A Sirene - Ed. 84 (Abril/2023)

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Em Camargos, o restaurante da Vaninha sobreviveu ao rompimento de Fundão e à pandemia; agora, vive a incerteza do que está por vir

SIRENE
PARA NÃO ESQUECER | Ano 8 - Edição nº 84- Abril de 2023 | Distribuição gratuita A

CONVIVER: CUIDADOS COM A SAÚDE

E de situações complexas e graves, como é o caso do rompimento da barragem de Fundão, pode haver impactos na saúde, principalmente quando esses acontecimentos são inesperados e trazem dor. Esteja atento(a) ao seu modo de sentir. Observe suas emoções: preocupação, ansiedade, tristeza, angústia. Há diversas formas de se cuidar e é importante que cada pessoa tenha acesso às mais indicadas. Há cuidados para quem está adoecido(a) ou em sofrimento, para prevenir que alguma situação se agrave, ou mesmo para cultivar o bem-estar e se manter saudável. O cuidado pode ser ofertado de forma individualizada ou com outras pessoas, que nos dão força e nos ajudam a nos sentir melhor. Nós, do Conviver, estamos disponíveis para ofertar diferentes formas de cuidados às pessoas atingidas e convidamos a todos(as) para cuidarem da sua saúde.

O que é o Conviver?

Equipe da saúde mental e cuidado psicossocial criada em janeiro de 2016 para atender às pessoas atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão em Mariana.

Quais profissionais compõem o Conviver?

Assistente social, educadora social, psicóloga(o), psiquiatra e terapeuta ocupacional.

Algumas das nossas atividades:

Ações de promoção da saúde, como: oficinas e grupos terapêuticos; atendimentos individuais; visitas domiciliares. Articulação com os serviços da rede municipal.

Como entrar em contato?

Nosso endereço: Rua Genoveva Leão Lemos, 25A (próximo à Previne)

WhatsApp: (31)99685-9945

Telefone: (31)3557-4222

ATENÇÃO!

Não assine nada

Em caso de dúvidas sobre o conteúdo, conte com a ajuda de um advogado ou qualquer outro especialista.

Se te pedirem para assinar qualquer documento, procure o Ministério Público ou a Comissão dos Atingidos.

EXPEDIENTE

AUDIÊNCIAS DISCUTEM QUESTÕES

DAS PESSOAS ATINGIDAS POR BARRAGENS

21 de março e 10 de abril

Dia 21 de março, uma audiência pública para discutir questões de saúde das pessoas atingidas pelas barragens de Brumadinho e de Fundão foi realizada pela Câmara dos Deputados, com a presença de representantes de Assessorias Técnicas Independentes (ATIs), pessoas atingidas, pesquisadores(as), equipe do Ministério da Saúde e deputados(as).

Dia 10 de abril, às 17h, ocorrerá em Belo Horizonte uma reunião com as instituições de justiça para a definição dos cortes nas ATIs e para um debate público sobre o tema das pessoas atingidas. Leia a notícia completa em nosso site.

AÇÃO DE DESPEJO CONTRA CENTRO DE MANIFESTAÇÕES POPULARES NO ESPÍRITO SANTO

Por meio de ação judicial junto à Secretaria do Patrimônio da União (SPU), a prefeitura de Conceição da Barra-ES solicita o despejo da sede da Academia de Letras e Arte da cidade e do Instituto Tambor de Raiz, ambos abrigados no mesmo endereço. O espaço de inclusão social proporciona a preservação da cultura afro-brasileira com jovens e adultos(as), entre outras atividades. O Jornal A SIRENE repudia toda e qualquer manifestação contrária à nossa ancestralidade e reitera o compromisso com a cultura, a arte e toda forma de expressão popular.

Escreva para: jornalasirene@gmail.com

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BEATRIZ CERQUEIRA VISITA TERRITÓRIOS ATINGIDOS EM MARIANA 1

de abril

A deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT) esteve com comunidades atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão em Mariana, no sábado 1 de abril. A parlamentar ouviu relatos de violações de direitos por parte da Renova e das mineradoras responsáveis pelo crime-desastre (Samarco, Vale e BHP). Entre os problemas estão o fornecimento de alimentação dos animais, o reconhecimento de novos núcleos familiares e a reparação dos modos de vida destruídos em 2015. Cerqueira se comprometeu a abraçar a luta junto com as pessoas atingidas em seu mandato na Assembleia Legislativa de Minas Gerais.

Agradecemos a todos e todas que apoiaram a campanha de financiamento coletivo do Jornal A SIRENE e fizeram esta edição acontecer, especialmente, Ana Elisa Novais, Bruno Milanez, Camila, Cristina de Oliveira Maia, Daniel Rondinelli, Elke Beatriz Felix Pena, Geraldo Martins, Jussara Jéssica Pereira, Virgínia Buarque. Também manifestamos nossa gratidão a todos e todas que colaboraram anonimamente.

Para ajudar a manter o jornal, acesse: https://evoe.cc/jornalasirene

Ou doe pelo PIX: 33.417.899/0001-00.

