Enfoque Porto Alegre - Especial Fé e Alegria

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Bairros recebem equipes do Serviço de Abordagem Social

Estudantes acompanham ações das equipes nas ruas

Histórias únicas são contadas por moradores de rua

Vulnerabilidade

humana em pauta na capital gaúcha

FÉ E ALEGRIA
PORTO ALEGRE / RS JULHO DE 2023
ENFOQUE PORTO ALEGRE
ALESSANDRA ARAÚJO
ESPECIAL

Ações de rua em foco

Adisciplina de projeto Experimental em Jornalismo, da Unisinos Porto Alegre, acompanhou os profissionais que atuam no Serviço de Abordagem Social, junto à Comunidade Fé e Alegria, com sede no Bairro Farrapos, num sábado pela manhã (20/05). A equipe do projeto é composta por 20 profissionais, entre psicólogos, assistentes e educadores sociais que se dividem e atendem diversos bairros da cidade.

As principais atividades dos educadores sociais é levar apoio, carinho e atenção às pessoas em condição de rua, pessoas das mais variadas idades, famílias inteiras, crianças que vendem doces nas calçadas, usuários de drogas, gente que tem lutado para abandonar a dependência química. O objetivo

QUEM FAZ O JORNAL

O Enfoque Porto Alegre (Especial Fé e Alegria) é um jornallaboratório dirigido à Comunidade Fé e Alegria e demais moradores de Porto Alegre. A publicação tem tiragem de 1 mil exemplares, que são distribuídos na Sede da Comunidade Fé e Alegria. A produção jornalística é realizada por alunos(as) dos cursos de Jornalismo (São Leopoldo e Porto Alegre) e Fotografia (Porto Alegre).

enfoqueportoalegre@gmail.com

do projeto é auxiliar todas as pessoas que moram nas ruas na busca por atendimento médico, odontológico, no encaminhamento de documentos, na inscrição para programas dos governos.

A turma de alunos/as e profissionais do projeto foi dividida em quatro equipes, com repórteres, fotógrafas/os e educadores sociais, para percorrer então os diversos espaços da cidade, onde o Serviço de Abordagem de Rua já atua cotidianamente.

Nas páginas que seguem, avisamos, a leitura é sensível, pois se trata de um trabalho conjunto que buscou reportar esse Serviço (de Abordagem Social). Nos vários bairros destacados nas reportagens desta edição, muitas histórias reais são contadas

| REDAÇÃO | REPORTAGENS E IMAGENS – Disciplina: Projeto Experimental em Jornalismo. Orientação: Beatriz Sallet (bsallet@unisinos.br). Repórteres: Bruna Schlisting Machado, Gabriel Roberto Jaeger, Henrique Kirch, Lucas Kominkiewicz da Graça, Michele Alves e Paola de Bettio Torres. Fotografias: Alessandra Araujo, Bruna Pereira Monteiro, Bruna Schlisting Machado, Júlia de Azevedo Thomé, Lucas Kominkiewicz da Graça Michele Alves, Paola de Bettio Torres e Luiza Castro (Especial). | ARTE | Realização: Agência Experimental de Comunicação (Agexcom). Projeto gráfico, diagramação e arte-finalização: Marcelo Garcia. | IMPRESSÃO | Gráfica UMA / Grupo RBS.

por nossos repórteres e fotógrafos/as. A foto acima é um detalhe de uma dessas histórias, fotografia de Paola de Bettio, em mais uma prova de que a fotografia é linguagem que fala por si só.

Além das fotografias que foram produzidas para acompanhar as respectivas matérias desta edição, o leitor poderá percorrer o ensaio fotográfico coletivo, nas páginas Centrais, a fim de ver um pouco sobre os bastidores da nossa visita à Comunidade Fé e Alegria, com o Pe. Vicente nos recebendo calorosamente, e sobre o que acompanhamos do projeto nas ruas de Porto Alegre. Uma boa leitura! n

Universidade do Vale do Rio dos Sinos –Unisinos. Av. Dr. Nilo Peçanha, 1600, Boa Vista - Porto Alegre (RS). (CEP 91330 002).

Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@ unisinos.br. Reitor: Sergio Eduardo Mariucci.

Vice-reitor: Artur Eugênio Jacobus. Pró-Reitor Acadêmico e de Relações Internacionais: Guilherme Trez. Pró-reitor de Administração: Luiz Felipe Jostmeier Vallandro. Diretora da Unidade de Graduação: Paula Dal Bó Campagnolo. Coordenadores de curso: Débora Lapa Gadret (Jornalismo/ Porto Alegre), Micael Behs (Jornalismo/São Leopoldo) e Marina Chiapinotto (Fotografia/Porto Alegre).

2. Editorial ENFOQUE PORTO ALEGRE | ESPECIAL FÉ E ALEGRIA | JULHO DE 2023
PAOLA DE BETTIO BEATRIZ SALLET, PROFESSORA ORIENTADORA

Abordagem de rua faz a diferença

Grupos de estudantes acompanharam o trabalho do Serviço de Abordagem Social, junto à Fundação Fé e Alegria pelas ruas de Porto Alegre

Em uma manhã fria do sábado, 20 de maio, alunos da disciplina de Projeto Experimental em Jornalismo, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), graduandos em Jornalismo e Fotografia, tiveram a oportunidade de acompanhar de perto o trabalho de abordagem com pessoas em condição de rua, realizado por profissionais de diversas especialidades, como psicólogos, assistentes sociais e demais áreas, que atuam junto à Comunidade Fé e Alegria, localizada no Bairro Farrapos, em Porto Alegre.

