Consciência e Liberdade N.º 18 (2006)

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CONSCIÊNCIA E LIBERDADE

DOSSIER

Nº 18 - 2006 – Publicação Anual - Preço 10,00€

A Roménia e a Liberdade Religiosa

Estudos ....................................................... 9 Dossier ........................................................ 35

Interior do Mosteiro de Zanfira, perto de Ploiesti, Roménia. Foto Oikoumene

A liberdade religiosa na escola Romena .... 35 O Debate Habermas-Ratzinger Convergências e implicações....................... 47 Da "Igreja Dominante" e dos "Novos" Movimentos religiosos" perante uma variedade de confissões .............................. 59 A Liberdade das religiões na jurisprudência dos tribunais romenos .................................. 76 Documentos ................................................ 86 Nações Unidas – Os direitos da criança na Roménia .................................................. 86 Nações Unidas – Comissão dos Direitos do Homem.................................................... 88



ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL PARA A DEFESA DA LIBERDADE RELIGIOSA Dotada de estatuto consultivo junto das Nações Unidas e do Conselho da Europa Sede Internacional: Schosshaldenstrasse 17, CH 3006 Berne, Tel. +41 031 359 1527 E-mail 102555,1274@compuserve.com - Fax +41 031 359 1566 Secretário-Geral: Karel Nowak Conselho de honra: Presidente: Mary ROBINSON, antigo alto-comissário para os direitos humanos das Nações Unidas e antigo presidente da República Irlandesa, Estados Unidos Membros: Abdelfattah AMOR, presidente do Comité dos Direitos do Homem nas Nações Unidas, Tunísia Jean BAUBÉROT, presidente de honra da Escola Prática de Altos Estudos na Sorbonne, titular da cadeira de História e Sociologia do Laicado na EPHE, Paris, França Beverly B. BEACH, antigo Secretário Geral Emérito da International Religious Liberty Association, Estados Unidos. François BELLANGER, professor universitário, Suiça André CHOURAQUI, escritor, Israel Olivier CLÉMANT, professor universitátio, escritor, França Alberto DE LA HERA, professor universitário, Director Geral dos Assuntos Religiosos, do Ministério da Justiça, Espanha. Silvio FERRARI, professor universitário, Itália Alain GARAY, advogado do Supremo Tribunal de Paris e investigador, França Humberto LAGOS, Professor universitário, escritor. Chile Adam LOPATKA, antigo presidente do Supremo Tribunal, Polónia Francesco MARGIOTTA BROGLIO, departamento de Estudos sobre o Estado, professor universitário, presidente da Comissão italiana para a liberdade religiosa, representante da Itália na UNESCO Rosa Maria MARTINEZ DE CODES, professora universitária, Espanha Jorge MIRANDA, professor universitário, Portugal Raghunandan Swarup PATHAK, antigo presidente do Supremo Tribunal, Índia e antigo juiz do Tribunal Internacional de Justiça Émile POULAT, professor universitário, director de investigação no CNRS, França Jacques ROBERT, professor universitário, membro do Conselho Constitucional, França Jean ROCHE, do Instituto, França Joaquin RUIZ-GIMENEZ, professor universitário, antigo ministro, presidente da UNICEF Espanha Antoinette SPAAK, ministra de Estado, Bélgica Mohamed TALBI, professor universitário, Tunísia Rik TORFS, professor Universitário, Bélgica Gheorghe, VLADUTESCU, professor universitário, vice-presidente da Academia romena, antigo Secretário de Estado para os assuntos religiosos, Roménia ANTIGOS PRESIDENTES DO CONSELHO Srª Franklin ROOSEVELT, 1946 a 1962 Dr. Albert SCHEWEITZER, 1962 a 1965 Paul Henri SPAAK, 1966 a 1972 René CASSIN, 1972 a 1976 Edgar FAURE, 1976 a 1988 Léopold Sédar SENGHOR, 1988 a 2001


Consciência e Liberdade Nº 18 - Ano 2006

Órgão Oficial da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa Nº de Contribuinte: 500 847 088 Proprietário e Editor: Associação Internacional para a Defesa e Liberdade Religiosa Sede e Redacção: R. Joaquim Bonifácio, 17 – 1169-150 Lisboa – Portugal Tel. 21 351 09 10 – Fax: 21 351 09 29

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Conscienza e libertà Lungotevere Michelangelo, 7-00192 Roma (Itália) Consciencia y libertad Cuevas 23, 28039 Madrid (Espanha) Savjest i sloboda (croata e sérvio) Krajiska 14, Zagreb (Croácia) Conscience and Liberty 119, St. Peter’s Street, St. Albans, Herts., ALI, 3EY (Inglaterra)

Tiragem: 700 exemplares Inscrição na E.R.C. nº 106 816 Depósito Legal: 125097/98 ISSN 0874-2405

Execução Gráfica: Santos & Costa, Lda. - Vale Travelho - Porto de Mós Política editorial: As opiniões emitidas nos ensaios, os artigos, os comentários, os documentos, as críticas aos livros e as informações são apenas da responsabilidade dos autores. Não representam necessariamente a opinião da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa de que esta Revista é o órgão oficial. Os artigos recebidos pelo secretariado da Revista são submetidos à apreciação do Conselho redactorial.


Número 18 – 2006

Editorial Estudos

O respeito pela dignidade humana, um combate para continuar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5

A. Garay Que meios de defesa e de protecção dos factos religiosos? A situação em França . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 M. A. Semino A Laicidade na América Latina: o exemplo uruguaio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29 Dossier A Roménia e a liberdade religiosa I. Horga A liberdade religiosa na escola romena . . . . . . . . . . . . 35 A. Marga O debate Habermas-Ratzinger – Convergências e implicações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47 M. Gheorghe Da “Igreja dominante” e dos “novos movimentos religiosos”para uma variedade de confissões . . . . . . . . 59 C. Cuciuc A dinâmica de pluralismo religioso na Roménia . . . . . 69 V. Vedinas A liberdade das religiões na jurisprudência dos tribunais romenos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76 Documentos Nações Unidas - Os direitos da criança na Roménia . . 86 Nações Unidas - Comissão dos Direitos do Homem 61ª sessão (14 de Março a 22 de Abril de 2005) Ponto 11(e) – Intolerância religiosa . . . . . . . . . . . . . 88


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Editorial O respeito pela dignidade humana, um combate para continuar A tendência natural de todo o homem é julgar as situações a partir de critérios que lhe são próprios. Naquilo que diz respeito à liberdade religiosa, toda a sua história atesta que é sempre necessário um esforço constante para compreender as formas como são vividos os princípios fundamentais que estão na base das sociedades civis, a partir do momento que eles são interpretados num outro contexto social, histórico ou religioso. Isso é particularmente verdade quando se trata de considerar as evoluções que marcaram, e que marcam ainda, a vida social, política e religiosa na Roménia. O confronto de opiniões, de convicções religiosas e de posições políticas, ali existentes, têm como traço principal a complexidade. Tentar compreender. É um dos aspectos da linha editorial da nossa revista. Dedicada à análise da liberdade religiosa no mundo, a Conscience et Liberté tem-se interessado, desde os inícios da sua publicação, pelo caso da Roménia. Artigos da autoria de autores acreditados têm traçado quadros de situação da liberdade religiosa nesse país, sublinhando, ao mesmo tempo, factores dominantes da sua construção 1. O dossier deste número é consagrado à liberdade religiosa na Roménia. Foi preparado, principalmente, por Viorel Dima, secretário da Asociatia Nationala Pentru Apararea Libertatii Religioase Constiinta si Libertate, em Bucareste, e parceira da AIDLR. Agradecemos-lhe, vivamente, assim como aos autores romenos dos artigos que o compõem. São todos especialistas na matéria, reconhecidos nos seus respectivos países. Trataremos, neste dossier, da liberdade das religiões na jurisprudência dos tribunais remenos (Verginia Vedinas, professora na Faculdade de Direito da Universidade de Bucareste), da liberdade religiosa nas escolas romenas (Irina Horga, investigadora do Instituto Romeno das Ciências da Educação), da questão de “uma redefinição das ‘relações de forças’ entre os principais actores da cena religiosa romena” marcada por “uma permanente diversificação e pluralização” (Manuela Gheorghe, investigadora do Instituto de Sociologia da Academia Romena) e de uma consideração do professor Constantin Cuciuc (Instituto de Sociologia da Academia Romena) sobre “a dinâmica do pluralismo das religiões na Roménia”. Este dossier compreende, também, um artigo cujo conteúdo deriva da ética e da teologia. Foi redigido pelo professor Andrei Marga, da Universidade Babe-Bolyai em Cluj-Napoca na Transilvânia. Ele 5


Editorial

aborda um aspecto muito sensível das relações da sociedade romena com o Ocidente liberal. O autor analisa o seu assunto sob um ângulo filosófico. A questão que ele aborda inscreve-se no contexto do actual debate europeu sobre os “valores” na base de uma construção democrática de um Estado. Por um lado, quais são, numa sociedade secularizada. As “fontes da motivação” propostas aos cidadãos para as defender (Jürgen Habermas)? Por outro lado, a evocação, pelo cardeal Ratzinger2 da “emergência de uma sociedade mundial” face às novas técnicas que “transformam o problema dos fundamentos éticos das culturas que se cruzam num problema crucial para a nossa época”, o cardeal Ratzinger vê, nas sociedade contemporâneas, “desenvolvimentos que reclamam um novo apela à religião para que a humanidade preserve os limites de uma vida digna de ser vivida”. Seria, talvez, interessante para os nossos leitores, descobrir, através da comparação com outros estudos publicados na Conscience et Liberté (ver nota nº 1), as linhas de uma evolução da situação da liberdade religiosa na Roménia entre 1974 e 2005. Como é o caso dos números precedentes da revista, esta comporta outros estudos e documentos consagrados ao tema desta liberdade e igualmente interessantes. Queremos agradecer, também, aos seus autores. Depois de dez anos passados como redactor da Conscience et Liberté, é uma honra para mim, neste editorial, passar o testemunho a Karel Nowak, que nos vem de Praga. Certo de que ele colocará toda a sua competência e interesse tendo em vista a promoção e a defesa da liberdade religiosa, estou confiante no futuro da revista. Desejo-lhe sucesso e muitas alegrias, como eu próprio conheci, graças às numerosas relações que se estabeleceram com aqueles que partilham o mesmo ideal. Quero exprimir os mais calorosos agradecimentos a todos aqueles que, com a sua colaboração e contribuições, permitiram, não só a existência da revista, mas, sobretudo, terem conduzido os seus leitores através do dédalo das reflexões e análises. Também lhes ofereceram interessantes fontes de informação e de inspiração para o, exercício das suas responsabilidades e das suas pesquisas académicas. Tenho, especialmente, uma dívida de reconhecimento para com as secretárias da redacção que me secundaram durante estes dez anos. MarieAnge Bouvier, Mónica Braun e Sigrid Büsch, pela sua competência, a sua disponibilidade, a sua entrega e a sua paciência ao longo dos trabalhos, por vezes arrasantes, que uma publicação como a Conscience et Liberté necessita. Agradeço, também, aos tradutores e tradutoras de França, da Alemanha, de Espanha, da Itália e de Portugal, pelo cuidado que sempre tiveram na exactidão dos termos e das expressões para não traírem o pensamento dos autores. Agradeço, igualmente, aos Secretários da AIDLR pela sua eficaz 6


Editorial

ajuda e, muito especialmente, a Dora Bognandi, em Roma, para a edição italiana. Não poderia citar, aqui, os nomes de todos os autores dos artigos e de todos aqueles que, com o seu apoio, ajudaram e encorajaram toda a equipa da redacção nesta tarefa. Penso, em particular, em John Graz, Secretário Geral da International Religious Liberty Association, em Silver Springs (Estados Unidos) e no “velho lutador” da liberdade religiosa Bert B. Beach. Junto a estes nomes a professora Rosa Maria Martinez de Codes, titular da cadeira de História e Geografia da Universidade Complutense de Madrid, fortemente envolvida na redacção espanhola de Consciencia y Libertad. Gostaria, também, de manifestar todo o meu reconhecimento às seguintes pessoas, sem que os seus nomes sejam aqui mencionados em ordem de preferência: Professor Abdelfattah Amor, antigo relator especial das Nações Unidas sobre a liberdade de religião e de convicção e presidente do Comité dos Direitos do Homem das Nações Unidas; Professor Jean Baubérot, presidente de honra da Escola Prática de Altos Estudos (EPHE) na Sorbonne, titular da cadeira de História e sociologia da laicidade na EPHE; Professor Francesco Margiotta Broglio, de departamento de Estudos do Estado, presidente da comissão italiana para a liberdade religiosa e representante da Itália na UNESCO; Doudou Diène, relator especial das Nações Unidas sobre as formas contemporâneas de racismo, de descriminação e de intolerância; Professor Jean-Paul Durand, deão da Faculdade de Direito Canónico no Instituto Católico de Paris; Professor Sílvio Ferrari, deão da Faculdade de Direito Eclesiástico do Estado, na Universidade de Milão; Alain Garay, advogado, Professor Jean Halpérin, da Universidade de Genebra; professor Alberto de la Hera, antigo Director Geral dos Assuntos Religiosos do Ministério da Justiça de Espanha; Professor Joaquin Montecón, Director Geral adjunto para a coordenação e a promoção da liberdade religiosa do Ministério da Justiça de Espanha; Jean-François Mayer, sociólogo e investigador da Universidade de Friburgo, Suíça; S.E. Roland Minnerath, arcebispo de Dijon; Professor Jorge Miranda, “pai da Constituição portuguesa” e Presidente do Conselho Científico da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; professor Emile Poulat, Director de Investigação no CNRS; Professor Jacques Robert, antigo membro do Conselho Constitucional de França; Professor Patrice Rolland, professor da Universidade de Paris XII, membro do Grupo de Sociologia das Religiões e do Laicado; Professor José de Sousa Brito, Juiz Conselheiro do Tribunal Constitucional de Lisboa e professor na Universidade Nova de Lisboa; Professor Rick Torfs, professor de Direito Eclesiástico do Estado, da Faculdade de Direito de Lovaina, Bélgica e o Professor Jean-Paul Willaime, Director da Escola Prática de Altos Estudos em Sorbonne. Ao cabo destes anos, alguns se tornaram amigos de quem guardo uma grata recordação. 7


Editorial

Muitas outras pessoas, noutras partes do mundo, professores, ou homens de Estado, mereciam ser mencionados. Para eles também os meus agradecimentos. Termino este editorial, formulando o voto de que, face aos desafios cada vez mais numerosos e cruciais, o combate pelo respeito da dignidade humana, que implica a promoção da liberdade religiosa, encontre, sempre, espíritos esclarecidos para, enquanto for necessário, remeter a questão para a ordem do dia. Maurice Verfaillie Notas 1. Gheorghe Nenciu, “Os Cultos na Roménia”, in Conscience et Liberté, primeiro semestre 1974, nº 7, p. 19-23; Ms. Ion Bria, “A Igreja Ortodoxa na Roménia, in Conscience et Liberté, nº 13, primeiro semestre 1977, p. 71-78; Pierre Lanarès, “A Vida religiosa na Roménia”, in Conscience et Liberté, nº 19, primeiro semestre 1980, p. 9-17; Gheorghe Vladutescu, “A liberdade religiosa na Roménia - Passado, presente, futuro”, in Conscience et Liberté, segundo semestre 1991, nº 42, p.81-89. 2. NDLR: O Papa Bento XVI era ainda Cardel no momento da redacção deste texto.

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Estudos Que meios de defesa e de protecção das práticas religiosas? A situação em França Sr. Alain Garay* «Profanação: nove sepulturas do quadrado muçulmano da necrópole nacional de Revigny-sur-Ornain (Meuse) foram profanadas[...] nove das cinquenta estelas muçulmanas foram quebradas rente ao solo. O Secretário de Estado dos Antigos Combatentes, Hamlaoui Mekachera, exprimiu a sua «viva indignação”.» (Le Monde, 28 de Março de 2003). «Anti-semitismo : uma mulher de sessenta e três anos foi apedrejada e ficou com ferimentos ligeiros, na noite de quinta-feira 27 de Março, quando se preparava, juntamente com outras pessoas, para entrar numa sinagoga em Garges-les-Gonesse (Val-d’Oise). Os projecteis foram lançados contra o grupo a partir de um imóvel de três andares sobranceiro ao local de culto.[...]» (Le Monde, 30-31 de Março de 2003). «[...] A requerente queixa-se de uma série de reacções hostis (campanha de imprensa, criação de associações de defesa, organização de debates públicos sobre as seitas, etc.) ou de medidas, tais como decisões da justiça e decisões administrativas, que teriam afectado certas testemunhas de Jeová [...]o Tribunal salienta, por um lado, que quando se faz referência ao relatório do inquérito parlamentar sobre as seitas, esta referência constitui um simples obiter dictum que não pode, em caso algum, ser considerado como a ratio legis da medida. O tribunal nota, aliás, como o governo, que um relatório parlamentar não tem qualquer efeito jurídico e não pode servir de fundamento para nenhuma acção penal ou administrativa.» (Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, decisão de inadmissibilidade de 6 de Novembro de 2001 no caso Federação Cristã das Testemunhas de Jeová contra a França.) A defesa e a protecção das práticas religiosas não se improvisam1. Elas resultam antes de mais de uma justa medida da natureza e dos efeitos dos actos qualificados como atentatórios aos direitos e liberdades dos crentes. Mais, sob o efeito conjugado das leis da República e do estatuto laico das instituições públicas, o Estado em si, parece «ignorar» os crentes não se interessando senão pelos cidadãos administrados. O discurso sob a forma de vitimização, de lamentações e de «jere________ *Advogado no Tribunal de Paris e investigador da Universidade de Marselha 9


Que meios de defesa e de protecção dos factos erligiosos?

miadas» que os crentes atingidos podem ter, realmente ou não, nos seus direitos e nas suas obrigações pode sustentar, por sua vez, uma suspeição globalizadora sobre um determinado país sem medida nem colocação em perspectiva histórica e social. É o caso da França cuja posição das autoridades públicas foi posta em causa por certos responsáveis judeus devido ao «recrudescimento» de actos anti-semitas no país, e por certas instâncias nacionais (Office of International Religious Freedom do Departamento de Estado dos Estados Unidos da América, e a U.S. Commission on International Religious Freedom) e organizações internacionais (Federação Helsínquia para os Direitos do Homem), tendo em conta a política de luta contra as seitas»2. O que se passa realmente? Por um lado, a denúncia pública de alegados atentados aos direitos e liberdades dos crentes provenientes frequentemente de grupos de pressão constituídos em associações de defesa sem que se saiba quem verdadeiramente os compõe e que parecem fazer concorrência às instâncias «tradicionais» de defesa dos direitos do homem do tipo Federação Internacional dos Direitos do Homem, Liga dos Direitos do Homem3. Aqui, o debate sobre a legitimidade e a representatividade das associações de defesa da liberdade de religião traduz na realidade a questão do modo como os crentes asseguram colectivamente os meios de avaliação e de controlo dos seus direitos e obrigações4. Será que existe uma especificidade de exercício do direito e das liberdades dos crentes, assim como se foram progressivamente elaborando as «estratégias» de defesa e das lógicas militantes tais como os «direitos dos estrangeiros», dos «sem-abrigo», dos «mal-alojados», etc.? Normalmente o atentado às práticas religiosas é polimorfo. Ela tem lugar num sistema que ignora a «minoria» mas não o «minoritário», a questão das modalidades de tomada em conta da diferença e do pluralismo. Ela torna-se sensível e suscita controvérsias sobre as palavras e as constatações na presença de «discriminações». Mas o que é que se entende por discriminação? Por discriminação religiosa? Por definição, ela implica a faculdade de distinguir, de discernir. Para Ribot, é o fundamento da nossa inteligência. Ela traduz a preocupação da distinção pela qual o direito admite que um tratamento jurídico possa ser diferenciado assim que as distinções estabelecidas se apoiem em motivos de interesse geral ou sejam justificadas por uma diferença de situação objectiva5. Este é o tipo de atitude do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que concluiu, até ao presente, que há violação do direito garantido no artigo 14.º da Convenção Europeia (não sofrer discriminação no gozo dos direitos reconhecidos pela Convenção) «quando os Estados fazem sofrer, sem justificação razoável e objectiva, um tratamento diferente a pessoas que se encontram em situações análogas6». Na prática. Observa-se uma grande diferença entre as recriminações formuladas por indivíduos e grupos e a realidade dos «atentados» dos quais se consideram vítimas7. Segundo Vianney Sevaistre, conselheiro para os cultos do actual ministro do Interior e chefe do Gabinete Central dos Cultos, existe uma «imensa 10


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discórdia» entre os que sofrem e os que impõem discriminações. Assim, os «testemunhos» e o seu valor, fornecidos durante o Primeiro Colóquio sobre as Discriminações Religiosas em França organizado em Paris a 29 de Março de 2003, sob a égide do Conselho das Igrejas Cristãs de Expressão Africana na Europa8. Esses «testemunhos», não constituíndo a prova de atentados aos direitos e liberdades dos crentes, manifestam, à sua maneira, um «sofrimento» real, uma «dor», uma «queixa» à medida do envolvimento e do investimento de certas pessoas, mas igualmente medidas de luta contra as «seitas» e as derivações sectárias em França9. Mas, observando de mais perto, esses «testemunhos» em si não constituem demonstrações nem provas de atentados susceptíveis de qualificação jurídica e de sanções judiciárias10. Eles suscitam verificações e definição de perspectivas práticas comparativas, históricas, sociais, resumindo, uma avaliação entre o discurso e a realidade11. De modo que, na nossa opinião, a defesa e a protecção das práticas religiosas assenta, do ponto de vista jurídico, numa tripla dimensão que põe em causa imperativos de forma (I) e, simultaneamente, a escolha do quadro de expressão das crenças religiosas que condicionam frequentemente os recursos judiciários (II). I. A importância das questões de forma na tomada em conta das constatações de atentados 1. A delicada questão da realidade das constatações de atentado às práticas religiosas numa sociedade democrática A proclamação de uma discriminação dita religiosa – emanando de uma religião, de uma crença ou de uma prática religiosa, de um indivíduo, de um grupo, de uma administração – não estabelece por si só a realidade desta nem a sua existência. Expressão talismã, ela permanece fechada numa estrita interpretação do Código Penal: «Constitui uma discriminação toda a distinção operada entre as pessoas físicas em razão da [...] sua filiação ou da sua não filiação, verdadeira ou suposta [...] a uma determinada religião» (artigo 225.º-1). Ela é punida pela lei penal «quando consiste: 1. em recusar a prestação de um bem ou de um serviço; 2. entravar o normal exercício de uma qualquer actividade económica; 3. recusar empregar, sancionar ou licenciar uma pessoa; 4. subordinar a prestação de um bem ou de um serviço a uma condição fundada sobre um dos elementos referidos no artigo 225.º-1; 5. subordinar uma oferta de emprego, um pedido de estágio ou um período de formação na empresa a uma condição fundada sobre um dos elementos referidos no artigo 225.º-1; 6. recusar aceitar uma pessoa num dos estágios referidos no parágrafo 2 do artigo L. 412.º-8 do Código da Segurança Social.» Na prática, as estritas condições do delito penal reduzem consideravel11


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mente o número das acções na justiça. A questão da dificuldade da prova do acto discriminatório é omnipresente. Para o juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, Frédéric Desportes, «é difícil estabelecer a existência de um motivo quando ele não é expresso. Ora o motivo discriminatório é o elemento constitutivo essencial da infracção [...]. É evidentemente mais aleatório, na ausência de elementos de comparação, demonstrar que uma recusa isolada foi inspirada por motivos discriminatórios [...] É muito difícil estabelecer que a pessoa posta em causa fez uso de discriminação da sua liberdade, pois a recusa alegadamente discriminatória poderá ser explicada por razões objectivas escapando a qualquer verificação12.» Mais, de acordo com o método do Juiz Europeu dos Direitos do Homem, o controle da condição de «vítima» está estritamente ligado ao exame da boa fundamentação do agravo, da alegação e, em particular, da existência de uma ingerência no direito da pessoa que se considera discriminada. O Tribunal Europeu examina assim: 1. a existência material, in concreto, da ingerência; 2. a justificação da dita ingerência, prevista na lei, que prossegue um objectivo legítimo, proporcional ao dito objectivo, numa sociedade democrática13. É a partir deste método de julgamento que o Tribunal Europeu «frequentemente, para se pronunciar sobre a existência de um atentado aos direitos protegidos pela Convenção, faz questão de discernir a realidade para além das aparências e do vocabulário empregue14». 2. O recurso aos instrumentos de regulação estatal, sinal de confiança legítima da legalidade democrática e da protecção correspondente Alguns observaram que «[...] o nosso catálogo dos direitos fundamentais, por mais rico que seja, não inclui, além da liberdade religiosa, o suporte jurídico da reivindicação de alguns de nós de querer viver segundo as suas convicções15. Assim, a partir do momento em que um grupo religioso, crentes ou fiéis reivindicam o legítimo exercício da legalidade estatal, eles entendem a submissão plena à lei comum. Este acto de confiança constitui para o Estado e o corpo social o sinal da vontade do grupo ou dos crentes de beneficiar das garantias legais, da igualdade. Ele traduz da sua parte a aceitação das regras de vida em sociedade marcada pela garantia segundo a qual «os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos» (artigo primeiro da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26 de Agosto de 1789). Esta falta de consideração pelas instituições estatais e públicas implica, em contrapartida, modalidades de «reconhecimento16» de cima que, por sua vez, têm efeitos em termos de aceitação social17. O esforço de visibilidade e de reconhecimento do quadro jurídico estatal pelo grupo religioso é para o Estado uma garantia de integração18. Além disso, Jean-Paul Costa, conselheiro de Estado e actualmente vice-presidente do Tribunal Europeu 12


