus soldados mataram minha filha e meu marido, queimaram nossas plantações, destruíram tudo e depois me levaram para ser a prostituta deles. Mas um dia consegui fugir e jurei que mataria o único responsável por toda aquela violência.

– Meus soldados foram responsáveis pela morte dela, naquele meu período de desvario.

– Eu.

– Lobato já sabe? – perguntou a jovem.

– E quanto a D. Estêvão? – indagou. – O que tem ele? – Tu o amas? Peres suspirou. – Infelizmente sim. Seria tão mais fácil amar um homem menos complicado…

– Ainda me odeias?

– Difícil continuar odiando alguém que deu um novo sentido à minha vida. Ter a oportunidade de criar aqueles túmulos… Aquilo foi

– Estás doente? – arriscou. Pedro assentiu. – O que tens? – É o que vai me matar. – Não pode ser tão grave! – Peres negou-se a acreditar. – Tu me pareces bem saudável. Sentes dor? Sentia, mas não quis admitir e lhe dar detalhes da doença.

– Somente meu médico sabe. E não quero que ninguém descu bra, por enquanto.

– E Lobato não percebeu que…?

– D. Estêvão só tem a ti na cabeça – garantiu Pedro. – Nem as tarefas dele anda fazendo direito. Que ele repare nos outros é exigir muito.

– Sê feliz com ele, Peres. A vida é muito curta. Ela o mirou bem nos olhos, a intuição alertando-a que um simples conselho como aquele escondia significado mais amplo.

Mas já sofreste muito e tua consciência te faz pagar todos os dias por teus crimes.

211 Pedro e Inês de Castro – Mas isso não me exime da culpa pelas atitudes dos meus soldados.–Eusei.

Elefascinante!sorriu,grato

por receber aquelas palavras.

Em seu quarto, de dentro de uma arca, Pedro retirou um velho caderno de desenhos, que deu à jovem. A seguir, sentou -se na cama e indicou-lhe um lugar ao seu lado. Pareceu muito cansado, como se não precisasse mais fingir diante dela a inexis tência da dor e da doença.

–páginas.FoiaZaynab quem fez.

– Ele te disse isso?

– Acho que muito em breve vou inaugurar o belo túmulo que vós fizestes para mim – disse ele, bem-humorado.

212

– E quem é ela?

– Granada? E por que achas que Lobato e eu vamos para lá?

Pedro e Inês de Castro Peres teria tempo para se acertar com Lobato. Quanto a Pedro, se a doença fosse realmente tão séria…

– Não digas isso nem brincando! – retrucou Peres, lágrimas tomando-lhe o rosto sem que pudesse impedir.

– Vem comigo – pediu. – Tenho um presente para ti.

Pedro contou-lhe uma aventura do passado, quando ele e seus três melhores amigos resgataram uma princesinha nasrida. Então essa é a longa história de como Lobato ganhou aquela cicatriz no ombro, pensou a jovem, certa de que jamais a conheceria se depen desse do criado.

– São desenhos da tua infância? – perguntou Peres ao descobrir os traços simples e cheios de imaginação que invadiam as primei ras

– Quando tu e D. Estêvão fordes a Granada, procura a princesa em meu nome e lhe mostra este caderno – orientou Pedro. – Diz a ela que o guardei com carinho todos esses anos.

– Porque esse é o sonho dele. E também será o teu.

Num gesto terno, o rei retirou-as com as pontas dos dedos.

– Nem precisa dizer. Eu o conheço há mais de quarenta anos, Peres. Apesar de meses mais novo, D. Estêvão foi o irmão mais velho que não tive, o pai que D. Afonso nunca quis ser. Ele me

– Tens minha palavra, rei.

Pedro moveu a cabeça de modo afirmativo. Deu-lhe mais orientações, entregou-lhe um frasco com um líquido viscoso, sugeriu o uso de um cálice e de um manto branco, escolheu o local. Troca ram ideias e também conversaram muito sobre passado, presente e futuro.Pouco

Pedro e Inês de Castro protegeu, cuidou de mim, sempre me apoiando, mesmo quando ninguém ainda me dava valor como ser humano. E ainda abdicou da vida dele para me seguir.

– Ora, D. Estêvão – disse o outro –, nosso rei não deixa escapar nenhuma mulher bonita… Se a querias, demoraste muito! Ou será que ele roubou o que já era teu?

– Há uma coisa que eu gostaria de te pedir… Algo que não terei tempo de fazer.

213

– E será a pessoa que terá mais dificuldade para aceitar tua morte.–Sim. Cuida dele.

antes do amanhecer, ele se deitou, sonolento. Peres dormiu logo depois. Acordariam horas mais tarde, no meio de uma manhã sombria para Lobato.

Como Pedro não foi à missa matinal, Lobato deduziu que ele passara a noite com alguma mulher. O camareiro-mor confirmou a hipótese quando o criado apareceu na antecâmara do rei.

– Q-quem? – murmurou.

Pedro ainda dormia em seu quarto.

– Ele está com aquela desenhista – acrescentou o homem. Lobato sentiu como se um raio o atingisse.

– E que eu completarei para ti.

– Aconteceu algum problema, Lobato?

Do seu quarto, para onde se dirigira após ser despertada por Pedro, ela foi atrás de Lobato. Encontrou-o no aposento dele, preparando-se para alguma viagem.

– Nenhum. Vou para minhas terras usar aqueles dias de descanso que D. Pedro já me ofereceu e que sempre recusei.

Mas, ao contrário do que esperava, não teria sangue frio sufi ciente para assistir, impassível, à felicidade do novo casal. Haveria outras noites juntos, talvez a jovem gerasse algum bastardo real…

Pedro e Inês de Castro Antes que o comentário abusado ficasse ainda mais maldoso, Lobato sumiu

– Já o avisaste sobre isso? – Dá o recado a ele, por gentileza. Lobato terminou de arrumar sua bagagem, colocou-a nas costas e saiu.Sem nenhuma palavra de despedida nem um olhar sequer.

214

Finalmentedali.chegara o momento que tanto temia: Peres e Pedro juntos, como previra havia tantos anos.

Movido pelo ciúme e pela tristeza, Lobato tomou sua decisão. Seguindo um conselho do rei, Peres substituiu suas roupas masculinas por um vestido. Soltou os cabelos, novamente na altura de seus cotovelos, e penteou-os com capricho. Gostou do resultado, sentindo-se feminina e sedutora.

– Para onde irás? – perguntou, apreensiva. O criado olhou-a de esguelha. O visual que ela escolhera para impressioná-lo não surtiu o efeito esperado. Ele escondeu a mágoa e se pôs a colocar algumas roupas em um saco de viagem. Estava levando apenas o mínimo necessário.

Pedro e Inês de Castro Peres ia em seu encalço, porém reparou na arca antes abar rotada de desenhos sobre as pessoas que ele conhecia e os fatos a que assistira. Lobato rasgara-os um por um e, como as cinzas comprovavam, queimara a maioria desses pedaços na chama de uma vela na mesa. Era como se rompesse em definitivo com a vida que tivera até ali.

devido à fraqueza e a dores cada vez piores, Pedro ditou a Lobato sua última carta para Branca, despedindo-se

Acharam-no somente no primeiro dia de janeiro, cruzando a fronteira com ÀquelaCastela.altura, Pedro estava em Estremoz, sob os cuidados dos franciscanos. A doença consumia-o numa rapidez assustadora, o que a tornara pública. Os filhos e praticamente toda a corte muda ram-se para o vilarejo, além dos nobres e do clero vindos de outros lugares do reino. Após ser informado sobre a doença, Lobato reassumiu suas funções ao lado do amigo, pediu-lhe perdão pelo sumiço e, ao descobrir a gravidez de Peres, passou a ignorá-la. Uma atitude que a feriuPresobastante.aumacama

Só se preocupou de verdade em dezembro, quando foi infor mado de que o amigo vendera todas as suas propriedades.