Realização: Atingidos e atingidas pela Barragem de Fundão, UFOP | Conselho Editorial: André Luís Carvalho, Ellen Barros, Elodia Lebourg, Expedito Lucas da Silva (Kaé), Letícia Oliveira, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio) | Editor-chefe: Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio) | Jornalista Responsável: Karina Gomes Barbosa | Diagramação: Laura Lanna | Reportagem e Fotografia: André Luís Carvalho, Crislen Machado, Marcella Torres, Maria Eduarda Alves Valgas, Sérgio Fábio do Carmo (Papagaio), Stephanie Locker, Tatiane Análio | Revisão: Elodia Lebourg | Agradecimentos: Carol Saraiva, Pâmella Magalhães e Mateus Paiva Chagas Carneiro | Apoio: Cáritas MG, Programa de extensão Sujeitos de suas histórias (UFOP), Curso de Jornalismo da UFOP, Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da UFOP, Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF) e Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) | Foto de capa: André Luís Carvalho | Fontes de recursos: Campanha de Financiamento Coletivo - Apoie o Jornal A Sirene. ADUFOP - Associação dos Docentes da UFOP. CABF.

Mariana - MG
PARA NÃO ESQUECER Abril de 2023
A SIRENE 2
AGRADECIMENTO ESPECIAL

Opinião

Papo de Cumadres: a cruz vazia

Concebida e Clemilda se emocionam ao ver no salão paroquial da cidade de Barra Longa a cruz vazia, sem o cristo crucificado e, com apenas um olhar de uma para a outra, elas dizem sem falar, que sabem onde Jesus foi morar.

– Clemilda minha fia, só docê mi oiá dispois de pra cruz vazia ter oiadu, eu possu compriendê pelas lágrima du seu oiu a rolá, que assim comu eu, nois duas sabemu onde Jesus foi morá.

– E lá de cima, cumadre minina de Deus, a sua ressurreição é a força que nois tem, pra nois duas, uma locomotiva só, puxando este trem, que tá pesadu prá daná, mas u fiu do Altissimu é força e combustível pra nois esta carga agüentá.

– U que me dá força é lembrá que a páscoa está a se aproximar, que era antes du nascimentu de Cristu, um geitu de festeijá a libertação du povo hebreu das garras du faraó, 400 anus de escravidão manejada contra us fius de Jacó.

– É issu mesmu cumadre, dispois que pregaru Jesus na cruz, mais um fiu de Jacó, o Soberano em nome de toda humanidade tornou libertá, pois Jesus descende da tribu de Judá, que de Leão o povo passou a chamar. Judá, um dos doze fius de Jacó irmãos de Diná, a única fia de Jacó que a bíblia achou de citar, que para o Egito foram um dia povoá.

– Ah! Cumadre, issu tudu me faz alembrá dus 388 anus de iscravidão que us mais de, 4.8 milhão dus fius da África trazidu pra cá tiveru que agüenta, e pra completá só de Ouro Preto a Barra Longa 163 mil pretos e pretas nu trabaio escravu em função du garimpo de ouro e pedras preciosas pudia se contá, para o sistema euro cristão e a monarquia enricá, e mesmu dispois da Lei Áurea, essa terra roubada dus indígenas continua us fius humilde du ceus a escravizá.

– Agora arrumaru uma palavre difíci de falá pamode a escravidão ês suavizá, uma tar de análoga, que pra mim, arrumá pra lá, é só u mesmu jeitu doentio de u pobre escravizar. Até o vinho que u sangue libertador de Jesus Cristo, que sempre selviu

pra representá, foi uma arma nas mãos imunda de Satanás, prá mais uma vez u povo sufridu escravizar.

– Mas nu dumingo de páscoa devemos nossas mágoas lavar.

– Sim, cumadre, irmã e cumpanheira, mais sem largar a luta derradeira, contra a Renova, as mineradoras, as fazediras de vinho e toda e quarquer forma de o povo de Deus escravizar, pois a páscoa significa libertá.

Foto: Sérgio Papagaio

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Samarco planeja futuro sem reparar danos do crime de 2015

No dia 28 de março foi realizada uma audiência pública no Colégio Providência de Mariana para discutir o Licenciamento do Projeto Longo Prazo (processo SLA n.º 3.858/2022) da Samarco. No dia 27 houve reunião similar em Ouro Preto. As duas foram transmitidas no canal do YouTube da Samarco.

Apenas na parte final da reunião, os(as) participantes inscritos(as) puderam expressar opiniões e dúvidas relacionadas aos pontos apresentados pela empresa. Pessoas atingidas presentes de Bento Rodrigues, Camargos e Antônio Pereira, além de trabalhadores(as) da mineração, demonstraram indignação com os planos de futuro da mineradora sem ter, ainda, reparado, ao lado da Vale e da BHP, os danos do crime de 2015. Enquanto isso, as empresas usam a Renova como escudo. Para piorar, a comunidade de Bento Rodrigues questiona a deposição de rejeitos, prevista no projeto para ocorrer no território de origem. Outro ponto de reclamação é que muitas perguntas não foram respondidas pela mineradora, como a questão da qualidade do ar. O não reconhecimento de grupos atingidos por parte da mineradora e da Renova também foi ressaltado pelas comunidades.

A Samarco teve 45 minutos para expor o projeto. O objetivo da empresa seria promover uma mineração supostamente inclusiva, sustentável e mais segura, e voltar a trabalhar com 100% da capacidade estrutural da empresa até 2028. A consultoria externa independente da mineradora, Brandt, apresentou o Estudo de Impactos Ambientais (EIA) caso o projeto seja implantado. Isso porque, além das estruturas já existentes, mais oito estão à espera de serem licenciadas.