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dos Direitos do Homem, salientava a oportunidade de reter a noção de representatividade para garantir as liberdades de crer ao mais alto nível: «[...] a noção de representatividade permitiria um verdadeiro diálogo do Estado e das colectividades públicas com os representantes das religiões e das seitas o que, no plano da organização dos serviços públicos como o do exercício da liberdade dos cultos, ofereceria muitas vantagens19.» Ter-se-á compreendido isso, pois o debate sobre os critérios de aceitação pelos crentes das modalidades de gestão pública das práticas religiosas é realmente determinante (infra). 3. A prova do tempo e da judicialização das respostas às constatações de atentados às práticas religiosas. A lenta emergência da protecção da liberdade de consciência – a noção de «liberdade religiosa» não assenta, enquanto tal, sobre nenhuma definição legal de direito francês – e o tecnicismo requerido pelos meios de resolução amigável ou judicial das tensões e dos litígios dão a impressão de um déficit de protecção. Na realidade, a experiência prova que a defesa profissional, passo a passo e metódica, das crenças religiosas assegura uma protecção reforçada dos quadros de expressão dos factos religiosos. A defesa e a protecção das práticas religiosas conservam uma dialéctica emancipadora dos discursos com lágrimas nos olhos e das litanias tradicionais sobre o déficit das garantias jurídicas e institucionais. Mas aqui, a escolha dos meios materiais exige uma avaliação das forças em presença (redes, grupos de pressão, movimentos diversos de personalidades tais como o Rede Voltaire, a União Nacional de Defesa das Famílias e dos Indivíduos, dita UNADFI, o Centro contra as Manipulações Mentais, dito CCMM, tal deputado ou senador, tal presidente de Câmara, etc.), dos recursos humanos (escolha dos Conselhos: pessoal religioso, comunicadores, advogados, jornalistas, universitários, funcionários, etc.) e financeiros (custo das diligências, dos procedimentos, das auditorias judiciais, contabilísticas, fiscais e financeiras, etc.). Esta diligência colide com a tradição de gestão das práticas religiosas confiada ao monopólio dos clérigos e das pessoas estritamente religiosas que não possuem, na sua maioria, recursos externos e profissionais e não hesitam a implicarem-se pessoalmente, de modo frequentemente aproximativo, nesses domínios técnicos. A erosão do tempo e dos acontecimentos experimentados, marcados pelas colocações em causa, discriminatórias e constantes, emanando de certos órgãos de imprensa, de certas administrações encarregadas de repressões fiscais, sociais e aduaneiras, conduzem certos responsáveis religiosos a tomar medidas de reacção adaptadas à situação. Esta tomada de consciência não é natural nem imediata. Ela surge com frequência tardiamente, quando o déficit de reputação é tal que alimenta o recurso a um incremento de medidas discriminatórias. Quem cala consente. A escolha dos conselhos e dos meios releva portanto do exame da história religiosa 13


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do nosso país, das respostas elaboradas pelas diferentes instituições de crentes e de um não menos indispensável recurso à experiência e ao perecer profissional20. O caminho do restabelecimento dos equilíbrios entre liberdade de crenças e liberdade de acção de terceiros está semeado de ciladas. Confrontados com controvérsias públicas que acreditam o reforço dos actos discriminatórios, o Estado e os seus representantes têm então por lógica a suspensão das suas decisões ao estabelecimento de uma jurisprudência estabelecida. Na presença de terceiros, o Estado, testemunha de um atentado ou de uma constatação de «discriminação», submete então a resolução do conflito à decisão do juiz. A contrario, esta posição de neutralidade aparente pode por sua vez legitimar a seriedade do critério parlamentar dos «esclarecimentos judiciários» de certos grupos qualificados como «seitas» pelos dois relatórios de informação parlamentar. Isto atesta a importância da oportunidade e das modalidades dos recursos judiciais nacionais e internacionais. O recurso ao procedimento do requerimento judicial21 permite, sabe-se, tomar rapidamente medidas desde a realização do atentado para «limitar, suprimir mesmo, se possível, os seus efeitos sobre a consciência afectada [...] O Tribunal da Relação de Dijon teve assim a oportunidade de afirmar expressamente esta competência do juiz dos recursos quando é alegado o atentado manifestamente ilícito ao exercício desta liberdade fundamental que é a liberdade de consciência: Dijon, 22 de Março de 1988; Dalloz, 1988, I.R. 13522». Além disso, o contencioso das actividades cultuais pode reflectir-se positivamente no estatuto jurídico e social dos grupos de crentes23. Jacques Arrighi de Casanova explicou assim o recurso ao juiz num sistema jurídico onde «a República não reconhece nenhum culto24» descrevendo a diligência de «reconhecimento colateral» dos grupos religiosos surgidos em França após 1905: «A obtenção do estatuto das associações cultuais [...] surge, para muitas destas novas religiões, como uma questão de ordem social e política [...]novos cultos surgem e procuram, senão ser “reconhecidos” [...] pelo menos obter um reconhecimento oficial indirecto solicitando o benefício das legislações que tomam em conta, de uma forma ou de outra, a existência de um culto. A constituição de associações procurando obter um carácter cultual, no sentido do título IV da lei de 1905, é precisamente um dos seus meios privilegiados25.» Observa-se que o contencioso face às jurisdições judiciárias é marcado por numerosas decisões «pusilânimes»26 enquanto que o juiz administrativo fica frequentemente, parece-nos, ligado a uma interpretação legalista e aos grandes princípios27. Deste ponto de vista, só estudos de avaliação e trabalhos de síntese, tornados públicos28, permitiriam medir «o imenso trabalho judiciário, insuficientemente posto à luz, num domínio frequentemente passional [...]. Tal como é colocado em marcha pela jurisprudência civil e penal, o modelo laico da República privilegia menos “as finezas da definição da liberdade religiosa” do que 14


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uma abordagem pragmática das situações e uma procura das soluções para proteger a sociedade e os indivíduos que a compõem (unindo-se ao modelo de cepticismo estrutural evocado por R. Torfs) [...]. O juiz permite assim escapar a esta alternativa lancinante ignorar/reconhecer 29 .» Enfim, sendo o juiz nacional o juiz da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, os queixosos têm manifestamente todo o interesse, em matéria de protecção dos direitos fundamentais, de se referirem e invocarem, perante os juizes da ordem jurídica interna, a plena aplicação dos seus princípios e da jurisprudência subsequentes. O sistema europeu das garantias dos direitos do homem constitui um aguilhão eficaz a vários títulos, mesmo que ele não seja uma fachada miraculosa para um aparente déficit de protecção em direito interno30. Os efeitos positivos, directos e indirectos, do contencioso nacional e europeu são de natureza a consolidar e a reforçar o quadro das actividades religiosas assim submetido à racionalidade normativa e processual31. Além disso, constituem um factor de honorabilidade devido à função de magistratura do juiz em França, «guardião das nossas promessas democráticas» (Antoine Garapon). Além disso, o recurso ao juiz é susceptível de suspender ou de atenuar a lógica das «campanhas» hostis aos crentes ateando legitimamente contra-fogos e metendo a descoberto tensões no limite do aceitável numa sociedade democrática (pensa-se aqui nas campanhas de imprensa», em forma de «cruzadas» contemporâneas, contra crentes suspeitos de actos de «pedofilia», de «prevaricação» ou mesmo de «fraude», organizadas pelo simples facto da sua filiação confessional ou de convicção). Enfim, o recurso ao juiz autoriza aos crentes a construção de um «muro protector» por uma jurisprudência estabelecida, ponto de referência da liberdade das religiões enquanto fazemos a experiência de uma sociedade no seio da qual «os fins jurisdicionais públicos são muito amplamente predominantes32». Além disso, todas as coisas iguais a essas condições de forma respondem, como um eco, às, não menos formais, do quadro de expressão das crenças que determina, na nossa opinião, a garantia das protecções dos crentes. II. A escolha do quadro de expressão das crenças determina a garantia das protecções oferecidas aos crentes. 1. A necessária diligência prévia em termos de explicação e de demonstração dos esquemas de organização e de funcionamento do conjunto dos grupos religiosos. Se a lei fundadora de 9 de Dezembro de 1905 «respeitante à separação das Igrejas e do Estado» (título exacto da lei) consagrou, num estrito ponto de vista legal, uma ausência de reconhecimento dos «cultos» (e não das «Igrejas») pela instituição estatal, não «separou» de forma alguma as religiões da República. De modo que as tensões entre as práticas religiosas 15


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e as práticas estatais não relevam somente do quadro jurídico dos cultos. Os litígios que daí resultam ultrapassam largamente o quadro legal de concertação nas relações entre os cultos e o Estado. Os confrontos em questão exercem-se à vez num espaço político e jurídico que sofreu a proeminência do Estado e dos seus valores. Com efeito, a esta liberdade de crer ou de não crer corresponde um arranjo normativo e prático das modalidades de expressão das crenças religiosas. A liberdade de consciência, total, mantém-se portanto, na prática, subordinada – sem ser enfeudada – ao regime das liberdades públicas. Todos e cada um dispõem das suas opções de consciência no limite das condições do exercício das liberdades sob a cobertura do respeito do «sacrossanto» princípio do respeito da ordem pública (cf. artigo 10.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26 de Agosto de 1789).33 Mas na realidade, parece que as crenças religiosas são tanto mais protegidas quanto relevam do exercício de um culto. Com efeito, do ponto de vista das protecções externas, o nosso regime de liberdade das crenças religiosas é antes de mais o dos cultos. Assim, a liberdade de religião não adquiriu, relativamente à liberdade de culto, uma autonomia que ele não possui. Na França sabe-se que o quadro jurídico das manifestações religiosas não se reduz apenas às legislações e regulamentos dos cultos, enquanto que a defesa e a protecção das práticas religiosas obedecem ao quadro jurídico dos cultos. Quantas vezes não constatámos nós a existência de uma denegação das práticas «de novos movimentos religiosos» ou de «movimentos religiosos minoritários» pela simples razão que o estatuto de associação cultual, da lei de 9 de Dezembro de 1905, respeitante à separação das Igrejas e do Estado, não lhes foi conferido no quadro de um pedido de autorização para receber um legado (artigo primeiro da lei de 25 de Dezembro de 1942) ou no quadro de um contencioso do direito de imprensa sobre a difamação ligada à filiação a uma determinada religião (cf. artigo 32.º-2 da lei de 29 de Julho de 1881 sobre a liberdade de imprensa). É do mesmo modo da «protecção» que no plano fiscal oferece o estatuto de associação cultual em razão do carácter derrogatório da fiscalidade dos cultos. Como se a qualidade cultual condicionasse a protecção da filiação e do exercício religioso. Nestas condições, o nosso sistema jurídico das religiões supõe a colocação em prática de quadros legais – os das instituições associativas ou congreganistas – que comportam exigências particulares relevando da organização e do funcionamento dos grupos de crentes. Esta arquitectura cultual e religiosa supõe a aceitação de regras de organização, de transparência e de controle pelo prisma dos imperativos democráticos (designação dos responsáveis pela Assembleia Geral da associação, controle das contas, etc.)34. Um tal esquema situa-se na base do respeito das crenças e das práticas religiosas na França. 2. A colocação em evidência das responsabilidades individuais e colec16


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tivas dos crentes Em França, a tradição e a gestão «bonapartista» das práticas religiosas, pelas instâncias superiores, parece impor a instauração de instâncias nacionais representativas das práticas religiosas, O nosso quadro regalengo incita os crentes a associarem-se (regras do contrato civil de associação das leis de 1901, de 1905, das congregações religiosas do título III da lei de 1901). O Estado tem horror ao vazio. Ele impôs, desde 1802, sob a autoridade de Bonaparte, o agrupamento dos crentes segundo o modelo consistório, federativo, unionista35. Esta demanda implícita do Estado central, modelada pela tradição da autoridade estatal, encontrou um aliado natural no regime dos cultos construído pelos parlamentares a partir de 1905, seguido por numerosas leis subsequentes. O regime dos cultos e das associações religiosas comporta assim numeras adaptações susceptíveis de favorecer a expressão do religioso no espaço público e privado, e, no entanto, por capilaridade, a sua defesa e protecção. Tal é o caso, por causa dos quadros legais de emancipação e de liberdade, das práticas religiosas em numerosos domínios: assim, dos regimes legais das capelanias na escola, nos hospitais, nos estabelecimentos penitenciários, no seio das forças armadas, o estatuto dos ministros dos cultos, a fiscalidade e o direito social dos cultos, as questões dos edifícios do culto, etc. ***** Este esquema implica a responsabilidades36 e a designação de responsáveis dos grupos de crentes, encarregados de representar os atentados, as demandas, e as relações, no próprio seio da colectividade religiosa. Esses responsáveis instituídos oferecem às instâncias que asseguram a defesa e a protecção das práticas religiosas (administração, justiça, eleitos) referências quanto à natureza das práticas religiosas em causa, o tipo de tensão ou de litígio, permitindo provavelmente antecipar e prevenir um eventual conflito. Podem igualmente assegurar a regulação e a gestão das tensões consecutivas às tomadas de posição públicas e/ou mediatizadas dos «que estão de saída», dos «ex-fiéis ou adeptos», dos «oponentes» que tendem a pôr em causa os seus antigos correligionários. 3. A primazia dos termos do diálogo e da mediação dos conflitos (no seio do mundo das empresas, relações com os poderes públicos, com os eleitos locais e nacionais, etc.) A construção de um espaço de liberdade de religião implica a contribuição das capacidades e o envolvimento dos próprios crentes na explicação e no aclarar das suas tomadas de posição religiosas. A informação na matéria é fonte de resolução de numerosos pontos de tensão inúteis. O recurso a formas de diálogo no espaço público e privado é de natureza a reforçar o próprio «estatuto» dos crentes. Gérard 17


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Defois, prelado católico, que, segundo a sua expressão, «representa uma associação que tem vinte e cinco séculos de experiência», explicou assim que «ser julgado em nome do humanismo, ser contestado a título dos medos que se inspira, ser recusado por causa de questões que se colocam, é ser intimidado a dar-se conta das nossas esperanças e das nossas diferenças, e, por aí, a entrar em debate com a sociedade no pluralismo das convicções e da evolução dos costumes. [...] Precisamos portanto de explicar, desdobrar, significar as nossas razões de esperar de modo diferente e de julgar de modo diverso. Contudo, as dificuldades actuais advêm de um desconhecimento radical da história real da Igreja, do seu Evangelho e do carácter específico da sua acção. [...]37» Aceitar este déficit de cultura da informação dos factos religiosos no seio de um grupo de crentes, significa uma mudança de posição ao mesmo tempo que reivindica o estatuto de uma «instituição de verdade» e recusa em si uma concorrência de discurso sobre si. Esta diligência parece hoje indispensável nas nossas sociedades de troca e de pôr tudo em causa. Ela diz respeito ao conjunto de corpos constituídos, de grupos, de associações, de indivíduos que, no espaço público, reivindicam uma palavra, uma mensagem, uma posição38. A gestão dos conflitos em matéria de confrontação das normas e dos comportamentos religiosos com a sociedade civil, a sociedade política, no mundo da empresa, no seio da «escola», etc. apela a um modo de resolução não jurisdicional dos conflitos, quando isso é possível. Com efeito, o recurso ao juiz resulta quase sempre de um fracasso na relação entre homens, mulheres, pessoas morais e autoridades. É, portanto, necessário suscitar sempre e ainda modelos de interacção entre os diferentes intervenientes no espaço público e fazer assim a economia das disputas inúteis, duvidosas e dispendiosas39. A experiência de certas iniciativas tais como a Associação dita Marseille-Espérance merece que nos interessemos nela.40 À sua maneira, Danielle Hervieux-Léger, referindo-se à «parábola neocaledónia» (cf. a missão instituída em 1988 por Michel Rocard, então Primeiro-Ministro, «encarregue de apreciar a situação e de restabelecer o diálogo na Nova Caledónia») advoga nestes termos a favor de uma «laicidade mediadora»: «A única coisa que conta, desde que um grupo reclama esse dever democrático, é saber-se em que medida os valores que ele difunde e as práticas que ele coloca em acção são compatíveis não apenas com o Estado de direito, mas igualmente com o universo de valores que pode, por si só, assegurar-lhe o exercício efectivo do direito que ele reivindica. Sobre o primeiro ponto, o juiz dispõe, nos planos civil e penal, de instrumentos de controlo e de sanção. Sobre o segundo, falta inventar uma instância mediadora que possa sair dos “litígios sobre os valores” que faz surgir a proliferação dos regimes comunitários da validação do crer, uma instância que elabore, caso a caso, uma definição prática (e não jurídica) dos limites aceitáveis da liberdade 18


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religiosa praticada numa sociedade democrática. A sua missão não seria estatuir, mas sim organizar o debate e de tornar públicos os seus termos, em todos os casos em que esse exercício da liberdade suscita conflitos que não compete ao Direito regular, mas que implicam, no entanto, os princípios fundamentais da vida colectiva. [...] Ao aceitar ou ao recusar o princípio desta mediação estatal, as diferentes famílias espirituais e o conjunto dos grupos e movimentos que reivindicam para si mesmos o benefício da liberdade religiosa demonstrariam, ao mesmo tempo, a sua aceitação ou a sua recusa do quadro democrático no interior do qual essa liberdade pode ser invocada41.» Por mais sedutora que seja, esta proposta não deixa de surpreender relegando o exercício dos direitos, das liberdades e das obrigações para uma instância intermediária sob a égide do Estado, que, sob a capa de «mediação», assegurasse uma regulamentação: 1. pelo debate e 2. cujos termos seriam tornados públicos. Por um lado, sacrificando assim o uso administrativo das «comissões», «missões», «células», do ponto de vista constitucional, parece arriscado subordinar o exercício de uma liberdade fundamental à mediação de um corpo intermediário. Ao seguir o interessaddo, o «Direito» não permite aceder a uma «definição prática dos limites aceitáveis da liberdade religiosa». O jurista e o juiz, caso a caso, mas igualmente no quadro de uma doutrina dominante ou de uma política de jurisprudência, sucumbiriam à exigência da elaboração de uma definição prática dos ditos limites. Por um lado, esta perspectiva não toma suficientemente em conta a muito importante obra pretoriana do juiz em França em matéria de liberdade pública que, no silêncio dos textos, elaborou um regime de liberdades públicas, perfectível, é certo, mas que honra a França. A diligência proposta faz tábua rasa sobretudo da equidade que resulta do tratamento pelos Direitos nacional e internacional das diferenças religiosas e culturais. Por outro lado, esta proposta, sem equivalente no domínio das liberdades públicas – pensarse-ia em elaborar uma tal construção para conseguir uma definição prática de liberdade sindical ou para as liberdades políticas? – não deixaria de revelar, mais uma vez, o reflexo gravado de suspeita dos grupos religiosos não tradicionais que, em França, continuam ainda a fazer as despesas da «colocação em exame parlamentar» decidida em 199542. Num artigo intitulado «La justice défeillante pour répondre aux agressions – À Lyon, les instances communautaires font figure d’ultime recours», o diário Le Monde, de 29 de Março de 2003, noticiava as carências das Comissões departamentais de acesso à cidadania (CODAC), encarregues nomeadamente da recolha dos dados relativos aos actos de racismo e de discriminação e de lhes dar seguimento, fosse ele judiciário, através de um encaminhamento para os serviços judiciais competentes, ou do tipo mediação. Alain Jakubowicz, advogado e presidente do Conselho Representativo das Instituições Judaicas de França (CRIF) do Rhône, explicava ao diário que «A CODAC nunca procura resolver actos de 19


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anti-semitismo. Não existe lugar público onde as autoridades públicas resolvam essas práticas [...] Os judeus dirigem-se-nos prioritariamente porque pensam que que está melhor colocado para os ajudar é o CRIF, não o Estado». Esta constatação de carência dos CODAC sublinha, mais uma vez, o déficit de cultura pública de mediação em matéria de gestão dos atentados às práticas religiosas. Será o diálogo inter-religioso suficiente? Competirá ao Estado, e aos seus organismos organizar as modalidades de uma laicidade mediadora? Actualmente nada é menos seguro do que isto, não mais que antes. Na realidade, parece que a instauração das condições de diálogo e, portanto, de mediação advém primeiramente das próprias pessoas e dirigentes religiosos. O peso da palavra das instituições e dos seus representantes não tem igual, enquanto que a grande maioria dos atentados às práticas religiosos em si resultam frequentemente de conflitos entre os próprios crentes ou entre grupos de crentes. Assim, é de educação que se trata antes de mais; simplesmente de educação para a cidadania e de educação para o pluralismo religioso.

Conclusão Podem ser avançadas uma série de observações conclusivas para esclarecer esta modesta apresentação relativa a um assunto que os crentes e «descrentes» levam a peito. Antes de mais, na ausência de instrumentos de medida e avaliação do número e natureza dos atentados às práticas religiosas, torna-se extremamente difícil chegar a uma conclusão geral sobre a acuidade da questão e da sua prioridade43. Já o «discurso» em forma de «vitimização», pelo contrário, deve ser entendido para ser melhor compreendido: quais são as suas causas e sob que formas? Quem é o emissor da informação: a própria vítima? Terceiros? E por que razões? Além disso, observa-se nos crentes uma confusão/distorção, conhecida dos praticantes do Direito, entre a invocação encantadora a respeito dos «grandes princípios» (liberdade, direitos do homem, etc.) e o imperativo de protecção que, segundo os primeiros, daí deveria necessariamente derivar. Ora, nem o direito à liberdade de consciência nem o direito à liberdade de culto são meios infalíveis para lá chegar. Enfim, em França, o clima de suspeição que pôde ter resultado das medidas de «luta contra as seitas», mas igualmente, tratando-se de actos anti-semitas, o recrudescimento do racismo reforça a «crença» numa deterioração do estado da liberdade religiosa. Baseando-se nesta constatação, é necessário desimpedir os eixos de trabalho com vista a restabelecer os equilíbrios e conseguir assegurar, no sentido do próprio título da Carta Europeia dos Direitos do Homem, «a salvaguarda» dos direitos, liberdades e obrigações dos crentes. Os remédios destinados a corrigir ou a antecipar os conflitos podem assim ser descritos, no estado actual da legislação, da regulamentação, da jurisprudência e 20


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da doutrina administrativa (tratando-se de «doutrina administrativa» na falta de ser «una ou indivisível», e na ausência de «guiché único» para os cidadãos administrados, a organização administrativa impõe frequentemente uma verdadeira gincana aos administrados44). Não existindo reconhecimento social, a aceitabilidade pelas opiniões públicas, o déficit da imagem e da reputação, os grupos de crentes podem beneficiar de uma protecção assegurada através de um reconhecimento superior do seu estatuto jurídico e associativo45. O esforço de organização e de institucionalização das práticas religiosas constitui um dado maior em França. Émile Poulat, através de uma bela fórmula de que detém o segredo, apela aqui ao «realismo conjugado com a competência». Esta constatação, que desafia a inteligência e a razão, está bem à medida do que está em jogo nas nossas sociedades desencantadas e técnicas que continuam a segregar formas extraviadas de expressão da mediocridade contemporânea: recurso ao «outing» (i.e. exteriorizar, tornar público, publicar)46, à «guerrilha semântica»47 à instrumentalização das questões de segurança e de identidade48, e ao recurso à arma fiscal táctica49. O déficit de conhecimento, de especialização e de experiência constitui uma «circunstância agravante» que apela a que os grupos religiosos empreendam diligências à altura do que está em jogo. Este arranjo supõe o ter em conta as condições de forma, a adopção de um esquema de organização e de funcionamento particular que a jurisprudência dos tribunais nacionais e internacionais tomam positivamente em consideração, conjunto de natureza a assegurar uma defesa e uma protecção equilibradas das práticas religiosas.

Textos de base50 (referências não exaustivas) «Ninguém pode ser perturbado por causa das suas opiniões, mesmo as religiosas, desde que a sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei.» (Artigo 10.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.) «A França assegura a igualdade perante a lei a todos os cidadãos sem distinção de origem, de raça ou de religião. Ela respeita todas as crenças.» (Artigo primeiro da Constituição de 4 de Outubro de 1958). «São punidos com uma coima [...] os que por vias de facto, violências ou ameaças contra um indivíduo, seja fazendo-o temer perder o seu emprego ou expor a um dano a sua pessoa, a sua família ou a sua fortuna, o tenham levado a exercer ou a abster-se de exercer um culto, a fazer parte ou a cessar de fazer parte de uma associação cultual, a contribuir ou a abster-se de contribuir para as despesas de um culto.» (Artigo 31.º da lei de 9 de Dezembro de 1905). «Serão punidos com as mesmas penas os que tenham impedido, retardado ou interrompido os exercícios de um culto através de distúrbios ou desordens causados no local servindo a esses exercícios.» (Artigo 32.º 21


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da lei de 9 de Dezembro de 1905). Os artigos 9.º do Código Civil (atentado à vida privada), 225.º-1 e 432.º-7 do Código Penal (repressão da discriminação) e L 122.º-45 do Código do Trabalho («Nenhum assalariado pode ser sancionado ou licenciado em razão das suas convicções religiosas»). Lei de 29 de Julho de 1881 sobre a liberdade de imprensa (artigos 23.º e 24.º: «provocação à discriminação em razão da religião» e artigos 29.º e 32.º-2: «difamação religiosa».