Chegando na sede da Comunidade Fé e Alegria, os estudantes foram divididos em grupos para acompanharem os cerca de 20 profissionais, com o objetivo de conhecerem e realizarem a cobertura sobre as abordagens em diversas regiões da cidade onde atuam. O Serviço de Abordagem Social é responsável por prestar diversos auxílios à comunidade, mais especificamente às pessoas em situação de vulnerabilidade social. Acompanhando a micro equipe composta pela assistente social Susana Mendes, as educadores sociais Maiara Freitas, Fayola Ferreira, e Wagner Mello, o grupo composto pelos alunos Michele Alves, Henrique Kirch, Bruna Monteiro e Lucas da Graça, presenciou algumas abordagens com pessoas e famílias que estão em diferentes fases do processo de acolhimento realizado pelo Fé e Alegria.

Aos estudantes não coube entrevistar, fazer parte das abordagens, mas sim observar, de forma um tanto distante, o que se deve ao caráter sensível do trabalho desenvolvido ali. Como explicou Maiara Freitas, é necessário aos educadores sociais que atuam no serviço, assim como aos profissionais do jornalismo, um certo tato, um cuidado especial, para chegar nas pessoas em condição de rua, por motivos dos mais diversos. A ideia é não expor elas, não as deixar desconfortáveis, uma vez que já se encontram em uma situação delicada, muitas vezes.

O que se pode ver, entre outras coisas, é que o trabalho ali não é nada fácil. Em dias chuvosos, sol de rachar, escutando muitas vezes o que não querem,

sabem que a missão é árdua e que não devem desistir de um trabalho tão importante para toda a comunidade porto alegrense. Os colaboradores têm alcançado reconhecimento e prestígio dos moradores da região pelo que pudemos observar. As abordagens ocorrem principalmente durante a semana, pois é quando há mais

movimento, flagrantes de irregularidades, solicitações, pedidos de ajuda e orientação por parte da população.

Os cerca de 20 profissionais que fazem parte do serviço se dividem em pelo menos três micro equipes, as quais cuidam das ramificações específicas como o denominado Micro Equipe Famílias, que nosso grupo acom-

panhou, que cuida de questões como trabalho infantil ou outras situações de rua, dando orientações aos pais, prestando apoio, ajuda, mediando o alcance de algum direito, que por ventura essas famílias não tenham conseguido acesso ainda, garantindo que o direito dos menores de idade também sejam respeitados.

A insegurança alimentar é o

principal fator que coloca crianças na frente de trabalho, muito pelo fator de sensibilizar bem mais que outras faixas etárias, e seus familiares por perto, pedindo dinheiro, comida, vendendo alguma guloseima, etc.

O mercado do grupo Zaffari, no Bairro Bom Fim, é um local onde gradativamente ocorrem abordagens, há grande circulação de moradores de rua, menores de idade expostos ao trabalho infantil, entre outras situações.

Por mais que as pessoas recebam diversos auxílios do governo como o de moradia, alimentação, gás, bolsa família, acesso à educação, entre outros, nem sempre é suficiente para garantir o pão de cada dia.

A equipe se solidariza e compreende os motivos que levam as pessoas a extremos. Todavia, é importante ressaltar que não há justificativa que possa passar por cima de direitos individuais de cada cidadão. Não há espaço para conivência com algo errado. Há, orientação para que as coisas possam ser resolvidas da melhor forma possível para todos. n

.3 ENFOQUE PORTO ALEGRE | ESPECIAL FÉ E ALEGRIA | JULHO DE 2023
MICHELE ALVES LUCAS KOMINKIEWICZ LUCAS KOMINKIEWICZ O grupo do Fé e Alegria se divide em micro equipes para dar conta de pautas específicas em regiões diferentes da capital JÚLIA AZEVEDO JÚLIA AZEVEDO LUCAS KOMINKIEWICZ

Fatores como pobreza, falta de acesso aos serviços públicos e fragilização de vínculos afetivos e comunitários são as principais causas da vulnerabilidade social

A luta contra a naturalização do trabalho infantil

A infância roubada produz impactos e consequências futuras nos cidadãos que muitas pessoas não se dão conta

As abordagens normalmente ocorrem de forma pacífica. E é assim que a equipe deseja ser vista. O flagrante de uma situação não deve ser motivo de insegurança. Pelo contrário, o diálogo é a principal ferramenta utilizada pelos profissionais para obter a confiança das pessoas. Através dele são estabelecidos vínculos com as famílias, cidadãos em situação de vulnerabilidade.

Inúmeras famílias já passaram pelo atendimento da rede de apoio. No momento, cerca de 40 famílias mantêm vínculo ativo com o Serviço de Abordagem Social do Fé e Alegria.

Saímos com a Micro Equipe Família e nos dividimos em dois grupos para acompanhar as abordagens e observações. Muito para não causar estranheza, constrangimento, chamar atenção. Essa,

definitivamente, não era a intenção. Poucos minutos caminhando pelas ruas junto da dupla de colaboradoras Maiara Freitas e Fayola Ferreira, e nos deparamos com a primeira situação: uma mulher segurando um pote com paçoquinhas em uma mão, e na outra mão, um bebê.

A moça relatou às duas que estava comercializando o doce para ter dinheiro para comprar comida e completar o valor que faltava para pagar as contas da casa. As educadoras sociais conseguiram dar o primeiro passo para obter um futuro vínculo e explicaram o serviço. A mãe com o bebê relatou que não morava naquele território, mas o escolheu por ser uma região mais movimentada. Disse que no momento, apenas o esposo tem vínculo empregatício, remuneração mensal, benefícios e direitos trabalhistas garantidos.

IMPORTÂNCIA DO SERVIÇO

Quando determinada situação se repete e, após

os cidadãos receberem as orientações dos colaboradores e começarem a receber algum tipo de benefício, ajuda, em todos os flagrantes seguintes é possível notar que as pessoas ficam com medo, sentem medo de perder os auxílios e avanços que deram.