“O que eu consigo ver e perceber de tudo isso é que, embora eles disseram que aprenderam com o crime do dia 5, eles não aprenderam. A conversa, o papo, é a mesma coisa. Eles vêm com a mesma lábia de antes do crime, da mesma forma que agiam com a gente, que eles conversavam com a gente em todas as reuniões, eles estão agindo da mesma forma. Então, pra mim, tá mais claro que eles não aprenderam nada. E, simplesmente, não vão aprender porque não querem aprender, sabe?”

Mônica dos Santos, moradora de Bento Rodrigues “Infelizmente, a lama, ela vai perpetuar por muito tempo porque sequer tiraram o rejeito e agora vão levar mais rejeito lá pra nossa região. Desculpe os que discordam, mas Bento Rodrigues não era Bento Rodrigues. Bento Rodrigues é. Porque lá está a nossa memória, a nossa cultura e a nossa história.”

Mauro Marcos da Silva, morador de Bento Rodrigues

“Eu mudei do Pereira porque eu tenho uma filha de 16 anos. Eu sou pai sozinho, eu cuido da minha filha sozinho. Eu tirei minha filha de dentro de Antônio Pereira pra ela não ser estuprada pelos caras que ficavam na porta da minha casa, onde era minha oficina. Eu tirei minha oficina de lá, tive que trazer minha oficina pra Mariana.”

Adílio Sobreira, morador de Antônio Pereira

“Antônio Pereira, pra eles, é como se não fosse nada. A gente conta com o Ministério Público pra gente ter um retorno. Porque, até então, 45 anos de Samarco, 45 anos de promessa. É o que eu falei, falo e falo todos os dias da minha vida. Cê vai em Antônio Pereira, não tem nada de investimento da Samarco dentro de Antônio Pereira. Em Antônio Pereira, você não vê nada, só exploração. A riqueza deles sai de dentro de Antônio Pereira. Então, assim, que a gente venha ter uma resposta sobre essa reunião aí, né? Deus abençoe que esse projeto não venha a acontecer. Eu torço pra isso.”

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A pacata Camargos, reconhecida pela qualidade de vida e potencial socioambiental, vive tensão sobre o que é e o que será a comunidade depois da chegada da mineradora Cedro e da ampliação da Samarco, a pleno vapor. Marco da Estrada Real, a comunidade não sabe o que irá mudar na rotina Fotos: André Carvalho Por Adílio Sobreira, Mauro Marcos da Silva, Mônica dos Santos, Natália Aparecida Silva, Sérgio Alvarenga de Moura e Silvania Aparecida de Souza Coelho Com o apoio de Marcella Torres Natália Aparecida Silva, moradora de Antônio Pereira

Abril de 2023

“Da minha parte, não foi bem reclamação, né? Eu fiz um apelo a eles de daqui pra frente, porque, se a gente for pedir o que foi passado, fica até meio difícil, né? Eu não consegui entender muito bem as pessoas, essas pessoas que vão nessas audiências. Se a gente não pensar no coletivo, eu acho que as coisas não vão pra frente, né? Sobre nossas respostas, eu achei que não foi esclarecido, né? Nada que perguntou foi explicado, nem pela Brandt, nem pela Samarco.”

Silvania Aparecida de Souza Coelho, vice-presidente da Associação de Moradores de Camargos

“E por falar em Fundação Renova, no nosso entendimento e da maioria aqui presente, ela deveria ser varrida da face da Terra. As suas atividades devem ser transferidas diretamente pra Samarco.”

Sérgio Alvarenga de Moura, funcionário da Samarco e gestor do Sindicato Metabase de Mariana

Parte das ruínas de Bento Rodrigues, trajeto da Estrada Real, continuam encobertas pelo Dique S4, que deveria ter sido descontinuado pela Samarco. Ao contrário, a mineradora apaga parte da memória da comunidade

“A gente não sente uma força necessária do Ministério Público pra tá auxiliando a gente nisso. É a pior parte que a gente sente de uma audiência dessa. É saber que uma audiência pública, ela só é dada, de um modo enganatório, pra enganar o povo, sabe? Então, assim, as considerações finais nossas acabam sendo que, se tiver essa audiência que a gente pediu em Antônio Pereira, a gente vai se sentir confiante e mais confortável. Se não tiver, a gente simplesmente vai entender que o projeto já tá aprovado, independente de ter pago a dívida, independente de ter reconhecido Antônio Pereira ou não. A fala nossa, como sociedade, já não tá valendo mais nada.”

Adílio Sobreira, morador de Antônio Pereira

“Daqui uns anos, talvez nem anos, talvez até um espaço curto de tempo, a gente vai tá conversando sobre o mesmo assunto. Sobre famílias que tiveram que sair de suas propriedades da pior forma. E a gente vai tá discutindo reparação, a gente vai tá discutindo a não punição. Só vai renovando, né? Como é que a Fundação Renova foi constituída exatamente pra isso, pra ir renovando o crime a cada dia.”

Mônica dos Santos, atingida de Bento Rodrigues “Com relação ao aparelho da qualidade do ar, até já questionei com o pessoal da Samarco também. O que me assustou foi que ele disse que o aparelho estava instalado na Rua do Cruzeiro, número 200. Esse número é meu, é minha casa. Eu sou dona desse lote, né? Aí ele veio falar que foi em 2018. Realmente, eles colocaram um aparelho aqui em 2018, ficou cinco ou seis dias e tirou. Só que a gente não tá falando do ar de 2018, está falando do ar agora. O que será de nós com essa correia instalada?”