Notas 1. Poucos estudos foram publicados sobre este assunto. Mencionaremos apenas a obra colectiva La protection internationale de la liberté religieuse, J.-F. Flauss (éd.) Publications de institut international des droits de l’homme, Institut René Cassin de Strasbourg, Bruylant (Bruxelles), 2002 ; referiremos o artigo do Pr. Jean Duffar intitulado «La protection internationale des droits des minorités religieuses» (R. D. Publ. 1994, pp. 1495ss,) o de Thierry Massissous, «La liberté de conscience, le sentiment religieux et le droit pénal» (Dalloz, 1992, pp. 118-118) e d’Alain Lacabarats, «La juge et la laïcité : le droit au respect des croyances» (Les Petites Affiches, 3 de Outubro de 1997, n.º 119, p. 49. A escassez de tais estudos práticos e profissionais (os dois primeiros são advogados e o terceiro magistrado) é real, à excepção de certas teses universitárias, desconhecidas do grande publico, dos crentes e dos representantes religiosos. Para um exame universitário da questão que «mostra toda a dificuldade que experimenta o sistema jurídico para proteger a liberdade de consciência» ver Dominique Laszlo-Fenouillet, La conscience, L.G.D.J., Biblio. de droit privé, tomo 235, 1993, 550 páginas, e a obra de Vincent Fortier, Justice, religions et croyances, CNRS Éditions, Coll. CNRS Droit, 2000. 2 Ver as declarações de Hubert Védrine, ministro dos Negócios Estrangeiros, na Assembleia Nacional a 17 de Março de 1999 (J.O. Ass. nat., 2.ª sessão, 17 de Março de 1999, pp. 25322533); Blandine Chelini-Pont. «Au nom du Christ et de l’Amérique – Le fondamentalisme américain et son impact géopolitique : tentative de perspective», in Revue française de géopolitique, n.º 1, 2003 ; Bruno Fouchereau, «Au nom de la liberté religieuse – Les sectes, cheval de Troie des Etats-Unis en Europe», in Le Monde diplomatique, Maio de 2001 (este artigo comporta inexactidões em relação a factos relatados sem verificação). 3 Assim as controvérsias sobre o estatuto de certas organizações não governamentais, qualificadas, na melhor das hipóteses, de instrumentos de comunicação, e na pior, de «narizes postiços», ou de defesa da Igreja da Cientologia que militam pela a defesa dos direitos do homem. Observam-se sobre isto numerosas tentativas deste grupo no domínio da acção colectiva relativa à defesa dos direitos do homem, legítimas em si, mas que revelam um discurso sobre os princípios («os direitos do homem») que não permite de modo algum responder às condições legais do exercício das liberdades públicas em França (a respeito das formas de acção colectiva em matéria associativa, fiscal, social, etc.). Como se essa atitude, omnipresente nesse grupo, tal como uma estrutura que se impõe, evitasse ter de responder às condições em causa e constituísse uma desculpa absolutória. Ora a invocação e a proclamação das liberdades, mesmo a de «religião» ou de culto, não constituem in abstracto factos justificativos nem talismãs. 4 Cf. as actividades da Associação Crenças e Liberdades cujo objectivo é, por um lado, 22


Que meios de defesa e de protecção dos factos erligiosos? defender, a liberdade religiosa, o direito ao respeito das crenças; e, por outro lado, os dogmas, os princípios da Igreja Católica, assim como as suas instituições (Monsenhor Bernard Lagoutte, «L’action en justice – l’exemple de l’Association Croyances et Libertés», in Religions, droit et société dans l’Europe communautaire, Collection Droit et Religion, Presses Universitaires d’Aix-Marseille, 2000) e as da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa cuja sede é em Berna (Suíça). Esta última conta com uma Comissão de Honra pluri religiosa e «laica» (J. Baubérot, E. Poulat, J. Robert, etc.). 5 Pierre-Henri Prélot, «Les religions et l’égalité en droit français», in Rev. Dr. Publ., n.º 3, 2001, p. 739. 6 Ver as Conclusões do Seminário do Comissário Europeu para os Direitos do Homem de 10 e 11 de Dezembro de 2001 sobre as relações as relações entre Igrejas e Estados: «Certas comunidades podem beneficiar de um regime especial. Esse regime não é constitutivo de uma discriminação desde que a cooperação entre essas comunidades e o Estado seja fundada sobre critérios objectivos e razoáveis tais como a pertinência histórica ou cultural, a representatividade ou a utilidade social para a sociedade no seu conjunto ou para um grupo de população substancial ou específico. O Estado tem também uma obrigação positiva de contribuir para a preservação do património religioso, cultural ou histórico fornecido à humanidade pelas comunidades religiosas ao longo dos séculos.» 7 Para uma abordagem aprofundada do método de apreciação do Juiz Europeu dos Direitos do Homem, ler Jacques Velu e Rusen Ergec, La Convention européenne des droits de l’homme, Bruylant-Bruxelles, 1990, pp. 120 ss. Estes autores explicam em detalhe que o carácter razoável e objectivo da distinção se aprecia segundo dois critérios: a prossecução de um objectivo legítimo e a relação de proporcionalidade entre os meios e o objectivo assim visado. 8 Presidido por Émile Poulat na presença, nomeadamente, do Sr. Vianney Sevaistre que expôs o tema «Que diz a lei de 1905? O que deve ser e não ser uma associação cultural» (Actas a serem publicadas pelas Éditions L’Harmattann, Paris). 9 Para uma leitura das medidas de luta contra as «seitas» em França, ver a obra de 250 páginas Face aux sectes, que reúne exclusivamente os textos oficiais na matéria (leis e regulamentos) e que foi publicado por Les Éditions des Journaux officiels em Fevereiro de 2002 (n.º 1747). Sobre a «vontade de revitalizar o trabalho de coordenação interministerial» neste domínio, ver as respostas ministeriais publicadas sobre o assunto, após 29 de Novembro de 2002, data da criação da nova Missão Interministerial de Vigilância e de Luta contra as Derivações Sectárias (MIVILUDES) que substitui a Missão Interministerial de Luta contra as Seitas (J.O., Assemblé nationale de 6 de Janeiro de 2003, p. 31; 27 de Janeiro de 2003, p. 500 e 17 de Fevereiro de 2003, p. 1247). 10 É evidente que a qualificação jurídica e a sanção judiciária de um atentado podem não corresponder, para a própria pessoa, pela constatação objectiva, aos seus olhos, da realidade e da gravidade do atentado. A tradução jurídica do alegado atentado, desse ponto de vista, pode constituir, para alguns, algo de verdadeiramente contraproducente, um logro, uma vã diligência. 11 Foram denunciados no colóquio acima referido de 29 de Março de 2003 um inquérito dos Serviços de Informações Gerais sobre a situação pessoal, económica e bancária de um pastor de expressão africana (quid sit dos poderes de inquérito legítimos dos ditos serviços?), os efeitos de uma postura comunal de interdição de reunião cristã num local não respondendo (segundo parece) à regulamentação em matéria de segurança, (quid sit da aplicação da dita regulamentação?), a intervenção da polícia à entrada de uma estação de metro parisiense por causa da pregação na via pública por parte de um pastor (quid sit do regime de «colportagem» 23


Que meios de defesa e de protecção dos factos erligiosos? que proíbe tais manifestações em certas zonas da capital?), etc. 12 Discriminations, Éditions du Juris-Classeur, Pénal, 2000, art.º225-1 a 225-4, § 81ss. 13 Para o Tribunal Europeu, de jurisprudência constante, «simples suspeitas ou conjecturas são insuficientes» para estabelecer a realidade de uma constatação de violação dos direitos e liberdades garantidas pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Assim julgado no caso Federação Cristã das Testemunhas de Jeová de França contra França que «[...]o artigo 35.º § primeiro da Convenção exige que um indivíduo requerente se considere efectivamente lesado pela violação que alega. Este artigo não institui em proveito de particulares uma espécie de actio popularis para a interpretação da Convenção; ele não autoriza a queixa in abstracto de uma lei pelo facto de ela parecer infringir a Convenção. Por princípio, não basta a um indivíduo requerente sustentar que uma lei viola, pela sua simples existência, os direitos de que usufrui nos termos da Convenção; ela deve ter sido aplicada em seu detrimento [...] Um processo de intenções feito ao legislador preocupado em regulamentar um problema escaldante da sociedade não é a demonstração de probabilidade de um risco incorrido pelo requerente. Além disso, não saberia, sem contradições, valer-se do facto que ela não constitui um movimento atentatório das liberdades e, ao mesmo tempo, pretender que ela fosse, pelo menos potencialmente, uma vítima da aplicação que poderia ser feita dessa lei» (observação n.º 53430/99, decisão de inadmissibilidade de 6 de Novembro de 2001). 14 Sentença De Jong, Baljet e Van der Brink de 22 de Maio de 1984, série A, n.º 77, p. 23 § 48 com uma referência à jurisprudência anterior (estudar aqui a obra colectiva La Convention européenne des droits de l’homme, sob a dir. de L.-E. Pettiti, E. Decaux e P.-H. Imbert, Economica, 1995). 15 Pierre Soler-Couteaux, Raports de synthèse du Colloque national sur les témoins de Jéhovah et le droit ; Ass. Nat., 26 de Outubro de 1993, Les Petites Affiches, 10 de Agosto de 1994. 16 Como sublinha muito justamente Émile Poulat, o termo de «reconhecimento», polissémico, como vários outros em matéria de liberdade religiosa (cf. «laicidade», regime da lei de 1905 ou antes «oriundo da lei de 1905», «separação», «associação religiosa», etc.) faz parte dessas noções ambíguas porque estão carregadas de sentido, de contra-sensos e de prenoções. Em «Direito francês das religiões», tratando-se de «reconhecimento», encontra-se este termo unicamente no artigo 13.º da lei de 1 de Julho de 1901 relativa ao contrato de associação (título III, Das congregações): «Toda a congregação religiosa pode obter o reconhecimento legal por decreto emitido com o aval do Conselho de Estado», enquanto que o artigo 2.º da lei de 9 de Dezembro de 1905 fixa o princípio segundo o qual «A República não reconhece [...] nenhum culto». Mas há mais. No campo intelectual utiliza-se esse termo noutro sentido: assim, Tariq Ramadan, professor de filosofia e de islamologia na Universidade de Genebra, afirma que «a União das Organizações Islâmicas de França aceitou o jogo em troca de um reconhecimento público», (Le Monde, 5 de Abril de 2003). 17 Deste pondo de vista observar-se-á que certos grupos poderiam acumular o «estatuto parlamentar de seitas» (devido a que em 1995 o seu nome aparecia na lista parlamentar das «seitas») e o «estatuto administrativo de culto» (pelo facto de que, posteriormente a 1995, os serviços do Estado, Governos Civis e Finanças, conferem esse estatuto a grupos que os pedem e que preenchem as condições legais e da jurisprudência). Tal é o caso, em 2003, das Testemunhas de Jeová. Ver a nota jurídica sobre dois Pareceres do Conselho de Estado datados de 23 de Junho de 2000 versando sobre matéria de fiscalidade fundiária cultual (de modo que em França, as 1000 e mais associações locais das Testemunhas de Jeová logram desse modo ser-lhes conferido o estatuto de associações exclusivamente cultuais da lei de 9 de Dezembro de 1905) publicada na Revue du Droit public, n.º 6, 2000. 18 Esta diligência é, além disso, de natureza a evitar ao grupo religioso de sofrer os efeitos ligados às grelhas de leitura policiais (relatórios dos Serviços de Informações Gerais que resultam das investigações sobre as práticas ligadas à filiação religiosa: ver, por exemplo, o 24


Que meios de defesa e de protecção dos factos erligiosos? artigo do diário Le Monde de 17 de Outubro de 2002 intitulado «Les renseignements généraux “convoquent” les responsables musulmans de la Seine-Saint-Denis». Guardamo-nos, contudo, de «diabolisar» o trabalho de polícia desses serviços que, em razão das missões de vigilância que lhes incumbem, podem exercer simultaneamente a protecção dos crentes. É o caso das investigações desses serviços no domínio da observação dos actos anti-semitas em França, revelados pelo Le Monde de 29 de Março de 2003) e das conclusões parlamentares (Relatórios das duas comissões de inquérito de 1995 e de 1999). Jean-Marie Woerling evoca assim a oportunidade de uma «diligência de “reconhecimento positivo” das crenças comportando um interesse social [...] sobre a base de critérios objectivos estranhos ao conteúdo das próprias convicções religiosas» (Une définition juridique des sectes?», in Les «sectes» et le droit en France, sob a dir. de Francis Messner, PUF, Politique d’aujoud’hui, 1999, pp. 87-89). 19 Sectes et religions : où sont les différences? Études en l’honneur de Georges Dupuis, L.G.D.J., 1997. 20 Assinala-se a este respeito o déficit de conhecimento teórico e prático dos diferentes intervenientes (gabinetes das associações de Governos Civis, pessoal e dirigentes religiosos, funcionários territoriais, etc.) no domínio difícil, técnico e complexo, do direito à liberdade de consciência, do direito das associações religiosas e dos cultos. É verdade que esta carência resulta também do «consenso de discrição» (Paul Chambaud) de que beneficia o direito dos cultos. Partindo, indicar-se-á a organização pelo Instituto de Direito e de História Religiosos da Universidade de Aix-Marseille III, a contar do início das actividades universitárias de 2003, do diploma universitário «Laïcité, droit des cultes et des associations religieuses», primeiro do género em França (www.idhr.u-3mrs.fr). 21 Philippe Bertin, Le juge des référés, protecteur des croyants, Gaz. Pal., 1984, 2, doctr. 534. 22 Dominique Laszlo-Fenouillet, acima citado, pág. 471. Visa-se aqui, entre outras modalidades de recursos, as disposições dos artigos 808.º e 809.º do Novo Código do Processo Civil, mas igualmente o artigo 533.º do Código de Justiça Administrativa, que concerne o recurso administrativo dito «liberdade fundamental». 23 O artigo 66.º da Constituição de 4 de Outubro de 1958 dispõe que «[...] A autoridade judicial, guardiã da liberdade individual, assegura o respeito deste princípio nos termos da lei» (ver o Código Constitucional, comentado e anotado por M. de Villiers e Th. S. Renoux, Litec, 2001). 24 Para prosseguir a discussão sobre a noção polissémica de «reconhecimento», salienta-se que o legislador de 1905 colocou o princípio de que só a República não reconhece nenhum culto e não o Estado. 25 Conclusões sob o parecer da Assembleia do Conselho de Estado de 24 de Outubro de 1987, no caso Associação local para o Culto das Testemunhas de Jeová de Riom, RFD ADM. 14(1), Jan.-Fev. 1998, p. 65. 26 1.º civ. de 18 de Set. de 2002, Singer contra Toubon, JCP 202, V. 2660 (rejeição de um poder no quadro do contencioso da colocação em causa por falta do Ministro da Justiça signatário da circular de 29 de Fevereiro de 1996, relativo à luta contra as «seitas»); ver também o contencioso Palau-Martinez, de 13 de Julho de 2000 (recusa da guarda dos filhos a uma mãe testemunha de Jeová), em processo no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (decisão de admissibilidade de 4 de Março de 2003). 27 Saudamos aqui a obra do Conselho de Estado e dos seus comissários do Governo, que faz escrever a Jean Barthélemy, bastonário da Ordem dos Advogados no Conselho de Estado e no Tribunal da Relação: «composto, segundo Le Bras, de “magistrados íntegros, lúcidos e humanos”, e determinado a proteger as liberdades, permitiu a aplicação pacífica da lei de separação, colocando-se como garante da coesão do Estado e da nação.» («Le Conseil d’État et la construction des fondements de la laïcité» in La Revue administrative, número especial 1999, PUF, que constitui as Actas do colóquio intitulado «Le Conseil d’État et la 25


Que meios de defesa e de protecção dos factos erligiosos? liberté religieuse»). 28 Observar-se-á a este propósito a diferença prática entre a abundante produção universitária, precisa, técnica e documentada (dissertações, teses, etc.) e as referências a esses trabalhos, por exemplo, pelos poderes públicos e magistrados. Aqui, como noutros lados, somos confrontados com a «efectividade» reduzida dos trabalhos universitários fora do campo da produção intelectual propriamente dita. 29 Vincente Fortier, acima citado, pp. 172-173. 30 Gérard Gonzalez, La Convention européenne des droits de l’homme et la liberté des religions, Economica, 1997. 31 Pierre Drai, Le rôle et la place du juge en France aujoud’hui, conferência no Instituto Portalis em Aix-en-Provence, RRJ – Droit prospectif, 1991, 3 ; Yves Madiot, Le juge et la laïcité, Pouvoirs, 1995, n.º 75. 32 Antoine Leca, La genèse du droit – Essai d’introduction historique au droit, Librairie de l’Université, Presses universitaires d’Aix-Marseille, 2002, p. 281. 33 L’ordre public: Ordre public ou ordres publics? Ordre public et droits fondamentaux, sob a direcção de Joëlle Redor, Actas do colóquio de Caen de 11 e 12 de Maio de 2000, Bruylant-Bruxelles, 2001, Col. Droit et Justice. No mercado dos bens simbólicos tudo parece ser permitido. Cada um é livre, por exemplo, de adquirir o automóvel dos seus sonhos mediante o pagamento do preço de aquisição correspondente. Mas a colocação em circulação desse símbolo está submetida a numerosas condições materiais: carta de condução, apólice de seguro, inspecção técnica. A «polícia dos cultos» (título V da lei de 9 de Dezembro de 1905) não é uma polícia do pensamento nem das crenças. Ela traduz, no entanto, regras de adaptação de um viver em conjunto numa sociedade democrática. Parece-nos desde esse ponto de vista que a definição das restrições à liberdade de manifestar a sua religião, a única susceptível de ser incluída, está muito bem traçada, explicitamente, no parágrafo 2 do artigo 9.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem: «A liberdade de manifestar a sua religião ou convicções não pode ser objecto de outras restrições senão as que, previstas na lei, constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrática, à segurança pública, à protecção da ordem, da saúde e da moral públicas, ou à protecção dos direitos e liberdades de outrem.» Realça-se a clareza deste texto quanto às condições objectivas que ele coloca (objecta-se contudo a grande dificuldade em avaliar o conteúdo da «moral pública»). Assinalase, no entanto, que Jean-Pierre Raffarin, Primeiro-Ministro, face a um parecer do Conselho de Estado elaborado em 1989 encarregou, contudo, a Academia das Ciências Morais e Políticas de proceder a uma «reflexão muito importante sobre o uso do “véu islâmico” na escola.» Aqui a «moral académica» é solicitada sobre uma questão a priori de convicção. (Ver Le Monde de 5 de Abril de 2003). 34 Coloca-se aqui a questão da legitimidade e da própria legalidade de um recente «entorse» no direito das associações e no princípio da gestão democrática das instituições quando o Estado impõe, fora do âmbito da escolha dos membros que compõem uma associação declarada, a designação ad nominem de um presidente: cf. a designação, pelos poderes públicos, de Dalil Boubakeur, antes da eleição dos seus membros, à presidência do Conselho Francês do Culto Muçulmano. Na prática, o Estado molda assim as modalidades de designação das pessoas religiosas pelas instituições que praticam amplamente a cooperação sem se saber dos procedimentos democráticos, que, quando existem, validam as escolhas condicionais e prévias das hierarquias religiosas. 35 Ver, por exemplo, as modalidades estatais de tomada em conta, por parte dos poderes públicos, das práticas «dos islãos» em França, sob a égide do Ministério do Interior e dos Cultos no quadro da Consulta aos muçulmanos de França (cf. os estatutos da Associação para a organização das eleições no Conselho Francês do Culto Muçulmano, organismo declarado segundo a lei de 1 de Julho de 1901, mas igualmente as eleições de «Al Istichara», jornal da Consulta dos muçulmanos de França, publicado pelo Ministro do Interior). Ver igualmente o 26


Que meios de defesa e de protecção dos factos erligiosos? importante relatório do Alto Conselho para a Integração, de Novembro de 2000, sobre o tema «O Islão na República». 36 Sobre a responsabilidade social, a supervisão das eleições dos membros do Conselho Francês do Culto Muçulmano, de um intelectual influente entre os muçulmanos de França, ver por exemplo o «discurso legalista-realista» de Tariq Ramadan: Duas análises estão em presença: a da nova geração, que não acredita na sinceridade do poder e dos representantes muçulmanos, e as das pessoas que pensam que a lei é uma coisa, mas que é necessário compor com a realidade. Eu reconheço-me no realismo destes últimos, mas com a firme vontade de respeitar amanhã as exigências legítimas dos primeiros.» (Le Monde, 5 de Abril de 2003.) 37 Les médias et l’Église – Évangelisation et information : le conflit de deux paroles, Gérard Defois, Henri Tincq, Éditions CFPJ, 1997. 38 Ver por exemplo as tomadas de posição da Conferência dos Bispos de França acerca da questão dita dos «padres pedófilos» em relação à prática do sigilo dos ministros do culto e do segredo de confessionário. A aproximar-se da campanha de impressa de Março de 2003 do Conselho Superior do Notariado sob o tema «Para a honra do notariado». As mensagens difundidas em páginas inteiras dos diários nacionais comportavam as seguintes passagens: «É um procedimento doravante clássico na nossa sociedade tomar alguns casos desviantes e fazer deles espelhos deformadores das práticas de um grupo político, económico, social, cultural, religioso ou [...] profissional. Toma-se partido de uma vez por todas: desenrola-se o raciocínio ao longo de colunas sem tomar o cuidado de escutar os profissionais incriminados e de transcrever os seus argumentos. O subtil deslizar semântico do erro para a falta, depois da falta para o delito, é de natureza a comover e a perturbar o leitor [...]» No registo cristão, a primeira epístola de Pedro apela a estarmos «sempre preparados para responder com mansidão e temor a todo aquele que vos pedir a razão da esperança que há em vós.» (capítulo 3, versículo 1). (Na verdade trata-se do versículo 15). (N.T). 39 Ver, por exemplo, o entusiasmo e as tomadas de posição em Évry (Essonne), início de 2003, em torno do encerramento municipal de um comércio devido à venda de produtos exclusivamente «hallal», etc. 40 Bruno Étienne, «Marseille comme exemple d’interaction ville/religion: l’Association Marseille-Espérance, in Le religieux dans la commune – Régulations locales du pluralisme religieux en France, sob a direcção de Franck Frégosi et Jean-Paul Willaime, Labor et Fides, 2002. 41 Le pèlerin et le converti – La religion en mouvement, Flammarion, 1999, pp. 262ss. 42 Num outro registo respeitante às preocupações dos grupos religiosos, quaisquer que sejam, em França, ler a análise de Patrice Rolland, «La loi du 12 juin 2001 contre les mouvements sectaires portant atteinte aux droits de l’homme – Anatomie d’un débat législatif», Arch. de Sc. soc. des Rel. 2002, p. 212, (Janeiro-Março de 2003) pp. 149-166: «Le Garde des sceaux a parlé d’un “texte de régulation sociale et éthique”» Não são as ambiguidades da lei o reflexo das dificuldades de regulação dos fenómenos religiosos num Estado laico ? O método mais simples de regulação, quando se trata de uma liberdade fundamental, é a regulação jurídica de direito comum. No caso presente, J.-P. Willaime tem razão em sublinhar que o religioso sectário não coloca ao Estado problemas diferentes de intransigência ou de integralismo religioso nas religiões «reconhecidas». Ora, a estes, a República acomodou-se desde a origem». Acerca desta vontade política de manter a «pressão» parlamentar sobre as «seitas», ver as três propostas de resolução registadas na Presidência da Assembleia Nacional sob o n.º 340, a 5 de Novembro de 2002 (tendendo a criar uma comissão de inquérito sobre as implicações das seitas no quadro da formação profissional), o n.º 518, de 7 de Janeiro de 2003 (tendendo a criar uma comissão de inquérito às actividades do movimento raeliano, os seus meios financeiros e as tentativas de clonagem reprodutiva do embrião humano em território francês) e o n.º 558, de 21 de Janeiro de 2003 (tendendo a criar uma comissão de inquérito sobre a implicação das seitas no domínio da saúde e o sector médico-social). 27


Que meios de defesa e de protecção dos factos erligiosos? 43 Indicam-se, contudo, as conclusões do Relatório de 2002 da Comissão Nacional Consultora dos Direitos do Homem, que regista um número de violências e de ameaças «antijudaicas» e contra os «Magrebinos» nunca antes atingido (dos quais 193 actos anti-semitas, ou seja seis vezes mais que em 2001). Ver a lei n.º 88/2003, de 3 de Fevereiro, visando agravar as penas que sancionam as infracções de carácter racista, anti-semita ou xenófobo (J.O., 4 de Fevereiro de 2003, pp. 2104-2105). 44 Em matéria estritamente cultual, podem intervir, segundo as questões, o Bureau Central des Cultes, os Bureaux Chargés des Associations en Préfecture (regime das associações), as Comunas (questões de urbanismo), as «Administrações Fiscais» (estatutos das pessoas «religiosas», dos edifícios; nomeadamente o regime das actividades «religiosas»), as «administrações sociais» (nomeadamente o estatuto social das pessoas «religiosas», regime no Direito do trabalho das comunidades e colectividades «religiosas»), etc. 45 E aqui, relembramos o importante esforço em termos de engenharia «jurídica» ao qual é necessário entregar-se para chegar a elaborar um esquema de organização e de funcionamento conforme ao direito aplicável à doutrina administrativa. Émile Poulat escreve que «o regime francês dos cultos pode dar o sentimento de uma “fábrica de gás”: ele abre às Igrejas todas as possibilidades do direito segundo a natureza das suas actividades sem reconhecer a personalidade moral que lhes permitirá constituirem-se em holding oferecendo à sua clientela o culto, a cultura, o desporto, o ensino, a beneficência, a edição, o artesanato. A laicidade francesa compartimenta, em benefício da clareza.» (La Croix, 9 de Outubro de 2002). Sobre este assunto poder-se-á medir, por exemplo, a amplitude da tarefa, examinando o «matagal» dos textos legislativos e regulamentares sobre os organismos sem fins lucrativos, conjunto constitutivo de um verdadeiro «código das associações» (ver o excelente Code des associations, publicado em Setembro de 2002 sob a direcção de Xavier Delsol, pelas Éditions Juris Service, Groupe Dalloz, 662 páginas de textos jurídicos). 46 Por exemplo, fazer circular na Internet ou simplesmente à sua volta a suposta filiação de uma pessoa física ou moral a uma «seita», uma «loja maçónica», etc., forma moderna dos métodos dos «sicofantas». 47 Sobre os «métodos», ler Comment manipuler les médias – 101 recettes subversives, de Patrick Farbiaz, Denoël, Coll. Impacts, 1999. 48 Construção de acasos ligados ao uso do véu dito «islâmico», ao comércio de carne hallal ou casher sobre a base de recusa do «comunitarismo». 49 A taxação selectiva dos «dons manuais», no entanto livres segundo o artigo 6.º da lei de 1 de Julho de 1901. 50 Face aux discriminations, Les Éditions des Jounaux officiels, législation et réglementation, 2002, n.º 1725. Poder-se-á utilmente referir a obra de base em direito dos cultos e das associações religiosas em França, a saber Liberté religieuse et régime des cultes en droit français, sob a direcção de Bernard Jeuffroy e François Tricard, Cerf, 1996. Para um excelente apanhado dos textos internacionais e das «estratégias que permitem evitar ou erradicar a intolerância e a discriminação fundadas sobre a religião ou a convicção» ler o artigo de Rosa Maria Martinez de Codes (historiadora, professora na Universidade Complutense de Madrid), «Le combat contre la discrimination en Europe occidentale», Conscience et liberté, n.º 63, 2002, pp. 30-45. (Publicada igualmente na Consciência e Liberdade, n.º 14, 2.º semestre de 2002, pp. 30-45, sob o título «O Combate contra a discriminação na Europa Ocidental»). (N.T.).

