A SIRENE
PARA NÃO ESQUECER | Ano 8 - Edição nº 87 - Julho de 2023 | Distribuição gratuita
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REPASSES Justiça aprova intervenção cautelar na Renova 19 de maio Em maio, a 4a Vara Federal de Belo Horizonte autorizou uma intervenção cautelar na Renova. Isso represnta uma ordem para que a instituição não se subordine hierarquicamente às mineradoras Vale, BHP e Samarco. O pedido foi feito pelo Comitê Interfederativo (CIF) em caráter de urgência. Na decisão, a Justiça afirma que a Renova não cumpre o papel para o qual foi criada. “Os constantes conflitos […] e, o que é ainda mais grave, o descumprimento de decisões judiciais […] ocasionam um número muito grande de petições, despachos no gabinete e conflitos indiretos, tornando ainda mais difícil que um processo dessa magnitude e importância não tenha a celeridade adequada”, diz a decisão, assinada pelo juiz Michael Procopio Ribeiro Alves Avelar. Durante a intervenção, as Instituições de Justiça terão acesso aos documentos e às instalações da Renova e está proibida a demissão de diversos membros gestores da organização.
MMA cria grupo de trabalho para discutir repactuação Junho de 2023 O Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) criou um grupo de trabalho (GT) para analisar e deliberar sobre a repactuação dos acordos judiciais referentes à reparação dos danos decorrentes do rompimento da barragem de Fundão, em novembro de 2015. Segundo o Climainfo, o GT deve durar 180 dias. O grupo, que terá caráter consultivo, será composto por representantes do ministério, além do Serviço Florestal Brasileiro do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama); do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio); e da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA).
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Reparação apresenta índices muito baixos 27 de junho O presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), Rodrigo Agostinho, participou de debate na Comissão Externa da Câmara dos Deputados sobre a Fiscalização dos Rompimentos de Barragens e Repactuação. Na reunião, Agostinho destacou o processo de judicialização como principal obstáculo nos trabalhos de recuperação após o rompimento de barragens em Minas Gerais. Segundo a Agência Câmara, 60% dos 42 programas compensatórios e reparatórios apresentam índice baixo ou muito abaixo da implementação.
Fiscalização de barragens sucateada A Agência Nacional de Mineração (ANM) detém a segunda maior arrecadação entre as agências regulatórias, porém conta com apenas 38 servidores para fiscalizar mais de 900 barragens no país e tem R$ 20 bilhões de multas à espera de avaliação e aplicação por falta de pessoal. O sucateamento da ANM levou o quadro a um estado de greve em abril. Em junho, o Ministério de Gestão e Inovação em Serviços Públicos finalmente anunciou concursos para preencher vagas no órgão. Quem sabe assim a ANM consiga fiscalizar e punir as irregularidades do setor minerário brasileiro, responsável pelos dois maiores crimes socioambientais do país, em 2015 e 2019. NEWSLETTER DO JORNAL A SIRENE Todos os meses, o Jornal A SIRENE faz uma curadoria de informações relacionadas ao rompimento da barragem de Fundão e à mineração. Se quiser receber nossa newsletter mensal, A SIRENE INFORMA, inscreva-se:
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Opinião Foto: Larissa Pinto
Papo de cumadres: Quando nós garimpávamos Por Sérgio Papagaio
Consebida e Clemilda , numa conversa, lembram com muitas saudades antes do rompimento da Barragem da Samarco. Época que o garimpo era trabalho, diversão e constituía seus modos tradicionais de vida. — Cumadre Clemilda, já tive muitas tristezas e também aligria por dentro dessa vida, antonte eu tava mexendu nas caxinhas da minha cabeça, onde que eu guardu minhas lembrança. Lá, cumadre, tem de tudu, tristeza, aligria, esperança.... — Pois é cumadre, vira e mexe tô eu rivirandu essa caixa, pamode nunca esquecê quem nois semus nem de onde viemus. — A cumadre prestenção, eu revirei caixa por caixa e cê sabe undé eu incontrei a maior quantidade di felicidade ? — Sei não, cê num me falou ainda, cumé que eu vou adivinhá? — Pois então vou te falá, a maioria das minha felicidade tá na caixa du garimpo, guardadas todas com data de antes do rompimento da barrage da samalco, du ladu da caixa da sardade, porque cumadre, u garimpu num era só trabaiu, tinha satisfação nu modu simples de nois com prazer exercê uma profição, era família, aligria e diveusão, num modu de trabaiu que sempre nus deu u pão. — Intonse cumadre, quandu nois luta por reparação, ês pensa que nois só quer dinheiru, num sabenu eles que nossa maior riqueza sempre foi a aligria de juntu dus amigu e de nossa famia constitui nossos modu de vida, sempre com muitu zelu, quase sem lugar pru dinheiru.
