0607L21603 - O Retrato Dorian Gray

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O retrato de Dorian Gray

tradução: Otavio Albano ilustrações: Franco de Rosa

O retrato de Dorian Gray

O RETRATO DE DORIAN GRAY

Título original: The Picture of Dorian Gray copyright © Oceano Edições e impressão gráfica Ltda, 2021

DECLARAÇÃO

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Edição brasileira

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Sandro Aloisio Otavio Albano Franco de Rosa Madrigais

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Sandro Aloisio Equipe M10

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)

Wilde, Oscar, 1854 1900.

W672r O retrato de Dorian Gray / Oscar Wilde; tradução Otavio Albano; ilustrações de Franco De Rosa São Paulo, SP: Oceano Edições, 2021 320 p. : il. ; 13,5 x 20,5 cm

Título original: The Picture of Dorian Gray ISBN 978 65 994041 2 2 (Aluno) ISBN 978 65 994041 3 9 (Professor)

1. Ficção irlandesa. 2. Literatura irlandesa Romance. I. Albano, Otavio II. Rosa, Franco De. III. Título.

CDD Ir823

Elaborado por Maurício Amormino Júnior CRB6/2422

1a edição 2021

OCEANO EDIÇÕES E IMPRESSÃO GRÁFICA LTDA – CNPJ 06.285.370/0001-07

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O retrato de Dorian Gray

tradução: Otavio Albano ilustrações: Franco de Rosa

São Paulo, 2021

OSCAR WILDE 3

SUMÁRIO

4 O RETRATO DE DORIAN GRAY

PREFÁCIO

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .6

CAPÍTULO 1 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10

CAPÍTULO 2 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28

CAPÍTULO 3 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48

CAPÍTULO 4 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66

CAPÍTULO 5 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86

CAPÍTULO 6 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 102

CAPÍTULO 7 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112 CAPÍTULO 8 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 128

CAPÍTULO 9 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 146 CAPÍTULO 10 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 160 CAPÍTULO 11 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .172 CAPÍTULO 12 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 198 CAPÍTULO 13 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 208 CAPÍTULO 14 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 218 CAPÍTULO 15 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 234 CAPÍTULO 16 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 248 CAPÍTULO 17 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .260 CAPÍTULO 18 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 270 CAPÍTULO 19 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 284 CAPÍTULO 20 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 298

OSCAR WILDE 5
O RETRATO DE DORIAN GRAY , sobre a obra . . . . . 307

PREFÁCIO

6 O RETRATO DE DORIAN GRAY

Oartista é um criador de coisas belas. Revelar a obra e ocul tar o artista é o objetivo da arte. O crítico é aquele que consegue traduzir, de outra maneira ou para um novo material, sua sensação das coisas muito bonitas.

A crítica, tanto a mais elevada quanto a mais baixa, é uma forma de autobiografia. Aqueles que encontram significados feios em coisas belas corrompem-se sem serem encantadores. Isso é um defeito.

Aqueles que encontram significados belos em coisas belas são cultos. Para eles, há esperança. São os eleitos, para quem as coisas belas denotam apenas beleza.

Não existem livros morais ou imorais. Livros são bem escritos ou mal escritos. Isso é tudo.

A antipatia do século XIX pelo Realismo é a raiva de Caliban1 ao ver a própria face no espelho.

A antipatia do século XIX pelo Romantismo é a raiva de Cali ban ao não ver a própria face no espelho. A vida moral do homem faz parte do tema do artista, mas a moralidade da arte consiste no uso perfeito de um meio imperfeito. Nenhum artista deseja provar nada. Até mesmo coisas verdadeiras podem ser provadas. Nenhum artista tem afinidades éticas. Uma afinidade ética em um artista é uma presunção de estilo imperdoável. O artista nun ca é mórbido. O artista pode expressar qualquer coisa. Para ele,

1 Caliban (ou Calibã) é um escravizado selvagem e disforme, personagem da peça A Tem pestade (1610), de William Shakespeare. (N. do T.)

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pensamento e linguagem são instrumentos de uma obra. Vício e virtude são, para o artista, materiais para uma obra. Do ponto de vista da forma, o arquétipo de todas as artes é a arte do músico. Do ponto de vista da emoção, o ofício do ator é o arquétipo. Toda arte é, ao mesmo tempo, superfície e símbolo. Aqueles que vão além da superfície fazem-no por sua própria conta e risco. Aqueles que leem o símbolo fazem-no por sua própria conta e risco. É no espectador, e não na vida, que a arte se espelha. A diversidade de opiniões a respeito de uma obra de arte revela o quão nova, complexa e vital ela é. Quando os críticos discordam, o artista está de acordo com sua essência. Podemos perdoar um homem por fazer alguma coisa útil, contanto que ele não a admire. A única desculpa para se fazer uma coisa inútil é admirá-la intensamente.

Toda arte é completamente inútil.

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Oateliê estava impregnado pelo suntuoso odor de rosas e, quando a suave brisa do verão balançava as árvores do jardim, entravam pela porta aberta o perfume intenso dos lilases e o aroma delicado do espinheiro rosa.

Do canto do divã de almofadas persas em que estava recos tado, fumando inúmeros cigarros como de costume, Lorde Henry Wotton podia apenas vislumbrar os doces tons de mel das flores da cássia-imperial 1 , cujos galhos trêmulos mal pareciam suportar o peso de uma beleza tão flamejante; vez ou outra, as esplêndidas sombras dos pássaros voando moviam-se rapidamente pelas cor tinas de seda indiana penduradas em frente às imensas janelas, produzindo um transitório efeito japonês e fazendo-o pensar na queles pintores de Tóquio com rostos pálidos e exauridos, que, por meio de uma arte necessariamente imóvel, procuram transmitir a sensação de movimento e agilidade. O burburinho sombrio das abelhas, que ora abriam caminho pela relva crescida, ora circunda vam com uma insistência monótona os estames dourados e cheios de pólen das madressilvas, parecia tornar o silêncio ainda mais opressivo. O ruído ininteligível de Londres soava como o timbre grave de um órgão distante.

No centro da sala, preso a um cavalete vertical, via-se o retrato de corpo inteiro de um jovem de beleza extraordinária e, diante dele, um pouco afastado, sentava-se o próprio artista, Basil Hallward, cujo súbi to desaparecimento alguns anos antes havia causado, à época, extraor dinária agitação no público e originado as mais estranhas hipóteses.

1 Árvore de flores amareladas, também conhecida como cássia fístula. (N. do T.)

OSCAR WILDE 11
1
CAPÍTULO

Enquanto o pintor olhava para a graciosa e agradável figu ra que representara tão habilmente em sua obra, um sorriso de prazer cruzou seu rosto, parecendo demorar-se ali. Mas, subi tamente, ele teve um sobressalto e fechou seus olhos, colocan do os dedos sobre as pálpebras, como se quisesse aprisionar na sua mente algum sonho inusitado do qual receava despertar.

— É o seu melhor trabalho, Basil, a melhor coisa que já fez em sua vida — disse Lorde Henry lentamente. — Você certamente deve enviá-lo para a Grosvenor 2 no ano que vem. A academia é grande demais, vulgar demais. Todas as vezes em que fui lá, ou havia tantas pessoas que eu não podia ver os quadros, o que é horrível, ou havia tantos quadros que eu não podia ver as pessoas, o que é ainda pior. Grosvenor é realmente o único lugar adequado.

— Não acho que eu vá enviá-lo a lugar nenhum — respondeu ele lançando a cabeça para trás daquela estranha maneira que fazia seus amigos rirem dele em Oxford. — Não, não vou enviá-lo a lugar nenhum.

Lorde Henry ergueu as sobrancelhas e olhou para ele com espanto através das finas espirais azuis de fumaça que emanavam de seu forte cigarro, carregado de ópio.

— Não vai enviá-lo a lugar nenhum? Meu querido amigo, por quê? Há alguma razão para isso? Que sujeitos excêntricos são vocês, pintores! Fazem qualquer coisa neste mundo para conquistar uma reputação. E, assim que conseguem, parecem querer jogá-la fora. Que tolice sua, já que a única coisa pior que ser falado é não ser falado. Um retrato como esse o colocaria muito acima de todos os outros jovens rapazes da Inglaterra e despertaria a inveja dos velhos, se os velhos fossem capazes de alguma emoção.

2 A Grosvenor Gallery foi uma galeria de arte que funcionou entre os anos 1877 e 1890, em Londres. Era uma alternativa à Royal Academy, citada logo depois, de cunho mais clássico e conservador. (N. do T.)

12 O RETRATO DE DORIAN GRAY

— Sei que vai rir de mim — respondeu ele —, mas realmente não posso exibi-lo. Coloquei muito de mim nele.

Lorde Henry esticou-se no divã e riu.

— Sim, sabia que riria; mas é a pura verdade, mesmo assim.

— Muito de si nele! Francamente, Basil, não sabia que era tão vaidoso; e realmente não consigo ver nenhuma semelhança entre você, com seu rosto bruto e pronunciado e seus cabelos pretos como carvão, e esse jovem Adônis, que parece feito de marfim e pétalas de rosa. Ora, meu querido Basil, ele é um Narciso, e você — bem, certamente você tem uma expressão inteligente e tudo mais. Mas a beleza, a beleza de verdade termina onde a expressão da inte ligência começa. O intelecto é em si mesmo uma forma de exagero, destruindo a harmonia de qualquer rosto. No momento em que alguém se senta para pensar, torna-se todo nariz, ou todo testa, ou algo horrendo. Veja os homens bem-sucedidos em qualquer uma das profissões tradicionais 3 . Como são perfeitamente hediondos!

À exceção, claro, dos homens da Igreja. Mas na Igreja não costumam pensar. Aos oitenta anos, um bispo continua a afirmar o que lhe mandaram dizer quando era um garoto de dezoito e, como conse quência natural, ele sempre parecerá absolutamente encantador. Seu jovem amigo misterioso, cujo nome você nunca me disse, mas cujo quadro realmente me fascina, nunca chegou a pensar. Tenho certeza disso. Ele é alguma bela criatura sem cérebro que deveria estar sempre presente no inverno, quando não temos flores para admirar, e também no verão, quando precisamos de algo para refrescar nossa inteligência. Não se vanglorie, Basil, você não se parece nem um pouco com ele.

3 À época da publicação do romance, no final do século XIX, as profissões consideradas tradicionais (learned professions, no original, em inglês) eram a medicina, o direito e o sacerdócio. (N. do T.)

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— Você não me entende, Harry — respondeu o artista. — Claro que não sou como ele. E sei disso perfeitamente. Na verdade, lamentaria se me parecesse com ele. Você dá de ombros? Estou sendo sincero. Há um certo infortúnio em toda superioridade intelectual ou física, o tipo de infortúnio que parece perseguir os passos hesitantes dos reis através da história. É melhor não ser di ferente de seus pares. Os feios e ignorantes têm o que há de melhor neste mundo. Eles podem sentar-se à vontade e admirar a peça. Se não conhecem a vitória, pelo menos são poupados de conhecer a derrota. Vivem como todos nós deveríamos viver — impassíveis, indiferentes e sem inquietações. Nunca levam outros à ruína nem a recebem das mãos alheias. Sua posição e riqueza, Harry; minha inteligência, tal como é — minha arte, não importa seu valor —; a boa aparência de Dorian Gray; nós todos sofreremos pelo que os deuses nos deram, sofreremos terrivelmente.

— Dorian Gray? É esse seu nome? — perguntou Lorde Henry, andando pelo ateliê em direção a Basil Hallward.

— Sim, esse é seu nome. Não pretendia contar-lhe.

— Por que não?

— Ah, não posso explicar. Quando gosto muito de alguém, nunca revelo seu nome aos outros. É como se eu entregasse uma parte sua. Habituei-me a amar o sigilo. Parece-me ser a única coisa capaz de transformar a vida moderna em algo misterioso ou surpreendente para nós. Mesmo o mais trivial dos fatos torna-se encantador ao ser ocultado. Agora, quando saio da cidade, nunca conto aos conhecidos para onde vou. Se o fizesse, perderia qualquer sensação de prazer. É um hábito bobo, ouso dizer, mas de algu ma forma parece proporcionar uma boa dose de romance à vida. Imagino que você me ache extremamente tolo por isso.

— De forma nenhuma — respondeu Lorde Henry —, de forma nenhuma, meu caro Basil. Você deve ter se esquecido que sou casado, e o único encanto do casamento é tornar obrigatória a ambos uma

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vida de mentiras. Nunca sei onde minha mulher está e ela nunca sabe o que estou fazendo. Quando nos encontramos — acabamos nos encontrando ocasionalmente quando jantamos fora juntos ou visitamos o duque —, contamos as mais absurdas histórias, com o semblante o mais grave possível. Minha mulher é muito boa nisso — na verdade, muito melhor do que eu. Ela nunca se confunde com as datas, o que eu sempre faço. Quando ela descobre meus erros, não causa nenhuma discussão. Às vezes, gostaria que o fizesse, mas ela simplesmente ri de mim.

— Odeio a forma como você fala da sua vida de casado, Harry — disse Basil Hallward dirigindo-se para a porta que levava ao jardim. — Acredito que, na verdade, você seja um bom marido, mas envergonha-se completamente das próprias virtudes. Você é um sujeito extraordinário. Jamais proclama moralidades, mas nunca faz nada de errado. Seu cinismo não passa de mera afetação.

— Ser natural é mera afetação e a mais irritante que conheço — exclamou Lorde Henry, rindo; e os dois rapazes saíram juntos para o jardim e sentaram-se em um banco comprido de bambu que ficava à sombra de um frondoso loureiro. A luz do sol deslizava por entre as lustrosas folhas. Na grama, margaridas brancas tremulavam.

Depois de uma pausa, Lorde Henry sacou seu relógio.

— Receio que seja chegada minha hora de ir, Basil — murmu rou. — E, antes de sair, insisto que responda a uma pergunta que lhe fiz há algum tempo.

— Que pergunta? — disse o pintor mantendo os olhos fixos no chão.

— Você sabe muito bem.

— Não sei mesmo, Harry.

— Bem, então vou dizer-lhe do que se trata. Quero que me explique por que não vai exibir o retrato de Dorian Gray. Quero o motivo verdadeiro.

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— Dei-lhe o motivo verdadeiro.

— Não, não me deu. Você me disse que era porque havia muito de você nele. Isso é infantil.

— Harry — disse Basil Hallward olhando-o nos olhos —, cada retrato que é pintado com sentimento é um retrato do artista, não do modelo. O modelo é meramente um acidente, um acaso. Não é ele o revelado pelo pintor; mas o pintor que, na tela colorida, se revela. A razão pela qual não vou exibir esse quadro é porque mostrei nele o segredo de minha alma.

Lorde Henry riu.

— E qual é o segredo? — perguntou ele.

— Vou contar-lhe — disse Hallward; mas uma expressão de hesitação surgiu em seu semblante.

— Sou todo expectativa, Basil — continuou seu amigo fitando-o.

— Ah, tenho muito pouco a dizer, Harry — respondeu o pin tor —, e receio que não consiga me entender. Talvez nem mesmo acredite em mim.

Lorde Henry sorriu e, inclinando-se, colheu uma margarida rosa do gramado e a examinou.

— Tenho plena certeza de que entenderei — respondeu olhando atentamente para a flor e seu disco dourado com penugens bran cas — e, quanto a acreditar em algo, posso acreditar em qualquer coisa, contanto que seja realmente inacreditável.

O vento balançou algumas flores das árvores, e os pesados botões de lilases, semelhantes a nuvens de estrelas, moviam-se para a frente e para trás na atmosfera lânguida. Um gafanhoto começou a chirriar próximo à parede e, como um símbolo de liberdade, uma fina e comprida libélula flutuava com suas asas marrons transparentes.

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Lorde Henry pareceu poder sentir as batidas do coração de Basil Hallward e imaginou o que estava por vir.

— A história é simples — disse o pintor depois de alguns ins tantes. — Há dois meses fui a uma reunião na casa de Lady Brandon. Você sabe como nós, artistas, precisamos frequentar a sociedade de vez em quando, apenas para lembrar ao público que não somos selvagens. Com um paletó formal e uma gravata branca — como você me disse uma vez —, qualquer pessoa, até mesmo um corretor da bolsa, pode ganhar a reputação de ser civilizado. Bom, depois de dez minutos na sala, conversando com viúvas ricas imensas vestidas de maneira espalhafatosa e acadêmicos entediantes, per cebi subitamente que alguém me observava. Virei-me e vi Dorian Gray pela primeira vez. Quando nossos olhares se cruzaram, senti que empalidecia. Uma estranha sensação de terror tomou conta de mim. Sabia que havia encontrado alguém cuja personalidade era tão fascinante que, se eu permitisse, absorveria toda a minha essência, minha alma, minha própria arte. Eu não queria nenhuma influência externa na minha vida. Você mesmo sabe, Harry, quão independente é a minha natureza. Sempre fui meu único senhor; pelo menos fora assim até encontrar Dorian Gray. Então... não sei como explicar-lhe. Algo parecia dizer-me que estava à beira de uma crise terrível na minha vida. Tive uma sensação estranha de que o destino me reservava tanto alegrias quanto tristezas extraordi nárias. O medo apoderou-se de mim e virei-me para sair da sala. Não foi a consciência que me levou a fazê-lo, mas uma espécie de covardia. Não credito minha tentativa de fugir a mim mesmo.

— Consciência e covardia são na verdade a mesma coisa, Basil. Consciência é apenas o nome comercial da empresa. Simplesmente.

— Não acredito nisso, Harry, e tampouco acho que você acre dite. Mesmo assim, qualquer que tenha sido meu motivo — e pode ter sido orgulho, já que sempre fui muito orgulhoso —, só sei que me esforcei para chegar à porta. Lá, claro, encontrei Lady Brandon.

OSCAR WILDE 17

“Você não vai embora tão cedo, não é, sr. Hallward?”, berrou ela. Você se lembra de sua voz estridente?

— Sim, ela é um pavão em tudo, exceto na beleza — disse Lorde Henry esmigalhando a margarida com seus longos dedos nervosos.

— Não pude me livrar dela. Ela exibiu-me para nobres, pessoas cobertas de honrarias e condecorações e velhas damas com tiaras gigantes e narizes de papagaio. Referia-se a mim como seu amigo mais querido. Apenas a tinha visto uma vez antes disso, mas ela decidira idolatrar-me. Acredito que algum dos meus quadros fazia grande sucesso à época ou pelo menos fora mencionado em algum tabloide, o que é o padrão de imortalidade do século XIX. De repente, achei-me diante do jovem cuja personalidade tinha mexido comigo de forma tão estranha. Estávamos muito próximos, quase nos tocan do. Nossos olhares encontraram-se novamente. Foi inconsequente da minha parte, mas pedi para Lady Brandon apresentá-lo a mim. Talvez não tenha sido tão inconsequente, afinal. Era simplesmen te inevitável. Teríamos conversado sem nenhuma apresentação. Tenho certeza disso. Dorian acabou me dizendo isso logo depois. Ele também sentira que estávamos destinados a nos conhecer. — E como Lady Brandon descreveria esse maravilhoso jovem? — perguntou seu companheiro. — Eu sei que ela costuma fazer um rápido resumo de todos os seus convidados. Recordo-me dela levando-me até um truculento cavalheiro de rosto vermelho, co berto de medalhas e insígnias, e sussurrando-me no ouvido — em um trágico sussurro perfeitamente audível por todos os presentes na sala — os detalhes mais impressionantes. Simplesmente fugi. Gosto de descobrir as pessoas por conta própria. Mas Lady Brandon trata seus convidados da mesma forma que um leiloeiro trata suas peças. Ou ela os expõe completamente ou conta tudo sobre eles, menos o que queremos saber.

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— Pobre Lady Brandon! Você é muito duro com ela, Harry! — disse Hallward, sem muita convicção.

— Meu querido amigo, ela tentou fundar um salão de arte, mas apenas conseguiu abrir um restaurante. Como poderia admirá-la? Mas, diga-me, o que ela disse a respeito do sr. Dorian Gray?

— Ah, algo como: “Garoto encantador — sua pobre mãe e eu somos absolutamente inseparáveis. Não me lembro bem o que ele faz. Temo que... acho que não faz nada — ah, sim, ele toca piano... ou seria violino, caro sr. Gray?” Nenhum de nós pôde deixar de rir e nos tornamos amigos no mesmo instante.

— O riso não é, de forma nenhuma, um mau começo para uma amizade e é de longe o melhor final para uma — disse o jovem lorde, enquanto colhia outra margarida. Hallward balançou a cabeça.

— Você não sabe o significado de uma amizade, Harry — murmurou ele. — Aliás, nem o de inimizade. Você gosta de todo mundo; ou seja, você é indiferente a todo mundo.

— Que injustiça a sua! — exclamou Lorde Henry, inclinando o chapéu para trás e olhando para as nuvens, que, como emara nhados de seda branca brilhante, pairavam no turquesa profundo do céu de verão. — Sim, terrivelmente injusto de sua parte. Faço uma enorme diferença entre as pessoas. Escolho meus amigos por sua boa aparência, meus conhecidos por seu bom caráter e meus inimigos pelo bom intelecto. Nunca se é cuidadoso demais ao es colher seus inimigos. Não tenho nenhum que seja tolo. Todos são homens com alguma inteligência e, portanto, todos me apreciam. Vaidade demais de minha parte? Considero que sim.

— Penso que sim, Harry. Mas, de acordo com a sua classificação, devo ser meramente um conhecido.

— Meu querido Basil, você é muito mais que apenas um conhecido.

OSCAR WILDE 19

— E muito menos que um amigo. Uma espécie de ir mão, presumo.

— Ah, irmãos! Não me importo com irmãos. Meu irmão mais velho não morre e os mais novos parecem desejar imitá-lo.

— Harry! — exclamou Hallward franzindo a testa.

— Meu querido amigo, não estou falando sério. Mas não consigo deixar de detestar meus familiares. Suponho que isso se deva ao fato de que nenhum de nós suporta outras pessoas com os mesmos defeitos que os nossos. Compreendo perfeitamente a raiva que a democracia inglesa tem do que chamam de vícios das classes superiores. O povo sente que a embriaguez, a estupidez e a imoralidade deveriam ser exclusividade sua e que, se algum de nós faz papel de bobo, está furtando-lhe de suas atribuições. Quando o pobre Southwark entrou com seu pedido de divórcio, a indignação dessas pessoas foi bastante assombrosa. E, mesmo assim, imagino que nem dez por cento do proletariado viva corretamente.

— Não concordo com uma única palavra do que disse e, mais ainda, Harry, tampouco acho que você acredite.

Lorde Henry alisou a pontuda barba castanha e bateu na sua bota de couro envernizado com a bengala com ornamentos de marfim.

— Como você é inglês, Basil! Esta é a segunda vez que faz esse comentário. Se alguém expõe uma ideia para um autêntico inglês — algo sempre arriscado de fazer —, ele nunca sonha em julgar se a ideia está correta ou não. A única coisa que lhe tem alguma importância é se ele próprio acredita nela. O valor de uma ideia não tem absolutamente nenhuma relação com a sinceridade do homem que a expressa. Na verdade, a probabilidade é que, quanto menos sincero ele for, mais puramente intelectual será a ideia, pois assim ela não ficará impregnada de suas necessidades, seus desejos ou seus preconceitos. No entanto, não pretendo discutir política, sociologia ou metafísica com você. Prefiro pessoas a princípios e gosto de

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pessoas sem princípios mais do que qualquer outra coisa no mundo. Fale-me mais sobre o sr. Dorian Gray. Com que frequência você o vê?

— Diariamente. Não ficaria feliz se não o visse todos os dias. Ele é absolutamente necessário para mim.

— Que extraordinário! Pensei que você não se importasse com nada além de sua arte.

— Para mim, ele é toda a minha arte agora — disse o pintor com seriedade. — Às vezes pego-me pensando, Harry, que há apenas duas eras realmente importantes na história do mundo. A primeira é o surgimento de um novo meio para a arte, e a segunda, o surgimento de uma nova aparência, também para a arte. O que a invenção da pintura a óleo foi para os venezianos, o que o rosto de Antínoo 4 foi para a escultura grega tardia e o que o rosto de Dorian Gray será um dia para mim. Não se trata simplesmente de pintar, desenhar, esboçar baseado nele. Claro que fiz tudo isso. Mas ele é muito mais que apenas um modelo para mim. Não posso lhe dizer que estou insatisfeito com o que fiz tendo-o como modelo ou que sua beleza é tanta que a arte não pode expressá-la. Não há nada que a arte não possa expressar e eu sei que o trabalho que tenho feito desde que conheci Dorian Gray é de boa qualidade, o melhor trabalho da minha vida. Mas de alguma maneira estranha — e não sei se irá me entender — sua personalidade inspirou-me uma forma completamente nova de arte, um estilo completamente novo. Vejo as coisas de um modo diferente, penso nelas de um modo diferente. Agora, consigo recriar a vida de uma forma que estava escondida de mim. “Um sonho de forma em dias de reflexão 5 ” — quem disse isto? Esqueci; mas é isso que Dorian Gray tem sido para mim. A simples

4 Antínoo (110/112-130) foi um dos amantes adolescentes favoritos do imperador romano Adriano e, à ocasião de sua morte, com apenas 18 anos, decretou-se sua deificação. Como consequência, vários templos e estátuas foram erigidos em sua homenagem. (N. do T.)

5 No original “A dream of form in days of thought”, verso do poema To a Greek Girl, do poeta e ensaísta inglês Austin Dobson (1840-1921). (N. do T.)

OSCAR WILDE 21

presença física desse garoto — pois ele parece pouco mais do que um garoto, apesar de já passar dos vinte anos —, sua mera presença física... ah! Pergunto-me se você conseguirá entender o que tudo isso significa. Inconscientemente, ele define para mim as diretrizes de um novíssimo estilo, um estilo que deverá conter toda a paixão do espírito romântico, toda a perfeição de espírito dos gregos. A harmonia entre alma e corpo — é tudo o que ele representa! Nós, em nossa loucura, separamos ambos e inventamos um realismo vulgar, um idealismo vazio. Harry, se você imaginasse o que Dorian Gray significa para mim! Você se lembra daquela minha paisagem, pela qual Agnew6 ofereceu-me um valor exorbitante, mas da qual não consegui me separar? É um de meus melhores trabalhos. E por quê? Porque, enquanto eu a pintava, Dorian Gray estava sentado ao meu lado. Alguma influência sutil passou dele para mim e, pela primeira vez na minha vida, vi em um simples bosque a fascinação que sempre procurava e deixava escapar.

— Basil, isso é extraordinário! Preciso conhecer Dorian Gray. Hallward levantou-se do banco e começou a vagar pelo jardim. Depois de algum tempo, ele voltou.

— Harry — disse —, para mim, Dorian Gray é tão somente um tema para a arte. Pode ser que ele não signifique nada para você. Eu vejo tudo nele. Ele não deixa de estar presente em minhas obras mesmo quando sua imagem não aparece. Ele é a inspiração, como lhe disse, para um novo estilo. Encontro-o nas curvas de certas linhas, na delicadeza e nas nuances de certas cores. Isso é tudo.

— Então, por que não vai exibir seu retrato? — perguntou Lorde Henry.

— Porque, sem querer, exteriorizei nele parte dessa estranha idolatria artística, sobre a qual, certamente, nunca falei com ele.

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6 Thomas Agnew (1827-1883) foi um importante negociador de arte em Londres no fim do século XIX. (N. do T.)

Ele não sabe absolutamente nada sobre o assunto. Ele nunca poderá saber. Mas o mundo poderia desconfiar e não vou desnudar minha alma diante de seus superficiais olhares intrometidos. Meu coração nunca será colocado sob as lentes de seu microscópio. Há muito de mim nessa coisa, Harry — muito de mim!

— Poetas não têm tantos escrúpulos quanto você. Eles sabem quão útil a paixão é para as publicações. Hoje em dia, um coração ferido rende muitas edições.

— Eu os odeio por isso — exclamou Hallward. — Um artista deveria criar coisas belas, mas sem colocar nada de sua vida nelas. Vivemos em uma época em que os homens tratam a arte como se ela devesse ser uma forma de autobiografia. Perdemos o sentido abstrato da beleza. Algum dia desses, mostrarei ao mundo o que a beleza é; e, por essa razão, o mundo nunca verá meu retrato de Dorian Gray.

— Acredito que esteja errado, Basil, mas não vou discutir com você. Apenas os que se perderam intelectualmente discutem. Mas, diga-me, Dorian Gray gosta muito de você?

O pintor pensou por alguns instantes.

— Ele gosta de mim — respondeu depois de uma pausa —, sei que ele gosta de mim. Claro que eu o enalteço exageradamente. Tenho um estranho prazer em dizer-lhe coisas das quais sei que me arrependerei depois. Via de regra ele é muito encantador comigo, e sentamos no ateliê e conversamos sobre milhares de assuntos. De vez em quando, no entanto, ele se mostra terrivelmente in sensível e parece divertir-se ao magoar-me. Então sinto, Harry, que entreguei toda a minha alma para alguém que a trata como se fosse uma flor para enfeitar o paletó, uma peça de decoração para agradar sua vaidade, um ornamento para um dia de verão.

— Dias de verão, Basil, são propensos a demorar-se — murmurou Lorde Henry. — Talvez você se canse dele antes que ele o faça. É triste pensar que a inteligência dura mais que a beleza,

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apesar de não haver dúvidas quanto a isso. Por isso esforçamo-nos tanto para ter uma educação tão exagerada. Na luta selvagem pela sobrevivência precisamos de algo que dure, então preenchemos nossa mente com bobagens e fatos, na vã esperança de mantermos nosso lugar. O homem minuciosamente bem informado — esse é o ideal moderno. E a mente do homem minuciosamente bem infor mado é algo terrível. Assemelha-se a uma loja de quinquilharias, cheia de monstruosidades e poeira, com tudo avaliado muito além de seu devido valor. De qualquer forma, acho que você se cansará primeiro. Qualquer dia desses, você olhará para seu amigo e ele lhe parecerá um pouco mal desenhado ou você não gostará do seu tom de cor ou algo assim. Intimamente, você se ressentirá dele e pensará que ele se comportou muito mal consigo. Da próxima vez que ele o visitar, você agirá de modo frio e indiferente. O que é uma pena, já que você não será mais o mesmo. O que você me relatou é um belo romance, um romance artístico, pode-se dizer, e o pior de ter um romance de qualquer espécie é que ele acaba nos deixando tão antirromânticos.

— Harry, não fale assim. Enquanto eu viver, a personalidade de Dorian Gray me dominará. Você não pode sentir o que estou sentindo. Você é muito inconstante.

— Ah, meu querido Basil, é justamente por isso que eu posso senti-lo. Aqueles que são fiéis só conhecem o lado trivial do amor; são os infiéis que conhecem as tragédias do amor.

E Lorde Henry acendeu um delicado isqueiro prateado e co meçou a fumar um cigarro com um ar satisfeito, como se tivesse resumido o mundo em uma frase. Ouvia-se o rumor dos pardais piando nas envernizadas folhas verdes da hera, e as sombras azuis das nuvens perseguiam-se pelo gramado como andorinhas. Como estava agradável no jardim! E como as emoções das outras pes soas eram encantadoras! — muito mais que suas ideias, parecia-lhe. Nosso próprio espírito e as paixões dos amigos — essas eram as coisas fascinantes da vida. Vislumbrou com um prazer silencioso

24 O RETRATO DE DORIAN GRAY

o entediante almoço que havia perdido ao ficar até tão tarde com Basil Hallward. Caso tivesse ido para a casa de sua tia, com certeza teria encontrado Lorde Goodbody, e toda a conversação giraria em torno de alimentar os pobres e da necessidade de abrigos-modelo. Cada classe teria apregoado sobre a importância de virtudes cuja prática não era necessária na própria vida. Os ricos falariam do valor da frugalidade, enquanto os ociosos discorreriam sobre a dignidade do trabalho. Era encantador ter escapado de tudo isso! Enquanto pensava na tia, uma ideia pareceu atingir-lhe. Virou-se para Hallward e disse:

— Meu querido amigo, acabo de lembrar-me.

— Lembrou-se do que, Harry?

— De onde ouvi o nome de Dorian Gray.

— Onde foi? — perguntou Hallward franzindo levemente a testa.

— Não pareça tão zangado, Basil. Foi na casa de minha tia, Lady Agatha. Ela me disse que havia descoberto um jovem mara vilhoso, que se dispôs a ajudá-la no East End 7 e que seu nome era Dorian Gray. Devo dizer que ela nunca me contou que ele era bo nito. As mulheres não apreciam a boa aparência; pelo menos, não as boas mulheres. Ela contou-me que ele era muito sério e tinha uma natureza bela. No mesmo instante, imaginei uma criatura de óculos e cabelos escorridos, cheia de sardas, marchando sobre pés imensos. Quem me dera saber que era seu amigo.

— Fico feliz que não tenha sabido, Harry.

— Por quê?

— Não quero que você o conheça.

— Você não quer que eu o conheça?

7 Área limítrofe a leste da cidade de Londres, conhecida no século XIX pela concentração de pobres e imigrantes. (N. do T.)

OSCAR WILDE 25

— Não.

— O sr. Dorian Gray está no ateliê, senhor — disse o mordomo entrando no jardim.

— Você é obrigado a apresentar-me a ele agora — exclamou Lorde Henry e riu.

O pintor virou-se para seu criado, que piscava os olhos sob a luz do sol.

— Peça ao sr. Gray para esperar, Parker, estarei com ele em alguns instantes. — O homem fez uma reverência e subiu pelo corredor.

Então ele olhou para Lorde Henry.

— Dorian Gray é meu amigo mais querido — disse. — Ele tem uma natureza bela e simples. Sua tia estava certa no que lhe contou a seu respeito. Não o estrague. Não tente influenciá-lo. Sua influência seria prejudicial. O mundo é vasto e há muitas pessoas maravilhosas nele. Não tire de mim a única pessoa que proporciona à minha arte seu encanto, qualquer que seja ele. Minha vida en quanto artista depende dele. Lembre-se, Harry, de que confio em você — falou muito vagarosamente, e as palavras pareciam ser arrancadas dele quase contra sua vontade.

— Como você fala tolices! — disse Lorde Henry, sorrindo. To mando Hallward pelo braço, quase o conduziu para dentro da casa.

26 O RETRATO DE DORIAN GRAY
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Ao entrar, viram Dorian Gray. Estava sentado ao piano, com suas costas voltadas para eles, virando as páginas de uma partitura de Cenas da Floresta, de Schumann.

— Você tem de me emprestar essas aqui, Basil — exclamou ele. — Quero aprendê-las. São perfeitamente encantadoras.

— Isso vai depender de como você posar hoje, Dorian.

— Ah, estou cansado de posar e não quero um retrato meu de corpo inteiro — respondeu o rapaz, girando o corpo na banqueta do piano de um jeito petulante e caprichoso. Quando percebeu a presença de Lorde Henry, um leve enrubescimento coloriu seu rosto por um instante e ele levantou-se bruscamente. — Perdão, Basil, mas não sabia que estava acompanhado.

— Este é Lorde Wotton, Dorian, um velho amigo meu de Oxford. Acabava de contar-lhe que você era um excelente modelo e agora você estragou tudo.

— O senhor não estragou meu prazer em conhecê-lo, sr. Gray — disse Lorde Henry, avançando até ele e estendendo-lhe a mão. — Minha tia tem falado muito do senhor. É um de seus favoritos e receio que uma de suas vítimas também.

— Estou na lista negra de Lady Agatha no momento — res pondeu Dorian com um espirituoso ar de penitência. — Prometi acompanhá-la até um clube em Whitechapel 8 na última terça-feira e esqueci-me completamente de meu compromisso. Deveríamos

8 Distrito do East End londrino. (N. do T.)

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2
CAPÍTULO

tocar um dueto juntos — três duetos, penso eu. Não sei o que ela me di rá. Estou amedrontado demais para visitá-la.

— Ah, vou arranjar-lhe a conciliação com minha tia. Ela é muito dedicada ao senhor. E não acredito que sua ausência tenha tido tanta importância. O público provavelmente pensou que era um dueto. Quando tia Agatha senta-se ao piano, ela faz barulho suficiente por duas pessoas.

— Isso é horrível para com ela e não muito gentil para comigo — respondeu Dorian, rindo.

Lorde Henry olhou para ele. Sim, com certeza ele era encanta doramente bonito, com seus lábios escarlate finamente curvados, seus sinceros olhos azuis, seus ondulados cabelos dourados. Havia algo em seu rosto que o tornava prontamente confiável. Toda a can dura da juventude estava ali, assim como sua pureza apaixonada. Sentia-se que ele se mantivera intocado pelo mundo. Não era de se admirar que Basil Hallward o venerasse.

— O senhor é encantador demais para dedicar-se à filantropia, sr. Gray, encantador demais. — E Lorde Henry atirou-se no divã e abriu sua cigarreira.

O pintor mantivera-se ocupado misturando suas tintas e aprontando seus pincéis. Parecia preocupado e, quando ouviu o último comentário de Lorde Henry, olhou para ele, hesitou por um momento e então disse:

— Harry, quero terminar esse quadro hoje. Consideraria rude demais de minha parte se lhe pedisse que fosse embora?

Lorde Henry sorriu e olhou para Dorian Gray.

— Devo ir, sr. Gray? — perguntou.

— Ah, por favor, não vá, Lorde Henry. Já vi que Basil está de mau humor e não consigo suportá-lo quando fica emburrado. Além disso, quero que me explique por que não devo me dedicar à filantropia.

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— Não sei se devo dizer-lhe, sr. Gray. É um assunto tão ente diante que é preciso falar sério ao tratar dele. Mas certamente não vou fugir, agora que me pediu para ficar. Você não se importa, não é, Basil? Você já me disse várias vezes que gosta que seus modelos tenham alguém com quem conversar.

Hallward mordeu o lábio.

— Se Dorian assim deseja, é claro que deve ficar. Os caprichos de Dorian são leis para todo mundo, exceto para si mesmo.

Lorde Henry pegou seu chapéu e suas luvas.

— Você é muito insistente, Basil, mas receio que tenha de ir. Prometi encontrar um homem no Orleans9. Adeus, sr. Gray. Venha ver-me alguma tarde dessas na Rua Curzon. Estou quase sempre em casa às cinco horas. Escreva-me quando pensar em ir. Sentiria muito se não nos encontrássemos.

— Basil — clamou Dorian Gray —, se Lorde Henry Wotton for embora, sairei também. Você nunca abre a boca quando está pintando e é maçante demais ficar em pé sobre uma plataforma tentando parecer agradável. Peça-lhe para ficar. Eu insisto.

— Fique, Harry, para satisfazer Dorian e a mim também — disse Hallward olhando para sua pintura atentamente. — É ver dade, nunca falo enquanto estou trabalhando e tampouco ouço o que me dizem, o que deve ser terrivelmente entediante para meus desafortunados modelos. Imploro que fique.

— Mas e quanto ao meu homem no Orleans?

O pintor riu.

— Não acredito que haverá alguma dificuldade quanto a isso. Sente-se novamente, Harry. E agora, Dorian, suba na plataforma e não se mexa muito nem preste muita atenção ao que Lorde Henry

9

O Orleans Club era um famoso clube de críquete de Londres no final do século XIX. (N. do T.)

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disser. Ele exerce uma péssima influência sobre todos os seus amigos, à exceção de mim.

Dorian Gray subiu no estrado com o ar de um jovem mártir grego e fez uma careta de insatisfação para Lorde Henry, a quem tinha se afeiçoado. Ele era tão diferente de Basil. Eles formavam um contraste encantador. E tinha uma voz tão bonita. Depois de alguns instantes, Dorian disse-lhe:

— O senhor é realmente uma má influência, Lorde Henry? Tão ruim quanto Basil diz?

— Não existe isso de boa influência, sr. Gray. Toda influência é imoral — imoral de um ponto de vista científico.

— Por quê?

— Porque influenciar uma pessoa é oferecer-lhe nossa própria alma. Ela deixa de pensar naturalmente, de arder suas paixões na turais. Suas virtudes não são reais. Seus pecados, se é que pecados existem, são emprestados. Ela torna-se um eco da música de outra pessoa, o ator de um papel que não foi escrito para ela. O objetivo da vida é o autodesenvolvimento. Conscientizar-se de nossa própria natureza com perfeição — é para isso que estamos aqui. As pes soas têm medo delas mesmas hoje em dia. Elas esqueceram-se da maior das obrigações, a que têm consigo. Claro, elas são caridosas. Elas alimentam os famintos e vestem os pedintes. Mas suas almas morrem de fome e estão desnudas. A coragem desapareceu de nossa espécie. Talvez nunca a tenhamos tido. O terror da sociedade, que é a base da moralidade, o temor a Deus, que é o segredo da religião — essas são as duas coisas que nos governam. E mesmo assim...

— Vire a cabeça um pouco mais para a direita, Dorian, como um bom menino — disse o pintor, concentrado em seu trabalho, atento apenas ao fato de que surgira no rosto do rapaz uma ex pressão que nunca estivera ali antes.

— E mesmo assim — continuou Lorde Henry, com sua voz grave e musical e o gracioso acenar da mão que lhe era tão característico,

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desde seus dias em Eton10 — acredito que se um homem vivesse sua vida em toda a sua plenitude, se desse forma a cada senti mento, expressão a cada pensamento, vida a cada sonho, acredito que o mundo ganharia tal ímpeto de alegria que esqueceríamos de todas as aflições do medievalismo e retornaríamos ao ideal helênico — a algo mais refinado, talvez ainda mais rico que o ideal helênico. Mas mesmo o mais corajoso dos homens tem medo de si mesmo. A mutilação do selvagem tem sua trágica sobrevivência na autonegação que arruína nossa vida. Somos punidos por nossas renúncias. Todo impulso que lutamos para reprimir oculta-se em nossa mente e nos envenena. O corpo peca uma vez e elimina seu pecado, já que a ação é uma forma de purificação. Então, nada resta além da lembrança de um prazer ou do luxo de um arrependimento. A única forma de livrar-se de uma tentação é rendendo-se a ela. Resista, e sua alma adoecerá com o desejo pelas coisas que proibiu a si mesmo, com a ânsia pelo que suas monstruosas leis tornaram monstruoso e ilegal. Já foi dito que os grandes eventos do mundo ocorrem no cérebro. É no cérebro, e apenas nele, que os grandes pecados do mundo também ocorrem. O senhor mesmo, sr. Gray, com sua juventude corada e sua meninice rosada, já teve paixões que lhe trouxeram medo, pensamentos que o impregnaram de pavor, devaneios e sonhos que tingiriam seu rosto de vergonha...

— Pare! — deteve-o Dorian Gray. — Pare! O senhor me perturba. Não sei o que dizer. Há alguma resposta a dar-lhe, mas não consigo encontrá-la. Não fale mais nada. Deixe-me pensar. Ou, melhor ainda, deixe-me tentar não pensar.

Por quase dez minutos ele ficou ali, imóvel, com os lábios entreabertos e um estranho brilho nos olhos. Tinha uma vaga consciência de que influências inteiramente novas atuavam em seu

10 Eton College é um internato para rapazes localizado nas proximidades do castelo de Windsor, destinado à educação de filhos de nobres ingleses. Foi fundado por Henrique VI, em 1440, e já formou inúmeros primeiros-ministros britânicos e herdeiros da Coroa. (N. do T.)

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interior. Porém parecia-lhe que, na verdade, elas tinham origem dentro dele mesmo. As poucas palavras que o amigo de Basil lhe dissera — palavras ditas por acaso, sem dúvida, e deliberadamente paradoxais — haviam tocado alguma corda secreta nunca tocada antes, mas que agora ele sentia vibrando e pulsando estranhamente.

A música já o movera assim antes. A música o perturbara inúme ras vezes. Mas a música não era articulada. Não era um novo mundo que ela criava dentro de nós, mas um novo caos. Palavras! Simples palavras! Como eram terríveis! Tão claras, vívidas e cruéis! Não se podia escapar delas. E ainda assim continham uma magia sutil! Pare ciam ser capazes de dar uma forma plástica a coisas sem forma e de ter uma música própria, tão suave quanto a música da viola ou do alaúde. Simples palavras! Havia algo tão verdadeiro quanto as palavras? Sim; houvera coisas em sua meninice que não entendera. Ele as compreendia agora. A vida subitamente adquiriu a cor do fogo para ele. Parecia-lhe que estivera andando sobre brasas. Por que não descobrira isso antes?

Com seu sorriso discreto, Lorde Henry observava-o. Ele sabia o exato instante psicológico quando deveria calar-se. Sentia-se pro fundamente interessado. Estava maravilhado com o súbito efeito que suas palavras haviam produzido e, lembrando-se de um livro que lera quando tinha dezesseis anos, um livro que lhe havia revelado muito do que não sabia antes, ele se perguntou se Dorian Gray não estava passando por uma experiência parecida. Ele apenas lançou uma fle cha para o ar. Teria acertado o alvo? Como era fascinante esse rapaz!

Hallward continuava pintando com aquele seu maravilhoso e ou sado traço, possuidor do verdadeiro refinamento e da perfeita delica deza que, na arte, advêm apenas da força. Ele não reparou no silêncio.

— Basil, estou cansado de ficar em pé — exclamou subita mente Dorian Gray. — Preciso sair e sentar-me no jardim. O ar está sufocante aqui.

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— Meu caro amigo, sinto muitíssimo. Quando estou pintando, não consigo pensar em mais nada. Mas você nunca posou tão bem. Estava perfeitamente imóvel. E captei o efeito que queria — os lábios semicerrados e o brilho nos olhos. Não sei o que Harry estava lhe dizendo, mas ele certamente o fez revelar a mais ma ravilhosa expressão. Imagino que o estivesse elogiando. Você não deve acreditar em uma palavra do que ele diz.

— Ele certamente não me elogiava. Talvez seja por isso que não acredito em nada do que me disse.

— O senhor sabe que acreditou em tudo — disse Lorde Henry, observando-o com seus olhos sonhadores e lânguidos. — Vou acompanhá-lo até o jardim. Está terrivelmente quente no ateliê. Basil, ofereça-nos algo gelado para beber, algo com morangos.

— Certamente, Harry. Toque a sineta e, quando Parker vier, vou pedir-lhe o que você quer. Tenho de trabalhar nesse fundo, então vou juntar-me a vocês mais tarde. Não detenha Dorian por muito tempo. Nunca estive em tão boa forma para pintar quanto hoje. Essa será minha obra-prima. Já é minha obra-prima do jeito que está.

Lorde Henry saiu para o jardim e encontrou Dorian Gray com o rosto enterrado nos grandes e frescos botões de lilás, sorvendo fervorosamente seu perfume como se fosse vinho. Aproximou-se dele e colocou a mão em seu ombro.

— Você está certíssimo em fazer isso — murmurou. — Apenas os sentidos podem curar a alma, assim como apenas a alma pode curar os sentidos.

O rapaz assustou-se e recuou. Estava sem chapéu, e as folhas agitaram seus cachos rebeldes, emaranhando seus fios dourados. Havia um semblante de medo em seus olhos, semelhante ao de pessoas que são subitamente despertas. Suas narinas finamente esculpidas estremeceram, e algum nervo oculto agitou o escarlate de seus lábios deixando-os hesitantes.

OSCAR WILDE 35

— Sim — continuou Lorde Henry —, esse é um dos grandes segredos da vida — curar a alma pelos sentidos e os sentidos pela alma. O senhor é uma criação maravilhosa. Sabe mais do que pensa saber, assim como sabe menos do que deseja saber.

Dorian Gray franziu a testa e virou a cabeça para o outro lado. Ele não conseguia deixar de gostar do jovem alto e agradável que estava ao seu lado. Seu rosto romântico e bronzeado e sua expressão abatida interessavam-lhe. Havia algo em sua voz grave e lânguida que era absolutamente fascinante. Suas mãos frias e pálidas como flores possuíam um estranho encanto. Moviam-se como música enquanto ele falava e pareciam ter uma linguagem própria. Mas Dorian temia-o e envergonhava-se de temê-lo. Por que fora delegada a um estranho a tarefa de revelá-lo a si mesmo? Ele conhecia Basil havia meses, mas sua amizade nunca o havia alterado. E, subita mente, alguém cruzara seu caminho e parecia ter-lhe revelado o mistério da vida. Mesmo assim, o que havia para temer? Ele não era um garotinho de escola ou uma garota. Era ridículo ter medo.

— Vamos nos sentar à sombra — disse Lorde Henry. — Parker trouxe as bebidas e, se o senhor ficar muito tempo mais sob essa luz, ficará arruinado, e Basil nunca o pintará novamente. O senhor não deve arriscar sofrer uma queimadura de sol. Seria inconveniente.

— O que importa? — exclamou Dorian Gray, rindo ao sentar-se no banco no fundo do jardim.

— Deveria ser da máxima importância para o senhor, sr. Gray.

— Por quê?

— Porque o senhor tem a mais magnífica juventude, e a ju ventude é a única coisa que vale a pena ter.

— Não me sinto assim, Lorde Henry.

— Não, o senhor não se sente assim agora. Algum dia, quando estiver velho, enrugado e feio, quando os pensamentos tiverem lhe marcado a fronte com suas linhas e a paixão tiver lhe queimado os lábios com suas horríveis chamas, o senhor sentirá, o senhor sentirá

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terrivelmente. Agora, aonde quer que vá, o senhor encanta o mundo. Será sempre assim?... O senhor tem um rosto extraordinariamente bonito, sr. Gray. Não franza a testa. É verdade. E a beleza é uma forma de genialidade — é ainda mais elevada que a genialidade, efetivamente, já que não precisa de explicações. É uma das grandes verdades universais, como a luz do sol, a primavera ou o reflexo em águas escuras dessa concha prateada que chamamos de lua. Ela não pode ser questionada. Ela tem seu direito divino de soberania. Torna príncipes aqueles que a têm. Você sorri? Ah! Quando você a perder, não sorrirá... As pessoas dizem às vezes que a beleza é apenas superficial. Pode ser, mas pelo menos não é tão superfi cial quanto o pensamento. Para mim, a beleza é a maravilha das maravilhas. Apenas as pessoas superficiais não julgam com base em aparências. O verdadeiro mistério do universo é o visível e não o invisível... Sim, sr. Gray, os deuses foram bons com o senhor.