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Conferência de S. Ex.ª o Embaixador Miguel Angel Semino, por ocasião do encontro “França-Américas” em 17 de Setembro de 2002 em Paris, sede da Associação A Laicidade na América Latina: O exemplo uruguaio Senhor Presidente da “França-Américas” e Embaixador Jean-René Bernard. Senhora Presidente da Secção América Latina, Drª Marie Thérèse Prevel, Senhores Embaixadores, caros colegas, Minhas Senhoras e Meus Senhores, Agradeço-vos pela vossa presença. É para mim uma grande honra ocupar a prestigiada tribuna da “França-Américas”. Procurarei estar à altura da distinção de que fui objecto. Antes de entrar propriamente no assunto, permitir-me-ei fazer algumas observações que me parecem necessárias. 1. A minha exposição sobre a laicidade no Uruguai será, muito mais de natureza descritiva do que comparativa em relação com os outros países da América Latina. Devo sublinhar que em nenhuma ocasião as minhas ideias deverão ser interpretadas como uma ingerência, mesmo indirecta, nos assuntos internos da França – o que me está vedado – ou uma apologia do nosso sistema. Este último funciona bem no nosso país, mas não temos nenhuma intenção de o exportar, nem de julgar os outros sistemas a partir da nossa experiência nacional. De facto, a minha exposição deveria intitular-se, mais modestamente: “A Laicidade na América Latina: o caso do Uruguai”. 2. A minha conferência não terá um carácter académico, uma vez que não estamos numa Faculdade de Direito, e limitar-se-á a dar-vos um simples vislumbre da nossa concepção e da nossa prática da laicidade. 3. Tentarei apresentar um panorama jurídico geral da situação. Teria sido de grande utilidade analisar os diferentes factores históricos e sociológicos que estão na base de algumas disposições nos outros países da América Latina, mas, infelizmente, isso não será possível. Talvez possamos voltar a este assunto posteriormente se, conforme espero, se 29


A Laicidade na América Latina: o exemplo do Uruguai

sentirem na obrigação de me colocarem questões ou se fizerem os vossos comentários e as vossas críticas. Poderemos, então, socorrendo-nos da História, compreender, um pouco melhor algumas particularidades nacionais. I. A Secularização Antes de se tornar num Estado laico, isto é, não religioso, o Estado uruguaio – segundo a Constituição de 1830 – era católico, apostólico e romano (art. 5). E assim foi até à Constituição de 1918. Ao longo deste período, que durou quase noventa anos, a sociedade uruguaia passou por um longo processo de secularização. Para o professor Jean Baubérot, isso “implica uma relativa e progressiva perda de pertinência social do religioso (…)”. A sociedade civil separou-se, progressivamente, da religião e este fenómeno favoreceu, ao fim de algum tempo, a instauração da laicidade do Estado que, sempre segundo o professor Jean Baubérot, “é, antes de mais, o trabalho do político, visando reduzir a importância social da religião, como instituição, em direcção a destitucionalizá-la”. Este processo social natural de secularização foi acompanhado por um incitamento por parte do Estado, como o confirma o que se segue: 1858 – Expulsão da ordem dos jesuítas. 1861 – A administração dos cemitérios fica daqui em diante, sob a responsabilidade das comunas. 1877 – Adopção da lei sobre a educação gratuita e obrigatória. Os não católicos deixam de ser obrigados a receber ensino religioso. 1879 – A lei retira à Igreja o controlo do Estado civil – nascimentos, casamentos, mortes. 1885 – A lei sobre o casamento civil estipula que este será o único acto legítimo e que deverá ser celebrado antes do casamento religioso. Hoje, no Brasil e na Colômbia, por exemplo, o casamento religioso tem efeitos civis. No caso da Colômbia, até mesmo a anulação do casamento religioso tem efeitos civis. A lei considera ilegais os conventos, ou mosteiros que não tenham sido autorizados pelo governo. 1906 – Retirados os crucifixos dos hospitais públicos. 1907 – Adopção da primeira lei sobre o divórcio. Supressão do juramento religioso dos legisladores. 1908 – Supressão do feriado em honra da Anunciação feita à Virgem Maria. 1909 – Abolição do ensino religioso e da prática da religião nas escolas públicas. 1911 – Encerramento na embaixada junto da Santa Sé. Restabelecimento 30


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das relações diplomáticas com o Vaticano em 1939. 1912 – Supressão do feriado no dia da Assunção. 1913 – A lei reconhece à mulher, e apenas pela sua vontade, o direito ao divórcio. (Não é obrigada a apresentar razões e o marido não tem o direito de se opor.) 1918 – Adopção de uma nova Constituição: separação da Igreja e do Estado. 1919 – Adopção de uma lei secularizando as festas religiosas: a) suprimindo: O Dia de Todos-os-Santos, da Assunção e da Imaculada Conceição. b) modificando os nomes: Natal torna-se no “dia da família” e a Epifania (a Festa dos Reis) no “dia das crianças. A Semana Santa chamase, desde então a “semana do turismo”. Por fim, acrescento que algumas povoações – nem todas – que tinham nomes de santos (como São Vicente, São Tomás, Santa Isabel, Nossa Senhora de Guadalupe) também mudaram de nome. II. A Laicidade Passarei a ler, de imediato, o artigo 5 da Constituição: “Todos os cultos religiosos são livres, no Uruguai. O Estado não apoia nenhuma religião. Reconhece à Igreja Católica a propriedade de todos os edifícios religiosos, que ela tenha construído, total ou parcialmente, com os fundos do tesouro público, com excepção das capelas que assegurem o serviço dos asilos, dos hospitais, das prisões e outros estabelecimentos públicos. Estipula, igualmente, que estão isentos de impostos os edifícios consagrados ao culto das diversas religiões”. A chave da abóbada do nosso sistema é que, no Uruguai, não há religião oficial, como é o caso da Argentina, da Bolívia, ou da Costa Rica. O Estado não reconhece a nenhuma religião um carácter preeminente, preponderante, ou maioritário, contrariamente ao Peru, ao Paraguai e ao Panamá. Qual é o fundamento político e doutrinário da separação da Igreja e do Estado e da laicidade? A religião é um assunto privado, pessoal. O facto religioso deixa de ser um acto público. A laicidade uruguaia não é neutra; apenas se abstém de tomar posição. Qual é a diferença? O abstencionismo não reconhece o carácter público do fenómeno religioso. Permanece à parte, salvo para proteger a liberdade religiosa, que é uma liberdade igual às outras – quer seja a liberdade de reunião, a liberdade de associação, etc. A neutralidade, em contrapartida, reconhece o carácter público da religião. Está equidistante das diferentes religiões. É o caso do Brasil, em que o Estado e a Igreja estão separados, 31


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mas onde existe um regime de colaboração – por razões de interesse público – com todas as religiões – naquilo que concerne, particularmente, ao reconhecimento do casamento religioso, as capelanias dos hospitais e do exército, as subvenções para o ensino religioso, etc. Acrescentarei que o sistema brasileiro da separação da Igreja e do Estado prevalece, também, na Guatemala e na Colômbia, e que muitos países – laicos – que não têm religião do Estado continuam a exigir do Presidente da República que preste um juramento de tipo religioso ou a invocar a protecção divina no preâmbulo da Constituição como no Chile, no Equador, nas Honduras, no Haiti, na República Dominicana, por exemplo. Gostaria, agora, se me permitem, salientar uma outra questão, de tipo acima de tudo pragmático, para apoiar a nossa laicidade abstencionista: com que religiões devemos colaborar? As que são mais antigas? As que são maioritárias? As que são cristãs? Como iremos conservar uma distância igual com umas e com outras? Contamos, pelo menos, dezoito denominações cristãs no Uruguai. Há igualmente um número assaz numeroso de judeus, alguns muçulmanos e umbandistas – os fiéis de uma religião com raízes africanas, que se tem desenvolvido rapidamente nos últimos anos. Contentar-me-ei em colocar algumas questões sem lhes responder, e que vos peço me perdoem por isso. III. Consequências que resultam da nossa laicidade abstencionista O ensino público é laico, como no México, no Equador e na Nicarágua. Os serviços públicos e o conjunto da administração pública são laicas. Eis alguns exemplos: a) Não se encontra nenhum símbolo religioso nos hospitais; b) nem se encontram noutros estabelecimentos públicos: ministérios, Câmaras Municipais, quartéis, etc.; c) não existem capelães – quer seja no exército, nas prisões ou nos hospitais; d) os funcionários – do governo, administrativos e diplomático – não podem participar, oficialmente em cerimónias religiosas. Devo sublinhar “oficialmente”, porque podem fazê-lo, é evidente, a título pessoal. Eu posso, sem nenhum problema, assistir a um ofício religioso do templo do meu bairro, mas devo declinar qualquer convite, que me seja dirigido, na minha qualidade de embaixador, o que é frequente nos meios diplomáticos latino-americanos, por ocasião das festas nacionais. Os membros do clero e os ministros das diferentes confissões são cidadãos de pleno direito. Não estão privados dos seus direitos cívicos – de forma geral, ou parcial – como é o caso, por exemplo, na Argentina, 32


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no México e no Panamá. No Uruguai, podem eleger e ser eleitos; podem fazer política e praticar um proselitismo ideológico apoiando-se nas suas convicções religiosas. Os partidos políticos ligados a uma religião são permitidos. O Estado não tem nenhum direito de vigilância nem sobre o clero, nem sobre os edifícios religiosos. Não é feita nenhuma distinção entre cultos “reconhecidos” e “não reconhecidos”. O reconhecimento do Estado não é necessário para usufruir da liberdade religiosa. No entanto, para exercer os seus direitos civis – como o de propriedade, por exemplo – devem adquirir personalidade jurídica como uma qualquer associação, o que não é complicado. Não existe nenhuma autoridade administrativa encarregue daquilo que, frequentemente se chama de “assuntos religiosos” porque, como já foi dito anteriormente, para nós, são assuntos privados. Se bem que o facto religioso seja considerado como privilégio do domínio privado, o nosso Direito tem duas excepções a esta regra de ouro. A primeira emana da Constituição, que declara os edifícios sagrados, isentos de todos os impostos – como é o caso do Chile e da Guatemala; a segunda emana do Código Penal (art. 304 e seguintes), que pune os crimes contra a liberdade religiosa – ofensas contra os ministros do culto, perturbação das cerimónias, destruição dos templos, etc. Estas excepções pretendem, como podem compreender, proteger a liberdade religiosa, sem fazer distinção entre os diferentes cultos. Elas constituem excepções “positivas” e não “negativas”. Balanço final A grande maioria dos uruguaios – sejam eles crentes, ou não – aceitam globalmente o sistema de separação da Igreja e do Estado e a laicidade abstencionista que daí deriva. Esta última levou a uma paz religiosa, sem, contudo, impedir o desenvolvimento de todas as religiões que quiseram implantar-se entre nós, e elas são numerosas. Porquê? Somos, e temos sido, um país de imigrantes. Se nos perguntarem donde vieram os uruguaios, responderemos que “descemos dos navios”. E isto não é uma brincadeira, é a verdade. Desses navios desceram espanhóis católicos, franceses católicos, protestantes – os Valdenses – italianos católicos, mas também franco-maçons e liberais, suíços católicos e protestantes, gregos e eslavos ortodoxos, libaneses maronitas, judeus, agnósticos e ateus – “Todas as aves do mundo vieram e fizeram os seus ninhos”. Temos o sentimento de que a laicidade uruguaia não é muito bem compreendida. E esta é a razão, pela qual, me permito insistir mais uma vez sobre este ponto: a laicidade uruguaia não é anti-religiosa, como foi, num momento da sua história, o México antes da reforma constitucional de 1992. A maioria da população do meu país é cristã, e mesmo aqueles 33


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que o não são construíram a sua escala de valores – conscientemente, ou não – apoiando-se na moral cristã. Não tenho o direito de vos deixar pensar, bem entendido, que não encontrámos dificuldades ao tratar da questão da liberdade religiosa e da laicidade. A aplicação quotidiana dos grandes princípios constitucionais coloca, sempre, problemas; é necessário não alimentar ilusões. Até hoje, a questão do lenço islâmico nunca se pôs, porque quase não há muçulmanos no meu país. Que eu tenha conhecimento, também não temos o caso da excisão. No entanto, como é de esperar o Estado foi confrontado com o problema suscitado por um casal que recusou vacinar os seus filhos por razões religiosas. Segundo a nossa legislação, é necessário ter recebido as três vacinas obrigatórias para se inscrever numa escola. Razões de ordem e de saúde pública estão na base desta exigência, que não é fantasista, nem arbitrária. Além disso, os pais, foram intimados a fazer vacinar os seus filhos, eles não quiseram sujeitar-se a esta exigência e, depois de algumas tentativas inúteis, abandonaram o país. Outros problemas surgiram, especialmente com as Testemunhas de Jeová por causa das transfusões de sangue, e com os judeus por causa da dispensa das aulas ao sábado. É possível resolver estes problemas? Em todos os casos é necessário aplicar o princípio, segundo o qual, a liberdade religiosa não pode ser objecto de outras restrições senão as que estão previstas na lei e que são necessárias para a protecção da segurança pública, a ordem, a saúde, ou a moral públicas, os direitos e liberdades dos outros (art. 12 do Pacto de São José da Costa Rica) – Convenção Americana dos Direitos do Homem (art. 9 da Convenção Europeia). Entre nós, a noção de ordem pública, por exemplo, contém a da igualdade dos sexos perante a lei e a noção de saúde pública, que releva da obrigação de se cuidar em caso de doença e de respeitar as regras sanitárias que foram editadas por razões de interesse geral. É, portanto, desenvolvendo estas noções orientadoras que se poderá tentar resolver os problemas e os conflitos que surgem naturalmente no seio da nossa sociedade, cuidando para seja respeitado, ao máximo, o equilíbrio necessário entre autoridade e liberdade.

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DOSSIER A Roménia e a liberdade religiosa A liberdade religiosa na escola romena Irina Horga* Qualquer que seja o contexto da análise, a educação religiosa, permanece “um problema actual”, um assunto controverso, tanto no plano teórico, como no plano das políticas educacionais. As mudanças que sobrevieram nos domínios social e cultural, assim como o seu impacto sobre a religião – a diversidade de crenças, a pluralidade religiosa das comunidades, o papel social dos valores religiosos, a relação entre o Estado e a Igreja – são factores que fazem da educação religiosa um assunto de debate, sob diversas perspectivas: a sua oportunidade, a relação entre a educação religiosa e a liberdade, os seus objectivos, a forma de ensino nos diferentes níveis da educação, a formas de assegurar a liberdade de espírito, etc. As reformas em curso ao nível dos sistemas de ensino – os objectivos, as qualificações, o programa, a formação dos professores, etc. – pressupõem adaptações permanentes, também por parte da edu-

cação religiosa. As atitudes para com este tipo de ensino na escola advêm da negação extrema e total da sua necessidade e da sua importância à acentuação do seu carácter exclusivamente confessional. As expectativas dos diferentes “grupos de interesse” para com este tipo de educação são muito diversas (ver P. Schreiner, 2002); a sociedade espera que a educação religiosa seja um meio de resolução dos conflitos e se baseia na sua contribuição para a paz e a contribuição para uma sociedade pluralista; os pais esperam que a escola assegure aos seus filhos a educação religiosa que eles não lhes podem oferecer; as comunidades religiosas desejam uma representação autêntica na escola e na comunidade; os políticos referem-se ao potencial ético da religião e, por fim, os jovens desejam que a educação religiosa lhes ofereça um “espaço seguro” para a apresentação dos seus próprios pontos de vista e para a comunicação das experiências da vida.

________ * Investigadora Científica do Instituto das Ciências da Educação, Bucareste, Roménia 35


A Liberdade religiosa na escola romena

É este o contexto geral que envolve a análise do lugar e do papel da religião em todo o sistema de ensino, incluindo a escola romena. O tema da religião na escola pressupõe que se estabeleça uma distinção entre os seguintes termos: educação religiosa/aulas de religião, ensino confessional, educação do tipo teológico/ensino religioso teológico. – A educação religiosa, ou aulas de religião, faz referência ao que o ensino público oferece como educação no domínio religioso. Os objectivos e o conteúdo da educação religiosa são elaborados a partir de modelos que variam de um país para outro, em função de especificidade de cada sistema de ensino. – O ensino confessional é a educação religiosa centrada numa só confissão, tendo como objectivo, a formação do crente em conformidade com os preceitos da fé promovida pelo culto e próprios da comunidade religiosa à qual pertencem. Habitualmente, o ensino confessional não se desenrola nas escolas públicas, mas principalmente nas escolas confessionais – privadas ou independentes – criadas pelas Igrejas ou comunidades religiosas e financiadas por fundos públicos ou privados. – A educação do tipo teológico é definida como um estudo formal de Deus e da fé religiosa. Tem lugar no ensino religioso teológico – seminários, liceus e faculdades de teologia – para a formação do pessoal de culto necessário a cada confissão. Cada um destes aspectos da religião nas escolas deve ser analisado 36

separadamente. Naquilo que se segue, faz-se referência aos aspectos específicos da religião na escola romena, na perspectiva de assegurar a liberdade de consciência do indivíduo na escola. A. As aulas de religião nas escolas públicas Na Roménia, a educação religiosa foi introduzida como disciplina obrigatória pela lei sobre o ensino nº 84/1995 (artigo 9), no início do ano escolar 1995-1996. Esta lei provocou, na época, debates violentos salientando pontos de vista diversos, por parte dos representantes do clero, de muitos intelectuais de prestígio, assim como dos media, dos pais e mesmo dos alunos. Alguns classificaram de anticonstitucional a decisão de tornar obrigatória a disciplina de religião. Diversos críticos defenderam a ideia de que a educação religiosa na escola representa “a ingerência do Estado nos problemas da Igreja” e que a obrigação de participar nas aulas de religião, não só dá lugar a uma hipocrisia entre as crianças, os pais e o pessoal envolvido no sistema escolar, mas está em oposição com a liberdade de consciência do indivíduo e constitui uma “tendência retrógrada” que mantém o ensino romeno num estado de subdesenvolvimento. Por outro lado, múltiplos argumentos tinham opiniões contrárias: a importância da religião tem o seu lugar legítimo na escola. Esses argumentos apoiavam-se, tanto no


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Uma vez passado o período das controvérsias sobre a legitimidade da religião romena, a política educacional viu-se obrigada a responder a várias perguntas: o estatuto da religião no programa escolar, que será encarregue da elaboração do programa de religião, a forma de o aplicar, etc. Outras questões colocadas sobre a organização e o desenvolvimento da actividade didáctica da religião: a participação, o processo de ensinar-aprender-avaliar, a formação dos professores de reli­ gião, etc.

desenvolvimento pessoal, como nos aspectos sociais: – Um primeiro argumento sublinhava a necessidade do livre acesso à educação em matéria de religião e de fé, assim como a liberdade dos pais em assegurar aos filhos uma educação moral e religiosa de acordo com as suas convicções. Por outro lado, deveria ser permitido, às escolas públicas, que organizassem uma instrução religiosa num contexto de não discriminação e de tolerância. – Um segundo argumento, cultural e moral, tem sublinhado a importância dos valores religiosos no desenvolvimento da personalidade do aluno e a necessidade de agir contra o analfabetismo religioso. Neste caso, as aulas de religião são consideradas como uma condição necessária para a compreensão do passado histórico e cultural, para a explicação dos símbolos e dos seus sentidos religiosos dos diferentes aspectos da vida e para o desenvolvimento de certos comportamentos e normas de conduta. – Outro argumento importante: o argumento histórico. Assim, fezse referência à presença constante da educação religiosa na legislação romena. As primeiras leis sobre o ensino – durante o período de criação do sistema de ensino moderno – previam que “todas as crianças, qualquer que seja a sua religião e o seu rito, devem receber uma instrução religiosa” (lei sobre a instrução pública, 1864). Essa foi a situação até ao decreto para a reforma do ensino, de 1948, que suprimiu a educação religiosa na escola.

Qual é o estatuto das aulas de religião? No sistema de ensino romeno, a educação religiosa é uma disciplina obrigatória, prevista no tronco comum à razão de uma hora por semana, durante toda a escolaridade, ao nível primário, secundário inferior e secundário superior (liceus e institutos de formação profissional). Algumas críticas foram feitas sobre o facto desta disciplina ser obrigatória e de os alunos, à partida, serem muito jovens. Primeiro, foi formulada a seguinte questão: em que medida é respeitado o princípio da liberdade de consciência quando alguém é obrigado a seguir um tipo de educação, frequentemente crítica, porque doutrina e desenvolve preconceitos? Deve mencionar-se que, na escola romena, assim como em muitos outros sistemas de ensino, a religião deve, obrigatoriamente, fazer parte das aulas propostas pela escola, mas a escolha quanto 37


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à inscrição nesta disciplina e ao tipo de instrução religiosa, pertence ao aluno, com o acordo dos pais: “O aluno, com o acordo do pai ou do tutor legalmente instituído, esco-

lhe estudar a religião e a confissão […]” (lei sobre o ensino nº. 84/1995, artigo 9). Assim, considera-se que o direito de optar pela participação nesta aula “livre” a religião do risco

Simpósio sobre a liberdade religiosa, organizado em Fevereiro de 2000 na Câmara Municipal de Timisoara, Roménia. Foto Viorel Dima

Em Março de 2002, reuniram-se num simpósio sobre a liberdade religiosa, na Câmara Municipal de Cracóvia, na Roménia, os representantes de diferentes confissões religiosas e os Presidentes das Câmaras da região. Foto Viorel Dima

Viorel Dima (à esquerda), Secretário Geral da secção romena da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa. Foto ANN.

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de doutrinação avançada pelos seus detractores. Em segundo lugar, pôs-se fim às críticas sobre a idade precoce na qual a criança começa o estudo da religião na escola propondo a transferência do ensino desta disciplina escolar para uma idade em que se julga que o aluno tem o discernimento necessário para escolher com conhecimento de causa. Garante-se assim, a liberdade de consciência. Mas a importância da educação religiosa, desde os primeiros anos de escola, foi defendida pela maioria dos investigadores neste domínio, partindo da ideia de que toda a escolha supõe um conhecimento prévio e reconhecendo o impacto positivo de uma tarefa educativa numa idade muito precoce. Uma vez que este programa obrigatório faz parte de um tronco comum, todas as despesas com a organização e o desenvolvimento das aulas de religião no sistema de ensino romeno – disponibilização de manuais escolares, pagamento dos professores, avaliações e exames escolares, etc. – são assumidos pelo orçamento de Estado.

centrado sobre uma única religião – o conhecimento da sua própria religião, ou da religião maioritária – tendo como objectivo instruir os alunos para fazer deles crentes. • Aprender sobre religião (“learning about religion”). Conhecer a religião pela descrição, do ponto de vista histórico, elementos de comparação das religiões, da história e da filosofia das religiões, da arte religiosa, etc., para compreender como é que a religião influencia a vida pessoal e a da comunidade. • Aprender a partir da religião (“learning from religion”). As aulas de religião oferecem ao aluno a oportunidade de encontrar respostas para os maiores problemas morais e religiosos, de desenvolver um pensamento crítico e uma reflexão valorizando os conhecimentos e os valores provenientes da religião. Nestas três abordagens, o grau de liberdade de consciência individual varia. Paralelamente, o programa escolar evolui entre a predominância confessional, centrada na própria religião, e a predominância não confessional, orientada para o estudo das religiões (ver Kodelja, Y. Bassler, 2004). No sistema de ensino romeno, a educação religiosa é abordada numa perspectiva com predominância confessional. Uma vez que cada culto tem um programa escolar próprio, a maior parte do conteúdo está centrado nos aspectos específicos de uma confissão – ensino da fé, história do culto, tradições e práticas religiosas – colocando a ênfase na prática e na aplicação dos conhecimentos. Mas além destes

Como abordar a religião no programa escolar? Pelo facto de as determinantes sociais, culturais, políticas, históricas, etc., da educação religiosa variarem, não há uma forma única de a abordar no programa escolar. Neste sentido a distinção feita por alguns autores entre as abordagens seguintes é interessante (ver Hull, J., 2001). • Aprender a religião (“learning religion”). É uma descrição da situação na qual o programa escolar está 39


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do sétimo dia, o culto muçulmano. Estes programas escolares foram elaborados conforme o modelo utilizado pelas outras disciplinas escolares: um modelo centrado sobre objectivos, para as classes do 1º ao 8º e sobre competências, para as classes do 9º ao 12º. De acordo com as disposições legislativas, a elaboração dos programas escolares é realizada pela colaboração entre os cultos – que está baseada por departamentos especializados de educação religiosa e de ensino teológico – e o Estado (o Ministério da Educação e da Investigação e o Conselho Nacional para o Programa, onde funcionam os grupos de trabalho para cada culto). Esta colaboração permite evitar os extremos e as discriminações religiosas e aplicar alguns princípios de importância maior: a orientação da evolução didáctica para os valores e as atitudes; a ênfase nos aspectos formadores da motivação, da atitude e do comportamento; as abordagens interdisciplinares, para a correlação de alguns temas de educação religiosa com os temas específicos de outras matérias estudadas – literatura, história, biologia, artes – para ultrapassar a ideia do conflito religião-ciência.

aspectos que constituem a identidade, cada culto tem proposto temas que asseguram, em certa medida, uma perspectiva intercultural e interreligiosa: elementos da história das religiões, aspectos específicos das outras confissões e comunidades religiosas. Esta parte da matéria aumenta progressivamente da escola primária para o liceu. Sobre a predominância dos elementos confessionais, pode perguntar-se em que medida este ensino contradiz a fé de alguns alunos que assistem às aulas, embora não pertençam ao culto que é ensinado, ou, em que medida, entra em contradição com princípios do Estado laico. Para ultrapassar estes obstáculos, na elaboração dos programas e na avaliação nacional dos meios de ensino – manuais escolares, auxiliares didácticos – estabeleceu­ ‑se como princípio determinante, evitar todos os temas, ou abordagens, que impliquem uma forma de discriminação religiosa. Quem elabora o programa escolar no que concerne a religião? No contexto da reforma dos programas escolares, todos os cultos reconhecidos pela lei e tendo o direito de ensinar a sua confissão na escola elaboraram um programa para o curso de religião: o culto ortodoxo, o culto católico romano e o culto grego-católico, o culto reformado, o culto unitário, o culto evangélico luterano, a aliança evangélica – o culto baptista, o culto pentecostal e o culto cristão, segundo o Evangelho – o culto adventista

Quem forma os professores de religião e como? A formação dos professores de religião constitui um problema da educação religiosa no sistema de ensino romeno, na perspectiva de assegurar a liberdade de consciên40


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“A Liberdade religiosa no contexto romeno e europeu”. Foi o tema do simpósio organizado em Bucareste, a 12 e 13 de Setembro de 2005, pelo Ministério dos Cultos e dos Assuntos Religiosos, da Secretaria de Estado para os Assuntos Religiosos, assim como a secção romena da AIDLR. Entre os participantes figuravam, nomeadamente, representantes do Governo, de diversas Igrejas Ortodoxas e Protestantes, medias, assim como oradores vindos de além-mar. As discussões centraram-se, especialmente, sobre o projecto de lei romeno sobre a religião. Hans Heinrich Vogel (à esquerda) membro do Comité de Veneza do Conselho da Europa e professor na Universidade de Lund, na Suécia, assim como John Graz, Secretário Geral da International Religious Liberty Association, Silver Spring, Estados Unidos, dois dos principais oradores. Foto ANN

Da esquerda para a direita, Bogdan Tataru-Cazaban, conselheiro do Governo, Adrian Iorgulescu, Ministro dos Cultos e dos Assuntos religiosos e o Patriarca Teoctist, da Igreja Ortodoxa romena. Foto ANN 41


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de convicção dos alunos. Eis alguns exemplos: O que se passa no caso em que as aulas de religião não podem ser organizadas, na escola, porque o número de alunos da classe que pertencem a uma certa religião é pequeno? Quando o número de alunos que optaram por um curso de religião é inferior ao número previsto nos regulamentos legislativos, o curso não é organizado. Isso acontece nas comunidades em que a maioria da população escolar pertence a uma determinada religião. Para remediar estas situações problemáticas, aceitou-se a organização de grupos de estudo compostos por alunos provenientes de diferentes níveis de escolaridade ou, em certos casos, considerar como equivalentes ao estudo da religião na escola e a frequência de um programa de educação religiosa pelo culto fora da escola. Em certas situações em que é impossível assegurar o enquadramento do professor de religião nas normas didácticas – e implicitamente, onde o orçamento de Estado não lhe paga nenhum salário – em virtude do número restrito dos alunos, alguns cultos optaram pela retribuição com fundos próprios. Quais são as opções dos alunos que não pertencem a nenhuma comunidade religiosa com o estatuto de culto reconhecido – e que, consequentemente, não têm o direito de organizar cursos de religião – assim como dos alunos que se declaram ateus?