Nos dias seguintes a equipe procura os moradores identificados nessa reincidência, retomam as orientações e explanam os motivos que fizeram aquela pessoa, famílias se sujeitarem novamente às velhas práticas e ajudá-las no que for possível. A equipe garante que há um outro caráter, um outro nível de sensibilização com uma criança junto. E ao mesmo tempo nota-se uma certa “romantização do trabalho infantil”, oriunda da sociedade como um todo.

“Há um problema muito grande a ser enfrentado, que quando a criança é um pouquinho maior, quatro ou cinco anos, percebemos que há uma naturalização do tra-

balho infantil e muitas vezes essa postura que ignora todos os direitos individuais dessa criança como: acesso à escola, brincar, se divertir, ter uma infância saudável. E é possível ouvir frases como: ‘é melhor estar ali junto trabalhando do que roubando ou correndo rua’. Essa percepção é lamentável”, ressalta Wagner Mello, Educador Social há mais de sete anos no Fé e Alegria.

“O lugar correto de criança estar é na escola, num espaço protetivo, num ambiente de convivência e que tenha a sua infância garantida. Não é o momento de ela trabalhar, o respeito com cada fase é primordial”, afirma o Educador.

“Essa é uma parte difícil de fazer com que a comunidade compreenda. Até mesmo para os filhos de pessoas que estão em situação de vulnerabilidade social, os direitos devem ser garantidos, sem exceções. Trabalhamos com a comunidade como um todo para ter uma com -

preensão mais estendida dessa realidade", relata.

“Todas as abordagens ficam registradas. Quando pegamos casos de famílias que já tiveram muitas abordagens e, mesmo assim, menores de idade continuam sendo expostos, é necessário um outro tipo de encaminhamento visando a proteção dessas crianças”, enfatizou Fayola.

Uma coisa que é comum de se observar é a presença de famílias inteiras nas ruas. Pai e mãe se dividem e cada um fica com pelo menos um filho. Na maioria das vezes, são só mães crianças. E que não sabem, sequer dos direitos que têm.

“Dependendo de como as pessoas veem e têm experiências com serviço de assistência, a resistência é muito maior. Por isso, cuidamos muito desse primeiro contato, para não fragilizar o vínculo”, ressalta Maiara. n

4. ENFOQUE PORTO ALEGRE | ESPECIAL FÉ E ALEGRIA | JULHO DE 2023
BRUNA MONTEIRO
MICHELE ALVES

A vida nas ruas da cidade grande

Ao andar pelos bairros de Porto Alegre encontramos facilmente casos de vulnerabilidade social

Asociedade humana é formada pela pluralidade de etnias, raças, culturas, opiniões, e, principalmente, classes sociais. Cada pessoa comporta-se perante objetividades e subjetividades ao longo de sua vivência. Mas há de se atentar em um termo: desigualdade social. E é nesse sentido que a Fundação Fé e Alegria trabalha para atender crianças, adolescentes, jovens e adultos em situação de vulnerabilidade social. Tudo isso nas mais diversas áreas como trabalho infantil, fortalecimento de estrutura familiar, pessoas em situação de rua, entre outros.

Entretanto, para trabalhar na área, requer pleno conhecimento e estratégias para o bom andamento do processo. A assistente social Susana da Silva Santos Mendes, de 43 anos, conta que a abordagem social é uma das principais funções da equipe. “Antes de sairmos para a observação, é feito todo um mapeamento da microárea que será visitada. Normalmente caminhamos em duplas ou trios para o melhor diálogo, orientação e integração com a pessoa abordada”, esclarece Susana.

Integrante da equipe há 3 anos, ela é responsável pelo monitoramento da região central de Porto Alegre. “No coração da cidade, é extremamente mais complicado trabalhar do que nos bairros e localidades interioranas. Tudo torna-se imprevisível, você encontra uma diversidade de casos e as pessoas são das mais diversas regiões. O processo é difícil pois você fica em dúvida em quais iniciativas usar. Por exemplo, é mais fácil abordar um morador de rua, da Restinga, envolvido no tráfico, do que muitas vezes a criança menor de idade que está vendendo algo na rua”, explica a assistente social.

Na região metropolitana de Porto Alegre, há mais serviços nesse viés social que o Fé e Alegria está inserido. Para tanto, é necessária uma parceria entre as Fundações pois o respeito do limite territorial facilita o trabalho. Cada entidade ajuda a outra. Até porque vários casos já são monitorados por outros

O serviço, além de Porto Alegre, está presente em outros 14 estados brasileiros, onde beneficia mais de 8 mil assistidos

grupos. Já nos fins de semana, as funções ficam sob cargo do Plantão Cidade (disque 156).

Para o educador social da Fundação Fé e Alegria Wagner Mello, situações envolvendo o trabalho infantil normalmente são as mais complicadas de realizar o acompanhamento. “A sociedade tem uma visão estereotipada do assunto. Normalmente falam: melhor ter meu filho menor de idade trabalhando, do que correndo pela rua. Mas não é bem assim. Há limites. Dessa forma, a Fundação Fé e Alegria trabalha também com a conscientização e o diálogo com a comunidade sobre o tema”, afirma Mello.

A REALIDADE DE UMA ABORDAGEM

Conseguimos acompanhar uma abordagem: criança vendendo torrone. A mãe estava ao lado com mais uma filha. Eram da Restinga e já estavam sendo monitorados por outra equipe. Provavelmente passando por insegurança alimentar. n

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HENRIQUE KIRCH BRUNA MONTEIRO LUCAS KOMINKIEWICZ BRUNA MONTEIRO LUCAS KOMINKIEWICZ
ENFOQUE PORTO ALEGRE | ESPECIAL 6. Ensaio
ALESSANDA ARAÚJO JÚLIA AZEVEDO LUCAS KOMINKIEWICZ LUCAS KOMINKIEWICZ LUCAS KOMINKIEWICZ
fotográfico A pauta Ação de contada fotos

pauta de Rua contada em fotos

.7 ESPECIAL FÉ E ALEGRIA | JULHO DE 2023
BRUNA SCHLISTING BRUNA SCHLISTING BRUNA SCHLISTING JÚLIA AZEVEDO JÚLIA AZEVEDO JÚLIA AZEVEDO LUCAS KOMINKIEWICZ LUIZA CASTRO

Dignidade da porta para fora

Equipe media o acesso de pessoas em situação de rua a direitos básicos

Quem trabalha para oportunizar um pouco de dignidade às pessoas em situação de rua dificilmente consegue entregar-lhes direitos básicos da porta para dentro. Profissionais que lidam com essa camada da população longe do Censo, já que a coleta de dados estatísticos é sobretudo domiciliar, têm que atuar da porta para fora, nos espaços públicos.