Mas o que os deuses oferecem logo tomam de volta. O senhor tem apenas alguns anos para viver de verdade, perfeita e plenamente. Quando sua juventude se for, sua beleza irá com ela e, então, o senhor subitamente descobrirá que não lhe sobraram vitórias e terá de se contentar com os poucos triunfos, que as memórias do passado tornarão mais amargos que as derrotas. A cada mês, o declínio de sua beleza aproxima-o mais e mais de algo pavoroso. O tempo tem ciúme do senhor e luta contra seus lírios e suas rosas. O senhor se tornará amarelado, seu rosto definhará e seus olhos ficarão opacos. O senhor sofrerá terrivelmente... Ah! Dê valor à sua juventude enquanto a tem. Não desperdice seus anos dourados dan do ouvidos aos tediosos, tentando corrigir falhas irremediáveis ou confiando sua vida aos ignorantes, ordinários e vulgares. São esses os objetivos doentios, os falsos ideais da nossa época. Viva! Viva a maravilhosa vida que há em si! Não deixe que nada se perca em sua existência. Esteja sempre à procura de novas sensações. Não tema nada... Um novo hedonismo — é disso que nosso século precisa. O senhor poderia ser seu símbolo visível. Com sua personalidade,

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não há nada que não possa fazer. O mundo pertence-lhe por uma razão... No momento em que o conheci, vi que o senhor não tinha consciência do que é realmente, do que pode vir a ser. Tantas coisas no senhor me encantaram que me senti obrigado a dizer-lhe algo a respeito de si mesmo. Pensei em quão trágico seria se desperdiças se sua vida. Pois sua juventude vai durar tão pouco — tão pouco tempo. As flores das montanhas murcham, mas voltam a florescer. Em junho do ano que vem, a cássia-imperial estará tão amarela quanto agora. Em um mês, estrelas tingidas de púrpura surgirão nas clematis e, ano após ano, a noite verde de suas folhas ostentará suas estrelas arroxeadas. O pulsar da alegria que bate em nosso interior aos vinte anos torna-se vagaroso. Nossos membros falham, nossos sentidos apodrecem. Tornamo-nos fantoches horrendos, assombrados pela memória das paixões que tanto tememos e das ex traordinárias tentações às quais não cedemos por falta de coragem. Juventude! Juventude! Não há nada no mundo além da juventude! Dorian Gray ouvia, surpreso e deslumbrado. O ramo de lilás caiu de sua mão sobre o cascalho. Uma vespa aproximou-se e zuniu em volta dele por uns instantes. Em seguida, começou a voejar por todo o globo estrelado de minúsculos botões. Ele observava-a com aquele estranho interesse por coisas triviais que tentamos criar quando algo de maior importância nos amedronta, quando somos provocados por alguma emoção nova, para a qual não encontramos expressão, ou quando algum pensamento que nos aterroriza subi tamente aloja-se em nosso cérebro e nos impele a ceder. Depois de um tempo, a vespa voou para longe. Ele viu-a rastejar para dentro do pistilo colorido de uma glória-da-manhã11 . A flor pareceu tremer e depois balançou suavemente de um lado para outro.

11 As glórias-da-manhã são parentes próximas das damas-da-noite, abrindo-se para ser polinizadas pela manhã. São subdivididas em diferentes gêneros botânicos, incluindo o convolvulus, correspondente ao original Tyrian convolvulus. (N. do T.)

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De repente, o pintor apareceu à porta do ateliê e sinalizou-lhes para que entrassem. Eles voltaram-se um para o outro e sorriram.

— Estou esperando — clamou ele. — Entrem. A luz está per feita e vocês podem trazer suas bebidas.

Eles levantaram-se e desceram juntos pelo passeio. Duas bor boletas verdes e brancas voaram atrás deles e, na pereira, em um canto do jardim, um melro começou a cantar.

— O senhor está feliz de ter me conhecido, sr. Gray — disse Lorde Henry olhando para ele.

— Sim, estou feliz agora. Pergunto-me se continuarei sem pre feliz.

— Sempre! Essa é uma palavra pavorosa. Ela me dá calafrios quando a ouço. As mulheres adoram usá-la. Elas estragam todo e qualquer romance ao tentar fazê-lo durar para sempre. Além disso, é uma palavra sem sentido. A única diferença entre um capricho e uma paixão eterna é que o capricho dura um pouco mais.

Quando entraram no ateliê, Dorian Gray colocou sua mão no braço de Lorde Henry.

— Nesse caso, que nossa amizade seja um capricho — murmu rou ele, corando ante a própria ousadia; subiu, então, na plataforma e retomou sua pose.

Lorde Henry atirou-se em uma grande poltrona de vime e observou-o. O ir e vir do pincel sobre a tela era o único som que rompia o silêncio, exceto quando, vez ou outra, Hallward recuava para olhar sua obra a distância. Nos raios de luz que penetravam de soslaio pela entrada aberta, uma poeira dourada dançava. O forte odor de rosas parecia permear tudo.

Depois de aproximadamente quinze minutos, Hallward parou de pintar, olhou por um longo tempo para Dorian Gray e, então, por mais um bom tempo para a pintura, mordendo a ponta de um de seus enormes pincéis e franzindo a testa.

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— Está terminado — exclamou finalmente e, inclinando-se, assinou seu nome com letras alongadas e vermelhas no canto esquerdo da tela.

Lorde Henry aproximou-se e examinou a pintura. Era certa mente uma maravilhosa obra de arte e também de uma semelhança assombrosa.

— Meu querido amigo, parabenizo-o com toda a sinceridade — disse ele. — É o retrato mais refinado dos tempos modernos. Sr. Gray, venha olhar para sua imagem.

O rapaz teve um sobressalto, como se tivesse despertado de algum sonho.

— Está realmente pronto? — murmurou ele descendo da plataforma.

— Totalmente pronto — disse o pintor. — E você posou es plendidamente hoje. Sou-lhe muitíssimo grato.

— Graças inteiramente a mim — interrompeu Lorde Henry. — Não é, sr. Gray?

Dorian não respondeu, passando indiferente em frente a seu quadro e virando-se para ele. Recuou assim que o viu, e seu rosto enrubesceu de prazer por um instante. Uma expressão de alegria surgiu em seus olhos, como se ele tivesse se reconhecido pela pri meira vez. Ali permaneceu, imóvel e maravilhado, vagamente consciente de que Hallward estava falando com ele, sem no entan to captar o sentido de suas palavras. O significado de sua beleza surgiu-lhe como uma revelação. Nunca se sentira daquela forma antes. Os elogios de Basil Hallward pareciam-lhe apenas exageros encantadores de sua amizade. Ele ouvia-os, ria deles e esquecia-os. Eles nunca influenciaram sua natureza. Então, surgiu Lorde Henry Wotton, com sua estranha apologia à juventude e sua terrível ad vertência quanto à sua brevidade. Isso o perturbara no momento e agora, ao olhar para a sombra do próprio encanto, toda a realidade da descrição desvendava-se diante dele. Sim, haveria um dia em

40 O RETRATO DE DORIAN GRAY

que seu rosto ficaria enrugado e murcho, seus olhos opacos e sem cor, a graça de sua aparência rompida e deformada. O escarlate desapareceria de seus lábios, e o dourado sumiria de seus cabelos. A vida que deveria formar sua alma arruinaria seu corpo. Ele se tornaria horroroso, abjeto e grosseiro.

Ao pensar nisso, uma pontada intensa de dor atravessou-o como um punhal, estremecendo cada delicada fibra em seu ser. Seus olhos escureceram como ametistas e deles surgiu uma névoa de lágrimas. Sentiu como se uma mão gélida tivesse pousado sobre seu coração.

— Não gostou do quadro? — falou finalmente Hallward, um pouco irritado pelo silêncio do rapaz, sem entender o que ele significava.

— Certamente que ele gostou — disse Lorde Henry. — Quem não gostaria? É uma das melhores obras da arte moderna. Ofereço-lhe o que quiser pedir por ele. Preciso tê-lo.

— Ele não é minha propriedade, Harry.

— É propriedade de quem?

— De Dorian, claro — respondeu o pintor.

— Ele é um sujeito de muita sorte.

— Que tristeza! — murmurou Dorian Gray com os olhos fi xos no próprio retrato. — Que tristeza! Eu ficarei velho, horrível e pavoroso. Mas esse quadro continuará sempre jovem. Ele nunca envelhecerá além deste exato dia de junho... Se ao menos fosse o contrário! Se fosse eu a ficar sempre jovem e o quadro a envelhecer! Por isso... por isso... eu daria qualquer coisa! Sim, não há nada neste mundo que eu não daria! Daria minha alma por isso!

— Você dificilmente gostaria de tal acordo, Basil — exclamou Lorde Henry, rindo. — Seria uma tremenda falta de sorte para sua obra.

— Eu me oporia firmemente, Harry — disse Hallward.

Dorian Gray virou-se e olhou para ele.

OSCAR WILDE 41

— Acredito que sim, Basil. Você gosta mais de sua arte que de seus amigos. Não sou para você nada além de uma figura de bronze patinado. Nem mesmo isso, ouso dizer.

O pintor olhou para ele, surpreso. Era tão incomum Dorian falar dessa forma. O que teria acontecido? Ele parecia tão zangado. Seu rosto enrubescera e suas bochechas ardiam.

— Sim — continuou ele —, para você, valho menos que seu Hermes de marfim ou seu fauno de prata. Você sempre gostará deles. Por quanto tempo gostará de mim? Até que surja minha primeira ruga, eu suponho. Agora eu sei que, quando alguém perde sua boa aparência, quem quer que seja, perde tudo. Seu quadro ensinou-me isso. Lorde Henry Wotton está absolutamente certo. A juventude é a única coisa que vale a pena ter. Quando perceber que estou envelhecendo, devo me matar.

Hallward ficou pálido e tomou sua mão.

— Dorian! Dorian! — clamou ele. — Não fale assim. Nunca tive um amigo como você e nunca terei outro igual. Você não tem ciúme de coisas materiais, tem? Logo você, que é mais atraente que qualquer uma delas.

— Tenho ciúme de qualquer coisa cuja beleza não expire. Tenho ciúme do retrato que pintou de mim. Por que pode ele manter o que devo perder? Cada momento que passa tira algo de mim e dá-lhe algo em troca. Ah, se fosse o contrário! Se o quadro pudesse mudar e eu continuar para sempre como estou agora! Por que você o pintou? Um dia, ele zombará de mim! Zombará horrivelmente de mim! — As lágrimas quentes jorravam de seus olhos; ele afastou sua mão e, lançando-se sobre o divã, enterrou o rosto nas almofadas, como se estivesse rezando.

— Isso é culpa sua, Harry — disse o pintor, com amargura.

Lorde Henry encolheu os ombros.

— Esse é o verdadeiro Dorian Gray, isso é tudo.

42 O RETRATO DE DORIAN GRAY

— Não é.

— Se não é, o que tenho eu a ver com isso?

— Você deveria ter ido embora quando lhe pedi — murmurou ele.

— O que fiz foi ficar quando me pediu — foi a resposta de Lorde Henry.

— Harry, não posso brigar com meus dois melhores amigos ao mesmo tempo, mas vocês dois fizeram-me odiar a melhor obra que já fiz e vou destruí-la. O que ela é além de tela e tintas? Não vou deixar que ela se interponha em nossas vidas e as destrua.

Dorian Gray levantou sua cabeça dourada da almofada e, com o rosto pálido e os olhos manchados pelas lágrimas, olhou para Hallward enquanto ele se dirigia à mesa de pintura de pinho sob a janela acortinada. O que ele fazia ali? Seus dedos tateavam o amontoado de tubos de tinta e pincéis ressecados procurando algo. Sim, a longa espátula de pintura, com sua fina lâmina de aço flexível. Encontrara-a, afinal. Ele iria rasgar a tela.

Com um soluço abafado, Dorian saltou do sofá e, correndo para Hallward, arrancou a espátula de sua mão, lançando-a para o fundo do ateliê.

— Não faça isso, Basil, não! — gritou ele. — Seria um assassinato!

— Fico feliz que finalmente aprecie minha obra, Dorian — disse o pintor friamente ao recobrar-se do susto. — Nunca pensei que o fizesse.

— Apreciá-la? Estou apaixonado por ela, Basil. Sinto que é parte de mim.

— Bom, assim que você secar, será envernizado, emoldurado e enviado para sua casa. Então, poderá fazer o que quiser consigo mesmo. — Atravessou a sala e tocou a sineta para o chá. — Você certamente ficará para o chá, não é, Dorian? E você também, Harry? Ou vocês são contra prazeres tão simples?

OSCAR WILDE 43

— Adoro os prazeres simples — disse Lorde Henry. — Eles são o último refúgio das complicações. Mas não gosto de cenas, a não ser no palco. Que sujeitos ridículos são vocês dois! Pergunto-me quem definiu o homem como um animal racional. Foi a definição mais precoce já dada. O homem é muita coisa, mas não é racional. Fico feliz que não seja, afinal — apesar de preferir que vocês não briguem por causa do quadro. Seria melhor que você o desse para mim, Basil. Esse garoto tolo não o quer realmente, mas eu, sim.

— Se você o oferecer para qualquer outra pessoa além de mim, Basil, eu nunca o perdoarei! — gritou Dorian Gray. — E não permito que ninguém me chame de garoto tolo.

— Você sabe que o quadro é seu, Dorian. Já o era antes de existir.

— O senhor sabe que foi um pouco tolo, sr. Gray, e não se opõe realmente a ser lembrado de que é extremamente jovem.

— Teria me oposto fortemente nesta manhã, Lorde Henry.

— Ah! Nesta manhã! O senhor começou a viver desde então.

Ouviram uma batida à porta, e o mordomo entrou com a bandeja do chá, pousando-a em uma mesinha japonesa. Houve um tilintar de xícaras e pires e o assobio de um samovar 12 georgiano decorado. Um pajem trouxe dois pratos de porcelana de formato esférico. Dorian Gray aproximou-se e serviu o chá. Os dois homens dirigiram-se lentamente até a mesa e examinaram o que havia sob as tampas.

— Vamos ao teatro hoje à noite — disse Lorde Henry. — Deve haver algo em cartaz em algum lugar. Prometi jantar no White’s 13 , mas, como iria apenas com um velho amigo, posso enviar-lhe um telegrama dizendo que estou doente ou que não posso ir por causa

12 Samovar é um utensílio de origem russa utilizado para aquecer água e servir chá. Atualmente é bastante usado em bufês e hotéis. (N. do T.)

13 White’s é um clube de cavalheiros localizado em St. James, distrito central de Londres. Foi fundado em 1693. (N. do T.)

44 O RETRATO DE DORIAN GRAY

de um compromisso posterior. Acredito que essa seria uma boa desculpa, teria toda a comoção da honestidade.

— É tão entediante ter de vestir roupas formais — murmurou Hallward. — E, depois de tê-las vestido, elas são tão horrendas.

— Sim — respondeu Lorde Henry, com um ar sonhador — a indumentária do século XIX é detestável. Tão sombria, tão deprimente. O pecado é o único elemento colorido que ainda resta na vida moderna.

— Você realmente não deveria dizer coisas como essa na frente de Dorian, Harry.

— Na frente de qual Dorian? O que está nos servindo o chá ou aquele no quadro?

— De nenhum dos dois.

— Eu gostaria de ir ao teatro com o senhor, Lorde Henry — disse o rapaz.

— Então deve vir; e você virá também, Basil, não é?

— Não posso, na verdade. Iria com prazer. Mas tenho muito trabalho a fazer.

— Bom, então o senhor e eu iremos sozinhos, sr. Gray.

— Gostaria imensamente.

O pintor mordeu o lábio e caminhou, com a xícara na mão, até o quadro.

— Ficarei com o Dorian verdadeiro — disse ele tristemente.

— É esse o Dorian verdadeiro? — exclamou o original do retrato, aproximando-se dele. — Sou realmente assim?

— Sim, você é exatamente assim.

— Que maravilha, Basil!

— Pelo menos vocês são semelhantes na aparência. Mas ele nunca vai mudar — suspirou Hallward. — Já é alguma coisa.

OSCAR WILDE 45

— Quanto estardalhaço as pessoas fazem por causa da fideli dade — exclamou Lorde Henry. — Ora, até mesmo no amor é uma mera questão de fisiologia. Não tem nenhuma relação com nossa vontade. Os jovens rapazes querem ser fiéis e não o são; os velhos querem ser infiéis e não conseguem; isso é tudo que se pode dizer.

— Não vá para o teatro hoje à noite, Dorian — disse Hallward. — Venha jantar comigo.

— Não posso, Basil.

— Por quê?

— Porque prometi a Lorde Henry Wotton que iria com ele.

— Ele não gostará mais de você por manter suas promessas. Ele sempre quebra as dele. Imploro que não vá.

Dorian Gray riu e balançou a cabeça.

— Suplico-lhe.

O rapaz hesitou e olhou para Lorde Henry, que os observava da mesa do chá com um sorriso divertido.

— Tenho de ir, Basil — respondeu ele.

— Muito bem — disse Hallward, dirigindo-se à bandeja para pousar sua xícara. — Já está ficando tarde e, como vocês têm de se vestir, é melhor que não percam tempo. Adeus, Harry. Adeus, Dorian. Venham ver-me em breve. Venham amanhã.

— Certamente.

— Não vão esquecer?

— Claro que não — exclamou Dorian.

— E... Harry!

— Sim, Basil?

— Lembre-se do que lhe pedi, quando estávamos no jardim hoje de manhã.

— Já me esqueci.

— Confio em você.

46 O RETRATO DE DORIAN GRAY

— Gostaria de confiar em mim mesmo — disse Lorde Hen ry, rindo. — Venha, sr. Gray, minha carruagem está lá fora e posso deixá-lo em sua casa. Adeus, Basil. Foi uma tarde muitís simo interessante.

Assim que a porta se fechou atrás deles, o pintor lançou-se no sofá e um olhar de dor surgiu em seu rosto.

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As doze e trinta do dia seguinte, Lorde Henry Wotton ca minhou da Rua Curzon até o Albany 14 para visitar seu tio, Lorde Fermor, um velho solteirão, amável, porém um tanto quanto bruto, a quem o mundo exterior chamaria de egoísta por não conseguir tirar nenhuma vantagem dele, mas que era considerado generoso pela alta sociedade, já que alimentava as pessoas que o divertissem. Seu pai tinha sido nosso embaixador em Madri quando Isabel era jovem e Prim nem sequer existia15 , mas havia se retirado do ser viço diplomático em um voluntarioso instante de aborrecimento por não ter sido indicado para a Embaixada de Paris, posto que ele considerava um direito inalienável seu, devido a seu berço, sua in dolência, o inglês perfeito de seus relatórios e sua paixão excessiva pelo prazer. O filho, que tinha sido o assistente do pai, demitira-se juntamente com seu chefe, atitude considerada levemente tola à época e, conseguindo alguns meses depois o título de lorde, dedi cara-se ao sério estudo da grande arte aristocrática de não fazer absolutamente nada. Ele tinha duas residências enormes na cida de, mas preferia morar em aposentos alugados, já que era menos trabalhoso, e ele fazia a maior parte de suas refeições em seu clube. Dedicava parte de sua atenção à gestão de suas minas de carvão nos condados do centro do país, defendendo essa indústria degenerada sob a alegação de que a única vantagem de ter carvão era permitir

14 The Albany, ou simplesmente Albany, é um antigo palácio setecentista de Londres. Foi convertido, no início do século XIX, em um complexo de apartamentos. (N. do T.)

15 Isabel e Prim são, respectivamente, Isabel II, rainha da Espanha, e Juan Prim, marquês e político espanhol, líder da Revolução Gloriosa (1868), que levou à deposição da rainha. (N. do T.)

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3
CAPÍTULO

a um cavalheiro a decência de queimar lenha na própria lareira. Na política era conservador, exceto quando os conservadores estavam no poder, período em que os agredia por serem um bando de radi cais. Era um herói para seu pajem, que o intimidava, e um terror para a maioria de seus parentes, a quem ele intimidava, por sua vez. Apenas a Inglaterra poderia ter produzido alguém como ele, e ele sempre dizia que o país estava indo para a ruína. Seus princípios eram antiquados e havia muito a se dizer sobre seus preconceitos. Quando Lorde Henry entrou na sala, encontrou seu tio sen tado vestindo um felpudo casaco militar, fumando um charuto e resmungando sobre o The Times.

— Bom, Harry —, o que o traz aqui tão cedo? Achava que ja notas como você não se levantassem antes das duas e não fossem vistos antes das cinco.

— Pura afeição familiar, asseguro-lhe, tio George. Quero pedir-lhe algo.

— Dinheiro, suponho — disse Lorde Fermor torcendo o nariz. — Bom, sente-se e conte-me tudo. Os jovens de hoje em dia acham que dinheiro é tudo.

— Sim — murmurou Lorde Henry endireitando a lapela do casaco — e quando crescem têm certeza. Mas não quero dinheiro. Apenas as pessoas que pagam suas contas precisam de dinheiro, tio George, e eu nunca pago as minhas. O crédito é o capital do filho caçula e vive-se encantadoramente à custa dele. Além disso, só tenho negócios com os lojistas de Dartmoor e, consequentemente, eles nunca me incomodam. O que preciso é de informações; mas nada útil, claro; apenas informações inúteis.

— Bom, posso dizer-lhe qualquer coisa que se encontra em uma enciclopédia inglesa, Harry, apesar de esses camaradas escreverem muita bobagem ultimamente. Quando estava na diplomacia, tudo era muito melhor. Mas ouvi dizer que agora nos contratam por meio de uma prova. O que se pode esperar? Avaliações, meu caro, são um dis

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parate do começo ao fim. Se um homem é um cavalheiro, ele sabe o su ficiente e, se não é um cavalheiro, tudo que souber lhe será prejudicial.

— O sr. Dorian Gray não se encontra nas enciclopédias, tio George — disse Lorde Henry lentamente.

— Sr. Dorian Gray? Quem é ele? — perguntou Lorde Fermor franzindo suas volumosas sobrancelhas brancas.

— É isso que vim descobrir, tio George. De certa forma, sei quem ele é. É neto do último Lorde Kelso. Sua mãe chamava-se Devereux, Lady Margaret Devereux. Quero que me diga algo a respeito da mãe dele. Como era ela? Com quem se casou? Você conhecia quase todo mundo quando era jovem, deve tê-la conhecido. Estou muitís simo interessado no sr. Gray ultimamente. Acabei de conhecê-lo.

— Neto de Kelso! — repetiu o velho cavalheiro. — Neto de Kelso!... Claro... Conhecia sua mãe intimamente. Acredito que es tive em seu batizado. Ela era uma garota extremamente bonita, Margaret Devereux, e todos os homens ficaram alucinados quando ela fugiu com um jovem sujeito sem nenhum tostão no bolso — um pé-rapado, meu caro, um subalterno de um regimento de infantaria ou algo do tipo. Certamente, recordo-me de toda a história como se tivesse acontecido ontem. O pobre rapaz foi morto em um duelo em Spa16 , poucos meses depois do casamento. Há algo sórdido atrelado ao fato. Dizia-se que Kelso contratou um aventureiro miserável, algum belga ignorante, para insultar o próprio genro em público — pagou-lhe para fazê-lo, meu caro, pagou-lhe — e o tal sujeito trespassou o coitado como se fosse um pombo. Tudo foi silenciado, mas — meu Deus! — durante um bom tempo Kelso fez suas refeições sozinho no clube. Disseram-me que ele trouxe sua filha de volta, mas ela nunca lhe dirigiu a palavra novamente. Ah, sim, foi um mau negócio. A garota morreu também, em menos de um ano. Então ela

16 Cidade da Bélgica. (N. do T.)

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deixou um filho, não foi? Havia-me esquecido disso. Que espécie de garoto é ele? Se ele é parecido com a mãe, deve ser um belo sujeito.

— Ele é muito bonito — admitiu Lorde Henry.

— Espero que ele consiga uma boa herança — continuou o velho. — Ele devia ter uma boa quantia de dinheiro à sua espera se Kelso foi justo com ele. Sua mãe tinha dinheiro também. As propriedades de Selby 17 foram para ela, por intermédio do avô. Seu avô odiava Kelso, considerava-o um cão mesquinho. Assim como ele também era. Veio uma vez para Madri quando eu estava lá. Meu Deus, como me envergonhou. A rainha costumava perguntar-me a respeito do nobre inglês que estava sempre discutindo os preços das corridas com os cocheiros. Não se falava de outra coisa. Não ousei pôr meus pés na corte por um mês. Espero que ele tenha tratado seu neto melhor do que tratava os cocheiros.

— Não sei — respondeu Lorde Henry. — Acredito que o garoto está bem de vida. Ainda não atingiu a maioridade. Sei que Selby é dele. Ele mesmo me disse. E... sua mãe era realmente muito bonita?

— Margaret Devereux era uma das criaturas mais adoráveis que já vi, Harry. O que a levou a comportar-se daquela forma, nunca pude entender. Ela poderia ter se casado com qualquer um que escolhesse. Carlington era louco por ela. Contudo, ela era muito romântica. Todas as mulheres daquela família eram. Os homens não valiam nada, mas, meu Deus, as mulheres eram maravilhosas. Carlington ajoelhava-se a seus pés. Ela mesma confessou-me. Ela riu-se dele e, à época, não havia uma garota em Londres que não corria atrás dele. Aliás, Harry, falando em casamentos absurdos, que bobagem é essa que seu pai me contou sobre Dartmoor querer se casar com uma americana? As garotas inglesas não são boas o bastante para ele?

— Está na moda casar-se com americanas agora, tio George.

17 Cidade localizada no centro-norte da Inglaterra. (N. do T.)

52 O RETRATO DE DORIAN GRAY

— Prefiro as mulheres inglesas a qualquer outra no mundo, Harry — disse Lorde Fermor, batendo com o punho na mesa.

— Todos apostam nas americanas.

— Mas disseram-me que elas não duram muito — murmurou seu tio.

— Longos noivados esgotam-nas, mas são excelentes nas corridas com obstáculos. Elas captam as coisas no ar. Não acredito que Dartmoor tenha chance.

— A que família ela pertence? — resmungou o velho. — Ela tem alguma?

Lorde Henry balançou a cabeça.

— As garotas americanas são tão boas em esconder seus pa rentes quanto as mulheres inglesas são boas em esconder seu passado — disse ele levantando-se para sair.

— São comerciantes de carne de porco, suponho.

— Espero que sim, tio George, pelo bem de Dartmoor. Ouvi dizer que o comércio de carne de porco é a profissão mais lucrativa na América, depois da política.

— Ela é bonita?

— Ela age como se fosse. Como a maioria das americanas. Esse é o segredo de seu encanto.

— Por que essas mulheres americanas não podem ficar em seu país? Estão sempre nos dizendo que lá é o paraíso para as mulheres.

— E não deixa de ser. É por essa razão que, assim como Eva, elas têm tanta vontade de sair de lá — disse Lorde Henry. — Adeus, tio George. Vou me atrasar para o almoço se passar mais tempo aqui. Obrigado por me fornecer a informação que eu queria. Sempre quero saber tudo sobre meus novos amigos e nada sobre os antigos.

— Onde irá almoçar, Harry?

OSCAR WILDE 53

— Na casa de tia Agatha. Tomei a liberdade de convidar o sr. Gray e a mim mesmo. Ele é seu mais novo protégé 18 .

— Uff! Diga à sua tia Agatha, Harry, para não me incomodar mais com seus pedidos de caridade. Estou farto deles. Ora, a boa mulher pensa que não tenho mais nada a fazer além de escrever cheques para seus modismos tolos.

— Certamente, tio George, vou dizer-lhe, mas não surtirá efeito algum. As pessoas dedicadas à filantropia perdem todo o senso de humanidade. É o que as diferencia dos outros.

O velho cavalheiro rosnou em aprovação e tocou a sineta para chamar seu criado. Lorde Henry passou pela galeria da Rua Burlington e seguiu em direção à Berkeley Square 19 .

Então era essa a história da família de Dorian Gray. Mesmo da forma grosseira como lhe foi contada, sentiu-se comovido por seu vislumbre de romance inusitado, quase moderno. Uma bela mulher arriscando tudo por uma paixão insana. Algumas semanas selva gens de felicidade interrompidas por um crime sórdido e traiçoeiro. Meses de uma agonia silenciosa e, então, uma criança oriunda da dor. A mãe arrebatada pela morte, o garoto abandonado à solidão e à tirania de um velho incapaz de amar. Sim! Era um pano de fundo interessante. De certa forma, definia o garoto, tornava-o mais in teressante. Por trás de tudo que existia de extraordinário, sempre havia algo trágico. Mundos têm um trabalho hercúleo para que a mais humilde flor possa florescer... Como ele estava encantador no jantar da noite anterior quando se sentou à sua frente no clube com seus olhos assustados e lábios entreabertos de prazer e medo; e a luz vermelha dos castiçais dava um rosa mais vivo ao desper tar da inquietação no seu rosto. Falar com ele era como tocar um refinado violino. Ele respondia a cada toque e vibração do arco...

18 Literalmente, “protegido” em francês. Também pode ser entendido como “favorito”. (N. do T.)

19 Jardim público em Westminster, na região central de Londres. (N. do T.)

54 O RETRATO DE DORIAN GRAY

Havia algo terrivelmente cativante no exercício da influência. Nenhuma outra atividade se igualava a ela. Difundir a própria alma em alguém de aparência agradável, deixando-a permanecer ali por um momento; ouvir seus pontos de vista ecoarem no outro, complementados pela música da paixão e da juventude; transmitir seu temperamento a outra pessoa como se fosse um fluido sutil ou um estranho perfume; havia verdadeira alegria nisso — talvez a alegria mais satisfatória que nos restara em uma época tão limitada e vulgar quanto a atual, uma época grosseiramente carnal em seus prazeres e grosseiramente ordinária em seus objetivos... Também era um tipo maravilhoso esse rapaz, que por um acaso tão singular ele conhecera no ateliê de Basil ou, de qualquer forma, poderia ser transformado em um tipo maravilhoso. Ele possuía a graça, a pureza casta da meninice e a beleza comparável àquela eternizada pelas velhas esculturas gregas. Não havia nada que não se pudesse fazer com ele. Poderia tornar-se um Titã 20 ou um brinquedo. Que lástima que tanta beleza esteja destinada a desaparecer!... E Basil? De um ponto de vista psicológico, como ele se mostrara interessante! Uma nova forma de arte e uma maneira inédita de se contemplar a vida, sugeridas tão estranhamente pela mera presença física de alguém que nem sequer tinha consciência de tudo isso. O espírito silencioso que habitava um bosque sombrio e caminhava invisível em campo aberto revelava-se subitamente como uma Dríade 21 destemida, porque, na alma dele, os que a procuravam ali eram quem despertara aquela maravilhosa visão e a quem unicamente seriam reveladas coisas deslumbrantes; as meras formas e mode los tornariam-se, por assim dizer, refinados e com algum valor simbólico, como se eles mesmos fossem padrões de outra forma

20 Na mitologia grega, os Titãs eram os deuses pré-olímpicos, filhos do Céu (Urano) e da Terra (Gaia). (N. do T.)

21 Na mitologia grega, as Dríades são, em um sentido mais amplo, as ninfas que vivem nas florestas. (N. do T.)

OSCAR WILDE 55

ainda mais perfeita, de cuja sombra seriam criados; que estranho era tudo isso! Ele lembrava-se de algo assim na história. Não fora Platão, aquele artista do pensamento, quem primeiro o analisara? Não fora Buonarotti 22 que o esculpira nos mármores coloridos como uma sequência de sonetos? Mas, no nosso próprio século, era estranho... Sim; ele tentaria ser para Dorian Gray o que, sem saber, o rapaz fora para o pintor que executara seu maravilhoso retrato. Ele tentaria dominá-lo — já o tinha feito, na verdade, mesmo que pela metade. Ele tornaria aquele maravilhoso espírito propriedade sua. Havia algo fascinante nesse filho do amor e da morte.

Subitamente, ele parou e olhou para as casas à sua volta. Perce beu que havia passado pela casa de sua tia fazia algum tempo e, sor rindo para si mesmo, voltou atrás. Quando entrou no saguão escuro, o mordomo disse-lhe que já haviam começado a almoçar. Entregou a um dos criados o chapéu e a bengala e passou à sala de jantar.

— Atrasado como sempre, Harry — exclamou sua tia balan çando a cabeça.

Ele inventou uma desculpa esfarrapada e, ao tomar o assento vazio ao lado da tia, olhou em volta para ver quem estava presente. Dorian curvou-se timidamente para ele do fundo da mesa, ficando ruborizado de prazer. À sua frente estava a Duquesa de Harley, uma dama de índole e humor admiráveis, apreciada por todos que a conheciam e com proporções estruturais abundantes, o que, em mulheres que não são duquesas, seria descrito por historiadores contemporâneos como corpulência. Ao lado dela, à sua direita, Sir Thomas Burdon, um membro do Partido Radical no Parlamento, que seguia seu líder na vida pública e, na vida privada, acompanhava os melhores cozinheiros, jantando com conservadores e refletindo com os liberais, em conformidade com uma sábia e muito conhecida

22 Michelangelo Buonarroti (1475—1564), o artista italiano que ficou conhecido por seu primeiro nome, Michelangelo. (N. do T.)

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regra. O assento à sua esquerda fora ocupado pelo sr. Erskine de Treadley, um velho cavalheiro de considerável charme e cultura, que, no entanto, havia sucumbido aos maus hábitos do silêncio, pois, como explicara certa vez a Lady Agatha, dissera tudo que tinha a dizer antes dos trinta anos. Do seu lado, por sua vez, estava a sra. Vandeleur, uma das amigas mais antigas de sua tia, uma perfeita santa entre as mulheres, mas tão pavorosamente desleixada que lhe parecia um daqueles livros de cânticos mal encadernados. Felizmente para ele, do outro lado dela encontrava-se Lorde Faudel, uma inteligentíssima mediocridade de meia-idade, com a cabeleira tão vazia quanto um pronunciamento ministerial na Câmara dos Comuns23 , com quem ela conversava daquela maneira tão séria que é o único erro imperdoá vel — como ele próprio já notara antes — em que todas as pessoas genuinamente boas caem e que nenhuma delas consegue evitar.

— Estamos falando do pobre Dartmoor, Lorde Henry — gritou a duquesa acenando-lhe alegremente com a cabeça do outro lado da mesa. — Você acredita que ele realmente se casará com aquela fascinante jovem?

— Acredito que ela tenha decidido pedir a mão dele, duquesa.

— Que horrível! — exclamou Lady Agatha. — Realmente, alguém deveria interferir.

— Ouvi dizer, por fontes fidedignas, que seu pai tem uma loja de secos e molhados na América — disse Sir Thomas Burdon, com um ar arrogante.

— Meu tio sugeriu-me que se trata do comércio de carne de porco, Sir Thomas.

— Secos e molhados! O que são secos e molhados? — perguntou a duquesa levantando suas mãos em um gesto de questionamento e enfatizando o verbo.

23 Equivalente britânico à Câmara dos Deputados brasileira. (N. do T.)

OSCAR WILDE 57

— Romances americanos — respondeu Lorde Henry e serviu-se de um pouco de codorna.

A duquesa pareceu confusa.

— Não ligue para ele, minha querida — sussurrou Lady Agatha. — Ele nunca fala nada sério.

— Quando a América foi descoberta... — disse o membro dos Radicais, começando a apresentar alguns fatos enfadonhos. Como todas as pessoas que tentam exaurir um assunto, ele exauriu seus ouvintes. A duquesa suspirou e exerceu seu poder de interrupção.

— Quem dera a América nunca tivesse sido descoberta! — exclamou ela. — Realmente, nossas garotas não têm nenhuma chance hoje em dia. É terrivelmente injusto.

— Talvez, afinal, a América nunca tenha sido descoberta — disse o sr. Erskine. — Eu diria que ela foi meramente identificada.

— Ah, mas eu conheci espécimes de seus habitantes — respon deu a duquesa vagamente. — Devo confessar que a maioria deles é extremamente bela. E vestem-se bem também. Compram todas as suas roupas em Paris. Quem dera eu pudesse fazer o mesmo.

— Dizem por aí que, quando bons americanos morrem, vão para Paris — riu-se Sir Thomas, que tinha um vasto guarda-roupa de trajes rejeitados pelo humor.

— Sério? E para onde vão os maus americanos quando mor rem? — perguntou a duquesa.

— Para a América — murmurou Lorde Henry.

Sir Thomas franziu a testa.

— Temo que seu sobrinho tenha preconceitos a respeito do grande país — disse ele para Lady Agatha. — Viajei por toda a sua extensão em carros fornecidos pelos diretores, que, nesse sentido, são extremamente civis. Asseguro-lhe que visitá-lo é bastante educativo.

— Mas precisamos realmente conhecer Chicago para sermos educados? — perguntou, choroso, o sr. Erskine. — Não tenho vontade de fazer tal viagem.

58 O RETRATO DE DORIAN GRAY

Sir Thomas acenou com a mão.

— O sr. Erskine de Treadley tem o mundo em suas estantes. Nós, homens práticos, gostamos de ver as coisas e não de ler a seu respeito. Os americanos são um povo extremamente interessante. São absolutamente sensatos. Penso que essa é sua característica mais marcante. Sim, sr. Erskine, um povo absolutamente sensato. Asseguro-lhe que não há disparates entre os americanos.

— Que horror! — exclamou Lorde Henry. — Posso supor tar a força bruta, mas a sensatez bruta é totalmente intolerável. Há algo injusto em seu uso. É um golpe baixo no intelecto.

— Não o compreendo — disse Sir Thomas, corando bastante.

— Mas eu, sim, Lorde Henry — murmurou o sr. Erskine, sorrindo.

— Paradoxos estão a caminho... — retorquiu o baronete.

— Tratava-se de um paradoxo? — perguntou o sr. Erskine. — Penso que não. Talvez fosse. Bom, o caminho dos paradoxos é o caminho da verdade. Para testar a realidade, devemos vê-la na corda bamba. Quando as verdades tornam-se acrobatas, podemos julgá-las.

— Por Deus! — disse Lady Agatha. — Como os homens dis cutem! Nunca consigo entender sobre o que vocês estão falando. Ah! Harry, estou muito chateada com você. Por que você tentou persuadir nosso gentil sr. Dorian Gray a abandonar o East End? Asseguro-lhe que ele seria de enorme valor. Adorariam ouvi-lo tocar.

— Quero que ele toque para mim — Lorde Henry exclamou, sor rindo, espiou o fundo da mesa e captou um olhar radiante em resposta.

— Mas eles são tão infelizes em Whitechapel — continuou Lady Agatha.

— Posso compadecer-me de tudo, menos do sofrimento — disse Lorde Henry encolhendo os ombros. — Não posso me compadecer disso. É feio demais, horrível demais, angustiante demais. Há algo terrivelmente mórbido na compaixão moderna pela dor. Deveríamos

OSCAR WILDE 59

compadecer-nos das cores, da beleza, da alegria de viver. Quanto menos se falar das amarguras da vida, melhor.

— De qualquer forma, o East End é uma questão muito impor tante — comentou Sir Thomas balançando a cabeça gravemente.

— Realmente — respondeu o jovem lorde. — Trata-se do pro blema da escravidão, e tentamos resolvê-lo divertindo os escravos.

O político olhou para ele com seriedade.

— Que mudanças o senhor nos propõe, então? — perguntou.

Lorde Henry riu.

— Não desejo mudar nada na Inglaterra além do clima — respondeu. — Fico muito contente com a reflexão filosófica. Mas, como o século XIX entrou em falência por causa do excesso de compaixão, sugiro que apelemos à ciência para retomar o caminho correto. A vantagem das emoções é que elas nos levam à perdição e a vantagem da ciência é que ela carece de emoções.

— Mas nós temos responsabilidades tão graves — arriscou timidamente a sra. Vandeleur.

— Terrivelmente graves — repetiu Lady Agatha.

Lorde Henry olhou para o sr. Erskine.

— A humanidade leva-se muito a sério. É esse o pecado original do mundo. Se os homens das cavernas soubessem rir, a história teria sido diferente.

— Ouvi-lo é realmente reconfortante — piou a duquesa. — Sempre me sinto um pouco culpada quando venho visitar sua querida tia, já que não me interesso nem um pouco pelo East End. Daqui para a frente, poderei olhá-la nos olhos sem enrubescer.

— Enrubescer é muito atraente, duquesa — observou Lorde Henry.

— Apenas quando se é jovem — respondeu ela. — Quando uma velha como eu fica corada, é um mau sinal. Ah! Lorde Henry, gostaria que me dissesse como me tornar jovem novamente.

60 O RETRATO DE DORIAN GRAY

Ele refletiu por um instante.

— Consegue lembrar-se de algum erro grave que tenha come tido nos seus anos dourados, duquesa? — perguntou, olhando-a do outro lado da mesa.

— Muitos, receio eu — exclamou ela.

— Então cometa-os todos novamente — disse ele seriamente. — Para retomar sua juventude, basta repetir as mesmas loucuras.

— Que teoria encantadora! — declarou ela. — Devo pô-la em prática.

— Uma teoria perigosa! — ecoou dos lábios tensos de Sir Thomas. Lady Agatha balançou a cabeça, mas não pôde deixar de achar graça. O sr. Erskine apenas ouvia.

— Sim — continuou ele —, esse é um dos grandes segredos da vida. Hoje em dia, a maioria das pessoas morre de uma espécie de insidioso senso comum e descobre tarde demais que a única coisa de que não nos arrependemos é de nossos erros.

Uma gargalhada percorreu a mesa.

Ele brincava com a ideia propositalmente; lançava-a no ar e transformava-a; deixava-a escapar e tornava a apanhá-la; dava-lhe brilhos de fantasia e asas de paradoxo. À medida que continuava, o elogio da loucura foi alçado a filosofia e a própria filosofia reju venesceu, captando a música insana do prazer e vestindo — como era de se imaginar — seu manto manchado de vinho e sua grinalda de hera, dançando como uma Bacante 24 pelas colinas da vida e zombando do apático Sileno 25 por estar sóbrio. Os fatos fugiam diante dela como criaturas silvestres assustadas. Seus pés brancos

24 Na mitologia grega, sacerdotisa do culto a Dioniso. Representa uma mulher libertina, licenciosa. (N. do T.)

25 Sileno era, na mitologia grega, um dos seguidores de Dioniso, seu professor e companheiro fiel. Ao contrário do exposto no texto, era sempre representado bêbado e amparado por sátiros ou carregado por um burro. (N. do T.)

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pisoteavam o enorme lagar 26 onde se encontrava sentado o sábio Omar 27, até o suco efervescente da uva transbordar como uma espuma vermelha pelas laterais enegrecidas e ensopadas do tonel, rodeando seus membros nus em ondas púrpuras borbulhantes. Que extraordinário improviso. Ele sentia que os olhos de Dorian Gray estavam fixos nele, e a consciência de que havia alguém entre os que o ouviam cujo temperamento ele desejava fascinar parecia entusiasmar-lhe o espírito e conferir cor à sua imaginação. Fora brilhante, fantástico, irresponsável. Arrebatara seus ouvintes, que seguiam sua voz às gargalhadas. Dorian Gray não desviou o olhar uma única vez, imóvel sob seu encanto, com sorrisos em sucessão sobre seus lábios e uma séria admiração em seus olhos escurecidos.

Por fim, fardada à moda da época, a realidade adentrou a sala na forma de um criado para comunicar à duquesa que sua carruagem a esperava. Ela apertou as mãos fingindo desespero.

— Que maçante! — exclamou ela. — Preciso ir. Tenho de bus car meu marido no clube, para acompanhá-lo em alguma reunião absurda que ele deve presidir no Willis’s Rooms 28 . Se eu me atrasar, com certeza ele ficará furioso e não posso me dar o luxo de uma cena com esse chapéu. Ele é frágil demais. Qualquer palavra rude o arruinaria. Não, preciso ir, Lady Agatha. Adeus, Lorde Henry, o senhor é muito encantador e terrivelmente desmoralizante. Tenho certeza de que não sei o que dizer quanto às suas opiniões. O senhor deve vir jantar conosco uma noite dessas. Na próxima terça-feira? Não tem compromisso nesta terça?

26 Prensa para fazer vinho. (N. do T.)

27 Omar Caiam (1048-1131) foi um poeta, matemático e astrônomo persa. Ficou conhecido no Ocidente em meados do século XIX graças à coleção de poemas Rubaiyat (“quartetos”, em português), traduzida para o inglês por Edward Fitzgerald, em 1839. (N. do T.)

28 Clube da alta sociedade londrina, também conhecido como Almack’s, em funcionamento entre os séculos XVIII e XX. (N. do T.)

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— Pela senhora abandonaria qualquer um, duquesa — disse Lorde Henry curvando-se.

— Ah, que gentil, e totalmente incorreto, de sua parte — exclamou ela —, então lembre-se de vir — e desapareceu da sala, seguida por Lady Agatha e as outras damas.

Quando Lorde Henry se sentou novamente, o sr. Erskine aproximou-se e, tomando uma cadeira a seu lado, pousou a mão em seu braço.

— O senhor fala como nos livros — disse ele. — Por que não escreve um?

— Gosto demais de lê-los para me interessar por escrevê-los, sr. Erskine. Gostaria certamente de escrever um romance, um ro mance tão encantador e tão irreal quanto um tapete persa. Mas na Inglaterra não há público leitor para nada além de jornais, manuais e enciclopédias. De todos os povos do mundo, os ingleses são os que menos apreciam a beleza literária.

— Receio que esteja certo — respondeu o sr. Erskine. — Eu mesmo costumava ter ambições literárias, mas abandonei-as há muito tempo. E agora, meu jovem amigo, se é que me permite chamá-lo assim, posso perguntar-lhe o que realmente quis dizer com suas palavras à hora do almoço?

— Já me esqueci de quase tudo que disse — sorriu Lorde Henry. — Foi tão desagradável assim?

— Muito, na verdade. De fato, considero-o extremamente pe rigoso e, se algo acontecer à nossa bondosa duquesa, todos devemos considerá-lo o principal responsável. Mas gostaria de conversar com o senhor sobre a vida. A geração a que pertenço é por demais entediante. Algum dia desses, quando se cansar de Londres, venha até Treadley para apresentar-me sua filosofia do prazer, acompa nhado de alguns vinhos da Borgonha que tenho a sorte de possuir.

— Será um prazer. Uma visita a Treadley seria uma grande honra. Um anfitrião perfeito e uma biblioteca perfeita.

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— E, com sua presença, a perfeição será completa — respon deu o velho cavalheiro com uma amável mesura. — Agora devo despedir-me de sua excelente tia. Sou esperado no Athenaeum 29 . Está na hora de dormirmos por lá.

— Todos irão, sr. Erskine?

— Quarenta de nós, em quarenta poltronas. Estamos prati cando para tornarmo-nos uma Academia Inglesa de Letras.

Lorde Henry levantou-se, rindo.

— Vou para o parque — exclamou ele.

Ao atravessar a porta, Dorian Gray tocou-o no braço.

— Deixe-me acompanhá-lo — murmurou.

— Achei que havia prometido a Basil Hallward ir vê-lo — res pondeu Lorde Henry.

— Prefiro ir com o senhor; sim, sinto que devo ir com o senhor. Deixe-me ir. E prometa-me que conversará comigo durante todo o tempo. Ninguém fala tão maravilhosamente quanto o senhor.

— Ah! Já falei o suficiente por hoje — disse Lorde Henry, sorrindo. — Tudo o que quero agora é contemplar a vida. O senhor pode vir contemplá-la comigo, se quiser.

29 Clube privado em Londres fundado em 1824, dedicado àqueles que têm algum tipo de destaque na ciência ou nas artes. (N. do T.)

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CAPÍTULO

Certa tarde, um mês depois, Dorian Gray estava reclinado em uma luxuosa poltrona na pequena biblioteca da casa de Lorde Henry, em Mayfair. Era, à sua maneira, uma sala muito encantadora, com seus painéis altos de carvalho escurecido, seus frisos cor de creme, seu teto de gesso em alto-relevo e seu carpete avermelhado coberto por longos tapetes persas com franjas de seda. Em uma minúscula mesinha de madeira, havia uma estatueta de Clodion 30 e, ao lado dela, uma cópia de Les Cent Nouvelles 31 , encadernada para Margarida de Valois 32 por Clovis Eve 33 e salpicada com as marga ridas douradas que a rainha havia selecionado para seu exemplar. Grandes vasos de porcelana azul com tulipas papagaio estavam dispostos sobre a prateleira acima da lareira e, através do delicado mosaico das vidraças das janelas, fluía a luz com tons de damasco de um dia de verão londrino.

Lorde Henry ainda não tinha chegado em casa. Por princípio, sempre estava atrasado, pois acreditava que a pontualidade era o la drão do tempo. Por isso, o rapaz parecia bastante aborrecido, virando com dedos apáticos as páginas de uma edição ricamente ilustrada

30 Claude Michel (1738-1814), conhecido como Clodion, foi um escultor francês. (N. do T.)

31 Considerada a primeira obra em prosa da literatura francesa, trata-se de uma coleção de histórias do reinado do Rei Filipe III de Borgonha, reunidas por Antoine de la Sale no século XV. (N. do T.)

32 Margarida de Valois, mais conhecida como Rainha Margot (1553-1615), foi uma princesa francesa da dinastia de Valois, que se tornou rainha consorte do reino de Navarra. (N. do T.)

33 Clovis Eve foi um encadernador francês da Renascença, ativo entre os anos de 1583 e 1633. (N. do T.)

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de Manon Lescaut 34 , que encontrara em uma das prateleiras. O cerimonioso e monótono tique-taque do relógio Luís XIV irritava-o. Havia pensado em ir embora mais de uma vez.

Finalmente ouviu passos do lado de fora e a porta abriu-se.

— Como você está atrasado, Harry! — murmurou ele.

— Receio que não seja Harry, sr. Gray — respondeu uma voz estridente.