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Fotos: Marcella Torres
Simone durante a reunião.
Maria Aparecida na casa de Dona Chica, onde foi feita a visita pela deputada.
Volta da visita na casa de Dona Chica. De azul, Simone e de branco, Beatriz.
Adecir dentro de sua cozinha, mostrando as trincas nas paredes de sua casa
Deputada Beatriz Cerqueira e Dona Gracinha durante a reunião.
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Comunidade de Gesteira busca solução para casas trincadas
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Por Simone Silva, Adelina Coelho e Maria Aparecida Silva Com o apoio de Marcella Torres
A comunidade de Gesteira continua sendo atingida diretamente todos os dias pelas atividades da Renova. Vários moradores e moradoras precisaram deixar suas casas por conta do risco que as trincas estão gerando. O enorme tráfego de caminhões e máquinas causa rachaduras nas paredes, o que abala a estrutura das construções. O Ministério Público Federal (MPF), representado pelo Procurador da República Carlos Bruno Ferreira da Silva, assinou o acordo com a Renova sem antes consultar as pessoas atingidas, que se sentiram traídas por não terem sido ouvidas por quem, na teoria, está ao lado delas. Para resolver essa situação, aconteceu uma reunião na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), no dia 19 de maio, a fim de denunciar a discordância da comunidade em relação aos valores oferecidos para a reforma das casas. Houve reclamações também em relação à lista de pessoas contempladas, pois muitas pessoas que moram na comunidade não foram incluídas. A deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT) encaminhou três ofícios para instituições do Judiciário pedindo a revisão do acordo, a reconsideração dos valores estipulados, novas vistorias, a retomada do projeto de assessoria técnica aos atingidos de Barra Longa e a garantia de custeio de moradia provisória por parte da Renova. No dia 16 de junho, Beatriz foi a Gesteira ouvir os moradores e as moradoras. A deputada, com sua equipe, visitou a casa de Dona Chica e a escola da parte alta da
comunidade, que está desativada por conta de problemas com vazamentos (que A SIRENE já denunciou em outubro de 2022). Beatriz voltará a Gesteira neste mês de julho para visitar mais casas com trincas. “Deixar claro, após essa decisão, após esse acordo que o Ministério Público Federal, os ministérios e a Defensoria assinaram, que nós não reconhecemos eles mais como porta-voz dos atingidos. A Bacia do Rio Doce num todo declara que ele não representa mais, o Ministério Público e a Defensoria não representam mais os atingidos. Se é para falar, se é para saber sobre nós, se é para decidir sobre nós, nós precisamos estar presentes, porque eles não nos representam mais.” Simone Silva, moradora de Barra Longa
“Eu falei com meu marido: ‘esse rolo [máquina de rolo de asfalto] vai atrapalhar essa casa, porque, na hora que chega, a casa chega a tremer’. Aí ele falou: ‘vou pedir pra eles colocarem mais longe’. Ele pediu, mas entrou aqui [num ouvido] e saiu cá [no outro]. Cê lembra? Tirando o óleo das máquinas nas estradas. ‘Se um não deixar abrir acesso pra passar, como é que vai arrumar?’ Aí eu calei. Isso durou dois meses. Todo dia o mesmo arranco, todo dia o mesmo arranco. Saí correndo de casa e esqueci o laudo pra trás, procê ver. Se tivesse me dado o dinheiro do laudo, eu arrumava minha casa. No laudo, tá falando que o material dela é