Silvania Aparecida de Souza Coelho, vice-presidente da Associação de Camargos

Mariana - MG A SIRENE 5 PARA NÃO ESQUECER
Apesar das dificuldades com transporte relatadas por comunidades presentes, representantes de Antônio Pereira, Bento, Camargos, entre outras, levaram muitas questões não respondidas Adílio Sobreira Mônica dos Santos Silvania, conhecida como Vaninha

“Ninguém precisa de mais um papel assinado, o que a gente quer ver são casas prontas”

“Quando falaram aqui que tem 41 casas prontas, falaram uma grande mentira. Aqui não tem 41 casas prontas, porque toda casa de Paracatu está sendo mexida ainda, principalmente a minha. Eu queria que a Renova usasse o projeto conceitual nosso, porque eles têm esse projeto, mas passam outro para as contratadas. Nós não estamos pedindo nada que não seja nosso direito não, a gente tá pedindo o que foi aprovado no projeto e levado à prefeitura. Essa é a única coisa que estamos pedindo há sete anos, quase oito.

Ocorreu, às 15h do último dia 24 de março, no reassentamento de Paracatu de Baixo, uma cerimônia para assinatura do termo de compromisso para entrega das obras de reassentamento do subdistrito, entre a Prefeitura de Mariana e a Renova. A ação contou com a participação de muitos veículos de imprensa, autoridades locais, funcionários terceirizados e quase nenhuma pessoa atingida pelo rompimento da barragem de Fundão. Os poucos moradores e as poucas moradoras presentes, mesmo após a apresentação, não entenderam a real necessidade da mobilização. Outras pessoas atingidas aproveitaram a oportunidade para questionar sobre a entrega das casas, sobre a geração de empregos e cobrar o cumprimento dos acordos pré-estabelecidos e dos novos.

Não pensem que, assinando este termo de compromisso aqui, vai acabar nossa luta, não vai acabar não. Agora temos que ficar mais fortes ainda para este termo de compromisso não ficar só no papel. Depois que entregar esse reassentamento aqui, queira Deus que tudo que foi falado aqui seja cumprido. Eu, como representante da comunidade, preciso falar que aqui não vai ter serviço. Deem uma oportunidade para as pessoas da comunidade, tem desde enfermeira à faxineira oferecendo um trabalho digno. Dê oportunidade às pessoas daqui, não precisa trazer gente de fora. Esse cartão que a Renova paga pra gente nos tirou muita coisa. Hoje, pra gente conseguir um emprego em Mariana, é muito difícil, porque recebe esse cartão da Renova. A gente não devia tá aqui implorando nada. Se tivesse nos deixado nas nossas casas de pau a pique, estaríamos mais felizes. Qualquer um aqui, se sonhasse em passar pelo que passamos no dia 5 de novembro de 2015, não trocaria a vida que tinha por essa.”

Mariana - MG A SIRENE 6 PARA NÃO ESQUECER Abril de 2023
Por Romeu Geraldo de Oliveira, Zé Pascoal, Cintia Silva e Anderson Jesus de Paula Com o apoio de Crislen Machado
Romeu Geraldo de Oliveira, morador de Paracatu de Baixo
Nós não estamos pedindo nada que não seja nosso direito não, a gente tá pedindo o que foi aprovado no projeto e levado à prefeitura".
Romeu Geraldo de Oliveira

“Eles não foram na nossa casa avisar, só chamaram por mensagem. Essa reunião eu escutei, mas tá confuso. Tá faltando muita coisa ainda nas casas. Não entendi direito o que falaram, só sei que falta muita coisa ainda. Minha casa, graças a Deus, está quase pronta, só que precisa mexer no terreno, porque as medidas não estão batendo com o que eu perdi lá. Meu terreno lá é muito maior do que o que arrumaram pra mim aqui, mas eu vou arrumar um advogado pra resolver isso com a Renova.”

Zé Pascoal, morador de Paracatu de Baixo

“O que é esse termo de compromisso? Não sei. Chegou um convite pelo WhatsApp sobre essa reunião, e apenas isso. Não sei o que significa, tenho vontade de saber e, se eu tivesse a coragem de perguntar, eu perguntava, porque falaram e eu não entendi muita coisa. Eu acho que essa reunião é só pra aparecer, não muda nada. Mais de sete anos de luta não se resumem a isso. Olha o tanto de imprensa que tem pra mostrar, mas, na prática, não muda. Ninguém precisa de mais um papel assinado, o que a gente quer ver são casas prontas, as pessoas voltando para suas casas. Numa sexta-feira, três da tarde, é complicado contar com a presença dos moradores de Paracatu, o povo trabalha, mas isso é só pra aparecer, fazer média, mídia. Para o reassentamento, não muda nada, o que muda são os trabalhadores lá fora trabalhando, as casas sendo construídas, apesar de que muita casa nem foi iniciada.”

Cíntia Silva, moradora de Paracatu de Baixo

“Eu acho que esse termo de compromisso tem que ser colocado em prática, que não fique engavetado. A gente só pede que tenha respeito com nossa comunidade, que tudo que foi falado ali agora seja verdade.

Os modos de vida, para serem recuperados, vai ser com muita luta, muito trabalho. A realidade aqui é bem diferente da realidade do Paracatu de origem. Aqui a gente vai ter que aprender igual criança aprende.