215

Alarmada, Peres correu até Pedro. Tinha certeza de que Lobato planejava ir embora de Portugal.

Pedro tranquilizou-a, dizendo que manteria Lobato sob a vigi lância discreta de alguns soldados, que o seguiriam sem que soubesse.–Talvez ele precise mesmo de uns dias de descanso – disse-lhe.

Despachou Telo de imediato para cuidar do assunto. A seguir, teve de mandar Álvaro para ajudá-lo, pois Lobato tinha desaparecido.

Nos últimos dias de Pedro, os momentos de lucidez foram raros. Ele dormia a maior parte do tempo, graças aos remédios. Mal balbu ciou algumas palavras para o filho Fernando, que foi visitá-lo com a filha bastarda, a primeira neta de Pedro, com o objetivo de conseguir o perdão para um personagem que finalmente retornaria a Portugal após uma fuga de anos por vários reinos europeus: Diogo Pacheco.

Pedro aproveitou a oportunidade, chamando-os com um frágil aceno para que se aproximassem da cama.

– A decisão que tomei agora… – sussurrou, com dificuldade para falar. Peres precisou se inclinar sobre ele para ouvi-lo. – Não anula o que planejamos…

Pedro e Inês de Castro e agradecendo por ela ter feito parte de sua vida. Depois, mandou que todas as cartas que recebera dela fossem queimadas, o mesmo destino que a senhora deveria dar às cartas dele. A bonita amizade entre os dois não deveria correr o risco de se tornar conhecida após a morte de um rei que não teria mais como proteger Branca dosEleinimigos.também

Pedro acabou cedendo. Com a filha no colo, Fernando saiu feliz e Peres quis trocar um olhar com Lobato, que mais uma vez a evitou. Naquele momento, somente a jovem e o criado cuidavam do rei em seu aposento.

pensou no futuro de suas mulheres do povo e dos filhos que tivera com elas. Como não pôde incluí-los em seu testa mento, deixou sob a responsabilidade de Telo entregar uma soma em dinheiro a cada um. Já Branca deveria continuar recebendo ajuda financeira até a morte, que ocorreria quatro anos mais tarde.

Aos 21 anos e pronto para ser coroado, Fernando estava convencido de que o antigo conselheiro de Afonso deveria ter seus títulos e bens restituídos como prova de boa vontade. Diogo passara a representar os interesses de Enrique de Trastâmara, que não demoraria a destronar o Cruel. Tê-los como aliados poderia ser muito vantajoso para o reino.

216

– Sim, eu sei – disse ela.

abri-los.Morreria

– Aonde pensas que vais? – ela intimou. – Embora. – Vais a pé? Ele estacou. – É, esqueci o cavalo – disse. Ia dar meia-volta para buscá-lo. Peres segurou-o pelos pulsos. – Não podes ir embora – argumentou. – Preciso da tua ajuda para completar a vingança.

Lobato saiu antes que Telo e Álvaro reparassem. Peres foi a única que o seguiu. Alcançou-o numa rua movimentada, andando apressado, sem nenhum manto que o protegesse do frio rigoroso daquele dia de inverno.

217 Pedro e Inês de Castro Lobato franziu as sobrancelhas, sem entender. Ainda não conhecia o plano. Pedro mirou a jovem, a luz de seu espírito misturando-se às brumas.–Nunca me falaste teu nome – disse, como se tirasse o assunto do nada.–ÉInês.Elequis sorrir, todo o sentido de sua vida em um único nome, mas a sonolência o levou a cerrar os olhos. Não voltaria mais a horas depois, em 18 de janeiro de 1367, aos 46 anos de idade.Emseu último suspiro, o rei estava cercado por sua família, seus nobres mais próximos e importantes, e por representan tes da Igreja. Quando a morte foi confirmada pelo médico, houve choro, lamentos e, para Fernando, o novo rei, reverências e efusi vosNocumprimentos.fundodoaposento,

– Será justiça para ti. E vingança para mim e Pedro.

– Primeiro, volta a ser meu amigo. Senti tanto a tua falta… Lobato também sentira a falta dela. E precisava de seu apoio mais do que nunca.

– Não foi sincero. O rei sabia que, com sua morte, cedo ou tarde Diogo aproveitaria para retornar a Portugal. Com o perdão, será mais cedo.

– E qual é o gosto da vingança, Peres?

– E o que deve ser feito? Peres libertou-o. Ergueu a mão e tocou-lhe o rosto com carinho.

– Ahn?

– Perdi meu irmão… A jovem puxou-o para si, envolveu-o em seu carinho. Foi em seu ombro que ele extravasou o choro e o sofrimento, alheio à curiosidade das pessoas que passavam por perto.

– Ele morreu, Peres – contou. O desespero, enfim, vinha à tona.

– Viste a execução dos aliados de D. Diogo, lembras? Ficaste apertou os pulsos, quase afundando neles as unhas. Não notava a própria reação.

– Não. Quero apenas que me ajudes a cumprir o que deve ser feito.–Queres vingança ou justiça, afinal?

– Ainda falta Diogo Pacheco – disse a jovem, sem disfarçar o ódio que alimentava contra aquele homem.

satisfeita?Elalhe

218 Pedro e Inês de Castro Lobato estreitou os olhos para analisá-la.

– O perdão que D. Fernando conseguiu do pai…

– O gosto é amargo, Lobato. O rei exagerou na crueldade para ser temido, sabes disso, mas a punição precisava existir, de uma forma ou de outra. Contudo, ainda há esse Diogo, que escapou por tempo demais. Ele tem de ser punido por seus crimes.

– Esperas que eu o mate para ti.

Em março daquele mesmo ano, Diogo Pacheco retornou a Portu gal como convidado do novo rei, Fernando. Recuperava o prestígio e todas as honras que Pedro, em sua vingança, lhe tirara.

Pedro e Inês de Castro Mais uma vez Portugal tinha um novo rei. No futuro, novos assassinatos, intrigas e disputas pelo poder jogariam irmão contra irmão, alianças seriam formadas e destruídas, a guerra sangraria o reino. A mesma trama perigosa de sempre, porém com persona gens novos unindo-se aos antigos. Uma história que Peres e Lobato não iriam presenciar.

219

Instalou-se em Coimbra, por onde andava a corte naqueles dias, e na primeira oportunidade foi até o Mosteiro de Alcobaça conhe cer os dois magníficos túmulos, famosos pela arte ousada e por abrigar os protagonistas de uma trágica história de amor.

Uma manhã silenciosa e repleta de luz invadia as janelas altas e os vitrais da igreja que os monges não abriam para visitação pública desde o enterro de Pedro, ocorrido em janeiro. Para Diogo, obviamente, fizeram uma exceção. Ele ainda teria total liberdade para circular no local sem ser incomodado. Ao ver os monstros que se contorciam sob o peso do túmulo de Inês, o nobre divertiu-se imaginando qual dos seis o retratava. A seguir, admirou a beleza da escultura que reproduzia a jovem tão sedutora, o colo perfeito e o restante do corpo que ele tanto desejara.–Uma pena que não tenhas sido minha – lamentou. E sorriu, satisfeito, ao concluir que Inês pagara o preço por rejeitá-lo. O túmulo de Pedro, em frente ao dela, foi o próximo alvo de sua curiosidade. Diogo zombou da escultura na tampa, uma aparência elegante que o defunto ali instalado jamais conseguira ter em vida.