fraco, me pedindo as notas do cimento que construiu ela, a nota do arquiteto. No tempo, não existia o arquiteto. Meu pai que era o pedreiro e nós, os serventes. E ainda falou que minha casa é ruim, que minha casa é fraca. Deu zero pra mim. Não recebi nada.” Adelina Coelho, moradora de Gesteira “Nós estamos precisando de reforço. A situação nossa não está bonita não. A Renova tá num preconceito danado com Barra Longa. Barra Longa é a cidade mais atingida pela lama e a lama está lá até hoje. Fizeram um parque de exposição maravilhoso, mas esconderam a lama debaixo lá, tá tudo lá. E a minha casa… Eles demoliram a minha casa, porque a lama passou nela. Ela rachou toda, demoliu ela. Construiu um trem que não tem nada a ver. E a construção que eles fizeram… As paredes estão rachando, estão quebrando. E agora colocou a nossa casa na trinca, sendo que é reassentamento. Nossa casa não pode ter trinca, nossa casa tem que ser reassentamento e lá é área de risco. Não tem como. Eu não volto pra lá não. Saí de lá vai fazer oito anos e eu não consegui voltar lá mais. Perdi meu pai chorando, querendo voltar pra casa e não tinha como. Perdi uma sobrinha de 13 anos que morreu também por causa da poeira. E eu tô correndo atrás de um reassentamento para Barra Longa.” Maria Aparecida Silva, moradora de Gesteira
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Celebrar Santo Antônio em Paracatu é celebrar a verdade e a justiça
Protetor das coisas perdidas, dos casamentos, dos pobres, Santo Antônio é o santo dos milagres. Em suas pregações, nas praças e igrejas, conta-se que muitos enfermos se curavam. A comunidade de Paracatu se reuniu no dia 18 de junho para celebrar o Dia de Santo Antônio, cinco dias após a data da comemoração original, que homenageia a sua morte, em 13 de junho de 1241. A luta contra o crime da Samarco, Vale e BHP, que ainda marca tanto a vida da comunidade, foi fortalecida pelos ensinamentos da festividade: verdade e justiça precisam prevalecer.
Foto: Tatiane Análio
Por Angélica Peixoto, Glória Maria Gonçalves, Maria Geralda Oliveira da Silva e padre Geraldo Martins Com o apoio de Tatiane Análio Foto: Phablo Vieira
Foto: Tatiane Análio Foto: Tatiane Análio
“Do ano passado para cá, a festa de Santo Antônio mudou 10%, mas tá boa. A missa foi muito animada, muita gente reunida e foi muito bom, graças a Deus.” Glória Maria Gonçalves, moradora de Paracatu Foto: Tatiane Análio
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“Estamos todos aqui reunidos em Paracatu, celebrando a grande devoção a Santo Antônio, com a comunidade toda reunida em festa e alegria. Que ele possa abençoar a todos nós e a todas as nossas famílias, e que não deixe faltar o pão em nossas mesas. Que Deus nos abençoe em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém.” Padre Geraldo Martins Os pães no altar simbolizam a vida e a fraternidade. Até hoje, na devoção popular, os “pãezinhos de Santo Antônio” são colocados pelos fiéis em recipientes com a fé de que nunca lhes faltará o que comer Foto: Tatiane Análio
“Todo mundo fica com medo de perder a tradição, mas ela não se perde, porque é só juntar. Quando as pessoas se juntam, aí tudo volta, volta o sentimento de comunidade, de pertencimento. Eu tenho a impressão que, na hora que a gente voltar para o novo Paracatu, esse sentimento vai voltar também. Vai ser da mesma forma, a hora que a gente tiver lá, a gente vai conseguir reconstruir esse Paracatu tranquilamente, sem nenhum problema, porque é o sentimento de união da comunidade e isso está em todo lugar, não vai se perder. As crianças participando da quadrilha é lindo demais, é a tradição passando de geração em geração. A missa e a quermesse foram todas organizadas pela comunidade. Isso é muito bonito. A comida servida veio do dinheiro