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PRODUÇAOINDEPENDENTE
As histórias de vida nos tneios eletrônicos Jacira Melo *
A cena pública Há uma circunstância política favorável, no início dos anos 80, para que alguns grupos feministas venh am a ser também exploradores da imagem eletrônica . Refiro-me à emergência dos movimentos de mulheres no cenário social e político do final dos anos 70. A partir de 1983, alguns grupos feministas incorporam com impressionante rapidez a imagem eletrônica. De certa forma, as câmeras de vídeo e gravadoTes portáteis, de custo relativamente baixo e de simples operação, trazem maior possibilidade para que as mulheres venham a ser as realizadoras da sua própria imagem. A sua maneira, revelam-se aprendizes e realizadoras de vídeo. Revendo mentalmente algumas cenas, acho que posso dizer que há no vídeo feminista uma clara preferência em gravar a mulher no espaço público. Próximas de fábricas, creches, delegacias, hospitais, hotéis, igrejas. Ou ainda em meio a uma passeata ou num passar ligeiro entre o trabalho e a casa. Para além da diversidade dos temas aborda- . dos, há nesses vídeos uma característica que os unifica: a rua como cenário privilegiado. O que dizer dessa preferência em gravar no mundo público, justamente o "não lugar" da mulher, ou o lugar interdito. Talvez se possa dizer que há em todos esses programas uma ressonância do projeto político feminista de politização do cotidiano. Nos vídeos, através de recortes do dia-a-dia, atribui -se uma ênfase especial à esfera do privado, do particular e da experiência mais imediata. Existe a busca de uma articulação entre vida privada, vida social e vida política. Daí a necessidade de deslocamento e de ruptura com as fronteiras que demarcam o espaço privado e o espaço público. Tomarei como exemplo o vídeo "Mulheres no canavial", para melhor trabalhar esse aspecto da cena pública. Neste vídeo a câmera mostra vários aspectos do cotidiano de trabalho das mulheres bóias-frias que, focalizadas em primeiro plano, narram em seus testemunhos uma multiplicidade de contradições e uma situação de opressão que não se limita à relação capital/trabalho, mas também à repressão dos costumes. Durante trinta minutos a
câmera insiste em ultrapassar as fronteiras que demarcam o limite entre vida privada e vida pública, busca permanentemente uma expressão que inclui o corpo do trabalho, da sexualidade e da subjetividade. As seqüências, ao revelarem a intimidade das mulheres com o espaço do trabalho, também revelam um cotidiano que inclui o cuidar dos filhos, o arrumar a casa, o fazer a comida, o cortar a cana e o sonhar com a reforma agrária. Nas últimas seqüências de "Mulheres no canavial" as trabalhadoras rurais entram em suas casas. Nesse momento, a câmera se despede das protagonistas, ficando do lado de fora das casas. Ao meu ver, essa atitude evidencia o que comentamos até agora. Ao dispensar a entratla no interior das casas, o vídeo oferece significações claras. As intimidades reservadas tradi cionalmente à esfera do privado foram desvendadas nas diversas fases de um dia de trabalho.
As histórins de vida tecem o vídeo Outro elemento trabalhado com propriedade no vídeo feminista, que para mim importa destacar, é o depoimento enquanto fio condutor da narrativa. As histórias de vida tecem os vídeos; através de expressão e voz as mulheres recriam suas experiências. Por segundos, a fala de cada narrador toma a cena e se transforma em tema principal. A opção por essa abordagem busca abrir microfone e câmera para que as protagonistas dêem sua versão acerca do universo trabalhado. E aqui chegamos a um ponto indispensável para se pensar o espaço das histórias de vida nos meios eletrônicos. Qual é o lugar da experiência vivida, se mal temos tempo de ver passar uma imagem? Ao meu ver, a prática com a imagem eletrônica leva a um exercício que exige uma leitura mais veloz e conseqüentemente uma compreensão mais concisa. Esse processo envolve ao mesmo tempo realizador e receptor. Essa constatação, aparentemente óbvia, só interessa aqui na medida em que traz implicações decisivas para a construção da
• Presidente da ABVP .
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