– Contaram-me que estes túmulos foram criados por uma mulher – disse. – Não acreditei. Uma mulher não teria capacidade para tanto. Ainda mais uma rameira que, segundo me informaram, D. Pedro dividia contigo. Nenhuma reação. Nada.

O criado fitava-o apenas, como se assistisse a uma provocação bastante costumeira. Diogo teria de ser mais apelativo.

– E por que não? Sempre posso precisar de um garoto para entregar meus recados.

– Recusei o convite, na verdade.

– Melhor do que tu, acredito – respondeu. – Eu soube que D. Fernando não te quis como criado na “casa” dele.

Lobato não respondeu, impassível, o que irritou Diogo. Queria vê-lo perder a paciência ao menos uma vez.

Pedro e Inês de Castro – Espero que estejas ardendo no inferno! – esbravejou entre dentes.Sem pressa, começou a contornar o túmulo, observando cada detalhe de uma de suas laterais. Ao encontrar a rosácea, prendeu a respiração. Nunca vira um trabalho tão excepcional. Contemplou numa determinada ordem as cenas esculpidas, releu-as de outra, identificou pessoas ali registradas, tentou adivinhar quem era a criatura alada…

– Mesmo? Pois fiquei tão sensibilizado com tua humilhação que ia te chamar para ser mais um dos meus criados. O que achas?

– Também não acreditei nisso. Primeiro, D. Pedro sempre foi muito… ahn… guloso com as mulheres dele. Não iria dividi-las

– Como tens passado, D. Diogo? – indagou alguém. O nobre endireitou-se e, cínico, virou-se para conversar com quem o observava havia algum tempo. Lobato não mudara muito na última década. Somente alguns fios brancos na barba e nos cabelos revelavam que já passara dos quarenta anos.

– De trabalhar para ti?

220

221

– Se é o que desejas… Ansioso, Diogo não esperou que ele desembainhasse a espada.

Enganado por sua noção de superioridade, Diogo não registrou que o outro o forçava a atacar sem pausas, provocando-o para cansá-lo. Apenas sentiu, em algum segundo, a velocidade da luta

– Não preferes tomar a iniciativa?

Depois, com o tempo, construiria para si uma imagem mais positiva, a de um nobre preocupado que cansara de avisar um irresponsável Pedro sobre os riscos que sua união com uma Castro poderia representar para o reino.

– Se queres me desafiar para um duelo, diz logo – avisou.

Pedro e Inês de Castro nem mesmo contigo. E, depois, sempre desconfiei da real natu reza da tua amizade com ele. Eras tu que o dividias com a tal rameira,Lobatonão?ergueu uma sobrancelha, entediado.

O bom dos mortos é que eles não podiam se defender, prin cipalmente diante de uma geração seguinte que não vivenciara os fatos. Caso alguém, numa possibilidade bastante remota, quisesse contestar a versão de Diogo, não encontraria provas paraComoapresentar.diriam no futuro, “agora é tarde, Inês é morta”. Palavras que o nobre considerava especialmente deliciosas. Para sua surpresa, o criado rebateu a ameaça com precisão.

Pegou a própria arma e, ágil como o excelente guerreiro que ainda era, avançou contra ele. Eliminaria com facilidade a última teste munha de seus crimes numa época que deveria ser esquecida para o bem de seus planos como futuro conselheiro do novo rei.

Jamais fora muito hábil em esgrima, mas, Diogo teve de admitir, melhorara bastante. Lobato defendeu-se de novo, ensaiou um golpe que não completou para enganá-lo, fez com que agisse com mais ênfase, driblou-o, quase lhe acertou uma estocada, defendeu -se mais uma vez. Distanciavam-se do túmulo.

Com um preparo físico melhor do que o seu, Lobato treinara muito à espera daquele duelo. Numa tentativa desesperada de reverter a inevitável derrota, Diogo tentou investir em um ataque pesado. Truculento, o adver sário contra-atacou, arrancou-lhe a espada e atingiu-o com um murro no queixo. Diogo cambaleou, o punho de Lobato continuou a feri-lo.Elecaiu, perdeu a coragem e se viu esparramado ao lado da rosácea, o joelho direito do criado pressionando-lhe o peito para aprisioná-lo no chão. Para garantir que não se mexesse, a ponta da arma foi posicionada na lateral de seu corpo, de modo que um único movimento poderia trespassá-lo ao encontro do coração.

Diogo não conseguiu mover a cabeça quando Lobato abriu-lhe a boca com uma adaga, prendendo-lhe a língua com a lâmina e, ao mesmo tempo, ameaçando rasgar suas bochechas de dentro para fora. Mata-me de vez, seu miserável!, pensou o assassino de Inês. Tremia, aterrorizado diante da morte grotesca à sua espera.

– Por que achas que vou te matar? – perguntou o criado, com desprezo.

Continuaram se movendo, o criado mais uma vez desviando uma estocada para longe, a agilidade dando-lhe vantagem para acertar com a mão livre um soco em Diogo. Ele quase foi derru bado, teve de retroceder. Sob golpes incessantes, foi recuando, o túmulo de Pedro crescendo atrás de si. Em pânico, percebeu o óbvio.

222

Pedro e Inês de Castro ficar mais intensa, o choque de lâmina contra lâmina ecoar mais forte pelas paredes, destruindo a paz daquele local sagrado. Após rebater um golpe e por milésimos de segundos se livrar da espada adversária, Lobato deu um encontrão em Diogo e foi parar atrás dele. O velho conselheiro de Afonso girou, a muito custo conseguiu evitar o novo ataque.

Diogo girou o olhar para a mesma direção. A alguma distância, havia uma bela mulher coberta por um longo manto branco, com um capuz ocultando-lhe os cabelos. Ela se afastou do túmulo de Inês, naquele instante surreal delicada mente sob a luminosidade do sol que vinha das janelas.

Confuso, pareceu a Diogo que a mulher saíra do calcário, um dos anjos de Inês transformado em carne, pele, ossos e sangue. Ela mergulhou nas sombras que a separavam dos dois homens, alcançou o túmulo de Pedro. Parecia uma moura de tão morena. E trazia um cálice em suas mãos.

Para sua própria vergonha, o assassino chacoalhava de pavor, o fio da adaga provocando cortes superficiais no interior de sua boca, devido aos movimentos involuntários.

– Vós me envenenastes! – gritou, a fúria dando-lhe um pouco de dignidade.Novamente

– Esta é Inês – apresentou Lobato.

Pedro e Inês de Castro Seu interesse foi, então, desviado para uma terceira pessoa.

– O veneno não vai provocar tua morte – garantiu Lobato. – Ele apenas permanecerá no teu estômago até o teu final, corroendo-o

223

A mulher ajoelhou-se ao seu lado, derramou o conteúdo do cálice na lâmina da adaga e ficou acompanhando, com um meio -sorriso, enquanto o líquido viscoso escorria goela abaixo. Diogo engasgou-se, quis cuspi-lo, não conseguiu. Somente quando se certificou de que o líquido faria efeito é que Lobato o libertou. Acompanhado pelo anjo vingador, foi até os pés do túmulo de Pedro. Com dificuldade, Diogo tentou se erguer. Perdeu o equilíbrio e, de quatro, forçou o vômito. Cuspiu apenas o sangue dos cortes em sua boca, que limpou com as mãos.

quis se levantar. Apoiou-se na rosácea, manchando de vermelho a minúscula escultura de uma Inês decapitada. Tombou de novo.

– Está feito, meu senhor – murmurou. Depois, foi até o túmulo de Inês e repetiu o mesmo gesto respeitoso.–Adeus, minha senhora. Sumiria nas sombras, seguindo o anjo que guiava seu futuro.