Saber se aproximar, escutar de forma qualificada, construir vínculos, reduzir danos e mediar acessos à rede de proteção social faz parte do tipo de abordagem planejado para a rua. Desde 2016, é isso que as equipes do Centro Social de Educação e Cultura Farrapos, também chamado de Fundação Fé e Alegria, fazem para atender pessoas sem moradias.

Embora algumas equipes atuem nas frentes da Fundação, acompanhamos a de Camila, Abel, Daniel, Fernando e Maurício no dia 20 de maio. Naquele sábado pela manhã, de aparências e sensações outonais, duas repórteres e uma fotógrafa da disciplina de Projeto Experimental embarcaram na kombi branca do motorista Mauro com os cinco integrantes.

Diariamente, as equipes desse serviço de abordagem social, composta por psicólogos, educadores e assistentes sociais, atua cerca de 6 horas nas ruas. Porto Alegre até oferece serviços no Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP), ou no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), mas ambos são insuficientes devido à grande demanda. Sem contar que funcionam da porta para dentro.

PERCURSO MARCADO NA MEMÓRIA

Durante o percurso inicial, trafegamos por algumas ruas e avenidas da zona Norte da capital gaúcha, localizadas próximas à Fundação Fé e Alegria. Mas foi quando cruzamos a rua Santo Antônio, pela avenida Farrapos, que me veio à memória (dolorida) a situação daquela região. Em dezembro de 2021, escrevi uma matéria sobre a invisibilidade e as humilhações sofridas

pelas mulheres garis.

Quando estive na seção da terceirizada Cootravipa, na Santo Antônio, para conversar com uma das minhas fontes principais, andei bastante a pé naquele entorno, mas também de carro. Passei pela Rodoviária e por baixo do Viaduto da Conceição, até chegar no largo Glênio Peres. Presenciei cenas de pessoas jogadas ao Deus-dará. Abandonas pela falta de cuidado e pelo esquecimento de um serviço público que ignora os preceitos constitucionais.

De dentro da kombi, eu (Bruna) e minhas duas colegas Júlia Azevedo (a fotógrafa) e Paola De Bettio Tôrres (também repórter) observamos a rua como ela não deveria ser. Diante de tantos detalhes e da quantidade imensa de perguntas que vinham à mente, foi difícil acelerar a escrita em um pequeno bloco de papel, para registrar todas as palavras necessárias ditas pela equipe de abordagem social da Fundação.

O que escrevi até aqui, assim como as palavras e frases que vêm na sequência, têm muito da caligrafia ligeira naquele sábado pela manhã, das minhas pesquisas e vivências pessoais. Inclusive, quando saímos da avenida Farrapos e entramos na rua Garibaldi,

lá estava a fila de sempre, no número 461. Tem um Restaurante Popular no Centro de Porto Alegre. Antes mesmo das 10 horas da manhã, já se concentra um número elevado de pessoas para pegar a marmita perto do meio-dia. São servidos 400 almoços de segunda a sexta-feira no Restaurante Popular do Centro de Porto Alegre, e apenas 200 aos finais de semana. Conforme indica o site da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS), o requisito necessário para conseguir uma refeição diária é o Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico) - uma base de dados que serve para coletar informações de pessoas e famílias vulneráveis Brasil afora.

VÍNCULOS FRAGILIZADOS

Com pés descalços e mãos que seguravam um sanduíche recém-mordido e um copo plástico até a metade de café. Foi assim que conhecemos João Paulo, 22 anos, naquele sábado por volta das 10h e pouco da manhã. Logo que estacionamos perto da Rodoviária de Porto Alegre e saímos da kombi, o pessoal do serviço de abordagem social - que é como se chama essa equipe da Fundação Fé e Alegria - nos apre-

ÚLTIMA ABORDAGEM

“Um dos maiores problemas da rua é o álcool”, enfatizou Fernando. Na última parada daquela manhã de duras realidades, enquanto Camila e Maurício abordavam o aposentado João, de 73 anos, foi encostado no suporte de uma placa entre a avenida Independência e a rua Sarmento Leite que Fernando narrou o passado do idoso. Minutos antes da nossa chegada, João dormia estirado no chão sob uma lata de lixo da Praça Dom Sebastião, bem em frente ao Colégio Marista Rosário.

sentou o menino João.

“Bom dia, João! Tudo bem? Tudo certo com a tua identidade que te entreguei semana passada?”, perguntou Daniel. “Meu documento está lá”, apontou João, “está lá com um taxista amigo meu”. Um pouco antes de encontrarmos João, Daniel comentou que é comum a equipe dele ter que auxiliar a mesma pessoa em situação de rua, de duas a três vezes ou mais, com a documentação de identificação pessoal. “Eles perdem”, contou.

Aproveitando a mediação de Daniel, pedi que João nos contasse sua história. Ele saiu de casa com 14 anos de idade, que foi quando seus vínculos familiares começaram a se fragilizar. No início da adolescência, passou a não suportar ver seu padrasto bater e violentar sua mãe. Desde o primeiro contato com a rua, João começou a usar pedras de crack. Diariamente, essa é a principal droga que ele consome há oito anos.