Ele olhou rapidamente ao redor e pôs-se de pé.

— Perdão. Achei que...

— O senhor pensou que fosse meu marido. Trata-se apenas de sua esposa. Permita que eu me apresente. Conheço-o muito bem por suas fotografias. Acredito que meu marido possui dezessete delas.

— Não dezessete, Lady Henry.

— Bom, dezoito, então. E vi-o com ele outra noite na ópera. — Ela ria nervosamente enquanto falava e observava-o com seus vagos olhos de miosótis. Era uma mulher estranha, cujas roupas pareciam ter sido desenhadas com raiva e vestidas no meio de uma tempestade. Estava sempre apaixonada por alguém e, como suas paixões nunca eram correspondidas, mantinha-se iludida. Ela tentava parecer exótica, mas apenas conseguia ser descuidada. Seu nome era Victoria e tinha realmente o vício de ir à igreja.

— Isso foi na Lohengrin 35 , Lady Henry, penso eu.

— Sim, foi na querida Lohengrin. Gosto da música de Wagner mais que de qualquer outra. É tão alta que se pode conversar o tempo todo sem que os outros ouçam o que estamos dizendo. O que é uma grande vantagem, não acha, sr. Gray?

34 Histoire du Chevalier Des Grieux et de Manon Lescaut (História do Cavaleiro Des Grieux e de Manon Lescaut) é um romance escrito por Antoine Prévost e publicado em 1731. (N. do T.)

35 Ópera em três atos de Richard Wagner (1813-1883). (N. do T.)

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A mesma risada nervosa e desconexa irrompeu de seus finos lábios, e seus dedos começaram a brincar com um longo abridor de cartas de casco de tartaruga.

Dorian sorriu e balançou a cabeça:

— Receio não pensar assim, Lady Henry. Nunca falo durante a música — pelo menos, durante boa música. Quando ouvimos música ruim, porém, é nosso dever abafá-la na conversa.

— Ah! Essa é a opinião de Harry também, não é, sr. Gray? Sempre ouço as opiniões de Harry por intermédio de seus amigos. É a única forma de conhecê-las. Mas o senhor não deve pensar que não gosto de boa música. Adoro-a, mas ela me amedronta. Acabo ficando romântica demais. Simplesmente idolatro pianistas — dois ao mesmo tempo, às vezes, Harry costuma dizer-me. Não sei o que há com eles. Talvez seja o fato de serem estrangeiros. São todos estrangeiros, não são? Mesmo aqueles nascidos na Inglaterra tornam-se estrangeiros depois de um tempo, não é? Algo muito sábio da parte deles, um grande elogio à arte. Torna-a um tanto quanto cosmopolita, não? O senhor nunca veio a nenhuma de minhas festas, não é, sr. Gray? Deve vir. Não posso pagar por orquídeas, contudo não economizo com estrangeiros. Eles tornam qualquer salão tão pitoresco. Mas aqui está Harry! Harry, vim procurar-lhe para perguntar algo — mas esqueci-me do que se tratava — e encontrei o sr. Gray aqui. Tivemos uma conversa tão interessante sobre música. Temos praticamente as mesmas opiniões. Não; acho que nossas ideias são muito diferentes. Mas ele foi extremamente agradável. Estou tão feliz por tê-lo encontrado.

— Fico encantado, meu amor, muito encantado — disse Lorde Henry, erguendo suas curvadas e escuras sobrancelhas e olhando para ambos com um sorriso divertido. — Sinto muito pelo atraso, Dorian. Fui atrás de uma peça de brocado antigo na Rua Wardour e tive de pechinchar durante horas por ela. Hoje em dia, sabe-se o preço de tudo e o valor de nada.

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— Receio que deva me retirar — exclamou Lady Henry, rompendo o silêncio constrangedor com sua súbita risada tola. — Prometi passear com a duquesa. Adeus, sr. Gray. Adeus, Harry. Vocês vão jantar fora, suponho? Também irei eu. Talvez os encontre na casa de Lady Thornbury.

— Talvez, minha querida — disse Lorde Henry fechando a porta, enquanto ela, parecendo uma ave-do-paraíso que esteve a noite inteira sob a chuva, saía rapidamente da sala, deixando um leve odor de jasmim. Então, ele acendeu um cigarro e lançou-se no sofá.

— Nunca se case com uma mulher com cabelos cor de palha, Dorian — disse ele depois de algumas baforadas.

— Por que, Harry?

— Porque elas são sentimentais demais.

— Mas eu gosto de pessoas sentimentais.

— Nunca se case, Dorian. Os homens casam-se por cansaço; as mulheres, por curiosidade; ambos se decepcionam.

— Não acho provável que me case, Harry. Estou apaixonado demais. Essa é uma de suas máximas. Estou colocando-a em prática, como faço com tudo que me diz.

— Por quem está apaixonado? — perguntou Lorde Henry depois de uma pausa.

— Por uma atriz — disse Dorian Gray, enrubescendo.

Lorde Henry encolheu os ombros.

— É um início bastante comum.

— Você não diria isso se a visse, Harry.

— Quem é ela?

— Seu nome é Sibyl Vane.

— Nunca ouvi falar dela.

— Ninguém ouviu. Contudo, ouvirão um dia. Ela é genial.

— Meu querido rapaz, nenhuma mulher é genial. As mulheres

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são um sexo decorativo. Elas nunca têm nada a dizer, mas dizem-no encantadoramente. As mulheres representam o triunfo da matéria sobre o intelecto, assim como os homens representam o triunfo da mente sobre a moral.

— Harry, como pode?

— Meu caro Dorian, é a verdade. Tenho analisado mulhe res ultimamente, então devo saber. O assunto não é tão obscuro quanto pensei ser. Acredito que, atualmente, há apenas dois tipos de mulher, as comuns e as coloridas. As mulheres comuns são muito úteis. Se você quiser adquirir uma reputação de respeitabilidade, deve simplesmente convidá-las para a ceia. As outras mulheres são muito encantadoras. No entanto, cometem um erro. Maquiam-se para tentar parecer jovens. Nossas avós maquiavam-se para falar de forma brilhante. O ruge e a perspicácia costumavam andar juntos. Hoje em dia, isso não existe mais. Contanto que uma mulher possa parecer dez anos mais jovem que a própria filha, ela está comple tamente satisfeita. Quanto à arte da conversação, há apenas cinco mulheres em Londres com quem vale a pena conversar, e duas delas não são admitidas na sociedade. De qualquer modo, fale-me sobre sua garota genial. Há quanto tempo a conhece?

— Ah! Harry, suas opiniões aterrorizam-me.

— Esqueça-se disso. Há quanto tempo a conhece?

— Há aproximadamente três semanas.

— E onde a encontrou?

— Vou contar-lhe, Harry, mas não deve mostrar-se insensível. Afinal, nunca teria acontecido se eu não o tivesse conhecido. Você impregnou-me de um desejo incontrolável de saber tudo sobre a vida. Por vários dias depois que o encontrei, algo parecia pulsar em minhas veias. Sentado em algum banco do parque ou passeando pelo

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Piccadilly 36 , acostumei-me a olhar para qualquer um que passasse por mim e a imaginar, com uma curiosidade louca, que tipo de vida levariam. Algumas pessoas me fascinavam. Outras enchiam-me de terror. Havia um extraordinário veneno no ar. Apaixonei-me por sensações... Bom, certa noite, por volta das sete horas, decidi sair em busca de alguma aventura. Senti que essa nossa monstruosa e cinzenta Londres, com sua miríade de pessoas, seus sórdidos pecadores e seus esplêndidos pecados, como você dissera uma vez, devia ter algo guardado para mim. Imaginava milhares de coisas. A mera sensação de perigo encantava-me. Lembrei-me do que você me dissera naquela maravilhosa noite em que jantamos juntos pela primeira vez, sobre a busca pela beleza ser o verdadeiro segredo da vida. Não sei o que esperava, mas saí sem destino em direção ao leste da cidade, rapidamente perdendo-me em um labirinto de ruas encardidas e desoladas praças sombrias. Por volta das oito e meia, passei em frente a um teatro, pequeno e vulgar, com enormes candeeiros flamejantes e cartazes espalhafatosos. Um judeu horroroso, portando o colete mais inacreditável que já vi em minha vida, fumava um charuto repugnante à entrada. Tinha os cabelos em cachos gordurosos e um imenso diamante brilhando no centro de uma camisa encardida. “Gostaria de um camarote, milorde?”, disse quando me viu, tirando o chapéu com um ar de majestosa submissão. Havia algo nele, Harry, que me divertia. Era tão monstruoso. Você certamente rirá de mim, mas entrei e paguei um guinéu pelo camarote próximo ao palco. Até hoje não consigo entender por que o fiz; mesmo assim, se não o tivesse feito — meu querido Harry, se não tivesse —, teria perdido o maior romance de minha vida. Vejo que já está rindo. Que desagradável de sua parte!

— Não estou rindo, Dorian; pelo menos, não estou rindo de você. Mas você não deveria dizer o maior romance da sua vida.

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Piccadilly Circus é uma famosa praça no centro de Londres, confluência de diversas ruas famosas da cidade. (N. do T.)

Deveria dizer o primeiro romance da sua vida. Você sempre será amado e sempre estará apaixonado pelo amor. Uma grande paixão é o privilégio das pessoas que não têm nada para fazer. Essa é a única serventia das classes ociosas de um país. Não tema. Há coisas extraordinárias guardadas para você. Isso é apenas o início.

— Você acredita que minha natureza é tão superficial? — ex clamou Dorian Gray, cheio de raiva.

— Não, acredito que sua natureza é profunda demais.

— O que quer dizer?

— Meu caro rapaz, aqueles que amam uma única vez em sua vida são as pessoas realmente superficiais. Aquilo que elas chamam de lealdade, de fidelidade, eu chamo ou de letargia do costume ou de falta de imaginação. A fidelidade, em uma vida emocional, significa o mesmo que a coerência em uma vida intelectual — sim ples confissão de fracasso. Fidelidade! Devo analisá-la algum dia. Ela consiste em paixão pela virtude. Jogaríamos muitas coisas fora se não tivéssemos medo de que outros as recolhessem. Mas não quero interrompê-lo. Continue com sua história.

— Bom, encontrava-me sentado em um horrendo e minúsculo camarote privado, em frente a um cortinado ordinário. Olhei por detrás da cortina e inspecionei a casa. Tratava-se de um estabe lecimento barato, cheio de cupidos e cornucópias, parecendo um bolo de casamento de última categoria. A galeria e o fosso estavam repletos, mas as duas primeiras filas de assentos, muito encardi das, estavam praticamente vazias, e não havia nem sequer uma pessoa no que supus ser o que chamavam de balcões. Mulheres perambulavam com laranjas e cerveja de gengibre, e o consumo de amêndoas era estarrecedor.

— Devia ser semelhante aos gloriosos dias do teatro inglês.

— Exatamente igual, imagino, e muito deprimente. Comecei a me perguntar que diabos deveria fazer quando avistei o programa. Adivinhe qual era a peça, Harry!

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— Imagino algo como O garoto idiota ou Burro mas inocente. Nossos pais costumavam gostar desse tipo de peça, penso eu. Quanto mais eu vivo, Dorian, mais acredito que o que era suficientemente bom para nossos pais não é bom o suficiente para nós. Na arte, como na política, les grand-pères ont toujours tort 37 .

— Essa peça é suficientemente boa para nós, Harry. Era Romeu e Julieta. Devo admitir que fiquei aborrecido com a ideia de ver Shakespeare encenado naquele buraco deplorável. Mesmo assim, de certa forma, fiquei curioso. De todo modo, decidi esperar pelo primeiro ato. Havia uma orquestra pavorosa, conduzida por um jovem hebreu sentado a um piano esganiçado, que por pouco não me afugentou, mas finalmente as cortinas foram erguidas e a peça começou. Romeu era um velho cavalheiro corpulento, com sobrancelhas escurecidas a rolha, uma trágica voz rouca e a silhueta semelhante a um barril. Mercúcio era quase tão ruim quanto ele. Era interpretado por um comediante barato, que lhe adicionara piadas próprias e parecia ser conhecido do público no fosso. Ambos eram tão grotescos quanto o cenário, que dava a impressão de ter saído de uma feira provinciana. Mas Julieta! Harry, imagine uma garota de apenas dezessete anos, com um rostinho semelhante a uma flor, uma pequena cabeça grega com cachos trançados de um cabelo castanho-escuro, olhos parecidos com poços violeta de paixão, lábios como pétalas de rosas. Ela era a criatura mais adorável que já vira em minha vida. Você me disse uma vez que a compaixão não lhe causava nenhuma emoção, mas que a beleza, a simples beleza, poderia levá-lo às lágrimas. Posso afirmar, Harry, que quase não podia ver essa garota por causa da névoa de lágrimas que surgiu em meus olhos. E sua voz — nunca ouvira semelhante voz. Muito baixa a princípio, com notas profundas e doces, que pareciam cair uma a uma nos ouvidos. Depois, tornavam-se um pouco mais

37 “Os avós nunca têm razão”, em francês. (N. do T.)

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graves, soando como uma flauta ou um oboé distante. Na cena do jardim, adquiriu todo o êxtase trêmulo que se ouve pouco antes da aurora, quando os rouxinóis começam a cantar. Houve momentos, mais tarde, em que alcançou a paixão feroz dos violinos. Você sabe o quanto uma voz pode nos emocionar. Sua voz e a voz de Sibyl são duas coisas de que jamais me esquecerei. Quando fecho os olhos, posso ouvi-las e cada uma diz-me algo diferente. Não sei qual delas seguir. Por que não deveria amá-la? Harry, amo-a. Ela é tudo para mim nesta vida. Noite após noite, vou vê-la atuar. Uma noite é Rosalinda, na noite seguinte é Imogênia. Já a vi morrer na escuridão de uma tumba italiana, sugando o veneno dos lábios de seu amante. Vi-a perambulando pela floresta de Arden, na pele de um lindo menino vestindo calças curtas, colete e boné. Ela já foi louca e, levada à presença de um rei culpado, fez-lhe beber arruda e engolir ervas amargas. Já foi inocente, e as mãos negras do ciúme arruinaram sua graciosa voz. Já a vi com todas as idades e todas as indumentárias. Mulheres ordinárias nunca despertam nossa imaginação. Limitam-se à sua época. Nenhum fascínio jamais as transforma. É possível conhecer sua mente tão fácil quanto se co nhece seus chapéus. É fácil encontrá-las. Elas não possuem nenhum mistério. Passeiam no parque pela manhã e tagarelam em chás à tarde. Ostentam seu sorrisos estereotipados e suas maneiras ele gantes. São extremamente óbvias. Mas uma atriz! Quão diferente é uma atriz! Harry! Por que não me disse que a única coisa digna de amor é uma atriz?

— Porque amei muitas delas, Dorian.

— Ah, sim, pessoas horrorosas com cabelos tingidos e ros tos pintados.

— Não menospreze os cabelos tingidos e os rostos pintados. Há um encanto extraordinário neles, às vezes — disse Lorde Henry.

— Preferiria não ter lhe falado a respeito de Sibyl Vane.

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— Você não poderia deixar de contar-me, Dorian. Durante toda a sua vida, você me contará todos os seus passos.

— Sim, Harry, acredito que seja verdade. Não posso evitar contar-lhe tudo. Você exerce uma estranha influência sobre mim. Se algum dia cometesse um crime, viria confessá-lo a você. Você me compreenderia.

— Pessoas como você — os obstinados raios de sol da vida — não cometem crimes, Dorian. Mas agradeço o elogio, mesmo assim. E agora diga-me... — alcance os fósforos para mim, como um bom menino. Obrigado — ...atualmente, quais são suas relações com Sibyl Vane?

Dorian Gray pôs-se de pé, com as faces coradas e os olhos flamejantes.

— Harry! Sibyl Vane é sagrada!

— Apenas as coisas sagradas merecem ser tocadas, Dorian — disse Lorde Henry, com um estranho toque de piedade em sua voz. — Mas por que você fica aborrecido? Suponho que ela lhe per tencerá, algum dia desses. Quando estamos apaixonados, sempre começamos decepcionando a nós mesmos e, depois, acabamos por decepcionar os outros. É a isso que o mundo chama de romance. De qualquer forma, você a conheceu, imagino.

— Certamente que a conheci. Na primeira noite em que estive no teatro, o velho judeu horrendo veio até o camarote depois do fim do espetáculo e ofereceu-se para levar-me aos bastidores e apresentar-me a ela. Fiquei furioso com ele e disse-lhe que Julieta morrera havia centenas de anos e que seu corpo jazia em uma tumba de mármore em Verona. Acredito, baseado em seu olhar vazio de espanto, que ele teve a impressão de que eu bebera champanhe demais ou algo do gênero.

— Não me surpreenderia.

— Então perguntou-me se eu escrevia para algum jornal. Disse-lhe que nem sequer os lia. Pareceu-me terrivelmente desa

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pontado ao ouvir isso e confidenciou-me que todos os críticos de teatro conspiravam contra ele e que tinham todos sido comprados.

— Não me admiraria se ele estivesse certo a esse respeito. Mas, por outro lado, a julgar pela sua aparência, os jornalistas não devem ser tão caros assim.

— Bom, ele parecia pensar que eles gastam mais do que podem — riu Dorian. — Nesse momento, no entanto, as luzes estavam sendo apagadas no teatro e tive de sair. Ele queria que eu experi mentasse alguns charutos que me recomendara muitíssimo. Recusei. Na noite seguinte, certamente, cheguei ao mesmo lugar mais uma vez. Quando me viu, fez-me uma leve reverência e assegurou-me que eu era um generoso patrono da arte. Ele era um grosseirão dos mais repugnantes, apesar de sua extraordinária paixão por Shakespeare. Disse-me uma vez, com um ar orgulhoso, que suas cinco falências eram totalmente culpa do “Bardo”, como insistia em chamá-lo. Ele parecia acreditar tratar-se de uma distinção.

— Era uma distinção, meu caro Dorian — uma grande distinção. A maioria das pessoas vai à falência por ter investido brutalmente na prosa da vida. Ir à ruína por causa da poesia é uma honra. Mas quando você falou pela primeira vez com a srta. Sibyl Vane?

— Na terceira noite. Ela havia representado Rosalinda. Não pude evitar ir aos bastidores. Havia-lhe jogado algumas flores e ela olhara para mim — pelo menos acredito que tenha olhado. O velho judeu foi insistente. Parecia determinado a levar-me atrás do palco, então consenti. Foi estranho não querer conhecê-la, não foi?

— Não, penso que não.

— Meu querido Harry, por que não?

— Eu lhe direi em algum outro momento. Agora quero saber da garota.

— Sibyl? Ah, ela mostrou-se tão tímida e tão gentil. Há algo infantil nela. Seus olhos arregalaram-se, extremamente fascinados, quando lhe disse o que achara de sua atuação, e ela parecia não ter

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a mínima consciência de seu poder. Acredito que ambos estávamos bastante nervosos. O velho judeu ficou parado à porta do camarim empoeirado rindo e fazendo elaboradas apresentações sobre nós dois, enquanto olhávamos um ao outro como crianças. Ele insistia em chamar-me de “milorde”, então tive de garantir a Sibyl que não era nenhum lorde. Ela disse-me simplesmente: “Você parece-se mais com um príncipe. Devo chamá-lo de Príncipe Encantado”.

— Dou-lhe minha palavra, Dorian, a srta. Sibyl sabe como fazer elogios.

— Você não a compreende, Harry. Ela me vê apenas como um personagem de uma peça. Ela não sabe nada da vida. Mora com sua mãe, uma mortiça e cansada mulher que atuava como Lady Capuleto em uma espécie de túnica magenta na primeira noite e aparenta ter tido melhores dias na vida.

— Conheço essa aparência. Ela me deprime — murmurou Lorde Henry, examinando seus anéis.

— O judeu queria contar-me sua história de vida, mas disse-lhe que não tinha interesse.

— Fez muito bem. Há sempre algo infinitamente mesquinho nas tragédias dos outros.

— Só me importo com Sibyl. O que me interessam suas ori gens? De sua pequena cabeça aos delicados pés, ela é absoluta e totalmente divina. Todas as noites da minha vida vou vê-la atuar e, a cada noite, ela está cada vez mais maravilhosa.

— É por isso, suponho, que você nunca mais jantou comigo. Pensei que deveria ter algum estranho romance à mão. E tem; mas não exatamente o que eu esperava.

— Meu querido Harry, nós almoçamos ou ceamos todos os dias, e tenho ido inúmeras vezes à ópera com você — disse Dorian arregalando os olhos azuis, espantado.

— Você sempre está terrivelmente atrasado.

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— Bom, não consigo deixar de ver Sibyl atuar — exclamou ele —, mesmo que seja por um único ato. Tenho fome de sua presença; e, quando penso na alma maravilhosa que se esconde naquele corpinho de marfim, o fascínio me preenche.

— Você poderá jantar comigo hoje à noite, Dorian, ou não?

Ele balançou a cabeça.

— Hoje à noite, ela é Imogênia — respondeu ele — e amanhã será Julieta.

— Quando ela é Sibyl Vane?

— Nunca.

— Felicito-lhe.

— Como você é horrível! Ela traz todas as grandes heroínas do mundo em uma só pessoa. Ela é mais que um mero indivíduo. Você ri, mas garanto-lhe que ela tem talento. Eu a amo e vou fazê-la me amar. Você, que conhece todos os segredos da vida, diga-me como convencer Sibyl Vane a me amar! Quero causar ciúmes em Romeu. Quero que todos os amantes mortos do mundo ouçam-nos rir e entristeçam-se. Quero que o fôlego de nossa paixão agite sua poeira de volta à vida, que desperte suas cinzas para a dor. Meu Deus, Harry, como a venero! — Ele andava de um lado para o outro na sala enquanto falava. Manchas fervorosas de rubor queimavam suas faces. Estava terrivelmente excitado.

Lorde Henry observava-o com uma leve sensação de prazer. Como estava diferente daquele menino tímido e amedrontado que conhecera no ateliê de Basil Hallward! Sua natureza tinha-se desenvolvido como uma flor, produzindo botões resplandecentes de um vermelho-vivo. Sua alma arrastara-se para fora de seu es conderijo e o desejo encontrara-a no caminho.

— E o que me propõe fazer? — disse, por fim, Lorde Henry.

— Quero que você e Basil venham comigo vê-la atuar uma noite dessas. Não temo nem um pouco o resultado. Você certamente

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reconhecerá seu talento. Então, devemos extraí-la das mãos do judeu. Ela foi contratada por três anos — restam-lhe pelo menos dois anos e oito meses, a contar de agora. Deverei pagar-lhe alguma coisa, certamente. Mas, quando tudo estiver acertado, vou levá-la para algum teatro do West End 38 e apresentá-la da maneira apro priada. Ela vai enlouquecer o mundo tanto quanto me enlouqueceu.

— Isso seria impossível, meu caro menino.

— Sim, ela vai. Ela tem não apenas talento, o instinto de uma arte perfeita, mas também tem personalidade; e você me fala frequentemente que são as personalidades, e não os valores, que movem as épocas.

— Bom, em que noite devemos ir?

— Deixe-me ver. Hoje é terça-feira. Vamos marcar para ama nhã. Ela será Julieta amanhã.

— Certo. Nós nos encontraremos no Bristol às oito horas; eu buscarei Basil.

— Às oito não, Harry, por favor. Às seis e meia. Devemos chegar antes de as cortinas se erguerem. Você deve vê-la no primeiro ato, antes de ela conhecer Romeu.

— Às seis e meia! Que horário! Será como jantar à hora do chá ou ler um romance inglês. Deve ser no mínimo às sete. Nenhum cavalheiro janta antes das sete. Você verá Basil antes de nosso encontro? Ou devo escrever-lhe?

— Querido Basil! Já faz uma semana que não o vejo. É bastante terrível de minha parte, já que ele me enviou o retrato com uma moldura deslumbrante, desenhada especialmente por ele mesmo e, apesar de ter ciúme do retrato, por ser um mês inteiro mais jo vem que eu, devo admitir que fico extasiado ao vê-lo. Talvez fosse

38 Área mais elegante e turística de Londres, região de sedes de grandes empresas e célebres teatros. (N. do T.)

80 O RETRATO DE DORIAN GRAY

melhor você escrever-lhe. Não quero vê-lo a sós. Ele diz-me coisas que me aborrecem. Ele me dá bons conselhos.

Lorde Henry sorriu.

— As pessoas gostam de oferecer aquilo de que mais necessi tam. É o que chamo de ápice da generosidade.

— Ah, Basil é o melhor dos amigos, mas ele parece-me ser um pouco filisteu 39. Desde que conheci você, Harry, percebi isso.

— Basil, meu querido, coloca tudo que há de encantador em si no próprio trabalho. Como consequência, não lhe resta mais nada na vida além de seus princípios, seus preconceitos e seu senso comum. Os únicos artistas que conheci com uma personalidade encantadora são péssimos artistas. Bons artistas simplesmente vivem naquilo que fazem e, consequentemente, têm personalidades perfeitamente desinteressantes. Um grande poeta, um grande poeta de verdade é a menos poética das criaturas. Poetas inferiores, no entanto, são absolutamente fascinantes. Quanto piores suas rimas, mais irresistíveis eles se mostram. O simples fato de publicar um livro de sonetos de segunda categoria torna-o um homem irresistível. Ele vive a poesia que não é capaz de escrever. Quanto aos outros, escrevem a poesia que não são capazes de viver.

— Pergunto-me se é realmente verdade, Harry — disse Dorian Gray, borrifando em seu lenço um pouco do perfume de um grande frasco com tampa dourada que estava sobre a mesa. — Deve ser, se você assim o afirma. Agora devo ir. Imogênia espera-me. Não se esqueça de amanhã. Adeus.

Assim que Dorian deixou a sala, as pálpebras pesadas de Lorde Henry cerraram-se e ele começou a refletir. Certamente, poucas pessoas haviam-lhe interessado tanto quanto Dorian Gray e, mesmo assim, a louca admiração do rapaz por outra pessoa não lhe causava

39 Pessoa inculta, ignorante. (N. do T.)

OSCAR WILDE 81

a mínima pontada de aborrecimento ou ciúme. Ficara contente com tal delírio. Dorian tornava-se, assim, um objeto de estudo ainda mais interessante. Lorde Henry sempre fora fascinado pelos méto dos das ciências naturais, mas seu objeto de estudo habitual pare cia-lhe trivial e sem importância. Por isso, começara a dissecar a si mesmo e terminara por dissecar os outros. A vida humana era, a seu ver, a única coisa que valia a pena investigar. Em comparação a ela, nada mais tinha nenhum valor. Era verdade que, ao observar a vida em seu curioso caldeirão de dor e prazer, não se podia usar uma máscara de proteção nem impedir que seus vapores sulfurosos perturbassem a mente e ofuscassem a imaginação com fantasias monstruosas e sonhos deformados. Havia venenos tão sutis que, para conhecer suas propriedades, era necessário envenenar-se com eles. Havia doenças tão bizarras que era preciso passar por elas se quiséssemos conhecer sua natureza. E, mesmo assim, que grande recompensa recebia-se! Como o mundo inteiro tornava-se maravi lhoso para quem o fizesse! Perceber o raciocínio difícil e curioso da paixão e a colorida vida emocional do intelecto — observar em que ponto se encontravam e em qual se separavam, em que momento ficavam em harmonia e quando discordavam — havia um prazer imenso em tudo isso! Que importava o custo? Nunca se pagava um preço alto demais por uma sensação.

Ele tinha consciência — e a lembrança trouxe-lhe um brilho de prazer em seus olhos castanhos como ágata — de que fora graças a al gumas de suas melodiosas palavras, pronunciadas suavemente, que a alma de Dorian Gray voltara-se a essa pálida garota e curvara-se em adoração diante dela. Em grande parte, o rapaz era criação sua. Ele tornara-o precoce. O que era grande coisa. As pessoas comuns aguardavam a vida revelar-lhe seus segredos, mas para alguns poucos, aos eleitos, os mistérios da vida eram revelados antes de o véu ser retirado. Às vezes era o efeito da arte, principalmente da arte literária, que lidava diretamente com as paixões e o intelecto. Mas, vez ou outra, uma personalidade complexa tomava seu lugar

82 O RETRATO DE DORIAN GRAY

e assumia o ofício da arte, o que era realmente, a seu modo, uma verdadeira obra de arte, já que a vida também tinha suas elaboradas obras-primas, tanto quanto a poesia, a escultura ou a pintura.

Sim, o garoto era precoce. Ele fazia a colheita enquanto ainda era primavera. O pulso e a paixão da juventude estavam nele, mas ele começava a despertar. Era encantador observá-lo. Com seu belo rosto e sua bela alma, ele era algo a se admirar. Não importava como tudo acabaria ou como estaria destinado a acabar. Ele assemelhava-se a uma daquelas graciosas figuras em um desfile ou uma peça, cujas alegrias pareciam distantes de nós, cujas mágoas despertam nosso senso de beleza e cujas chagas são como rosas vermelhas.

Alma e corpo, corpo e alma — como são misteriosos! Havia animalismos na alma, e o corpo possuía seus momentos de espiritua lidade. Os sentidos poderiam aprimorar-se, assim como o intelecto, degenerar-se. Quem conseguiria dizer onde o desejo carnal termi nava e onde começava o desejo psíquico? Como eram superficiais as definições arbitrárias dos psicólogos comuns! E, ainda mais, como era difícil decidir entre as alegações de suas várias vertentes! A alma era apenas uma sombra assentada na casa do pecado? Ou o corpo era realmente a alma, como Giordano Bruno 40 pensava? Tanto a separação quanto a união entre espírito e matéria eram um mistério. Ele começou a imaginar se poderia algum dia considerar a psicologia uma ciência tão absoluta que nos revelaria cada fonte de vida. Até então, sempre entendíamos a nós mesmos da forma errada e raramente entendíamos os outros. Não havia nenhum valor ético na experiência. Esse era apenas o nome que os homens davam aos próprios erros. Via de regra, os moralistas tinham-na como uma forma de aviso, concederam-lhe certa eficácia ética na formação do caráter e enalteceram-na como algo que nos indicava o que seguir e

40 Giordano Bruno (1548-1600) foi um poeta, escritor, filósofo e cosmólogo, e defendia que tudo tem uma natureza psíquica, uma alma — e não apenas os seres humanos. Por isso, foi condenado à morte na fogueira pela Santa Inquisição. (N. do T.)

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mostrava o que evitar. Mas a experiência não tinha nenhum poder de encorajamento. Ela apenas demonstrava que nosso futuro seria igual a nosso passado e que o pecado que havíamos cometido uma vez, com repugnância, cometeríamos muitas vezes mais com alegria. Estava claro para ele que o método experimental era o único método para se chegar à análise científica das paixões; e certamente Dorian Gray era uma cobaia feita sob medida e prometia render férteis e divertidos resultados. Seu amor súbito e louco por Sibyl Vane era um fenômeno psicológico nem um pouco desinteressante. Não havia dúvida de que a curiosidade estava relacionada a essa paixão, não só a curiosidade como também o desejo de novas ex periências, apesar de não se tratar de uma paixão simples, pelo contrário, era bastante complexa. O que havia nela do instinto puramente sensual da juventude fora alterado pelo funcionamento da imaginação, transformado em algo que parecia distante do bom senso para o rapaz e, pela mesma razão, ainda mais perigoso. Eram as paixões cujas origens nos iludiam que nos tiranizavam com mais força. Nossas motivações mais fracas eram aquelas cuja natureza conhecíamos. Acontecia-nos muitas vezes pensar que estávamos testando outras pessoas, mas, na verdade, testávamos nós mesmos.

Enquanto Lorde Henry estava sentado sonhando com essas coisas, ouviu uma batida na porta e seu criado entrou, lembrando-lhe que era hora de vestir-se para o jantar. Ele levantou-se e olhou para a rua. O pôr do sol havia pintado as janelas no alto do casario em frente de vermelho-dourado. As vidraças brilhavam como pratos de metal aquecido. O céu sobre elas parecia uma rosa desbotada. Ele lembrou-se da vida cor de fogo de seu jovem amigo e perguntou-se como tudo acabaria.

Quando chegou em casa, por volta da meia-noite e meia, viu um telegrama sobre a mesa do saguão. Abriu-o e descobriu que era de Dorian Gray. Contava-lhe que ficara noivo de Sibyl Vane.

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Mãe, mãe, estou tão feliz! — sussurrou a garota, afun dando o rosto no colo da mulher de aparência cansada, esmaecida, que, com as costas voltadas para a luz estridente e invasiva, senta va-se na única poltrona que sua encardida sala de estar continha.

— Estou tão feliz — repetiu ela — e a senhora deve ficar feliz também!

A sra. Vane retraiu-se e pousou as mãos finas e esbranquiçadas pelo bismuto 41 na cabeça da filha.

— Feliz! — ecoou ela. — Só fico feliz quando a vejo atuar. Você não deve pensar em nada além de sua atuação. O sr. Isaacs tem sido muito bom para nós e devemos-lhe dinheiro.

A garota olhou para a mãe e ficou amuada.

— Dinheiro, mãe? — exclamou ela. — O que importa o di nheiro? Amor vale mais que dinheiro.

— O sr. Isaacs nos adiantou cinquenta libras para pagar nossas dívidas e comprar uma roupa apropriada para James. Você não deve se esquecer disso, Sibyl. Cinquenta libras é uma grande quantia. O sr. Isaacs tem sido muito atencioso.

— Ele não é um cavalheiro, mãe, e detesto a forma como ele fala comigo — disse a garota, pondo-se de pé e dirigindo-se à janela.

— Não sei como teríamos nos virado sem ele — respondeu a velha, com um tom irritadiço.

Sibyl Vane jogou a cabeça para trás, rindo.

41 Elemento químico usado pela indústria cosmética. (N. do T.)

OSCAR WILDE 87
5
CAPÍTULO

— Não vamos mais precisar dele, mãe. O Príncipe Encantado go verna a nossa vida agora. — Então fez silêncio. Uma rosa agitou-se em seu sangue e escureceu suas faces. Um rápido suspiro separou as pé talas de seus lábios. Eles estremeceram. Alguma brisa austral de pai xão alastrou-se sobre ela e agitou as delicadas dobras de seu vestido.

— Amo-o — disse ela, com toda a simplicidade.

— Tola criança! Tola criança! — Foi a frase involuntária lança da em resposta. O acenar dos dedos tortos, cobertos de bijuterias, conferiu um ar grotesco às palavras.

A garota riu novamente. Ouvia-se a alegria de um pássaro en gaiolado em sua voz. Seus olhos captavam a melodia, ecoavam-na com resplendor e então fechavam-se por um momento, como se quisessem esconder seu segredo. Quando abriram-se novamente, haviam sido trespassados pela névoa de um sonho.

A sabedoria de finos lábios falava-lhe da poltrona puída, insinuando-lhe prudência, citando aquele livro de covardia cujo autor macaqueia o nome do bom senso. Ela não ouvia. Sentia-se livre no seu cárcere de paixão. Seu príncipe, o Príncipe Encantado, acompanhava-a. Reconstituía-o, buscando-o na memória. Enviara sua alma à procura dele, e ela o trouxe de volta. O beijo dele ar dia novamente em sua boca. As pálpebras dela aqueciam-se com seu hálito.

Então a sabedoria alterou seu método e falou-lhe sobre observação e descoberta. Talvez esse jovem rapaz fosse rico. Se o for, deve-se pensar em casamento. As ondas da astúcia mundana quebraram nas conchas de seus ouvidos. As setas do embuste atra vessaram-na. Ela viu os finos lábios movendo-se e sorriu.

Subitamente, sentiu necessidade de falar. A falta de palavras perturbava-a.

— Mãe, mãe — exclamou ela —, por que ele me ama tanto? Eu sei porque o amo. Amo-o porque ele é como o próprio amor deveria ser. Mas o que ele vê em mim? Não sou merecedora dele. E, mesmo

88 O RETRATO DE DORIAN GRAY

assim — não sei dizer por que —, apesar de sentir-me tão inferior a ele, não sinto modéstia. Sinto orgulho, muito orgulho. Mãe, a senhora amou meu pai tanto quanto amo o Príncipe Encantado?

A velha empalideceu sob o grosseiro pó que cobria suas faces, e seus lábios ressecados contraíram-se em um espasmo de dor. Sibyl correu até ela, entrelaçou os braços ao redor de seu pescoço e beijou-a.

— Perdoe-me, mãe. Sei que lhe é doloroso falar sobre nosso pai. Mas isso a atormenta apenas porque a senhora o amou muito. Não fique triste. Estou tão feliz hoje quanto a senhora estava vinte anos atrás. Ah! Permita-me ser feliz para sempre!

— Minha criança, você é jovem demais para pensar em apaixonar-se. Além disso, o que você sabe a respeito desse rapaz? Nem sequer sabe seu nome. Tudo isso é muito inconveniente e, realmente, com James na Austrália e eu com tanto em que pensar, devo dizer que você deveria demonstrar um pouco mais de consi deração. No entanto, como havia dito antes, se ele é rico...

— Ah! Mãe, mãe, deixe-me ser feliz!

A sra. Vane olhou para ela e, com um de seus dissimulados gestos teatrais que tão frequentemente se tornam uma espécie de segunda natureza para um ator de teatro, apertou-a em seus braços. Nesse momento, a porta abriu-se e um jovem de cabelos castanhos crespos entrou na sala. Era uma figura atarracada, com mãos e pés grandes e movimentos um tanto desajeitados. Ele não tinha a mesma classe de sua irmã. Dificilmente alguém adivinharia a relação existente entre eles. A sra. Vane olhou-o fixamente e sorriu com mais intensidade. Mentalmente, elevava o filho à dignidade de uma plateia. Ela tinha certeza de que o cenário era interessante.

— Acredito que você deve guardar alguns desses beijos para mim, Sibyl — disse o rapaz com um grunhido afetuoso.

— Ah! Mas você não gosta de ser beijado, Jim — exclamou ela. — Você é um velho urso assustador. — Ela correu pela sala e abraçou-o.

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James Vane olhou para o rosto da irmã com carinho.

— Quero que venha caminhar um pouco comigo, Sibyl. Creio que nunca mais verei novamente essa horrenda Londres. Certa mente, não é de minha vontade.

— Meu filho, não diga coisas tão horríveis — murmurou a sra. Vane e, suspirando, pegou um espalhafatoso vestido do teatro e co meçou a remendá-lo. Ela sentia-se um pouco desapontada por ele não se juntar à trupe, o que teria realçado o caráter pitoresco da situação.

— Por que não, mãe? É o que penso.

— Você me machuca, meu filho. Espero que você retorne da Austrália rico. Acredito que não há nenhum tipo de sociedade nas colônias — nada que possa ser chamado de sociedade. Então, quando você fizer fortuna, deve voltar e estabelecer-se em Londres.

— Sociedade! — murmurou o rapaz. — Não quero saber de nada disso. Gostaria de fazer algum dinheiro para tirar a senhora e Sibyl dos palcos. Detesto isso.

— Ah, Jim! — disse Sibyl, rindo. — Que crueldade a sua! Mas você quer mesmo sair para caminhar comigo? Que agradável! Temia que você fosse se despedir de alguns de seus amigos — de Tom Hardy, que lhe deu esse cachimbo horroroso, ou de Ned Langton, que zomba de você por fumá-lo. É muito gentileza sua reservar-me sua última tarde. Onde podemos ir? Vamos para o parque.

— Pareço um maltrapilho — respondeu ele franzindo a testa. — Apenas pessoas refinadas frequentam o parque.

— Que besteira, Jim — ela sussurrou, alisando-lhe a manga do casaco.

Ele hesitou por um momento.

— Muito bem — disse, afinal —, mas não demore para se apron tar. — Ela bailou porta afora. Podia-se ouvi-la cantando enquanto subia as escadas. Seus pezinhos reverberavam no andar de cima.

90 O RETRATO DE DORIAN GRAY

Ele percorreu a sala duas ou três vezes. Então, virou-se para a figura imóvel na poltrona.

— Mãe, minhas coisas estão prontas? — perguntou.

— Praticamente prontas, James — respondeu ela, mantendo os olhos em seu trabalho. Nos últimos meses, ela sentia-se pouco à vontade quando ficava sozinha com esse seu filho austero e rís pido. Sua natureza dissimulada e superficial ficava incomodada quando seus olhos se encontravam. Ela habituara-se a imaginar se ele suspeitava de algo. O silêncio, já que ele nunca fazia nenhum comentário, tornou-se intolerável para ela. Ela começou a reclamar. As mulheres defendem-se atacando, assim como atacam recorrendo a estranhas e súbitas submissões. — Espero que você seja feliz, James, com sua vida no mar — disse ela. — Deve lembrar-se que é uma escolha sua. Poderia muito bem ter-se tornado um advo gado. Advogados são uma classe muito respeitável e, no interior, costumam jantar com as melhores famílias.

— Detesto escritórios e detesto funcionários — respondeu ele. — Mas a senhora está certa. Escolhi minha própria vida. Tudo o que posso lhe pedir é que vigie Sibyl. Não deixe que nenhum mal lhe aconteça. Mãe, a senhora deve tomar conta dela.

— James, realmente, você fala de um modo tão estranho. Certamente que vou tomar conta de Sibyl.

— Fiquei sabendo que um cavalheiro vem todas as noites ao teatro e entra nos bastidores para falar com ela. Acha isso certo? O que me tem a dizer a esse respeito?

— Você fala de coisas que não entende, James. Na nossa profissão, habituamo-nos a receber muitas atenções, das mais gratificantes. Eu mesma costumava receber muitos buquês de flores de uma única vez. Isso quando as pessoas compreendiam o que era atuar. Quanto a Sibyl, não sei dizer se sua ligação é séria ou não. Mas não há dúvidas de que o rapaz em questão é um perfeito

OSCAR WILDE 91

cavalheiro. Ele é sempre extremamente educado comigo. Além disso, aparenta ser rico e oferece flores adoráveis.

— No entanto, a senhora não sabe seu nome — disse o ra paz rudemente.

— Não — respondeu sua mãe com uma expressão tranquila no rosto. — Ele ainda não revelou seu verdadeiro nome. Penso ser muito romântico da parte dele. Provavelmente é um membro da aristocracia. James Vane mordeu o lábio.

— Cuide de Sibyl, mãe! — exclamou ele. — Vigie-a.

— Meu filho, você me aflige muitíssimo. Sibyl está sempre sob meus cuidados especiais. Certamente, se esse cavalheiro é abas tado, não há nenhuma razão para ela não acertar um casamento com ele. Acredito que ele faz parte da aristocracia. Tem toda a aparência para sê-lo, devo dizer. Seria um ótimo casamento para Sibyl. Fariam um casal encantador. Sua boa aparência é realmente notável; todos reparam nela.

O rapaz murmurou algo para si e bateu na vidraça da janela com seus dedos grosseiros. Acabara de virar-se para dizer algo quando a porta se abriu e Sibyl entrou correndo.

— Como vocês dois estão sérios! — bradou ela. — Algum problema?

— Nenhum — ele replicou. — Suponho que devemos ser sérios de vez em quando. Adeus, mãe. Vou jantar às cinco horas. Tudo está empacotado, exceto minhas camisas, então a senhora não precisa se incomodar.

— Adeus, meu filho — respondeu ela curvando-se com uma imponência forçada.

Ela estava extremamente aborrecida com o tom que ele adotara com ela, e havia algo em seu olhar que a amedrontava.

— Beije-me, mãe — disse a garota. Seus lábios de flor tocaram-lhe a face ressecada, aquecendo-a.

92 O RETRATO DE DORIAN GRAY

— Minha criança! Minha criança! — exclamou a sra. Vane, olhando para o teto à procura de uma tribuna imaginária.

— Venha, Sibyl — disse seu irmão, impaciente. Ele detestava a teatralidade da mãe.

Saíram ao encontro da cintilante luz do sol, dissipada pelo vento, e desceram a melancólica Euston Road. Os transeuntes olhavam admirados para o jovem mal-encarado e taciturno, em roupas grosseiras e desalinhadas, que acompanhava uma garota tão graciosa e com aparência tão refinada. Parecia um jardineiro ordinário levando uma rosa para passear.

Jim franzia a testa de tempos em tempos, quando captava o olhar inquisitivo de algum estranho. Ele tinha aversão a ser obser vado, algo que surge tardiamente nas pessoas de intelecto, mas que está sempre presente nas pessoas ordinárias. Sibyl, no entanto, não tinha noção alguma do efeito que causava. O amor que sentia tremia em risos em seus lábios. Ela pensava no Príncipe Encantado e, para evitar pensar ainda mais, não falava nele, preferindo tagarelar sobre o barco em que Jim iria navegar, sobre o ouro que certamente ele encontraria, sobre a maravilhosa herdeira que ele resgataria dos cruéis bandoleiros de camisa vermelha. Pois ele não permaneceria um marinheiro, um supercargo42 , ou seja lá o que fosse. Ah, não! A vida de um marinheiro era pavorosa. Imagine ficar engaiolado em um navio horrível, com as ondas turbulentas e corcundas tentando penetrar, e um vento sombrio golpeando os mastros e rasgando as velas em longas e estrondosas tiras! Ele deveria deixar o bar co em Melbourne, despedir-se educadamente do capitão e partir imediatamente para as minas de ouro. Em menos de uma semana, encontraria uma imensa pepita de ouro puro, a maior já encontrada, e a traria para a costa em uma caravana escoltada por seis guardas montados. Os bandoleiros atacariam-nos três vezes e seriam derro

42 Responsável pela carga no interior de um navio. (N. do T.)

OSCAR WILDE 93

tados em um massacre descomunal. Não! Ele não iria para as minas de ouro, absolutamente. Eram lugares horrendos, onde os homens intoxicavam-se, atiravam uns nos outros em tabernas e falavam palavrões. Ele seria um simpático criador de ovelhas e, certa noite, enquanto voltasse para casa, veria a bela herdeira sendo carregada por um ladrão em um cavalo negro, os perseguiria e a salvaria. Claro, ela apaixonaria-se por ele, e ele por ela, e casariam-se, e voltariam para casa, e morariam em uma casa imensa em Londres. Sim, o fu turo reservava-lhe coisas maravilhosas. Mas ele deveria ser muito generoso e não poderia perder o juízo ou gastar seu dinheiro à toa. Ela tinha apenas um ano a mais que ele, mas já sabia muito mais sobre a vida. Ele não poderia se esquecer, tampouco, de escrever-lhe sempre que encontrasse um posto dos correios e rezar todas as noites antes de se deitar. Deus era muito bom e iria protegê-lo. Ela rezaria por ele também e, em poucos anos, ele voltaria rico e feliz.

O rapaz ouvia amuado, sem nada responder. Estava deprimido por deixar sua casa.

Mas não era apenas isso que o tornava melancólico e taciturno. Apesar de sua inexperiência, tinha consciência do perigo que Sibyl corria. O tal janota que lhe fazia a corte não devia ter boas inten ções. Tratava-se de um cavalheiro e ele o odiava por isso, odiava-o devido a um estranho instinto que ele não conseguia explicar e, assim sendo, esse ódio dominava-o ainda mais. Também tinha consciência da natureza fútil e orgulhosa de sua mãe e via nela riscos ilimitados para Sibyl e sua felicidade. As crianças começam por amar seus pais; ao crescer, julgam-nos; às vezes, perdoam-nos. Sua mãe! Tinha algo em mente que queria lhe perguntar, algo que estava ruminando silenciosamente havia muitos meses. Uma frase que ouvira no teatro por acaso, um sussurro irônico que lhe chegara aos ouvidos enquanto ele esperava nos bastidores e que desencadeara uma série de pensamentos medonhos. Lembrava-se disso como se o tivessem chicoteado no rosto. Suas sobrancelhas

94 O RETRATO DE DORIAN GRAY

uniram-se em um sulco profundo e, com uma contração dolorosa, ele mordeu o lábio inferior.

— Você não ouviu uma palavra do que eu disse, Jim — ex clamou Sibyl — e eu estava fazendo os planos mais encantadores para o seu futuro. Diga alguma coisa.

— O que você quer que eu diga?

— Ah! Que você será um bom garoto e não se esquecerá de nós — respondeu ela, sorrindo-lhe.

Ele encolheu os ombros.

— É mais provável que você se esqueça de mim do que o con trário, Sibyl.

Ela enrubesceu.

— O que quer dizer, Jim? — perguntou ela.

— Ouvi dizer que tem um novo amigo. Quem é ele? Por que não me contou sobre ele? Ele não tem boas intenções a seu respeito.

— Pare, Jim! — exclamou ela. — Você não pode dizer nada contra ele. Eu o amo.

— Ora, você nem sequer sabe seu nome — respondeu o rapaz. — Quem é ele? Tenho o direito de saber.

— Ele se chama Príncipe Encantado. Você não gosta do nome? Ah! Seu tolo! Nunca se esqueça dele. Se você o visse, pensaria que se trata da pessoa mais maravilhosa do mundo. Você o conhecerá algum dia — quando voltar da Austrália. Você gostará tanto dele. Todos gostam dele, e eu... eu o amo. Gostaria que você pudesse vir ao teatro hoje à noite. Ele estará lá e vou encenar Julieta. Ah! Como vou representá-la! Imagine, Jim, estar apaixonada e fazer o papel de Julieta! Com ele sentado ali! Atuar para seu deleite! Re ceio assustar a companhia, assustar ou fasciná-los. Apaixonar-se é ir além de si mesmo. O horrível sr. Isaacs há de gritar “genial” a seus colegas da taberna. Ele tem me difundido como um dogma; hoje me anunciará como uma revelação. Pressinto que assim será.

OSCAR WILDE 95

E tudo graças a ele, a ele unicamente, o Príncipe Encantado, meu maravilhoso amor, meu magnífico deus. Mas sou tão pobre a seu lado. Pobre? O que isso importa? Quando a pobreza rasteja pela porta, o amor voa pela janela. Nossos provérbios precisam ser re vistos. Foram feitos no inverno e agora é verão; acredito que, para mim, é primavera, uma verdadeira dança de flores em céus azuis.

— Ele é um cavalheiro — disse o rapaz, taciturno.