arrecadado com a comunidade também, foi arrecadado de casa em casa e em um show de prêmios promovido em Mariana.” Angélica Peixoto, moradora de Paracatu “Temos que agradecer a Deus e a Santo Antônio por, mais uma vez, podermos fazer a festa aqui, na nossa terra, por termos o pão abençoado por Jesus, por não desistirmos nunca do que é nosso, dos nossos direitos. Como o padre Geraldo disse: ‘Santo Antônio é o santo da justiça e da verdade’. E é por isso que continuamos, que lutamos e que vamos continuar até o fim.” Maria Geralda Oliveira da Silva, moradora de Paracatu
Foto: Phablo Vieira
O mastro, em festividades do catolicismo popular, traz consigo o significado de fartura e agradecimento
Glória Maria, à direita, é moradora da comunidade e devota de Santo Antônio Foto: Tatiane Análio
À esquerda da foto, Angélica Peixoto, que participou do coral na celebração
Foto: Phablo Vieira
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“A Mônica de hoje é a Mônica que as empresas transformaram”
Fotos: Marcella Torres
Por Mônica Santos e Kathiuça Bertollo Com o apoio de Marcella Torres
Mulher, atingida pela mineração, lutadora. Mônica corre atrás, todos os dias, há quase oito anos, dos seus direitos e de toda a comunidade atingida pelo rompimento da barragem de Fundão em Mariana. Sua história é um símbolo do desastre-crime de 5 de novembro de 2015. Sua vida tomou um rumo diferente; ela se graduou em Direito. Ela precisou se adaptar, criar uma “armadura” para conseguir lutar por si e pelos outros. Mônica é uma das pessoas atingidas à frente da Comissão dos Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF), já recebeu muitos “nãos”, já conquistou direitos para a comunidade e nunca desistiu, mesmo com o caminho sendo mais dificultado por seu rosto ser associado à luta. Com toda essa história, Mônica foi escolhida como a primeira convidada para a roda de conversa presencial do projeto de extensão Flor de Anahí, coordenado pela professora do curso de Serviço Social da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e integrante da Frente Mineira de Luta das Atingidas e dos Atingidos pela Mineração (FLAMa), Kathiuça Bertollo. O projeto foi iniciado no período da pandemia de COVID-19 e agora, em seu terceiro ano de atividades, as conversas passaram a ser presenciais e a contar também com a parceria da Cáritas. O evento aconteceu no dia 22 de junho, no auditório do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA-UFOP). Estiveram presentes estudantes do curso de Serviço Social, participantes do projeto organizador, a professora Kathiuça e representantes da Cáritas.
Representantes da Cáritas e Mônica durante a Roda de Conversa.
“É uma posição [liderança da CABF] muito pesada, porque a gente está lidando com as três maiores empresas da mineração, as três maiores empresas assassinas, que constituíram a fundação e, ao invés de ela fazer a função para qual ela foi constituída, vem renovando o crime a cada dia, porque, a cada reunião, a cada momento, são vários direitos sendo violados. Eu sei que, com essa minha posição, minha busca por justiça, eu, minha família e quem está mais próximo a mim estamos pagando caro como uma consequência dessa minha posição. Mas, ao mesmo tempo, é gratificante, porque teve situações de eu encontrar com pessoas da comunidade me agradecendo por eu ter ajudado a conseguir um direito, sabe? A gratificação que eu tenho é quando essas pessoas chegam para mim agradecendo e pedindo ajuda, como se eu fosse a pessoa que fosse solucionar todos os problemas. Eu sei que não é assim. Eu sei que cada
Kathiuça Bertollo, idealizadora do Projeto Flor de Anahí.