Por mais que o relato rápido do jovem tenha recordado uma prisão por tentativa de homicídio, ele também mencionou que pensa em pedir ajuda para sair daquela vida e ser internado. Enquanto a equipe se aproximava e tentava dar um pouco de dignidade ao jovem, João comentou a tristeza que sente quando as pessoas passam por ele e sequer dão um bom dia. “Eu só queria ter a oportunidade de estudar, frequentar uma faculdade e ter uma câmera que nem essa que tá aí pendurada no pescoço de vocês”, disse.

Do ponto onde paramos, conseguíamos enxergar a porta principal da instituição. Era o horário de saída de adolescentes uniformizados que provavelmente finalizavam mais um sábado de atividades escolares. Naquele momento, reparei a moda do chinelo slide com meia entre os passos apressados que se somavam colégio afora. Mas em João, percebi que apenas um de seus pés estava calçado. O sapato do outro pé ficava agarrado em seus braços, aparentemente para que se sentisse dormindo abraçado em alguém.

Diante dessas cenas, Fernando comentou que João tinha trabalhado muitos anos como motorista de caminhão. Também, o cientista social recordou o tiro que o idoso levou no olho. Anos antes, ele reagiu a um assalto e foi baleado quando ainda trabalhava como motorista de caminhão. Conforme Fernando, isso justificava o fato de o aposentado ter um buraco fundo no lado esquerdo da face e, obviamente, a visão monocular.

A equipe tratou João de forma individualizada, de acordo com as necessidades dele (de pessoa em situação de rua e na terceira idade). Por conta disso, o recomendado foi que observássemos Camila e Maurício de longe. O pessoal da abordagem sabe que conversar com pessoas de qualquer faixa etária e ajudar nos trâmites da documentação já fortalece a humanização de quem está sendo atendido.

Porém, perante um problema social emergente, o poder público precisaria embarcar no mesmo tipo de serviço, com profissionais preparados. O propósito deveria ser diminuir a “rualização” e proporcionar qualidade de vida para quem carece nem que seja de uma última abordagem rumo à vida digna de ser vivida. n

8. ENFOQUE PORTO ALEGRE | ESPECIAL FÉ E ALEGRIA | JULHO DE 2023
BRUNA SCHLISTING JÚLIA AZEVEDO

A dor da humanidade

Aneblina porto-alegrense ainda umidificava o ar no sábado, dia 20 de maio, quando o Padre Vicente levou um grupo de alunos para dentro da casa que compartilha - e que pertence à comunidade da Paróquia Santíssima Trindade para mostrar o carrinho de supermercado que uma pessoa em situação de rua havia pedido para guardar enquanto realizava um tratamento hospitalar. Aquilo, para ele, era significativo da confiança que as pessoas vulnerabilizadas sentem com a equipe do Fé e Alegria, ao lhe confiar a única coisa que ainda possui.  “Vocês têm que se perguntar o porquê disso? Perguntar se dói. Se dói é humano. E essa é a dor da humanidade”, disse o Padre.

O Padre trabalha na Fundação Fé e Alegria, instituição jesuíta no bairro Farrapos, onde também funciona o Centro Social de Educação e Cultura Farrapos, que entre inúmeras atividades, presta Serviço Especializado de Assistência Social. A Fundação funciona junto à paróquia e é uma organização que auxilia pessoas em situação de vulnerabilidade, mas não tem teor “evangelizador” sobre essas pessoas. A região ali é conhecida como Vila Farrapos, parte mais pobre do bairro fica ali no entorno da Arena, junto de outras vilas também pobres.

O Centro Social de Educação e Cultura surgiu em 2010, depois da Fundação perceber a demanda na região. No entanto, em 2016 surgiu o Serviço de Abordagem Social, voltado para a convivência e fortalecimento de vínculos pela Ação de Rua. O trabalho com essas pessoas invisibilizadas foi ampliado, e hoje atende todas as mediações da área central de Porto Alegre.

Essa Ação conta com Assistentes Sociais, pessoas da área da saúde e Educadores Sociais. No sábado de neblina, parte da equipe de Ação de Rua realiza um percurso para averiguar a situação no Centro Histórico da capital. O trajeto começa pela Avenida Farrapos e pela Avenida Voluntários da Pátria, onde o grupo mostra uma das unidades do Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua, conhecido como Centro Pop,

onde, entre algumas coisas, as pessoas que estão na rua podem tomar banho.  Além disso, ali perto, entre os prédios históricos que estão se degradando, tem os quarteirões onde há a venda e o uso concentrado de crack. Perto, há o contraditório Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) de Rua, que se esperava que fosse a céu aberto, mas, segundo a equipe do Fé e Alegria, o serviço que deveria estar ocupando a rua está fechado em um prédio.

MAPEAMENTO

O Serviço Ação na Rua faz uma busca pelas pessoas em situação de vulnerabilidade extrema, trabalha com redução de danos, articulação para facilitar o acesso aos serviços públicos de saúde, assistência, inclusive por meio da solicitação de documentos. Muitos, se não a maior parte, já são conhecidos pelo grupo da Fundação. “A gente faz o papel de ler a constituição e ir atrás desse direito”, diz o Educador Social Fernando.

Depois de passar pela rodoviária, fomos fazer um trajeto descrito como “mais aventureiro”, mas antes, no caminho, nos deparamos com “H.” (ocultamos os nomes) em uma esquina do Centro Histórico. H. é um senhor de 79 anos que traz consigo inúmeros livros - da Bíblia, passando por enciclopédias até livros da área do direito. Além deles, uma porção de sacolas, latas, potes, enfim. Ele estava com um exemplar da bíblia, que estava entre as pernas abertas, e lia com os óculos pretos

quase na ponta do nariz.