cia individual. A formação inicial é assegurada pelo mesmo sistema das outras disciplinas escolares, isto é, pelas faculdades respectivas – particularmente, as faculdades de teologia – agregando-lhe, depois um ensino psico-pedagógico. A formação contínua dos professores de religião é crítica: a oferta de formação para os cursos de religião, é ainda quase inexistente ao nível dos organismos de formação contínua dos professores por vários motivos: pedido insuficiente por parte dos professores de religião, prestações reduzidas relativas a esta disciplina escolar pelos organismos em comparação com as outras matérias estudadas, parte do princípio de que a educação religiosa é da responsabilidade dos cultos, etc. Julga-se que a preparação psico-pedagógica sistemática e a formação e a informação rigorosa dos professores de religião é tanto mais necessária quanto o seu papel e a sua responsabilidade como modelos e como formadores são maiores do que nas outras disciplinas. Uma boa preparação teológica não acompanhada de uma formação no domínio da psicologia, de pedagogia e da metodologia não pode assegurar os objectivos de um esforço didáctico. Outros aspectos do ensino da religião na escola A organização das aulas de religião no interior das escolas públicas deu origem a vários constrangimentos e aspectos problemáticos, frequentemente classificados como violações da liberdade de crença e 42


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Os alunos que se enquadram nestas categorias têm a possibilidade de renunciar à frequência das aulas de religião, concluindo, assim, a sua escolaridade sem nota em religião. A educação religiosa dos alunos da primeira categoria é da família ou do culto. Além disso, os alunos podem optar por frequentar as aulas de religião – mesmo se não são específicas da sua fé, nem das suas próprias convicções – sem serem submetidos à avaliação escolar. Como são respeitados os elementos específicos dos diferentes cultos – dias de culto, práticas do culto, vestes, sinais religiosos, etc. – no ensino público? O respeito pelos dias de culto nas escolas públicas romenas tem colocado algumas dificuldades em diferentes ocasiões. Eis um exemplo: Durante a época de exames nacionais em Junho de 1999, um certo número de candidatos pertencendo à Igreja Adventista do Sétimo Dia não se puderam apresentar na última prova, fixada para um Sábado. Como consequência, foram declarados como reprovados, pelo Ministério da Educação e não puderam inscrever-se nos liceus e nas escolas profissionais. Como resultado dessas decisões e dos regulamentos de outras diferentes instâncias (decisão civil nº 1934/1999 do Supremo Tribunal de Justiça, o protocolo estabelecido entre o Ministério da Educação e a secção nacional da Associação Internacional para a Defesa da

Liberdade Religiosa, nota 11720/ 1999 aprovada pelo governo romeno) o Ministério da Educação impôs uma anulação da decisão anterior e concedeu aos alunos atrás mencionados a autorização para se apresentarem a exame e poderem depois prosseguir os seus estudos, inscrevendo-se nos diferentes tipos de escolas. No que refere às roupas específicas ou aos sinais religiosos, situações problemáticas ligadas a esses aspectos – tais como o problema do véu muçulmano hid-jab ou o problema dos sinais religiosos nas escolas francesas – até ao presente não foram notados nas escolas romenas. Isso, talvez, porque a sociedade romena também não é interconfessional e, por conseguinte, a população escolar romena pertence, frequentemente a uma maioria religiosa, que aceita mais facilmente pessoas, ou pequenos grupos, do que grandes grupos que pertençam a outras confissões. Ao nível formal, as formas concretas de ultrapassar eventuais situações problemáticas e obstáculos que surgem com o ensino da religião foram claramente identificados. Contudo, na prática, surgem incidentes ligados à organização de cursos de religião e ao direito de não participar nesse actividades. Estas situações são inerentes a estas questões. No entanto, se se consegue ultrapassá-las, é, mais, graças às capacidades dos directores das escolas e ao tacto pedagógico dos professores de religião do que às regulamentações nacionais. 43


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referências às faculdades de teologia – ortodoxa – que funcionam nas Universidades, e nos seminários teológicos – leis até 1912. Além disso, desde a lei do ensino de 1948, a Igreja está completamente separada do ensino do Estado. – Pelo facto das escolas confessionais funcionarem como escolas privadas, as únicas referências legislativas para o ensino são feitas no contexto da apresentação do ensino privado. A lei sobre o ensino privado (1925) estabelece as condições de funcionamento das escolas privadas, igualmente válidas para o ensino confessional: as escolas funcionam com a autorização, sob o controlo e a supervisão do Ministério da Educação; não podem ser fundadas senão por cidadãos romenos – indivíduos ou pessoas agrupadas em sociedades religiosas, culturais, etc.; o número de crianças por classe deve ser de dez, no mínimo; os programas escolares podem emanar do Ministério da Educação ou podem adoptar programas próprios. No contexto actual, o problema do ensino confessional, na Roménia, tornou-se um assunto de debate, tal como as disposições legislativas recentes: – A Constituição da Roménia: “As instituições de ensino, incluindo as instituições privadas, formam-se e exercem as suas actividades nas condições fixadas pela lei” (capítulo intitulado “Direito à instrução”, artigo 32, alínea 5). – A Lei sobre o ensino nº 84/ 1995, com as modificações e complementos ulteriores: “Os cultos

B. O ensino teológico romeno O ensino teológico romeno é praticado, ao nível secundário, nos seminários e liceus teológicos e, ao nível superior, nas faculdades de teologia. Desde 1993, a sua organização está sob a responsabilidade do Ministério da Educação, que determinou mudanças na organização e no desenvolvimento do programa, para a correlação do ensino teológico com os outros elementos de preparação. Assim, o ensino teológico faz parte do ensino do Estado e é financiado pelo seu orçamento. O ensino teológico pretende formar o pessoal do culto necessário a cada confissão. No caso dos seminários e dos liceus teológicos, o número de alunos é definido pelo Ministério da Educação e da Investigação, baseando-se na proposta de cada culto; as faculdades de teologia estabelecem o número anual de lugares em função da sua própria avaliação, no respeito pela autonomia universitária. C. O ensino confessional na Roménia Numa perspectiva histórica, o ensino confessional na Roménia tem-se desenvolvido ao mesmo tempo que o aparecimento dos primeiras escolas junto dos conventos e das igrejas. A educação confessional está muito ligada à etnia das crianças e à língua em que o ensino é ministrado, e o financiamento é realizado pelos fundos das Igrejas. A análise da legislação do ensino romeno no período de 1864-1943 põe em evidência os seguintes aspectos: – Não se faz referência, em particular, ao ensino confessional. As leis sobre o ensino apenas contêm 44


A Liberdade religiosa na escola romena

– Controlo do Estado e atribuições dos cultos. Que aspectos poderão ser controlados pelo Estado? Que atribuições e responsabilidades terão os cultos na administração das escolas confessionais na elaboração o do programa escolar, na formação do pessoal docente, etc.? – Equivalência dos programas e das qualificações. Como garantir que a qualidade da formação nas escolas confessionais será equivalente à das escolas públicas? As respostas a estas questões serão, provavelmente, reunidas numa lei sobre o ensino confessional, para regulamentar a sua organização e o seu funcionamento. A análise da presença da religião na escola, segundo a tríplice perspectiva acima apresentada – as aulas de religião, o ensino teológico, o ensino confessional – ilustra a liberdade religiosa no ensino romeno. Partindo do princípio de base enunciado na lei sobre o ensino – “No ensino é interdito o proselitismo religioso” (artigo 11, alínea 3) – o sistema de ensino romeno procura, em permanência, harmonizar-se com as exigências de uma sociedade aberta, segundo as quais a relação entre o Estado e os cursos de religião deveriam reflectir a relação entre o Estado e a religião.

religiosos oficialmente reconhecidos pelo Estado têm o direito de fundar e de administrar as suas próprias unidades e instituições de ensino privado, de acordo com a lei” (artigo 9, alínea 4). Estas disposições necessitam de organização urgente do ensino confessional, um facto extensível a todos os cultos na Roménia. Os debates sobre o assunto confessional analisam as possibilidades de organização no contexto do sistema de ensino romeno. Os temas maiores da discussão são os seguintes: – Organização. O ensino confessional deve ser público, ou não, privado ou independente? – Apoio Financeiro. O apoio financeiro do orçamento de Estado bastará nas actuais condições de precariedade, que já levaram ao subfinanciamento das escolas públicas face às suas necessidades? Quais serão as categorias de despesas subvencionadas? Que tipo de taxa se aplicará ao ensino confessional? – Acreditação das escolas confessionais. Quais serão as condições de acreditação dessas instituições de ensino? Quem terá essa responsabilidade? – Condições de acesso. É garantido o livre acesso ao ensino confessional, independentemente da filiação religiosa dos alunos?

Referências bibliográficas Hull, J., “The Contribuition of Religious Education to Religious Freedom: A Global Perspective”, in Religious Education in Schools: Ideas and Experiences from around the World, Oxford, International Association for Religious Freedom, 2001. Kodelja, Y, Bassler, T., Religion and Schooling in Open Society, Lubliana, Dezembro 2004. 45


A Liberdade religiosa na escola romena Schreiner, P., “Overview of Religious Education in Europe”, in Committed to Europe’s Future. Contribution from Education and Religious Education, Munique. Coordinating Group for Religious Education in Europe, 2002. Programa escolar de religião para as classes I-VIII, vol. 7, Ministério da Educação e da Investigação, Conselho Nacional para a Curricula, Bucareste, 1998. Programa escolar de religião para as classes IX-X: www.edu.ro.

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O Debate Habermas-Ratzinger – Convergências e implicações*

Andrei Marga**

A Academia católica de Munique teve uma excelente ideia em organizar, a 28 de Janeiro de 2004, um debate aberto entre um dos mais notáveis filósofos da actualidade, Jürgen Habermas, e uma das mais notáveis personalidades do Vaticano, o cardeal Joseph Ratzinger, sobre o tema “Os fundamentos morais de um Estado liberal”. O debate que se realizou deve a sua importância, não apenas à representatividade cultural dos interlocutores, mas ao facto de que por detrás dos seus nomes há trabalhos definitivamente inscritos no património filosófico e teológico mundial. Por outro lado, Jürgen Habermas e o cardeal Ratzinger são verdadeiras consciências dos nossos tempos que, de uma forma indirecta, pelas suas contribuições, eram, até então, essencialmente críticos um do outro. Para marcar a importância do acontecimento, o director da Academia Católica, Florian Schuller, apresentou Jürgen Habermas como “o

filósofo alemão mais influente desde Marx, Nietzsche e Heidegger” e o Cardeal Ratzinger como uma verdadeira “locomotiva” da Igreja Católica. Salientou, também, que “o nome de ‘Ratzinger’, tal como o de ‘Habermas’ designam, hoje, todo o mundo intelectual e que os dois, em conjunto, formam um dos conjuntos mais estimulantes que se possam imaginar actualmente, em matéria de debates – provavelmente, mesmo, para além do espaço germanófono – sobre a reflexão e os princípios da existência humana”. As intervenções essenciais de Jürgen Habermas e do cardeal Ratzinger foram, em tempos, publicadas no jornal Zur Debatte. Themen der Katholischen Akademie in Bayern, 34 Jahrgang, 1, 2004, Munique. Apresentaremos de seguida o seguinte: 1. Os pontos de vista expressos por Jürgen Habermas e o cardeal Ratzinger;

________ *Este artigo foi escrito antes do Cardeal Joseph Ratzinger ter sido nomeado papa e tomar o nome da Bento XVI, a 2 de Abril de 2005 ** Professor na Universidade Babes-Bolyai, em Cluj-Napoca, Roménia

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O debate Habermas-Ratzinger - Convergências e implicações

gozem das suas liberdades e dos seus direitos, mas que também estejam prontos, se necessário, a sacrifícios para os defender e promover. Seja qual for a variante do Estado liberal secularizado que se imagine, “as virtudes políticas são essenciais para a manutenção da democracia – mesmo se essas virtudes não forem destiladas senão a ‘conta-gotas’. É assunto de socialização e de aclimatação das práticas e das formas de pensar de uma cultura política da liberdade. O estatuto de cidadão está, em certa medida, inserido numa sociedade civil que vive de fontes espontâneas ou, se preferirem, “pré-políticas”. Logo, não se conclui que o Estado liberal seja incapaz de reproduzir os pressupostos inerentes às suas motivações a partir do seu próprio fundo secularizado. Os motivos que permitem uma participação dos cidadãos na formação da opinião e de vontade políticas alimentamse, certamente, de projectos de vida éticos e de formas de cultura vividos”3. Entretanto, as sociedades abrem-se para uma Sociedade de cidadãos do mundo estruturada por normas, que representam, pelo menos, uma abordagem dos problemas. Uma vez orientadas nesta direcção, as sociedades só podem assegurar a “solidariedade” de que necessitam apenas no momento em que “os princípios da justiça se inserem na densa rede de uma cultura orientada segundo os valores”. Doutra forma, o refúgio dos cidadãos dos Estados democráticos na esfera privada, sob diversos aspectos, alarga-se. “A tendência

2. algumas convergências inesperadas; 3. certas implicações deste debate histórico. Habermas abordou o tema dos “fundamentos pré-políticos morais de um Estado liberal” tendo, como ponto de partida, a questão posta por Ernest-Wolfgang Bökenförde em Die Enstehung des Staates als Vorgang der Säkularisation (1967), da seguinte forma: “Será que o Estado liberal e secularizado se alimenta de pressupostos normativos que ele mesmo é incapaz de garantir?1” Dito de outra forma, é certo que o Estado de direito democrático poderá renovar os seus fundamentos sem apelar às tradições éticas e religiosas sobre as quais assenta? No decurso do debate de Munique, Habermas tentou responder a esta questão apoiando-se no estado actual do mundo. É hoje admitido, retrospecti­va­ mente, que a moderna doutrina dos direitos do homem e a tradição do Direito Racional, utilizando interpretações secularizadas, foram possíveis no quadro de visões monoteístas, em todo o caso religiosas. “A história da teologia cristã da Idade Média, em particular a escolástica espanhola tardia, entra, por certo, naturalmente, na genealogia dos direitos do homem”2. No entanto, as legitimidades do Estado moderno recorreram às fontes profanas da filosofia dos séculos XVII e XVIII. A questão muito pontual que se coloca é o saber se o Estado secularizado é capaz de encontrar em si mesmo as motivações necessárias para que os cidadãos, não só 48


O debate Habermas-Ratzinger - Convergências e implicações

para a privatização reforça-se entre os cidadãos através do recuo desanimador da função desempenhada pela formação da opinião e da vontade públicas: cada vez mais, esta não se exerce senão parcialmente nas arenas nacionais e já não atinge os processos de decisão transferidos para a escala supranacional”4. Uma “tendência do cidadão para a despolitização” é estimulada por muitos aspectos da evolução das sociedades democráticas actuais. Nesta situação – e aí trata-se de um novo passo na concepção do filósofo – Habermas propõe que o dossier seja, desde logo, classificado de secularização – com um pós-modernismo acusando a auto destruição da racionalidade moderna e com uma Igreja Católica outrora reservada face às correntes do humanismo, das Luzes e do liberalismo – seja reaberta para ser reexaminada. “A questão está em saber se uma modernidade ambivalente só poderá encontrar a sua estabilidade, graças às forças seculares de uma razão comunicacional, e creio ser melhor colocar esta questão não a colocando no extremo do ponto de vista de uma crítica da razão, mas analisandoa, sem dramatização, como uma questão empírica e aberta. A filosofia deve, também, pegar a sério neste fenómeno, por assim dizer, do interior como uma exigência cognitiva”5. A tese – nova nos escritos de Habermas – que o filósofo defendeu em 2004, por ocasião do debate de Munique, é que a filosofia e a religião conservam, como argumentaram Kant e Hegel, os

seus domínios de competência, as suas “fronteiras” claramente delimitadas. Mas, afirma Habermas, perante a diferença do classicismo alemão, é necessário renunciar à “pretensão filosófica” de estabelecer o que, nas tradições da religião, é “verdadeiro ou falso”. “O respeito que acompanha esta recusa de realizar um julgamento cognitivo baseia-se na atenção devida às pessoas e às formas de existência que retiram, visivelmente, a sua autenticidade e a sua integridade, de convicções religiosas. Mas o respeito não é tudo: em relação com as tradições religiosas, a filosofia tem razões para estar pronta a aprender”6. Habermas admite que entrámos numa “sociedade pós-secularizada”. Uma vez que a integração nas sociedades da modernidade tardia está em perigo – porque o equilíbrio entre os três grandes meios de integração social está ameaçada, os mercados e o poder administrativo põem de lado a solidariedade social – impõe-se uma reavaliação das fontes motivadoras. “Também é do interesse do próprio Estado democrático a adopção de um comportamento de preservação perante todas as fontes de cultura de que se alimentam a consciência das normas e a solidariedade dos cidadãos”7. “A sociedade pós-secularizada” é aquela onde a “secularização” é reinterpretada como um “processo de aprendizagem complementar” apoiada, ao mesmo tempo sobre as mentalidades profanas e religiosas, emprestadas sem 49


O debate Habermas-Ratzinger - Convergências e implicações

avaliações a priori e de maneira reflexiva. “A neutralidade do poder do Estado quanto às concepções do mundo que garante uma igual liberdade ética a cada cidadão, é incompatível com a universalidade política de uma visão de um mundo secularizado. Quando os cidadãos secularizados assumem o seu papel político, não têm o direito nem de recusar às imagens religiosas do mundo um potencial de verdade presente nelas nem de contestar aos seus concidadãos crentes o direito de dar, numa linguagem religiosa, a sua contribuição aos debates públicos”8 O cardeal Ratzinger evocou desenvolvimentos nas sociedades contemporâneas que reclamam um novo apelo à religião para que a humanidade preserve os limites de uma vida digna de ser vivida. Por um lado, “a emergência de uma sociedade mundial”, por outro lado, o desenvolvimento, sem precedentes, das capacidades técnicas de destruição da humanidade transforma o problema “dos fundamentos éticos das culturas que se cruzam” num problema crucial da nossa época. O projecto de Hans Kung sobre o Weltethos em sinal da urgência, mesmo se dá lugar a objecções, como Robert Spaemann mostrou no seu Weltethos als “Projekt” (2000)9. “Parece-me no entanto evidente que a ciência como tal, não saberia trazer um ethos que, por consequência, uma consciência ética não se constitui como um produto nascido de debates científicos”10. Outra situação: as mudanças da representação do mundo e do homem, que resultaram dos conhecimentos científicos cada 50

vez mais ricos, levaram à dissolução das “velhas certezas morais”. Há, no entanto, uma “responsabilidade da ciência” para com a humanidade e, sobretudo, uma “responsabilidade da filosofia”: que consiste em acompanhar de forma crítica, o desenvolvimento das diferentes ciências. Por fim, “o dever da política consiste em colocar as forças sob o controlo do Direito e regular assim o seu uso sensato”. A força do Direito deve prevalecer-se sobre o direito da força, da arbitrariedade e dos abusos. “A liberdade sem o Direito, é a anarquia e portanto, a destruição da liberdade”11. Para o cardeal Ratzinger, o Direito deve ser construído de forma a permanecer um “veículo da justiça” e não um privilégio daqueles que detêm o poder. A regra da maioria, adoptado pelos sistemas democráticos, da formação da vontade política deveria no entanto ser vista não apenas sob o aspecto técnico da tomada de decisões, mas também sob o seu aspecto moral. “Mas maiorias também podem ser cegas ou injustas12.” O problema dos fundamentos éticos do Direito colocam-se, por conseguinte, com uma acuidade acrescida. O Direito é, ele mesmo, precedido por premissas que o ultrapassam, como Direito, e que dependem de uma outra espiritualidade. A tudo isto juntam-se “os desafios” dirigidos ao poder, do Direito e da moral do mundo contemporâneo. “E, daqui em diante, veremos: a humanidade não tem nenhuma necessidade da Grande Guerra para tornar impossível a vida no mundo. As forças anónimas do ter-


O debate Habermas-Ratzinger - Convergências e implicações

A Praça do Mercado em Brasov (antiga Kronstadt, na Transilvânia), “a joia dos Cárpatos”. Ao fundo, a célebre catedral protestante chamada “A Igreja Negra”. Foto Jürgen Butscher

ror que podem agir com crueldade por todo o lado são suficientemente fortes para lançar o mundo no caos sem tocar na ordem política13.” É isto que nos leva a pôr o problema das origens do terrorismo. Na sua intervenção, por ocasião do debate de Munique, o cardeal Ratzinger fez notar que “é assustador […] que se apresentem legitimações morais ao terrorismo14”, e invocou, nesta perspectiva a referência às ligações à opressão e à religião nas mensagens dos terroristas islâmicos. Como consequência, o célebre teólogo formulou

explicitamente a seguinte questão: “Será que a religião não deve ser colocada sob o controlo da razão e cuidadosamente delimitada?”15 A religião deve participar, também, na promoção “da liberdade e da tolerância universais”, tal como as modernas doutrinas dos direitos do Homem necessitam, hoje, de um desenvolvimento urgente. “Talvez hoje fosse necessário completar a doutrina dos direitos do Homem com uma doutrina dos deveres e limites do Homem; era isto que, apesar de tudo ajudar a renovar a questão de saber se não 51


O debate Habermas-Ratzinger - Convergências e implicações

poderia estar aí uma razão da natureza e portanto, um direito razoável para o homem e a sua presença no mundo16.” Neste sentido o cristianismo oferece a perspectiva de uma resposta. “Mesmo se a cultura secular de uma racionalidade rigorosa – da qual Jürgens Habermas nos deu um quadro impressionante – é largamente dominante e mesmo se ela se entende como aquilo que torna a ligar, a compreensão cristã [da realidade] continua a representar uma força eficaz17.” É necessário, portanto, perguntar: “A secularização europeia não será uma via particular que teria necessidade de uma correcção?18. Isso não quer dizer, sublinha o cardeal Ratzinger, que seja necessário unir Carl Schmitt, Heidegger e Lévi Strauss e acusar “a fadiga” da racionalidade europeia. Isso apenas significa admitir que “a fórmula universal ou racional, ou ética, ou religiosa sobre a qual todos se reuniram [ao mesmo tempo] e que poderia reunir o conjunto, não existe. Eis porque digamos, também o ethos mundial permanece uma abstracção19.”

observado que existem patologias extremamente perigosas nas religiões; e elas tornam necessário considerar, à luz divina da razão como uma espécie de órgão de controlo que a religião deve aceitar como um órgão permanente de purificação e de regulação – um ponto de vista que era, de resto, o dos Pais da Igreja21.” Mas há, também “patologias da razão” – das quais a mais recente e a mais perigosa é, além da bomba atómica, a “produção” artificial de seres humanos com a ajuda das tecnologias genéticas, que tornam necessário a manutenção da “razão” dentro dos seus limites e “é por isso que, no sentido inverso, a razão também deve ser reconduzida aos seus limites e desenvolver uma capacidade de escuta nas grandes tradições religiosas da humanidade22”. Não se trata daquilo a que alguns têm chamado “o regresso à fé” (Rückkehr zum Glauben), mas antes de uma “forma de correlação necessária entre a razão e a fé, razão e religião, chamadas a uma purificação e a uma regeneração mútuas; eles necessitam uma da outra e devem reconhecê-lo mutuamente23.” Os principais parceiros desta “correlação” são “a fé cristã” e “a racionalidade ocidental secularizada”. O debate de Janeiro de 2004 em Munique entre Habermas e o cardeal Ratzinger perfila-se, ao fim e ao cabo, como uma verdadeira viragem na abordagem dos problemas das sociedades e da cultura da modernidade. Com efeito, este debate reuniu duas personalidades, as mais marcantes do nosso tempo, e cada um dos interlocutores assu-

A avaliação feita por Habermas, segundo a qual, como humanidade, entrámos numa “sociedade póssecularizada” é, no essencial, partilhada pelo cardeal Ratzinger. “No que respeita às consequências práticas, sinto-me em grande concordância com a exposição de Jürgen Habermas sobre uma sociedade pós-secularizada, sobre a vontade de aprendizagem mútua e sobre a autolimitação praticada por cada um20”, precisou o cardeal. Ele admitiu, explicitamente, a existência de patologias nas religiões: “Temos 52


O debate Habermas-Ratzinger - Convergências e implicações

estrutura moral e da motivação religiosa. Ambos partilham, também, a convicção de que a passagem para a sociedade pós-secularizada já se deu, em que a razão e a fé, respectivamente as ciências e a filosofia, por um lado, a religião por outro passam para uma relação historicamente nova, onde cada uma está disposta a aprender da outra. Os dois partilham, por fim, a opinião de que a época de hostilidade entre a razão e a fé – ou de uma ser considerada pela outra de uma forma depreciativa como “historicamente ultrapassada24” – está no passado. As implicações do debate de Janeiro de 2004, em Munique, entre Habermas e Ratzinger, assim como as suas convergências, de qualquer maneira inesperadas, são seguramente importantes para a abordagem das sociedades da modernidade tardia, para a filosofia e a teologia, assim como para evolução dos dois pensadores. A análise das teses e dos argumentos dos dois célebres interlocutores pode dar origem a consequências em cada uma destas direcções, consequências que não estão senão a começar. Não nos vamos, no entanto, demorar aqui sobre as consequências nas direcções mencionadas, mas sobre a questão que diz respeito ao papel das faculdades de teologia: o seu lugar será no seio das universidades públicas ou noutro lugar? Tomamos como base factual da nossa argumentação o exemplo da Universidade Babes-Bolyai de Cluj-Napoca – na hora actual uma das universidades europeias em que

miu, perante o debate novas iniciativas a partir da visão já articulada que lhes tinha valido a consagração: Habermas admitiu que as fontes da racionalidade europeia secularizada já não bastam para dominar as crises actuais, precisamente a crise da motivação nas democracias de um mundo em vias de mundialização; e o cardeal Ratzinger admitiu, por seu lado, que a própria religião tem necessidade da razão para prevenir o deslizamento para os fundamentalismos que dão origem ao terrorismo. O debate marca uma viragem porque ele atacou um dos problemas que se agravam nas sociedades da modernidade tardia – a crise da motivação – e diagnosticou as evoluções actuais desenvolvendo a ideia segundo a qual já se deu a passagem para a “sociedade pós-secularizada”. Pelo menos, no que respeita estes dois aspectos, houve uma grande convergência algo inesperada entre uma das grandes personalidades filosóficas e uma das maiores personalidades teológicas do último século. Habermas e o cardeal Ratzinger consideram que a secularização na qual a Europa se envolveu, há alguns séculos, deverá sofrer uma alteração. Os dois admitiram que a racionalidade secularizada europeia necessita actualmente de um complemento que as tradições religiosas estão dispostas a assegurar. Ambos estimam que as fontes culturais das democracias têm necessidade não apenas das fontes profanas dos procedimentos baseados na liberdade e na igualdade, mas também da infra53


O debate Habermas-Ratzinger - Convergências e implicações A catedral ortodoxa da Assunção, em Brasov. Foto Arnold Zwahlen