Não adianta você ter uma casa de 200 metros quadrados, quando a de 100, que você construiu, te faz mais feliz. A adaptação aqui não vai ser fácil, mas vamos ter que adaptar porque o único lugar que a gente tem é aqui. Até hoje, a Renova não se manifestou sobre geração de empregos. Aqui vai ter bens públicos, espaços que vão ser ocupados por profissionais, não custa aproveitar a mão de obra local, de dentro de Paracatu, pra comunidade aqui não ficar a mercê, sem serviço. Tem muita gente qualificada aqui.”

Romeu Geraldo de Oliveira, morador de Paracatu de Baixo

“Nós tivemos duas reuniões para eles tentarem explicar pra gente qual era o efeito prático desse evento. Houve muita explicação teórica, disseram que era algo mais simbólico. Deu a entender, nessas reuniões, que seria uma coisa mais sobre divulgação dos resultados, aquela coisa simbólica para critério de marketing da empresa. A dúvida nossa era se estava entregando à comunidade sem concluir as obras, qual era o prazo legal e se contaria a partir de hoje, mas, segundo eles, isso só seria simbólico. Pediram pra nós repassarmos isso para a comunidade, pedir pra sair numa sexta-feira à tarde, largar serviço para participar de uma coisa que não é real, que não vai mudar nada amanhã. Eu não vou voltar pra minha casa a partir disso. Esse foi um evento para aplaudir discurso e autoridades. O único efeito prático de resultado que vai ter desse evento são as publicações nos jornais grandes. Se a comunidade não entende, ela não abraça. Por isso que teve essa dificuldade de presença da comunidade nesse evento, porque não era um evento para comunidade, era um evento para as autoridades. Isso aqui só serviu pra fornecer material para o marketing, nesse sentido, eu acho que eles alcançaram os objetivos.”

Canais de drenagem novos mostram fragilidade e representam risco às construções próximas. Para Anderson, sua casa, classificada pela Renova como "parcialmente pronta" e ainda não entregue, já está em área de risco, pois não há explicação da organização para a imensa trinca

Fotos: André Carvalho

Mariana - MG A SIRENE 7 PARA NÃO ESQUECER
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Abril de
Anderson Jesus de Paula, morador de Paracatu de Baixo Zé Pascoal Cíntia Silva Anderson Jesus de Paula

Comunidades atingidas pela Vale podem ficar

do Paraopeba

Relativamente novas no Brasil, as Assessorias Técnicas Independentes (ATIs) são uma vitória popular na luta pela equiparação nos processos de reparação de desastres com grandes impactos socioambientais. Em Minas Gerais, desde o começo de 2021, elas são direitos das pessoas atingidas, de acordo com a Política Estadual de Pessoas Atingidas por Barragens (PEAB).

Mesmo assim, a atuação dessas organizações ainda é marcada por uma série de inseguranças. A mais recente foi a notícia do dia 8 de março, que definiu o corte de 48% dos recursos destinados para as ATIs. Elas são hoje responsáveis pelo amparo técnico dos 26 municípios diretamente prejudicados pela Vale, no rompimento da barragem em Brumadinho. São elas a Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas), o Núcleo de Assessoria às Comunidades Atingidas por Barragens (Nacab) e o Instituto Guaicuy. Com a readaptação do orçamento, as organizações teriam de reduzir drasticamente o número de profissionais e o atendimento às pessoas atingidas.

A decisão diz respeito ao orçamento calculado nos planos de trabalhos de um acordo firmado há pouco mais de dois anos entre o Poder Público e a mineradora, válido para o primeiro semestre de 2023. Vale lembrar que o acordo foi fechado em R$ 37,69 bilhões, quantia a ser investida na reparação socioambiental e socioeconômica dos danos coletivos e difusos das comunidades e dos danos causados ao estado de Minas Gerais. A contratação das assessorias técnicas entra nesse projeto, assim como a admissão de uma Coordenação Metodológica e Finalística e de uma auditoria para acompanharem os trabalhos das ATIs. No total, são R$ 700 milhões previstos para as estruturas de apoio no processo de reparação, ou seja, 1,86% do valor total destinado ao acordo.

Como justificativa para o corte, as Instituições de Justiça (IJs) alegaram que a redução foi realizada diante do limite desses R$ 700 milhões, mas não esclareceram quanto dessa quantia seria, de fato, destinada ao trabalho das ATIs para apoio à implementação do acordo. Por isso, as assessorias solicitaram às IJs, em ofício enviado no dia 16 de março, a definição do teto global disponível para os três anos de trabalho.

“Cada passo dado pelas assessorias é devidamente aprovado, tanto pelas pessoas atingidas quanto pelas Instituições de Justiça e auditorias, em busca de um trabalho transparente. Quando chega uma notícia de corte, é um solavanco que paralisa todos os processos, e deixa as comunidades com a possibilidade de mais um

direito violado: o direito de participar da própria trajetória, de decisões que são sobre a vida delas, pois foram elas a terem realidades modificadas por um acontecimento grave como o rompimento de uma barragem de mineração”, diz Marcus Vinicius Polignano, diretor do Guaicuy. Ele também pontua a importância da transparência por parte do Poder Público sobre o dinheiro do acordo destinado aos trabalhos das assessorias técnicas. “Tanto as pessoas atingidas como a sociedade civil precisam saber e entender para onde está indo essa verba. Diz respeito à vida delas”, completa.

Kleber Castelar, de Novilha Brava, comunidade de Pompéu, foi uma das pessoas atingidas pela Vale que se manifestou com indignação sobre a possível paralisação dos trabalhos das ATIs. “Há quatro anos estamos dedicando tempo e força para conseguir reverter a situação de nossos territórios. As assessorias nos ajudam com análises ambientais, com acolhimento, com informações que muitas vezes não chegam pra gente de um jeito fácil, nos dando a chance de entender melhor o processo na Justiça, nossos direitos, nossas possibilidades. Por que vão tirar isso da gente?”