— Um príncipe! — exclamou ela melodicamente. — O que mais você quer?

— Ele quer escravizá-la.

— Estremeço só de pensar em ser livre.

— Quero que tome cuidado com ele.

— Vê-lo é venerá-lo; conhecê-lo é confiar nele.

— Sibyl, você está louca por ele.

Ela riu e tomou seu braço.

— Querido e velho Jim, você fala como se tivesse cem anos. Algum dia você também se apaixonará. Então saberá do que se trata. Não fique tão emburrado. Certamente você deve ficar feliz em saber que, apesar de sua partida, você me deixará mais feliz do que jamais estive. A vida tem sido dura para nós dois, terrivelmente dura e difícil. Mas tudo será diferente agora. Você parte rumo a um novo mundo e eu encontrei o meu. Há aqui duas cadeiras; vamos nos sentar e observar as pessoas elegantes de passagem.

Sentaram-se no meio de uma multidão de observadores. Os canteiros de tulipas do outro lado da rua brilhavam como anéis de fogo latejantes. Uma poeira branca — parecida com uma nuvem de raízes de lírio — pairava no ar, ofegante. As sombrinhas de cores vivas dançavam como borboletas gigantes.

Ela conseguiu fazer o irmão falar de si mesmo, de suas esperanças, de suas perspectivas. Ele falava lentamente, com mui to esforço. Eles trocavam palavras como jogadores trocando suas

96 O RETRATO DE DORIAN GRAY

fichas. Sibyl sentia-se oprimida. Ela não conseguia transmitir sua alegria. A única resposta que alcançava naquela boca soturna era um sorriso fraco. Depois de algum tempo, ficou em silêncio. De repente, vislumbrou uma cabeleira dourada e lábios sorridentes e avistou Dorian Gray com duas damas, numa carruagem aberta.

Ela pôs-se de pé.

— Lá está ele! — gritou ela.

— Quem? — disse Jim Vane.

— O Príncipe Encantado — respondeu ela acompanhando a carruagem com os olhos.

Ele deu um salto e agarrou-lhe o braço bruscamente.

— Mostre-o para mim. Qual deles é ele? Aponte para onde ele está. Devo vê-lo! — ele exclamou; mas, nesse exato instante, o coche do Duque de Berwick pôs-se na frente e, quando finalmente deixou a frente livre, a carruagem já havia desaparecido do parque.

— Ele se foi — murmurou Sibyl com tristeza. — Gostaria que o tivesse visto.

— Também gostaria, pois, tão certo quanto há um Deus no céu, se ele lhe fizer algum mal, eu o matarei.

Ela olhou para ele horrorizada. Ele repetiu as mesmas palavras, que cortaram o ar como uma adaga. As pessoas ao redor olhavam boquiabertas. Uma dama que estava ao lado soltou uma risadinha.

— Vamos embora, Jim; vamos embora — ela sussurrou.

O rapaz a seguiu com um ar obstinado, enquanto ela abria caminho na multidão. Ele ficou feliz com o que dissera.

Quando chegaram à estátua de Aquiles, Sibyl virou-se para o irmão. Havia compaixão em seus olhos, que se tornou riso em seus lábios. Ela balançou a cabeça para ele.

— Você é um tolo, Jim, completamente tolo; um garoto de mau humor, não mais que isso. Como pode dizer coisas tão horríveis? Você não sabe do que está falando. Tem se mostrado ciumento e

OSCAR WILDE 97

cruel. Ah! Como queria que você se apaixonasse. O amor torna as pessoas boas, e o que você disse foi perverso.

— Tenho dezesseis anos — respondeu ele — e sei o que sou. Nossa mãe não a ajuda em nada. Ela não sabe como cuidar de você. Agora desejaria não ir mais para a Austrália. Tenho muita vontade de abandonar tudo. E o faria se não tivesse assinado um contrato.

— Ah, não leve tudo tão a sério, Jim. Você parece um herói daqueles melodramas tolos nos quais nossa mãe gostava tanto de atuar. Não vou brigar com você. Acabo de vê-lo e ah! Vê-lo é a felici dade perfeita. Não vamos discutir. Sei que você nunca machucaria alguém que eu amo, não é?

— Não enquanto você o amar, acho eu — foi a resposta amuada.

— Devo amá-lo para sempre! — ela exclamou.

— E ele?

— Também, para sempre!

— É melhor que o faça.

Ela afastou-se dele. Depois, riu e pousou a mão em seu braço. Era apenas um garoto.

Quando chegaram ao Marble Arch43 , deram sinal para um ôni bus, que os deixou nas proximidades de sua modesta casa, em Euston Road. Já passava das cinco da tarde, e Sibyl tinha de deitar-se por algumas horas antes de subir no palco. Jim insistiu que ela o fizesse. Disse-lhe que preferia separar-se dela sem a mãe presente. Ela com certeza faria uma cena e ele detestava cenas de qualquer espécie.

Separaram-se no quarto de Sibyl. Havia ciúmes no coração do rapaz e um ódio feroz e homicida pelo estranho, que, a seu ver, metera-se entre ele e a irmã. No entanto, quando os braços dela abraçaram-lhe o pescoço e os dedos perderam-se em seus cabelos,

43 Arco do triunfo (monumento aos mortos em guerras) de mármore contíguo ao Hyde Park, em Londres. (N. do T.)

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ele amoleceu e beijou-a com verdadeira afeição. Havia lágrimas em seus olhos quando desceu as escadas.

Sua mãe esperava-o no andar de baixo. Ela queixou-se de sua falta de pontualidade assim que ele entrou. Sem responder-lhe, sentou-se à mesa para comer a parca refeição. As moscas zumbiam ao redor da mesa e rastejavam pela toalha manchada. Em meio ao barulho dos bondes e das diligências, ele podia ouvir a voz monó tona devorando cada minuto que lhe restava.

Depois de um tempo, afastou o prato e apoiou a cabeça entre as mãos. Sentia que tinha o direito de saber. Se fosse como suspeitava, deveriam ter-lhe contado tudo antes. Tomada pelo medo, sua mãe observava-o. As palavras tombavam-lhe dos lábios mecanicamente. Torcia entre os dedos um pedaço de pano esfarrapado. Quando o relógio bateu seis horas, ele levantou-se e dirigiu-se até a porta. Então, virou-se e olhou para ela. Seus olhares cruzaram-se. No olhar dela, ele viu um desesperado pedido de clemência. Isso o enfureceu.

— Mãe, tenho algo a lhe perguntar — disse ele. Os olhos dela percorreram lentamente a sala. Ela não respondeu. — Diga-me a verdade. Tenho o direito de saber. A senhora foi casada com meu pai?

Ela suspirou profundamente. Um suspiro de alívio. O momento aterrador, o momento que, dia e noite, por semanas e meses, ela tanto receara, afinal chegara e, no entanto, ela não sentia medo. Na verdade, até certo ponto, sentia-se decepcionada. A pergunta brusca e sem rodeios pedia uma resposta direta. A situação não foi introdu zida aos poucos. Foi rude. Fez-lhe lembrar-se de um ensaio malfeito.

— Não — ela respondeu, fascinada com a cruel simplicidade da vida.

— Então, meu pai era um canalha! — exclamou o rapaz cerrando os punhos.

Ela balançou a cabeça.

— Eu sabia que ele não era um homem livre. Nós nos amáva mos muito. Se não tivesse morrido, teria assegurado nosso futuro.

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Não fale mal dele, meu filho. Ele era seu pai e um cavalheiro. Na verdade, era muito bem relacionado.

Uma blasfêmia irrompeu de seus lábios.

— Não me preocupo comigo — exclamou ele —, mas não deixe Sibyl... É um cavalheiro, não é, que está apaixonado por ela ou que diz estar? Muito bem relacionado também, suponho.

Por um momento, uma abominável sensação de humilhação tomou conta da mulher. Deixou cair a cabeça. Enxugou os olhos com as mãos trêmulas.

— Sibyl tem mãe — murmurou ela. — Eu não tive nenhuma. O rapaz sensibilizou-se. Aproximou-se dela e, inclinando-se, beijou-a.

— Sinto muito se a magoei ao perguntar-lhe sobre meu pai — disse ele —, mas não pude evitar. Devo partir. Adeus. Não se esqueça de que, a partir de agora, você tem apenas um filho para tomar conta e tenha certeza de que, se esse homem causar algum mal a minha irmã, vou descobrir quem ele é, persegui-lo e matá-lo como um cão. Juro-lhe.

A insanidade exagerada da ameaça, o gestual inflamado que a acompanhou e as loucas palavras melodramáticas fizeram com que a vida lhe parecesse mais intensa. Ela tinha familiaridade com o ambiente. Respirou mais livremente e, pela primeira vez em muitos meses, sentiu verdadeira admiração pelo filho. Gostaria de ter continuado a cena com a mesma força emocional, mas ele interrompeu-a. Havia baús a carregar e agasalhos a procurar. O lacaio da pensão entrava e saía com urgência. Ainda tinha de ne gociar valores com o cocheiro. O momento perdeu-se em detalhes vulgares. Foi com um renovado sentimento de decepção que acenou da janela o lenço de tecido esfarrapado enquanto o filho partia. Tinha consciência de que desperdiçara uma grande oportunidade. Reconfortou-se contando a Sibyl quão desolada seria sua vida agora que só tinha uma filha para cuidar. Lembrou-se da promessa do

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filho. Ficara muito satisfeita com ela. Mas não falou dela a Sibyl. Havia sido expressa com vivacidade e exagero. Tinha a sensação de que todos ririam dela um dia.

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Suponho que já saiba das novidades, Basil — disse na mesma noite Lorde Henry, assim que Hallward adentrou a pe quena sala privativa no Bristol, onde seria servido o jantar para três pessoas.

— Não, Harry — respondeu o artista, entregando seu chapéu e seu casaco ao garçom com uma reverência. — O que aconteceu? Nada sobre política, espero! Não me interesso por ela. Provavelmente não há ninguém na Câmara dos Comuns digno de ser retratado, apesar de muitos deles ficarem mais agradáveis com uma demão de tinta.

— Dorian Gray está noivo — disse Lorde Henry observando-o enquanto falava.

Hallward teve um sobressalto e, logo depois, franziu a testa.

— Dorian, noivo! — exclamou ele. — Impossível!

— É a pura verdade.

— De quem?

— Uma atriz qualquer.

—Não posso acreditar nisso. Dorian é muito sensato.

— Dorian é inteligente demais para não cometer tolices de vez em quando, meu caro Basil.

— Um casamento dificilmente é algo que se comete de vez em quando, Harry.

— Exceto na América — retrucou Lorde Henry, lânguido. — Mas não disse que ele estava casado. Disse que estava noivo. Há uma grande diferença. Lembro nitidamente de ter me casado, mas não tenho nenhuma recordação de ter sido noivo. Sou levado a pensar que nunca fui noivo.

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CAPÍTULO 6

— Mas pense na origem, na posição e na riqueza de Dorian. Seria um absurdo casar-se com alguém tão abaixo dele.

— Se você quiser que ele se case com essa garota, basta dizer-lhe isso, Basil. Certamente se casará, então. Toda vez que um homem faz algo totalmente idiota, é sempre pelos motivos mais nobres.

— Espero que a garota seja boa, Harry. Não quero ver Dorian ligado a alguma criatura vil, que possa degradar sua natureza e arruinar seu intelecto.

— Ah, ela é melhor que boa! Ela é bonita — murmurou Lorde Henry, tomando um gole de vermute com bíter de laranja. — Dorian disse que ela é bonita e, geralmente, não se engana a esse respeito. O retrato que você fez dele despertou-lhe a apreciação da aparência de outras pessoas. Teve esse excelente efeito, entre outros. Nós a ve remos hoje à noite, se o garoto não se esquecer de seu compromisso.

— Está falando sério?

— Muito sério, Basil. Ficaria muito triste se, algum dia, pen sasse em ter de ser ainda mais sério do que neste momento.

— Mas você aprova isso, Harry? — perguntou o pintor, per correndo toda a sala e mordendo o lábio. — Você não pode aprovar isso realmente. Trata-se de uma paixão tola.

— Eu nunca aprovo ou desaprovo coisa alguma. Seria uma ati tude absurda a se tomar perante a vida. Não fomos enviados a este mundo para expor nossos preconceitos morais. Nunca presto atenção ao que as pessoas comuns dizem e nunca interfiro no que pessoas encantadoras fazem. Se uma personalidade me fascina, qualquer for ma de expressão que essa personalidade escolher será absolutamente encantadora para mim. Dorian Gray apaixona-se por uma bela garota que faz o papel de Julieta e propõe-lhe casamento. Por que não? Se ele desposasse Messalina 44 , não seria menos interessante.

44 Messalina (17-48) foi a terceira esposa do imperador romano Cláudio. Tinha a reputação de ser poderosa, influente e promíscua, e alega-se que ela teria conspirado contra o marido, tendo sido executada quando seu plano foi descoberto. (N. do T.)

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Você sabe muito bem que não sou um defensor do casamento. Sua grande desvantagem é que ele nos torna altruístas. E pessoas altruís tas são enfadonhas. Elas não têm personalidade. Mesmo assim, há certos temperamentos que acabam ficando mais complexos com o ca samento. Eles retêm seu egoísmo e adicionam-lhe muitos outros egos. São forçados a ter mais de uma vida. Tornam-se extremamente orga nizados, e tornar-se extremamente organizado é, a meu ver, o objeti vo da existência humana. Além disso, toda experiência tem seu valor e, não importa o que digam contra o casamento, ele é, sem sombra de dúvida, uma experiência. Espero que Dorian Gray faça dessa garota sua esposa, que a venere por seis meses e, então, subitamente fique fascinado por outra pessoa. Ele seria um excelente objeto de estudo.

— Você não leva a sério nenhuma das palavras que disse, Harry; sabe que não. Se a vida de Dorian Gray fosse arruinada, ninguém lamentaria mais que você. Você é uma pessoa muito melhor do que finge ser.

Lorde Henry riu.

— A razão pela qual gostamos de ter outras pessoas em tão alta conta é que nos inquietamos por nós mesmos. A base do otimismo é o absoluto terror. Pensamos ser generosos porque atribuímos ao nosso vizinho as virtudes que mais nos beneficiarão. Exaltamos o banqueiro na esperança de poder sacar mais dinheiro do que temos em nossa conta e procuramos boas qualidades no ladrão de estradas na expec tativa de que ele poupe nossos bolsos. Levei muito a sério tudo que disse. Tenho um enorme desprezo pelo otimismo. Quanto a uma vida arruinada, nenhuma vida é arruinada, a não ser que lhe seja interrom pido o crescimento. Se você quiser estragar a natureza de alguém, deve simplesmente aperfeiçoá-la. Quanto ao casamento, claro que seria algo tolo, pois há outras ligações mais interessantes entre homens e mulhe res. Certamente eu as incentivaria. Elas têm o encanto de ser populares. Mas aí está o próprio Dorian. Ele lhe dirá muito mais do que eu poderia.

— Meu caro Harry, meu caro Basil, ambos devem parabenizar-me! — disse o rapaz, livrando-se de sua capa de noite com laterais forradas de cetim e apertando a mão de seus amigos. — Nunca es

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tive tão feliz. Certamente, foi tudo muito repentino — como todas as coisas realmente encantadoras são. E, mesmo assim, parece-me ser a única coisa que buscara por toda a minha vida. — Rubori zava de excitação e prazer e estava extraordinariamente bonito.

— Espero que esteja sempre muito feliz, Dorian — disse Hallward —, mas não sei se o perdoo por não ter me avisado antes do seu noivado. Você avisou Harry.

— E eu não o perdoo por estar atrasado para o jantar — inter rompeu Lorde Henry, colocando a mão no ombro do rapaz e sorrindo enquanto falava. — Venha, vamos nos sentar e ver como o novo chef aqui se sai, e então você nos contará como tudo aconteceu.

— Não há realmente muito a dizer — exclamou Dorian assim que eles se sentaram ao redor da pequena mesa redonda. — Tudo se passou simplesmente assim. Depois que o deixei ontem à noite, Harry, eu me vesti, jantei naquele restaurantezinho italiano na Rua Rupert que você me apresentou e dirigi-me ao teatro às oito horas. Sibyl representava Rosalinda. Certamente o cenário era horroroso, e Orlando, ridículo. Mas Sibyl! Vocês deveriam tê-la visto! Quando ela surgiu nas suas roupas de menino, estava perfeitamente maravi lhosa. Ela vestia um colete verde-musgo com mangas cor de canela, calças curtas com amarração marrom, uma boina verde, pequena e delicada, com uma pena de águia presa com um rubi e uma capa com capuz forrado de vermelho-escuro. Ela nunca me parecera tão extraordinária. Tinha todo o delicado encanto daquela estatueta de Tânagra45 que você tem em seu ateliê, Basil. Seus cabelos emoldu ravam seu rosto como folhas escuras ao redor de uma rosa pálida. Quanto à sua atuação — bom, vocês poderão vê-la hoje à noite. Ele é simplesmente uma artista nata. Sentado no camarote encar dido, encontrava-me absolutamente fascinado. Esqueci que estava em Londres e no século XIX. Estava com meu amor, em uma floresta

45 As estatuetas de Tânagra eram pequenas esculturas de terracota, produzidas pelos gregos antigos a partir do século IV a.C., e representavam principalmente mulheres jovens e de formas esbeltas. (N. do T.)

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longínqua onde nenhum homem jamais estivera. Depois que o espe táculo acabou, fui para a coxia e falei com ela. Enquanto estávamos sentados juntos, subitamente surgiu em seu olhar algo que nunca havia visto antes. Meus lábios moveram-se em direção aos dela. Nós nos beijamos. Não consigo lhes descrever o que senti naquele momento. Pareceu-me que toda a minha vida havia convergido para um único ponto perfeito de alegria cor-de-rosa. Todo o seu corpo estremeceu e ela vibrou como um narciso branco. Então, ela se pôs de joelhos e beijou minhas mãos. Sinto que não deveria dizer-lhes isso, mas não consigo evitar. Claro, nosso noivado é um segredo de morte. Ela não contou nem sequer à própria mãe. Não sei o que meus tutores vão dizer. Lorde Radley ficará furioso, com certeza. Não me importo. Atingirei a maioridade em menos de um ano e, então, poderei fazer o que quiser. Fiz bem ou não fiz, Basil, em tirar meu amor da poesia e encontrar minha esposa nas peças de Shakespeare? Lábios que Shakespeare ensinou a falar sussurraram seu segredo em meu ouvido. Tive os braços de Rosalinda ao meu redor e beijei Julieta na boca.

— Sim, Dorian, suponho que esteja certo — disse Hallward lentamente.

— Você a viu hoje? — perguntou Lorde Henry.

Dorian Gray balançou a cabeça.

— Deixei-a na floresta de Arden; devo encontrá-la em um pomar de Verona.

Lorde Henry, pensativo, tomou um gole de seu champanhe.

— Precisamente em que momento você mencionou a palavra casamento, Dorian? E o que ela respondeu? Talvez você tenha se esquecido completamente.

— Meu caro Harry, não tratei do assunto como se fosse uma transação comercial e não fiz nenhuma proposta formal. Disse-lhe que a amava e ela respondeu que não era digna de ser minha es posa. Não era digna! Ora, o mundo inteiro não é nada para mim comparado a ela.

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— As mulheres são maravilhosamente práticas — murmurou Lorde Henry —, muito mais práticas que nós. Em situações desse tipo, frequentemente nos esquecemos de dizer qualquer coisa re lacionada a casamento, e elas sempre nos lembram.

Hallward colocou a mão sobre seu braço.

— Pare, Harry. Você aborreceu Dorian. Ele não é como os outros homens. Ele nunca traria infelicidade a ninguém. Sua natureza é boa demais para isso.

Lorde Henry olhou do outro lado da mesa.

— Dorian nunca se aborrece comigo — respondeu ele. — Eu fiz-lhe essa pergunta com a melhor das intenções, pela única inten ção, na verdade, que justifica qualquer tipo de pergunta — a simples curiosidade. Tenho uma teoria de que são sempre as mulheres que nos propõem casamento, e não o contrário. Exceto, é claro, na vida da classe média. Mas a classe média não é moderna o suficiente. Dorian Gray riu lançando a cabeça para trás.

— Você é incorrigível, Harry; mas não me importo. É impossí vel ficar bravo com você. Quando você vir Sibyl Vane, vai sentir que qualquer homem que a enganasse seria um animal, um animal sem coração. Não posso entender como alguém pode desejar desonrar o objeto de seu amor. Amo Sibyl Vane. Quero colocá-la em um pedestal de ouro e ver o mundo idolatrar a mulher que é minha. O que é o casa mento? Um voto irreversível. É por isso que você o menospreza. Ah! Não o faça. É um voto irreversível que quero fazer. A confiança dela torna-me fiel, sua fé torna-me bom. Quando estou com ela, lamento tudo que você me ensinou. Torno-me uma pessoa diferente daquela que você conheceu. Estou mudado, e o simples toque da mão de Sibyl Vane me faz esquecer de você e de todas as suas teorias encantadoras, fascinantes, venenosas e enganosas.

— E elas seriam...? — perguntou Lorde Henry, servindo-se de um pouco de salada.

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— Ah, suas teorias sobre a vida, suas teorias sobre o amor, suas teorias sobre o prazer. Todas as suas teorias, na verdade, Harry.

— O prazer é a única coisa digna de ter uma teoria a seu respeito — respondeu ele com sua voz melodiosa e arrastada. — Mas receio não poder alegar que a teoria é minha. Ela pertence à Natureza, não a mim. O prazer é o teste da Natureza, seu sinal de aprovação. Quando ficamos felizes, somos sempre bons, mas quando somos bons nem sempre ficamos felizes.

— Ah! Mas o que você quer dizer com bom? — exclamou Basil Hallward.

— Sim — ecoou Dorian, recostando-se em sua cadeira e olhan do para Lorde Henry por sobre o volumoso buquê de íris roxas que estava no centro da mesa —, o que você quer dizer com bom, Harry?

— Ser bom é estar em harmonia consigo mesmo — respondeu ele, tocando a fina haste de sua taça com os dedos pálidos e pontudos. — A discórdia surge quando se é forçado a estar em harmonia com os outros. Nossa própria vida — isso é que é importante. Quanto à vida de nossos vizinhos, se queremos ser arrogantes ou puritanos, podemos externar-lhes nossas opiniões morais sobre eles, mas eles não nos dizem respeito. Além disso, o individualismo é realmente o objetivo absoluto. A moralidade moderna consiste em aceitar as regras da nossa época. Considero que qualquer homem culto que se submete às regras de sua época incorre na mais repugnante forma de imoralidade.

— Mas, certamente, se vivermos somente em função de nós mesmos, Harry, poderemos pagar um preço terrível, não? — su geriu o pintor.

— Sim, temos de pagar caro por tudo hoje em dia. Imagino que a verdadeira tragédia do pobre é não poder pagar por nada além da abne gação. Belos pecados, assim como belas coisas, são privilégio dos ricos.

— Há outras formas de se pagar o preço, não somente com dinheiro.

— Que outras formas, Basil?

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— Ah! Imagino que com remorso, com sofrimento, com... bom, com a consciência da degradação.

Lorde Henry encolheu os ombros.

— Meu caro amigo, a arte medieval é encantadora, mas as emoções medievais estão ultrapassadas. Pode-se utilizá-las na ficção, claro. Mas as únicas coisas que podem ser usadas na ficção são aquelas que deixamos de usar de fato. Acredite-me, nenhum homem civilizado jamais se arrepende de um prazer, e nenhum homem primitivo sequer sabe o que é prazer.

— Eu sei o que é prazer — exclamou Dorian Gray. — É ado rar alguém.

— Isso é certamente melhor que ser adorado — respondeu ele, mexendo em algumas frutas. — Ser adorado é um incômodo. As mulheres tratam-nos da mesma forma que a humanidade trata seus deuses. Elas idolatram-nos e estão sempre nos aborrecendo para fazer algo por elas.

— Eu diria que tudo o que elas nos pedem ofereceram-nos antes — murmurou o rapaz, com seriedade. — Foram elas que ins piraram o amor dentro de nós. Têm o direito de pedi-lo em retorno.

— Isso é a pura verdade, Dorian — exclamou Hallward.

— Nada é a pura verdade — disse Lorde Henry.

— Isso é — interrompeu Dorian. — Você tem de admitir, Harry, que as mulheres dão aos homens o melhor de sua vida.

— É possível — suspirou ele —, mas, invariavelmente, elas pedem-no de volta em pequeníssimas porções. Esse é o problema. As mulheres, como algum francês espirituoso já disse, inspiram-nos a que rer fazer obras-primas e, depois, sempre impedem-nos de executá-las.

— Harry, você é pavoroso. Não sei por que gosto tanto de você.

— Você sempre gostará de mim, Dorian — retrucou ele. — Vocês querem café, meus amigos? Garçom, traga-nos café, um bom champanhe e cigarros. Não, esqueça dos cigarros — tenho alguns comigo. Basil, não posso permitir que fume charutos. Você deve

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fumar um cigarro. O cigarro é o exemplo perfeito de um prazer perfeito. É refinado e deixa-nos insatisfeitos. O que mais se poderia querer? Sim, Dorian, você sempre gostará de mim. Para você, repre sento todos os pecados que você nunca teve coragem de cometer.

— Como você fala bobagens, Harry! — exclamou o rapaz, acendendo seu cigarro com um dragão cuspidor de fogo que o garçom colocara sobre a mesa. — Vamos para o teatro. Quando Sibyl entrar no palco, vocês terão um novo ideal de vida. Ela lhes representará algo que vocês não conheciam até então.

— Eu já conheci de tudo — disse Lorde Henry, com um olhar cansado nos olhos —, mas estou pronto para uma nova emo ção. No entanto, receio que não exista tal coisa, pelo menos para mim. Ainda assim, sua maravilhosa garota pode entusiasmar-me. Adoro a atuação. É tão mais real que a vida. Vamos lá. Dorian, você irá comigo. Sinto muito, Basil, mas só há lugar para duas pessoas no coche. Você terá de nos seguir em uma carruagem. Eles levantaram-se e puseram seus casacos, bebericando o café em pé. O pintor estava em silêncio, preocupado. Pairava uma me lancolia sobre ele. Ele não conseguia tolerar aquele casamento, mas, mesmo assim, parecia-lhe ser melhor que muitas outras coisas que poderiam ter acontecido. Depois de alguns minutos, desceram ao térreo. Ele partiu em uma carruagem sozinho, como ficara combi nado, e observava as luzes faiscantes do pequeno coche à sua frente. Uma estranha sensação de perda tomou conta dele. Ele sentiu que Dorian Gray nunca mais seria para ele o que já fora no passado. A vida colocara-se entre eles... Seus olhos turvaram-se e as ruas acirradas, apinhadas de gente, tornaram-se um borrão embaçado. Quando a carruagem parou em frente ao teatro, parecia-lhe que tinha ficado anos mais velho.

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CAPÍTULO 7

Por alguma razão, o teatro estava lotado naquela noite, e o gordo diretor judeu que os encontrou à porta irradiava um sorriso trêmulo e oleoso, de orelha a orelha. Ele acompanhou -os até o camarote com uma espécie de humildade afetada, ges ticulando com suas mãos gordas cobertas de joias e falando a plenos pulmões. Dorian Gray detestava-o mais do que nunca. Ele sentia-se como se tivesse vindo procurar Miranda46 e tivesse encontrado Caliban. Lorde Henry, por sua vez, gostou bastante dele. Ou pelo menos declarou que gostara e insistiu em apertar-lhe a mão, assegurando-lhe que se orgulhava de encontrar um homem que havia descoberto um gênio e que fora à falência por um poeta. Hallward divertia-se observando os rostos no fosso. O calor era extremamente opressivo, e a descomunal luz do sol ardia em cha mas como uma dália monstruosa com pétalas de fogo amarelo. Os jovens na galeria tinham tirado os coletes e casacos, pendurando-os nas laterais. Conversavam com pessoas do outro lado do teatro e compartilhavam suas laranjas com as garotas chamativas senta das ao lado deles. Algumas mulheres gargalhavam no fosso. Suas vozes eram terrivelmente estridentes e desafinadas. Ouvia-se o estampido de rolhas vindo do bar.

— Que lugar para se achar sua divindade! — disse Lorde Henry.

— Sim! — respondeu Dorian Gray. — Foi aqui que a encontrei e ela é divina, estando muito além de qualquer coisa viva. Quando ela atuar, vocês se esquecerão de tudo. Essas pessoas grosseiras e

46 Miranda é, juntamente com Caliban (mencionado na página 7), personagem da peça A Tempestade (1610), de Shakespeare. (N. do T.)

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ordinárias, com seus rostos vulgares e gestos brutais, ficam com pletamente diferentes quando ela está no palco. Eles sentam-se em silêncio e observam-na quietos. Choram e riem conforme a vontade dela. Ela torna-os tão sensíveis quanto um violino. Ela espiritualiza-os, e sentimos ter sido feitos com a mesma carne e sangue deles.

— A mesma carne e sangue deles! Ah, espero que não! — ex clamou Lorde Henry, que analisava os ocupantes da galeria com seus binóculos de teatro.

— Não lhe dê nenhuma atenção, Dorian — disse o pintor. — Eu entendo o que você quer dizer e acredito nessa garota. Qualquer pessoa que você amar deve ser maravilhosa, e qualquer garota que tem o efeito que você descreve deve ser refinada e nobre. Espiri tualizar nossa época — eis algo digno de se fazer. Se essa garota pode dar alma àqueles que vivem sem nenhuma, se ela pode criar o sentido da beleza nas pessoas cujas vidas foram sórdidas e feias, se ela pode despi-las de seu egoísmo e emprestar lágrimas às dores que não são delas, ela é digna de toda a sua adoração, digna da adoração do mundo. Esse casamento é muito correto. Não pensei assim a princípio, mas admito agora. Os deuses criaram Sibyl Vane para você. Sem ela, você seria incompleto.

— Obrigado, Basil — respondeu Dorian Gray apertando sua mão. — Eu sabia que você me entenderia. Harry é tão cínico que me amedronta. Mas aí está a orquestra. Ela é bastante terrível, mas dura apenas uns cinco minutos. Então a cortina se levantará e vocês verão a garota a quem quero oferecer toda a minha vida, a quem ofereci tudo que há de bom em mim.

Quinze minutos mais tarde, em meio a uma extraordinária algazarra de aplausos, Sibyl Vane pisou no palco. Sim, ela era certa mente adorável de se olhar — uma criatura das mais encantadoras que ele já vira, Lorde Henry pensou. Havia algo de lisonjeiro em sua graça encabulada e em seus olhos assustados. Um leve rubor, como

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a sombra de uma rosa refletida em um espelho prateado, tomou suas faces quando ela vislumbrou a casa lotada e entusiasmada. Ela recuou alguns passos e seus lábios começaram a tremer. Basil Hallward pôs-se de pé e começou a aplaudir. Imóvel, como em um sonho, Dorian Gray permanecia sentado olhando para ela. Lorde Henry espiava através dos binóculos, murmurando:

— Encantadora! Encantadora!

A cena era o salão da residência da família Capuleto, e Romeu, em seu traje de peregrino, entrara com Mercúcio e seus outros amigos. À sua maneira, a orquestra iniciou alguns compassos de música e a dança começou. Em meio à multidão de atores desengonçados e mal trapilhos, Sibyl Vane movia-se como uma criatura de um mundo mais refinado. Seu corpo oscilava, enquanto ela dançava, como uma planta oscila sobre as águas. As curvas de seu pescoço eram como as curvas de um lírio branco. Suas mãos pareciam feitas do mais frio marfim.

No entanto, ela estava estranhamente apática. Não mostrou nenhum sinal de alegria quando seus olhos pousaram em Romeu. As poucas palavras que ela deveria dizer...

Muito ofendes vossa mão, bom peregrino

Que se mostra tão respeitosa e reverente;

Nas mãos dos santos é que toca o paladino, Palma com palma mostra-se mais conveniente...

...seguidas do breve diálogo que as acompanhava foram ditas de uma forma completamente artificial. A voz era excepcional, mas, do ponto de vista da entonação, soava absolutamente falsa. O timbre es tava equivocado. Tirava toda a vida do verso. Tornava a paixão irreal. Dorian Gray empalideceu ao vê-la. Estava perplexo e ansioso. Nenhum de seus amigos ousava dizer-lhe qualquer coisa. Ela

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pa recia-lhes absolutamente incompetente. Estavam terrivel mente desapontados.

No entanto, sentiam que o verdadeiro teste de qualquer Julieta era a cena do balcão no segundo ato. Aguardavam por ela. Se fa lhasse ali, não haveria nada nela.

Ela estava encantadora quando saiu sob o luar. Não se podia negar. Mas a teatralidade de sua atuação era insuportável e piorava à medida que ela prosseguia. Seus gestos tornaram-se absurdamente artificiais. Ela exagerava em tudo que dizia. A bela passagem...

Sabes bem que a máscara da noite me cobre o rosto; Do contrário, um rubor virginal me pintaria as faces, Por tudo que ouviste-me dizer esta noite...

...foi declamada com a dolorosa precisão de uma estudante que aprendeu a recitar com algum professor de elocução de se gunda categoria. Quando inclinou-se sobre o balcão e proferiu as maravilhosas falas...

Muito embora sejas minha alegria, Não me alegra a aliança desta noite; Por demais impensada, precipitada, súbita,

Tal qual o relâmpago, que deve deixar de existir Antes que possamos dizer: “Ei-lo!” Boa noite, meu querido! Que o sopro do verão amadureça este botão de amor, Que possa transformar-se em flor quando outra vez nos virmos...

...enunciou-as como se não lhe tivessem qualquer sentido. Não se tratava de nervosismo. Na verdade, longe de estar nervosa, ela parecia completamente retraída. Tratava-se simplesmente de falta de talento. Ela era um completo fracasso.

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Mesmo o público ordinário e inculto do fosso e da galeria perdeu o interesse pela peça. Tornaram-se inquietos e começaram a conversar em voz alta e assobiar. O diretor judeu, em pé atrás dos assentos, batia os pés e praguejava com raiva. A única pessoa indiferente era a própria garota.

Quando o segundo ato acabou, surgiu um estrondo de vaias, e Lorde Henry levantou-se de seu assento e colocou o casaco.

— Ela é muito bonita, Dorian — disse ele —, mas não sabe atuar. Vamos embora.

— Vou assistir a toda a peça — respondeu o rapaz, com a voz ressentida e firme. — Sinto muitíssimo por tê-lo feito perder sua noite, Harry. Peço desculpas a ambos.

— Meu querido Dorian, acredito que a srta. Vane esteja doen te — interrompeu Hallward. — Voltaremos alguma outra noite.

— Gostaria que estivesse doente — respondeu ele. — Mas parece-me estar apenas insensível e fria. Ela está completamente diferente. Ontem à noite, era uma grande artista. Hoje, trata-se apenas de uma atriz medíocre e vulgar.

— Não fale assim de alguém que você ama, Dorian. O amor é algo mais maravilhoso que a arte.

— Ambas são meras formas de imitação — comentou Lorde Henry. — Mas vamos embora logo. Dorian, você não precisa ficar aqui mais tempo nenhum. Não faz bem aos nossos princípios assistir a uma má atuação. Além disso, suponho que você queira que sua esposa represente um papel, então o que importa se ela faz Julieta como uma boneca de madeira? Ela é extremamente adorável e, se sabe tanto sobre a vida quanto sabe sobre atuar, será uma experiência encantadora. Há somente dois tipos de pessoa que são realmente fascinantes — as pessoas que sabem absolutamente tudo e aquelas que não sabem absolutamente nada. Por Deus, meu querido menino, não pareça tão trágico! O segredo para continuar jovem é nunca sentir emoções repulsivas. Venha para o clube comigo

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e com Basil. Vamos fumar cigarros e brindar à beleza de Sibyl Vane. Ela é linda. O que mais você quer?

— Vá embora, Harry — exclamou o rapaz. — Quero ficar sozi nho. Basil, você deve ir. Ah! vocês não podem ver que meu coração está em pedaços? — Lágrimas surgiram em profusão de seus olhos. Seus lábios estremeceram e, correndo para os fundos do camarote, ele apoiou-se contra a parede e escondeu o rosto em suas mãos.

— Vamos, Basil — disse Lorde Henry com uma estranha afeição em sua voz, e os dois jovens saíram juntos. Alguns momentos depois, as luzes do palco reacenderam-se e a cortina ergueu-se para o terceiro ato. Dorian Gray voltou para seu assento. Ele parecia pálido, orgulhoso e indiferente. A peça arrastava-se e aparentava interminável. Metade do público deixou o teatro, marchando pesadamente com pesadas botas e rindo. A coisa toda foi um fiasco. O último ato foi encenado para bancos quase vazios. A cortina desceu em meio a risadinhas e gemidos.

Assim que a peça acabou, Dorian Gray correu para os basti dores, entrando no camarim. A garota estava ali, sozinha, com um olhar triunfal no rosto. Seus olhos estavam iluminados por um fogo extraordinário. Havia um resplendor ao seu redor. Seus lábios entreabertos riam-se de algum segredo que só ela conhecia.

Quando ele entrou, ela olhou-o, e uma expressão de alegria infinita apossou-se dela.

— Como atuei mal esta noite, Dorian! — ela exclamou.

— Terrivelmente! — respondeu ele olhando para ela com surpresa. — Terrivelmente! Foi horrível. Você está doente? Você não tem ideia do que foi aquilo. Não tem ideia do quanto sofri.

A garota sorriu.

— Dorian — respondeu ela, demorando-se no seu nome com uma longa musicalidade na voz, como se fosse mais doce que o mel

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para as pétalas avermelhadas de sua boca. — Dorian, você deveria ter compreendido. Mas compreende agora, não é?

— Compreender o quê? — perguntou ele, com raiva.

— O porquê de ter atuado tão mal hoje à noite. Por que sempre atuarei mal. Por que nunca mais atuarei como antes novamente.

Ele encolheu os ombros.

— Imagino que esteja doente. Quando você está doente, não deve atuar. Faz um papel ridículo. Meus amigos ficaram entediados. Eu fiquei entediado.

Ela parecia não lhe dar ouvidos. Estava transformada pela alegria. Um êxtase de felicidade dominava-a.

— Dorian, Dorian! — ela exclamou. — Antes de conhecê-lo, atuar era a única realidade da minha vida. Eu só vivia no teatro. Acreditava que tudo aquilo era verdade. Era Rosalinda em uma noite e Pórcia na outra. A alegria de Beatriz era a minha alegria, e as tristezas de Cordélia também eram minhas. Acreditava em tudo. As pessoas comuns que atuavam comigo pareciam-me ser divinas. Os cenários pintados eram meu mundo. Não conhecia nada além de sombras e julgava-as reais. Então você surgiu — ah, meu lindo amor! — e libertou minha alma da prisão. Você ensinou-me o que é a verdadeira realidade. Hoje, pela primeira vez na minha vida, vi através do vazio, da farsa, da estupidez da frívola exibição em que sempre atuei. Hoje, pela primeira vez, tive consciência de que Romeu era horroroso, velho e maquiado, de que o luar no pomar era falso, de que o cenário era vulgar e de que as palavras que eu proferia eram irreais, não eram minhas, não eram o que eu queria dizer. Você trouxe-me algo muito maior, algo de que a arte é apenas um reflexo. Fez-me entender o que o amor realmente é. Meu amor! Meu amor! Príncipe Encantado! Príncipe da vida! Enjoei das som bras. Você é mais para mim do que toda a arte jamais poderá ser. O que tenho a ver com os fantoches de uma peça? Quando entrei em cena esta noite, não pude entender como tudo se esvaíra de

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mim. Pensei que seria maravilhosa. Percebi que não podia fazer nada. De repente, ficou claro em minha alma o que tudo aquilo significava. O conhecimento foi extraordinário para mim. Eu os ouvia vaiar e sorria. O que sabiam sobre o amor, de um amor como o nosso? Leve-me embora, Dorian — leve-me com você, para um lugar onde possamos ficar sozinhos. Odeio o palco. Posso imitar uma paixão que não sinto, mas não posso imitar aquela que arde em mim como fogo. Ah, Dorian, Dorian, você compreende agora o que tudo significa? Mesmo que eu pudesse atuar, seria uma profanação minha fazer de conta que estou apaixonada. Você me fez ver isso. Ele jogou-se no sofá e virou-lhe o rosto.

— Você matou meu amor — murmurou ele. Sibyl olhou-o maravilhada e riu. Ele não retrucou. Ela foi até ele e, com seus dedos delicados, acariciou-lhe os cabelos. Ajoelhou-se e apertou as mãos dele contra seus lábios. Ele afastou-as e seu corpo estremeceu por completo.

Então, de um salto, ele dirigiu-se à porta.

— Sim! — gritou ele. — Você matou meu amor. Você costu mava atiçar minha imaginação. Agora não atiça nem sequer minha curiosidade. Simplesmente não produz mais nenhum efeito sobre mim. Eu a amava porque era maravilhosa, porque tinha talento e inteligência, porque você dava vida aos sonhos dos grandes poetas e forma e substância às sombras da arte. Você jogou tudo isso fora. Você é superficial e estúpida. Meu Deus! Como fui louco em amá-la! Que tolo eu fui! Você não é nada para mim agora. Nunca mais a verei. Nunca mais pensarei em você. Nunca mencionarei seu nome de novo. Você não sabe o que significou para mim um dia. Ora, um dia... Ah, não suporto nem pensar nisso! Gostaria de nunca ter posto os olhos em você! Você arruinou o romance da minha vida. Como você sabe pouco de amor se diz que ele destrói sua arte. Sem sua arte, você não é nada. Eu a teria tornado famosa, esplêndida,

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magnífica. O mundo a teria idolatrado e você tomaria meu nome. O que é você agora? Uma atriz de última classe com um rosto bonito.

A garota empalideceu e começou a tremer. Ela apertou as mãos uma contra a outra e sua voz pareceu presa na garganta.

— Você está falando sério, Dorian? — murmurou ela. — Você está atuando.

— Atuando? Deixo essa tarefa para você, já que a faz tão bem — ele respondeu com amargor.

Ela levantou-se e, com uma expressão lastimável de dor no rosto, atravessou a sala na direção dele. Pousou a mão em seu braço e olhou-o nos olhos. Ele deu-lhe um empurrão.

— Não me toque! — gritou.

Ela soltou um gemido baixo e atirou-se a seus pés, permane cendo ali como uma flor pisoteada.

— Dorian, Dorian, não me abandone! — ela suspirou. — Perdoe-me se não representei bem. Pensava em você durante todo o tempo. Mas vou tentar — de verdade, vou tentar. Meu amor por você chegou tão inesperadamente. Pensei que nunca o teria conhecido se você não me tivesse beijado — se não nos tivéssemos beijado. Beije-me de novo, meu amor. Não me aban done. Eu não poderia suportar. Ah! Não se afaste de mim. Meu irmão... não; esqueça. Ele não quis dizer aquilo. Estava brincan do... Mas você, ah, você não pode me perdoar por esta noite? Trabalharei duro e tentarei melhorar. Não seja cruel comigo, já que o amo mais que qualquer outra coisa no mundo. Afinal, só o desagradei uma única vez. Você está certo, Dorian. Deveria ter me mostrado uma artista melhor. Foi tolice minha e, mesmo as sim, não pude evitar. Ah, não me abandone, não me abandone.

Um ataque de soluços apaixonados sufocou-a. Ela agachou-se no chão como uma criatura ferida, e Dorian Gray, com seus belos olhos, fitou-a com um ar de superioridade e seus lábios entalha dos curvaram-se com um extraordinário desdém. Há sempre algo

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ridículo nas emoções das pessoas a quem deixamos de amar. Sibyl Vane parecia-lhe absurdamente melodramática. Suas lágrimas e soluços aborreciam-no.

— Estou de saída — disse ele, finalmente, com uma voz tran quila e límpida. — Não quero ser indelicado, mas não posso vê-la novamente. Você me desapontou.

Ela chorava em silêncio, sem retrucar-lhe, arrastando-se para perto dele. Suas pequenas mãos estenderam-se cegamente, pa recendo tentar alcançá-lo. Ele virou-se e saiu da sala. Em poucos instantes, estava fora do teatro.

Por onde andou, ele não se recorda. Lembra-se apenas de ter vagado por ruas mal iluminadas, passando por arcadas desoladas e sombrias e casas asquerosas. Mulheres com vozes roucas e risadas grosseiras cha maram-no. Bêbados cambaleando, praguejando e falando sozinhos, como primatas monstruosos. Vira crianças grotescas amontoadas nas soleiras e ouvira guinchos e blasfêmias vindo de pátios soturnos.

Quando começava a amanhecer, achou-se próximo ao Covent Garden47. A escuridão terminara e, corado por lumes pálidos, o céu parecia tomar o formato de uma pérola perfeita. Enormes carroças repletas de lírios oscilantes ressoavam pela elegante e deserta rua abaixo. O ar estava impregnado pelo perfume das flores, e sua beleza parecia presenteá-lo com um entorpecente para sua dor. Ele seguiu até o mercado e observou os homens descarregando suas carroças. Um carroceiro de avental branco ofereceu-lhe algumas cerejas. Ele agradeceu, perguntando-se por que ele se recusara a aceitar algumas moedas por elas, e começou a comê-las com indiferença. Haviam sido colhidas à meia-noite e o frescor da lua penetrara nelas. Uma longa fila de garotos carregando caixotes de tulipas listradas e rosas vermelhas e amarelas desfilava à sua frente, abrindo caminho em

47 Covent Garden, localizado na região central de Londres, era um mercado popular, semelhante às nossas feiras livres, onde se vendiam frutas, legumes, verduras, peixe etc. (N. do T.)

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meio às enormes pilhas de verduras com tons de jade. Sob o pórtico, com seus pilares acinzentados desbotados pelo sol, um bando de meninas sujas e sem chapéu aguardava o fim do leilão. Outras amontoavam-se ao redor das portas vaivém do café da praça. As pesadas carretas percorriam e pisoteavam o áspero calçamento de pedras, sacudindo seus sinos e adornos. Alguns condutores dormiam sobre uma pilha de sacos. Com seus pescoços azulados e pés rosados, os pombos perambulavam à procura de sementes. Passado um tempo, ele fez sinal para uma carruagem e voltou para casa. Por alguns instantes hesitou sobre a soleira, olhando ao redor para a praça silenciosa, com suas janelas trancadas e vazias e suas persianas contemplativas. O céu, agora, tinha cor de pura opala, e os telhados das casas, em contraste, brilhavam como prata. De alguma chaminé do lado oposto, uma fina coluna de fumaça surgia. Como um laço violeta, ela torcia-se através do firmamento madrepérola.

Na enorme lanterna dourada veneziana — espólio da barcaça de algum doge 48 — que pendia do teto do saguão de entrada re vestido de painéis de carvalho, três chamas tremeluzentes ainda ardiam; pareciam pétalas azuladas com pálidas bordas de fogo. Ele apagou-as e, atirando o chapéu e a capa sobre a mesa, atravessou a biblioteca em direção à porta de seu quarto, um espaçoso aposento octogonal no pavimento térreo, que, devido à sua recente apreciação por tudo que era luxuoso, acabara de mandar redecorar, adornan do-o com algumas curiosas tapeçarias renascentistas encontradas em um sótão abandonado na propriedade de Selby Royal. Enquanto girava a maçaneta da porta, seu olhar recaiu sobre o retrato que Basil Hallward pintara. Ele recuou, como que surpreendido. Então entrou em seu quarto, com um ar intrigado. Depois de desabotoar seu casaco, pareceu hesitar. Finalmente voltou-se, foi até o retrato

48 O doge era o dirigente máximo da antiga república de Veneza e também de Gênova. (N. do T.)

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e examinou-o. Na fraca e turva luz, que lutava para atravessar as cortinas de seda cor de creme, o rosto pareceu-lhe um pouco mudado. A expressão aparentava estar diferente. Podia-se dizer que havia um toque de crueldade em sua boca. Era certamente estranho.

Ele virou-se e, dirigindo-se à janela, abriu as cortinas. A luz brilhante do amanhecer inundou a sala e varreu as fantásticas sombras para cantos obscuros, onde permaneceram, trêmulas. Mas a estranha expressão que ele notara no rosto do retrato con tinuava ali e ainda mais intensa. A luz do sol, forte e vibrante, mostrava-lhe os traços de maldade ao redor da boca com tanta clareza quanto se ele estivesse olhando para seu reflexo depois de cometer algo hediondo.

Recuou e, pegando da mesa um espelho oval emoldurado com cupidos de marfim, um dos muitos presentes que Lorde Henry lhe oferecera, olhou ansioso para suas brilhantes profundezas. Nenhum traço semelhante deformava seus lábios vermelhos. O que significava aquilo?

Esfregou os olhos e aproximou-se do quadro, examinando-o novamente. Não havia nenhum sinal de mudança quando olhava para a pintura e, mesmo assim, não tinha dúvida de que toda a sua expressão estava alterada. Não era apenas sua imaginação. A coisa estava terrivelmente visível.

Lançou-se a uma cadeira e começou a refletir. Subitamente, passou pela sua mente o que havia dito no ateliê de Basil Hallward no dia em que a pintura tinha ficado pronta. Sim, ele se lembrava perfeitamente. Ele declarara o louco desejo de permanecer jovem enquanto o retrato envelheceria; de que sua beleza continuasse impecável e de que o rosto na tela carregasse o fardo de suas paixões e seus pecados; de que a imagem pintada fosse marcada pelos traços do sofrimento e da reflexão e que ele mantivesse todo o delicado encanto e o desabrochar de sua juventude recém-descoberta. Teria seu desejo sido atendido? Tais coisas eram impossíveis. Apenas

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pensar nelas parecia-lhe monstruoso. E, no entanto, lá estava o quadro diante dele, com o toque de crueldade na boca. Crueldade! Fora cruel? Era culpa da garota, não dele. Ele so nhara com ela como uma grande artista, tinha-lhe oferecido seu amor porque imaginara-a grande. E, então, ela o desapontara. Ela fora superficial e indigna. Ainda assim, um sentimento de infinito remorso apoderou-se dele, ao pensar nela a seus pés soluçando como uma criancinha. Lembrou-se da indiferença com que a observara. Por que agira de tal modo? Por que lhe fora dada uma alma assim? Mas ele também tinha sofrido. Durante as três terríveis horas que a peça durou, ele viveu séculos de dor, eras após eras de tortura. Sua vida valia tanto quanto a dela. Ela o arruinara por um momento e ele a ferira por uma eternidade. Além disso, as mulheres tinham mais aptidão para aguentar o sofrimento do que os homens. Elas viviam à custa de suas emoções. Apenas pensavam em suas emo ções. Quando arranjavam amantes, era somente para ter alguém com quem fazer suas cenas. Lorde Henry já lhe dissera isso e Lorde Henry conhecia as mulheres. Por que ele deveria se importar com Sibyl Vane? Ela não significava nada para ele agora.