A estátua de Johannes Honterus (1498-1549), o grande humanista e reformador alemão, diante da Igreja negra em Brasov. Foto Jürgem Butscher. 54


O debate Habermas-Ratzinger - Convergências e implicações

veitada pela Universidade BabesBolyai, não apenas em virtude da razão histórica – a Transilvânia conhece tradições religiosas importantes de uma diversidade particular – mas também por razões que derivam do novo lugar da teologia na cultura do mundo contemporâneo e da religião na vida das sociedades actuais. O dogma da incompatibilidade entre as universidades e a religião promovido pelo regime comunista e o facto de considerar a religião como algo de “ultrapassado” do ponto de vista histórico – no paradigma que vem de Hegel, Feuerbach, Marx, Comte, Nietzsche, Freud – foram denunciados. A teologia retomou o seu lugar nas Universidades do Estado. E, 1991, a Faculdade de Teologia Ortodoxa integra a Universidade Babes-Bolyai pelo seu ensino pastoral, pedagógico e de assistência social. Em 1992, é a Faculdade Católica de Rito Oriental – a uniata – que integra a Universidade com o seu ensino pedagógico e de assistência social. Em 1993, é criada a Faculdade Teológica Protestante, cujo ensino pedagógico é logo integrado na Universidade Babes-Bolyai. Em 1995 é posta em acção, na mesma universidade, o Instituto de Estudos Judaicos “Moshé Carmilly”. É em 1996 que se cria a Faculdade de Teologia Católica, que com a sua componente pedagógica, após um acordo entre a Universidade Babes-Bolyai e o arcebispo católico de Alba Iulia. A Universidade Babes-Bolyai compreende quatro faculdades de

a organização dos estudos teológicos é mais diversificada. A própria Transilvânia – parte da Roménia actual situada no arco dos Cárpatos – representou historicamente o local de encontro das diversas denominações do cristianismo – católica, ortodoxa, uniata, protestante, néo-protestante – e do judaísmo. Poucas regiões da Europa conheceram uma tal diversificação religiosa. Isto tornou possível, com o tempo, o aparecimento de iniciativas características. É aqui que aparece a Igreja Unitária que irá conhecer a sua expansão nos Estados Unidos. É sempre na Transilvânia, em torno da Igreja Luterana, que nasceu, já no século XVI, um dos primeiros sistemas de ensino com base comunitária e eclesiástica do continente. É ainda aqui que se constitui a Igreja Católica de rito oriental dos uniatas romanos e que se formaram, algumas das mais numerosas comunidades néo-protestantes da Europa. O ensino superior, como por toda a Europa, iniciou-se com colégios – universidades – fundados por missionários jesuítas enviados por Roma. Num tal contexto, era desejável, ao menos por razões históricas, que a primeira universidade da Transilvânia, a de Cluj-Napoca. Tivesse como objectivo, depois de 1989, o encontrar uma solução que permitisse dispensar estudos teológicos. Uma decisão do governo romeno tornou possível, em 1991, a integração das faculdades de teologia no seio das Universidades do Estado. Esta oportunidade foi apro55


O debate Habermas-Ratzinger - Convergências e implicações

teologia representando as Igrejas Históricas da Transilvânia: ortodoxa, católica de rito oriental, protestantes unitária, evangélica, calvinista, católica romana – o que situa a Universidade BabesBolyai de Cluj-Napoca entre as universidades que dispensam a formação teológica mais rica do continente. Com o seu Instituto de Estudos Judaicos, esta organização de estudos teológicos permite aos estudantes um novo e amplo acesso aos fundamentos judeo-cristãos da Europa, mantendo, efectivamente, uma frutuosa atmosfera ecuménica e irradia, na cultura da região e do país, o espírito de novas abordagens dos problemas da vida das sociedades de hoje25. Uma vasta compreensão da cultura ou da religião voltou a ter o seu lugar ao lado das ciências, das artes e da filosofia, e a redefinição da universidade como universitas – isto é, como lugar da formação argumentativa da opinião e como comunidade daqueles que instruem em colaboração – fez com que a verdade e o bem ganhassem terreno. Este envolvimento da Univer­ sidade Babes-Bolyai na via da cooperação argumentativa da razão e da fé, respectivamente das ciências, da arte, da filosofia e da religião, beneficia do apoio dos prelados das Igrejas e dos rabinos. A nova orientação foi apoiada por ocasião da reorganização da universidade, com a Carta (1995), que prevê o ensino em três línguas: o romeno, o húngaro e o alemão. Foi igualmente apoiada pela introdução

do estudo de três línguas clássicas da cultura europeia: o hebraico, o grego e o latim. Depois, em 2003, foi possível inaugurar o Centro de Estudos Bíblicos da Universidade Babes-Bolyai, com o concruso das faculdades de teologia e o Instituto de Estudos Judaicos26. Este novo perfil desta Univer­ sidade, é paralelo às mudanças significativas que tiveram lugar na cultura do mundo actual. Trata-se de um novo peso cultural da Bíblia, e dos novos ângulos de exploração das fontes. Hoje, ainda, a Bíblia é lida como uma magnífica narração histórica, como um tesouro linguístico, uma obra literária, uma ampla visão do mundo, como uma legitimação de um sentido. Mas a história contemporânea abriu também a possibilidade – até mesmo a necessidade – de uma leitura da Bíblia na perspectiva das relações entre as culturas. Trata-se igualmente de um novo peso cultural da religião. Segundo muitos indícios, já passou a época em que ainda se podia pensar à maneira de Hegel, Feuerbach, Comte, Marx, Nietzsch e Freud, no conceito da que a religião tinha sido “ultrapassada” pela filosofia, a ciência, a emancipação social, a reorganização cultural ou a terapêutica pessoal. Entrámos naquilo que Franz Rosenzweig antecipou com The Star of Redemption (1923): a época em que a religião, a filosofia e a arte cooperam em vez de proporem “ultrapassar-se” uns aos outros, o período que Jürgen Habermas assinalou recentemente, em Glauben und Wissen (2001), como sendo a do “paralelismo entre a filosofia e a teologia”27. Trata-se, 56


O debate Habermas-Ratzinger - Convergências e implicações

homens, para que os debates teológicos deixem de ser importantes unicamente para os teólogos. Os representantes das Igrejas devem deixar de reduzir a religião a uma lírica puramente subjectiva ou a um ritual em si mesmo, pois que se torna evidente que as formas de expressão do espírito – a religião, a arte, a filosofia – não se sucedem, mas coabitam e cooperam. E nós, que participamos nos debates no domínio público, nos da filosofia, das ciências e da teologia, somos todos chamados a tomar consciência do facto de que existem fronteiras entre estes diferentes domínios, e se bem que não se possa ignorar as especificidade de cada um deles, estes não são herméticos, como se acreditava, e não justificam, de forma alguma, preconceitos, em termos verdadeiros ou falsos. “A fronteira entre as razões seculares e religiosas é, de qualquer modo, ténue. Eis porque, fixar essas fronteiras em disputa deveria ser considerado como uma tarefa de cooperação, exigindo das duas partes ter em conta a perspectiva do outro.30”

ao mesmo tempo de uma nova compreensão entre o cristianismo e o judaísmo. Através de novas investigações, em virtude de novas orientações espirituais, a história contemporânea conduziu à derrota de certos preconceitos milenares e a reconhecimentos de envergadura histórica. Os Judeus reconheceram Jesus como descendente do povo judeu e as Igrejas – católica, protestante, ortodoxa – consideram Jesus Cristo como precedendo da magnífica cultura do povo da Terra Santa28. Trata-se, por fim, da redescoberta do “triângulo” JerusalémAtenas-Roma como fundamento cultural da Europa, para além da representação consagrada, na nossa época, pelo idealismo clássico alemão, que tinha tendência para derivar a cultura europeia da herança greco-romana29.

Em conclusão, o perfil evocado da Universidade Babes-Bolyai reúne convicções que ganham terreno e que o debate entre Habermas e o cardeal Ratzinger veio encorajar. A saber, a convicção de que é no domínio da religião que se decide, bem vistas as coisas, a sorte dos Notas

1. Ernst-Wolfgang Bökenförde, “Die Entstehung des Staates als Vorgang des Sakularisation”, in Recht, Staat, Freiheit, Suhrkamp, Francoforte, 1967, 2ª de., 1992, p. 112. Tradução de Jean-Louis Schegel, „Os fundamentos geopolíticos do Estado democrático“, in Revista Espirit, Julho de 2004. 2. Jürgen Habermas, “Stellungnahme”, in Zur Debatte. Themen der Katholischen Akademie in Bayern, 34. Jahrgang, Heft 1, Munique, 2004, p. 2. 3. Op. cit. p. 3. 4. Idem, p. 3. 5. Idem, p. 3. 6. Op. cit. p. 4 7. Idem

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O debate Habermas-Ratzinger - Convergências e implicações 8. Idem 9. Robert Spaemann, “Weltethos als ‘Projekt’”, in Merkur, Heft 570/571 10. Joseph Cardinal Ratzinger, “Stellungnahme”, in Zur Debatte. Themen der Katholischen Akademia in Bayern, op. cit., pag. 5 11. Op. cit., p. 5 12. Op. cit., p. 6 13. Op. cit., p. 5 14. Idem 15. Idem 16. Idem, 17. Idem 18. Op. cit., p. 7 19. Op. cit., p. 7 20. Idem 21. Idem 22. Idem 23. Idem 24. Abordámos a substituição do “paradigma da ultrapassagem histórica da religião” pelo “paradigma do paralelismo da teologia e da filosofia”, in Andrei Marga, Religia in era globalizarii, EFES, Cluj 2004, p. 33-64. 25. Apresentámos este desenvolvimento dos estudos teológicos na Universidade Babes-Bolyai, in Andrei Marga, Filosofia si teologia astazi. Philosophy and Theology Today. Philosophie uns Theologie heute, EFES, Cluj, 2005, p. 76-79, 193-200. 26. Ver «Theologia Biblica», in Buletinul Centrului de Studii Biblice al Universitatii Babes-Bolyai, 1 de Março de 2003. 27. Jürgen Habermas, Glauben und Wissen, Suhrkamp, Francoforte, 2001. 28. Schalon Bem-Chorin, Bruder Jesus. Der Nazarener in judischer Sicht, Paul List, Munique, 1970; Gaalyah Cornfeld (ed.), The Historical Jesus. A Scholarly View of the Man and his World, Mac Millan, Nova Iorque, Londres, 1982; James Charlesworsth, Jesus within Judaism. New Light from Exciting Archeological Discoveries, Doubleday, Nova Iorque, 1988; David Flusser, Jewish Sources of Early Christianity, Mod Book, Tel Aviv, 1989; Walter Kasper, Jesus der Christus, Mattias, Grunewald, Mainz, 1992; Jacques Duquesne, Jésus, Desclée de Brouwer, Flammarion, Paris, 1993. Hans Kung, Das Christentum, Piper, Munique, 1994; E. P. Sanders, The Historical Figure of Jesus, Penguin Books, Londres, Nova Iorque, 1995; Gérard Israel, La question Chrétienne. Une Pensée juive du christianisme, Pauot, Paris, 1999. 29. Sobre este tema, ver Andrei Marga, « Die Wiederherstellung des Dreiecks Jerusalem, Athen, Rom «, in Andrei Marga, Filosofia si teologia astazi, op. Cit., p.149-190 30. Jürgen Habernas, Glauben und Wissen, op. Cit., p.22

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Da “Igreja dominante” e dos “novos movimentos religiosos” a uma variedade de confissões

Manuela Georghe*

Na Roménia país de dominante ortodoxa, onde 87,8% do total da população – de acordo com o recenseamento de 2002 – declarava pertencer a esta religião, a Igreja ortodoxa romena beneficiou, ao longo de toda a sua história, duma situação privilegiada em relação às outras religiões ou confissões minoritárias. Este estado de coisas explica-se não apenas pelo argumento do número, mas também por uma série de factores históricos, da tradição e das mentalidades. Após 1989, entretanto, as iniciativas efectuadas com vista à adopção duma legislação rigorosa, em conformidade com os princípios da democracia, criaram as premissas dum pluralismo religioso autêntico, caracterizado por uma diversificação permanente e uma pluralização religiosa, e sobretudo por uma “redefinição das relações de forças” entre os principais actores da cena religiosa romena, as quais, implicitamente, parecem remeter

em questão o monopólio religioso tradicionalmente detido pela Igreja Ortodoxa. O pluralismo religioso – condição da transição pós comunista nos países da Europa central e oriental. Este fenómeno não é singular; ele caracteriza igualmente, em graus diferentes, os outros países da Europa central e oriental que, até 1989, se encontravam sob o domínio de regimes totalitários de tipo comunista e cuja democratização supõe antes de tudo a liberalização da vida religiosa. Este processo tem por pano de fundo a secularização, definida em geral por uma diminuição contínua de influência e da autoridade social das Igrejas históricas tradicionais. “Mais os regimes democráticos conseguem consolidar-se, estimava recentemente José Casanova, mais a Igreja perde as suas razões de existência e é remetida para a esfera privada1”

________ *Investigadora CientÍfica, principal, do Instituto de Sociologia da Acedemia Tomena, em Bucareste 59


A “Igreja dominante” e os “novos movimentos religiosos”...

tar à história dos relacionamentos Igreja/Estado, tais como foram instituídas ao longo dos tempos, no caso específico da Roménia. Partamos da premissa segundo a qual “as duas tendências que acabámos de mencionar vão se acentuar, em particular no caso dos países ortodoxos, e isto, porque as Igrejas ortodoxas contribuíram, de modo mais acentuado, para a tradição secular de cesarismo papista estático e ainda contribuem para tal.”

Em todos estes países, a aplicação de normas e regulamentações democráticas, inclusive no domínio da religião, tem deixado inevitavelmente caminho livre às tendências/forças sobre a área das crenças religiosas e implicitamente contribuído para redefinir a posição das Igrejas tradicionais em relação aos outros actores religiosos. Por conseguinte, na Roménia, assim como nos outros países ex-comunistas, assiste-se a uma recomposição da paisagem religiosa onde, “actualmente, as religiões mais diversas estão em concorrência – senão em manifesta hostilidade. Trata-se de religiões enraizadas ao nível territorial ou étnico na região, mas também de comunidades mais recentes que esperam ter descoberto um território fértil para os seus esforços missionários – empenhando-se todas em atrair um número tão grande quanto possível de adeptos2” Duas tendências comuns, maiores, manifestam-se nestes países europeus que não se envolveram nesta via da democracia senão após 1989. A primeira consiste em colocar as Igrejas tradicionais maioritárias numa posição privilegiada, superior à das outras religiões minoritárias. A segunda reside nos esforços que desenvolvem estas Igrejas maioritárias afim de conservar o seu estatuto privilegiado. Mas antes de identificar alguns elementos parecendo manter a Igreja ortodoxa romena numa posição privilegiada em relação a qualquer outra confissão e religião, mesmo após 1990, desejamos vol-

As relações Igreja/Estado na Roménia; uma “sinfonia dos poderes” No caso da Roménia, as relações entre o Estado e a Igreja foram marcadas pelo princípio bizantino da “sinfonia dos poderes3”, isto é a sobreposição do poder terrestre e temporal, incarnado pelo imperador Bizantino, e do espiritual representado pelo patriarca. Na Roménia, por exemplo, ao longo da sua história, uma relação de colaboração e interdependência existiu entre líderes políticos e líderes religiosos, o que valeu à Igreja ortodoxa um “statu-quo” privilegiado de monopólio em relação às religiões minoritárias. Por um lado, o religioso estava investido da missão de ungir o político na sua qualidade de mestre, as autoridades religiosas exercendo assim igualmente responsabilidades civis. Por outro lado, entretanto, “o clero esteve sempre submisso, nos principados romenos, à autoridade laica/terrestre representada pelo líder religioso4”, beneficiando este 60


A “Igreja dominante” e os “novos movimentos religiosos”...

último duma influência decisiva na designação ou a demissão do líder político e da alta hierarquia ecle­siástica, A Igreja ia ficar ao lado da classe política (voïvodat), uma instituição primordial na sociedade romena durante todo o seu período pré-moderno, seja até aos primeiros decénios do século XIX. E isto, porque nenhuma das grandes mutações históricas que marcaram a sociedade ocidental – a Renascença, a Reforma ou as Luzes – chegaram a influenciar ou a ter efeitos decisivos sobre a ortodoxia romena, em particular. Entretanto, à medida que a sociedade romena avançava irremediavelmente para a modernidade, a instituição eclesiástica perdia, pouco a pouco, as suas prerrogativas tradicionais e a separação entre o Estado e a Igreja ia-se acentuando. Isto foi um processo longo e penoso, estando o princípio da “sinfonia dos poderes” sempre consagrado pela Constituição de 1866, assim como pela de 1923. As duas proclamavam a Igreja ortodoxa religião “dominante” no Estado. Os bispos viam atribuirse-lhes o estatuto de senadores de pleno direito e os descendentes do rei Carol 1º deviam ser baptizados segundo os ritos da religião ortodoxa. A Igreja ortodoxa romena beneficiou continuamente de privilégios e “foi sempre, em todo o tempo, desde que a vida estatal existe entre os Romenos (…) uma Igreja nacional e de Estado5”. Na Constituição de 1923, a Igreja ortodoxa conservava o seu estatuto de Igreja “dominante” enquanto

que o “primado” era reconhecido à Igreja greco-católica entre os outros cultos ditos “históricos”. A partir desse momento, a qualidade de senador de pleno direito foi atribuído, não somente aos bispos ortodoxos, mas, igualmente aos grego-católicos, católicos romanos, reformados, unitaristas, luteranos, judeus e muçulmanos. A lei para o regime geral dos cultos de 1928 garantia a liberdade de crença e de prática religiosa, mantendo, ao mesmo tempo, o estatuto desigual das comunidades religiosas que estavam divididas em três categorias: 1. A Igreja ortodoxa “dominante”; 2. Os cultos “históricos” greco-católico (que tinha o primado), católico-romano, reformado-calvinista, evangelistaluterano, arméno-gregoriano, judeu e muçulmano; 3. As associações religiosas “toleradas”ou autorizadas. Estas últimas, frequentemente chamadas “seitas” funcionavam nos termos da lei nº 21/1924 sobre as pessoas jurídicas. Inscreviamse nesta terceira categoria: Os baptistas, os cristãos segundo o Evangelho e os adventistas do sétimo dia. Outras formações religiosas eram “absolutamente interditas”; Os nazarenos, estudantes da Bíblia, os milenaristas, os adventistas reformistas, os ceifeiros, os pentecostais, os inocentes. A 1 de Dezembro de 1918, a Grande Assembleia de Blaj proclamava a criação do Estado nacional unitário romeno pela união das províncias históricas romenas – a Bessarabia, a Transilvania e a Bucovina – com o antigo reino, a 61


A “Igreja dominante” e os “novos movimentos religiosos”... O patriarca Teocista, da Igreja Ortodoxa romena (à esquerda) e Ioan Robu, bispo da Igreja Católica Romana da Roménia. Foto Viorel Dima

“convertessem” a um dos cultos “históricos” cristãos protegidos pelo Estado. Uma decisão governamental de 1937 “interditou categoricamente” os cultos pentecostais, nazarenos, milenaristas e outros. Para poderem exercer a sua fé, os adventistas do sétimo dia, os baptistas e os cristãos segundo o Evangelho eram obrigados a observar restrições severas, quase impossíveis de respeitar: a obrigação de renovar, de seis em seis meses, a autorização de funcionamento; a actualização dos seus estatutos em função das alterações legislativas efectuadas. Por outro lado, qualquer nova filial devia contar com pelo menos 50 membros para ser aprovada; quanto às comunidades, deviam todas compor-se de cidadãos romenos maiores beneficiando de todos os direitos civis e políticos e que não podiam pertencer a nenhum outro culto. Cada ano, o ministério dos Cultos solicitava listas actualizadas dos membros. A impressão e a difusão de livros de culto e de propaganda religiosa não eram aceites senão num quadro restrito, no seio do culto, sem venda no exterior.

Valachia. Este acontecimento histórico crucial ia envolver mudanças significativas na estrutura demográfica e religiosa, inclusive por causa da presença massiva de crentes neo-protestantes. Por conseguinte, a política religiosa do Estado romeno tornou-se cada vez mais restritiva em relação às presumidas “seitas”, A Igreja ortodoxa começou a impor uma política sempre cada vez mais clara visando “combater as seitas” e a literatura de propaganda anti-sectária tomou sempre maior amplitude6, Mesmo a ratificação da concordata com o Vaticano, em 1929, ia ser encarada com descontentamento e inquietação pela Igreja ortodoxa, porque um tal acto encorajava o proselitismo da Igreja católica “sempre opressivo face ao povo romeno7”. A posição da Igreja em relação às outras religiões minoritárias consolidou-se durante o período entre-duas-guerras. Uma série de decisões do ministério dos Cultos declarou ilegais todas as “associações religiosas” e seitas, quer autorizadas ou interditas. Os seus membros eram considerados como “confessionais”, até que se 62


A “Igreja dominante” e os “novos movimentos religiosos”...

Colan exerceu a função de ministro dos Cultos e das Artes de 1938 a 1939 e o patriarca Miron Cristea a de membro do governo entre 1927 e 1930: este último também foi Primeiro-ministro de 1938 a 1939. Esta política restritiva culmina a 14 de Setembro de 1940, quando a Roménia é declarada Estado nacional legionário. As liberdades religiosas foram progressivamente restritas, principalmente os direitos da comunidade judaica e das novas religiões, em particular as néo-protestantes. A lei sobre os Cultos, que o Estado comunista votou a 4 de Agosto de 1948, reconhecia legalmente o estatuto de culto às seguintes confissões: Ortodoxa (84,45 %), católica romana (7,25%), reformada (3,97%), evangélica da Confissão de Augsbourg (0,76%), evangélica sínodo-presbiteral (0,8%), betanista (0,425%), unitariana (0,395%), cristã do ritual antigo (0,27%), adventista do sétimo dia (0,26%), muçulmana (0,25%), cristã segundo o Evangelho (0,16%), israelita (0,14%), armeno-gregoriana (0,01%)9. Todas as outras organizações religiosas foram declaradas ilegais: testemunhas de Jeová, adventistas reformistas, baptistas, estilistas, nazarenos, Exército de Deus, etc. Em 1948, a Igreja greco-católica foi suprimida e a Concordata com o Vaticano anulada. Todas as outras associações e fundações religiosas foram igualmente interditas. Durante todo o período de 1948 a 1989, a Igreja ortodoxa romana teve de se submeter ao poder

Para obter autorização de funcionamento da parte do ministério dos Cultos, cada associação religiosa independente devia apresentar uma “tese de reconhecimento” contendo a doutrina, as práticas específicas ao culto e os estatutos. Além disso, era necessário fornecer a prova dum lugar de culto adequado, situado na proximidade de outro lugar de culto, etc. A Constituição de 1938, promulgada pouco tempo após a instauração do regime de autoridade real de Carol II (1938-1940), estipulava, no artigo 10 do capítulo II, intitulado “Dos direitos dos romenos”, que “a liberdade de consciência era absoluta” e que “o Estado garantia a todos os cultos liberdade e protecção”; “a Igreja ortodoxa cristã e a Igreja greco-católica são Igrejas romenas”; “a religião cristã ortodoxa é a religião da grande maioria dos Romenos, e é a razão pela qual a Igreja ortodoxa é a Igreja dominante no Estado romeno, e a Igreja greco-católica tem o primazia em relação aos outros cultos8”. Esta Constituição mantinha ainda os preceitos das Constituições precedentes (de 1866 e 1923) no que respeita o baptismo e a educação do rei na religião ortodoxa; o patriarca, os líderes religiosos e todos os outros responsáveis do culto detinham a dignidade de senadores de pleno direito. As certidões de actos civis não eram atribuídas senão após uma “bênção religiosa”. Dois exemplos ilustram a estreita ligação entre o Estado e a Igreja nesta época: o bispo Nicolae 63


A “Igreja dominante” e os “novos movimentos religiosos”...

comunista “dando a César o que pertence a César e a Deus o que pertence a Deus”. Nas poucas aparições públicas sobre este tema, as hierarquias desta Igreja explicaram que esta táctica - aceitar um mal menor (concessões políticas) – tinha permitido evitar um mal sensivelmente maior. Com efeito, apesar das injustiças e horrores infligidos pelo Estado ateu (igrejas demolidas, mosteiros suprimidos, padres, monges ou simples fiéis presos e torturados, etc.), a Igreja pôde continuar sem interrupção a sua vida cultual, mesmo que a sua tarefa social tenha diminuído até praticamente desaparecer. Sagacidade, impossibilidade real de se opor a uma força política indomável ou simplesmente continuidade duma tradição tipicamente bizantina, longínqua no tempo, de gestão das relações com o poder secular? A questão das relações Igreja/Estado sob a ditadura comunista foi e continuará a ser um assunto delicado e turbulento.