H. conversou com o grupo e parecia ter um vigor alto para quem está na velhice e vive na rua. O grupo não sabe precisar, mas acredita que ele tenha algum transtorno mental. Talvez esquizofrenia. Ele conta muitas histórias. Uma delas é do medo que tem das kombis, já que quando ainda morava em Ijuí, segundo ele, uma delas passava pela rua e sumia com as pessoas. Várias das outras estão relacionadas a uma figura política emblemática: o presidente Lula. H. diz que conheceu o presidente quando ele ainda tinha o mindinho e já foram para Saturno juntos.   Parte da equipe se agacha para conversar com ele e ver se está tudo bem. Ele fala dos livros, alcança alguns e resolve ler em voz alta algumas partes da Bíblia. Ele diz estar bem e não aceita mais muita ajuda.

H. é um exemplo de que nem todos que estão na rua são pessoas vinculadas às drogas. Muitos casos estão relacionados aos problemas familiares, como o abandono ou violência, à pobreza extrema, e em muitos casos à transtornos psiquiátricos e mentais.

ESCONDERIJO

O próximo destino era o ponto “aventureiro”. Ali, há cerca de dois anos, vive T. A equipe disse que tem tido con-

tato há algum tempo com ele, e que o próprio T. explicou o caminho mais fácil de chegar até ali. Em sua “casa”, T. usou alguns pedaços de madeiras para erguer o colchão do chão. Assim, ele fica protegido da chuva que cai e da água que escorre da descida. Ele também usou outros pedaços de madeira para criar uma espécie de caixa ao redor do colchão, assim sendo este o seu “quarto”. Ao lado, há uma poltrona de modelo antigo, com tecido rasgado e sujo, um vaso sanitário cheio de objetos, itens e caixas empilhadas e uma mesa de plástico com panela e algumas comidas - velhas- por cima.

Resto de ketchup, molho de tomate e pimenta, entre outros, foram usados para criar uma mistura na panela, que parecia estar exposta a alguns dias, contaminando-se com a fuligem que os automóveis levantam, a poeira e os próprios microrganismos do ar.

De todas as pessoas que tínhamos tido contato até então, esse parecia o mais consciente da situação e o que melhor conseguiu se organizar. A equipe da Fundação explica que os casos de internação compulsória só acontecem quando o indivíduo pode morrer ou seu estado representa risco para outros. Além disso, o nível de consciência da situação é uma “régua” importante.

T. começa a contar sua história. Diz que era casado e tem filhos, mas que a vida já era difícil, então ele bebia para amenizar o sofrimento. A situação gerava muitos desentendimentos familiares, e a esposa achou melhor a separação. Ele afirma já ter bebido, fumado maconha, cheirando cocaína até parar no crack. Sem dinheiro, foi parar nas ruas. Acabou conhecendo “a pedra” e diz saber que é o maior problema da vida dele. Já faz 20 anos que Vorlei está nessa situação.

Ele conta que a equipe do Fé e Alegria está ajudando-o a conseguir nova documentação e, assim, espera conseguir receber Bolsa Família. Ele tem esperança de conseguir alugar um quarto de pensão ou algo do gênero. Ele é catador e diz que tenta uns bicos. Antes do crack, ele era pintor. Acabou sendo preso por furto e roubo. Para ele, hoje é impossível conseguir um emprego formal depois da passagem pelo presídio. Os filhos o procuraram, mas ele diz que não consegue receber ajuda para largar o vício, e espera manter o distanciamento para poupá-los.  T. tem 55 anos e é natural de São Gabriel.    Junto do “acampamento” de T., sentado na poltrona, estava F. Os dois se dizem amigos e ele conta vir visitá-lo com frequência. F. também está em situação de rua. Pergunto onde ele fica, e ele responde: “Na Borges”, explicando ficar embaixo do famoso Viaduto da Borges de Medeiros. F. é mais quieto e retraído, mas não parecia desconfiado de nada. A equipe do Fé e Alegria conversou com ambos, ofereceram cobertores novos, comentaram dos serviços e explicaram como está o processo da documentação de F. O sábado segue. Subimos o viaduto de volta, atravessamos entre carros que passam voando, mas dessa vez a volta foi mais fácil. No entanto, não foi fácil digerir o soco do estômago que é ver pessoas em situações desumanizadoras, que estão perdendo toda a dignidade de vida, enquanto os carros seguem, os trabalhos não param, os políticos seguem suas campanhas de “recuperação” da cidade. A injusta distribuição de renda e falta de políticas públicas que de fato alcancem as pessoas seguem alimentando um buraco negro social. n

.9 ENFOQUE PORTO ALEGRE | ESPECIAL FÉ E ALEGRIA | JULHO DE 2023
Ação de Rua da Fundação Fé e Alegria monitora casos de pessoas em situação de rua PAOLA B. TORRES JÚLIA AZEVEDO

Crônicas de um morador de rua

Nas matérias que seguem, dois exemplos de que há esperança mesmo na adversidade

Alexandre Medina Falkenbach, de 56 anos, é apaixonado por escrever, sendo um homem de muitas opiniões e é um dos moradores de rua acolhido com ações realizadas pela Fundação Fé e Alegria, através do Serviço de Abordagem Social, que atende pessoas em situação de vulnerabilidade social e oferece apoio a indivíduos em situação de rua, com o intuito de contribuir para uma sociedade mais justa e igualitária.

Seu Medina, como é carinhosamente chamado, conta que está na rua há quase 20 anos e, que só há pouco tempo, recebeu apoio. “Depois que o pessoal do Fé e Alegria entrou na minha vida, eu melhorei muito. Não tenho nada a reclamar, apenas elogiar. Antes, eu não tinha apoio de nada e de ninguém, eles me acolheram, me ajudaram, me deram uma renda mensal, a também ajudaram a tirar os documentos, como título de eleitor, certificado de reservista, cartão cidadão, registro geral, atendi-

mento à saúde, pessoal que me atende aqui”, comenta.