direito que a gente conquistou foi através de muita luta, muita renúncia, né? Porque posso falar que são oito anos do crime, oito anos que eu vivo por isso, para isso. Eu costumo falar que a Mônica de hoje não é a Mônica que a minha mãe fez, a mesma Mônica que a minha mãe criou. A Mônica de hoje é a Mônica que as empresas transformaram.” Mônica Santos, moradora de Bento Rodrigues “Não tem como a gente não pautar o enfrentamento e a luta à mineração, às mineradoras e à atuação da Fundação Renova, enfrentamento protagonizado por mulheres aqui da região. É esse o debate, é sobre essa questão de estar entre as nossas companheiras e dar visibilidade à luta que elas protagonizam. A essência desse projeto é no sentido social, político e coletivo.” Kathiuça Bertollo, professora da UFOP
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Paulo Cupertino e a inteligência dos bichos Por Sérgio Papagaio
Em uma prosa com Paulo Cupertino, 82, tive uma lição do conhecimento ancestral sobre a importância de uma boa conversa entre seres humanos e animais. “A gente conversa com os bois, ele entendem a gente, mas nós não entendemos a língua dos bois, por isso é que os homens judiam dos bois, quando deveriam só conversar. O boi carreiro adestrado é o boi que sabe trabalhar, boi de cabeçaio ninguém usa amarrar ele pra entrar na canga, ele entra a partir do momento que você manda entrar. Abaixa a cabeça e entra entre os dois canzis. Os bois na rabadeira seguem com a cabeça baixa, no cabeçaio seguem o trabalho com a cabeça alta. O boi carreiro, você fala com ele o dia inteiro, não tem que fazer nada com ele, só mandar que ele obedece. O que me deixa mais triste é que os homens não entendem a língua deles, mas eles entendem o que falamos com eles. Você vê só: um passarim, pra chocar, ele primeiro constrói o ninho, depois eles cruzam, a fêmea põe os ovos, depois deita sobre eles até que nasçam os filhotes. Depois que os filhotes nascem, os pais sabem que têm a obrigação de tratar dos seus filhos. Por que o homem e a mulher às vezes não têm este mesmo entendimento? Veja só a inteligência que tem uma paca que se alimenta de raízes: não precisa de tomar água toda hora. Ela sabe que à noite é mais seguro, vai pela sua trilha até o bebedouro e sabe que tem que voltar para a sua morada. Sua segurança está na sua toca, sua casa.” Foto: Sérgio Papagaio Arte: Silmara Filgueiras
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Boletim Gualaxo!: novo informe mensal da Cáritas MG | ATI Mariana Por Maria Luísa Sousa
Um novo periódico impresso segue o curso do rio Gualaxo do Norte, que banha as comunidades assessoradas pela Cáritas MG, Assessoria Técnica Independente (ATI) de Mariana, a partir de junho de 2023. Trata-se do Boletim Gualaxo!, material produzido para as pessoas atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão que, a cada nova edição, traz as atualizações do processo de reparação com as atividades desenvolvidas pela ATI. Para mais acessibilidade, as informações também podem ser ouvidas no Gualaxo em Áudio ou lidas na versão digital do informe. Todas as versões ficam disponibilizadas no site mg.caritas.org.br. Na primeira publicação do Boletim Gualaxo!, as pessoas atingidas podem acompanhar, por meio da descrição de cada equipe técnica, um panorama das ações da Cáritas MG | ATI Mariana junto às comunidades e os acontecimentos que foram destaque no mês anterior relacionados aos desdobramentos do crime. O rompimento da barragem de Fundão alterou de forma compulsória as vivências nessas localidades. No contexto do maior crime socioambiental do mundo, moradores e moradoras viram a lama de rejeitos invadir o curso de suas vidas, tiveram rotinas e planos arrancados e foram obrigados a lidar com uma nova realidade nunca desejada. Em paralelo às atividades da mineração predatória, os povoados de Bento Rodrigues, Bicas, Borba, Camargos, Campinas, Paracatu de Cima, Paracatu de Baixo, Pedras e Ponte do Gama desenvolveram-se ao longo dos anos em histórias de vidas marcadas pela violência desse processo. Ainda hoje, as comunidades lutam pelo direito à retomada de suas tradições e seus vínculos. Ao lado delas, a Cáritas MG | ATI Mariana busca garantir a compreensão do processo de reparação integral e a construção de propostas para os problemas enfrentados pelas comunidades, ao contribuir para a participação informada e qualificada. Divulgamos, com responsabilidade, a chegada de mais um material de comunicação popular que se soma às nossas outras ações.