Mas e o quadro? O que tinha a dizer sobre ele? Ele guardava o segredo de sua vida e contava sua história. Ensinara-lhe a amar a própria beleza. Ensinaria-lhe a abominar sua alma? Conseguiria olhar para ele novamente?

Não; era apenas uma ilusão forjada por seus sentidos contur bados. A noite horrível que passara havia deixado fantasmas no seu rastro. Subitamente, caíra em sua mente a minúscula mancha escarlate que leva os homens à loucura. O quadro não mudara. Era loucura pensar o contrário.

E, no entanto, ele o observava, com seu belo rosto desfigurado e seu sorriso cruel. Seus cabelos cintilantes brilhavam sob o sol da manhã. Os olhos azuis do quadro encontraram os seus. Uma sen sação de infinita piedade, não por si mesmo, mas por sua imagem

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pintada, tomou conta dele. Ela já se transformara e se transformaria ainda mais. O ouro sumiria e se tornaria cinza. Suas rosas vermelhas e brancas morreriam. Para cada pecado que ele cometesse, uma mancha surgiria e arruinaria sua candura. Mas ele não pecaria. O quadro, alterado ou não, seria um símbolo visível da consciência. Ele resistiria à tentação. Não veria mais Lorde Henry — nem ou viria, de maneira nenhuma, as teorias sutilmente venenosas que, no jardim de Basil Hallward, primeiramente despertaram nele a paixão por coisas impossíveis. Voltaria para Sibyl Vane, corrigiria seus erros, casaria-se com ela, tentaria amá-la novamente. Sim, era sua obrigação. Ela deve ter sofrido mais do que ele. Pobre criança! Fora egoísta e cruel com ela. A fascinação que ela exercera sobre ele retornaria. Seriam felizes juntos. Sua vida com ela seria bela e pura. Levantou-se de sua cadeira e colocou um enorme biombo em frente ao retrato, estremecendo ao olhá-lo.

— Que horrível! — murmurou para si mesmo e dirigiu-se até a janela, abrindo-a. Ao sair para o gramado, inspirou pro fundamente. O ar fresco da manhã pareceu esvair todas as suas sombrias paixões. Pensava apenas em Sibyl. Um eco fraco de seu amor fora-lhe restituído. Repetiu seu nome diversas vezes. Os pássaros que cantavam no jardim embebido em orvalho pareciam falar dela às flores.

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CAPÍTULO 8

Pa ssava muito do meio-dia quando acordou. Por várias vezes, seu criado havia entrado sorrateiramente no quarto, na ponta dos pés, para ver se ele se movia e perguntara-se o que fizera seu jovem patrão dormir até tão tarde. Finalmente o sino tocou, e Victor en trou delicadamente com uma xícara de chá e uma pilha de cartas em uma pequena e antiga bandeja de porcelana de Sèvres. Ele abriu as cortinas de cetim cor de oliva, com seu forro azul-cintilante, penduradas diante das três grandes janelas.

— Monsieur dormiu bastante esta manhã — disse ele, sorrindo.

— Que horas são, Victor? — perguntou Dorian Gray, sonolento.

— Uma hora e quinze, monsieur.

Como era tarde! Sentou-se e, bebericando um pouco de chá, voltou-se às cartas. Uma delas era de Lorde Henry e havia sido en tregue pessoalmente naquela manhã. Hesitou um instante e então colocou-a de lado. Abriu as outras com indiferença. Continham a coleção habitual de cartões, convites para jantar, ingressos para exibições privadas, programas de concertos beneficentes e todo tipo de coisas que eram despejadas sobre jovens elegantes todas as manhãs durante a temporada. Havia uma conta bem pesada de um conjunto de toilette Luís XV entalhado em prata, que ele ainda não tivera coragem de enviar a seus tutores, pessoas extremamente antiquadas — eles ainda não haviam percebido que vivíamos em uma época na qual as coisas desnecessárias eram nossas únicas necessidades; e também havia vários informes de agiotas da Rua Jermyn, redigidos de maneira muito amável, oferecendo-se para adiantar de imediato qualquer quantia em dinheiro, com taxas de juros bastante razoáveis.

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Levantou-se cerca de dez minutos depois e, vestindo um elabo rado roupão de caxemira bordado de seda, passou ao banheiro com piso de ônix. A água fria refrescou-o depois de seu longo sono. Parecia ter esquecido tudo por que havia passado. Uma vaga sensação de ter participado de alguma estranha tragédia passou por sua mente uma ou duas vezes, mas vinha revestida da ilusão de um sonho.

Assim que se vestiu, foi até a biblioteca e sentou-se para tomar um leve café da manhã francês, que lhe fora servido em uma pequena mesa redonda próxima à janela aberta. Fazia um dia magnífico. O ar tépido parecia impregnado de especiarias. Uma abelha entrou na sala e zumbiu ao redor do vaso à sua frente, estampado com um dragão azul e repleto de rosas amarelo-vivo. Sentia-se perfeitamente feliz.

De repente, seu olhar recaiu sobre o biombo que colocara em frente ao retrato, e ele assustou-se.

— Frio demais para o monsieur? — perguntou o criado, colo cando o omelete sobre a mesa. — Fecho a janela?

Dorian balançou a cabeça.

— Não estou com frio — murmurou.

Seria tudo verdade? Estaria o retrato realmente mudado? Ou teria sido simplesmente sua imaginação que o fizera ver um olhar de maldade onde havia apenas alegria? Certamente uma tela pintada não poderia se alterar. Aquilo era absurdo. Seria uma boa história para contar a Basil qualquer dia desses. Ela o faria sorrir. Mesmo assim, como era intensa sua lembrança da coisa toda! Primeiro no fraco crepúsculo, depois na brilhante aurora, havia visto o toque da crueldade ao redor dos lábios distorcidos. Chegava a ter medo de que seu criado deixasse a sala. Sabia que, quando estivesse sozinho, teria de examinar o retrato. Temia a certeza. Quando o café e os cigarros foram trazidos e o homem virou-se para ir embora, sentiu um desejo feroz de dizer-lhe para ficar. Quando a porta fechava-se atrás dele, chamou-o de volta. O homem ficou à espera de suas ordens. Dorian olhou para ele por um momento.

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— Não estou em casa para ninguém, Victor — disse, soltando um suspiro. O homem fez-lhe uma reverência e retirou-se. Então, ele levantou-se da mesa, acendeu um cigarro e atirou-se em um sofá luxuosamente estofado localizado em frente ao biom bo. Tratava-se de um biombo antigo, de couro espanhol folheado a ouro, ornamentado com uma estampa florida no estilo Luís XIV. Examinou-o com curiosidade, imaginando se alguma vez já tinha acobertado o segredo da vida de um homem.

Deveria movê-lo, afinal? Por que não deixá-lo onde estava? De que adiantava saber? Caso tudo fosse verdade, era algo terrível. Caso contrário, por que se preocupar com aquilo? Mas e se, por obra do destino ou por algum acaso fatal, olhos que não os seus espiassem o que havia por trás dele e vissem a terrível mudança? O que ele faria se Basil Hallward chegasse e pedisse para olhar sua pintura? Basil certa mente faria isso. Não; a coisa tinha de ser examinada e imediatamen te. Qualquer coisa seria melhor que esse pavoroso estado de dúvida.

Levantou-se e trancou ambas as portas. Pelo menos estaria sozinho quando olhasse para a máscara de sua vergonha. Afastou o biombo e encarou o próprio rosto. Era absolutamente verdade. O retrato havia mudado.

Como se lembraria continuamente mais tarde, sempre com grande espanto, a princípio sentia-se olhando para o retrato com um interesse quase científico. Que tal mudança tivesse ocorrido, era incrível para ele. E, mesmo assim, era real. Haveria alguma afinidade sutil entre os átomos que se moldavam em formas e cores na tela e a alma que residia dentro dele? Seria possível que eles produzissem o que sua alma pensava? Aquilo que ele sonhava, tornariam eles realidade? Ou existiria alguma outra razão, ainda mais terrível? Ele estremeceu, encheu-se de pavor e, voltando para o sofá, ali ficou, contemplando a pintura com um horror doentio.

Uma coisa, no entanto, ele sentia que o quadro fizera por ele. Tornara-o consciente do quão injusto, quão cruel ele tinha sido

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com Sibyl Vane. Não era tarde demais para reparar seus atos. Ela ainda poderia ser sua esposa. Seu amor egoísta e irreal daria lugar a alguma influência mais elevada, seria transformada em alguma paixão mais nobre, e o retrato que Basil Hallward pintara seria para ele um guia através da vida, seria para ele o que a santidade é para alguns, a consciência para outros e o temor a Deus para todos nós. Havia opiáceos para o remorso, drogas que poderiam acalen tar qualquer senso moral. Mas estava aqui um símbolo visível da degradação do pecado. Aqui existia um sinal onipresente da ruína a que os homens conduziam suas almas.

O relógio bateu três horas, e quatro, e também o toque duplo de meia hora, mas Dorian Gray não se moveu. Ele tentava reunir os fios escarlate da vida para tecê-los em um padrão; tentava en contrar seu caminho através do labirinto sanguíneo da paixão em que perambulava. Ele não sabia o que fazer nem o que pensar. Finalmente, foi até a mesa e escreveu uma carta apaixonada para a garota que amara, implorando seu perdão e admitindo loucura. Cobriu páginas e páginas de palavras devastadas pela tristeza, seguidas de palavras ainda mais devastadas pela dor. Havia certa luxúria na autocomiseração. Quando admitimos nossa culpa, senti mos que ninguém mais tem o direito de nos culpar. É a confissão, e não o sacerdote, que nos dá a absolvição. Quando Dorian terminou sua carta, sentiu que tinha sido perdoado.

Subitamente bateram à porta, e ele ouviu a voz de Lorde Henry do lado de fora.

— Meu caro garoto, preciso vê-lo. Deixe-me entrar imediata mente. Não posso suportar que se tranque dessa maneira.

Não lhe deu nenhuma resposta a princípio e permaneceu pra ticamente imóvel. As batidas continuaram, ficando cada vez mais altas. Sim, era melhor deixar Lorde Henry entrar e explicar-lhe a nova vida que iria levar, brigar com ele se fosse necessário, separar-se

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dele se fosse inevitável. Levantou-se de um salto, retornou rapi damente o biombo para a frente do quadro e destrancou a porta.

— Sinto muito por tudo, Dorian — disse Lorde Henry ao entrar. — Mas você não deve pensar demais no assunto.

— Você está falando de Sibyl Vane? — perguntou o rapaz.

— Sim, claro — respondeu Lorde Henry, afundando-se em uma cadeira e retirando lentamente suas luvas amarelas. — É horrível, de certo ponto de vista, mas não é culpa sua. Diga-me, você foi aos bastidores vê-la, depois que a peça acabou?

— Sim.

— Tinha certeza de que o fizera. Discutiu com ela?

— Fui brutal, Harry — perfeitamente brutal. Mas está tudo certo agora. Não lamento nada do que aconteceu. Serviu para ensinar-me a conhecer-me melhor.

— Ah, Dorian, estou tão feliz que tenha levado desta forma! Temia encontrá-lo afundado em remorsos, arrancando seus lindos cabelos.

— Passei por tudo isso — disse Dorian, balançando a cabeça e sorrindo. — Estou absolutamente feliz agora. Para começar, descobri o que é a consciência. Não é o que você me afirmara ser. É o que há de mais divino em nós. Não seja insolente, Harry, nunca mais — pelo menos não diante de mim. Quero ser bom. Não consigo suportar a ideia de ter uma alma hedionda.

— Uma base artística muito encantadora para a ética, Dorian! Parabenizo-o por ela. Mas como você irá começar?

— Casando-me com Sibyl Vane.

— Casando-se com Sibyl Vane! — exclamou Lorde Henry, levantando-se e olhando para ele, perplexo e assustado. — Mas, meu querido Dorian...

— Sim, Harry, eu sei o que você vai dizer. Algo horrível a respeito do casamento. Não diga nada. Nunca mais me diga coisas do tipo novamente. Dois dias atrás, pedi Sibyl em casamento. Não vou quebrar minha promessa. Ela será minha esposa.

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— Sua esposa! Dorian... você não recebeu minha carta? Escrevi-lhe esta manhã e mandei meu criado trazê-la.

— Sua carta? Ah, sim, lembro-me. Ainda não a li, Harry. Temia que houvesse nela algo de que não fosse gostar. Você despedaça a vida com seus epigramas.

— Então não sabe de nada?

— O que quer dizer?

Lorde Henry atravessou a sala e, sentando-se ao lado de Dorian Gray, tomou suas mãos e apertou-as com firmeza.

— Dorian — disse ele —, minha carta... não se assuste... era para contar-lhe que Sibyl Vane está morta.

Um grito de dor irrompeu dos lábios do rapaz e ele levantou-se de um salto, arrancando as mãos do alcance de Lorde Henry.

— Morta! Sibyl morta! Não é verdade! É uma mentira horrível! Como ousa dizer isso?

— É a pura verdade, Dorian — disse Lorde Henry, sério. — Está em todos os jornais matutinos. Escrevi para pedir-lhe que não recebesse ninguém até minha chegada. Haverá um inquérito, claro, e você não deve se envolver nele. Em Paris, coisas do tipo tornam um homem popular. Mas, em Londres, as pessoas são tão preconceituosas. Aqui, ninguém deve ser introduzido à sociedade com um escândalo. Deve-se reservar tal coisa para inspirar algum interesse quando se é velho. Suponho que não saibam seu nome no teatro, não é? Se não sabem, está tudo bem. Alguém o viu às voltas no camarim dela? Esse é um ponto importante.

Dorian não respondeu por alguns momentos. Estava atordoado com o horror. Finalmente balbuciou, com a voz contida:

— Harry, você falou em inquérito? O que quer dizer? Por acaso Sibyl...? Oh, Harry, não posso suportar isso! Seja rápido. Diga-me tudo de uma vez.

— Não tenho dúvidas de que não foi um acidente, Dorian, embora deva ser divulgado dessa forma para o público. Parece que,

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ao sair do teatro com a mãe, por volta de meia-noite e meia, ela disse que tinha esquecido algo no andar de cima. Esperaram-na por algum tempo, mas ela não desceu novamente. Finalmente, encon traram-na morta no chão de seu camarim. Havia ingerido algo por engano, alguma coisa horrível que se usa no teatro. Não sei o que foi, mas continha ácido cianídrico ou alvaiade. Imagino que deva ter sido ácido cianídrico, já que parece ter morrido instantaneamente.

— Harry, Harry, isso é horrível! — gritou o rapaz.

— Sim, é muito trágico, certamente, mas você não deve se envol ver nisso. Vi no The Standard 49 que ela tinha dezessete anos. Pensei até que seria ainda mais jovem. Parecia uma criança e sabia tão pouco sobre atuação. Dorian, você não pode deixar que isso lhe afete os nervos. Deve vir jantar comigo e, depois, passaremos na ópera. É noite de Patti 50 e todos estarão lá. Você pode ir ao camarote de minha irmã. Ela estará acompanhada de algumas mulheres muito elegantes.

— Então assassinei Sibyl Vane — disse Dorian Gray, um pouco para si mesmo. — Matei-a, tão certo quanto se tivesse cortado seu pequeno pescoço com uma faca. Mesmo assim, as rosas não estão menos encantadoras. Os pássaros cantam com a mesma felicidade de antes no meu jardim. E hoje à noite jantarei com você, então irei à ópera e, imagino, cearei em algum lugar depois disso. Como a vida é extraordinariamente dramática! Se tivesse lido tudo isso em um livro, Harry, provavelmente teria chorado. Mas de alguma forma, agora que isso realmente aconteceu, e comigo, parece maravilhoso demais para lágrimas. Eis aqui a primeira carta apaixonada de amor que já escrevi na minha vida. O curioso é que minha primeira carta apaixonada de amor tenha sido escrita para uma garota morta. Imagino se essas pálidas e silenciosas pessoas a quem chamamos

49 Jornal londrino fundado em 1827. Atualmente é chamado The Evening Standard. (N. do T.)

50 Adelina Patti (1843-1919) foi uma aclamada soprano do século XIX, sendo exaltada nas maiores capitais musicais da Europa e das Américas no auge da sua carreira. (N. do T.)

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de mortos podem sentir algo? Sibyl! Será que ela pode sentir, saber ou ouvir? Ah, Harry, como a amei um dia! Agora, parece-me que foi anos atrás. Ela era tudo para mim. Então veio aquela noite horrorosa — foi realmente na noite passada? — quando representou daquela forma terrível e quase despedaçou meu coração. Ela explicou tudo para mim. Foi absolutamente patético. Mas não me emocionei nem um pouco. Achei-a superficial. Subitamente aconteceu algo que me fez ter medo. Não posso dizer-lhe o que, mas foi algo terrível. Eu disse que voltaria para ela. Senti que havia agido da forma errada. E agora ela está morta. Meu Deus! Meu Deus! Harry, o que devo fazer? Você não sabe o perigo que eu corro, e não há nada para me manter na linha. Ela teria feito isso por mim. Ela não tinha o direito de se matar. Foi egoísmo da parte dela.

— Meu querido Dorian — respondeu Lorde Henry, tirando da carteira um cigarro e uma caixa de fósforos dourada —, a única forma de uma mulher modificar um homem é entediando-o de tal forma que ele perca qualquer interesse possível na vida. Se você se casasse com essa garota, seria muito infeliz. Claro, você a teria tratado com bondade. Sempre podemos ser gentis com pessoas com as quais não nos importamos. Mas ela logo teria descoberto que você lhe era absolutamente indiferente. E, quando uma mulher descobre tal coisa a respeito do marido, ou ela se torna terrivelmente desleixada ou começa a usar chapéus muitíssimo elegantes, pagos pelo marido de alguma outra mulher. Não digo nada a respeito da incorreção social, que teria sido abjeta — algo que, certamente, eu não teria permitido —, mas asseguro-lhe que, de qualquer forma, a coisa toda teria sido um completo fracasso.

— Suponho que sim — murmurou o rapaz, andando de um lado para o outro da sala e parecendo terrivelmente pálido. — Mas acredito que era meu dever. Não é minha culpa que essa terrível tragédia tenha me impedido de fazer o que era certo. Lembro-me de você ter dito uma vez que há certa fatalidade nas boas

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resoluções — que elas são tomadas sempre tarde demais. As mi nhas, com certeza, foram.

— As boas resoluções são tentativas inúteis de interferir nas leis da natureza. Originam-se na vaidade mais pura. Seu resulta do é absolutamente nulo. Propiciam-nos, vez ou outra, algumas emoções inúteis e deslumbrantes, do tipo que dispõem de certo encanto para os fracos. Isso é tudo que pode ser dito a seu respeito. Não são nada além de cheques que os homens sacam em um banco em que não têm conta.

— Harry — exclamou Dorian Gray, aproximando-se e sentando-se ao seu lado —, por que razão não posso sentir essa tragédia tanto quanto gostaria? Não me considero insensível. Você me vê assim?

— Você fez muitas coisas tolas durante a última quinzena para ter o direito de carregar esse título, Dorian — respondeu Lorde Henry, com seu agradável e melancólico sorriso.

O rapaz franziu o cenho.

— Não gosto dessa explicação, Harry — retrucou ele —, mas fico feliz que não me considere insensível. Não o sou de modo nenhum. Sei que não sou. Ainda assim, devo admitir que isso que aconteceu não me afetou como deveria. Parece-me simplesmente um final maravilhoso de uma peça maravilhosa. Tem a beleza terrível de uma tragédia grega, uma tragédia em que tive grande participação, mas pela qual não cheguei a me ferir.

— Essa é uma questão interessante — disse Lorde Henry, que encontrava extraordinário prazer em brincar com o egoísmo inconsciente do rapaz —, uma questão extremamente interessante. Imagino que a verdadeira explicação seja esta: frequentemente, as verdadeiras tragédias da vida acontecem de maneiras tão pou co artísticas que nos ferem por sua violência crua, sua absoluta incoerência, sua absurda falta de sentido, sua completa ausência de estilo. Elas nos afetam assim como a vulgaridade nos afeta.

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Dão-nos a impressão de pura força bruta e revoltamo-nos contra isso. Às vezes, no entanto, uma tragédia que possui elementos artísticos de beleza cruza nossa vida. Se esses elementos de beleza são reais, a coisa toda simplesmente agrada a nosso senso de efeito dramático. Subitamente, percebemos que não somos mais os ato res, mas simples espectadores da peça. Ou, ainda melhor, somos ambos. Assistimos a nós mesmos, e o mero encanto do espetáculo nos cativa. No seu caso, o que de fato aconteceu? Alguém se matou por amor a você. Quem dera eu tivesse passado por tal experiência. Teria-me apaixonado pelo amor pelo resto da vida. As pessoas que me adoraram — não foram muitas, mas houve algumas — sempre insistiram em continuar vivas, muito tempo depois de eu deixar de me importar com elas ou elas comigo. Tornaram-se corpulentas e entediantes e, quando as encontro, logo começam a lembrar-se do passado. Essa memória terrível das mulheres! Que coisa temerosa ela é! E que completa estagnação intelectual revela! Deveríamos absorver as cores da vida, mas nunca lembrar de seus detalhes. Detalhes são sempre vulgares.

— Devo plantar papoulas no meu jardim 51 — suspirou Dorian.

— Não há necessidade — objetou seu companheiro. — A vida tem sempre papoulas em mãos. Certamente, vez ou outra, as coisas permanecem. Uma vez, usei apenas violetas por toda uma temporada, em luto por um romance que não morria. Finalmente, no entanto, acabou morrendo. Não me lembro o que o matou. Acredito que foi a proposta dela de sacrificar o mundo inteiro por mim. Esse sempre é um momento terrível. Preenche-nos com o horror da eternidade. Bom — duvido que vá acreditar em mim —, há uma semana, na residência de Lady Hampshire, achei-me sentado ao lado da dama em questão durante o jantar e ela insistiu em relembrar a coisa toda novamente, desenterrando o passado e evocando o futuro.

51 As papoulas eram símbolo de luto na sociedade vitoriana (meados do século XIX). (N. do T.)

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Eu havia enterrado meu romance em um Campo de Asfódelos 52 . Ela o arrastou para fora mais uma vez e assegurou-me de que eu arruinara sua vida. Sou obrigado a dizer que comeu bastante bem no jantar, então não me senti nem um pouco angustiado. Mas que falta de gosto demonstrou! O único encanto do passado é estar no passado. Mas as mulheres nunca sabem quando a cortina caiu. Sempre querem um sexto ato e, assim que o interesse na peça aca ba, propõem uma continuação. Se lhes fosse permitido fazer tudo a seu modo, toda comédia teria um final trágico e toda tragédia culminaria em uma farsa. Elas são encantadoramente artificiais, mas não têm nenhum senso artístico. Você é mais afortunado que eu. Asseguro-lhe, Dorian, que nenhuma das mulheres que conheci teria feito por mim o que Sibyl Vane fez por você. Mulheres comuns sempre se consolam. Algumas delas o fazem buscando cores sen timentais. Nunca confie em uma mulher que use a cor malva, não importa a sua idade, ou em uma mulher com mais de trinta e cinco anos que goste de laços cor-de-rosa. Isso sempre quer dizer que elas têm uma história. Outras consolam-se grandemente ao desco brir as boas qualidades de seus maridos. Ostentam sua felicidade conjugal como se fosse o mais fascinante dos pecados. A religião conforta algumas. Seus mistérios têm todo o charme de um flerte, disse-me certa vez uma mulher, e posso entender perfeitamente. Além disso, nada torna alguém mais vaidoso do que lhe dizer que é um pecador. A consciência nos torna todos egoístas. Sim; não há fim para os consolos que as mulheres encontram na vida mo derna. Na verdade, não mencionei o mais importante de todos.

— Qual é ele, Harry? — disse o rapaz, com indiferença.

— Ora, o consolo mais óbvio. Tirar o admirador de outra pessoa

52 O Campo de Asfódelos, de acordo com a mitologia grega, é um local do Mundo Inferior, reino pertencente a Hades, o rei dos mortos. Neste lugar ficam vagando todas as almas que, depois de seu julgamento, não foram consideradas nem más nem boas, são simplesmente “irrelevantes”. (N. do T.)

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quando se perde o próprio. Na boa sociedade, isso sempre oculta as faltas de uma mulher. Mas realmente, Dorian, como Sibyl Vane deve ter sido diferente de todas as mulheres que conhecemos! A meu ver, há algo muito bonito em relação à sua morte. Fico feliz de viver em um século em que tais maravilhas acontecem. Elas nos fazem acreditar na veracidade das coisas com que todos brincamos, como o romance, a paixão e o amor.

— Fui terrivelmente cruel com ela. Você esquece-se disso.

— Temo que as mulheres apreciem a crueldade, a crueldade absoluta, mais do que qualquer outra coisa. Elas têm instintos de liciosamente primitivos. Nós as emancipamos, mas mesmo assim elas permanecem escravas à procura de seus donos. Elas adoram ser dominadas. Tenho certeza de que você foi esplêndido. Nunca o vi verdadeira e absolutamente furioso, mas imagino o quão en cantador deve ter soado. E, no fim das contas, anteontem você me disse algo que, naquela ocasião, pareceu-me simples fruto da sua imaginação, mas agora entendo que era absolutamente verdadeiro e detém a explicação de tudo.

— O que foi, Harry?

— Você me disse que Sibyl Vane representava para você to das as heroínas românticas — que ela era Desdêmona uma noite e Ofélia na outra; que, se ela morria como Julieta, voltava à vida como Imogênia.

— Ela nunca mais voltará à vida novamente agora — murmu rou o rapaz, enterrando o rosto em suas mãos.

— Não, ela nunca mais voltará à vida. Ela encenou seu últi mo papel. Mas você deve pensar em sua morte solitária naquele camarim espalhafatoso simplesmente como um fragmento hor ripilante de alguma tragédia jacobina 53 , como uma maravilhosa

53 Tragédias jacobinas eram aquelas escritas e encenadas durante o reinado de Jaime I, da Inglaterra (1566-1625). (N. do T.)

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cena de Webster, Ford ou Cyril Tourneur 54 . A garota nunca viveu realmente, então nunca morreu de verdade. Para você, pelo menos, ela sempre foi um sonho, um fantasma que se movia por meio das peças de Shakespeare, tornando-as mais encantadoras por sua sim ples presença, um instrumento pelo qual a música de Shakespeare soava mais rica e cheia de alegria. No momento em que ela entrou em contato com a realidade da vida, arruinou-a, foi arruinada por ela e então morreu. Fique de luto por Ofélia, se quiser. Deposite cinzas na cabeça por Cordélia ter sido estrangulada. Grite contra o céu porque a filha de Brabâncio morreu. Mas não desperdice suas lágrimas com Sibyl Vane. Ela era menos real do que elas. Ficaram calados. A noite escurecia a sala. Vindas do jardim, silenciosamente e em movimentos rápidos, as sombras rastejaram para dentro da sala. Exaustas, as cores desbotavam. Depois de algum tempo, Dorian Gray levantou os olhos.

— Você acaba de explicar-me para mim mesmo, Harry — murmurou ele com uma espécie de suspiro de alívio. — Senti tudo que você me disse, mas, de alguma forma, tive medo do que sentia e não pude expressá-lo para mim mesmo. Como você me conhece bem! Mas não falemos mais do que aconteceu. Foi uma experiência maravilhosa. Nada mais que isso. Pergunto-me se a vida ainda tem algo tão maravilhoso reservado para mim.

— A vida tem tudo reservado para você, Dorian. Não há nada que você, com sua extraordinária beleza, não seja capaz de fazer.

— Mas suponhamos, Harry, que eu fique debilitado, velho e enrugado. O que acontecerá, então?

— Ah, então — disse Lorde Henry levantando-se para sair —, então, meu querido Dorian, você teria de lutar por suas vitórias. Em seu estado atual, elas lhe são oferecidas. Não, você deve manter sua

54 John Webster (1580-1632), John Ford (1586-1639) e Cyril Tourneur (1575-1626) foram dramaturgos jacobinos. (N. do T.)

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boa aparência. Vivemos em uma época em que, para ser sábio, lê-se demais e, para ser belo, pensa-se demais. Não podemos prescindir de sua presença. E agora é melhor vestir-se e dirigir-se ao clube. Já estamos demasiado atrasados.

— Acho que vou encontrá-lo na ópera, Harry. Estou cansado demais para comer. Qual é o número do camarote de sua irmã?

— Vinte e sete, penso eu. Fica no balcão nobre. Você verá seu nome na porta. Mas sinto muito que não venha para o jantar.

— Não estou com vontade — disse Dorian, indiferente. — Mas sinto-me extremamente agradecido por tudo que me disse. Você é certamente meu melhor amigo. Ninguém jamais me compreendeu como você.

— Estamos apenas no início de nossa amizade, Dorian — res pondeu Lorde Henry apertando-lhe a mão. — Adeus. Devo vê-lo antes das nove e trinta, espero. Lembre-se, Patti irá cantar. Enquanto fechava a porta atrás do amigo, Dorian Gray tocou a sineta e, em poucos minutos, Victor apareceu com os lampiões e fechou as persianas. Dorian esperou impacientemente que ele saísse. O ho mem parecia levar um tempo interminável para fazer qualquer coisa. Assim que ele saiu, correu para o biombo e afastou-o. Não; não havia mais mudanças na pintura. O quadro recebera a notí cia da morte de Sibyl Vane antes mesmo que ele soubesse. Tinha consciência dos eventos da vida assim que ocorriam. A violenta crueldade que arruinara os delicados traços da boca apareceram, sem sombra de dúvida, no exato momento em que a garota tomara o veneno, fosse ele qual fosse. Ou seria ele indiferente aos resulta dos? Ou tomaria conhecimento apenas do que se passava dentro da alma? Ele perguntou-se, esperando um dia poder ver a mudança acontecendo diante de seus olhos e estremeceu ao desejá-lo.

Pobre Sibyl! Que romance havia sido tudo aquilo! Muitas vezes, ela simulara a morte no palco. E então a própria morte a tocara, levando-a consigo. Como representara essa terrível última cena?

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Ela o teria amaldiçoado ao morrer? Não! Ela morrera por seu amor por ele e, agora, o amor lhe seria sempre sagrado. Ela expiara tudo com o sacrifício da própria vida. Ele não pensaria mais no que ela o fizera passar, naquela horrível noite no teatro. Quando pensasse nela, seria como uma maravilhosa figura trágica enviada ao palco do mundo para mostrar-lhe a suprema realidade do amor. Uma maravilhosa figura trágica? Lágrimas surgiram em seus olhos ao lembrar-se de sua aparência infantil, de seus modos caprichosos e cativantes e de seu encanto tímido e trêmulo. Afastou as lembranças rapidamente e olhou mais uma vez para o quadro. Sentiu que chegara a hora de fazer sua escolha. Ou a escolha já teria sido feita? Sim, a vida decidira por ele — a vida e sua própria e infinita curiosidade acerca da vida. Juventude eterna, paixão infinita, prazeres sutis e secretos, alegrias perversas e pecados ainda mais perversos — ele deveria ter todas essas coisas. O retrato carregaria o fardo de sua vergonha; assim seria. Uma sensação de dor pairou sobre ele quando pensou na profa nação reservada ao belo rosto na tela. Certa vez, em uma imitação infantil de Narciso, ele beijara, ou fingira beijar, aqueles lábios pin tados, que agora lhe sorriam de forma tão cruel. Por várias manhãs seguidas, sentara-se diante do retrato, maravilhado com sua beleza, parecendo-lhe, às vezes, quase apaixonado por ela. Será que mudaria a cada humor a que ele sucumbisse? Tornaria-se ele algo monstruoso e repugnante, devendo ser escondido em um quarto trancado, afas tado da luz do sol que tantas vezes transformara seus maravilhosos cachos em ouro cintilante? Que lástima seria! Que lástima seria!

Por um momento, pensou em suplicar para que a terrível afinidade que existia entre ele e o quadro deixasse de existir. O quadro mudara em resposta a uma súplica; talvez permanecesse inalterado em resposta a uma súplica. Ainda assim, quem — ciente de qualquer coisa a respeito da vida — abriria mão da possibilidade de permanecer sempre jovem, por mais fantástica que ela fosse ou a despeito das consequências que ela provocasse? Além do mais,

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tudo isso estava realmente sob seu controle? Teria sido de fato uma súplica que produzira essa troca? Não haveria alguma estranha ra zão científica para tudo isso? Se o pensamento poderia influenciar um organismo vivo, não poderia também exercer sua influência sobre coisas mortas e inorgânicas? Sem um pensamento ou desejo consciente, coisas fora de nós não poderiam vibrar em uníssono com nossos humores e paixões, átomo atraindo átomo por meio de algum amor secreto ou estranha afinidade? Mas a razão não tinha importância. Nunca mais instigaria nenhum terrível poder por meio de súplicas. Se o quadro tinha de mudar, então que mudasse. Era tudo. Por que investigar sua causa tão atentamente?

Ora, teria muito prazer em observá-lo. Seria capaz de adentrar os lugares secretos de sua mente. Para ele, esse retrato seria o mais mágico dos espelhos. Assim como revelara-lhe seu próprio corpo, também lhe revelaria sua própria alma. E, quando o inverno o atingis se, ele ainda estaria onde tremula a primavera, no prenúncio do verão. Quando o sangue abandonasse seu rosto, deixando para trás uma máscara pálida como giz com olhos apáticos, ele manteria o fascínio da juventude. Nenhuma flor de sua beleza jamais murcharia. Nenhu ma pulsação de sua vida jamais enfraqueceria. Como os deuses gregos, ele continuaria forte, ágil e jovial. Que lhe importava o que iria acon tecer com a imagem colorida na tela? Ele estaria a salvo. Isso era tudo. Colocou o biombo de volta no lugar onde estava diante do quadro, sorrindo ao fazê-lo, e passou ao seu quarto, onde o criado já o esperava. Uma hora depois, estava na ópera, e Lorde Henry inclinava-se sobre sua cadeira.

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Na manhã seguinte, enquanto ele tomava o desjejum, Basil Hallward foi levado até a sala.

— Estou tão feliz em tê-lo encontrado, Dorian — disse ele, sério — Vim visitá-lo na noite passada e disseram-me que tinha ido à ópera. Certamente, sabia que era impossível. Mas gostaria que tivesse deixado avisado onde tinha realmente ido. Passei uma noite terrível, temendo que uma tragédia pudesse ter sido seguida por outra. Você bem que poderia ter me telegrafado assim que soube do ocorrido. Fiquei sabendo por acaso em uma edição vespertina do The Globe 55 que peguei no clube. Vim para cá imediatamente e fiquei muito infeliz por não encontrá-lo. Nem sei como lhe dizer quão triste me senti sobre a coisa toda. Imagino o quanto está sofrendo. Mas onde esteve você? Foi ver a mãe da garota? Por um momento, pensei em segui-lo até lá. Publicaram o endereço no jornal. Nas redondezas de Euston Road, não é? Mas fiquei com receio de intrometer-me em uma dor que eu não poderia aliviar. Pobre mulher! Em que estado deve estar! Além de tudo, sua única filha! O que ela disse a respeito do que aconteceu?

— Meu caro Basil, como posso saber? — murmurou Dorian Gray, bebericando um vinho amarelo-palha de um delicado cálice de cristal veneziano ornado com bolhas douradas e parecendo completamente entediado. — Estava na ópera. Você deveria ter aparecido. Conheci Lady Gwendolen, a irmã de Harry. Ficamos no camarote dela. Ela é absolutamente encantadora; e Patti cantou divinamente. Não fale de assuntos horrendos. Se não falamos de

55 The Globe era um jornal britânico, publicado entre 1803 e 1921. (N. do T.)

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9
CAPÍTULO

algo, é como se não tivesse acontecido. Apenas a expressão, como Harry diz, dá vida às coisas. Devo mencionar que ela não era a única filha da mulher. Ela tem um filho, um rapaz encantador, penso eu. Mas ele não trabalha nos palcos. É um marinheiro ou algo assim. Mas agora conte-me sobre você e sobre o que está pintando.

— Você foi à ópera? — disse Hallward, muito lentamente, com um angustiado tom de dor na voz. — Você foi à ópera enquanto Sibyl Vane jazia morta em algum aposento sórdido? Você é capaz de me falar a respeito de outras mulheres sendo encantadoras, de Patti cantando divinamente, antes mesmo de a garota que você amou ter a tranquilidade de um túmulo para adormecer? Ora, homem, há tantos horrores reservados para aquele seu pequeno corpo pálido!

— Pare, Basil! Não vou ouvi-lo! — gritou Dorian levantando-se de um salto. — Você não deve me falar dessas coisas. O que acon teceu, aconteceu. O que é passado, passou.

— Você chama o dia de ontem de passado?

— O que tem o intervalo de tempo a ver com isso? Apenas pessoas superficiais precisam de anos para livrar-se de uma emoção. Um homem que é senhor de si pode acabar com uma dor tão rápido quanto pode criar um prazer. Não quero ficar à mercê de minhas emoções. Quero utilizá-las, desfrutá-las e dominá-las.

— Dorian, isso é horrível! Alguém transformou-o completa mente. Você parece exatamente igual àquele maravilhoso menino que, dia após dia, costumava vir até meu ateliê para posar para seu retrato. Mas, naquela época, você era simples, espontâneo e afe tuoso. Você era a criatura mais pura de todo o mundo. Agora, não sei o que lhe aconteceu. Você fala como se não tivesse coração nem qualquer compaixão. Tudo isso é influência de Harry. Posso vê-lo.

O rapaz enrubesceu e, dirigindo-se à janela, olhou por al guns momentos para o verde e cintilante jardim, completamente banhado pelo sol.

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— Devo muito a Harry, Basil — disse, afinal —, muito mais do que devo a você. Você apenas ensinou-me a ser vaidoso.

— Bom, já sou punido por isso, Dorian — ou serei, no futuro.

— Não sei o que quer dizer, Basil — exclamou ele virando-se. — Não sei o que você quer. O que você quer?

— Quero o Dorian Gray que eu costumava pintar — disse o artista, com tristeza.

— Basil — disse o rapaz, aproximando-se dele e pousando a mão em seu ombro —, você chegou tarde demais. Ontem, quando soube que Sibyl Vane havia cometido suicídio...

— Suicídio! Por Deus! Não há dúvidas disso? — clamou Hallward olhando para ele com uma expressão horrorizada.

— Meu querido Basil! Certamente você não acredita que foi um acidente comum? É claro que ela se matou.

O homem mais velho enterrou o rosto entre as mãos.

— Que horrível — murmurou, sendo atravessado por um arrepio.

— Não — disse Dorian Gray —, não há nada horrível nisso. Trata-se de uma das grandes tragédias românticas de nossa época. Via de regra, as pessoas que atuam levam vidas extremamente ordi nárias. São bons maridos, esposas fiéis ou algo entediante do gênero. Você sabe a que me refiro — virtudes da classe média e esse tipo de coisas. Como Sibyl era diferente! Ela viveu sua melhor tragédia. Ela sempre foi uma heroína. Na última noite em que ela atuou — na noite em que você a viu —, teve uma péssima atuação porque tinha conhecido a realidade do amor. Quando soube que se tratava de uma ilusão, ela morreu, assim como Julieta teria morrido. Ela passou mais uma vez à esfera da arte. Há algo de mártir nela. Sua morte tem toda a inutilidade patética do martírio, toda a sua beleza des perdiçada. Mas, como estava dizendo, você não deve pensar que não sofri. Se tivesse vindo ontem, em um momento preciso — por volta

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das cinco e meia da tarde ou talvez quinze para as seis —, teria-me encontrado aos prantos. Nem mesmo Harry, que aqui estava, que foi quem me trouxe a notícia de fato, não tinha ideia pelo que eu estava passando. Sofri imensamente. Então tudo passou. Não consigo repetir uma emoção. Ninguém consegue, à exceção dos sensíveis. E você é extremamente injusto, Basil. Você veio aqui para me consolar. Muito encantador de sua parte. Você vê-me consolado e fica furioso. Que pessoa mais solidária! Você lembra-me de uma história que Harry me contou a respeito de um certo altruísta que desperdiçou vinte anos de sua vida tentando retificar alguma queixa ou alte rar alguma lei injusta — não me lembro exatamente. Finalmente conseguiu, e nada podia exceder sua decepção. Ele não tinha mais absolutamente nada a fazer e quase morreu de tédio, tornando-se um misantropo convicto. Além disso, meu querido velho Basil, se você quer consolar-me, é melhor ensinar-me a esquecer o ocorrido ou vê-lo sob o ponto de vista artístico apropriado. Não era Gautier 56 que costumava escrever sobre la consolation des arts 57 ? Lembro-me de, certo dia, ter pego um livrinho com capa de pergaminho em seu ateliê e deparado-me com essa encantadora frase. Bom, não sou como aquele jovem rapaz de quem você me falou quando nos encontramos em Marlow, aquele que costumava dizer que cetim amarelo poderia consolar todas as tristezas da vida de qualquer pessoa. Amo as coisas belas que podem ser tocadas e manuseadas. Velhos brocados, bronze patinado, trabalhos de laca, esculturas de marfim, ambientes refinados, luxo, pompa — há muito a se desfrutar com tudo isso. Mas o caráter artístico que eles criam ou, de qualquer forma, revelam, significa muito mais para mim. Ser espectador da própria vida, como Harry diz, é fugir de seus sofrimentos. Sei que você está surpreso em ouvir-me falar assim. Você não tinha

56 Théophile Gautier (1811-1872) foi um poeta, dramaturgo, jornalista, crítico de arte e literário francês. (N. do T.)

57 O “consolo nas artes”, em francês. (N. do T.)

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percebido como eu havia mudado. Era um menino imaturo quando me conheceu. Agora sou um homem. Tenho novas paixões, novos pensamentos, novas ideias. Sou diferente, mas você não deve gostar menos de mim. Estou mudado, mas você deve continuar sendo meu amigo. Claro, gosto muito de Harry. Mas eu sei que você é melhor que ele. Não é mais forte — você tem medo demais da vida —, mas é melhor. E como éramos felizes juntos! Não me abandone, Basil, e não brigue comigo. Sou o que sou. Não há nada mais a ser dito.

O pintor sentiu-se estranhamente comovido. Queria muitíssimo ao rapaz, e sua personalidade fora a maior reviravolta em sua arte. Não poderia suportar a ideia de repreendê-lo ainda mais. Afinal, sua indiferença era provavelmente apenas um estado de espírito passa geiro. Ele tinha tantas coisas boas, havia nele tantas coisas nobres.

— Bom, Dorian — disse ele por fim, com um sorriso triste —, não vou falar com você sobre esse horrível episódio novamente. Só espero que seu nome não seja relacionado ao caso. O inquérito deve acontecer esta tarde. Chegaram a intimá-lo?

Dorian balançou a cabeça, e um olhar de irritação passou pelo seu rosto ao ouvir a palavra “inquérito”. Havia algo tão grosseiro e vulgar em tudo ligado a esse tipo de coisa.

— Eles não sabem meu nome — respondeu ele.

— Mas ela certamente sabia?

— Apenas meu primeiro nome e tenho quase certeza de que ela nunca o mencionou a ninguém. Disse-me uma vez que estavam todos curiosos para saber quem eu era e que ela sempre lhes dizia que meu nome era Príncipe Encantado. Era gracioso de sua parte. Você deve me fazer um desenho de Sibyl, Basil. Gostaria de ter algo mais dela além da memória de uns poucos beijos e algumas palavras patéticas interrompidas.

— Vou tentar fazer algo, Dorian, se for de seu agrado. Mas você deve vir posar para mim novamente. Não consigo continuar sem você.

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— Nunca mais poderei posar para você, Basil. É impossível! — exclamou recuando assustado.

O pintor olhou-o fixamente.

— Meu querido garoto, que tolice! — exclamou ele. — Você não pretende me dizer que não gosta do que lhe fiz? Onde está? Por que você colocou o biombo na frente dele? Deixe-me olhá-lo. É a melhor coisa que já pintei. Mova o biombo, Dorian. É simplesmente vergonhoso seu criado ter escondido meu trabalho dessa forma. Senti que a sala parecia diferente quando entrei.

— Meu criado não tem nada a ver com isso, Basil. Você não imagina que eu o deixaria arrumar minha sala para mim. Ele ajeita minhas flores, às vezes — e isso é tudo. Não! Fui eu mesmo que o fiz. Havia muita luz incidindo no retrato.

— Muita luz! Certamente que não, meu querido amigo. É um lugar admirável para ele. Deixe-me vê-lo. — E Hallward caminhou em direção ao canto da sala.

Um grito de terror irrompeu dos lábios de Dorian Gray, e ele se interpôs entre o pintor e o biombo.

— Basil — disse ele, parecendo muito pálido —, você não deve vê-lo. Gostaria que não o fizesse.

— Não ver meu próprio trabalho! Você não fala sério. Por que não deveria vê-lo? — exclamou Hallward, rindo.

— Se você tentar olhar para ele, Basil, dou-lhe minha palavra de honra que nunca mais falarei com você enquanto viver. Falo com muita seriedade. Não posso lhe dar uma explicação, e você não pode me pedir nenhuma. Mas, lembre-se, se tocar nesse biombo, está tudo acabado entre nós.

Hallward estava estupefato. Olhava para Dorian Gray com absoluto espanto. Nunca o vira assim antes. O rapaz realmente perdera a cor de tanta raiva. Apertava as mãos, e as pupilas dos olhos pareciam discos de fogo azul. Seu corpo todo estremecia.

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— Dorian!

— Não diga nada!

— Mas qual é o problema? Certamente não vou olhar se você não quiser — disse ele, friamente, dando meia-volta e dirigindo-se à janela. — Mas, realmente, parece demasiado ridículo que eu não possa ver meu próprio trabalho, ainda mais considerando que vou exibi-lo em Paris no outono. Antes disso, provavelmente deverei dar-lhe outra mão de verniz e, sendo assim, terei de vê-lo qualquer dia desses; por que não hoje?

— Exibi-lo! Você quer exibi-lo? — exclamou Dorian Gray, uma estranha sensação de terror apoderando-se dele. Seu segredo seria mostrado para o mundo? As pessoas admirariam o mistério de sua vida? Era impossível. Algo — ele não sabia o que — deveria ser feito imediatamente.

— Sim, suponho que você não vá se opor. Georges Petit está reunindo todos os meus melhores quadros para uma exibição especial na Rue de Sèze 58 , que deverá ser inaugurada na primeira semana de outubro. O retrato ficará fora apenas um mês. Acredito que você pode facilmente prescindir dele durante esse tempo. Na verdade, sei que estará fora da cidade. E, já que você o mantém sempre atrás de um biombo, não deverá se importar.

Dorian Gray passou a mão sobre a testa. Havia gotas de suor nela. Ele sentiu que estava às portas de um terrível perigo.

— Há um mês, você me disse que jamais o exibiria — exclamou ele. — Por que mudou de ideia? Pessoas como você, que se julgam muito consistentes, têm tantas variações de humor quanto os outros. A única diferença é que seus humores são completamente sem sentido. Você não pode ter esquecido que me assegurou sole

58 Georges Petit (1856-1920) foi um dos principais marchands do final do século XIX e início do XX, tendo representado Degas, Rodin, Picasso, Cézanne e Gauguin. Sua galeria funcionou no número 8 da Rue de Sèze, em Paris, até 1933. (N. do T.)

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nemente que nada no mundo o levaria a enviá-lo para nenhuma exibição. Disse a Harry exatamente a mesma coisa.

Parou subitamente, e um brilho invadiu seu olhar. Lembrou-se de que Lorde Henry dissera-lhe certa vez, meio sério, meio brin cando: “Se você tem quinze minutos a perder, peça que Basil lhe conte por que ele não quer exibir seu retrato. Ele contou para mim e foi uma revelação”. Sim, talvez Basil também tivesse um segredo. Iria tentar perguntar-lhe o porquê.

— Basil — disse ele, aproximando-se muito dele e olhando-o nos olhos —, ambos temos um segredo. Deixe-me saber o seu e lhe contarei o meu. Qual foi sua razão para recusar-se a exibir meu retrato?

Sem querer, o pintor estremeceu.

— Dorian, se lhe contasse, talvez passasse a gostar menos de mim e, certamente, riria à minha custa. Não poderia suportar que fizesse nenhuma das duas coisas. Se prefere que eu nunca mais veja seu quadro, contento-me com isso. Sempre terei você para olhar. Se prefere que o melhor trabalho que já fiz fique escondido do mundo, contento-me com isso. Quero mais sua amizade que qualquer fama ou reputação.

— Não, Basil, você tem de me contar — insistiu Dorian Gray. — Acredito ter o direito de saber. — A sensação de terror havia passado, dando lugar à curiosidade. Estava determinado a descobrir o mistério de Basil Hallward.

— Vamos nos sentar, Dorian — disse o pintor, aturdido. — Vamos nos sentar. Apenas responda-me a uma pergunta. Você notou algo estranho na pintura? Algo que, a princípio, talvez não tenha lhe chamado a atenção mas que, subitamente, revelou-se?

— Basil! — exclamou o rapaz, agarrando os braços da cadeira com as mãos trêmulas e olhando para ele com um olhar assusta do e enfurecido.