Dentre as atividades de uma ATI, estão o diagnóstico de danos socioambientais, econômicos e de saúde, o acolhimento psicossocial, o apoio jurídico para esclarecimento de dúvidas e informações do processo, a emissão de pareceres técnicos e legais para as IJs e o acompanhamento do processo de reparação integral. “Todos esses trabalhos têm como objetivo algo de extrema importância: a participação informada das pessoas atingidas”, explica Polignano.

A escolha de qual entidade irá executar o trabalho nas comunidades prejudicadas, com a colaboração de uma equipe multidisciplinar, é feita por meio de uma votação direta das pessoas atingidas. Depois, a organização eleita deve passar por uma série de procedimentos jurídicos e burocráticos, como a comprovação de experiência na área e de independência em relação às empresas causadoras do dano. Em seguida, é hora de estabelecer diálogos com as comunidades para a construção de um plano de trabalho capaz de atender às necessidades relativas aos danos vivenciados por elas.

Em um estado onde os desastres-crimes se tornam cada vez mais frequentes, tendo em vista casos como os rompimentos das barragens da Samarco, Vale e BHP, em Mariana e da Vale, em Brumadinho, as ATIs buscam diminuir o desequilíbrio de poder entre grandes empreendimentos predatórios e as milhares de pessoas

que sofrem as consequências de suas ações. Essa desigualdade entre os envolvidos acontece tanto no acesso e no entendimento das informações técnicas e jurídicas, quanto na participação ativa no debate público, movimentações importantes para decidir o rumo da vida das milhares de pessoas atingidas em centenas de comunidades brasileiras.

Fórum com as pessoas atingidas

Para repassar a informação às pessoas atingidas de Curvelo, Pompéu e comunidades da Represa de Três Marias e do Rio São Francisco, comunidades onde o Guaicuy presta assessoria técnica, o instituto realizou uma reunião virtual no dia 16 de março. Durante o encontro, diversas perguntas surgiram: “quem vai nos informar?”, “estão querendo nos calar”, “alguém de nós tem condição de arcar com advogado para competir com a Vale?”.

Na tentativa de entender a situação e pensar as possibilidades, as assessorias técnicas estão se mobilizando em busca de respostas, por meio de ofícios encaminhados às IJs. O Guaicuy lançou um manifesto pelo direito à assessoria técnica que, em uma semana, chegou a mais de 4 mil assinaturas.

“É importante também que a sociedade civil se envolva nesse debate. Estamos em Minas Gerais, onde a mineração se faz presente das mais diversas formas. Precisamos, como cidadãos, impedir que esse modelo siga matando e que todo mundo que já sentiu na pele as consequências violentas dele tenha direito ao acesso à água, à saúde, ao rio, aos seus modos de vida. Não podemos perder isso de vista, porque isso é o básico”, finaliza Polignano.

Mariana - MG A SIRENE 8 PARA NÃO ESQUECER Abril de 2023
Decisão determinou corte de 48% de recursos para o primeiro semestre sem assessorias técnicas na Bacia
Fotos: Daniela Paoliello

Duplamente atingidas

Em 8 de março é celebrado o Dia Internacional da Mulher. Apesar da romantização, essa data é, acima de tudo, política. Cada mulher sofre, de alguma forma, com o machismo enraizado na sociedade. As mulheres vítimas da Samarco, Vale e BHP, além de lutarem contra o patriarcado, lutam por justiça diante de um dos maiores crimes socioambientais que já aconteceram no país. Neste ano, elas se reuniram mais uma vez, por meio do movimento Frente Mineira de Luta das Atingidas e dos Atingidos pela Mineração (FLAMa-MG), na Praça Tiradentes, em Ouro Preto. Durante as mobilizações, as ativistas denunciaram as empresas controladoras de barragens, como é o caso da Vale, da BHP e da Samarco. Os atos também reivindicaram a reparação a todas as vítimas de crimes cometidos por companhias que controlam as barragens no Brasil, além da proteção das pessoas atingidas por eventos relacionados às mudanças climáticas.

“Eu tô na luta pelo direito de todos, de todas as pessoas atingidas. Como hoje é o Dia das Mulheres, nós, mulheres, temos que estar firmes na luta, lutar pelos nossos direitos e, principalmente, pelo fim das mercadorias caras, da conta de luz com o preço muito alto. Então nós temos que lutar por tudo. As mulheres são atingidas de todas as formas. As mulheres atingidas sofrem, muitas vezes, com depressão, sofrem com injustiça, sofrem com carestia… Por isso, nós estamos aqui na luta. A gente vive em luta aqui, a vida inteira. Nós não somos atingidos só por uma coisa, mas por várias coisas. E se nós pararmos com a luta, aí vai ficar pior. Muitas mulheres, muitas famílias foram atingidas pela barragem, mas estão sendo atingidas também de outras formas. A lama destruiu uma parte da comunidade de Gesteira, que é o município de Barra Longa, que está destruído até hoje. Nossas casas não estão prontas, nossa igreja está destruída. Nós sofremos muito com a lama e estamos sofrendo com a poeira, poeira que não vai acabar nunca. Muitas pessoas ficaram com problemas de saúde, tiveram problemas mentais. Então isso são coisas que estão prejudicando, atingindo todas as famílias. E nós precisamos ir à luta, nós não podemos ficar paradas para adquirirmos nossos direitos.”