Igreja ortodoxa romena tradicionalmente exerceu em relação às outras Igrejas e religiões minoritárias. É certo que, no novo contexto acabado de ser criado, a Igreja ortodoxa não poderia aceitar facilmente a ideia de renunciar aos privilégios de que beneficiou desde há muitos séculos. Isto é o que demonstraremos no que se segue. A nova Constituição da Romé­ nia, adoptada por referendo em 8 de Dezembro de 1991, proclamava uma série de disposições respeitantes à igualdade em direitos dos cidadãos “sem diferença quanto à raça, a nacionalidade, a origem étnica, a língua, a religião, o sexo, a opinião, a filiação política, a riqueza, a origem social” (art.4(2)) reconhecia e garantia “às pessoas das classes minoritárias nacionais o direito de conservar, desenvolver e expor a sua identidade étnica, cultural, linguística e religiosa” (art.6 (1)). O artigo 29 estipulava uma série de procedimentos respeitantes ao quadro geral de manifestação da vida religiosa. “A liberdade de pensamento e de opinião, bem como a liberdade de religião não podiam ser limitados sob que pretexto fosse. Ninguém pode ser constrangido a adoptar uma opinião ou a aderir a uma religião que contrariem as suas convicções” (art.29(2)). “Ela reconhecia a igualdade em direitos de todos os cultos, assim como a sua plena autonomia em relação à instituição estatal10. “Os cultos religiosos são livres e organizamse em conformidade com os seus próprios estatutos, nas condições

Do monopólio religioso único ao “mercado livre” das religiões No plano religioso, o ano de 1989 marcou, para a Roménia, o começo dum processo de adopção duma nova legislação religiosa, conforme aos princípios e regras democráticas, sendo criadas as premissas dum pluralismo religioso real. Ora, este pluralismo supõe, antes do mais, a reafirmação do princípio secular da separação da esfera laica da religião, mas também, implicitamente, uma reflexão sobre o monopólio religioso que a 64


A “Igreja dominante” e os “novos movimentos religiosos”...

fixadas pela lei” (art. 29(3)). “Nas relações entre os cultos, todas as formas, todos os meios, actos ou acções de discórdia religiosa são interditos” (art. 29/4)). “Os cultos religiosos são autónomos em relação ao Estado, contudo beneficiam da sua ajuda, notadamente, em lhe facilitando o acesso ao exército, aos hospitais, aos estabelecimentos penitenciários, aos lares de terceira idade e aos orfanatos”, para aí levar uma assistência religiosa (art. 29(5)). Entretanto, no que respeita às relações Igreja/Estado, o texto legislativo em questão não comporta disposições muito claras e determinadas, o que nos permite evocar antes uma separação – colaboração entre as duas instituições, na continuidade duma tradição consagrada à qual se não pode renunciar dum dia para o outro. Testemunham disso uma série de actos normativos, despachos de urgência, decisões do governo pelas quais o Estado romeno concede à Igreja ortodoxa romena facilidades e suporte – assim como aos outros cultos, por solicitação e na base do princípio da proporcionalidade, dos quais eles hesitam, a maior parte das vezes, a reclamar. Eis alguns: – A contribuição do Estado respeitante a retribuir o pessoal de culto da Igreja ortodoxa romena pelo orçamento do ministério da Cultura e dos Cultos (lei nº 142/ 1999 sobre a participação do Estado na remuneração do clérigo); O Estado contribui, por meio de subvenções financeiras, na manutenção e no funcionamento dos lugares de culto sem receitas ou com receitas 65

reduzidas, publicado no Boletim Oficial nº 225/19, Agosto de 1994). – A elaboração duma disposição segundo a qual os cultos beneficiam do direito exclusivo de produzir e comercializar os objectos necessários ao culto (lei nº 103/1999, modificada e posta em vigor graças à lei nº 2/2001). – Os lugares de culto são isentos de impostos financeiros para os cultos reconhecidos pela lei (lei nº 27/17, Maio de 1994. – As receitas realizadas e os serviços efectuados no seio dos cultos são isentos de impostos (lei nº 57/ 2003 (o Código fiscal)); – A concessão de apoio financeiro da parte do Estado para a construção dos lugares de culto, para a conservação ou restauração do património, ou para as despesas de manutenção dos lugares de culto (lei nº 125/2002 para a aprovação do despacho do governo nº 82/2001 sobre a concessão duma forma de apoio financeiro aos lugares de cultos pertencentes aos cultos religiosos reconhecidos na Roménia). – A introdução, após 1990, de cursos de religião no ensino Público, como opção facultativa, pelo protocolo concluído entre a secretaria do Estado para os Cultos e o ministério da Educação, a 10 de Novembro de 1990, (lei nº 84/1995, art. 9 (1), modificado e completado pela decisão nº 72/18.07.1995). Uma lei que foi amplamente debatida pelos médias e qualificada, pela opinião pública, atentatória à laicidade do ensino. – A atribuição dum terreno agrícola indo até 10 hectares a


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cada paróquia, 50 hectares a cada mosteiro, 100 hectares a cada “éparchie” e 200 hectares ao centro patriarcal, (lei nº 18/1991, (art. 22) a cargo do fundo agrícola), – A excepção das obrigações militares para o clérigo, (lei nº 46/ 1996, art. 6, sobre a preparação da população para a defesa). – Os militares têm direito a uma assistência religiosa no exército, em função da sua filiação religiosa, e unicamente a seu pedido (lei nº 125/2000 sobre a constituição e a organização do clero militar). – O reconhecimento das altas hierarquias ortodoxas e dos outros dirigentes do culto, por decreto presidencial. Ao observar as medidas legislativas adoptadas pelo Estado romeno após 1990, constata-se que o problema relacional entre as instituições estatais e eclesiásticas não está clara e definitivamente resolvido, pelo menos por enquanto. Isto ilustra a importância da Igreja, na qualidade de instituição ao mesmo tempo pública e simbólica, berço e depositária da espiritualidade romena através do tempo. Nada de admirar então que a Igreja ortodoxa romena se tenha tornado, após 1990, um actor público cuja ascensão não se compara com nenhuma outra instituição romena. Todas as sondagens de opinião realizadas após 1990 situam a Igreja no primeiro lugar, no que respeita à confiança nas instituições públicas; no outro pólo situam-se a justiça, os partidos políticos e o Parlamento, ou seja, precisamente as institui-

ções específicas à modernidade. Não é raro que a religião sirva de instrumento político, sobretudo durante as campanhas eleitorais. Do mesmo modo, a Igreja ortodoxa romena, beneficia duma intensa visibilidade e privilégios na vida social. Todas as grandes manifestações oficiais – sessão parlamentar de abertura, juramento militar, entradas das aulas, festas nacionais – beneficiam da presença e da bênção do clérigo ortodoxo. O sucesso que as altas hierarquias eclesiásticas acabam de alcançar – pelo menos até ao presente – consistindo em obstar o que se chama “a acção de abertura dos dossiers de colaboração com a Segurança sob o regime comunista”, solicitada desde há anos pela sociedade civil, é eloquente neste sentido. A falta de firmeza do Estado na resolução do problema da devolução dos bens confiscados pelo Estado comunista à Igreja greco-católica, por exemplo, sugere sempre que a Igreja ortodoxa continue a ser, para a instituição estatal, um parceiro de diálogo forte e cujas opiniões tendem de qualquer modo a influenciar as decisão políticas ou suas aplicações. As relações ainda não clarificadas entre as duas instituições são igualmente ilustradas pela decisão do Estado de adaptar certos aspectos da sua legislação relevando dos direitos do homem, em conformidade com a legislação internacional – a homossexualidade e a prostituição não estão mais sob a incidência penal – o que suscitou vivos protestos da parte da Igreja ortodoxa. 66


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Conclusões Eis tantos argumentos que sugerem que a Igreja ortodoxa romena continua a beneficiar dum estatuto privilegiado ao qual ela não parece disposta a renunciar. Isto sugere também a sua dificuldade a se adaptar aos princípios e às exigências da democracia cujos desafios, sob o plano religioso, são a promoção do pluralismo e da livre concorrência religiosa11. A própria iniciativa da Igreja ortodoxa romena tendo em vista o ser reconhecida “Igreja nacional” na nova lei sobre o culto – lei ainda em estado de projecto – deve ser compreendida neste sentido. Nada menos que três tentativas de elaboração duma tal lei foram, consecutivamente, votadas ao fracasso. Num primeiro projecto de lei sobre o regime geral dos cultos religiosos, aceite pela Igreja ortodoxa romena, foi apresentado pelo secretariado de Estado dos Cultos em 1988, para ser retirado ao início do ano seguinte, a pedido da Comissão para os direitos do homem, os cultos e as minorias nacionais, porque ele atentava não somente contra a liberdade de consciência, da religião e das crenças, mas igualmente contra o princípio de autonomia dos cultos. O mesmo projecto foi proposto em 2001, sem melhor sucesso, por causa, especificamente, da oposição de representantes dos cultos baptista e adventista do sétimo dia. A

iniciativa seria retomada no Outono de 2004 pela elaboração dum novo texto de projecto de lei sobre os cultos, mas as eleições legislativas de Novembro de 2004 bloquearam o seu percurso. As disposições inscritas no projecto de lei sobre os cultos, especialmente: a) a que consistia em designar a Igreja ortodoxa como “a Igreja nacional” e qualificada de restritiva pelos cultos minoritários; b) a falta de firmeza do Estado sobre a questão da devolução dos bens confiscados às igrejas pelo regime comunista; c) o descontentamento de certos cultos religiosos minoritários sobre o desenrolar do recenseamento de 2002 e d) a ligeireza com que a Igreja ortodoxa romena qualifica de “seitas” certos grupos neo-protestantes, acusandoos de “proselitismo”. Certos casos isolados – de intolerância e de conflito religioso indicam, entre outros, que o caminho para a constituição dum “mercado livre” das religiões na Roménia não está efectivamente senão nos seus princípios. Entretanto, apesar das suas dificuldades e hesitações, não há nenhuma dúvida que após 1990, a sociedade romena envolveu-se sobre o caminho do suporte do pluralismo cultural e religioso, condição sin qua non da integração conseguida da Roménia na União e civilização europeias.

Notas 1 José Casanova, “A religião e a vida pública na Europa ocidental e oriental” em Carta Internacional, edição romena, Outono 1999, p. 118, 119 2 Idem, p. 119 67


A “Igreja dominante” e os “novos movimentos religiosos”... 3 Princípio emitido pela primeira vez pelo imperador Justiniano na Novela VII, sobre a base do dogma do Sínodo IV de Calcedo, respeitando a união sem separação ou mistura, entre divino e humano. 4 A.D. Xenopol, História dos Romenos na Dacie Trajane, vol. III, 4ª ed. 1988, p.515 517. 5 A Igreja ortodoxa e os cultos estrangeiros do Reino da Roménia, Ed. Carol Gobl. Bucareste, 1991, p. VIII 6 Eis alguns títulos sugestivos: “Os desviados sectários vão para o fogo do inferno”, Cernanti, Tipografia Crença ortodoxa, 1940; diac. Emanuel Hogas, “Limpando o Campo de Cristo das ervas daninhas; Desvios sectários, Combatê-los, Calati, 1928; J. Davidescu e C. Stanica, Guia para combater as seitas, Ramnicu Vâlcea, 1929 7 O Patriarcado ortodoxo romeno e a concordata, Tipografia dos Livros eclesiásticos, Bucareste, 1929, p. 23 8 Ion Alexandersen, Ion Fulai, Ion Mamina, (cootd.) Enciclopédia da história da Roménia, éd. Memória, Bucareste, 2001, p. 18, 19 9 A vida religiosa na Roménia, Apresentação sintética, volume impresso pelo Conselho consultivo dos Cultos da República socialista da Roménia, Bucareste, 1987. 10 Apud., secretariado do Estado para os Cultos, A vida religiosa na Roménia, edição Paideia. Bucareste. 1999, p. 99. 11 Isto poder-se-ia explicar pela própria especificidade da ortodoxia, que concede a prioridade à vida contemplativa e ao aperfeiçoamento espiritual do homem em vista da sua salvação e faz passar para segundo plano o melhoramento da vida terrestre “de cá debaixo”. Diferenciandose da teologia protestante, por exemplo, a teologia ortodoxa não focaliza o indivíduo mas a comunidade dos crentes (ekklisia) onde todas as individualidades se confundem na “participação em Cristo”. Por conseguinte, contrariamente ao protestantismo, a ortodoxia não desenvolveu a sua própria teologia dos direitos individuais do homem e não manifestou interesse por toda uma série de direitos civis, tais como a liberdade de expressão, da imprensa, da liberdade religiosa, etc.

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A dinâmica do pluralismo religioso na Roménia

Constantin Cuciuc*

Na Roménia, é frequente que as noções de liberdade religiosa e de liberdade de religião se confundam. A razão deve ser procurada no facto de que a Igreja Ortodoxa, maioritária, é uma instituição e que esta colabora de uma forma permanente com o sistema político, a autoridade religiosa que se identifica com o poder do Estado do momento. Na Idade Média, a Roménia, situada entre o Ocidente e o Oriente, estava sob a influência de três grandes impérios que dispunham, cada um deles, de um sistema religioso próprio: o Império Otomano, que era muçulmano; o Império Austro-Húngaro, que protegia o catolicismo; e o Império dos Czares, que praticava uma ortodoxia bizantina, que, após a conquista de Constantinopla pelos turcos, assumiu a coordenação espiritual e a política das Igrejas Ortodoxas da Europa e do Leste. Tantas influências tornaram-se numa tradição e que, ainda hoje, se sentem na vida religiosa da Roménia. A religião ortodoxa, as práticas, a estética e a organização eclesiástica seguiram o modelo bizan-

tino inscrito no código das leis do imperador Justiniano, o estatuto de Igreja colaboradora do Estado. O poder político regulamentava e defendia os interesses nacionais e os da população. A Igreja Ortodoxa era o outro “braço” que, no conjunto da harmonia social, oferecia à população um modelo de vida espiritual. Esta colaboração entre o poder político e a autoridade da fé manteve-se, mesmo depois de ter começado a modernização, inclusive sob os regimes totalitários e sob o comunismo. A liberdade da vida religiosa, portanto, evoluiu em função dos contextos políticos do momento e das relações entre a Igreja e o Estado. Sob os princípios reinantes, os principados romenos tinham representantes da Igreja no seio das suas instituições políticas, que construíam igrejas e dotavam-nas de propriedades. Depois da formação do Estado romeno, os chefes da ortodoxia figuravam “de direito” nas organizações legislativas. A Convenção de Paris (1858) precisava que “o metropolita, primaz da Roménia, era o presidente do

________ * Professor da Sociologia das Religiões na Universidade de Bucareste e Director do Departamento de Sociologia religiosa no Instituto de Sociologia 69


A dinâmica do pluralismo religoso na Roménia

Transilvânia criou corpo um Igreja unitarista, espalhada hoje pelo mundo inteiro. A modernização do Império Austro-Húngaro e do Império dos Czares da Rússia favoreceu, largamente, a penetração na Roménia, de diferentes formas de neo-protestantismo, O pluralismo religioso temse afirmado, pouco a pouco na Roménia. Longe de ser imposto, aproveitou-se um apoio real, o dos povos que tinham emigrado neste país, por razões económicas e políticas, e em que cada etnia continuava a praticar a sua própria religião. No século XIX, é verdade que existiam algumas descriminações na Roménia, mas estavam ligadas à questão da cidadania. Por exemplo, a Constituição de 1866 estipulava: “Apenas os estrangeiros de ritos cristãos podem adquirir a cidadania”. A política e a Igreja ortodoxa respeitavam a liberdade da religião. Praticavam um regime de tolerância para com os outros cultos e crenças. A Igreja maioritária representava a autoridade religiosa, mesmo sendo ela uma componente do sistema político. Este último considerava que os recém chegados, que pertenciam a outras religiões e etnias, eram úteis no plano social e económico. Os arménios eram excelentes diplomatas; os judeus eram reconhecidos, como ninguém mais, em matéria de comércio e de finanças; quanto aos alemães teotónicos que tinham sido colonizados, eram incorporados no exército para guardar as fronteiras. Outros alemães foram, mais tarde, deslocados

corpo moderador”. A primeira Constituição (1866) estipulava contudo que “os romenos beneficiavam da liberdade de consciência, da liberdade de ensino, da liberdade de imprensa, da liberdade de reuniões”. Pouco a pouco, a ortodoxia ganhou terreno na Roménia, sem que o monarca se lhe impusesse pelo poder político. Desde o início, este andou a par com a religiosidade popular, não recusando a coexistência com outras formas de religiosidade. “A religiosidade dos romenos, escreveu Bogdan Petriceicu Hasdeu, é desprovida de beatice e de fanatismo. O cristão não faz nenhuma diferença entre grego e bárbaro, letrado ou ignorante, judeu ou pagão; este era o primeiro dogma de S. Paulo”. A vida religiosa da ortodoxia, por seu lado, harmonizou-se com o poder político. Ainda hoje conserva uma configuração hierárquica de tipo medieval. Os tempos passam, aos ortodoxos juntaram-se populações de outras etnias e de outras crenças. Perseguidos pelos czares da Rússia estabeleceram-se na Bessarábia e na Dobroudja. Hoje coexistem e mantêm boas relações com o resto da população. O domínio dos muçulmanos em certas regiões, (a Dobroudja, a Bessarábia e a margem esquerda do Danúbio) arrastou a chegada de etnias islâmicas (turcas, tartáricas, gagaouzes). Desde 1521, os estudantes saxões que estudam na Alemanha introduziram na Transilvânia as ideias luteranas. O próprio calvinismo rapidamente chegou aos católicos magiares. Na 70


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cionais e as Igrejas mais recentes. Sem estar legalmente regulamentada, a liberdade religiosa era, apesar disso, bem real. Os cultos neo-protestantes, por sua vez, desenvolviam livremente as suas actividades difundindo publicações e recebendo missionários estrangeiros. Obtiveram mesmo, direitos políticos. A Igreja Baptista, por exemplo, podia registar actos civis, no mesmo plano que as Igrejas Ortodoxas. Ao mesmo tempo, a Igreja nacional Ortodoxa dedicouse a precisar o seu estatuto em relação com a política e com as outras religiões. Depois da guerra da independência e da paz de Berlim (1878) a Igreja reconheceu aos crentes das outras religiões a possibilidade de se poderem naturalizar e de adquirir a cidadania romena. Em 1904, a Igreja Ortodoxa publicou um livro de síntese consagrado à vida religiosa na Roménia, intitulado A Igreja Ortodoxa e os cultos estrangeiros no Reino da Roménia. As guerras no início do século XX, e muito particularmente a Primeira Guerra Mundial, introduziram mudanças, não apenas ao nível da situação política e territorial da Roménia, mas igualmente ao nível da situação religiosa. Na antiga Roménia, registaram-se, por ocasião do recenseamento, de 1899, 91,5% de ortodoxos. Trinta anos mais tarde, em 1930, contavam-se 72,6%, os católicos e os reformados provinham, sobretudo, da Transilvânia. A lei sobre a emigração de 1925 permitiu a perto de 30 000 estrangeiros, a maior parte professando uma

para regiões de subsolo rico, para aí praticarem a mineração e implantar diversos ofícios. Os búlgaros e os sérvios, que tinham sofrido perseguições por parte dos muçulmanos estão na origem do grande impulso que ainda hoje marca as zonas agrícolas e hortícolas da margem esquerda do Danúbio. Grupos religiosos, expulsos da Europa estabeleceram-se na Moldávia e na Transilvânia onde conservam, não só as suas crenças, mas a sua organização comunitária. Novas religiões cristãs foram integradas, por sua vez, no respeito das autoridades e dos costumes dos autóctenes. É verdade que surgiram alguns conflitos – aliás raros – principalmente quando as novas religiões reivindicaram o estatuto de prioritárias de que beneficiavam nos seus países de origem. Mas na Roménia, não eram mais do que minorias toleradas e praticamente desprovidas de autoridade e de prestígio sócio-político. De início, não contavam com mais do que poucos adeptos, mas foram-se progressivamente integrando na população, com as suas doutrinas religiosas por vezes ingénuas ou confusas, tanto quanto os seus rituais eram improvisados e o suporte material precário. Isso não impediu que, mais tarde, algumas das suas solicitações fossem reconhecidas por causa das modificações da situação demográfica, da repartição territorial ou, ainda, das actividades sociais que realizaram. Assim, estabeleceu-se uma certa relação de reconhecimento e de coexistência entre as Igrejas tradi71


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Trages regionais da região de Sibiu. Foto Arnold Zwahlen

outra fé diferente da ortodoxa, que viessem para a Roménia. O Estado e a Igreja Ortodoxa agiram em conjunto para tentar englobar nesta última aqueles que tinham outras crenças. Os gregos

ortodoxos, foram assim convidados a voltar à Igreja Ortodoxa. Mesmo depois da sua integração no Estado romeno, a Transilvânia que tinha conservado a sua própria estrutura étnica e religiosa, continuou, con72


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tudo, a respeitar as tradições dos gregos católicos. Sobre os quase 20 milhões de habitantes que o país contava, 71,9% eram romenos, 7,9% magiares, 3,2% alemães, 2,3% judeus, 4% búlgaros, 2% ciganos, 1,5% turcos e tártaros, 1% gagaouzes, etc. Doravante, a pertença religiosa e a pertença étnica não se voltam a sobrepor. Romenos tinham passado para o catolicismo e para o grego-catolicismo; outros tinham entrado em Igrejas neo-protestantes legalmente reconhecidas. No recenseamento de 1930, 72,6% declararam-se ortodoxos, 7,9% grego-católicos, 6,8% católicos romanos, 4,2% de rito mosaico, 2,2% luteranos evangélicos, 1% muçulmanos, etc. Durante o período de entre-asduas-guerras, o regime de liberdade da religião instituída repousava sobre o princípio da Igreja Ortodoxa dominante. A liberdade religiosa era condicionada pelo reconhecimento pelo Estado de um número determinado de “cultos”. Consistia então no direito dos cultos reconhecidos tolerarem, ou não, a presença dos outros “cultos”. A Constituição de 1923 estipulava que “os romenos, qualquer que seja a sua origem étnica, a sua língua ou a sua religião, gozam da liberdade de consciência, da liberdade de ensino, da liberdade de imprensa, da liberdade de reuniões, da liberdade de associação e de todos os direitos e liberdades estabelecidos pela lei”. É necessário, no entanto, não esquecer, que a Igreja Ortodoxa, como religião da maioria, era “a Igreja dominante”

e que a Igreja grego-católica tinha “primazia” sobre os outros cultos. A lei sobre o regime geral dos cultos, de 1928, confirma os princípios constitucionais insistindo sobre os aspectos concretos. No espírito do modelo de liberdade religiosa de entre-as-duas-guerras, a Igreja Ortodoxa e oito outros cultos ditos “históricos” eram legalmente reconhecidos. As outras organizações religiosas eram consideradas como associações religiosas ou eram “completamente interditas”. As associações religiosas legal­ mente reconhecidas – baptista, adventista, cristã segundo o Evangelho – podiam desenvolver livremente as suas actividades, mas sem o apoio do Estado e sem beneficiar dos privilégios concedidos aos cultos legais. A Igreja Ortodoxa tornou-se depois um factor político importante na Roménia, estando representada no sistema legislativo. Pessoal do culto ortodoxo ocupa ainda hoje funções nos ministérios e noutras instituições políticas. Durante este período, o sistema político tem estado particularmente preocupado com a actividade dos grupos religiosos “completamente interditos”. A própria lei dos cultos de 1928 tinha interditado sete associações religiosas – os nazarenos, os estudantes da Bíblia, os mileritas, os adventistas reformistas, os ceifeiros, os pentecostais, os inocentes – “uma vez que as suas doutrinas eram de natureza a atentar contra as leis e as instituições do Estado e porque as suas práticas iam contra a ordem pública”. Com o tempo, outras comunidades 73


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meio século do regime comunista, e algumas das suas provisões constituem, ainda hoje, o suporte legal das relações entre os cultos. A lei de 1948 foi adoptada no momento em que o regime comunista se estava a constituir. Também, como tinha necessidade do apoio político dos crentes, o regime concedeu liberdades de religião que, mais tarde, foram de novo limitadas, sempre por razões políticas. As associações religiosas tais como as que já mencionámos acima foram perseguidas e tanto quanto possível, suprimidas. O reconhecimento dos cultos legais era condicionado pelo parecer do legislador, o qual, entre 1948 e 1952, restringia sempre os critérios para conceder autorizações legais. Sobre os dezassete estatutos e pedidos de reconhecimento, apenas catorze cultos foram aprovados pelas autoridades. Todas as outras formações religiosas permanecem, na prática, fora da lei. Em 1948, o culto grego-católico foi integrado, por força da lei, na Igreja Ortodoxa. Mais de cem religiosas e uma parte das suas ordens, apesar disso activas até então, foram suprimidas. Algumas, no entanto, prosseguiram nas actividades, mas na ilegalidade.

religiosas foram suprimidas pela legislação em vigor. Em 1936 Igrejas Ortodoxas de rito antigo, viram-se forçadas a integrar-se no seio da Igreja Ortodoxa oficial. Perto de um milhão de “estilistas”, como eram designados, foram considerados como pertencendo a uma “seita” legalmente interdita. As suas igrejas e lugares de culto foram distribuídas pelas paróquias ortodoxas, os seus membros foram perseguidos, as suas revoltas reprimidas pela polícia e, em certas localidades, os conflitos foram mesmo saldados por mortos e feridos. Durante a Segunda Guerra Mundial, por razões étnicas e militares, as actividades de todas as “associações religiosas” foram interditas. Os membros do culto mosaico foram perseguidos pelos legionários e os nazis, e o seu estatuto oficial foi suspenso. A entrada do exército soviético na Roménia foi marcada por um regresso das liberdades, mesmo na via religiosa. As portas das prisões foram abertas, libertando um número de crentes assaz grande, principalmente dos “estilistas”, de Testemunhas de Jeová, dos inocentes e dos pentecostais. Depois de 1944, um grande número de associações religiosas foram legalmente registadas ou registadas de novo. Algumas dentre elas também pediram a restituição dos seus bens. Esta liberdade, que revestiu, por vezes, aspectos um pouco anárquicos, foi limitada pelo novo regime geral dos cultos, promulgado em 1948. Este texto jurídico será a base legal da vida religiosa durante o

Sob o comunismo, a liberdade de religião era, primeiramente, condicionada pela ideologia ateia de partido. Como ele era o único partido político e que se apresentava como a única “força dirigente”, conseguiu impor a sua ideologia ao sistema político e à fraca representação da sociedade civil. A liberdade da religião era aplicada pelas 74


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tornaram-se sempre mais agressivas, chegando à supressão de cemitérios e de lugares de culto, a destruição e a eliminação dos símbolos sagrados.

instituições do Estado no espírito da ideologia dos regimes que se sucederam de 1944 a 1989. Por vezes, a liberdade era mais real; outras, mais limitada. Desde 1971, as medidas contra a vida religiosa

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A liberdade das religiões na jurisprudência dos tribunais romenos Verginia Vedinas *

I A Constituição romena 1, que foi objecto de modificações e de uma nova publicação, garante a liberdade religiosa em dois dos seus artigos: o artigo 29 sobre a liberdade de consciência e o artigo 30 sobre a liberdade de expressão. A lei fundamental, quanto a si mesma, qualifica a liberdade religiosa de “dimensão da liberdade de consciência”. A liberdade religiosa é garantida em si, in abstracto. Mas a lei vai mais longe. Ela garante também a liberdade de exprimir as suas convicções, a saber, a forma através da qual ela se pode exercer. Isso permite-nos afirmar que na linguagem constitucional romena, a noção de “liberdade” coloca a par duas formas de expressão, individual e pública2. Isso tanto mais que toda a liberdade individual implica também uma dimensão pública, isto é, concretamente, que ela se pode exercer e exprimir em público. Uma tal possibilidade ressalta da própria formulação do artigo 30, parágrafo primeiro, que qualifica de inviolável “a liberda-

de de expressão dos pensamentos, das opiniões ou das convicções […] oralmente, por escrito, com a ajuda de imagens, de sons ou por qualquer outro meio público de comunicação”. A nossa intenção não é a de analisar as dimensões do regime constitucional desta liberdade fundamental, tendo estas já sido tratadas noutros artigos. Queremos sublinhar que a nossa lei fundamental, longe de se limitar a reconhecer, garantir e proclamar a inviolabilidade desta liberdade fundamental, define, igualmente, de que forma ela se pode apreender neste quadro da jurisprudência. Isso devia ser desenvolvido na lei orgânica sobre o regime geral dos cultos religiosos e estipulado no artigo 73, parágrafo 3, ponto s). Mas, catorze anos depois da revolução romena de 1989, a apesar dos diferentes projectos de lei submetidos ao Parlamento, esta não tem, até hoje, sido adoptada. O único texto normativo evocando esta liberdade fundamental é

________ * Professor de Direito Administrativo na Faculdade de Direito da Universidade de Bucareste e advogado em Bucareste. Eleito senador do Parlamento da Roménia em 28 de Novembro de 2004. 76