— Percebo que notou. Não fale nada. Espere até ouvir o que tenho a dizer. Dorian, no momento em que o conheci, sua perso

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nalidade teve a mais extraordinária influência sobre mim. Senti minha alma, minha mente e minha vontade dominadas por você. Você tornou-se para mim a personificação de um ideal oculto cuja memória assombra a nós, artistas, como um sonho extraordinário. Passei a idolatrá-lo. Comecei a sentir ciúme de qualquer um que falasse com você. Queria tê-lo só para mim. Só ficava feliz quando estava ao seu lado. Quando você se afastava de mim, ainda estava presente na minha arte... Claro, nunca deixei que soubesse nada dis so. Teria tornado tudo impossível. Você não teria me compreendido. Eu mesmo custava a entender. Apenas sabia que vira a perfeição de perto e que o mundo se transformara em algo maravilhoso aos meus olhos — talvez maravilhoso demais, pois, em uma idolatria tão delirante residem muitos perigos, o perigo de perder seu ídolo, tão grande quanto o perigo de mantê-lo... Semanas passaram-se e eu tornava-me mais e mais extasiado por você. Então, algo novo ocorreu-me. Já o havia pintado como Páris 59 com uma delicada armadura e como Adônis portando um manto de caçador e uma refinada lança. Coroado com pesadas flores de lótus, você sentara-se na proa da barca de Adriano, olhando para as esverdeadas águas turvas do Nilo. Inclinara-se sobre o lago de algum bosque grego e viu, no seu reflexo tranquilo, o esplendor da própria face. E tudo acontecera como a arte deve ser — de forma inconsciente, idealizada e remota. Um dia — um dia fatal, às vezes penso — decidi pintar um maravilhoso retrato seu, exatamente como você é, sem o vestuário de épocas antigas, mas com suas próprias roupas e em sua própria época. Se foi o realismo do método ou a simples fascinação de sua personalidade, tão intimamente exposta para mim, sem névoa ou véu, não posso dizer. Só sei que, enquanto trabalhava no retrato, cada lasca, cada camada de cor parecia-me revelar meu segredo. Fiquei com receio de que outros descobrissem minha idolatria.

59 Na mitologia grega, Páris era um dos filhos do Rei Príamo de Troia com a Rainha Hécuba. Ao raptar Helena, a esposa do rei de Esparta, deu início à Guerra de Troia. (N. do T.)

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Senti, Dorian, que transmitira coisas demais, que colocara muito de mim mesmo nele. Foi então que resolvi nunca deixar que o quadro fosse exibido. Você ficou um pouco aborrecido, mas então não ti nha percebido o que ele significava para mim. Harry, com quem eu falara sobre o assunto, riu-se de mim. Mas isso não me importava. Quando o quadro ficou pronto e sentei-me sozinho com ele, senti que estava certo... Bom, depois de alguns dias que o retrato deixou meu ateliê, e assim que me libertei da fascinação intolerável de sua presença, pareceu-me que tinha sido um tolo ao imaginar ter visto algo nele, algo além do simples fato de que você estava extremamente bonito e de que eu podia pintá-lo. Mesmo agora não posso deixar de sentir que é um erro pensar que a paixão que vivenciamos na criação reflete-se completamente na obra criada. A arte é sempre mais abstrata do que imaginamos. Formas e cores falam-nos de formas e cores — nada mais. Muitas vezes parece-me que a arte oculta muito mais completamente o artista do que o revela. Então, quando recebi esse convite de Paris, decidi fazer do seu retrato a obra principal da minha exibição. Nunca me ocorreu que você recusaria. Percebo agora que você estava certo. O quadro não pode ser expos to. Você não deve ficar bravo comigo, Dorian, pelo que lhe disse. Como disse para Harry uma vez, você foi feito para ser idolatrado. Dorian Gray inspirou profundamente. A cor voltou às suas faces e um sorriso divertiu-se em seus lábios. O perigo acabara. Estava se guro por enquanto. Ainda assim, ele não podia deixar de sentir uma enorme compaixão pelo pintor, que acabara de lhe fazer tão estranha confissão, e imaginou se ele mesmo alguma vez se deixaria dominar de tal forma pela personalidade de um amigo. Lorde Henry tinha o encanto de ser extremamente perigoso. Mas não passava disso. Era inteligente demais e cínico demais para ser verdadeiramente idola trado. Será que algum dia alguém o preencheria com tão estranha idolatria? Seria essa uma das coisas que a vida lhe reservava?

— Acho extraordinário, Dorian — disse Hallward — que você possa ter visto tudo isso no retrato. Você o viu de fato?

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— Vi algo nele — respondeu —, algo que me pareceu muito curioso.

— Bom, agora você não se importará se eu quiser vê-lo?

Dorian balançou a cabeça.

— Você não deve me pedir isso, Basil. Não poderia de forma nenhuma deixá-lo ficar em frente àquele quadro.

— Mas certamente deixará algum dia.

— Nunca.

— Bom, talvez esteja certo. Então, adeus, Dorian. Você foi a única pessoa na minha vida que realmente influenciou minha obra. Tudo que fiz de bom devo a você. Ah! Você não sabe o quanto me custou dizer-lhe tudo que disse.

— Meu querido Basil — disse Dorian —, o que você me disse? Ape nas que sentiu que me admirava demais. Isso nem sequer é um elogio.

— Não pretendia elogiá-lo. Tratava-se de uma confissão. Ago ra que a fiz, algo parece ter saído de mim. Talvez nunca se deva expressar sua idolatria em palavras.

— Foi uma confissão muito decepcionante.

— Ora, o que você esperava, Dorian? Você não viu nada além disso na pintura, não é? Havia algo mais a ser visto?

— Não, não havia nada mais a ser visto. Por que pergunta? Mas você não deve falar sobre idolatria. É uma tolice. Você e eu somos amigos, Basil, e devemos continuar assim.

— Você tem Harry — disse o pintor, com tristeza.

— Ah, Harry! — exclamou o rapaz, com um riso contido. — Harry passa seus dias dizendo coisas incríveis e as noites fazendo coisas improváveis. Exatamente o tipo de vida que eu gostaria de levar. Mas, ainda assim, não acredito que recorreria a Harry se estivesse em apuros. Muito antes, procuraria você, Basil.

— Você posaria novamente para mim?

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— Impossível!

— Ao recusar, você arruína minha vida de artista, Dorian. Nenhum homem encontra duas coisas ideais na vida. Raros en contram uma sequer.

— Não posso lhe explicar, Basil, mas nunca mais posarei para você novamente. Há algo fatal em um retrato. Ele tem vida própria. Tomarei chá com você. O que será igualmente agradável.

— Ainda mais agradável para você, receio — murmurou Hallward, com um ar de tristeza. — E, agora, adeus. Sinto muito por você não me deixar olhar para o quadro uma vez mais. Mas nada se pode fazer. Entendo perfeitamente como se sente.

Assim que ele saiu da sala, Dorian Gray sorriu para si mesmo. Pobre Basil! Como sabia pouco da verdadeira razão! E como era curioso que, em vez de ter sido obrigado a revelar o próprio segredo, havia conseguido, quase por acaso, extrair um segredo de seu amigo! Quanta coisa aquela estranha confissão explicara-lhe! Os ridículos ataques de ciúmes do pintor, sua feroz devoção, seus extravagantes elogios, as reticências curiosas — agora, ele as compreendia todas e sentia pena. Parecia-lhe haver algo trágico em uma amizade tão colorida pelo amor.

Ele suspirou e tocou a sineta. O retrato deveria ser escondido a qualquer custo. Ele não poderia correr o risco de ser descoberto novamente. Fora uma insanidade de sua parte permitir que aquilo ficasse, mesmo por uma hora, em uma sala à qual todos os seus amigos tinham acesso.

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Quando seu criado entrou, olhou para ele com firmeza e se perguntou se ele pensara em olhar atrás do biombo. O ho mem continuava impassível, à espera de suas ordens. Dorian acendeu um cigarro, caminhou até o espelho e olhou para ele. Podia ver perfeitamente o reflexo do rosto de Victor. Era como uma plácida máscara da servidão. Ali não havia nada a temer. Mesmo assim, acreditava que seria melhor manter-se atento. Falando muito lentamente, disse-lhe para avisar a governanta que ele queria vê-la e, então, deveria ir ao moldureiro e pedir-lhe que enviasse dois de seus homens imediatamente. Enquanto o homem saía da sala, pareceu-lhe que seus olhos voltaram-se na direção do biombo. Ou teria sido apenas sua imaginação?

Depois de alguns instantes, em seu vestido de seda preto e com antiquadas luvas de renda nas mãos enrugadas, a sra. Leaf adentrou a biblioteca. Ele pediu-lhe a chave da sala de estudos.

— A velha sala de estudos, sr. Dorian — exclamou ela. — Ora, mas ela está cheia de pó. Devo ir arrumá-la e deixá-la em ordem antes de o senhor entrar lá. Não está em condições de ser vista pelo senhor. Com certeza, não.

— Não quero que fique em ordem, Leaf. Apenas quero a chave.

— Bom, o senhor ficará coberto de teias de aranha se entrar lá. Ora, ela não é aberta há aproximadamente cinco anos, desde que seu senhorio faleceu.

Ele estremeceu à menção do avô. Tinha recordações detestá veis dele.

— Isso não importa — respondeu. — Apenas quero ver o lugar. Isso é tudo. Dê-me a chave.

— Aqui está, senhor — disse a velha senhora, depois de examinar o conteúdo de seu molho de chaves com as mãos trêmulas e inseguras. —

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CAPÍTULO 10

Aqui está a chave. Vou tirá-la do molho em um instante. Mas o senhor não pensa em mudar-se para lá, estando tão confortável aqui, não é?

— Não, não — gritou ele, insolente. — Obrigado, Leaf. Isso é tudo.

Ela demorou-se por mais alguns momentos e começou a ta garelar a respeito de algum detalhe doméstico. Ele suspirou e disse-lhe que tomasse a decisão que achasse melhor. Ela saiu da sala envolta em sorrisos.

Quando a porta se fechou, Dorian pôs a chave no bolso e olhou ao redor da sala. Seu olhar recaiu sobre uma enorme manta de cetim púrpura ricamente bordada de ouro, uma esplêndida criação veneziana do final do século XVII, que seu avô encontrara em um convento próximo de Bolonha. Sim, ela serviria para embrulhar a horrível pin tura. Talvez já tivesse servido como mortalha inúmeras vezes. Agora esconderia algo que apresentava seu próprio tipo de degradação, pior que a degradação da morte em si — algo que geraria horrores e, ainda assim, nunca morreria. O que os vermes eram para um cadáver, seus pecados seriam para a imagem pintada na tela. Eles arruinariam sua beleza e devorariam seu encanto. Eles a profanariam e a tornariam vergonhosa. E, ainda assim, continuaria viva. Estaria sempre viva. Ele estremeceu e, por um momento, arrependeu-se de não ter contado para Basil a verdadeira razão pela qual desejava ocultar o quadro. Basil o teria ajudado a resistir à influência de Lorde Henry e às influências ainda mais venenosas de seu próprio caráter. O amor que Basil nutria por ele — pois era de fato amor — continha algo nobre e intelectual. Não era apenas a mera admiração da beleza que nasce dos sentidos e morre quando os sentidos se cansam. Era o mesmo amor que Michelangelo conhecera, e Montaigne, e Winckelmann, além do próprio Shakespeare. Basil poderia tê-lo salvo. Mas era tarde demais agora. O passado sempre poderia ser aniquilado. O arrependimento, a negação ou o esquecimento seriam capazes de fazê-lo. Mas o futuro era inevitável. Havia nele

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paixões que encontrariam terríveis formas de escape, sonhos que transformariam a sombra de sua perversidade em algo real.

Ele tirou do sofá a grande capa de tecido púrpura e dourado e, segurando-a em suas mãos, passou para trás do biombo. Estaria o rosto na tela ainda mais repugnante que antes? Parecia-lhe não ter mudado, mas, ainda assim, sua aversão por ele fora intensificada. Cabelos dourados, olhos azuis e lábios rosados — estavam todos ali. Apenas a expressão havia sido alterada. Tornara-se horrível por sua crueldade. Comparado com o que via no quadro em termos de censura e repreensão, como as críticas de Basil sobre Sibyl Vane tinham sido superficiais! Tão superficiais e de tão pouca impor tância! Sua própria alma olhava para ele da tela e clamava-lhe ao julgamento. Um olhar de dor tomou conta de Dorian e ele atirou a rica mortalha sobre o quadro. Ao fazê-lo, ouviu uma batida à porta. Saiu detrás do biombo quando seu criado entrou.

— Os homens estão aqui, monsieur.

Ele sentiu que deveria se livrar do criado o quanto antes. Não poderia permitir que ele soubesse para onde o quadro seria levado. Havia algo dissimulado a seu respeito, seu olhar era meticuloso e traiçoeiro. Sentou-se à escrivaninha e rabiscou um bilhete para Lorde Henry, pedindo-lhe que enviasse algo para ele ler e lembrando-o de que tinham um compromisso às oito e quinze da noite.

— Espere pela resposta — disse entregando o bilhete ao criado — e traga os homens aqui.

Em dois ou três minutos, houve outra batida à porta, e o sr. Hubbard em pessoa, o famoso moldureiro da Rua South Audley, entrou com um jovem ajudante de aparência um tanto quanto bruta. O sr. Hubbard era um homenzinho rosado com bigodes vermelhos, cuja admiração pela arte era consideravelmente reduzida pela po breza crônica da maioria dos artistas com quem tinha negócios. Via de regra, nunca saía da loja. Esperava que viessem até ele. Mas

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sempre fazia uma exceção para Dorian Gray. Havia algo em Dorian que encantava todos. Só olhar para ele já era um prazer.

— Sr. Gray, o que posso fazer pelo senhor? — disse ele esfre gando suas mãos gordas e cheias de sardas. — Pensei em ter a honra de vir aqui em pessoa. Acabo de receber uma moldura lindíssima, meu senhor. Consegui-a em um saldo. Florentina antiga. Veio de Fonthill, acredito. Muito apropriada para um tema religioso, sr. Gray.

— Lamento muito que o senhor tenha se dado o trabalho de vir até aqui, sr. Hubbard. Certamente passarei para dar uma olhada na moldura — apesar de, ultimamente, não me interessar muito pela arte religiosa —, mas hoje apenas queria que um quadro fosse levado até o andar de cima para mim. Ele é bastante pesado, então pensei em pedir-lhe alguns de seus homens emprestados.

— Não é trabalho nenhum, sr. Gray. Fico encantado em poder prestar-lhe qualquer serviço. Qual é a obra de arte, meu senhor?

— Esta aqui — respondeu Dorian, afastando o biombo. — Pode movê-la, com a cobertura e tudo mais, do jeito que está? Não quero que a arranhem no caminho.

— Não haverá problema nenhum, meu senhor — disse o cordial moldureiro, começando, com a assistência do ajudante, a soltar o quadro das longas correntes de metal que o suspendiam. — E, agora, para onde devo levá-lo, sr. Gray?

— Vou mostrar-lhe o caminho, sr. Hubbard, se tiver a bon dade de seguir-me. Ou, talvez, seria melhor que o senhor fosse na frente. Receio que seja bem no alto da casa. Vamos pela escadaria principal, já que ela é mais larga.

Segurou-lhes a porta aberta, e eles passaram ao saguão e co meçaram a subir. A quantidade de detalhes da moldura tornava-a extremamente volumosa e, vez ou outra, Dorian ajudava-lhes pondo a mão no quadro, apesar dos delicados protestos do sr. Hubbard, que apresentava a típica repulsa dos comerciantes ao ver um cavalheiro fazendo algo de útil.

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— Uma bela carga para se transportar, meu senhor — ofegou o homenzinho quando alcançaram o patamar superior, enxugando a testa brilhante.

— Receio que seja muito pesado — murmurou Dorian enquanto destrancava a porta que dava para a sala que manteria o curioso segredo de sua vida e esconderia sua alma dos olhares dos homens.

Fazia mais de quatro anos que não entrava naquele lugar — desde que costumava usá-lo primeiramente como quarto de brincar quando era criança e, depois, como sala de estudos quando ficou um pouco mais velho. Era uma sala grande, de boas proporções, que fora construída especialmente pelo último Lorde Kelso para ser usada pelo pequeno neto, que, por sua estranha semelhança com a mãe, e também por outras razões, ele sempre odiara e desejara manter a distância. Parecia, para Dorian, que muito pouco tinha mudado. Havia a imensa arca italiana, com seus painéis fantas ticamente pintados e suas manchadas guarnições douradas, em que ele tinha se escondido tantas vezes quando criança. Lá estava a estante de madeira acetinada repleta de livros escolares com páginas dobradas. Na parede atrás dela, pendia a mesma tapeçaria flamenga esfarrapada, onde um rei e uma rainha desbotados jo gavam xadrez em um jardim, enquanto um bando de falcoeiros cavalgava ao fundo, carregando pássaros encapuzados em seus punhos cobertos por luvas. Como lembrava-se de tudo tão bem! Cada momento de sua infância solitária voltava-lhe à mente en quanto olhava ao redor. Recordou-se da pureza imaculada de sua vida de menino e parecia-lhe horrível que ali seria o lugar em que o retrato fatal deveria ser ocultado. Como sabia pouco, naqueles dias mortos, de tudo que a vida lhe reservava!

Mas não havia outro lugar na casa tão protegido de olhares intrometidos quanto aquele. Ele tinha a chave e ninguém mais poderia entrar ali. Por baixo de sua mortalha púrpura, o rosto pin tado na tela poderia tornar-se bestial, opaco e impuro. O que lhe importava? Ninguém poderia vê-lo. Ele mesmo não o veria. Por que

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deveria observar a hedionda degradação de sua alma? Ele manteria sua juventude — isso bastava. Além disso, por fim, sua natureza não seria aperfeiçoada? Não havia nenhuma razão para que o futuro fosse repleto de vergonha. Algum amor poderia cruzar sua vida, purificando-o e protegendo-o dos pecados que já pareciam mover-se em seu espírito e em sua carne — aqueles estranhos pecados ainda não retratados, cujo mistério conferia-lhes sua sutileza e encanto. Um dia, talvez, a expressão cruel desaparecesse da sensível boca escarlate, e ele poderia mostrar ao mundo a obra-prima de Basil Hallward.

Não, era impossível. Hora após hora, semana após semana, aquela coisa na tela envelheceria. Poderia escapar à repugnância do pecado, mas a repugnância da velhice fora-lhe reservada. Suas faces se tornariam encovadas ou flácidas. Amarelados pés de galinha surgiriam lentamente ao redor dos olhos esmaecidos, tornando-os horrendos. Os cabelos perderiam o brilho, a boca ficaria entreaberta ou despencaria de vez, adquirindo um ar tolo ou repugnante, como são as bocas dos homens velhos. O pescoço ficaria enrugado, as mãos frias, com veias azuladas, e o corpo disforme, igual à lembrança que tinha do avô, que fora tão rígido com ele em sua infância. O quadro tinha de ser escondido. Não havia outra saída para ele.

— Traga-o para dentro, sr. Hubbard, por favor — disse ele, com a voz cansada, dando meia-volta. — Perdão por tomar tanto de seu tempo. Estava com a cabeça em outro lugar.

— É sempre bom descansar um pouco, sr. Gray — respon deu o moldureiro, ainda ofegante. — Onde devemos colocá-lo, meu senhor?

— Ah, em qualquer lugar. Aqui, assim está bom. Não quero que o pendure. Basta apoiá-lo na parede. Obrigado.

— Pode-se dar uma olhada na obra de arte, meu senhor? Dorian assustou-se.

— Não seria de seu gosto, sr. Hubbard — disse ele mantendo os olhos no homem. Estava prestes a saltar sobre ele e derrubá-lo

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no chão se ousasse levantar a magnífica tapeçaria que escondia o segredo de sua vida. — Agora, não devo aborrecê-lo mais. Fico muito agradecido por sua gentileza em ter vindo até aqui.

— Não foi nada, não foi nada, sr. Gray. Estou sempre pronto a prestar-lhe qualquer favor, meu senhor. — E o sr. Hubbard desceu as escadas a passos pesados, seguido pelo ajudante, que deu uma última olhadela em Dorian com uma expressão de tímida fascinação em seu rude e grotesco rosto. Nunca vira alguém tão deslumbrante.

Quando o som de passos se extinguiu, Dorian trancou a porta e colocou a chave em seu bolso. Agora sentia-se seguro. Ninguém jamais olharia para aquela coisa horrível. Nenhum olhar além do seu testemunharia sua vergonha.

Quando chegou à biblioteca, descobriu que acabava de passar das cinco horas e que o chá já tinha sido servido. Havia, sobre uma mesinha escura de madeira perfumada revestida de madrepérola, presente de Lady Radley, a esposa de seu tutor — um inválido muito competente que passara o inverno anterior no Cairo — um bilhete de Lorde Henry, ao lado de um livro encadernado com papel amarelo, a capa levemente rasgada e as pontas sujas. Uma cópia da terceira edição do The St. James’s Gazette60 fora colocada na bandeja do chá. Era óbvio que Victor já retornara. Ele se perguntou se o criado encontrara os homens no saguão enquanto saíam da casa e se os sondara para saber o que estiveram fazendo. Certamente sentiria falta do quadro — já sentira, sem dúvida, ao arrumar a mesa para o chá. O biombo não fora colocado de volta ao seu lugar e podia-se ver um espaço vazio na parede. Talvez alguma noite dessas o encontraria esgueirando-se no andar de cima, tentando forçar a porta da sala. Era uma coisa horrível ter um espião na própria casa. Já ouvira falar de homens ricos que haviam sido

60 The St. James’s Gazette foi um jornal vespertino londrino, em circulação entre 1880 e 1905. (N. do T.)

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chantageados durante toda a vida por algum criado que tinha lido uma carta, ouvido uma conversa, pego um cartão com um endereço ou encontrado uma flor seca embaixo de um travesseiro ou um fragmento de renda amarrotado.

Suspirou e, depois de servir-se de um pouco de chá, abriu o bilhete de Lorde Henry. Escrevia-lhe apenas para dizer que enviara o jornal vespertino e um livro que poderia lhe interessar; além disso, estaria no clube às oito e quinze. Ele abriu o jornal com indiferença, folheando-o. Uma marca feita com lápis vermelho na quinta página chamou-lhe a atenção. Em especial o parágrafo seguinte:

INQUÉRITO SOBRE UMA ATRIZ. Um inquérito foi realizado esta manhã na taverna Bell, na Estrada Hoxton, pelo sr. Danby, o investigador distrital, no corpo de Sibyl Vane, uma jovem atriz recém-contratada pelo Royal Theatre, em Holborn. O veredito deter minou morte por acidente. Expressou-se considerável solidariedade à mãe da falecida, muito emocionada durante seu testemunho e no depoimento do dr. Birrel, que realizara a autópsia do corpo.

Franziu levemente a testa e, rasgando o jornal em dois, atra vessou a sala e atirou fora os pedaços. Que feio era tudo aquilo! E como a feiura tornava as coisas terrivelmente reais! Sentiu-se um pouco aborrecido por Lorde Henry ter-lhe enviado a notícia. E, certamente, fora uma estupidez tê-la marcado com lápis vermelho. Victor poderia tê-la lido. O homem sabia inglês mais do que o su ficiente para fazê-lo.

Talvez ele tivesse lido e começara a suspeitar de algo. Ainda assim, que importância tinha isso? Qual a relação de Dorian Gray com a morte de Sibyl Vane? Não havia nada a temer. Dorian Gray não a tinha matado.

Seu olhar recaiu sobre o livro amarelo que Lorde Henry lhe enviara. Perguntou-se o que seria. Foi até a mesinha octogonal

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cor de pérola, que sempre lhe parecera o trabalho de algumas estranhas abelhas egípcias forjadoras de prata e, tomando o livro em suas mãos, atirou-se em uma poltrona e começou a folheá-lo. Depois de alguns minutos, já estava absorto na leitura. Era o livro mais estranho que já lera. Parecia-lhe que, em um elegante traje e ao som delicado de flautas, os pecados do mundo passavam diante dele em um espetáculo mudo. Coisas com as quais vagamente so nhara subitamente tornavam-se reais. Coisas com as quais jamais sonhara eram-lhe gradualmente reveladas.

Era um romance sem enredo e com apenas um personagem, na verdade um simples estudo psicológico sobre um certo jovem parisiense que passara sua vida tentando concretizar, no século XIX, todas as paixões e modos de pensar inerentes a todos os séculos à exceção do dele e, de certo modo, resumir em si mesmo os diversos estados de ânimo pelos quais o mundo espiritual já havia passado, amando por sua mera artificialidade todas aquelas renúncias a que os homens estupidamente chamaram de virtude, tanto quan to as rebeliões naturais que os sábios ainda chamam de pecado. Seu estilo de escrita era curiosamente adornado, vívido e obscuro ao mesmo tempo, repleto de linguagens secretas e arcaísmos, de expressões técnicas e elaboradas paráfrases, que caracterizam as obras de alguns dos mais refinados artistas da escola francesa dos simbolistas. Havia nele metáforas tão brutais quanto orquídeas, com cores igualmente sutis. A vida dos sentidos era descrita com termos da filosofia mística. Às vezes, era difícil saber se discorria sobre os êxtases espirituais de algum santo medieval ou as mór bidas confissões de um pecador moderno. Era um livro venenoso. Um forte odor de incenso parecia desprender-se de suas páginas e perturbar o cérebro. A mera cadência das frases e a sutil monotonia de sua música, repleta de refrãos complexos e movimentos intrin cadamente repetidos, produziam na mente do rapaz, ao passar de um capítulo ao outro, uma espécie de devaneio, uma moléstia deli rante, tornando-o alheio ao desfecho do dia e às furtivas sombras.

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Sem nuvens e perfurado por uma estrela solitária, um céu es verdeado brilhou através das janelas. Continuou lendo sob sua luz pálida até não conseguir mais. Então, depois que o criado o lembrou várias vezes do adiantado da hora, levantou-se e, entrando na sala contígua, colocou o livro sobre a pequena mesa florentina ao lado da sua cabeceira e começou a vestir-se para o jantar.

Eram quase nove da noite quando chegou ao clube, onde en controu Lorde Henry sentado sozinho, na sala de estar, parecendo extremamente entediado.

— Sinto muitíssimo, Harry — exclamou ele —, mas a culpa é inteiramente sua. O livro que me enviou fascinou-me tanto que me esqueci do passar das horas.

— Sim, pensei que você gostaria — respondeu-lhe o anfitrião, levantando-se da cadeira.

— Não disse que gostei, Harry. Disse que ele me fascinou. Há uma grande diferença.

— Ah, conseguiu descobrir a diferença? — murmurou Lorde Henry. E passaram à sala de jantar.

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CAPÍTULO 11

Por anos, Dorian Gray não conseguiu se libertar da influência daquele livro. Talvez seria mais correto dizer que ele nunca tenha tentado se libertar. Encomendara nada menos que nove cópias da primeira edição em grande formato e mandou encaderná-las com várias cores, para que se adequassem a seus diferentes humores e aos inconstantes caprichos de uma natureza sobre a qual, às vezes, parecia-lhe ter perdido o controle quase que completamente. O he rói, o maravilhoso jovem parisiense em quem o caráter romântico mesclava-se ao científico de maneira tão estranha, tornou-se para ele uma espécie de protótipo dele mesmo. E, na verdade, o livro inteiro parecia conter a história de sua própria vida, escrita antes mesmo de ele tê-la vivido.

Em um ponto, ele mostrava-se mais afortunado que o fantástico herói do romance. Nunca conhecera — na verdade, nunca tivera qualquer motivo para tanto — o medo um tanto caricato de espe lhos, de superfícies de metal polido e de água parada que acometia o jovem parisiense desde cedo em sua vida, medo esse ocasionado pela súbita deterioração de uma beleza que um dia, aparentemente, lhe fora tão excepcional. Era com uma alegria quase cruel — e talvez em quase toda alegria, assim como certamente em todo prazer, a crueldade tem seu lugar — que costumava ler a última parte do livro, com o verdadeiramente trágico relato, mesmo que um tanto exagerado, do desespero e da tristeza de alguém que perdera o que nos outros, e no mundo, ele mais valorizara.

Já a deslumbrante beleza que tanto fascinara Basil Hallward, e muitos outros além dele, parecia nunca abandoná-lo. Mesmo aqueles que ouviam as coisas mais perversas a seu respeito — e,

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de tempos em tempos, estranhos boatos sobre seu modo de vida percorriam Londres e tornavam-se o assunto dos clubes — não conseguiam acreditar em nada que o desonrasse quando o viam. Sempre apresentava a aparência de alguém que se mantivera ima culado diante do mundo. Homens que falavam de modo grosseiro calavam-se quando Dorian Gray entrava na sala. Havia algo na pureza de seu rosto que os censurava. Sua simples presença parecia recordá-los da inocência que tinham difamado. Perguntavam-se como alguém tão encantador e gracioso como ele poderia ter resis tido à indecência de uma época ao mesmo tempo sórdida e sensual. Muitas vezes, ao retornar para casa após uma de suas miste riosas e prolongadas ausências, que davam vazão a tão estranhas conjecturas entre aqueles que eram seus amigos, ou que pensavam sê-lo, ele arrastava-se para o andar de cima, até a sala trancada, abria a porta com a chave que não mais largava e, com um espelho, ficava em pé diante do retrato que Basil Hallward pintara, olhando ora para o rosto perverso e envelhecido na tela, ora para o rosto jovial e belo que lhe sorria no vidro polido. A própria intensidade do contraste era usada para estimular seu prazer. Ele tornava-se cada vez mais apaixonado pela própria beleza, cada vez mais interessado na corrupção de sua alma. Examinava com minuciosa dedicação e, às vezes, com uma monstruosa e terrível satisfação, os hediondos traços que marcavam a testa enrugada ou que circundavam a boca libertina e obscena, perguntando-se o que era mais horrível, os sinais do pecado ou os sinais da idade. Colocava as mãos alvas ao lado das mãos ásperas e inchadas do quadro e sorria. Zombava do corpo disforme e dos membros deteriorados.

É verdade, havia momentos à noite quando, deitado insone em seu quarto delicadamente perfumado ou no sórdido salão da pequena taverna de má fama próxima às docas que, disfarçado e sob nome falso, tinha o hábito de frequentar, pensava na ruína que trouxera à sua alma, com uma piedade ainda mais comovente por ser puramente egoísta. Mas momentos como esse eram raros.

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A curiosidade pela vida que Lorde Henry estimulara nele pela pri meira vez, ao sentarem-se juntos no jardim de seu amigo, parecia aumentar sempre que a satisfazia. Quanto mais a conhecia, mais desejava conhecer. Tinha apetites insanos que se tornavam ainda mais insaciáveis à medida que ele os alimentava.

Ainda assim, ele não era realmente descuidado, pelo menos não em suas relações com a sociedade. Uma ou duas vezes por mês, no inverno, e todas as quartas-feiras à noite durante a temporada, ele abria sua bela casa para o mundo e contratava os mais famosos músicos do momento para encantar os convidados com as mara vilhas de sua arte. Seus pequenos jantares, em cuja organização era sempre auxiliado por Lorde Henry, eram conhecidos tanto pela cuidadosa seleção e acomodação dos convidados, quanto pelo sofisticado gosto revelado na decoração da mesa, com seus sutis e harmoniosos arranjos de flores exóticas, tecidos bordados e antigas travessas de ouro e prata. Na verdade, eram muitos — em especial os jovens — os que viam, ou imaginavam ver, em Dorian Gray a personificação fiel de um tipo com que muitas vezes sonharam em seus dias de Eton ou Oxford, um tipo que mesclava algo da verdadeira cultura do erudito com toda a graça, a distinção e os modos apurados de um cidadão do mundo. Para esses, ele pare cia pertencer à classe que Dante descreve como tendo procurado “tornar-se perfeita pela adoração da beleza”. Como Gautier, ele era uma pessoa para quem “o mundo visível existia”.

E, certamente, para ele a própria vida era a primeira e a maior das artes, para a qual todas as outras pareciam ser apenas uma preparação. A moda, por meio da qual o que é realmente fantástico torna-se por um momento universal, e o dandismo, que, a seu pró prio modo, é uma tentativa de assegurar a absoluta modernidade da beleza, exerciam, obviamente, seu fascínio sobre ele. Seu modo de se vestir e as maneiras particulares que de vez em quando adotava tinham uma influência marcante nos elegantes jovens dos bailes de

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Mayfair61 e das janelas dos clubes da Pall Mall 62 — eles o copiavam em tudo que ele fazia, tentando reproduzir o encanto acidental de suas graciosas obsessões, mesmo que ele não as levasse tão a sério.

Pois, embora estivesse mais que disposto a aceitar a posição que lhe foi prontamente oferecida quando atingira a maioridade, e encontrasse de fato um prazer sutil na ideia de tornar-se para a Londres de sua época o que o autor de Satíricon 63 havia sido para a Roma de Nero, ele desejava ser algo mais que um mero arbiter elegantiarum64 , alguém a ser consultado sobre o uso de uma joia, o nó de uma gravata ou a forma de portar uma bengala. Ele cobi çava elaborar um novo modo de vida, com filosofia estabelecida e princípios estruturados, que encontraria na espiritualização dos sentidos sua mais elevada concretização.

O culto aos sentidos tem sido frequentemente censurado, com muita razão, já que os homens sentem um instinto natural de terror a respeito das paixões e sensações que se mostram mais fortes do que eles e têm consciência de compartilhá-las com as formas de vida menos altamente organizadas. Mas parecia a Dorian Gray que a verdadeira natureza dos sentidos nunca fora compreendida e que os homens permaneciam selvagens e bestiais simplesmente porque o mundo almejava mantê-los submissos ou matá-los pela dor, em vez de empenhar-se em torná-los elementos de uma nova espiritualidade, na qual um requintado instinto para a beleza seria a característica dominante. Ao olhar para o homem avançando através da história, ele era assombrado por uma sensação de perda.

61 Área refinada do West End londrino. (N. do T.)

62 Rua londrina conhecida por ter sido sede de inúmeros clubes de cavalheiros e epicentro das belas artes na cidade no final do século XIX e no início do XX. (N. do T.)

63 Satíricon é uma obra do prosador romano Petrônio, escrita provavelmente no ano 60, que descreve as aventuras e desventuras do narrador, Encólpio, do seu amante, Ascilto, e do jovem servo Gitão, que se intromete entre os dois amantes incitando ciúmes e discussões. (N. do T.)

64 “Árbitro da elegância”, em latim. Uma autoridade em comportamento e etiqueta. (N. do T.)

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Renunciara-se a tantas coisas! E por propósitos tão ínfimos! Houve obstinadas e loucas privações, formas monstruosas de autotortura e abnegação, cuja origem era o medo e cujo resultado era uma de gradação infinitamente mais terrível que a degradação imaginária da qual, em sua ignorância, procuravam escapar; a Natureza, em sua formidável ironia, afugentava o anacoreta 65 para o rebanho dos animais selvagens do deserto e dava ao eremita as bestas do campo como companheiras.

Sim, estava para acontecer, como Lorde Henry profetizara, um novo hedonismo, que recriaria a vida e a salvaria do rigoroso e grotesco puritanismo que passava, em nossa época, por um estra nho ressurgimento. Ele certamente se serviria do intelecto, porém nunca deveria aceitar nenhuma teoria ou sistema que envolvesse a abstinência de qualquer forma de experiência passional. O objetivo do hedonismo, na verdade, seria a própria experiência e não seus frutos, não importando quão doces ou amargos. Quanto ao asce tismo que enfraquece os sentidos, assim como as extravagâncias vulgares que os atenuam, ele não os reconheceria. Mas ensinaria aos homens a concentrarem-se nos momentos de uma vida, que, em si mesma, não passava de um momento.

Há poucos de nós que nunca despertaram antes do amanhecer, seja depois de uma noite sem sonhos que nos tornam quase apai xonados pela morte, seja depois de uma noite de horror e perversa alegria quando, através dos recônditos do cérebro, alastram-se fantasmas mais terríveis do que a própria realidade, imbuídos de intensa vivacidade à espreita em tudo que é grotesco e que conferem à arte gótica seu duradouro vigor — arte esta que é sobretudo, pode-se imaginar, a arte daqueles cuja mente foi perturbada pela aflição do devaneio. Pouco a pouco, dedos pálidos arrastam-se pelas

65 Os anacoretas eram monges ou ascetas cristãos que viviam em retiro e solidão, especialmente nos primórdios do Cristianismo. (N. do T.)

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cortinas e parecem estremecer. Em formatos sinistros e fantásticos, sombras silenciosas rastejam e agacham-se pelos cantos do quarto. Lá fora, sente-se o movimento dos pássaros entre as folhas, o som dos homens avançando rumo ao trabalho ou o suspiro e o soluço do vento descendo das colinas e vagando ao redor da casa silenciosa, como se temesse acordar os que dormem e, ainda assim, devesse convocar o sono de sua caverna púrpura. Suspende-se véu após véu de uma fina e obscura gaze, e gradativamente as formas e cores das coisas lhes são restauradas, e assistimos à aurora refazer o mundo em seu antigo padrão. Os espelhos descorados retomam sua vida de imitação. As velas apagadas continuam onde as deixamos e, ao seu lado, jaz o sequioso livro que estudávamos, ou a flor da lapela que usamos no baile, ou a carta que nos dava medo de ler, ou aquela que lemos muitas vezes. Nada parece haver mudado. Das sombras irreais da noite, retorna a vida real que conhecíamos. Temos de retomá-la de onde a deixamos e, então, paira sobre nós uma terrí vel sensação de obrigação da continuidade do trabalho no mesmo enfadonho ciclo de hábitos estereotipados ou, quem sabe, um desejo feroz de que nossas pálpebras pudessem abrir-se certa manhã para um mundo que tivesse, na escuridão, sido remodelado para nosso prazer, um mundo em que as coisas teriam novas formas e cores, um mundo transformado, com outros segredos, em que o passado tivesse pouca ou nenhuma importância ou, caso se mantivesse, de algum modo não haveria nenhuma forma consciente de obrigação ou arrependimento, um mundo no qual até mesmo as lembranças alegres teriam seu amargor, e as lembranças do prazer, sua dor.

Para Dorian Gray, era a criação de mundos assim que parecia ser o verdadeiro objetivo — ou um dos verdadeiros objetivos — da vida; e, em sua busca por sensações que seriam, ao mesmo tempo, novas e prazerosas e que possuíssem o elemento de estranheza tão essencial ao romance, ele muitas vezes adotava certos modos de pensar que sabia serem realmente alheios à sua natureza e abandonava-se às suas ardilosas influências. Tendo, então, por assim

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dizer, captado suas cores e satisfeito sua curiosidade intelectual, deixava-os com aquela estranha indiferença, incompatível com um verdadeiro ardor de temperamento e que, na realidade, segundo certos psicólogos modernos, é geralmente um de seus requisitos. Certa vez, surgiram boatos de que ele estava a ponto de ade rir à religião católica romana e, de fato, o ritual romano sempre exercera uma grande atração sobre ele. O sacrifício diário, ver dadeiramente mais terrível do que qualquer outro sacrifício do mundo antigo, instigava-o, tanto por sua soberba rejeição à evi dência dos sentidos quanto pela primitiva simplicidade de seus elementos e sua eterna paixão pela tragédia humana que buscava simbolizar. Adorava ajoelhar-se no piso de mármore frio e ob servar o sacerdote, em seus rígidos e floridos trajes litúrgicos, afastando lentamente o véu do sacrário com suas mãos pálidas, ou erguendo no alto o ostensório cravejado de joias, como uma lanterna, com a alva hóstia — que, às vezes, poderíamos alegre mente acreditar ser, de fato, o panis caelestis, o pão dos anjos —, ou, paramentado com as vestes da Paixão de Cristo, partindo a hóstia no cálice e golpeando o peito por seus pecados. Os incen sários fumegantes que os sisudos meninos, cobertos de rendas e escarlates, lançavam no ar como imensas flores douradas, exerciam sobre ele um fascínio sutil. Ao sair da igreja, costumava olhar maravilhado para os negros confessionários e desejava sentar-se sob a tênue sombra de um deles e escutar os homens e mulheres sussurrando pelas gastas treliças a verdadeira história de sua vida. Mas ele nunca incorreu no erro de interromper seu desenvol vimento intelectual por qualquer tipo de aceitação formal de um credo ou sistema ou de confundir uma hospedaria, adequada à estadia por uma noite — ou por algumas horas de uma noite sem estrelas, em que a lua tem muito a fazer — com uma casa onde se podia viver. O misticismo, com seu fascinante poder de tornar coisas

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comuns em algo alheio a nós, e o antinomianismo 66 sutil que sempre parece acompanhá-lo comoveram-no por uma temporada; e, por uma temporada, ele aproximou-se das doutrinas materialistas do movimento do Darwinismus67 na Alemanha e obteve curioso prazer em conectar os pensamentos e paixões dos homens a alguma célula rosada no cérebro ou alguma fibra nervosa do corpo, deliciando-se com o conceito de absoluta dependência do espírito de certas condi ções físicas, enfermas ou saudáveis, normais ou debilitadas. Ainda assim, como já fora dito a seu respeito antes, nenhuma teoria sobre a vida parecia-lhe ter alguma importância quando comparada com a própria vida. Sentia-se absolutamente ciente de como são estéreis todas as especulações intelectuais quando separadas da ação e do experimento. Sabia que as sensações, não menos que a alma, têm seus mistérios espirituais a revelar.

Por isso, ele agora passava ao estudo dos perfumes e aos segre dos de sua fabricação, destilando óleos de odores fortes e queimando resinas aromáticas do Oriente. Percebeu que não existia nenhum estado mental que não tivesse sua contrapartida na vida sensual e pôs-se a descobrir suas verdadeiras relações, perguntando-se o que havia no olíbano 68 que tornava alguém místico, no âmbar cinza 69 que excitava as paixões, nas violetas que despertavam a lembrança de romances mortos, no almíscar que perturbava o cérebro e na magnólia que coloria a imaginação. Ademais, buscava muitas vezes elaborar uma verdadeira psicologia dos perfumes, calculando as

66 O antinomianismo, termo cunhado por Martinho Lutero, define que somente a fé é necessária para a salvação, dispensando-se qualquer uso ou obrigação de leis morais. (N. do T.)

67 Não confundir com a Teoria da evolução das espécies, de Charles Darwin. O biólogo alemão Ernst Haeckel desenvolveu o que ficou conhecido como Darwinismus em seu país, cujas comprovações científicas, posteriormente tidas como fraudulentas, serviram à filosofia nazista de superioridade da raça ariana. (N. do T.)

68 Resina aromática muito usada na fabricação de incensos e, com muita frequência, em ritos religiosos. (N. do T.)

69 Fixante empregado na perfumaria, cujo uso foi proibido por se tratar de secreção biliar da baleia cachalote, espécie em extinção. (N. do T.)

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inúmeras influências das raízes de aroma adocicado e das flores com alto teor de pólen; dos bálsamos aromáticos e das madeiras escuras e fragrantes; do nardo, que causa náuseas; da hovênia, que enlouquece os homens; e da babosa, que dizem ser capaz de expulsar a melancolia da alma.

Em outra época, dedicou-se completamente à música e, em uma extensa sala guarnecida de treliças, com teto em tons de vermelho e dourado e paredes de laca verde-oliva, costumava organizar inte ressantes concertos com ciganos loucos, que arrancavam melodias selvagens de pequenas cítaras, ou austeros tunisianos com xales amarelos, que dedilhavam tensas cordas de monumentais alaúdes, enquanto negros sorridentes batiam monotonamente em tambores de cobre e, agachados em tapetes escarlates, esguios indianos de turbante sopravam longas flautas de bambu ou algum tipo de metal e encantavam — ou fingiam encantar — grandes serpentes com o pescoço dilatado e horríveis víboras-do-deserto. Os intervalos duros e as dissonâncias estridentes da música primitiva excita vam-no quando a graça de Schubert, os belos lamentos de Chopin e as poderosas harmonias do próprio Beethoven eram ignorados em seus ouvidos. Reuniu os instrumentos mais estranhos de to das as partes do mundo que pôde encontrar, tanto nos túmulos das nações mortas, quanto entre as poucas tribos selvagens que sobreviveram ao contato com as civilizações ocidentais, e amava tocá-los e experimentá-los. Possuía os misteriosos juruparis 70 dos indígenas do Rio Negro, que as mulheres não podem presenciar — e que mesmo os jovens não podem ver até que se submetam a jejuns e flagelos —, os jarros de barro dos peruanos que contêm os gritos estridentes dos pássaros, as flautas de ossos humanos que 70 Jurupari é um personagem mitológico dos povos indígenas da América do Sul, conhecido como o “demônio dos sonhos”. No texto, o autor faz referência a um ritual com flautas, de mesmo nome, de que só os homens podem participar, realizado pelos indígenas da área de confluência dos rios Negro e Uaupés, no estado do Amazonas. (N. do T.)

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Alfonso de Ovalle 71 ouvira no Chile, e as sonoras jaspes 72 verdes, encontradas nas proximidades de Cuzco, que emitem uma nota de doçura singular. Tinha cabaças pintadas repletas de seixos, que tilintavam quando chacoalhadas; o longo clarim dos mexicanos, através do qual o músico não sopra, mas inala o ar; o áspero toré das tribos amazônicas, que é soado pelos sentinelas, que passam o dia sentados em árvores altas e podem ser ouvidos, diz-se, a uma distância de três léguas; o teponaztli, que tem duas abas de madeira que vibram e é batido com baquetas untadas com uma goma flexível, obtida de um caldo leitoso de plantas; os sinos yotl dos astecas, que são pendurados em cachos como uvas; e um enorme tambor cilín drico revestido de peles de grandes serpentes, como o que Bernal Díaz viu quando entrou com Cortés 73 no templo mexicano e de cujo pesaroso som nos deixou tão vívida descrição. O caráter fantástico desses instrumentos fascinava-o e ele sentia um estranho prazer ao pensar que a arte, assim como a Natureza, tinha seus mons tros, coisas de formas bestiais com vozes horrendas. No entanto, depois de algum tempo, cansava-se deles e voltava a sentar-se em seu camarote na ópera, sozinho ou com Lorde Henry, escutando Tannhäuser 74 com absorto prazer e percebendo no prelúdio dessa grande obra de arte uma representação da tragédia de sua alma. Numa ocasião interessou-se pelo estudo das joias e compa receu a um baile a fantasia como Anne de Joyeuse, almirante da França, em um traje coberto por quinhentas e sessenta pérolas. Esse interesse fascinou-o por anos e, na verdade, pode-se dizer que nunca

71 Alonso de Ovalle (1603-1651) foi um jesuíta chileno e cronista da vida na colônia, equi valente no Chile ao padre José de Anchieta no Brasil. No original, seu nome está grafado incorretamente, “Alfonso”, em vez de “Alonso”. (N. do T.)

72 Cristais de quartzo. (N. do T.)

73 Bernal Díaz del Castillo (1496-1584) e Hernán Cortés (1485-1547) foram os principais con quistadores espanhóis responsáveis pela queda do Império Asteca, no atual México. (N. do T.)

74 Tannhäuser é uma ópera em três atos, com música e libreto de Richard Wagner (1813-1883), cujo tema é a redenção pelo amor. (N. do T.)

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o abandonou. Frequentemente passava um dia inteiro arranjando e rearranjando em seus estojos as diversas pedras que colecionara, tais como o crisoberilo verde-oliva, que se torna vermelho sob a luz, o olho de gato, com sua risca prateada parecida com um arame, o peridoto com tons de pistache, topázios cor-de-rosa e amarelo-palha, granadas escarlate como fogo com luminescência semelhante a estre las de quatro pontas, hessonitas em tons vermelho-vivos, espinélios alaranjados e violeta, além de ametistas com camadas intercaladas de rubis e safiras. Amava o vermelho-dourado da pedra do sol e a brancura perolada da pedra da lua, além do arco-íris fragmentado do vidro opalino. Encomendou de Amsterdã três esmeraldas de ex traordinário tamanho e riqueza de cores e tinha ainda uma turquesa ocidental que era a inveja de todos os conhecedores. Descobriu também histórias maravilhosas sobre as joias. No Disciplina Clericalis de Alfonso75 , mencionava-se uma serpente com olhos de quartzo vermelho verdadeiro e, na romântica história de Alexandre, o Conquistador da Emátia 76 , dizia-se que ele tinha en contrado no Vale do Rio Jordão cobras “com colares de esmeraldas verdadeiras crescendo em suas costas”. Havia ainda uma pedra pre ciosa no cérebro do dragão, contou-nos Filóstrato77, e, “pela exibição de cartas douradas e uma toga escarlate”, o monstro poderia ser induzido a um sono mágico e, então, assassinado. De acordo com o grande alquimista Pierre de Boniface, o diamante tornava um homem invisível, e a ágata indiana fazia-o eloquente. A cornalina acalmava a ira, o jacinto provocava sono, e a ametista dispersava os

75 Pedro Alfonso, nascido Rabbi Moses Sephardi, foi um escritor e astrônomo da Andaluzia muçulmana. Depois de sua conversão ao Cristianismo, escreveu a Disciplina Clericalis, uma coleção de trinta e três contos árabes de caráter moral, traduzidos do árabe, persa e sânscrito para o latim. (N. do T.)

76 Uma das seis províncias da Macedônia, atualmente região da Grécia. (N. do T.)

77 Flávio Filóstrato (170-250) foi um filósofo sofista que viveu no período dos imperadores romanos. Recebeu os primeiros ensinamentos de retórica em Atenas, e mudou-se posteriormente para Roma. (N. do T.)

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sintomas do vinho. A granada afugentava demônios e o hidrópicus privava a lua de sua cor. A selenita crescia ou diminuía de acordo com as fases da lua, e o meloceus, que descobria ladrões, teria seus poderes influenciados apenas pelo sangue de crianças. Leonardus Camillus 78 vira uma pedra branca tirada do cérebro de um sapo recém-morto que era um antídoto certeiro contra venenos. O bezoar, encontrado no coração do veado árabe, era um talismã capaz de curar a peste. Nos ninhos de pássaros árabes havia o aspilates, que, segundo Demócrito, protegia seu portador dos perigos do fogo79 .