“A gente tem batalhado. Nós e várias organizações, inclusive a FLAMa, as mulheres de Antônio Pereira. E todos os grupos que se formaram para combater a privatização da água pela Saneouro. Então a gente está nessa batalha pela reafirmação dos nossos direitos. A água é um direito, né? A privatização da Vale, ela veio com discurso de que a Vale não era produtiva, não era lucrativa. E, no entanto, o que está saindo daqui são toneladas e toneladas de minério, e esse dinheiro, que fica boa parte nas mãos de acionistas, acionistas estrangeiros, custa muito caro para as populações locais, porque elas não foram consultadas sobre a questão da mineração. Então a gente não é contra a mineração, porque realmente é um ativo econômico muito importante para a região, mas a gente é contra esse modelo privatista, porque Bento Rodrigues e Brumadinho só comprovam que essas privatizações visam o lucro, e não o atendimento das reais necessidades tanto das mulheres, como dos homens da nossa região. Os empregos são mínimos e precarizados, não há um investimento muito grande por parte da empresa em nada no que toca a todas as organizações da sociedade. Há uma briga judicial inclusive para que eles paguem os seus impostos corretamente para as prefeituras. A população paga triplamente uma coisa que é dela, porque a riqueza está no nosso subsolo. O subsolo é da população, não é do governo A ou X, muito menos de uma pessoa A ou B.”

Tânia de Fátima Arantes, professora, militante do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) e organizadora do movimento Mulheres em Luta

Com o mote: “Mulher, água e energia não são mercadorias”, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) protestou no Dia Internacional da Mulher

Fotos: Tatiane Análio

Mariana - MG A SIRENE 9 PARA NÃO ESQUECER Abril de 2023
Maria das Graças Lima Bento, moradora de Gesteira Por Maria das Graças Lima Bento e Tânia de Fátima Arantes Com o apoio de Tatiane Análio Maria das Graças Lima Bento, moradora de Gesteira, participou da ação pelas mulheres atingidas Tânia de Fátima Arantes denunciou, em sua fala, a privatização das empresas e a objetificação feminina

São José é celebrado em Barra Longa, mas fora de casa

No dia 10 de março, Barra Longa deu início às celebrações a São José. A festa, de extrema importância para a comunidade, foi organizada pelas pastorais e por pessoas voluntárias. A fé tem sido cada vez mais crucial na vida dos(as) barralonguenses, que estão, há cinco anos, sem poder cultuar a crença no padroeiro em sua própria casa. A Igreja Matriz está fechada para reforma pela Renova e cercada de tapumes.

A falta do templo causa sofrimento e descontentamento na comunidade, que precisou usar o salão paroquial para celebrar as festividades nesse mês de março. Isso causou grande desconforto, porque o espaço não comportava a quantidade de pessoas e também pelo calor. A comunidade segue indignada com mais um descaso por parte da Renova à memória das pessoas atingidas. Uma história antiga precisando ser reinventada, uma vez que, além de moradores(as) terem tido suas casas atingidas, São José também teve.

A abertura contou com uma carreata às 17h30 e, depois, com a celebração de uma missa às 19h. Assim foi iniciada a novena, que durou até o dia 18, com a presença de padres de comunidades vizinhas, moradores(as) da cidade e visitantes.

A data oficial de celebrar o padroeiro de Barra Longa foi no domingo, 19 de março. O dia foi repleto de programações que contemplaram de crianças a pessoas idosas. Saindo da frente da Matriz, às 5h, uma caminhada pela cidade abriu as festividades. Em seguida, o padre Thiago Gomes, de Barra Longa, celebrou a missa das 10h, no salão paroquial. Para as crianças, aconteceu um momento com brinquedos e comidas. Também houve um almoço comunitário, em que as famílias foram convidadas a se reunir na provisória casa de São José. O cardápio foi arroz, tutu, macarrão e linguiça. A festa teve ainda a presença de bandas da região, apresentações culturais e homenagens a São José. Para finalizar, às 19h, aconteceu uma procissão e, em seguida, na tenda montada ao lado da Matriz, uma missa foi celebrada pelo padre Marcelo Santiago, de Mariana.

Mariana - MG A SIRENE 10 PARA NÃO ESQUECER Abril de 2023
Preparativos para carreata com a imagem de São José, ao lado da Igreja Matriz, cercada por tapumes Foto: Sérgio Papagaio Por Marcella Torres

Insegurança nos reassentamentos coletivos

Há uma linha contínua entre o rompimento da barragem de Fundão e a construção dos reassentamentos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo. Um risco que se revela, há mais de sete anos, como vulnerabilidade e assume características distintas daquilo que havia antes nas comunidades de origem. Novos atravessamentos diante do que é percebido no momento de execução das etapas conceituais das casas, os fatores de insegurança são evidenciados com o avançar das obras, na distribuição dos terrenos, na materialidade dos projetos e nas novas configurações das vias públicas. Nos reassentamentos, as diferenças podem ser outro nome para a palavra “perigo”.