Medina nasceu em Rio Pardo, no interior do estado, mas foi registrado em Porto Alegre, cidade onde se criou, principalmente pelas ilhas da capital. Enquanto conta a história de vida dele, mostra seu livro e diário que tenta escrever todos os dias. Sempre começa com: Porto Alegre, data completa e uma frase religiosa: “Pai, guia meus passos, me mostre o caminho certo a seguir, não me deixe cair em tentação e livrai-me do mal. Obrigado, pai, por mais um dia! E seja feita a vossa vontade!”.

O seu livro é chamado

“Crônicas de um morador de rua” em que escreve suas opiniões sobre diversos assuntos, inclusive o que pensa sobre o uso de drogas. Diferente do diário, ele escreve quando quer, para não ser uma obrigação.

Seu Alexandre Medina passa boa parte de seu tempo livre lendo e escrevendo

“Eu escrevo histórias sobre mim também, apesar dessa minha situação toda, o meu nome é muito bonito.”, brinca.

Porém, antes disso, houve uma longa caminhada em que Medina percorreu durante a sua vida. Ele teve 19 anos de trabalho, tendo como primeira

função a de porteiro do extinto Hospital Nossa Senhora do Livramento, em Guaíba, depois tirou a carteira de motorista e passou a dirigir a ambulância, carro forte, e táxi, entre 1986 e 1987. Após isso, trabalhou na SCV como vigilante no Banco Itaú, da Siqueira Campos, à noite. Ficou por três meses para assinar contrato e realizou um curso de extensão, transporte e valores. Trabalhou ainda dois meses como guarda de valores, fez um teste de motorista e permaneceu por quatro anos.

Quando ficou desempregado, tinha que sustentar a família na dificuldade, por isso foi para a rodoviária e trabalhou como taxista por seis anos, e lá, infelizmente passou a usar drogas, perdendo tudo que tinha a partir de 2002. Foi preso por três vezes. Na primeira, chegou pela manhã, saiu no mesmo dia pela tarde. Na segunda, foi preso em um sábado e saiu na segunda-feira. Na terceira, ficou preso por oito meses. Quando foi solto, o policial avisou a ele que, a partir daquele momento, as próximas vezes que fosse preso seriam por anos. “Naquele dia, eu disse a mim mesmo, nunca mais vou fazer coisa errada na vida. Depois disso, só

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trabalhei certinho com reciclagem e limpeza”, revela.

Há seis anos, Medina mora em uma esquina da rua de Porto Alegre, muito próxima à estação de trem. Por lá, convive com seu cachorro muito amado, que tem nome de Zorro. Por acompanhá-lo por todos os lugares no dia a dia, inclusive no seu trabalho com a reciclagem, o apelidou também de “cupincha” por causa da parceria diária. Porém, este lugar teve que ser reconstruído por ele, visto que ocorreu um incêndio no final de abril de 2022. Até hoje não sabe como isso aconteceu, apenas encontrou cinzas. Para a tristeza dele, o fato fez com que perdesse várias escritas suas.

Uma dessas ideias ele deixou claro durante a conversa sobre o uso de drogas: “Se a polícia deixasse de gastar todo esse dinheiro no combate às drogas e resolvesse liberar, cobrasse imposto e revertesse em tratamento de quem realmente precisa, eles iam ganhar e botar na cadeia quem realmente merece estar lá dentro. Eu penso assim, pode ser que eu esteja errado. Pensa bem, eles iam tirar 22 daquela cela, iam ficar seis e iam ter duas vagas disponíveis ainda. E esse dinheiro todo que eles gastam no combate e repressão às drogas, eles poderiam reverter em outra coisa e ainda lucrar com isso”, opina. Essa fala dele se refere a quando esteve preso em 2006 e foi colocado em uma cela com espaço para oito pessoas, mas eles estavam em 28 homens, ultrapassando o limite da capacidade. E, dos 28 presos, 22 estavam por causa do uso de drogas.

Apaixonado por escrever e ler, Medina diz que tem uma mania de se informar e anotar logo em um papel qualquer frase que vê em panfleto, revista ou jornal. As pessoas contam sobre qualquer assunto e ele já tenta montar uma história. Uma dessas histórias que ele quer contar é sobre o avô dele, que era imigrante da Alemanha, mas ele não se recorda de muita informação. “Depois que eu morrer, daqui uns 100 ou 200 anos, não quero que as pessoas passem no cemitério, leiam e lembrem apenas de um nome bonito, preciso deixar algum legado, para que os outros utilizem de alguma forma”, salienta.

Mesmo com tantos problemas, o sonho dele se mantém vivo, assim como a vontade de arrumar os próprios dentes, já que a Fundação Fé e Alegria prometeu isso e deverá cumprir em seguida. Só não ocorreu ainda porque ele mesmo não conseguiu

encaixar um horário na sua longa e dura rotina de trabalho na reciclagem.

HÁ UM AMOR PELA NATUREZA

Em um dos viadutos de Porto Alegre há praticamente uma floresta que foi plantada por Elias Machado, de 60 anos. Desde 1995, ele passou a morar na região e começou a plantar

as árvores e plantas que dão vida ao local. Mas antes de reflorestar embaixo do viaduto, com amoreira, abacate e árvore de algodão, seu Elias enfrentou muitas dificuldades por causa da dependência da bebida e de drogas. Natural de Tenente Portela, município do interior do Rio Grande do Sul, trabalhou por muito tempo como colono,

antes de vir a Novo Hamburgo para realizar o curso para operador de máquina nas fábricas de calçados da cidade, fazendo solado. Porém, ele conta que teve problemas com uma namorada e passou a beber demais, gastava todo o seu salário com bebida e faltou serviço várias vezes por esse motivo. Pediu demissão, trabalhou em algumas obras de

construção por Guaporé e, lá, era “trabalhando e bebendo”, o que o tornou totalmente dependente do álcool.