O rei do Ceilão cavalgou por sua cidade com um grande rubi nas mãos, como parte da cerimônia de sua coroação. Os portões do palácio do Preste João 80 eram “feitos de sárdio e incrustados com os cornos da víbora-de-chifres, para que nenhum homem pudesse trazer veneno para seu interior”. Sobre a cumeeira, havia “duas maçãs de ouro, com duas granadas”, de forma que suas partes douradas brilhassem de dia e as granadas, à noite. No estranho romance A Margarite of America, de Lodge 81 , afirmava-se que nos aposentos da rainha podia-se ver “todas as damas castas do mundo, entalhadas em prata, olhando por límpidos espelhos de peridotos, granadas, safiras e esmeraldas verdes”. Marco Polo vira os habitantes de Zipangu82 depositarem pérolas cor-de-rosa nas bocas dos mortos.

78 Astrônomo italiano, mineralogista e físico, autor de O Espelho das Pedras (The Mirror of Stones), tratado sobre pedras preciosas. (N. do T.)

79 Alguns dos vocábulos neste parágrafo são adaptações de termos cuja origem é desconhecida. Não se sabe se o autor os inventou ou se simplesmente caíram em desuso de tal maneira que não há vestígios de suas formas contemporâneas. Portanto, os termos “hidrópicus”, “meloceus” e “aspilates” são adaptações dos originais hidropicus, meloceus e aspilates. (N. do T.)

80 Lendário soberano cristão do Oriente, detinha as funções de patriarca e rei, correspondendo ao imperador da Etiópia. (N. do T.)

81 Thomas Lodge (1558-1625) foi um dramaturgo e escritor inglês. Seu romance A Margarite of America (sem tradução para o português) narra a improvável história de amor entre um príncipe peruano e a filha do rei do grão-ducado de Moscou. (N. do T.)

82 Nome dado ao Japão pelo viajante Marco Polo. Porém, o que ele achava ser o atual arqui pélago do Japão era, na verdade, território chinês. (N. do T.)

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Um monstro marinho se enamorara da pérola que um mergulhador trouxera para o Rei Perozes 83 e matara o ladrão, chorando sua perda por sete luas. Quando os hunos atraíram tal rei para o grande fosso, ele arremessou-a para longe — é Procópio 84 quem nos conta essa história — e nunca mais a encontraram, apesar de o imperador Anastácio 85 ter oferecido quinhentas moedas de ouro por ela. O rei de Malabar 86 mostrara a um certo veneziano um rosário de trezentas e quatro pérolas, uma para cada deus que ele venerava. De acordo com o historiador Brantôme, quando o Duque de Valentinois 87, filho de Alexandre VI, visitou o Rei Luís XII da França, seu cavalo estava carregado de folhas de ouro e seu chapéu ostentava duas fileiras de rubis, emitindo uma luz extraordinária. O Rei Carlos da Inglaterra cavalgava sobre estribos dos quais pendiam quatro centos e vinte e um diamantes. Ricardo II tinha um casaco coberto com espinelas, avaliado em trinta mil marcos. Hall 88 descreveu Henrique VIII, a caminho da torre antes de sua coroação, usando “um gibão de ouro em relevo com a frente cravejada de diamantes e outras pedras valiosas, além de um enorme talabarte em volta do pescoço com grandes rubis-balas”. Os preferidos de James I da Inglaterra usavam brincos de esmeraldas engastados em filigranas de ouro. Eduardo II ofereceu a Piers Gaveston89 uma armadura de

83 Perozes I ou Peroz I (?-484) foi um xá (equivalente a um rei) do Império Sassânida, o último império persa pré-islâmico. (N. do T.)

84 Procópio de Cesareia (500-565) foi um destacado historiador bizantino do século VI. (N. do T.)

85 Anastácio I (430-518) reinou no Império Bizantino de 491 até sua morte. (N. do T.)

86 O reino de Malabar, ou Arakkal, localizado na costa oeste da Índia, foi estabelecido entre os anos 1545 e 1819, quando foi anexado ao Reino Unido Britânico. (N. do T.)

87 Título do príncipe de Mônaco César Bórgia, ou Cesare Borgia (1475-1507), filho do papa Alexandre I. (N. do T.)

88 Eduardo Hall (1498-1547) foi um cronista e advogado inglês, responsável pela edição de um compêndio sobre os monarcas ingleses que, futuramente, passou a ser conhecido como “Crônicas de Hall”. (N. do T.)

89 Piers Gaveston (1284-1312) foi o primeiro Conde da Cornualha. (N. do T.)

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ouro vermelho cravejada de cristais de quartzo vermelhos, com o colarinho de rosas douradas incrustadas com turquesas e um barrete coberto de pérolas. Henrique II usava luvas enfeitadas com joias que chegavam aos cotovelos e tinha uma luva de falcoaria bordada com doze rubis e cinquenta e duas pérolas grandes. A coroa ducal de Carlos, o Audaz, último duque da Borgonha de sua dinastia, era decorada com pérolas em formato de peras e cravejada de safiras. Como a vida já fora sofisticada! Tão deslumbrante em sua pompa e ornamentação! Até mesmo ler sobre o luxo dos mortos era maravilhoso.

Ele voltou, então, sua atenção aos bordados e às tapeçarias que faziam o papel de afrescos nas frias salas das nações do norte da Europa. À medida que investigava o assunto — e ele sempre teve uma extraordinária capacidade de ficar completamente absorto por qualquer coisa a que se dedicasse — sentia-se quase entristecido ao observar a ruína que o tempo provocava nas coisas belas e ma ravilhosas. De qualquer forma, ele escapara disso. Um verão seguia o outro, e os junquilhos amarelos floresciam e morriam muitas e muitas vezes, e noites de horror repetiam a história de sua vergonha, mas ele permanecia inalterado. Nenhum inverno arruinara seu rosto ou manchara seu viço. Como era diferente com as coisas materiais! Para onde tinham ido? Onde estava a grande capa com tons violeta, na qual os deuses lutavam contra os gigantes, tecida por garotas morenas para o deleite de Atena? Onde estava o enorme velário 90 que Nero estendera sobre o Coliseu de Roma, aquela gigantesca tela púrpura em que estava representado o céu estrelado, com Apolo conduzindo uma carruagem puxada por corcéis brancos com rédeas douradas? Ele ansiava por ver as curiosas toalhas de mesa feitas para o Sacerdote do Sol91 , em que se exibiam todas as iguarias que

90 Espécie de toldo usado pelos romanos. (N. do T.)

91 Referência a Heliogábalo, imperador romano entre os anos 218 e 222, que instituiu o culto ao Deus Sol, uma divindade importada de Emesa, atual Homs, na Síria. (N. do T.)

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se poderia desejar para um banquete; a mortalha do Rei Quilpérico92 , com suas trezentas abelhas douradas; as fantásticas túnicas que despertaram a indignação do Bispo do Ponto 93 , enfeitadas com “leões, panteras, ursos, cães, florestas, rochas, caçadores — tudo, na verdade, que um pintor pode copiar da natureza”; e a túnica que Carlos, o Duque de Orléans, usara certa vez, em cujas mangas foram bordados os versos de uma canção começando com “madame, je suis tout joyeux” 94 e seu acompanhamento musical trabalhado em fios de ouro, com cada nota — em formato quadrado naquela época — formada por quatro pérolas. Ele leu sobre o quarto preparado no palácio de Reims para o uso da rainha Joana de Borgonha, decorado com “mil, trezentos e vinte e um papagaios bordados, ostentando as armas do rei, e quinhentas e sessenta e uma borboletas, cujas asas eram igualmente decoradas com as armas da rainha, tudo trabalhado em ouro”. Catarina de Médicis encomendara um leito de morte para si com veludo negro polvilhado com quartos crescentes e sóis. Suas cortinas eram feitas de seda adamascada, com grinaldas e guirlandas repletas de folhas sobre um fundo de ouro e prata, e com as barras compostas de franjas bordadas com pérolas. E, no quarto em que estavam colocadas, foram expostos inúmeros objetos da rainha de veludo preto com detalhes prateados. Luís XIV tinha cariátides 95 de quase cinco metros de altura bordadas em ouro em seus aposentos. O leito real de Sobieski, rei da Polônia, era feito de brocados dourados de Esmirna96 com versos do Alcorão borda dos com turquesas. Seus pés eram de prata dourada, lindamente

92 Quilpérico I (539-584) foi rei da Nêustria, localizada na atual costa atlântica da França, de 561 até sua morte. (N. do T.)

93 Antiga província romana, atualmente correspondente à Armênia e parte da Turquia. (N. do T.)

94 “Senhora, estou muito feliz”, em francês. (N. do T.)

95 Figuras femininas esculpidas, usadas geralmente na estrutura dos antigos templos greco-romanos. (N. do T.)

96 Antiga cidade grega na costa do Mar Egeu. Atualmente, faz parte da Turquia. (N. do T.)

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esculpidos e profusamente decorados com medalhões esmaltados e cravejados de joias. Fora trazido do acampamento militar turco defronte à cidade de Viena, e o estandarte de Maomé permanecera sob sua trêmula cobertura dourada.

E assim, por um ano inteiro, procurou acumular os espécimes mais sofisticados de trabalhos em tecidos e bordados que con seguiu encontrar, adquirindo as delicadas musselinas de Délhi, finamente trabalhadas com fios de ouro esticados e costurados com asas iridescentes de besouros; as gazes de Daca, que, por sua transparência, são conhecidas no Oriente como “ar trançado”, “água corrente” e “orvalho da noite”; tecidos com estranhas es tampas de Java; elaboradas tapeçarias amarelas da China; livros encadernados com cetins ocres ou sedas azul-claras, com moti vos de flores-de-lis, pássaros e outras imagens; véus rendados feitos com ponto húngaro; brocados sicilianos e rijos veludos es panhóis; peças georgianas, com suas moedas douradas, e fukusas japonesas 97, com seus tons de ouro e verde e seus pássaros com maravilhosas plumagens.

Também tinha particular paixão pelas vestes eclesiásticas, assim como, na verdade, por tudo conectado ao cerimonial da Igreja. Nas enormes arcas de cedro enfileiradas na galeria oeste de sua casa, ele havia armazenado muitos belos e raros espécimes do autêntico vestuário da Noiva de Cristo, que deve usar púrpura, joias e fino linho, a fim de esconder seu corpo pálido e macilento, desgastado pelo almejado sofrimento e ferido pela autoflagelação. Possuía uma magnífica pluvial98 de seda carmim e damasco tecido com fios de ouro, estampada com um padrão de romãs douradas dispostas sobre flores cerimoniais de seis pétalas, com o desenho do rione

97 Tipo de tecido japonês usado para embrulhar presentes ou limpar os utensílios utilizados na cerimônia do chá. (N. do T.)

98 Paramento litúrgico que faz parte de várias tradições ocidentais do Cristianismo. (N. do T.)

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de Roma99 em cada lado, trabalhado em minúsculas pérolas. Os aurifrígios100 eram divididos em painéis que simbolizavam as ce nas da vida da Virgem, e sua coroação era representada com sedas coloridas por sobre o capuz. Tratava-se de um trabalho italiano do século XV. Outra pluvial era feita de veludo verde, bordada com conjuntos de folhas de acanto no formato de coração, das quais abriam-se flores brancas com longas hastes e cujos detalhes eram realçados por fios prateados e cristais coloridos. O fecho osten tava a cabeça de um serafim em relevo trabalhado com fios de ouro. Seus aurifrígios eram entrelaçados geometricamente com seda dourada e vermelha, e adornados com medalhas de muitos santos e mártires, entre os quais, São Sebastião. Tinha também casulas 101 de seda âmbar e seda azul, de brocados dourados, de seda adamascada amarela e de tecidos de ouro, estampadas com representações da Paixão e Crucificação de Cristo e bordadas com leões, pavões e outros emblemas; dalmáticas102 de cetim branco e seda adamascada cor-de-rosa, decoradas com tulipas, golfinhos e flores-de-lis; frontões de altar de veludo carmim e linho azul; e muitos corporais103 , mantilhas para cálices e sudários. Havia algo que excitava sua imaginação nos ofícios religiosos em que tais coisas eram utilizadas.

Esses tesouros, e tudo que ele colecionava em sua adorável casa, eram para ele meios para esquecer, modos pelos quais poderia escapar, por uma temporada, do medo que parecia-lhe, às vezes, grande demais para suportar. Nas paredes do quarto trancado e

99 No original, o autor parece confundir o desenho do rione, uma pinha de bronze que figura em diversos símbolos católicos, com um abacaxi (no original, pine-apple). Optou-se pelo uso da nomenclatura correta. (N. do T.)

100 Faixa ou borda ricamente bordada, parte especialmente de vestimentas eclesiásticas. (N. do T.)

101 Vestes litúrgicas confeccionadas com seda ou damasco. (N. do T.)

102 Dalmática é o traje litúrgico próprio do diácono na Igreja Católica. É colocada sobre a túnica e a estola e utilizada na celebração da missa. (N. do T.)

103 Pano, geralmente de linho, usado na missa junto dos cálices sagrados. (N. do T.)

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solitário onde passara tanto tempo de sua meninice, pendurara com suas próprias mãos o terrível retrato cujas feições mutantes mostra vam a verdadeira degradação de sua vida e, diante dele, colocara a mortalha púrpura e dourada, como uma cortina. Por semanas não aparecia ali e esquecia-se da horrenda coisa pintada, recobrando seu coração leve, sua maravilhosa alegria, sua concentração apai xonada na mera existência. Então, de súbito, saía sorrateiramente de casa certas noites, descia para lugares pavorosos perto de Blue Gate Fields 104 e ali ficava, dia após dia, até que fosse expulso. Ao retornar, sentava-se diante do quadro, por vezes odiando tanto o retrato quanto a si mesmo, por vezes, contudo — cheio do orgulho próprio do individualismo que representa metade do fascínio pelo pecado —, sorria com um prazer secreto para a sombra disforme que era obrigada a carregar o fardo que deveria ter sido dele. Depois de alguns anos, não suportando ficar muito tempo longe da Inglaterra, desistiu da propriedade que dividia com Lorde Henry em Trouville105 , assim como da casinha de paredes brancas em Argel, onde passaram o inverno mais de uma vez. Odiava separar-se do quadro que era parte tão importante de sua vida, além de temer que, durante sua ausência, alguém pudesse ter acesso ao quarto, apesar das elaboradas trancas que mandara instalar na porta. Tinha plena consciência de que o quadro não lhes diria nada. Era verdade que o retrato ainda preservava, sob toda a imundície e feiura do rosto, uma semelhança marcante com ele; mas o que poderiam deduzir a partir dela? Ele riria de qualquer um que ten tasse insultá-lo. Não fora ele que o pintara. O que lhe importava se parecia repugnante e cheio de vergonha? Mesmo que lhes contasse a verdade, acreditariam nele?

104 Blue Gate Fields foi uma das áreas mais degradadas que já existiram ao norte das antigas docas do leste de Londres, durante a Era Vitoriana. (N. do T.)

105 Cidade costeira na França. (N. do T.)

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Ainda assim, tinha medo. Às vezes, quando estava em sua grande casa em Nottinghamshire, entretendo os elegantes jovens de sua própria classe — que eram sua principal companhia — e chocando o condado com o luxo imoral e o deslumbrante esplendor do seu modo de vida, subitamente deixava seus convidados e corria de volta à cidade para verificar se não haviam mexido na porta e se o quadro ainda estava no mesmo lugar. E se ele fosse roubado? Só de pensar nisso ficava gélido de horror. Então, certamente o mundo conheceria seu segredo. Talvez o mundo já suspeitasse.

Pois, ao mesmo tempo em que fascinava muitos, não eram poucos os que desconfiavam dele. Quase fora banido de um clube do West End do qual tinha todo o direito de tornar-se membro, dada sua origem e sua posição social, e comentava-se que, em certa ocasião, ao ser levado por um amigo para o salão de fumo do Churchill, o Duque de Berwick e um outro cavalheiro levantaram-se propositalmente e saíram. Curiosas histórias a seu respeito tornaram-se habituais depois que ele passou dos vinte e cinco anos de idade. Havia boatos de que fora visto brigando com marinheiros estrangeiros, em um covil sórdido nas áreas mais distantes de Whitechapel, e de que associava-se a ladrões e falsificadores, conhecendo os segredos de seus ofícios. Suas anormais ausências tornaram-se célebres e, quando costumava reaparecer novamente na sociedade, os homens sussurravam pelos cantos uns para os outros, passavam por ele com olhares desdenhosos ou observavam-no com uma frieza inquisi tiva, como se estivessem determinados a descobrir seu segredo. Certamente, ele nem sequer percebia tais insolências e tentativas de desprezá-lo e, na opinião da maioria das pessoas, suas manei ras sinceras e afáveis, seu encantador sorriso de menino e a eterna elegância da maravilhosa juventude que parecia nunca o abandonar eram, em si mesmos, resposta suficiente às calúnias — pois assim foram chamadas — que circulavam a seu respeito. Observava-se, no entanto, que alguns dos que haviam tido mais intimidade com ele pareciam, depois de um tempo, evitá-lo. Mulheres que o adoravam

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à loucura e que, por sua causa, enfrentaram todo tipo de censura social e rebelaram-se contra as convenções foram vistas empalide cendo de vergonha e horror quando Dorian Gray entrava na sala. Mesmo assim, esses escândalos sussurrados apenas aumen tavam, aos olhos de muitos, seu estranho e perigoso encanto. Sua imensa fortuna era um elemento certo de segurança. A sociedade — a sociedade civilizada, pelo menos — nunca se predispõe a acreditar em coisa alguma em detrimento dos que são ricos e fascinantes. Ela instintivamente sente que as boas maneiras são mais importantes que a moral e, em sua opinião, ser altamente respeitável tem menos valor que possuir um bom chef. Afinal de contas, ouvir dizer que o homem que ofereceu um jantar ruim ou um vinho barato tem uma vida privada irrepreensível não é lá muito consolador. Nem mesmo as virtudes cardinais podem remediar entradas frias, como Lorde Henry observara certa vez em uma discussão sobre o assunto, e há, provavelmente, muito a ser dito a favor de sua opinião. Pois os princípios da boa sociedade são, ou deveriam ser, iguais aos princípios da arte. A forma lhe é absolutamente essencial. Ela deve ter a dignidade de uma cerimônia, assim como sua irrealidade, e deve combinar o caráter dissimulado de uma peça romântica com a sagacidade e a beleza que tornam tais peças encantadoras. Seria a falta de sinceridade algo tão terrível assim? Acredito que não. Trata-se apenas de um método através do qual podemos multiplicar nossa personalidade.

De qualquer forma, essa era a opinião de Dorian Gray. Ele costumava espantar-se com a psicologia rasa daqueles que defi niam o ego humano como algo simples, permanente, confiável e de essência única. Para ele, o homem era um ser com infinitas vidas e infinitas sensações, uma criatura complexa e multiforme, que elaborava dentro de si estranhos legados de pensamento e paixão e cuja carne era manchada pelas moléstias monstruosas dos mortos. Adorava passear pela fria e desolada galeria de quadros de sua casa de campo e olhar para os vários retratos daqueles cujo

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sangue circulava em suas veias. Ali estava Philip Herbert, descrito por Francis Osborne106 , em suas Memórias dos Reinados da Rainha Elizabeth e do Rei James, como alguém que fora “acariciado pela corte por seu belo rosto, que não o acompanhou por muito tempo”. Levaria ele, por vezes, a vida do jovem Herbert? Haveria algum estranho germe venenoso rastejado de corpo em corpo até chegar ao dele? Teria sido alguma obscura sensação daquele encanto arruinado que o levara tão subitamente, e quase sem porquê, a proclamar, no ateliê de Basil Hallward, aquela louca súplica que tanto mudara sua vida? Aqui, em um gibão vermelho bordado de ouro com sobretudo incrustado de joias e gorgeira107 e punhos com barras douradas, estava Sir Anthony Sherard, com sua armadura negra e prateada colocada a seus pés. Qual teria sido o legado desse homem? Teria o amante da Rainha Joana de Nápoles lhe transmitido uma herança de pecado e vergonha? Seriam suas próprias ações meros sonhos que o falecido homem não ousara realizar? Aqui, da tela desbotada, sorria Lady Elizabeth Devereux, com seu capuz de gaze, corpete de pérolas e mangas de retalhos cor-de-rosa. Tinha na mão direita uma flor e, na esquerda, segurava um colar esmaltado de rosas brancas e rosadas. Sobre uma mesa ao seu lado, havia um bandolim e uma maçã. Seus pequenos sapatos pontudos continham grandes rosetas verdes. Ele conhecia sua vida e as estranhas histórias que se contavam sobre seus amantes. Haveria nele algo do temperamento dela? Aqueles olhos ovais, com pálpebras pesadas, pareciam olhá-lo com curiosidade. E quanto a George Willoughby, com seus cabelos empoados e seu fantástico tapa-olho? Como aparentava ser mau! Seu rosto era melancólico e moreno, e os lábios sensuais pareciam retorcidos pelo desdém. Delicadas pregas de renda caíam sobre as

106 Francis Osborne (1593-1659) foi um ensaísta inglês de renome na época da restauração inglesa. A obra citada posteriormente é uma de suas menores, dedicada a fofocas sobre a vida na corte. (N. do T.)

107 Gola formada por uma sobreposição de babados. (N. do T.)

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mãos amareladas e magras, sobrecarregadas de anéis. Ele tinha sido um janota do século XVIII e amigo, na juventude, de Lorde Ferrars. E quanto ao segundo Lorde Beckenham, companheiro do príncipe regente em seus dias mais selvagens e uma das testemunhas de seu casamento secreto com a sra. Fitzherbert? Como era orgulhoso e bonito, com seus cachos castanhos e a pose insolente! Que paixões teria ele relegado? O mundo julgava-o como um infame. Havia conduzido orgias em Carlton House. A Estrela da Jarreteira 108 brilhava em seu peito. Ao lado dele pendia o retrato da esposa, uma mulher pálida de lábios finos, vestida de preto. O sangue dela também corria dentro dele. Como tudo aquilo parecia estranho! E sua mãe com o rosto parecido com o de Lady Hamilton109 e seus lábios úmidos, da cor do vinho — ele sabia o que havia herdado dela. Fora sua beleza e sua paixão pela beleza dos outros. Ela ria para ele em seu folgado vestido de seda. Tinha folhas de videira nos cabelos. O líquido púrpura vazava do cálice que ela segurava. Os cravos da pintura haviam murchado, mas os olhos continuavam maravilhosos tanto na profundidade quanto no esplendor da cor. Pareciam segui-lo aonde quer que fosse. Mesmo assim, além dos antepassados de nossa própria linha gem, todos temos ancestrais na literatura, muitos deles talvez mais próximos ao nosso tipo e temperamento e, certamente, exercendo uma influência da qual somos muito mais conscientes. Havia ocasiões em que parecia a Dorian Gray que toda a história era simplesmente um registro de sua própria vida, não como ele a vivera realmente, mas como sua imaginação a criara para si, como fora em seu cérebro e suas paixões. Sentia como se as conhecesse todas, essas estranhas e terríveis figuras que passaram pelo palco do mundo e tornaram

108 A Estrela da Ordem da Jarreteira é uma condecoração militar da cavalaria britânica, a mais antiga da Inglaterra, criada em 1348 pelo Rei Eduardo III. (N. do T.)

109 Lady Hamilton (1765-1815) é conhecida por ter sido a amante do oficial britânico Lorde Nelson e musa do pintor George Romney. (N. do T.)

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o pecado tão maravilhoso e o mal tão cheio de sutilezas. Parecia-lhe que, de algum modo misterioso, suas vidas haviam sido a sua própria. O herói do maravilhoso romance que tanto influenciara sua vida tivera, ele mesmo, essa estranha fantasia. No sétimo capítulo ele conta como, coroado de louros para que um raio não o atingisse, sentara-se, como Tibério, em um jardim em Capri e começara a ler os obscenos livros de Elefantis110, enquanto anões e pavões passeavam ao redor dele, e o flautista zombava do aspersor do incensário; como Calígula, participara de farras com jóqueis com camisas verdes em seus estábulos e ceara em uma manjedoura de marfim com um cavalo com o focinho adornado com joias; como Domiciano, vagara por um corredor forrado de espelhos de mármore, buscando com olhos exaustos o reflexo do punhal que deveria acabar com seus dias, agoniado com aquele tédio, aquele taedium vitae111 que atinge aqueles cuja vida nada nega; e espiara através de uma esmeralda transpa rente a desordem vermelha do circo e, então, em uma liteira112 de pérolas e púrpura puxada por mulas com ferraduras de prata, fora levado pela Rua das Romãs113 até uma Casa de Ouro e ouvira homens gritando por Nero quando passava; e, como Heliogábalo114 , pintara o rosto com cores diversas e tomara o lugar das mulheres, buscando a Lua de Cartago e entregando-a ao Sol em um casamento místico. Dorian costumava ler esse capítulo fantástico inúmeras ve zes, além dos dois capítulos imediatamente seguintes, nos quais,

110 Elefantis (final do século I) foi uma poetisa e médica grega aparentemente renomada no mundo clássico como a autora de um notório manual de sexo. (N. do T.)

111 Do latim, um estado de tédio extremo; literalmente cansaço da vida. (N. do T.)

112 Cadeirinha portátil e coberta, sustentada por dois varais compridos e conduzida por animais ou escravos. (N. do T.)

113 As romãs, em toda a obra de Oscar Wilde, são — de acordo com estudiosos — um símbolo do pecado, em substituição à maçã bíblica. Na frase assinalada, a “Rua das Romãs” e a “Casa de Ouro” representam, respectivamente, uma vida de pecados e seu templo de culto. A figura de Nero vem coroar esse percurso pecaminoso. (N. do T.)

114 Ver nota 91. (N. do T.)

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como em algumas curiosas tapeçarias ou esmaltados habilmente trabalhados, foram retratadas as belas e horríveis formas daque les cujo vício, sangue e exaustão tornaram-nos monstruosos ou loucos: Filippo, Duque de Milão, que assassinou a esposa e pintou seus lábios com um veneno escarlate para que seu amante pudesse sugar a morte do cadáver que acariciava; Pietro Barbo, o veneziano — conhecido como Paulo II —, que, tamanha a sua vaidade, queria assumir o título de Formoso, e cuja tiara, avaliada em duzentos mil florins, foi paga com a prática de um terrível pecado; Gian Maria Visconti, que usava cães de caça para perseguir homens vivos e cujo corpo assassinado foi coberto com rosas por uma meretriz que o amara; Bórgia em seu cavalo branco, com o Fratricídio cavalgando a seu lado e sua capa manchada com o sangue de Perotto; Pietro Riario, o jovem cardeal arcebispo de Florença, filho e protegido do papa Sisto IV, cuja beleza era apenas igualada por sua devassidão e que recebeu Leonora de Aragão em um pavilhão coberto por seda branca e carmim, repleto de ninfas e centauros, mandando pintar um menino de ouro para que pudesse servi-la no banquete, como Ganimedes 115 ou Hilas 116; Ezzelino, cuja melancolia só podia ser curada pelo espetáculo da morte e que tinha uma paixão por san gue vermelho semelhante à que os outros homens têm por vinho tinto — o filho do Demônio, como era relatado, que enganou o pai nos dados apostando com ele a própria alma; Giambattista Cibo, que, por pura chacota, tomou o nome papal de Inocêncio e em cujas veias entorpecidas um médico judeu injetou o sangue de três rapazes; Sigismundo Malatesta, amante de Isotta e senhor de Rimini, cuja imagem foi queimada em Roma como inimigo de Deus e dos homens, que estrangulou Polissena com um lenço e ofereceu

115 Ganimedes, na mitologia grega, era um príncipe de Troia, que Zeus levou para o Olimpo para tornar-se copeiro dos deuses. (N. do T.)

116 Na mitologia grega, Hilas era um nobre amado por Hércules, que acaba sequestrado pelas ninfas por causa de sua beleza. (N. do T.)

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veneno a Ginevra d’Este em um cálice de esmeraldas e, em honra a uma vergonhosa paixão, construiu uma igreja pagã para cultos cristãos; Carlos VI, que adorava a esposa do irmão tão loucamente que um leproso o avisara sobre a insanidade que tomaria conta dele e que, quando seu cérebro adoeceu e tornou-se alheio a tudo, só podia ser acalmado pelas cartas do tarô árabe 117 com as imagens do amor, da morte e da loucura; e, em seu casaco ajustado, chapéu adornado com joias e cachos semelhantes a acantos 118 , Grifonetto Baglioni, que matou Astorre com sua noiva e Simonetto com seu pajem, cuja beleza era tal que, quando jazia à beira da morte na praça amarela de Perúgia, os que o odiaram não podiam fazer nada além de chorar, e Atalanta, que o amaldiçoara, acabou abençoando-o.

Havia um terrível fascínio em todos eles. Via-os à noite e eles perturbavam sua imaginação durante o dia. A Renascença dominava estranhas maneiras de envenenamento — por meio de um capacete ou uma tocha acesa, de uma luva bordada ou um leque adornado com joias, de um frasco de perfume dourado ou um colar de âmbar. Dorian Gray fora envenenado por um livro. Havia momentos em que ele via o mal simplesmente como um meio para realizar sua concepção da beleza.

117 No original, Saracen Cards fazem referência às Cartas Mamlûk, uma espécie de tarô de origem árabe encontrado no norte da África, no atual Egito. Essas cartas encontram-se atualmente no Museu Topkapi de Istambul, na Turquia. (N. do T.)

118 Plantas ornamentais. (N. do T.)

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CAPÍTULO 12

Foi no dia nove de novembro, na véspera de seu trigésimo oitavo aniversário, como ele se lembraria muitas vezes depois disso. Caminhava de volta para casa por volta das onze horas, vindo da casa de Lorde Henry, onde estivera jantando, e estava envolto em pesadas peles, já que a noite era fria e tomada pelo nevoeiro. Na esquina da Praça Grosvenor Square com a Rua South Audley, um homem passou por ele entre a névoa, andando muito apressado e com a gola de seu sobretudo cinza virada para cima. Tinha uma mala em suas mãos. Dorian reconheceu-o. Era Basil Hallward. Uma estranha sensação de medo, que não conseguia compreender, apossou-se dele. Não fez nenhum sinal de que o reconhecera e continuou rapidamente em direção à própria casa.

Mas Hallward tinha-o visto. Dorian ouviu-o, primeiro parando na calçada e, depois, correndo em sua direção. Em poucos instantes, sua mão segurava-o pelo braço.

— Dorian! Que sorte extraordinária! Estive esperan do por você em sua biblioteca desde as nove horas. Finalmen te, tive pena do seu exausto criado e disse-lhe que fosse para a cama, ao acompanhar-me até a saída. Vou para Paris no trem da meia-noite e gostaria muito de vê-lo antes de partir. Pensei que era você, ou pelo menos seu casaco de pele, quando pas sou por mim. Mas não tinha certeza. Você não me reconheceu?

— Nesse nevoeiro, meu querido Basil? Ora, não consigo nem sequer reconhecer a Praça Grosvenor. Acho que minha casa está em algum lugar por aqui, mas não tenho certeza. Sinto que esteja de partida, já que não o vejo há muito tempo. Mas suponho que voltará em breve, não?

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— Não. Ficarei fora da Inglaterra por seis meses. Pretendo alugar um ateliê em Paris e ficar trancado até ter finalizado um grande quadro que tenho em mente. No entanto, não era a meu respeito que queria lhe falar. Aqui estamos, à porta da sua casa. Deixe-me entrar por um momento. Tenho algo a dizer-lhe.

— Ficaria encantado. Mas você não vai perder seu trem? — disse Dorian Gray, lentamente, ao subir os degraus e abrir a porta com sua chave.

A luz do lampião esforçou-se para atravessar a neblina, e Hallward olhou para o relógio.

— Tenho bastante tempo — respondeu ele. — O trem só parte à meia-noite e quinze e ainda são apenas onze horas. Na verdade, estava indo ao clube para procurá-lo quando o encontrei. Como pode ver, não vou me atrasar por causa da minha bagagem, já que enviei as coisas pesadas de antemão. Tudo que tenho comigo está nessa bolsa e posso chegar facilmente à estação em vinte minutos. Dorian olhou para ele e sorriu.

— Que maneira de viajar para um pintor popular! Uma bolsa de viagem e um sobretudo! Entre, ou a neblina vai entrar na casa. E trate de não falar de nada sério. Nada é sério hoje em dia. Pelo menos, nada deveria ser.

Hallward balançou a cabeça ao entrar e seguiu Dorian até a biblioteca. O fogo ardia, brilhante, na grande boca da lareira. Os lampiões estavam acesos, e uma adega holandesa prateada jazia aberta sobre uma mesinha marchetada, com alguns sifões de água carbonatada e grandes copos de cristal lapidado.

— Você pode ver que seu criado deixou-me muito à vonta de, Dorian. Serviu-me tudo que eu quis, incluindo seus melhores cigarros com ponteira dourada. Ele é uma criatura extremamente hospitaleira. Gosto muito mais dele que do francês que você tinha antes. O que aconteceu com o francês, por falar nisso?

Dorian deu de ombros.

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— Acredito que tenha se casado com a criada de Lady Radley e instalado-a em Paris como uma modista inglesa. Ouvi dizer que coisas inglesas estão muito populares por lá ultimamente. Parece tão tolo da parte dos franceses, não é? Mas — quer saber? — ele até que não era um criado ruim. Nunca gostei dele, mas não tinha nada do que reclamar. Sempre imaginamos coisas um tanto quanto absurdas. Ele me era realmente devotado e pareceu sentir muito quando foi embora. Gostaria de outro conhaque com soda? Ou prefere um hock-and-seltzer 119? Eu sempre tomo hock-and-seltzer. Deve haver algum na sala ao lado.

— Obrigado, não quero mais nada — disse o pintor, tirando o chapéu e o casaco e jogando-os sobre a mala que havia colocado em um canto. — Agora, meu caro amigo, quero falar seriamente com você. Não faça essa cara. Você torna as coisas muito mais difíceis para mim.

— Do que se trata? — exclamou Dorian com sua petulância característica, lançando-se no sofá. — Espero que não seja algo a meu respeito. Estou cansado de mim mesmo hoje. Gostaria de ser outra pessoa.

— É a seu respeito — respondeu Hallward com sua voz séria e grave — e tenho a obrigação de falar-lhe. Vou tomar apenas meia hora de seu tempo.

Dorian suspirou e acendeu um cigarro.

— Meia hora! — murmurou ele.

— Não estou lhe pedindo tanto, Dorian, e é completamente para o seu bem que estou falando. Acho certo que você saiba que as coisas mais horríveis vêm sendo ditas contra você em Londres.

— Não quero saber nada a esse respeito. Adoro escândalos so

119 Bebida popular na Inglaterra vitoriana, composta de vinho branco alemão diluído em água gaseificada. (N. do T.)

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bre outras pessoas, mas escândalos sobre mim não me interessam. Eles não têm o encanto do ineditismo.

— Tem de se interessar por eles, Dorian. Todo cavalheiro tem interesse em seu bom nome. Você não quer que as pessoas falem de você como alguém vil e degradado. Certamente, você tem sua posição, sua riqueza e todo esse tipo de coisa. Mas posição e ri queza não são tudo. Veja bem, não acredito nem um pouco nesses boatos. Pelo menos, não posso acreditar neles quando o vejo. O pecado é algo que fica inscrito no rosto de um homem. Não pode ser ocultado. As pessoas, às vezes, falam sobre vícios secretos. Isso não existe. Se um homem deplorável tem um vício, ele se mostra nos traços de sua boca, no pender de suas pálpebras, até mesmo na forma de suas mãos. Alguém — não vou mencionar seu nome, mas você o conhece — procurou-me no ano passado para que eu pintasse seu retrato. Nunca o havia visto antes e nunca ouvira falar dele à época, apesar de ter escutado muito sobre ele desde então. Ofereceu-me uma quantia extravagante. Recusei o serviço. Havia algo no formato de seus dedos que eu odiava. Agora sei que estava certo no que imaginara a seu respeito. Sua vida é pavorosa. Mas você, Dorian, com seu rosto puro, brilhante e inocente e sua maravilhosa juventude indelével — não posso acreditar em nada contra você. No entanto, vejo-o tão pouco, e agora você nem vai mais até o ateliê, e, quando estou longe de você e ouço essas coisas horrendas que as pessoas sussurram a seu respeito, fico sem saber o que dizer. Por que, Dorian, um homem como o Duque de Berwick deixa a sala de um clube quando você entra nela? Por que tantos cavalheiros de Londres nunca vão até sua casa ou convidam-no para as casas deles? Você costumava ser amigo de Lorde Staveley. Encontrei-o em um jantar na semana passada. Seu nome apare ceu casualmente na conversa, por causa das miniaturas que você

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emprestou para a exibição na Dudley 120 . Staveley crispou o lábio e disse que você pode ter o mais artístico dos gostos, mas era um homem que nenhuma moça de mente pura deveria ter permissão para conhecer, e disse que nenhuma mulher casta deveria sen tar-se na mesma sala que você. Lembrei-lhe que era seu amigo e perguntei-lhe o que queria dizer. E ele me contou. Contou-me diante de todos. Foi horrível! Por que sua amizade é tão fatal para os jovens? Houve aquele miserável garoto da Guarda que cometeu suicídio. Era seu grande amigo. E também Sir Henry Ashton, que teve de deixar a Inglaterra com a reputação manchada. Você e ele eram inseparáveis. E quanto a Adrian Singleton e seu terrível fim? E quanto ao filho único de Lorde Kent e sua carreira? Encontrei seu pai ontem na Rua St. James. Parecia destruído pela vergonha e pela tristeza. E quanto ao jovem Duque de Perth? Que tipo de vida tem ele agora? Que cavalheiro se relacionaria com ele?

— Pare, Basil! Você fala de coisas sobre as quais não sabe nada — disse Dorian Gray mordendo o lábio e com um tom de in finito desprezo na voz. — Você me pergunta o porquê de Berwick sair de uma sala na qual eu entro. É porque sei tudo a respeito da vida dele e não porque ele sabe algo a respeito da minha. Com o sangue que corre por suas veias, como sua reputação poderia estar limpa? Você me pergunta sobre Henry Ashton e o jovem Perth. Por acaso ensinei os vícios a um e, ao outro, sua devassidão? Se o tolo do filho de Kent arranja uma esposa nas ruas, o que tenho a ver com isso? Se Adrian Singleton escreve o nome de seu amigo em uma nota promissória, sou ele seu tutor? Eu sei como as pessoas falam na Inglaterra. As classes médias expõem seus preconceitos morais diante de suas asquerosas mesas de jantar e sussurram a respeito do que chamam de extravagâncias de seus superiores, tentando fingir que estão em uma sociedade inteligente e que

120 A Dudley Museum and Art Gallery era uma galeria de arte pública localizada na cidade de Dudley, no centro da Inglaterra. Aberta em 1883, fechou suas portas em 2016. (N. do T.)

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têm intimidade com as pessoas que caluniam. Neste país, basta a um homem ter distinção e cérebro para qualquer língua ordinária agitar-se contra ele. E que tipo de vida essas mesmas pessoas, que posam de moralistas, levam? Meu querido amigo, você se esquece de que estamos na terra nativa dos hipócritas.

— Dorian — exclamou Hallward —, essa não é a questão. Sei que a Inglaterra é suficientemente ruim e que a sociedade inglesa está completamente errada. É por essa razão que quero que fique bem. Você não tem estado bem. Temos direito de julgar um homem pelo efeito que ele causa nos amigos. Os seus parecem perder qual quer sentido de honradez, de bondade, de pureza. Você os dotou de uma loucura por prazer. Desceram às profundezas. Você levou-os a isso. Sim, você levou-os a isso e, ainda assim, você sorri, como está sorrindo agora. E há algo muito pior por trás de tudo isso. Sei que você e Harry são inseparáveis. Certamente por essa única razão, se por nenhuma outra, você não deveria ter transformado o nome da irmã dele em sinônimo de má fama.

— Muito cuidado, Basil. Está indo longe demais.

— Tenho de falar, e você tem de escutar. Você vai escutar. Quando você conheceu Lady Gwendolen, nem um sopro de escândalo jamais tocara nela. Há agora uma única mulher decente em Londres que passearia com ela no parque? Ora, nem mesmo seus filhos podem viver com ela. Existem ainda outras histórias — rumores de que você foi visto esgueirando-se, ao amanhecer, de casas horrendas e embrenhando-se disfarçado nos antros mais sórdidos de Londres. São os rumores verdadeiros? Podem ser verdade? Quando os ouvi pela primeira vez, ri. Quando os ouço agora, eles me fazem estremecer. E quanto à sua casa de campo e a vida que se leva lá? Dorian, você não sabe o que falam de você. Não vou lhe dizer que não quero lhe fazer uma pregação. Lembro-me de Harry afirmando certa vez que todo homem que se transforma em padre amador em algum momento disse a mesma coisa e, depois, quebra sua palavra. Eu quero, sim, fazer-lhe uma pregação. Quero que você leve uma vida que faça o

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mundo respeitá-lo. Quero que tenha um nome limpo e uma reputação ilibada. Quero que se livre das terríveis pessoas com quem tem se associado. Não levante os ombros assim. Não seja tão indiferente. Sua influência é maravilhosa. Que ela seja para o bem e não para o mal. Dizem que você corrompe todos de quem se torna íntimo e que basta entrar em uma casa para que algum tipo de vergonha o acompanhe. Não sei se é verdade ou não. Como poderia saber? Mas é o que falam a seu respeito. Contam-me coisas das quais parece difícil duvidar. Lorde Gloucester era um de meus melhores amigos em Oxford. Ele mostrou-me uma carta que sua esposa lhe escreveu quando estava morrendo sozinha em sua propriedade, em Menton. O seu nome, Dorian, estava implicado na confissão mais terrível que já li. Disse-lhe que era absurda — que eu o conhecia muito bem e que você era incapaz de qualquer coisa do gênero. Conhecê-lo? Pergunto -me se o conheço. Antes de poder responder, teria de ver sua alma.

— Ver minha alma? — murmurou Dorian Gray, levantando-se do sofá e empalidecendo de medo.

— Sim — respondeu Hallward com seriedade e, com um tom grave e melancólico na voz —, ver sua alma. Apenas Deus pode fazê-lo.

Um riso amargo e irônico irrompeu dos lábios do homem mais novo.

— Você a verá por si mesmo hoje à noite! — exclamou ele pe gando um lampião da mesa. — Venha, é seu próprio trabalho. Por que não deveria dar uma olhada? Pode contar para o mundo tudo a seu respeito depois, se assim quiser. Ninguém acreditará em você. Se acreditassem, gostariam ainda mais de mim por isso. Conheço nossa época melhor do que você, apesar de você tagarelar sobre ela de forma tão entediante. Venha, estou dizendo-lhe. Você já falou o suficiente acerca da imoralidade. Agora vai vê-la frente a frente.

Havia a insanidade do orgulho em cada palavra que ele pro nunciava. Bateu seu pé no chão, à sua maneira insolente e infantil.

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Sentiu uma imensa alegria ao pensar que mais alguém comparti lharia do seu segredo e que o homem que pintara o retrato que era a origem de toda a sua vergonha seria atormentado pelo resto de sua vida com a horrenda memória do que havia feito.

— Sim — continuou aproximando-se dele e olhando firme mente em seus olhos austeros —, vou mostrar-lhe minha alma. Você verá aquilo que imagina ser possível apenas a Deus. Hallward recuou assustado.

— Isso é blasfêmia, Dorian! — exclamou ele. — Você não deve ria dizer coisas assim. Elas são horríveis e não têm nenhum sentido.

— Você acredita nisso? — ele riu novamente.

— Eu sei. Quanto a tudo que lhe disse hoje à noite, disse para o seu bem. Você sabe que sempre fui um amigo leal.

— Não tente me comover. Termine o que tem a dizer.

Uma súbita pontada de dor passou pelo rosto de Hallward. Ele parou por um momento e uma sensação de pena apoderou-se dele. Afinal, que direito tinha de intrometer-se na vida de Dorian Gray? Se ele tivesse feito um décimo do que se dizia dele, como devia ter sofri do! Então endireitou-se, dirigiu-se à lareira e ficou ali, olhando para a lenha que queimava, com suas cinzas opacas e suas brasas latejantes.

— Estou esperando, Basil — disse o jovem, com a voz cla ra e áspera.

Ele virou-se.

— O que tenho a dizer é o seguinte — exclamou. — Você deve me dar alguma resposta a respeito das horríveis acusações que são feitas contra você. Se me disser que são absolutamente mentirosas do começo ao fim, acreditarei em você. Negue-as, Dorian, negue-as! Não percebe tudo que tenho passado? Meu Deus! Não me diga que você é mau, corrupto e deplorável.

Dorian Gray sorriu. Havia uma expressão de desdém em seus lábios.

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— Suba comigo, Basil — disse ele, calmamente. — Tenho um diário completo da minha vida, e ele nunca deixa a sala onde é escrito. Eu o mostrarei a você, se vier comigo.

— Vou com você, Dorian, se assim o deseja. Vejo que já perdi meu trem. Isso não importa. Posso partir amanhã. Mas não me peça para ler nada hoje. Tudo que quero é uma resposta clara à minha pergunta.

— Ela lhe será dada no andar de cima. Não posso dá-la aqui. Você não terá de ler muito.

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208 O RETRATO DE DORIAN GRAY

CAPÍTULO 13

Ele saiu da sala e começou a subir as escadas, com Basil Hallward seguindo-o logo atrás. Caminhavam silenciosamente, como costuma-se fazer instintivamente à noite. A luz do lampião lançava fantásticas sombras sobre a parede e a escadaria. Um vento crescente fazia algumas das janelas vibrarem.

Quando alcançaram o patamar superior, Dorian pousou o lampião no chão e, pegando a chave, girou-a na fechadura.

— Você insiste em saber, Basil? — perguntou ele, em voz baixa. — Sim.

— Isso me encanta — respondeu ele e sorriu. Então acres centou, um tanto quanto cruelmente: — Você é o único homem no mundo que tem o direito de saber tudo sobre mim. Você tem muito mais responsabilidade sobre a minha vida do que pensa. — E, pegando o lampião de volta, abriu a porta e entrou. Uma corrente de ar frio passou por eles e a luz expandiu-se repentinamente, formando uma chama laranja-escura. Ele estremeceu. — Feche a porta atrás de você — sussurrou, colocando o lampião na mesa.

Hallward olhou em volta com uma expressão estupefata. A sala parecia não ter sido ocupada por anos. Uma tapeçaria flamenga desbotada, um quadro coberto por uma cortina, uma antiga arca italiana e uma estante de livros quase vazia — era tudo que havia nela, além de uma cadeira e uma mesa. Enquanto Dorian Gray acendia uma vela queimada pela metade sobre o consolo da lareira, ele viu que toda a sala estava coberta pelo pó, e o carpete, cheio de furos. Um rato corria com esforço por trás dos lambris. Havia um odor úmido de mofo.

OSCAR WILDE 209

— Então você acredita que apenas Deus pode ver a alma, Basil? Abra aquela cortina e você verá a minha. — Sua voz era fria e cruel.

— Você está louco, Dorian, ou interpretando um papel — murmurou Hallward franzindo a testa.

— Não vai fazê-lo? Então devo fazer eu mesmo — disse o jovem e arrancou a cortina de seu varão, atirando-a ao chão.

Uma exclamação de horror irrompeu dos lábios do pintor quando viu, sob a luz fraca, o rosto horrendo sorrindo para ele na tela. Havia algo em sua expressão que o enchia de repulsa e aver são. Bom Deus! Era o próprio rosto de Dorian Gray que ele estava vendo! Aquela repugnância, fosse o que fosse, não tinha destruído completamente sua beleza maravilhosa. Havia ainda um pouco de dourado nos cabelos rarefeitos e algum escarlate na boca sensual. Os olhos deteriorados mantinham algo do encanto de seu azul, as nobres curvas ainda não tinham desaparecido totalmente das na rinas esculpidas e do impecável pescoço. Sim, era o próprio Dorian. Mas quem havia pintado esse retrato? Ele parecia reconhecer suas próprias pinceladas, e a moldura fora projetada por ele. A ideia parecia-lhe monstruosa e, ainda assim, ele inquietava-se. Tomou a vela acesa e segurou-a contra o quadro. No canto esquerdo seu nome aparecia, traçado com letras alongadas e vermelhas.

Era alguma paródia sórdida, alguma infame e asquerosa sátira. Ele nunca pintara aquilo. No entanto, era seu quadro. Ele sabia disso e sentia como se seu sangue tivesse mudado de fogo para uma espécie de gelo viscoso em instantes. Seu próprio quadro! O que significava aquilo? Por que ele havia sido alterado? Virou-se e olhou para Dorian Gray com os olhos de um homem adoecido. Sua boca contraiu-se e a língua ressecada parecia incapaz de articular qualquer som. Passou a mão na testa. Estava encharcada em um suor pegajoso.

O jovem rapaz apoiava-se no consolo da lareira observando-o com aquela estranha expressão que se vê no rosto dos que estão absortos por uma peça quando algum grande artista está em cena. Não havia

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nem tristeza verdadeira nem alegria verdadeira nele. Havia apenas a paixão do espectador, com, talvez, uma centelha de triunfo em seus olhos. Tirou a flor da lapela de seu casaco e cheirava-a ou fingia fazê-lo.

— O que isso significa? — gritou Hallward, afinal. Sua própria voz soava estridente e estranha em seus ouvidos.

— Há alguns anos, quando eu era um garoto — disse Dorian Gray despedaçando a flor em sua mão —, você me encontrou, encheu-me de elogios e ensinou-me a ter orgulho de minha boa aparência. Um dia, você me apresentou a um de seus amigos, que me explicou as maravilhas da juventude. Em um momento de loucura do qual, até hoje, não sei se me arrependo ou não, fiz um pedido, talvez você possa chamá-lo de uma prece...

— Lembro-me disso! Ah, como me lembro bem! Não, isso é impossível. A sala é úmida. O mofo deve ter penetrado na tela. As tintas que usei continham algum maldito veneno mineral. Estou lhe dizendo que isso é impossível.