Foto: Quel Satto/Cáritas MG - ATI Mariana
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Falta de reparação renova crimes das mineradoras
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Colocar o pé na lama e conhecer de perto as consequências duradouras e devastadoras do crime da Vale/Samarco BHP. Esse foi o objetivo da visita técnica que realizamos em 16 de junho nas comunidades de Gesteira, em Barra Longa, e Pedras, em Mariana. Água e solo contaminados, plantações raquíticas, animais com saúde comprometida, com produção de leite baixa, dificuldade de reprodução foi o que encontramos no Distrito de Pedras. Não muito distante dali, em Gesteira, casas trincadas, abandonadas por falta de condições de moradia, famílias inteiras desalojadas de seu lugar, escola fechada por total falta de condições da estrutura do prédio e uma igreja destruída pelo crime, esquecida e ainda mais deteriorada. Em ambos os casos, a reparação do crime é desejo e muita luta das comunidades atingidas. Concretude, nenhuma! O que tem é violação de direitos. Fotos: Mandato Beatriz Cerqueira
A falta da Igreja e todas outras perdas materiais, sociais, afetivas e emocionais provocam inúmeros problemas, inclusive adoecimentos
O rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, vai completar 8 anos. Este é também o tempo que as famílias estão lutando incessantemente por seus direitos. É uma luta desproporcional por vários motivos, que vão desde a desigualdade de forças entre as mineradoras criminosas e as pessoas atingidas, passando, muitas vezes, pela ausência de escuta e incompreensão das instituições de Justiça, até a cumplicidade do Estado, que, obviamente, se posiciona do mesmo lado das empresas. Além deste jogo perverso, é preciso entender que a ausência e a morosidade da reparação produz mais crimes e violação de direitos. Em outras palavras, até o momento, essas empresas continuam renovando o crime. E foi este contexto que motivou a nossa visita, realizada a partir de uma iniciativa do nosso mandato, o requerimento 1.764/2023, apresentado e aprovado na Comissão de Administração Pública da Assembleia de Minas Gerais.