As comunidades de origem possuíam atributos particulares, mas se assemelhavam em diversos aspectos. No que concerne à sociabilidade, ambas possuíam vida comunitária e relações de vizinhança muito próximas, tradições salvaguardadas por gerações. Os territórios de Bento Rodrigues e de Paracatu de Baixo, hoje soterrados pela lama de rejeitos, possuem uma topografia plana, o que facilitava o contato entre os(as) moradores(as). No outro lado da história estão os reassentamentos, que possuem terrenos montanhosos, com seus grandes taludes entre as casas – obstáculos físicos e visuais para uma vida em comunidade.

Nas etapas de desenvolvimento dos projetos das habitações, muitas realizadas há aproximadamente quatro anos, a promessa foi de entregar um lugar semelhante ao de origem. Por isso, as diferenças são fundamentais para a compreensão do que se estabelece como risco. As ruas das áreas de origem eram menores, projetadas para o tráfego dos veículos locais. Não havia vias de separação e nem mesmo vias de servidão. Em desvantagem, a infraestrutura de passagens do reassentamento possui grandes dimensões e, claro, há muitas vias de separação e de servidão.

A sensação de insegurança é composta pela incompatibilidade entre o ambiente construído no entorno das casas, as relações de vizinhanças propostas pela nova

realidade e o tipo de estrutura de divisa. O processo de desenvolvimento dos projetos no reassentamento é pouco transparente, o que prejudica a participação efetiva das pessoas atingidas. Ao realizarem a elaboração do projeto conceitual, o estabelecimento das estruturas de divisa não foi totalmente compreendido. Durante o período de elaboração, um número expressivo de pessoas atingidas optou por tipos de estrutura de divisa abertos, pouco robustos e baixos, como telas e cercas, similares às das casas do território de origem. As estruturas nos reassentamentos estão sendo confeccionadas com mourões de madeira ou concreto e tela de alambrado que, em alguns casos, possuem apenas 1,50m de altura. As famílias demonstram insatisfação diante da falta de segurança dentro de seus próprios imóveis.

Não houve explicações suficientes para o detalhamento necessário do tipo de implantação, do perímetro das divisas do lote, de vias do entorno e da topografia do terreno e suas imediações. Todos esses aspectos só puderam ser compreendidos nas visitas às obras, momento que acontece após a assinatura dos termos de aceite do projeto conceitual.

A equipe da Cáritas acompanha, quando solicitada, as visitas individuais e coletivas das

pessoas atingidas nos reassentamentos: momentos nos quais são manifestados o desejo de alteração das estruturas de divisa por muitas famílias, tendo em vista que, na nova realidade, essas estruturas confrontam vias de servidão, públicas e ermas. A Fundação Renova tem sido negligente ao apresentar, sistematicamente, negativas para o tema e justificar a sua resposta pela suposta impossibilidade de realização de qualquer tipo de alteração no projeto conceitual, aquele que foi aprovado pelas famílias antes do início das obras. Convém ressaltar que o mesmo projeto é constantemente modificado pela fundação e suas terceirizadas, sob pretextos técnicos e de mercado, relacionados à disponibilidade de materiais. No dia 31 de janeiro de 2023, a Comissão dos Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF) enviou um ofício à Fundação Renova sobre o tema, que, ainda hoje, segue sem nenhum retorno. Diante do exposto, a Cáritas defende que é necessário considerar o território de origem e prover a manutenção das redes de proteção diante de qualquer risco para que as pessoas atingidas possam ter seus modos de vida retomados.

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Visita ao reassentamento coletivo de Paracatu de Baixo Foto: Maria Luísa Sousa

EDITORIAL

O mês de março colocou a equipe do Jornal A SIRENE em campo, em diversos momentos. Logo no dia 8 de março, as manifestações do Dia Internacional da Mulher, na Região dos Inconfidentes, foram marcadas pelas reivindicações das mulheres atingidas pela mineração.

Também estivemos presentes na audiência em que a Samarco apresentou seu projeto para retomar integralmente suas atividades; acompanhamos vistorias de pessoas atingidas às obras de reassentamentos; estivemos nas festividades de São José, em Barra Longa; e reportamos uma solenidade cosmética da Renova para entrega de bens públicos no reassentamento de Paracatu de Baixo. À distância, ainda cobrimos uma reunião da Câmara dos Deputados sobre a saúde das pessoas atingidas.

Os acontecimentos em torno do rompimento da barragem de Fundão são muitos e demonstram, a cada dia, a continuidade das violações, das violências e dos danos causados pela mineração predatória, mas também as lutas das pessoas atingidas. Além disso, se espalham por toda a bacia do Rio Doce, um espectro do qual só conseguimos captar fragmentos.

Devido a essa confluência de eventos e reivindicações, talvez essa seja, em muito tempo, a edição com mais pé na urgência do presente que o Jornal A SIRENE produz. Uma urgência que mobiliza toda nossa equipe e nos demanda repensar as decisões tomadas ali perto, no início do mês de março, para abrigar os fatos, sempre pulsantes matérias-primas do jornalismo.

A necessidade da existência do Jornal A SIRENE também está demonstrada nessas 12 páginas. Temos muito orgulho desse jornalismo que capta a história do agora a partir do prisma das pessoas atingidas. Mas temos também, há um longo período, muita angústia pela condição de precariedade que o jornal enfrenta, especialmente financeira. Queremos – e precisamos – manter e ampliar nossa cobertura. Para isso, é fundamental termos pessoas dispostas a nos apoiar. Se você pode dispor de um valor mensal para acreditar em nosso jornalismo, participe de nossa campanha de financiamento ou doe pelo PIX. Isso nos ajuda a reafirmar mensalmente nosso compromisso com o jornalismo e com você, que nos lê.

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