– Maldito! Vou te matar, criado incompetente! Arrancarei tuas tripas, quebrarei teus ossos um a um e… Uma crise de tosse impediu-o de berrar suas promessas. Ia perseguir Lobato, destruiria sua reputação antes de torturá-lo até a morte.Quanto ao anjo… Descobriria quem era e… Uma pontada cortante no estômago lembrou-lhe da ameaça muda que o veneno representava. Diogo largou o corpo no chão, gemendo, a imagem de Inês em sua mente misturando-se ao anjo vingador que também se chamava Inês.

224 Pedro e Inês de Castro lentamente, provocando-te uma dor tamanha que nenhum medi camento conseguirá amenizar. Assim poderás sentir em ti mesmo, dia após dia, todo o sofrimento que provocaste nos outros. Dese jo-te, portanto, uma existência muito longa.

Não era mais o centro das atenções de seus carrascos. Lobato inclinava-se numa profunda reverência à escultura de Pedro, os olhos vermelhos pelo choro.

225 Pedro e Inês de

Desde que tinham fugido de Alcobaça a Lisboa e de lá, sob a proteção dos hospitalários, enfrentado uma viagem por mar até o reino de Granada, Peres e Lobato viviam como hóspedes de Zaynab. Pereira, que os levara pessoalmente, contara à princesa que Lobato era o melhor amigo de Pedro e também participara, 28 anos antes, do grupo de resgate em Salado. Ao reconhecer, emocionada, o caderno de desenhos de sua infância, ela jurara proteger o casal contra qualquer perigo. Uma proteção ironicamente desnecessária, pois Diogo jamais

g ranada , 1368 A quela vista sempre tiraria o fôlego de Peres. De sua janela no castelo vermelho, Alhambra, ela mais uma vez observou o bairro de Albaicín, com suas inúmeras casinhas brancas e, ao fundo, a Sierra Nevada.

EpílogoCastro

Alhambra era praticamente uma cidade dentro de outra cidade, cercada por um bosque e uma muralha da mesma cor de suas pare des externas, vermelha graças aos tijolos feitos com a terra daquela região. Ficava no alto de uma colina, um complexo arquitetônico que reunia as alas de seu estonteante palácio real, além de mesqui tas, oficinas e escolas, entre outros setores indispensáveis para o funcionamento daquela última civilização árabe em solo ibérico.

Para Peres, viver entre eles era ter acesso a uma cultura extre mamente refinada e ao que havia de mais avançado no campo do conhecimento humano e científico. Por contar com a proteção da princesa, tanto ela quanto Lobato podiam circular à vontade e, enquanto aprendiam o idioma, também aprendiam tudo o que podiam sobre arte islâmica. Vestiam-se como árabes, adotaram seus hábitos e sua alimentação. Muito feminina em suas novas roupas, Peres cobria a cabeça com um véu, como as mulheres daquele povo. Seu bebê completava um ano naquele final de primavera, uma menina saudável e risonha que já descobrira como andar e mal parava quieta, bagunçando a ala reservada à pequena família no palácio. Ela recebera o nome de Catarina, o mesmo da filha que Peres tivera e também da caçula de Lobato que morrera na infân cia.Para a mãe, era como se a menina tivesse voltado para ela. Já o pai, que a adorava, nunca a chamava de filha, o que era muito estranho.Peres encontrou-os no terraço: o bebê, entre rosas, lírios e arbustos, esfarelando a terra fofa, e Lobato sentado junto dele, brincando de modelar bolinhas, quadrados e triângulos com o mesmo material. Como praticamente todas as áreas em Alhambra, o local era fresco e bastante arejado, poupando-os do calor daquela época do ano.

Mais adiante, uma fonte e seu espelho d’água refletiam o ambiente, assim como outras fontes e piscinas espalhadas pelo complexo refletiam colunas e portais esculpidos, mosaicos, padrões geométricos e azulejos pintados à mão. Exuberante e

226 Pedro e Inês de Castro desconfiaria da ligação de Pedro com os nasridas e, menos ainda, que Lobato e seu anjo vingador estariam escondidos em um reino que não fosse cristão, ainda mais no meio dos inimigos árabes.

Havia algo mais naquela atitude que o impedia de torná-la novamente sua mulher, embora todos achassem, inclusive Zaynab, que os dois eram casados.

227 Pedro e Inês de Castro sofisticado, simples e luxuoso ao mesmo tempo, um mundo que nem mesmo os sonhos mais ousados de Peres imaginaram existir. Ela se acomodou numa cadeira e, à toa, não sentiu a hora passar. Possivelmente cochilou, pois só se deu por si quando descobriu Lobato de joelhos, reunindo os brinquedos espalhados pelo chão, as mãos já limpas da terra. Catarina dormia no berço, no quarto dela. Ao vê-lo, Peres sorriu. Ele vivia arrumando o material de dese nho que ela largava em qualquer lugar, não dormia antes de checar três vezes toda a segurança ao redor de mãe e filha, cuidava dos pertences delas com tanto zelo e sempre do mesmo modo que beirava a irritação. Sempre meticuloso, impecável. Perfeito. Velhas manias eram mesmo difíceis de abandonar. Peres espreguiçou-se antes de sair da cadeira. Foi até ele, o que o obrigou a se levantar. De propósito, posicionou-se muito perto do homem que, desde a comemoração em Alcobaça, nunca mais se aproximara tanto dela, possivelmente por respeitar sua gravidez e, após o parto, para evitar que engravidasse de novo e perdesse o leite com que amamentava Catarina. Alguns beijos e um pouco de carinho, no entanto, teriam sido muito bem-vindos…

Lobato quis recuar, ela o prendeu pelos antebraços. Ia desco brir o que ele estava escondendo.

– Catarina é alta para a idade, não achas? – ele tentou distraí-la.

– Puxou ao pai.

– É, D. Pedro era quase tão alto quanto eu. E tu também és bemPeresalta.arregalou os olhos. Como aquele idiota podia achar que Catarina não era filha dele? Por quem a tomava? Não sabes mais fazer contas?, quase perguntou, mas Lobato a arrebatou para um

– E por que não vais embora? O que te impede? Ela falara sem pensar, desejando magoá-lo. Não funcionou como

dele. Encontrou-o no pátio externo, fora da ala que ocupavam. – O que estás fazendo? – gritou ela, parando junto à porta. Ele interrompeu o passo. Virou-se em sua direção, mas não saiu do lugar.–Vou dar um passeio – disse, secamente. – Queres algo da rua? E se nunca mais voltasse? – Vem aqui – ela chamou.

Pedro e Inês de Castro beijo inesperado, tocando-lhe os lábios com paixão. Parecia arris car Sótudo.que Peres estava brava demais com ele para se entregar. Empurrou-o, lutando contra a vontade de esmurrá-lo.

– Não posso mesmo me comparar a ele. D. Pedro era impulsivo, aventureiro, generoso. E eu… Sei das minhas limitações. Se não fosse por ele, eu jamais teria viajado, jamais experimentaria uma vida diferente apenas para não abandonar a segurança das minhas escolhas. Talvez aqui não seja o meu lugar e…

Lobatoesperava.tomou

– Tu ainda o amas – concluiu Lobato.

– Sim! – ela berrou, fora de si. – Porque és um tonto que não enxerga um palmo à frente do nariz!

uma direção qualquer. Deixou-a sozinha, ainda enfurecida, chutando a cadeira e depois descontando nos brin quedos, que arremessou para longe. Apesar da elegância de sua nova vida, Peres continuava a mesma pessoa de modos grosseiros e temperamento difícil. Subitamente um detalhe interrompeu o surto. Ela lembrou que Lobato era bem capaz de sair andando de Granada e acabar em Roma, apenas para fugir de uma situação que preferisse evitar. E se fosse mesmo Desesperada,embora?correuatrás

228

– Eu sou assim, Inês. Não consigo evitar.