“Em outras palavras, essas empresas continuam renovando o crime”
Beatriz Cerqueira - Deputada estadual (PT)
Nosso trabalho foi acompanhado por representantes da Advocacia Geral da União (AGU), procuradora federal Maria Lúcia Cassiano Araújo, e da Coordenadoria de Inclusão e Mobilização Sociais (CIMOS) do Ministério Público de Minas Gerais MPMG,
Deputada Beatriz Cerqueira recebeu a lista com os nomes das pessoas que não vão receber reparação em Gesteira
o assessor Luiz Tarcísio Gonzaga de Oliveira, além das equipes de comunicação da Assembleia Legislativa e do nosso mandato. Na Fazenda Cerceau, a proprietária, dona Ana Maria Carneiro Cerceau, descreveu as transformações em suas terras e na sua vida a partir de 5 de novembro de 2015. Ela explicou que, apesar dos sérios danos sofridos, não foi reconhecida pela Renova como atingida e nunca recebeu nenhuma reparação. “A lama ainda está aqui. Não retiraram uma grama de lama. Só de pisar, dá para perceber. Água não tem. Tínhamos 7 nascentes. Agora está tudo tampado pela lama. Tinha uma lagoa que dividia o terreno em dois lados. Agora um lado está sem água. Colocaram uma mangueira vagabunda para levar água para o outro lado. Disseram que o problema agora é da Arsae”, afirmou dona Ana Maria, mostrando o solo de sua fazenda, repleto da lama seca, e apontando para o único fino fio d’água que restou em sua fazenda. Dona Ana Maria explica que não consegue mais produzir milho e até cancelou um financiamento para compra de um trator pelo Pronaf. “O milho plantado na lama ficou miniatura. Não dá espiga. A produção
do leite foi lá embaixo”, disse, lembrando que uma silagem fornecida pela Renova causou a morte de duas vacas. Após ouvir dona Ana Maria e conhecer a fazenda Cerceau, visitamos Gesteira. A situação da comunidade é crítica. Mesmo fechado um acordo para o reassentamento, o maior problema agora são as condições das moradias que não foram atingidas pela lama, mas estão muito comprometidas pelo trânsito pesado de caminhões e máquinas da Renova neste processo de limpeza e reconstrução. Fizemos uma escuta atenta da comunidade e vimos de perto os problemas das moradias. Simone Maria da Silva, professora e uma das pessoas atingidas pelo crime da Vale/Samarco/BHP, explicou que há dois problemas fundamentais. “Tem gente que não foi reconhecida para receber a indenização. E tem gente que recebeu valores muito insuficientes”, destacou e ainda reclamou do acordo de reparação foi fechado “sem a participação das famílias ". Esse acordo não nos representa”, declarou Simone. Maria das Graças Lima Beto, da Comissão dos Atingidos em Barra Longa e Gesteira, questionou os laudos periciais realizados pela empresa AECOM. Na lista (realizada a partir da perícia) tem morador que vai receber e tem morador que não vai receber nada. Assim, não resolve nada”, concluiu. Outras importantes reclamações da comunidade são a escola e a igreja. O prédio escolar que foi construído pela Fundação Renova, em menos de dois anos da entrega para a comunidade, já não tem mais condição de funcionar e está desativado. A igreja, que foi totalmente atingida pela lama, está escorada e a obra parada, o que aumenta mais a deterioração. Nosso relatório da visita vai contribuir para o relatório da Comissão Extraordinária do acordo de Mariana da Assembleia Legislativa, para a Comissão da Câmara dos Deputados que trata do tema e para o governo federal.
Mandato da deputada estadual e titular da Comissão de Administração Pública da Assembleia Legislativa de MinasGerais, Beatriz Cerqueira (PT)
EDITORIAL A Renova tem divulgado em suas redes que é “tempo de entrega”, em referência ao início das entregas das casas supostamente concluídas nos assentamentos das comunidades atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão, em 2015. O investimento financeiro nessa ação de marketing é alto: anúncios em todas as redes sociais, peças publicitárias em sites e publicações pagas. O que essa narrativa não conta, ou melhor, esconde é que também é “tempo de luta”. Há quase oito anos, é “tempo de luta” para milhares de pessoas ao longo da Bacia do Rio Doce, que foram atingidas pelo crime socioambiental cometido por Samarco, Vale e BHP. Essas pessoas têm, cotidianamente, seus direitos violados. Há quase oito anos é “tempo de luta”, porque, até hoje, não houve reparação integral; não há respeito aos desejos das pessoas atingidas; não há réus punidos (ou sequer investigados) pelas 20 mortes no dia 5 de novembro e as dezenas posteriores. Ainda hoje, há pessoas atingidas que não são reconhecidas como tal pela Renova. O Jornal A SIRENE não tem o bolso cheio como as mineradoras. Precisa de apoio da comunidade para sobreviver. Mas nós temos a missão de registrar a luta dessas pessoas incansáveis que, há oito anos, querem trocar um “tempo de luta” por um “tempo de justiça”.