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o decreto nº 177/19483 do Conselho de Estado4, sobre o regime de cultos na Roménia que já sofreu diversas modificações5. Mesmo se a garantia da liberdade de consciência e de religião já figura no artigo primeiro, ele é, na realidade, muito ambíguo, condicionando o seu exercício ao respeito pelas exigências da Constituição, a segurança interna, a ordem pública e a moral6. Este decreto não tendo sido formalmente anulado por uma lei, não se trata, portanto, de uma anulação expressa. Por outro lado, numerosas destas disposições já não correspondem à Constituição actual e já não são, por isso mesmo, válidas, como tenho sustentado em numerosas casos em que tenha defendido os direitos de comunidades religiosas diferentes da Igreja Ortodoxa Romena. É aqui que entram em aplicação as disposições do artigo 154, parágrafo primeiro, da Constituição, segundo as quais “as leis e todos os outros actos jurídicos permanecem em vigor, na medida em que não estão em contradição com a presente Constituição”. A interpretação a contrario deste texto leva à conclusão de que “o texto do artigo 154, parágrafo primeiro, opera uma revogação particular, indirecta e de qualquer maneira implícita, uma vez que não precisa o acto de revogação, mas o seu contrário ou seja a esfera dos actos legislativos que permanecerão em vigor”7. Esta esfera inclui os actos que não vão contra as disposições da Constituição. Em contrapartida, são revogados os actos

jurídicos adoptados antes da entrada em vigor da actual Constituição e que lhe são contrários. Basta aplicar este processo imposto pelo artigo 154, parágrafo primeiro, da Constituição, às disposições do decreto nº 177/1948 sobre o regime geral dos cultos para se notar que uma parte considerável das disposições do dito artigo é incontestavelmente revogada, embora outros permaneçam em vigor, a sua interpretação e a sua aplicação dependem da letra e do espírito da actual lei fundamental. Dessa forma, assiste-se a um fenómeno de constitucionalização do Direito romeno8 que consiste, especialmente, em fazer passar a legislação pré-constitucional pelo filtro da Constituição. É isto que a doutrina chama de forma plástica saneamento da legislação, ou seja “a eliminação dos actos normativos antiquados, caducos ou inspirados por uma filosofia jurídica obsoleta”9. Mas é conveniente precisar que as autoridades públicas da Roménia têm acolhido, com reticências, até mesmo recusado este ponto de vista. Existe uma tendência para considerar este decreto como estando hoje em vigor, não revogado e devendo ser aplicado à letra, salvo pelas modificações introduzidas pela mudança do sistema institucional – por exemplo, em lugar de “Grande Assembleia Nacional” ler e interpretar “Parlamento”. II No que diz respeito à jurisprudência das instâncias judiciais, não 77


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se deveria afirmar a mesma coisa, felizmente. No entanto, convém precisar que relativamente à diferença de outros litígios, os que relevam do problema da liberdade das crenças religiosas são sensivelmente menos numerosos.

b) a aplicação da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem; c) a aplicação da preempção dos regulamentos internacionais em matéria de direitos do homem sobre as regulamentações nacionais, conforme o artigo 20, parágrafo 2, da Constituição11;

As instâncias da Roménia, chamadas a pronunciar-se nos assuntos que dizem respeito à garantia da liberdade de crenças religiosas, têm determinado, numa primeira abordagem, os actos jurídicos susceptíveis de serem tidos em consideração e aplicados nas soluções a empregar.

d) a aplicação das disposições do decreto nº 177/1948, tanto como de outras leis pré-constitucionais, que estão conformes com a lei e o espírito da lei fundamental. O Supremo Tribunal aplicou todos estes princípios, ultrapassando as dificuldades devidas à não existência, na Roménia, de uma lei que permita a regulamentação do regime geral dos cultos e do exercício das crenças religiosas. A Roménia tem desempenhado, ao mesmo tempo, o papel de “criador de Direito” das instâncias judiciárias, as quais, por exemplo na França, é reconhecido sem reservas. Nesses países, afirma-se, para o que é do Direito Administrativo, que este depende mais do juiz do que do legislador. A aptidão do juiz para criar este Direito é evocada no conceito de “jurislador”.

Para o que é da incidência do decreto nº 177/1948, o antigo Supremo Tribunal de Justiça tornou-se depois da revisão da Constituição no Supremo Tribunal de Justiça, estatuiu que as disposições deste acto normativo, sem terem sido anulados, devem ser considerados como desprovidos de força jurídica, na medida em que estão contra a letra e o espírito da lei fundamental. Uma vez estabelecido este aspecto, bastou, em seguida, determinar o quadro constitucional e legal a aplicar na matéria. Trata-se dos seguintes princípios e normas de Direito:

No sistema romeno, à jurisprudência não se vê reconhecido o papel de fonte de Direito. No entanto, em certas situações – por exemplo, as que provocam um vazio legislativo – as instâncias judiciárias devem pronunciar-se e julgar. Então, é evidente, que tomam o papel de “criador de Direito” e se transformam em “jurisladores”.

a) A aplicação dos actos internacionais relativos às liberdades e direitos fundamentais do homem, compreendendo a liberdade das crenças religiosas; estes tratados, uma vez ratificados pela Roménia, foram integrados no Direito nacional, nos termos do artigo 11, parágrafo 2, da Constituição10; 78


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Serviço de culto, num Sábado de manhã, numa das igrejas Adventistas da Transilvânia. Foto Bettina Butscher

III A partir daqui analisaremos as categorias de litígios em que as instâncias judiciais da Roménia têm sido chamadas a pronunciarse, precisando que examinaremos, prioritariamente, os litígios em que esta suprema Instância se pronunciou. a) Litígio relativo à garantia de os crentes da Igreja Adventista do Sétimo Dia poderem respeitar o sábado. O sábado, sétimo dia da semana, é observado pelos adventistas como um dia de repouso religioso

e de oração, e isso, desde o pôr-dosol de sexta-feira, até ao pôr-do-sol de sábado. Os adventistas consagram este dia aos seus objectivos religiosos, considerando que não devem executar trabalhos que não tenham relação com o dia sagrado, com excepção dos não que podem ser transferidos, ou que sobrevêm em casos de força maior. Um grupo de membros praticantes desta Igreja dirigiu-se à instância judicial competente para solicitar a anulação de uma ordem do Ministério da Educação e do Ensino que dispunha que alguns 79


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exames de admissão teriam lugar num sábado, reconhecido pelos adventistas como sendo um dia de repouso e de festa religiosa.

Assim, por uma decisão judicial definitiva e executória, o Ministério da Educação viu-se na obrigação de reconhecer e garantir aos membros da Igreja Adventista do Sétimo Dia, o direito de observarem o sábado como dia de festa religiosa.

A reclamação foi, de imediato, rejeitada como infundada. Mas a secção de Contencioso administrativo do antigo Supremo Tribunal de Justiça admitiu um recurso, nos termos do artigo 29 da Constituição da Roménia e de disposições inscritas nas actas internacionais que o nosso país tinha ratificado, tais como o artigo 9 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; o artigo 18 de Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos e o artigo 6 ponto h) da Declaração Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Descriminação Baseadas na Religião ou na Convicção.

b) Litígio concernente ao problema do reconhecimento do estatuto de culto cristão às Testemunhas de Jeová. Sob o regime totalitário, este culto foi colocado fora da lei. Depois da Revolução ele inscreveu-se no Tribunal de primeira instância, antes de mais como associação, mas depois modificou o seu estatuto e declarou-se culto cristão. E foi como tal que foi registado pelas autoridades públicas competentes.

A instância aplicou estas previsões, retendo, particularmente, que o direito à liberdade de pensamento, de consciência, de religião ou de convicção implica, especialmente, “a liberdade de observar os dias de repouso e de celebrar as festas e as cerimónias, de acordo com os preceitos da sua religião ou da sua convicção”.

O Ministério da tutela, no entanto, não reconheceu às Testemunhas de Jeová o estatuto de culto cristão. A contestação deste estatuto, ocasionou numerosos litígios. Numa circular dirigida às Câmaras Municipais, o Secretariado para os Cultos comunicou a lista dos cultos reconhecidos pelo Estado romeno; nesta lista não figuravam as Testemunhas de Jeová. O Ministério foi advertido pela justiça para rever a aludida circular e emitir um acto administrativo reconhecendo a esses crentes o estatuto de culto cristão. A instância inferior rejeitou a acção imposta, mas o Supremo Tribunal, emitiu uma sentença, admitindo a acção sobre a questão e obrigando a autoridade arguida a emitir um

Todas estas considerações levaram à anulação parcial do acto administrativo em questão; mais, o Ministério da Educação teve de programar, para os alunos adventistas, o exame de cultura geral, num outro dia, diferente do sábado, e de resolver o problema da inscrição no liceu dos alunos de religião adventista, de acordo com a lei e as opções pessoais. 80


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Tribunal estatuiu que, para o julgamento e o estabelecimento do regime jurídico de um culto religioso, As disposições do decreto 177/1948 não deveram continuar a ser tidas em consideração, uma vez que vão contra da letra e do espírito da lei fundamental, sendo, por consequência, desprovidas de efeitos jurídicos.

acto administrativo reconhecendo às Testemunhas de Jeová o estatuto de culto cristão, tal como tinha sido anteriormente registada pelas autoridades competentes14. Ao pronunciar-se desta forma, a instância deu prioridade às disposições do artigo 20, parágrafo 3, da Constituição, nos termos do qual os cultos religiosos são livres de se organizarem de acordo com os seus próprios estatutos, nas condições previstas pela lei. No que respeita ao acto administrativo que saiu do julgamento, se bem que se apresente como uma simples “circular”, constitui um acto autêntico, pelo facto de o seu conteúdo e os efeitos produzidos. Habitualmente, a noção de “circular” evoca “comunicações pelas quais um superior hierárquico – um ministro, regra geral – dá a conhecer aos seus subordinados as suas intenções, ou o seu ponto de vista sobre a execução de um serviço, a interpretação de uma lei ou de um outro acto normativo”15. O que não quer dizer que toda a notificação ou circular tenha uma natureza jurídica. Mas desde que um tal acto produza efeitos jurídicos, isto é dê origem, modifique ou anule direitos e obrigações nas esfera da administração pública, num regime de poder público, é evidente que se está perante um acto administrativo e não de uma simples circular. Assim, a instância suprema decretou que o acto que resultou do julgamento, apesar de se apresentar como uma circular, era de facto um acto administrativo autêntico. Sempre, neste processo, como em outros anteriormente, o Supremo

c) Litígios sobre processos verbais emitidos contra as Testemunhas de Jeová por terem perturbado a ordem e a tranquilidade públicas. Uma das características da liberdade de expressão dos adeptos deste culto consiste em fazer o porta-aporta para ensinar a Bíblia, benevolamente e de uma maneira pacífica, convidando as pessoas com quem se encontram, a voltarem-se para Deus, isto é Jeová. Mas uma tal prática não é vista com bons olhos pelos adeptos de outras religiões e, em particular, pelos ortodoxos. Os seus padres demonstram atitudes hostis para com elas e os de outros cultos religiosos, tendo recorrido a diferentes métodos para os intimidar. Aproveitando-se da influência que exercem sobre as autoridades laicas e as comunidades no seio das quais desenvolvem as suas actividades, forçam-nas a tomar medidas, incluindo medidas coercivas, para intimidar os fiéis de outros cultos e levá-los seja a renunciar à sua religião, seja a não a exercerem de uma forma evidente. Está aqui, sem nenhuma dúvida, um sinal de intolerância religiosa que a Constituição interdita no seu artigo 29, parágrafo 316. A lei fundamen81


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A igreja de S. Nicolau, na velha cidade de Brasov, uma das mais antigas igrejas da Transilvânia. Mencionada, pela primeira vez em 1292, foi reconstruída e, 1495 e terminada em 1594. Foto Doris Czetti 82


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tal da Roménia garante a liberdade de consciência e a liberdade de expressão das crenças religiosas, manifestando, assim, um espírito de concórdia, autêntico, de tolerância entre os membros de cultos diferentes, assim como entre crentes e ateus17. Uma tal atitude constitui igualmente uma transgressão da lei sobre a igualdade de todos os cultos perante a lei. Esta igualdade decorre do princípio constitucional que prevê que cada um tenha os mesmos direitos perante a lei e as autoridades públicas, como o artigo 16, parágrafo primeiro, proclama. O constituinte romeno institui obrigações e direitos iguais para todos os cultos na Roménia; este regime jurídico não dá lugar a diferenciações18. De facto, a muitas Testemunhas de Jeová foram aplicadas contravenções por agentes da Polícia por terem perturbado a ordem e a tranquilidade públicas. De acordo com o processo verbal entreposto pela Polícia, os autores eram culpados de terem feito barulho e gritar de forma a perturbar ordem e a tranquilidade públicas. É evidente que por detrás da sanção escondia-se uma intenção de intimidar e de afastar as Testemunhas de Jeová da comunidade local. Os agentes da Polícia tinham sido incitados por um padre ortodoxo, que aliás, tinha assinado a contravenção, como testemunha. Foi apresentada uma reclamação contra esta acção. A instância responsável admitiu a reclamação e anulou os processos verbais, defendendo que nos assuntos em questão, não se tratava de contravenções, mas do exercício de uma liberdade fundamental, a

saber, a liberdade das crenças religiosas. IV

Conclusões Propusemo-nos analisar algumas categorias de litígios sobre os quais as instâncias da Roménia foram chamadas a pronunciar-se e de as reagrupar em função do seu objecto. Sem ter apresentado um número muito grande de casos, pensamos que os problemas jurídicos salientados são tão importantes como interessantes e permitem dar o exemplo de uma via normal que poderia seguir o regime jurídico dos cultos assim como a garantia da liberdade das crenças religiosas no nosso país. É conveniente, também, mencionar um facto significativo: nos assuntos em que tiveram de se pronunciar, as instâncias judiciais trouxeram para a jurisprudência romena algumas constantes da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, em matéria de liberdade de religião, tal como ela é designada na maior parte dos actos internacionais. O reconhecimento e o respeito pelas disposições internacionais relativas às liberdades e direitos fundamentais representam, aliás, a jurisprudência do Tribunal Europeu, obrigatória, em todos os domínios, incluindo nestes, a da liberdade das crenças religiosas. E uma das teses constantemente expressas na jurisprudência do Tribunal Europeu é a de que um Estado de direito pressupõe, em igual medida, um pluralismo político e um pluralismo religioso. A Constituição da Roménia 83


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coloca o pluralismo político igualmente entre os valores supremos e garantias20, como entre os limites da revisão da Constituição21. Uma tal abordagem obriga as instâncias da Roménia a adaptar-se à concepção do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, a fazer

evoluir, no mesmo espírito, a sua jurisprudência, a fim de sancionar todo o abuso por parte das autoridades públicas e de se transformar assim, numa verdadeira ferramenta que garanta esta liberdade fundamental.

Notas 1. A Constituição da Roménia foi revista pela lei nº 429/2003 e republicada no Monitorul Oficial, nº 767, de 31 de Outubro de 2003; os artigos foram objecto de uma nova numeração. 2. Tudor Draganu, Droit Constitutionnel et Institutions Politiques, Traité Élémentaire, vol. 1, Lumina Lex, Bucarest, 1998, p. 156. 3. Publicado no Moniturul Oficial, nº 178/4 de Agosto de 1948, rectificado e republicado no Moniturul Oficial, nº204, de 3 de Setembro de 1948. 4. Sob o regime socialista, o Conselho de Estado era um organismo do poder do Estado que emitia decretos, actos jurídicos que tinham força de lei. 5. Convém relembrar os decretos: decreto nº 322/1948, publicado no Moniturul Oficial, nº 269/18 de Novembro de 1948; decreto 410/1959 publicado no nº 28 de 19 de Novembro de 1959, e decreto nº 50/1974, publicado no nº 83/19 de Junho de 1974. 6. Vergínia Verdinas, Liberté des Croyances Religieuses, Lumina Lex, Bucarest, 2003, p. 348. 7. Simina Tanasescu, in Mihai Constantinescu, Antoine Iorgovan, Ioan Muraru, Elena Simina Tanasescu, La Constitution de la Roumanie révisée – commentaires eu explications, All Beck, 2004, p. 348. 8. Quanto à análise deste fenómemo, ver Ioan Muraru, Simina Tanasescu, “Sur la Constitutionnalisation du Droit roumain”, in Revue de Droit Public, nº 1-2/1996, p. 12-19. 9. Simina Tanasescu, in Mihai Constantinescu, Antoine Iorgovan, Ioan Muraro, Elena Simina Ranasescu, La Constituition da le Roumanie révisée – commentaires et explications, Ed. All Beck, Bucarest, 2004, p. 348. 10. Actualmente, esta autoridade pública denomina-se Ministério da Educação e da Investigação. 11. O texto prevê que “se existem discordâncias entre os pactos e os tratados sobre os direitos fundamentais do Homem, a que a Roménia aderiu, e os direitos internos, os regulamentos internacionais prevalecem, com excepção do caso em que a Constituição ou as leis nacionais comportem disposições mais favoráveis”. 12. Decisão nº 1934, de 7 de Julho de 1999, dossier nº 1686/1999, do Supremo Tribunal de Justiça, secção do Contencioso Administrativo. 13. Actualmente, esta autoridade denomina-se Ministério da Educação e da Investigação. 14. Decisão nº 769, de 7 de Março de 2000 do Supremo Tribunal de Justiça, secção do Contencioso Administrativo. 15. Jean Rivero, Jean Waline, Droit Administratif, 18ª ed. Précis Dalloz, 2000, p. 98. 16. O texto prevê que “Nas relações entre os cultos são interditos todos os meios, formas, acções ou actos de discórdia religiosa”. 17. Victor Dan Zlatescu, “Rapport introductif”, apresentado no Simpósium Internacional de Iasi, de 22 a 24 de Setembro de 2000, publicado na compilação colectiva em francês Les droits 84


A liberdade das religiões na jurisprudência dos tribunais romenos de l’homme, Dimension spirituelle et action civique, Instituto Romeno para os Direitos do Homem e Agência Romena para a francofonia, Bucareste, 2000, p. 266. 18. Corneliu Liviu Popescu, “Liberté de constitution de cultes religieux” in Pandectele romane, nº 2/2002, p. 266. 19. Irina Moroianu Zlatescu, “Les droits de l’homme et la liberté religieuse”, in Les droits de l’homme, nº 1/1994, p. 64. 20. Pelo artigo primeiro, parágrafo 3, nos termos do qual “ a Roménia é um Estado de direito democrático e social, onde a dignidade do homem, os direitos e liberdades dos cidadãos, o livre desenvolvimento da personalidade humana, a justiça e o pluralismo político (realce nosso V.V.) representam valores supremos, no espírito das tradições democráticas do povo romeno e das ideias da Revolução de Dezembro de 1989”. 21. Trata-se do artigo 152, parágrafo primeiro nos termos do qual “as disposições da presente Constituição sobre o carácter nacional, independente, unitário e indivisível do povo romeno, a forma republicana de governo, a integridade do território, a independência da justiça, o pluralismo político (realce nosso V.V.) e a língua oficial não serão objecto de revisão”.

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DOCUMENTOS Nações Unidas Convenção relativa aos direitos da criança Comité dos direitos da criança Relatório sobre a Roménia (CRC/C/65/Add. 19 de Julho de 2002 D. Liberdade de pensamento, de consciência e de religião (artigo 14) 140. O artigo 29 da Constituição romena dispõe que a liberdade de pensamento e de opinião, assim como a liberdade de religião, não podem ser limitadas sob nenhuma forma. Ninguém pode ser obrigado a adoptar uma opinião ou a aderir a uma religião que sejam contrárias às suas convicções. 141. A Constituição garante, além disso, a liberdade de consciência, que se deve manifestar num espírito de tolerância e de respeito recíproco. Os cultos religiosos são livres e organizam-se de acordo com os seus próprios estatutos, nas condições fixadas pela lei. Nas relações entre os cultos são interditas todas as formas, todos os meios, actos ou acções de discórdia religiosa. Os cultos religiosos são autónomos em relação ao Estado e gozam do seu apoio, compreendendo as facilidades concedidas para prestar assistência religiosa no exército, nos hospitais, nos estabelecimentos penitenciários, nos asilos e nos orfanatos. 142. Os pais, ou tutores têm o direito de assegurar, de acordo com as suas próprias convicções, a educação dos filhos menores que estejam sob a sua responsabilidade (parágrafo 6 do artigo 29 da Constituição romena). Colocando estas disposições perante as disposições do artigo 20 da Constituição, que dispõe que as normas internacionais tem a primazia em caso de divergência entre o Direito interno e os pactos e acordos internacionais relativos aos direitos do Homem, dos quais a Roménia é parte, pode-se constatar que estão colocados os fundamentos de uma primazia das disposições do artigo 14 da Convenção Sobre os Direitos da Criança. 143. O mandado de urgência nº 26/1997 sobre a protecção da criança em dificuldade contém uma disposição segundo a qual, no momento da escolha de uma medida de protecção da criança, é preciso ter em consideração tanto a necessidade de assegurar uma certa continuidade 86


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na educação da criança como a sua origem étnica, religiosa, cultural ou linguística. Quando uma criança é confiada a uma pessoa física ou a uma pessoa moral com fins de protecção, as suas opiniões religiosas não podem ser modificadas senão em certos casos excepcionais, que requerem a aprovação especial da Comissão da Protecção da Criança. 144. De acordo com as disposições mais recentes relativas à instrução religiosa na escola, esta instrução é obrigatória na primária e no liceu, as crianças podem optar entre as diferentes religiões que ministram esse ensino; a criança é livre para mudar de opção no decurso do ano escolar. A pedido dos pais, a criança pode decidir deixar de assistir às aulas de instrução religiosa.

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Nações Unidas Comissão dos Direitos do Homem 61ª sessão (14 de Março a 22 de Abril de 2005) Palácio das Nações Unidas, Genebra Ponto 11 (e) – A intolerância religiosa Senhor Presidente Desejaria referir-me aos propósitos apresentados por ocasião do discurso inaugural, pelo Presidente desta Comissão, S. Exª. o Senhor Wibisono, para os quais ele chamou a atenção dos membros da Comissão sobre a problemática, extremamente delicada, das questões religiosas. A Associação que eu represento partilha das preocupações que foram expressas e deplora a constante degradação do respeito pelos direitos do Homem no domínio religioso, especialmente, através das exacções e das opressões cometidas para com as minorias religiosas. A nossa inquietação é tanto maior quanto esses atentados são feitos, não apenas em países de regimes teocráticos, mas igualmente em Estados que fazem do princípio da laicidade um instrumento de opressão para com toda a expressão religiosa, seja ele ostentatória, ou não, autorizando assim, todos os desvios. E que dizer, quando as religiões oficiais de certos Estados se tornam, elas próprias, cúmplices da opressão das minorias religiosas em nome da salvaguarda do dogma, quando não se trata, de facto, senão da protecção dos seus interesses! A AIDLR compreende e partilha a reivindicação de certos Estados membros da Comissão de ver respeitadas, durante os trabalhos desta 61ª sessão, as convicções religiosas que representam nesta Assembleia, assim como o seu pedido para se absterem de pronunciar críticas e ataques verbais. A minha Associação deseja ver no futuro, com esperança, uma tomada de consciência, pelos Estados, da gravidade dos prejuízos causados por todas as formas de intolerância religiosa, envolvendo-se por si mesma, a fim de ser coerente com as suas reivindicações, em fazer avançar toda esta tarefa nos seus países, para que a expressão de todas as formas de religiosidade seja neles respeitada. Porque não é apenas reclamando para si mesmo os direitos do Homem que se testemunha da sua credibilidade neste domínio, mas é, igualmente, concedendo-a a cada um. 88


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Na sua Declaração de 15 de Março de 2005 e falando em nome da Organização da Conferência Islâmica, S. Exª o Professor Ihsanoglu partilhou connosco a sua preocupação, face ao desenvolvimento no mundo da “islamofobia” em consequência de diversos actos de terrorismo cometidos em nome do Islão pelos movimentos que dessa forma deformam o seu espírito. A Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa partilha desta preocupação e condena, igualmente, todos os actos de opressão cometidos seja qual for a entidade que os cometa, sob a base de uma “cristianofobia” largamente desenvolvida em certos países, de antisemitismo, ou de qualquer outra forma de atentado contra uma religião existente, seja ela qual for. Estas fobias e intolerâncias são expressões da ignorância e da alienação, que convém combater e não os crentes, ou as crenças. A liberdade de crer no Deus da sua escolha é não apenas um direito, inalienável para cada um, mas um elemento construtivo do indivíduo. Não reconhecer a este último esta liberdade torna-se em negá-lo como ser humano. Senhor Presidente, se nos é possível, crentes e não crentes desta Assembleia, caminhar lado a lado e trabalhar em conjunto para o progresso do respeito e do bem-estar da humanidade, quero crer e esperar que acontecerá o mesmo nos países que representamos, isto é, no mundo. Obrigado, Senhor Presidente Denis Rosat Secretário Geral interino da AIDLR

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Declaração de Princípios Acreditamos que o direito à liberdade religiosa foi dado por Deus e afirmamos que ela se pode exercer nas melhores condições, quando há separação entre as organizações religiosas e o Estado. Acreditamos que toda a legislação, ou qualquer outro acto gover­namental, que una as organizações religiosas e o Estado, se opõem aos interesses dessas duas instituições e podem causar prejuízo aos direitos do homem. Acreditamos que os governos foram instituídos por Deus para manter e proteger os homens no gozo dos seus direitos naturais e para regulamentar os assuntos civis; e que neste domínio tem o direito a obediência respeitosa e voluntária da cada individuo. Acreditamos no direito natural inalienável do indivíduo à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de ter ou de adoptar uma religião ou uma convicção da sua escolha e de mudar segundo a sua consciência; assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, individualmente ou em comum, tanto em publico como em privado, através do culto e da realização dos ritos, das práticas e dos ensinos, devendo, cada um, no exercício desse direito, respeitar os mesmos direitos nos outros. Acreditamos que a liberdade religiosa comporta, igualmente, a liberdade de fundar e de manter instituições de caridade e educativas, de solicitar e de receber contribuições financeiras voluntárias, de observar os dias de repouso e de celebrar as festas de acordo com os preceitos da sua religião, e de manter relações com crentes e comunidades religiosas tanto ao nível nacional, como internacional. Acreditamos que a liberdade religiosa e a eliminação da intolerância e da descriminação fundadas sobre a religião ou a convicção, são essen­ciais para promover a compreensão, a paz e a amizade entre os povos. Acreditamos que os cidadãos deveriam utilizar todos os meios legais e honestos, para impedir toda a acção contrária a estes princípios, a fim de que todos possam gozar das inestimáveis bênçãos da liberdade religiosa. Acreditamos que o espírito desta verdadeira liberdade religiosa está resumido na regra áurea: Tudo o que quizerem que os homens vos façam, façam-no a eles.

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