Com isso, por muito tempo, Elias buscava acomodação em albergues da capital, mas era rejeitado pela forma que estava vestido e também por estar alcoolizado. Desta forma, encontrou o viaduto para chamar de sua casa e conseguiu, dentro das limitações, realizar um sonho de viver em meio à natureza.

Vivendo com vários cachorros e gatos, seu Elias revela a paixão por animais: “Meu pai era professor, e queria que eu estudasse quando criança, mas eu saía escondido e até apanhava, mas ia para a chácara da minha tia, que tinha bois, cabritos, cavalos e outros animais. Sempre gostei!”

Atualmente, trabalha com reciclagem e conta com orgulho que em um ano conseguiu 13.800 kg de material reciclável. Ele também agradece o apoio que a Fundação Fé e Alegria fornece à vida dele: “Esse trabalho de assistência social é muito importante, já que muitas pessoas estão perdidas, fora do convívio social e nem raciocinam mais sobre a própria vida. Essa abordagem do Fé e Alegria dá um estímulo para continuar batalhando.”

Graças à Fundação Fé e Alegria, passou a receber o Programa Bolsa Família, que há muito tempo já era um direito dele e não tinha a oportunidade de receber. Com essa renda mensal, Elias traz à tona que consegue viver melhor e que resolveu parar de beber por contra própria porque não tinha mais saída na própria vida, apenas a morte. “É importante fazer o que gosta. Nem que seja a mínima atitude, se estiver reciclando um lixo, a pessoa está evoluindo, fazendo algo certo. O que leva muito o homem à droga é a falta de ocupação, por estar com a mente vazia”, opina.

Por fim, Bárbara Amaral, Técnica Social do Serviço de Abordagem Social da região Humaitá/Navegantes fala sobre o serviço essencial da Fundação Fé e Alegria. “Há uma equipe que acompanha, atende e auxilia nos processos de vida deles. São pessoas que tem dificuldades de acessar vários dispositivos de políticas públicas. A gente faz esse processo de acompanhamento, de uma escuta sensível da história de vida e do desejo deles em busca de um movimento de enxergar essas pessoas e determinar até onde podemos garantir seus direitos.” n

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GABRIEL JAEGER ALESSANDRA ARAÚJO Seu Elias Machado (acima) abraçado com a equipe do projeto. Abaixo, local onde ele mora, com sua fauna e flora

Sobre a história do Serviço de Abordagem de Rua

OServiço é realizado na Fundação Fé e Alegria desde o ano 2007. A equipe é formada por 20 pessoas, de 28 a 43 anos. São Educadores Sociais, Psicólogos, Assistentes Sociais e Coordenação. O grupo é dividido em pelo menos três micro equipes: Micro equipe Centro, Micro equipe Navegantes/Humaitá e Micro equipe Famílias. Cada equipe cuida das ramificações específicas, como por exemplo, a Micro Equipe Famílias cuida de questões como trabalho infantil ou outras situações de rua, dando orientações aos pais, prestando apoio, ajuda, mediando o alcance de direitos que essas famílias não tenham conseguido acesso ainda, garantindo, inclusive, que os direitos

dos menores de idade também sejam respeitados.

No ano de 2022, foram 11.296 ações realizadas pelo grupo que atua diretamente no Serviço de Abordagem Social da Fundação. As ações englobam abordagem no espaço da rua, reuniões, atendimentos particulares para atender a demanda das pessoas e famílias, observações, mapeamento de territórios e sistemáticas de campo. São realizadas, em média, mil ações por mês. Os profissionais atuam no 4º distrito, região do Centro, e englobam três redes: Centro, Ilhas e Humaitá/ Navegantes. Três territórios que contemplam 15 bairros da região porto alegrense.

Vale ressaltar que, deve ser reconhecido como um trabalho

extremamente técnico. Não é um trabalho de caridade. É um serviço especializado com profissionais formados e capacitados para atuar de maneira responsável e que possam garantir aos usuários do serviço, o acesso à documentação, acesso à alimentação, à saúde, à educação, ao trabalho e renda, entre outros.

De janeiro a maio de 2023, 882 pessoas receberam atendimento direto com as equipes. Hoje, há uma média de 40 famílias em acompanhamento, cerca de 170 pessoas. Os acompanhamentos variam muito em relação ao tempo, às vezes são demandas pontuais em que atendem uma única vez a pessoa ou por um, dois meses. Mas, também existem pessoas que

estão recebendo atendimento há três, cinco ou até 10 anos.

Em dias de chuva e frio, o serviço não para. Capa de chuva, roupas e calçados adequados e as equipes já estão na ativa. Em dias assim, também são realizados trabalhos com famílias que já são acompanhadas pela assistência da Fundação. Questões administrativas, como o encaminhamento de documentações, acesso à saúde, entre outros. E intercalam entre novas abordagens, planejamento de novas ações, visitas às famílias que são atendidas e acompanhadas pela equipe para saber como estão, e fazer o serviço burocrático, como encaminhamento da “papelada” aos cartórios, instituições, órgãos públicos, etc.

Outro ponto importante de ser destacado, é justamente a resiliência dos profissionais que atuam no serviço. São pessoas que gostam do que fazem, veem sentido neste trabalho e que se sentem no compromisso de atuar na garantia de direitos de todas as pessoas que são atendidas pelo grupo. O que se pode ver, entre outras coisas, é que o trabalho ali não é nada fácil. A missão é árdua. Mesmo assim, não desistem do trabalho tão importante para toda a comunidade porto alegrense. Dessa forma, os colaboradores têm conseguido alcançar o reconhecimento dos moradores da região. n

JULHO DE 2023 ENFOQUE PORTO ALEGRE FÉ E ALEGRIA ESPECIAL
MICHELE ALVES LUIZA CASTRO

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