– Raciocina, homem! Com quem nossa Catarina se parece? – Um pouco contigo.

– E-ele sabia?! O mundo inteiro sabia, pensou Peres, divertindo-se com o emba raço de Lobato, que se julgava a mais discreta das criaturas.

– E de quem mais seria? Nós a fizemos em Alcobaça, esque ceste?–Mas tu e D. Pedro dormistes juntos e eu pensei que…

– É que sou teu oposto…

Preocupado, ele cruzou a porta no mesmo instante. Não teve tempo de perguntar sobre a filha. Peres escondeu-o da visão pública, colocando-o atrás de uma parede. Foi a vez de ela tascar -lhe um beijo apaixonado. Só que Lobato estava confuso demais com a iniciativa para se entregar. Afastou-a sutilmente.

– Não, és pior. Um sujeito chato, metódico, cheio de manias…

– O que mudou? – indagou. – Nada mudou. Eu sempre te amei, Lobato. – Impossível! Estavas destinada a D. Pedro. Que bobagem era aquela?

– Então tu sempre me amaste? – ele quis confirmar.

– Nós adormecemos juntos. É diferente, Lobato. E Pedro nunca me faltou com o respeito porque sempre soube do teu amor por mim.

– E muito mais contigo. – Ela… – disse o homem, aturdido. – … é minha filha?

– É a Catarina – mentiu para atraí-lo.

– Não exatamente. Demorou bastante, para falar a verdade.

229

Pedro e Inês de Castro – Fala, estou te ouvindo muito bem daqui. Peres xingou-o em pensamento. Algumas pessoas andavam pelo local, o que lhes tirava a privacidade.

230 Pedro e Inês de Castro – Tudo bem, Estêvão. Ninguém é perfeito.

Ele sorriu antes de se entregar ao tão esperado beijo. Foram interrompidos pelo choro furioso e distante de um bebê faminto.

Catarina acabava de acordar, exigindo o leite materno. De mãos dadas, eles retornaram para a vida em comum entre desenhos, esculturas, estudos e sonhos que iriam concretizar.

Afonso – Neto bastardo de Afonso IV. Afonso IV – Rei português, marido de Beatriz e pai de Maria, Pedro e Leonor.

Afonso Sanches – Nobre português, filho bastardo de Dinis e meio-irmão de Afonso IV.

Álvaro de Castro – Nobre galego, filho bastardo de Pedro de Castro, o Senhor da Guerra. É irmão de Inês, meio-irmão de Fernando e Juana de Castro, e primo de João Afonso Teles, o Telo, pelo lado materno. Álvaro Gonçalves – Nobre português, conselheiro de Afonso IV. Álvaro Pereira Nobre português, prior da Ordem dos Hospi talários.

Beatriz – Rainha portuguesa, esposa de Afonso IV e mãe de Maria, Pedro e Leonor.

Beatriz – Neta bastarda de Afonso IV. Berengária Garcia – Aia aragonesa de Branca. Blanche de Bourbon – Nobre francesa, esposa do Cruel.

Alfonso XI – Rei castelhano, primo de Pedro e sobrinho de Beatriz e Afonso IV.

231 Pedro e Inês de Castro Sobre personagensos

Bruxa – Personagem fictícia. Catarina – Personagem fictícia, filha de Peres.

Diogo Pacheco – Nobre português, filho de Lopo Pacheco, conselheiro de Afonso IV e irmão de criação de Pedro e de Estêvão Lobato.

232

Inês de Castro – Nobre galega, filha bastarda de Pedro de Castro, o Senhor da Guerra, irmã de Álvaro, meia-irmã de Fernando e Juana de Castro, e prima de João Afonso Teles, o Telo, por parte de mãe.

Brites – Personagem fictícia, serva no paço em Coimbra.

Constança – Nobre castelhana, filha de uma princesa arago nesa e do nobre castelhano Juan Manuel, prima de Branca pelo lado materno.

Fernando – Neto de Afonso IV.

Dinis – Neto bastardo de Afonso IV.

Dinis – Rei português, marido de Isabel e pai de Afonso IV e de Afonso Sanches.

Gonçalo Vasques – Nobre castelhano, sacerdote e confessor de Constança.

Guiomar – Dama portuguesa, filha de Lopo Pacheco, irmã de Diogo e esposa de João Afonso Teles, o Telo.

Enrique de Trastâmara – Nobre castelhano, filho bastardo de Alfonso XI e meio-irmão do Cruel. Estêvão Lobato – Nobre português, criado e irmão de criação de Pedro.

Fernando de Castro – Nobre galego, filho de Pedro de Castro, o Senhor da Guerra. Gil da Guarda – Sacerdote e médico de Pedro.

Isabel – Rainha portuguesa, esposa de Dinis e mãe de Afonso IV.

Pedro e Inês de Castro Branca – Princesa castelhana, filha de um príncipe castelhano e de uma princesa aragonesa, prima de Constança por parte de mãe e, por parte de pai, prima de Pedro e de Alfonso XI.

Maria – Princesa portuguesa, filha mais velha de Beatriz e Afonso IV, irmã de Leonor e Pedro, esposa de Alfonso XI e mãe do Cruel.

Maria – Neta de Afonso IV.

Maria Padilha – Dama castelhana, amante do Cruel. Martim Teles – Nobre português, irmão mais velho de João Afonso Teles, o Telo.

Martinho do Rosmanial – Médico da rainha Beatriz. Martins Teles – Nobre português, pai de Martim e João Afonso Teles, o Telo. Mécia – Personagem fictícia, dama da “casa” de Constança.

João Afonso Teles – Nobre português conhecido como Telo, irmão mais novo de Martim. É casado com Guiomar e primo de Álvaro e Inês de Castro pelo lado materno.

Juan Alfonso de Albuquerque – Nobre castelhano, filho de Afonso Sanches e Teresa, sobrinho de Afonso IV, primo de Pedro e irmão de criação de Álvaro e Inês de Castro.

233

Luís – Neto de Afonso IV.

Pedro e Inês de Castro

Juan Manuel – Nobre castelhano, pai de Constança.

João – Neto bastardo de Afonso IV.

Leonor – Princesa portuguesa, filha caçula de Beatriz e Afonso IV, irmã de Maria e Pedro. Leonor Guzmán – Amante de Alfonso XI e mãe de Enrique de Trastâmara.

João, Mestre de Avis – Neto bastardo de Afonso IV.

Margarida – Personagem fictícia, uma das mulheres de Pedro.

Juana de Castro – Nobre galega, filha de Pedro de Castro, o Senhor da Guerra.

Lopo Pacheco – Nobre português, conselheiro de Afonso IV e pai de Diogo e Guiomar. É pai de criação de Pedro e de Estêvão Lobato.

Teresa de Albuquerque – Viúva de Afonso Sanches, mãe de Juan Alfonso de Albuquerque e mãe de criação de Álvaro e Inês de Castro.

Yusuf – Emir de Granada, inimigo dos cristãos na Batalha do Salado. Zaynab – Personagem fictícia, irmã mais nova de Yusuf.

Pedro, o Cruel – Príncipe e depois rei castelhano, filho de Maria e Alfonso XI, sobrinho de Pedro. É mais conhecido como Cruel.

Teresa Lourenço Dama galega, mãe de João, Mestre de Avis.

Peres – Personagem fictícia.

Sancha – Personagem fictícia, uma das mulheres de Pedro.

Violante – Personagem fictícia, uma das mulheres de Pedro.

Pedro de Castro – Nobre castelhano, pai de Álvaro, Inês, Fernando e Juana, conhecido como o Senhor da Guerra.

Rui Garcia do Casal – Nobre castelhano, mordomo-mor de Constança.

Pedro e Inês de Castro Pedro – Príncipe português, filho de Beatriz e Afonso IV, irmão de Maria e Leonor. É irmão de criação de Diogo Pacheco e de Estêvão Lobato.

234

Pêro Coelho – Nobre português, conselheiro de Afonso IV.

235 Pedro e Inês de Castro

ENTREVISTA

Uma história de amor e guerra

Sobre Pedro e Inês de Castro –

Como escritora, tenho quase 50 livros publicados, a maioria diri gida ao leitor infantil e juvenil. Com um livro escrito em coautoria, venci o Prêmio FNLIJ 2019 – Produção 2018 na categoria Reconto. Também fui quatro vezes finalista do Prêmio Jabuti. Alguns dos meus livros receberam o Selo Altamente Recomendável da Funda ção Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) e foram escolhidos 237

Esta seção tem como finalidade contextualizar a autora, a obra e seu gênero literário. Para isso, apresentaremos uma breve entrevista com a autora, na qual ela conta sobre sua vida, a obra e a motivação para escrevê-la. Em seguida, indicaremos o gênero literário deste livro, bem como as características que o definem, exemplificando-as para melhor compreensão e aprofundamento.

COM A AUTORA Helena Gomes, conte um pouco sobre você. Nasci em Santos, no litoral paulista, em 12 de setembro de 1966. Sou formada em Jornalismo, tenho pós-graduação na área de Educação e trabalhei como diagramadora, repórter, editora, assessora de imprensa e professora universitária.

Qual é a história do livro Pedro e Inês de Castro?

O amor entre Pedro e Inês é, desde o início, uma transgressão. Foram, porém, os desdobramentos dessa relação que assombra ram seus contemporâneos e desde então vêm instigando poetas, escritores, pesquisadores e cronistas históricos. Acesso em: 18 dez. 2020.

1

Na Península Ibérica do século XIV, Pedro é um jovem gordinho, bondoso, gago e um tanto inseguro quanto a seu papel de herdeiro do trono português. Para o bem de seu reino, é obrigado a se casar com uma desconhecida. Enquanto isso, Inês, uma garota um pouco mais nova, chega de um reino vizinho. Esperta e encan tadora, também tem um destino definido à sua revelia. Na Corte, às margens do rio Mondego, com o Mosteiro de Santa Clara ao fundo, Pedro e Inês se apaixonam e vivem um dos mais famosos e trágicos romances de todos os tempos.

O que levou você a escrever este livro?

Ainda na adolescência, fiquei fascinada com a história de Inês de Castro, aquela que foi rainha depois de morta e, claro, deu origem à frase “Inês é morta”, comum entre os mais antigos quando algo se torna irreversível. Considerada um dos mais importantes mitos literários, Inês de Castro é uma personagem histórica do século XIV, uma das pontas de um trágico triângulo amoroso formado ainda pelo prín cipe Pedro e por Constança, a esposa imposta por um casamento politicamente arranjado pelos reis portugueses.

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Pedro e Inês de Castro para representar a Literatura Brasileira no catálogo da FNLIJ para a Bologna Children’s Book Fair e na Machado de Assis Magazine para o Salão do Livro de Paris. Mais informações sobre os meus livros estão em <http://helenagomes-livros.blogspot.com.br>.1

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depois, quando enfim herda o reino, ele parte para a vingança. Persegue os assassinos de Inês e ainda manda desen terrar a amada para sentá-la no trono, promover a cerimônia do beija-mão entre os seus horrorizados súditos e, desse modo, a transforma em rainha depois de morta. Nesse ponto, fatos históri cos e lendas se misturam. “A história desse amor e o modo como o seu sobrevivente, Pedro, lidou com a sua dor e a sua memória forneceram o combustível para que centenas de artistas, especialmente escri tores, se voltassem para ela e a tomassem como tema de suas obras”, contou Susana. “Somente até o final do século XVI,

Pedro e Inês de Castro Decidi construir a minha versão desse romance após adaptar a história de amor de outro casal famoso na literatura, Tristão e Isolda. Antes de começar a escrever o novo livro, realizei uma ampla pesquisa em livros e sites sobre a Idade Média na Penín sula Ibérica, o período específico em que se desenrola a trama, os valores vigentes, costumes, tradições, gastronomia, vestimentas, estrutura social, relações sócio-políticas e personagens reais, além de me aprofundar nas lendas e em boa parte do que foi produzido sobre Inês e Pedro na literatura. Você utilizou mais alguma fonte de pesquisa? Sim. Conversei com especialistas, como a escritora e crítica lite rária Susana Ventura. Para ela, trata-se de “um amor que, vivido posteriormente apenas por Pedro após o desaparecimento de Inês, ousou ir além do tempo da vida humana”.

Acusada de traição, Inês é morta sob as ordens do rei em um momento em que Pedro não está em casa. Ao descobrir sobre a perda da amada e sobre a responsabilidade do próprio pai naquela execução covarde, o príncipe é dominado pela fúria. Com seus alia dos, vaga por Portugal durante semanas, provocando ataques e destruição.Tempos

240 Pedro e Inês de Castro Fernão Lopes, Garcia de Resende, António Ferreira e Luís de Camões dedicaram a Inês de Castro páginas inesquecíveis nos mais diversos gêneros. Nos séculos que se seguiram, a aura em torno da história de Inês de Castro só fez crescer: músicos, artistas plásticos e escritores continuaram a criar, inspirados por ela.” E quanto ao Pedro? Tão envolto em lendas quanto sua amada, Pedro precisava de uma abordagem mais realista. Antes de desenvolver o personagem à minha maneira, conversei com o professor de História da Universidade de São Paulo (USP), Carlos Roberto Figueiredo Nogueira, considerado o maior especialista no Brasil sobre o tema. Ele explicou que são escassas as fontes sobre Pedro (mais conhecido como Pedro I de Portugal). Muitas delas foram perdi das, mas algumas podem ser retiradas dos documentos legais da época. De acordo com essas pistas, Pedro foi um rei em tempos de crise, lidando com a fome, a peste e as intermináveis e devas tadoras guerras com Castela, em um prolongamento ibérico da Guerra dos Cem Anos. “É nesse contexto que se pode entender Pedro”, destacou. Segundo o professor, a manutenção da paz foi a sua política mais importante. “Soberano conhecedor de Portugal, concentra-se em seus domínios. Em seu reinado não há guerras nem internas, nem externas. Monarca folgazão e que não tinha pudor em se misturar ao povo, administra cuidadosamente a segurança do reino, bem como as relações entre o clero e a nobreza, concedendo privilégios a uns e retirando de outros conforme as circunstâncias do momento.”

Quando se fala em Idade Média, sempre se pensa nos castelos ingleses ou franceses… É que a Idade Média na Península Ibérica não recebe o mesmo espaço dado em livros, filmes e até séries de TV. Acho isso uma

Na verdade, decidi incluir personagens totalmente inventados para que interagissem com pessoas que tiveram existência real e historicamente comprovada. Tomei também liberdades literárias. Estêvão Lobato, por exemplo, é quase ficcional, pois o que encon trei sobre o verdadeiro foi tão pouco que mal lhe caberia um papel

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Como você lidou com tantas informações? Escolhi o que estivesse ligado de forma direta ou indireta aos personagens do livro. Durante a minha pesquisa, conheci os estudos de Adelaide Pereira Millán da Costa, professora da Universidade Aberta em Lisboa, sobre as três mulheres mais importantes da vida de Pedro. Esse trabalho de fôlego, publicado na premiada coleção portuguesa Rainhas de Portugal, teve como base a análise de fontes e, como esclarece a própria Adelaide, foi completado por interpretações plausíveis e hipóteses referenciadas. Orientei-me por suas indicações com relação a datas e a váriosEmboraeventos.eu respeite ao máximo os fatos históricos, também investi no mito em alguns momentos, como, por exemplo, quando reconto a cerimônia de beija-mão da rainha morta, um evento possivelmente criado pelas lendas.

Todos os personagens foram pessoas reais?

Pedro e Inês de Castro grande injustiça, pois as tramas mirabolantes que envolvem os nobres portugueses e castelhanos daqueles tempos renderiam muitas histórias. Nos reinos de Portugal e Castela (esse último formaria a atual Espanha ao incluir os territórios de Aragão, Granada e parte de Navarra), os poderosos da vida real envenenavam adversários, mudavam sua lealdade de lado conforme as vantagens e os bene fícios oferecidos, cometiam assassinatos grotescos, promoviam guerras entre si, casavam por interesse, enfim, pensavam em si antes de mais nada.

Aproveitei ainda o fato de se desconhecer a autoria do design utilizado nos belíssimos túmulos de Alcobaça para dar vida à personagem Peres, a segunda protagonista feminina e, na ficção, artista responsável pela criação e execução da obra. Sua função, entretanto, vai além: ela se torna confidente de Pedro e interesse amoroso de Lobato. Como desenvolveu a linguagem, considerando que o livro conta uma história medieval? Leve, ágil e de fácil compreensão, ela foi trabalhada pensando no jovem leitor de hoje. Optei por usar apenas o “tu”, esquecendo de propósito o “vós” mais cerimonioso quando é dirigido a uma única pessoa. Resolvi ainda utilizar nos diálogos somente o idioma português, apesar de vários personagens serem castelhanos. Pedro e Inês de Castro – Uma história de amor e guerra é, portanto, uma história portuguesa contada por mim, uma brasileira e neta de portugueses, com todas as características pertinentes a essa condição.

Pedro e Inês de Castro de figurante. Recriado para a trama, ele ganha o papel de segundo protagonista masculino. Com a liberdade proporcionada pela ficção, inventei reviravol tas embasadas no contexto histórico, trouxe motivações diferentes aos personagens, ou seja, fiz a minha mistura de ficção e realidade.

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LITERATURA: ANÁLISE DE LINGUAGEM E GÊNERO DA OBRA Uma das manifestações artísticas do ser humano, a literatura é chamada de arte das palavras, pois representa comunicação, linguagem e criatividade em prosa e verso. Por intermédio da lite ratura, a realidade é recriada de modo artístico com o objetivo de

3 PAVANI, C. F.; MACHADO, M. L. B. Criatividade, atividades de criação literária. Porto Alegre: UFRGS Editora, 2003.

Pedro e Inês de Castro – Uma história de amor e guerra é, portanto, uma obra literária, como mostra o trecho a seguir, na página“O126:criado contemplou o rio diante deles, as águas crispadas graças à turbulência do vento. Acima de suas cabeças, nuvens negras devoravam o céu.” Nem todo texto possui linguagem literária. Uma reportagem, por exemplo, pode contar uma história que provoca reações e reflexões no público. Ela usa, porém, linguagem jornalística e seu conteúdo se limita aos fatos apurados pelo repórter. Ou seja, a função do texto é informativa e não literária. “O que faz de um texto literatura é o tratamento que a ele se dá”, explicam Cinara Ferreira Pavani e Maria Luíza Bonorino Machado, em seu livro Criatividade, atividades de criação literária 3 “Uma mesma frase pode expressar o que suas palavras indicam, literalmente, ou ir além, sugerindo significados que exigem um ato interpretativo por parte do leitor”.

Pedro e Inês de Castro proporcionar maior expressividade, subjetividade e sentimentos ao texto.“Otexto repercute em nós na medida em que revele emoções profundas, coincidentes com as que em nós se abriguem como seres sociais”, conceitua Domício Proença Filho, em seu livro A linguagem literária.2 A literatura se manifesta em histórias de ficção, como poemas, romances, contos, crônicas e novelas, escritas por autores em épocas e lugares diferentes.

2 PROENÇA FILHO, D. A linguagem literária. São Paulo: Ática, 2007. p. 7-8.

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No caso de Pedro e Inês de Castro – Uma história de amor e guerra, trata-se de um romance histórico, uma narrativa ficcional que se desdobra em um determinado espaço-tempo, o que possi bilita aos leitores conhecerem parte da história de um lugar e de um período, além de envolvê-los com a narrativa de sentimentos

– Uma história de amor e guerra é um romance histórico com base tanto em lendas quanto nos fatos que envolvem o príncipe Pedro e a dama galega Inês de Castro, duas pessoas que realmente exis tiram, nasceram no século XIV e se tornaram figuras históricas.

decidiram

244 Pedro e Inês de Castro Dirigido ao público jovem leitor, o livro Pedro e Inês de Castro

Como há vários tipos de produções literárias, os especialistas agrupá-las de acordo com suas características em comum. São os chamados gêneros literários. Entre eles, estão o poema, o conto, a crônica e, claro, o romance. Forma literária escrita em prosa, o romance se popularizou na literatura ocidental no século XIX. Sua característica principal é ser uma narrativa longa, dividida em capítulos, com vários confli tos e uma rede complexa de personagens. Isso o difere da novela, gênero literário com que é frequentemente confundido pelo fato de terem aspectos em comum. Na novela, o fator que predomina é o evento principal, a história a ser contada em meio a poucos conflitos e personagens. Ou seja, uma novela seria comparável a um filme enquanto um romance seria como uma temporada de série, com muitos episódios, em que é possível desenvolver ampla mente tramas e subtramas e focalizar diferentes personagens que, em suas vivências, mostram um mundo complexo, cheio de dife rentes interpretações. Há vários tipos de romance, como o regionalista (o lugar onde a narrativa se desenrola é central; o autor deseja mostrar ao mundo a particularidade desse pedaço de mundo), de ação (centrado nas ações do protagonista, que vive uma trama complexa) e psicológico (focado na consciência individual dos personagens), entre outros.

Além de ter uma narrativa longa com vários conflitos, o romance apresenta outras características: Tempo – A trama se desenvolve em um determinado período de tempo, que pode ser linear ou não linear, objetivo ou subjetivo.

Em Pedro e Inês de Castro – Uma história de amor e guerra, a história começa no ano de 1330 e termina em 1368. Para facilitar a compreensão do avanço do tempo, quando necessário o início do capítulo traz o ano correspondente aos eventos narrados. A

245 Pedro e Inês de Castro e particularidades que não caberiam em um livro de História comum. Os romances históricos, como ocorre com Pedro e Inês de Castro – Uma história de amor e guerra, conquistam seus leito res exatamente por essa possibilidade de enxergar um passado de maneira precisa, mas também repleta de encanto. Ao dar carne e sangue a personalidades históricas, o romance histórico permite ao leitor conhecer o dia a dia e os sentimentos dos personagens, que adquirem materialidade e se tornam, aos olhos dos leitores, gente como a gente.

Um exemplo está na página 67: “O confronto entre os dois reinos prosseguiu com novos ataques e contra-ataques. Sem querer, entregou uma excelente oportunidade a Yusuf, o emir de Granada, vizinho de Castela e o único reino mouro ainda existente na Península Ibérica após a reto mada cristã. Ele aproveitou o caos, pediu reforços a seus aliados muçulmanos do norte da África e preparou-se para assumir o controle sobre o Estreito de Gibraltar, parte de uma rota marí tima imprescindível para o comércio da Europa. Seria também o momento perfeito para recuperar territórios sob o domínio castelhano e português.”

Conhecer Peres, uma talentosa escultora, faz com que ele dire cione sua fúria para os alvos certos: quem tramou a morte de Inês e a executou. Enquanto essa linha temporal avança a fim de narrar os desdobramentos de tal decisão, a segunda linha, também narrada de modo linear e objetivo, apresenta os acontecimentos do passado que levaram Pedro à vingança. Mostra sua infância, quando conhece Inês, e segue por sua adolescência e juventude. As duas linhas se unem na conversa em que Pedro por fim revela tudo a Peres, ocorrida em 1357. A partir desse ponto, a narrativa segue uma única linha temporal, centrando-se mais nos segundos protagonistas, a fictícia Peres e o melhor amigo de

Neste livro, a história se passa nos reinos de Portugal, Castela e Granada do século XIV, respeitando as divisões territoriais do período. Para facilitar, quando necessário o início do capítulo traz a localização onde os eventos acontecem. A mudança de espaço também pode ser mostrada em meio à narrativa para fins de contextualização.

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Pedro e Inês de Castro passagem do tempo também pode ser mostrada em meio à narra tiva para fins de contextualização.

Enredo – O romance conta uma história, apresentada a partir de um encadeamento de eventos, com ocorrência de situações tanto principais como paralelas e secundárias.

Espaço – O romance é ambientado em determinado espaço, onde as ações acontecem.

Neste livro, trabalhou-se com duas linhas temporais: uma que começa em 1330, na infância dos protagonistas, e outra que se inicia em 1355, ao final do desvario de Pedro após a perda de Inês. As duas linhas vão se intercalando, cada qual com os próprios eventos, até se tornar uma linha temporal única. Na primeira linha, narrada de modo linear e objetivo, o leitor conhece Pedro, o príncipe que, atormentado pela dor e pelo desespero, com seus homens ataca e destrói os vilarejos por onde passa.

Na primeira linha temporal de Pedro e Inês de Castro – Uma história de amor e guerra, os protagonistas são Pedro e Inês de Castro. Já os antagonistas principais são o rei Afonso IV e o nobre Diogo Pacheco. Na segunda linha, Pedro perde parte do protago nismo para Lobato. No lugar de Inês, entra Peres. Diogo Pacheco permanece como o antagonista a ser vencido. Outro ponto importante é o narrador, que é quem leva o leitor pelos caminhos apresentados pelo autor. É por seu ângulo de visão, ponto de vista, foco ou enfoque que se conhece a trama. Ou seja, o narrador é quem conta a história. Em Pedro e Inês de Castro – Uma história de amor e guerra, temos o chamado narrador onisciente. Embora não seja um perso nagem, ele narra como se soubesse de tudo o que acontece, como se pairasse acima de tudo e tudo visse, o que inclui também saber tudo sobre os pensamentos e os sentimentos dos personagens.

Um exemplo está na página 22: “Pedro sentiu que o pai o analisava de cima a baixo, criticando sua aparência. Para completar, o rosto do menino estava verme lho devido à correria e o suor escorria da testa, do pescoço e das axilas. E tudo ficaria ainda pior quando tivesse de dizer algumas palavras de boas-vindas aos recém-chegados. Iria gaguejar, com certeza. Novamente Afonso passaria vergonha por culpa do filho.”

247 Pedro e Inês de Castro Pedro, Estêvão Lobato, na transformação de Inês em rainha, na construção dos famosos túmulos de Alcobaça (onde se encontram os restos mortais de Pedro e Inês) e, finalmente, na execução da vingança. Personagens – Classificados de acordo com sua complexidade em planos ou esféricos, eles se relacionam a partir da trama princi pal. Seres construídos por palavras ganham características físicas, sociais e psicológicas.

Um exemplo está na página 152-153: “O combate à peste negra era o principal assunto da reunião. Na véspera, uma sinagoga fora depredada e quase vítima de um incêndio criminoso por parte da maioria cristã. Em alguns vila rejos mais distantes, os judeus eram executados pela população, que os considerava responsáveis por evocar a doença em seus rituais desconhecidos. Os muçulmanos também enfrentavam a mesma acusação. Pedro, gaguejando, sugeriu medidas urgentes para protegê-los, como construir muros ao redor dos seus bairros.” Com a Antropologia, a trama possibilita a análise comporta mental do europeu cristão do século XIV na Península Ibérica, seus costumes, crenças e cultura. Assim como ocorre com a Sociologia, este livro oferece elementos para um bom diálogo com a Antropologia. Um exemplo está na página 32: “Combatida pela Igreja, a bruxaria integrava o cotidiano do povo, embora provocasse temor na maioria. Eram as mulheres, mesmo

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Pedro e Inês de Castro Como literatura, o livro dialoga com outras áreas de conhecimento, como a Sociologia, por exemplo. Ele mostra como se organizava e funcionava a sociedade medieval no século XIV na Península Ibérica, suas leis, instituições e relações de poder, o que viabiliza uma compa ração interessante com o mundo atual e sua dinâmica.

Pedro e Inês de Castro – Uma história de amor e guerra leva ao jovem leitor temas ligados a questões sociais e culturais, valo res e eventos históricos, entre outros, dessa forma incentivando o espírito crítico, a conscientização e a contextualização de assuntos importantes por intermédio de tramas que misturam elementos como aventura, humor, ação e romance, de linguagem acessível à faixa etária. A trama incentiva o leitor a se colocar no lugar do outro, o personagem, a conhecer seu ponto de vista e suas motivações. Ao transformar o leitor em participante da história contada, por inter médio da leitura e da interpretação do texto segundo a sua vivência, a trama proporciona a visão de outras realidades, da compreensão do passado para se entender o presente e projetar o futuro. Incen tiva ainda a imaginação, a criatividade, auxilia na ampliação de vocabulário e na construção de conhecimentos variados.

Outros diálogos possíveis podem ser feitos com a História, considerando os fatos utilizados no desenvolvimento do enredo, com a Geografia, na dinâmica da ocupação territorial e sua rela ção com o ser humano na disputa mostrada na trama, e com a Arte, pois parte da segunda linha temporal é dedicada ao planeja mento dos túmulos de Alcobaça, uma das principais obras-primas da escultura tumular portuguesa. Na internet, encontram-se várias fotos e vídeos com os detalhes impressionantes dessa arte inova dora para o período.

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Pedro e Inês de Castro as mais ricas, que costumavam recorrer aos feitiços das bruxas para conseguir um marido […]”

Existe também a presença de questões atemporais nas entre linhas da obra, como diversidade, desigualdade social, justiça e o papel da mulher na sociedade, aspectos que fornecem elemen tos para uma reflexão mais do que necessária sobre a atualidade.

Afinal, como defendeu o antropólogo e filósofo contemporâ neo Edgar Morin, a literatura nos oferece antenas para entrar no mundo.

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Pedro e Inês de Castro – Uma história de amor e guer ra narra a linda história de amor de Inês de Castro com o jovem príncipe Pedro, herdeiro do trono português. Situada na era medieval ibérica, a relação entre esses dois personagens históricos rendeu muita especulação e lendas, que atravessaram as barreiras do tempo e da morte, instituindo-se como uma das mais férteis narra tivas já produzidas na literatura. Nesta edição, contada especialmente para o público jovem, o leitor encon trará um misto de ficção e realidade bem equilibrado com o estilo fluido e agradável da autora. ISBN 978-85-54179-13-7

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