— Ah, o que é impossível? — murmurou o jovem, indo até a janela e encostando a testa contra o vidro frio e manchado pelo nevoeiro.

— Você me disse que o havia destruído.

— Menti. Ele destruiu-me.

— Não acredito que esse é o meu quadro.

— Você não consegue ver seu ideal nele? — disse Dorian, com amargor.

— Meu ideal, é assim que o chama...

— Foi assim que você o chamou.

— Não havia nada de mau nele, nada digno de vergonha. Você foi para mim um ideal tão inigualável que nunca encontraria outro. Esse é o rosto de um sátiro.

— É o rosto da minha alma.

OSCAR WILDE 211

— Cristo! Que tipo de coisa eu idolatrava! Ele tem os olhos de um demônio.

— Cada um de nós tem tanto o céu quanto o inferno dentro de si, Basil — gritou Dorian com um gesto feroz de desespero. Hallward virou-se novamente para o retrato e observou-o.

— Meu Deus! Se isso for verdade — exclamou — e isso é o que você fez com sua vida, ora, você deve ser ainda pior do que aqueles que o caluniam imaginam que você seja! — Ele segurou mais uma vez a luz contra a tela e examinou-a. A superfície parecia intocada, como ele a deixara. Era de seu interior, aparentemente, que a maldade e o horror tinham surgido. Por meio de alguma estranha aceleração de sua vida interior, as lepras do pecado cor roíam lentamente o quadro. A putrefação de um cadáver em uma sepultura úmida não era tão medonha.

Sua mão estremeceu, e a vela desprendeu-se do castiçal e caiu no chão, onde ficou crepitando. Ele colocou seu pé sobre ela para apagá-la. Então, atirou-se na cadeira bamba ao lado da mesa e afundou o rosto nas mãos.

— Por Deus, Dorian, que lição! Que lição terrível!

Não obteve resposta, mas podia ouvir o jovem soluçan do à janela.

— Reze, Dorian, reze — murmurou ele. — O que nos ensinam a dizer quando somos crianças? “Não nos deixeis cair em tentação. Perdoai os nossos pecados. Livrai-nos do mal.” Vamos orar juntos. A súplica de seu orgulho foi respondida. A súplica de seu arrepen dimento também o será. Idolatrei-o demais. Sou punido por isso. Você se idolatra demais. Ambos somos punidos.

Dorian Gray virou-se lentamente e olhou para ele com os olhos ofuscados pelas lágrimas.

— É tarde demais, Basil — balbuciou.

— Nunca é tarde demais, Dorian. Vamos nos ajoelhar e tentar

212 O RETRATO DE DORIAN GRAY

lembrar de alguma prece. Não há algum versículo em algum lugar, algo como “apesar de seus pecados serem escarlates, os tornarei brancos como a neve”?

— Essas palavras não significam nada para mim agora.

— Cale-se! Não diga isso. Você já fez mal suficiente na sua vida. Meu Deus! Você não vê essa coisa amaldiçoada olhando-nos com perversidade?

Dorian Gray olhou para o quadro e, subitamente, um senti mento incontrolável de ódio por Basil Hallward tomou conta dele, como se lhe tivesse sido sugerido pela imagem na tela, sussurrado em seu ouvido por aqueles lábios sorridentes. As paixões insanas de um animal acuado agitaram-se dentro dele e passou a odiar aquele homem sentado à mesa, mais do que nunca odiara qualquer outra coisa em sua vida. Olhou, incontrolável, ao redor. Algo brilhou so bre o baú pintado diante dele. Seus olhos recaíram sobre o objeto. Sabia o que era. Tratava-se de uma faca que ele trouxera para cima, alguns dias atrás, para cortar um pedaço de corda e que tinha es quecido de levar de volta. Moveu-se devagar até ela, passando por Hallward ao fazê-lo. Assim que se viu atrás dele, agarrou a faca e virou-se. Hallward mexeu-se na cadeira, como prestes a levantar -se. Dorian correu em sua direção e enterrou a faca na grande veia atrás do ouvido, esmagando a cabeça do homem contra a mesa e apunhalando-o repetidas vezes.

Houve um gemido abafado e o horrível som de alguém engasgando-se com sangue. Por três vezes, os braços estendidos ergueram-se convulsivamente agitando as grotescas mãos, com os dedos rígidos, no ar. Apunhalou-o mais duas vezes, mas o homem não se mexeu. Algo começou a pingar no chão. Esperou por um instante, ainda comprimindo a cabeça. Então, atirou a faca sobre a mesa e pôs-se a escutar.

Não conseguia ouvir nada além do gotejar sobre o carpete puído. Abriu a porta e saiu para o patamar. A casa estava absolutamente

OSCAR WILDE 213

quieta. Ninguém por perto. Por alguns segundos, ficou em pé apoiado no balaústre da escada, observando o poço fervilhante de escuridão logo abaixo. Então, pegou a chave e retornou para a sala, trancando-se no interior ao fazê-lo.

A coisa continuava sentada na cadeira, estirada sobre a mesa com a cabeça curvada, as costas corcundas e os braços longos e fantásticos. Não fosse pelo rasgo saliente e vermelho no pescoço e a poça de coágulo preto que se espalhava lentamente sobre a mesa, poderia-se afirmar que o homem estava apenas dormindo.

Como tudo acontecera rápido! Sentia-se estranhamente cal mo e, dirigindo-se à janela, abriu-a e saiu para a varanda. O vento dissipara a névoa, e o céu parecia a cauda de um enorme pavão, pontilhada por miríades de olhos dourados. Olhou para baixo e viu o policial fazendo sua ronda, lançando o longo facho de luz de sua lanterna sobre as portas das casas silenciosas. A mancha carmim de uma carruagem andando a esmo brilhou na esquina e depois desapareceu. Uma mulher com um xale esvoaçante arrastava-se cambaleando pelos gradis. Vez ou outra, parava e olhava para trás. Em dado momento, começou a cantar com uma voz rouca. O policial dirigiu-se até ela e disse-lhe algo. Foi embora aos tropeços e rindo. Uma rajada de vento penetrante atravessou a praça. As lâmpadas a gás tremularam e tornaram-se azuis, e as árvores desfolhadas sacudiram os galhos ressecados e negros para todo lado. Ele estre meceu e voltou para dentro, fechando a janela atrás de si.

Ao alcançar a porta, girou a chave e abriu-a. Nem sequer olhou para o homem assassinado. Sentiu que o segredo de tudo era não se dar conta da situação. O amigo que pintara o retrato fatal, res ponsável por toda a sua miséria, saíra de sua vida. Isso bastava.

Então lembrou-se do lampião. Era uma peça bastante curiosa de manufatura mourisca, feita de prata fosca incrustada com arabescos de aço escovado. Talvez o criado desse por sua falta e perguntas fossem feitas. Hesitou por um momento, então voltou-se e pegou-a

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da mesa. Não pôde evitar ver a coisa morta. Como estava imóvel! Como as longas mãos estavam terrivelmente brancas! Parecia uma horrorosa imagem de cera.

Ao trancar a porta atrás de si, esgueirou-se silenciosamente para o andar de baixo. O madeiramento rangia e parecia gritar de dor. Ele parou e, por diversas vezes, aguardou. Não, tudo continuava quieto. Era apenas o som dos próprios passos. Quando chegou à biblioteca, viu a mala e o casaco no canto. Deveriam ser ocultados em algum lugar. Destrancou um com partimento secreto sob os lambris, onde mantinha seus curiosos disfarces, e colocou tudo ali. Poderia queimá-los facilmente depois. Então pegou seu relógio. Eram vinte para as duas. Sentou-se e começou a pensar. Todos os anos — todos os meses, quase —, homens eram enforcados na Inglaterra por aquilo que ele acabara de fazer. Um desvario de assassinatos pairava no ar. Alguma estrela vermelha chegara perto demais da terra... E, mesmo assim, que provas havia contra ele? Basil Hallward saíra da casa às onze. Ninguém o tinha visto entrar novamente. A maioria dos criados estava na propriedade de Selby Royal. Seu pajem tinha ido para a cama... Paris! Sim. Era para Paris que Basil fora e no trem da meia-noite, como era sua intenção. Com seus estranhos hábitos reservados, passariam-se meses antes de levantarem quaisquer suspeitas. Meses! Tudo poderia ser destruído muito antes disso. Um pensamento súbito atingiu-lhe. Colocou o casaco de pele e o chapéu e saiu até o saguão. Ficou um instante parado ali, ouvindo os passos pesados e vagarosos do policial na calçada e vendo o facho da lanterna refletido na janela. Aguardou, prendendo a respiração. Depois de alguns momentos, abriu o trinco e saiu, fechando a porta com muito cuidado atrás de si. Então, começou a tocar a campainha. Em aproximadamente cinco minutos, seu criado apareceu, sem seu traje completo e parecendo bastante sonolento.

OSCAR WILDE 215

— Sinto muito por ter de acordá-lo, Francis — disse ele, ao entrar —, mas esqueci-me da minha chave. Que horas são?

— Duas e dez, meu senhor — respondeu o homem olhando para o relógio e piscando.

— Duas e dez? Como é terrivelmente tarde! Você deve me acordar às nove amanhã. Tenho trabalho a fazer.

— Certamente, senhor.

— Alguém apareceu esta noite?

— O sr. Hallward, meu senhor. Ficou aqui até as onze e, então, foi pegar seu trem.

— Ah! Que pena que não o pude ver. Deixou-me al guma mensagem?

— Não, senhor, apenas disse que escreveria de Paris, se não o encontrasse no clube.

— Isso é tudo, Francis. Não se esqueça de me chamar às nove amanhã.

— Não, senhor.

O homem arrastou-se pelo corredor em seus chinelos.

Dorian Gray jogou o chapéu e o casaco sobre a mesa e passou à biblioteca. Por quinze minutos, andou para cima e para baixo na sala, mordendo o lábio e refletindo. Então, pegou o Livro Azul121 de uma das prateleiras e começou a folheá-lo. “Alan Campbell, Rua Hertford, 152, Mayfair”. Sim, esse era o homem de que precisava.

121 No original, Blue Book pode fazer alusão a diversos anuários e almanaques, desde uma compilação das famílias de nobres ingleses até uma lista de estatísticas sobre o Império Britânico. No parágrafo citado, refere-se a uma listagem de endereços, muito semelhante às listas telefônicas em uso até o início do século XXI. (N. do T.)

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CAPÍTULO 14

As nove horas da manhã seguinte, seu criado entrou com uma xícara de chocolate quente em uma bandeja e abriu as per sianas. Dorian dormia tranquilamente, deitado sobre seu lado direito, com uma mão sob o rosto. Parecia um menino que cansara de brincar ou de estudar.

O homem teve de tocá-lo duas vezes no ombro antes que ele despertasse e, ao abrir os olhos, um leve sorriso passou por seus lábios, como se tivesse estado perdido em algum sonho encantador. No entanto, não tinha sonhado nada. Sua noite não foi perturbada por nenhuma imagem de prazer nem de dor. Mas a juventude sorri sem nenhuma razão. É um de seus principais encantos.

Virou-se e, apoiado no cotovelo, começou a bebericar o cho colate. O suave sol de novembro transbordava pelo quarto. O céu estava claro e havia um calor ameno no ar. Quase semelhante a uma manhã de maio.

Pouco a pouco, os eventos da noite anterior arrastaram os pés silenciosos e manchados de sangue até seu cérebro, reconstituin do-se ali com uma terrível precisão. Estremeceu ao lembrar-se de tudo que havia sofrido e, por um momento, voltou-lhe o mesmo estranho sentimento de ódio por Basil Hallward, que o fizera ma tá-lo sentado na cadeira, e sua frieza intensificou-se. O homem morto continuava sentado lá e, agora, em plena luz do sol. Como aquilo era horrível! Coisas horrendas como aquela eram para a escuridão, não para o dia.

Sentia que, se continuasse a ruminar pelo que passara, ficaria doente ou enlouqueceria. Havia pecados cujo fascínio achava-se muito mais na sua lembrança do que no próprio ato, estranhos

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triunfos que satisfaziam mais o orgulho do que as paixões e davam ao intelecto uma sensação excitante de alegria, maior que qualquer alegria que produzissem, ou que pudessem jamais produzir, nos sentidos. Mas esse não era um desses pecados. Era algo a ser banido da mente, a ser amortecido com papoulas, a ser estrangulado antes que estrangulasse alguém.

Quando o relógio bateu meia-hora, ele passou a mão pela testa e então levantou-se apressado, vestindo-se com ainda mais cuidado que o usual, dedicando bastante atenção à escolha da gravata e do alfinete da echarpe e trocando de anéis mais de uma vez. Também despendeu bastante tempo com o café da manhã, experimentando os vários pratos, falando com o criado sobre novos uniformes que pensava em mandar fazer para os criados de Selby e examinando a correspondência. Sorriu ao ver algumas das cartas. Três delas o entediaram. Releu uma várias vezes e então rasgou-a com um leve ar de irritação em seu rosto.

— Essa coisa terrível, a memória de uma mulher! — Como Lorde Henry dissera certa vez.

Depois de ter bebido uma xícara de café preto, limpou os lábios lentamente com um guardanapo, acenou para que o criado esperasse e, indo até a mesa, sentou-se e escreveu duas cartas. Uma delas, meteu-a no bolso e, a outra, entregou ao pajem.

— Leve isto até a Rua Hertford, número 152, Francis e, se o sr. Campbell estiver fora da cidade, pegue seu endereço. Assim que ficou sozinho, acendeu um cigarro e começou a dese nhar em um pedaço de papel, esboçando primeiro flores e detalhes arquitetônicos e depois rostos humanos. Subitamente, percebeu que todos os rostos que desenhara pareciam ter uma fantástica semelhança com Basil Hallward. Franziu a testa e, levantando-se, foi até a estante de livros e pegou um volume ao acaso. Estava

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determinado a não pensar no que acontecera até que fosse abso lutamente necessário fazê-lo.

Ao alongar-se no sofá, olhou para a página de rosto do livro. Tratava-se da edição em papel japonês, editada por Charpentier 122 com uma gravura de Jacquemart 123 , de Emaux et Camées 124 , de Gautier. A encadernação era em couro verde-limão, com um padrão entrelaçado de ouro, pontilhado por romãs. O livro fora um presente de Adrian Singleton. Ao folheá-lo, seus olhos recaíram no poema sobre a mão de Lacenaire, a fria mão amarela du supplice encore mal lavée 125 , com sua penugem vermelha e seus doigts de faune 126 . Ele olhou para seus dedos, finos e brancos, estremecendo levemente sem querer, e continuou a folhear o livro até chegar aos adoráveis versos sobre Veneza:

Sur une gamme chromatique, Le sein de perles ruisselant, La Venus de l’Adriatique Sort de l’eau son corps rose et blanc.

Les domes, sur l’azur des ondes Suivant la phrase au pur contour, S’enflent comme des gorges rondes

Que souleve un soupir d’amour. L’esquif aborde et me depose,

122 Georges Charpentier (1846-1905) foi um editor francês do século XIX, famoso por publicar obras de Zola, Flaubert e Maupassant, entre outras. (N. do T.)

123 Cornélie Jacquemart (1841-1912) foi uma pintora francesa e colecionadora de arte. (N. do T.)

124 Émaux et Camées (literalmente Esmaltes e Camafeus, do francês) é uma coleção de poesias do poeta francês Théophile Gautier (1811-1872). (N. do T.)

125 Do francês, “do tormento, ainda mal lavada”. (N. do T.)

126 Do francês, “dedos de fauno”. (N. do T.)

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Jetant son amarre au pilier, Devant une façade rose, Sur le marbre d’un escalier.127

Como eram primorosos! Ao lê-los, tinha-se a sensação de flutuar pelos canais verdes da cidade rosa e pérola, sentado em uma gôndola preta com a proa prateada e um rastro de véu. Seus versos pareciam-lhe as aprumadas linhas azul-turquesa que nos seguem quando navegamos rumo ao Lido 128 . As súbitas apari ções de cor faziam-no lembrar do brilho dos pássaros de pesco ço opala-cintilante, que voavam ao redor do alto e hexagonal Campanário ou que pairavam, com uma elegância tão imponente, sobre os arcos sombrios e manchados pela poeira. Recostando-se com os olhos semicerrados, ele continuava a repetir para si mesmo:

Devant une façade rose, Sur le marbre d’un escalier.

Aqueles dois versos continham toda Veneza. Ele lembrou-se do outono que tinha passado por lá e de um amor maravilhoso que o levara a fantásticas e deliciosas loucuras. O romance estava em toda parte. Mas Veneza, assim como Oxford, havia preservado o cenário para o romance e, para os românticos verdadeiros, o cenário era tudo — ou quase tudo. Basil estivera com ele parte do tempo

127 Trecho do poema Sur les Lagunes. Do francês, em tradução livre: “Em encadeamento cromático / De pérolas goteja o seio, / Da Vênus do Adriático, / Branco e rosa seu corpo sobreveio. // As cúpulas, no azul das ondas / Seguindo a frase com o contorno puro, / Incham-se como gargantas redondas / Que desperta de amor um suspiro. // O esquife aporta e, a mim, pousa / Sobre o pilar, suas amarras jogadas / Na frente de uma fachada rosa, / Sobre o mármore de umas escadas. (N. do T.)

128 Lido di Venezia é uma ilha da Itália com 12 quilômetros de comprimento, localizada em frente à cidade de Veneza. (N. do T.)

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e ficara louco com Tintoretto. Pobre Basil! Que maneira horrível de um homem morrer!

Ele suspirou e pegou o livro novamente, tentando esquecer. Leu sobre as andorinhas que entram e saem voando do pequeno café em Esmirna, onde os hadjis 129 sentam-se rezando com suas contas de âmbar e os mercadores de turbante fumam seus longos cachimbos com borlas, conversando seriamente entre si; leu sobre o Obelisco na Praça da Concórdia130 , que chora lágrimas de granito em seu exílio solitário e sem sol, ansiando por retornar ao quente Nilo coberto de lótus, onde há Esfinges, íbis rosados, abutres brancos com garras douradas e crocodilos com pequenos olhos de berilo, que rastejam sobre a lama verde fumegante; começou a refletir sobre os versos que, extraindo música do mármore manchado de beijos, contam-nos a respeito daquela estranha estátua que Gautier compara a uma voz de contralto, o monstre charmant 131 , que repousa na sala do pórfiro no Louvre 132 . Depois de algum tempo, no entanto, o livro caiu-lhe das mãos. Ficou nervoso e um terrível ataque de pavor tomou conta dele. E se Alan Campbell não estivesse na Inglaterra? Vários dias passariam antes que ele pudesse voltar. Talvez se recusasse a vir. O que ele faria, então? Cada instante era de vital importância. Tinham sido grandes amigos no passado, cinco anos atrás — quase inseparáveis, na verdade. Então a intimidade, subitamente, acabara. Quando se encontravam em sociedade, agora, apenas Dorian Gray sorria. Alan Campbell nunca o fazia.

129 Título honorífico dado aos muçulmanos que já fizeram sua peregrinação a Meca. (N. do T.)

130 O autor faz referência ao Obelisco de Luxor, milenar obelisco egípcio de 23 metros de altura retirado do templo de mesmo nome e colocado no centro da Praça da Concórdia (Place de la Concorde), em Paris. (N. do T.)

131 Em francês, o “monstro encantador”. (N. do T.)

132 Sala que contém um grande vaso de pórfiro (espécie de rocha ígnea, tal qual o granito) vermelho em seu centro, no museu parisiense. (N. do T.)

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Era um jovem extremamente inteligente, apesar de não ter um verdadeiro apreço pelas artes visuais, e a pouca noção de beleza da poesia que possuía fora adquirida inteiramente por intermédio de Dorian. Sua principal paixão intelectual era pela ciência. Em Cam bridge, passara grande parte do tempo trabalhando no laboratório e obtivera grande distinção nos exames finais de Ciências Naturais do seu ano. Na verdade, ainda dedicava-se ao estudo de química e tinha o próprio laboratório, onde costumava trancar-se o dia todo — para grande aborrecimento de sua mãe, que se dedicara à sua candidatura ao Parlamento e imaginava que um químico era alguém que aviava receitas. No entanto, ele também era um excelente músico e tocava tanto violino quanto piano melhor que a maioria dos amadores. De fato, tinha sido a música que levara Dorian Gray e ele a se aproxima rem — a música e a indefinível atração que Dorian parecia exercer sempre que desejasse — e que, na verdade, exercia muitas vezes de forma inconsciente. Conheceram-se na casa de Lady Berkshire, na noite em que Rubinstein lá tocara e, depois disso, costumavam ser vistos juntos na ópera e onde quer que houvesse boa música. Sua intimidade durou dezoito meses. Campbell estava sempre em Selby Royal ou na Praça Grosvenor. Para ele, como para muitos outros, Dorian Gray era o arquétipo de tudo que é maravilhoso e fascinante na vida. Ninguém jamais ficou sabendo se houvera ou não alguma discussão entre eles. Subitamente as pessoas perceberam que eles mal dirigiam a palavra um ao outro quando se encontravam e que Campbell parecia sempre sair cedo de qualquer festa na qual Dorian Gray estivesse presente. Também havia mudado — ficava estranhamente melancólico às vezes, parecia quase ter criado um desgosto pela música e jamais tocava, dando como desculpa, quando lhe pediam para fazê-lo, que estava tão absorto pela ciência que não tinha mais tempo de sobra para praticar. O que, certamente, era verdade. A cada dia que passava parecia mais interessado em

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biologia, e seu nome apareceu uma ou duas vezes em algumas das revistas científicas ligadas a certos estranhos experimentos.

Era por esse homem que Dorian Gray esperava. Continuava a olhar para o relógio a cada segundo. Com o passar dos minutos, tornou-se terrivelmente agitado. Finalmente, levantou-se e começou a perambular pela sala, parecendo uma bela coisa engaiolada. Dava passos longos e furtivos. Suas mãos estavam estranhamente frias.

O suspense tornara-se insuportável. O tempo parecia-lhe arrastar-se com pés de chumbo, enquanto ele era varrido para a beirada pontuda de algum precipício escuro por ventos monstruo sos. Sabia o que o esperava ali; conseguia de fato vê-lo e, tremendo, esmagou com as mãos úmidas suas pálpebras em chamas, como se tivesse roubado a percepção da visão e levado os globos oculares de volta para sua caverna. Era inútil. O cérebro tinha o próprio alimento a devorar, e a imaginação, tornada grotesca pelo terror, retorcida e distorcida como uma coisa viva pela dor, dançava como uma marionete imunda em um pedestal e sorria através de máscaras em movimento. Então, subitamente, o tempo parou para ele. Sim, aquela coisa cega e de respiração lenta não se arrastava mais e, com o tempo morto, pensamentos horríveis correram rapidamente à sua frente, trazendo um futuro hediondo de seu túmulo, mostrando-o para ele. Ele fitou o futuro. Seu terror absoluto petrificou-o.

Finalmente a porta abriu-se e seu criado entrou. Lançou-lhe um olhar apático.

— O sr. Campbell, meu senhor — disse o homem.

Um suspiro de alívio irrompeu de seus lábios ressecados, e a cor voltou às suas faces.

— Peça-lhe para entrar imediatamente, Francis. — Sen tiu que voltara a ser ele mesmo novamente. Sua disposição covarde o abandonara.

O homem fez uma reverência e retirou-se. Em poucos instantes, Alan Campbell entrou, parecendo muito sério e um tanto pálido, a

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palidez intensificada por seus cabelos negros como carvão e suas sobrancelhas escuras.

— Alan! Que gentileza a sua. Obrigado por vir.

— Pretendia nunca mais entrar em sua casa novamente, Gray. Mas você mandou dizer que era uma questão de vida ou morte. — Sua voz era dura e fria. Falava com prolongada cautela. Havia uma expressão de desprezo no firme olhar penetrante que dirigira a Dorian. Manteve as mãos nos bolsos de seu casaco de pele de cor deiro e parecia não ter notado o gesto com que foi cumprimentado.

— Sim, é uma questão de vida ou morte, Alan, e para mais de uma pessoa. Sente-se.

Campbell tomou uma cadeira próxima à mesa, e Dorian sentou-se diante dele. Os olhos dos dois homens se cruzaram. Nos de Dorian, havia infinita compaixão. Ele sabia que o que estava prestes a fazer era pavoroso.

Depois de um tenso momento de silêncio, inclinou-se e disse, bem baixo, mas observando o efeito de cada palavra no rosto da quele que ele mandara buscar.

— Alan, em uma sala trancada no alto desta casa, uma sala a quem ninguém tem acesso além de mim, um homem morto está sentado a uma mesa. Já está morto há dez horas. Não se agite e não olhe para mim dessa forma. Quem o homem é, por que ele morreu e como morreu são questões que não lhe dizem respeito. O que você tem de fazer é isto...

— Pare, Gray. Não quero saber mais nada. Se o que você me disse é verdade ou mentira, não me interessa. Eu me nego comple tamente a envolver-me em sua vida. Guarde seus horríveis segredos para você. Eles não me interessam mais.

— Alan, eles terão de interessar-lhe. Esse segredo terá de inte ressar-lhe. Sinto muitíssimo por você, Alan. Mas não posso evitar. Você é o único homem capaz de salvar-me. Sou forçado a envolvê-lo nessa questão. Não tenho outra opção. Alan, você é um cientista.

226 O RETRATO DE DORIAN GRAY

Você conhece química e coisas afins. Você fez experiências. O que tem a fazer é destruir a coisa que está no andar de cima — destruí-la de tal forma que não sobre nenhum vestígio dela. Ninguém viu essa pessoa entrar na casa. Na verdade, no presente momento ele deveria estar em Paris. Não darão pela sua falta por meses. Quan do isso acontecer, não devem encontrar nenhum traço dele aqui. Você, Alan, você deve transformá-lo, e tudo que lhe pertence, em um punhado de cinzas que eu possa espalhar pelo ar.

— Você é louco, Dorian.

— Ah! Estava esperando você me chamar de Dorian.

— Você é louco, estou lhe dizendo — louco por imaginar que eu vou levantar um dedo para ajudá-lo, louco por me fazer essa mons truosa confissão. Não vou ter nada a ver com esse assunto, seja ele qual for. Você acredita que vou colocar minha reputação em risco por você? Que me importam as obras diabólicas em que você se mete?

— Foi suicídio, Alan.

— Fico feliz por isso. Mas quem o levou a se matar? Você, devo imaginar.

— Você ainda se recusa a fazer isso por mim?

— Claro que me recuso. Não terei absolutamente nada a ver com isso. Não me importa que vergonha recaia sobre você. Você merece tudo. Não lamentaria vê-lo desgraçado, desgraçado publicamente. Como ousa pedir a mim, dentre todos os homens do mundo, para que me envolva com você nesse horror? Seu amigo Lorde Henry Wotton não deve lhe ter ensinado muito sobre psicologia, sejam quais forem as outras coisas que lhe ensinou. Nada me fará dar um passo para ajudá-lo. Você pediu para o homem errado. Peça para alguns de seus amigos. Não conte comigo.

— Alan, foi assassinato. Eu o matei. Você não sabe o quanto ele me fez sofrer. O que quer que seja minha vida, ele teve mais a

OSCAR WILDE 227

ver com sua criação e sua ruína do que o pobre Harry jamais teve. Pode não ter tido a intenção, mas o resultado foi o mesmo.

— Assassinato! Por Deus, Dorian, é a isso que você chegou? Não vou denunciá-lo. Não é da minha conta. Além disso, sem que eu me envolva, você certamente será preso. Ninguém nunca comete um crime sem ter feito algo estúpido. Mas não terei nada a ver com isso.

— Você deve ter algo a ver com isso. Espere, espere um mo mento; ouça-me. Apenas ouça, Alan. Tudo que lhe peço é que faça um determinado experimento científico. Você vai a hospitais e necrotérios e os horrores que vê por lá não lhe afetam. Se, em al guma odiosa sala de dissecação ou algum fétido laboratório, você encontrasse esse homem deitado sobre uma mesa de chumbo, com canaletas vermelhas conectadas a ele para tirar-lhe o sangue, simplesmente o consideraria como um admirável objeto de estudo. Não se importaria nem um pouco. Não pensaria estar fazendo nada de errado. Ao contrário, provavelmente sentiria-se fazendo algo em benefício da raça humana, aumentando a quantidade de conhecimento no mundo, satisfazendo a curiosidade intelectual ou algo do gênero. Quero que faça apenas o que já fez tantas outras vezes antes. Na verdade, destruir um corpo deve ser muito menos horrível que aquilo com que você está acostumado a trabalhar. E, lembre-se, essa é a única prova contra mim. Se for descoberta, estou perdido; e seguramente será, a menos que você me ajude.

— Não tenho nenhuma vontade de ajudá-lo. Você esquece-se disso. Sou simplesmente indiferente à coisa toda. Não tem nada a ver comigo.

— Alan, suplico-lhe. Pense na posição em que me encontro. Pouco antes de você chegar quase desmaiei de pavor. Algum dia você pode vir a saber o que é pavor. Não! Não pense nisso. Olhe para essa situação apenas do ponto de vista científico. Você não se pergunta de onde as coisas mortas em que realiza experiências

228 O RETRATO DE DORIAN GRAY

vieram. Não se pergunte agora. Já lhe disse muito a respeito. Mas lhe imploro que faça isso. Fomos amigos no passado, Alan.

— Não fale sobre aqueles dias, Dorian — eles estão mortos.

— Os mortos, às vezes, permanecem. O homem no andar de cima não irá embora. Está sentado à mesa com a cabeça curvada e os braços estendidos. Alan! Alan! Se você não me ajudar, estarei arruinado. Ora, irão enforcar-me, Alan! Você não entende? Vão enforcar-me pelo que fiz.

— Não faz sentido continuar a prolongar essa cena. Recuso-me absolutamente a fazer qualquer coisa sobre esse assunto. É loucura sua pedir-me isso.

— Você se recusa?

— Sim.

— Suplico sua ajuda, Alan.

— É inútil.

O mesmo olhar de compaixão retornou aos olhos de Dorian Gray. Então, ele estendeu a mão, pegou um pedaço de papel e es creveu algo nele. Leu o que havia escrito duas vezes, dobrou cui dadosamente o papel e empurrou-o através da mesa. Feito isso, levantou-se e foi até a janela.

Campbell olhou para ele com surpresa e então pegou o papel, abrindo-o. Assim que o leu, seu rosto ficou completamente pálido e ele deixou-se cair sobre a cadeira. Uma horrível sensação de náusea apoderou-se dele. Sentiu como se seu coração estivesse a ponto de bater até a morte em algum buraco vazio.

Depois de dois ou três minutos de um silêncio estarrecedor, Dorian voltou-se e pôs-se de pé atrás dele, colocando a mão sobre seu ombro.

— Lamento muito por você, Alan — murmurou ele —, mas você não me deixa nenhuma alternativa. Já escrevi uma carta. Aqui está ela. Você pode ver o endereço. Se não me ajudar, devo enviá-la.

OSCAR WILDE 229

Se não me ajudar, vou enviá-la. Você sabe qual será o resultado se o fizer. Mas você vai me ajudar. É impossível recusar agora. Tentei poupá-lo. Deve ser justo e admitir que tentei. Você foi inflexível, rude, ofensivo. Você me tratou como nenhum homem jamais ousou me tratar — nenhum homem vivo, de qualquer forma. Aguentei tudo. Agora é minha vez de ditar os termos. Campbell enterrou o rosto nas mãos, e um calafrio atravessou-o.

— Sim, é minha vez de ditar os termos, Alan. Você sabe o que eles são. A coisa é muito simples. Venha, não se entregue a essa angústia. A coisa precisa ser feita. Encare-a e simplesmente faça-a.

Um gemido irrompeu dos lábios de Campbell, e todo o seu corpo estremeceu. O tique-taque do relógio no consolo da lareira parecia-lhe dividir o tempo em átomos isolados de agonia, cada um terrível demais para suportar. Ele sentia como se um anel de ferro fosse lentamente se apertando ao redor de sua testa, como se a desgraça com que fora ameaçado já houvesse recaído sobre ele. A mão sobre seu ombro pesava como uma mão de chumbo. Era insuportável. Ela parecia esmagá-lo.

— Vamos, Alan, você precisa decidir neste instante.

— Não posso fazê-lo — disse ele, mecanicamente, como se as palavras pudessem alterar as coisas.

— Você deve. Não tem escolha. Não se demore mais.

Ele hesitou por um momento.

— Há uma lareira na sala do andar de cima?

— Sim, uma lareira a gás, com amianto.

— Terei de passar em casa e pegar algumas coisas no laboratório.

— Não, Alan, você não poderá sair da casa. Escreva em uma folha de caderno o que precisa, e meu criado pegará uma carruagem e as trará para você.

Campbell rabiscou umas poucas linhas, secou-as com o ma ta-borrão e endereçou o envelope a seu ajudante. Dorian pegou o bilhete e leu-o com atenção. Então, tocou a sineta e entregou-o

230 O RETRATO DE DORIAN GRAY

para seu pajem, com ordens de retornar o mais rápido possível trazendo as coisas consigo.

Assim que a porta do saguão se fechou, Campbell teve um so bressalto e, levantando-se da cadeira, foi até a lareira. Tremia como se tivesse algum tipo de febre. Por quase vinte minutos, nenhum dos homens falou. Uma mosca zumbia ruidosamente pela sala e o tique-taque do relógio parecia o bater de um martelo.

Ao toque da uma hora, Campbell virou-se e, olhando para Dorian Gray, viu que seus olhos estavam cheios de lágrimas. Havia algo na pureza e no refinamento de seu rosto triste que parecia enfurecê-lo.

— Você é infame, absolutamente infame! — murmurou.

— Cale-se, Alan. Você salvou minha vida — disse Dorian.

— Sua vida? Por Deus! Que vida é essa? Você passou de per versão em perversão e agora culminou em um crime. Ao fazer o que estou prestes a fazer — o que você me força a fazer —, não é na sua vida que estou pensando.

— Ah, Alan — murmurou Dorian com um suspiro —, gostaria que você tivesse por mim um milésimo da compaixão que tenho por você. — Deu-lhe as costas ao falar e ficou olhando para o jardim. Campbell não lhe respondeu.

Depois de cerca de dez minutos bateram à porta, e o criado entrou carregando um imenso baú de mogno cheio de substâncias químicas, além de uma longa espiral de cabos de aço e platina e dois grampos com um formato bastante curioso.

— Devo deixar as coisas aqui, meu senhor? — perguntou para Campbell.

— Sim — disse Dorian. — E receio ter outra tarefa para você, Francis. Qual é o nome do homem em Richmond que fornece as orquídeas para Selby?

— Harden, meu senhor.

— Sim. Harden. Você deve ir neste instante para Richmond encontrar Harden em pessoa e pedir-lhe o dobro da quantidade de

OSCAR WILDE 231

orquídeas que encomendei, com o mínimo possível de orquídeas brancas. Não quero nenhuma branca, na verdade. Está um dia encantador, Francis, e Richmond é um lugar muito bonito — do contrário, não o incomodaria com isso.

— Não é nenhum incômodo, meu senhor. A que horas devo estar de volta?

Dorian olhou para Campbell.

— Quanto tempo o seu experimento levará, Alan? — disse com uma voz calma e indiferente. A presença de uma terceira pessoa na sala parecia dar-lhe uma coragem extraordinária.

Campbell franziu a testa e mordeu o lábio.

— Levará aproximadamente cinco horas — ele respondeu.

— Então haverá tempo suficiente para você voltar às sete e meia, Francis. Ou fique por lá, apenas deixe minhas roupas sepa radas. Pode tirar a noite de folga. Não vou jantar em casa, então não precisarei de você.

— Obrigado, meu senhor — disse o homem e deixou a sala.

— Agora, Alan, não há um momento a perder. Como esse baú é pesado! Vou levá-lo para você. Você traz as outras coisas — falou rapidamente, de modo autoritário. Campbell sentiu-se dominado por ele. Saíram da sala juntos.

Quando chegaram ao andar de cima, Dorian pegou a chave e girou-a na fechadura. Então parou e um olhar perturbado surgiu em seus olhos. Estremeceu.

— Não acredito que eu possa entrar, Alan — murmurou ele.

— Para mim, não faz diferença. Não preciso de você — disse Campbell friamente.

Dorian entreabriu a porta. Ao fazê-lo, viu o olhar lascivo no rosto do seu retrato à luz do sol. No chão, diante do quadro, estendia-se a cortina rasgada. Lembrou-se de que na noite anterior, pela pri meira vez na vida, havia esquecido de esconder a tela fatal e estava a ponto de avançar para fazê-lo quando recuou com um calafrio.

232 O RETRATO DE DORIAN GRAY

O que eram aquelas repulsivas gotas vermelhas brilhando, úmidas e cintilantes, em uma das mãos, como se a tela tivesse sua do sangue? Como era horrível! Mais horrível, pareceu-lhe naquele momento, a coisa silenciosa que ele sabia estar estendida sobre a mesa, a coisa cuja sombra disforme e grotesca no tapete manchado mostrava-lhe que não havia se mexido, mas continuava ali, como ele a deixara.

Ele inspirou profundamente, abriu a porta mais um pou co e, com os olhos semicerrados e desviando a cabeça, entrou rapidamente, determinado a não olhar nem sequer uma vez para o homem morto. Então, abaixando-se e pegando a ta peçaria dourada e púrpura, jogou-a por sobre a pintura.

E ali parou, com medo de se virar, e seus olhos fixaram-se na complexidade da estampa diante dele. Ouviu Campbell trazendo o pesado baú, os ferros e as outras coisas que pedira para o seu horrível trabalho. Começou a se perguntar se ele e Basil Hallward chegaram a se conhecer e, nesse caso, o que achariam um do outro.

— Deixe-me agora — disse uma voz séria atrás dele.

Virou-se e saiu apressado, apenas percebendo que o homem morto fora empurrado para trás na cadeira e que Campbell obser vava seu rosto amarelo e brilhante. Enquanto descia as escadas, ouviu a chave sendo girada na fechadura.

Passava muito das sete horas quando Campbell voltou para a biblioteca. Estava pálido, mas absolutamente calmo.

— Fiz o que me pediu para fazer — murmurou. — E, agora, adeus. Cuide para nunca mais nos vermos.

— Você me salvou da ruína, Alan. Não posso esquecer disso — disse Dorian, simplesmente.

Assim que Campbell saiu, ele foi para o andar de cima. Havia um horrível odor de ácido nítrico na sala. Mas a coisa que estava sentada à mesa tinha desaparecido.

OSCAR WILDE 233
234 O RETRATO DE DORIAN GRAY

CAPÍTULO 15

Naquela noite, às oito e meia, vestindo-se sofisticadamente e usando grandes violetas-de-parma na lapela, Dorian Gray foi conduzido à sala de estar de Lady Narborough por criados servis. Sua testa latejava de nervoso e ele sentia-se extremamente agitado, mas, quando curvou-se para beijar a mão de sua anfitriã, suas ma neiras foram graciosas como sempre. Talvez ninguém pareça tão à vontade quanto no momento em que precisa representar um papel. Certamente ninguém que olhasse para Dorian Gray naquela noite acreditaria que ele tinha passado por uma tragédia tão horrível quanto qualquer outra de nossa época. Aqueles dedos de formas tão refinadas nunca poderiam ter agarrado uma faca para cometer um pecado, nem sequer aqueles lábios sorridentes teriam clamado por Deus e por sua bondade. Ele mesmo não conseguia deixar de se espantar com a serenidade de seu comportamento e, por um momento, sentiu intensamente o terrível prazer de uma vida dupla.

Era um grupo pequeno, reunido com certa pressa por Lady Nar borough, uma mulher muito inteligente com os restos de uma feiura realmente notável, como Lorde Henry costumava descrevê-la. Ela provara ser uma excelente esposa para um de nossos embaixadores mais entediantes e, tendo enterrado o marido apropriadamente em um mausoléu de mármore, que ela mesma desenhou, e casado suas filhas com homens ricos e bastante idosos, dedicava-se agora aos prazeres da literatura francesa, da culinária francesa e do espírito francês, quando conseguia captá-lo.

Dorian era um de seus favoritos mais distintos e ela sempre dizia-lhe que ficava extremamente feliz por não tê-lo conhecido quando jovem.

OSCAR WILDE 235

— Eu sei, meu querido, que teria me apaixonado loucamente pelo senhor — costumava dizer — e teria jogado meu chapéu no moinho por sua causa 133 . É muita sorte não termos pensado em convidá-lo à época. Na verdade, nossos chapéus eram tão pouco atraentes e os moinhos estavam tão ocupados em tentar captar o vento que nunca cheguei a flertar com ninguém. No entanto, Narborough era o culpado de tudo. Ele era terrivelmente míope e não há nenhum prazer em enganar um marido que nunca vê nada. Seus convidados esta noite eram demasiado enfadonhos. A ver dade é que, como ela explicou a Dorian por trás de um leque bastante surrado, uma de suas filhas casadas aparecera subitamente para ficar com ela e, para piorar tudo, havia trazido o marido consigo.

— Acho muito indelicado da parte dela, meu querido — sus surrou. — Claro que fico com eles todos os verões depois de voltar de Homburg 134 , mas uma velha como eu deve respirar um pouco de ar fresco de vez em quando e, além disso, sou eu quem lhes traz um pouco de agitação. O senhor não faz ideia do tipo de vida que eles levam por lá. A pura vida no campo, completamente inaltera da. Levantam-se cedo porque têm muito a fazer e vão cedo para a cama porque têm pouco em que pensar. Não há um escândalo nas redondezas desde a época da rainha Elizabeth135 e, por isso, todos caem no sono logo após o jantar. O senhor não deve se sentar ao lado de nenhum dos dois. Deve sentar-se ao meu lado e divertir-me. Dorian murmurou algum elogio gentil e olhou ao redor da sala. Sim, certamente era um grupo entediante. Nunca vira duas daquelas

133 A expressão em inglês “throw one’s bonnet over the mills” significa agir de maneira perturbada ou imprudente e refere-se ao personagem homônimo do romance Dom Quixote, que joga o chapéu sobre um moinho de vento — que ele imagina ser um gigante — como um desafio contra ele. Optou-se por manter a expressão original. (N. do T.)

134 Pequena cidade suíça. (N. do T.)

135 Trata-se da Rainha Elizabeth I (1533-1603), filha de Henrique VIII e última monarca da Casa dos Tudor, que governou de 1558 até sua morte. (N. do T.)

236 O RETRATO DE DORIAN GRAY

pessoas e o resto consistia em Ernest Harrowden, um daqueles me díocres de meia-idade tão comuns nos clubes de Londres que nem sequer têm inimigos, mas que são completamente detestados pelos amigos; Lady Ruxton, uma mulher de quarenta e sete anos vestida de forma espalhafatosa e com nariz adunco, que estava sempre ten tando pôr em risco sua reputação, mas tinha tão poucos atrativos que, para sua grande decepção, ninguém jamais acreditaria em algo que a desmerecesse; a sra. Erlynne, uma pobre coitada insistente, com uma encantadora língua presa e cabelos ruivos venezianos; Lady Alice Chapman, a filha da anfitriã, uma garota desleixada e enfadonha, com um daqueles rostos britânicos característicos, os quais, vistos uma única vez, são completamente esquecidos; e seu marido, uma criatura de bochechas vermelhas e bigode branco, que, como muitos da sua classe, parecia acreditar que a jovialidade excessiva poderia corrigir a absoluta falta de intelecto.

Ele já tinha se arrependido de ter vindo, quando Lady Narborough, olhando para o grande relógio ormolu 136 que se es parramava em curvas berrantes no consolo da lareira drapeado de malva, exclamou:

—Que horror Henry Wotton estar tão atrasado! Por acaso, pedi sua confirmação esta manhã e ele prometeu veementemente não me decepcionar.

Era um alívio que Harry estivesse ali e, quando a porta se abriu e ele ouviu sua lenta e melodiosa voz atribuindo certo charme a al gum pedido de desculpas dissimulado, parou de sentir-se entediado.

Mas, durante o jantar, não conseguiu comer nada. Todos os pra tos voltaram intocados. Lady Narborough continuava a repreendê-lo pelo que chamava de “um insulto ao pobre Adolphe, que elaborara o cardápio especialmente para o senhor” e, vez ou outra, Lorde Henry

136 Termo usado para a técnica de aplicação de amálgama de mercúrio e ouro de alto quilate, finamente moído, num objeto de bronze. Também conhecido como bronze doré. (N. do T.)

OSCAR WILDE 237

observava-o, admirado com seu silêncio e seus modos distraídos. De tempos em tempos, o mordomo enchia sua taça de champanhe. Ele bebia com voracidade e sua sede parecia aumentar.

— Dorian — disse Lorde Henry, afinal, enquanto o chaud-froid137 era servido —, qual é o problema com você esta noite? Você pa rece indisposto.

— Acredito que esteja apaixonado — exclamou Lady Narborough — e que tenha medo de dizer-me receando que eu fique com ciúmes. Ele está certo. Eu certamente ficaria.

— Querida Lady Narborough — murmurou Dorian, sorrindo. — Já faz uma semana que não me apaixono — na verdade, desde que Madame de Ferrol deixou a cidade.

— Como os homens podem se apaixonar por aquela mulher? — exclamou a velha. — Realmente não compreendo.

— Apenas porque ela nos faz lembrar de quando a senhora era uma garotinha, Lady Narborough — disse Lorde Henry. — Ela é o único elo entre nós e seus vestidos de menina.

— Ela não lembra em nada meus vestidos de menina, Lorde Henry. Mas eu me lembro muito bem dela em Viena trinta anos atrás e de como eram seus decotes naquela época.

— Seus decotes continuam iguais — respondeu ele pegando uma azeitona com os dedos longos — e, quando está com um vestido muito elegante, parece-se com uma edição de luxo de um romance francês ruim. Ela é realmente maravilhosa e cheia de surpresas. Sua capacidade de afeiçoar-se à família é extraordinária. Quando seu terceiro marido morreu, seus cabelos ficaram dourados de tristeza.

— Como pode, Harry! — exclamou Dorian.

— É a explicação mais romântica — riu a anfitriã. — Seu ter ceiro marido, Lorde Henry? Isso quer dizer que Ferrol é o quarto?

137 Prato cozido de ave ou caça, servido frio com gelatina, geleia ou molho. (N. do T.)

238 O RETRATO DE DORIAN GRAY

— Certamente, Lady Narborough.

— Não acredito em uma palavra do que diz.

— Bom, pergunte ao sr. Gray. Ele é um de seus amigos mais íntimos.

— É verdade, sr. Gray?

— Ela me garante que é verdade, Lady Narborough — disse Dorian. — Perguntei-lhe se, como Marguerite de Navarra 138 , ela tinha seus corações embalsamados e pendurados em sua cinta. Disse-me que não, porque nenhum deles tinha um coração.

— Quatro maridos! Palavra de honra, isso sim é trop de zèle 139 .

— Trop d’audace 140 , disse-lhe eu — exclamou Dorian.

— Ah, ela é audaciosa o suficiente para qualquer coisa, meu querido. E como é Ferrol? Não o conheço.

— Os maridos de mulheres muito bonitas pertencem às clas ses de criminosos — disse Lorde Henry, bebericando seu vinho. Lady Narborough acertou-o com o leque.

— Lorde Henry, não me surpreende nem um pouco que o mundo todo diga que o senhor é extremamente malvado.

— Mas que mundo diz isso? — perguntou Lorde Henry er guendo as sobrancelhas. — Só pode ser o próximo mundo. Este mundo e eu nos damos muito bem.

— Todo mundo que eu conheço diz que o senhor é perverso — exclamou a velha senhora balançando a cabeça.

Lorde Henry ficou sério por alguns instantes.

— É perfeitamente monstruoso — disse ele, afinal — a forma como as pessoas, hoje em dia, ficam falando coisas por trás dos outros que são absoluta e inteiramente verdadeiras.

138 Marguerite ou Margarida de Navarra (1492-1549) foi rainha consorte de Navarra pelo seu casamento com o Rei Henrique II. (N. do T.)

139 “Excesso de zelo”, em francês. (N. do T.)

140 “Excesso de audácia”, em francês. (N. do T.)

OSCAR WILDE 239

— Ele não é incorrigível? — clamou Dorian curvando-se para a frente em sua cadeira.

— Espero que sim — disse a anfitriã, rindo. — Mas, realmente, se todos os senhores idolatram Madame de Ferrol dessa maneira absurda, deverei me casar novamente em breve para ficar popular.

— A senhora nunca se casará novamente, Lady Narborough — interrompeu Lorde Henry. — Foi feliz demais. Quando uma mulher se casa de novo, é porque detestava o primeiro marido. Quando um homem se casa de novo, é porque adorava a primeira mulher. As mulheres tentam a sorte; os homens põem-na em perigo.

— Narborough não era perfeito — exclamou a velha senhora.

— Se tivesse sido, a senhora não o teria amado, minha querida — foi a réplica. — As mulheres nos amam por nossos defeitos. Se temos o bastante, elas nos perdoam tudo, até mesmo nosso intelecto. Receio que a senhora nunca mais me convidará para jantar nova mente depois de dizer isso, Lady Narborough, mas é a pura verdade.

— Certamente é verdade, Lorde Henry. Se nós, mulheres, não os amássemos por seus defeitos, onde todos os homens estariam? Nenhum dos senhores se casaria nunca. Seriam um grupo de infe lizes solteirões. No entanto, isso não os tornaria muito diferentes. Hoje em dia, os homens casados vivem como solteirões e, todos os solteirões, como homens casados.

— Fin de siècle — murmurou Lorde Henry.

— Fin du globe 141 — respondeu sua anfitriã.

— Quem dera fosse realmente fin du globe — disse Dorian, suspirando. — A vida é uma grande decepção.

— Ah, meu querido — disse Lady Narborough enquanto colo cava as luvas —, não me diga que o senhor tem uma vida exaustiva. Quando um homem diz isso, sabe-se que a vida o esgotou. Lorde Henry é muito perverso e, às vezes, gostaria de também tê-lo sido;

141 Respectivamente “fim de século” e “fim do mundo”, em francês. (N. do T.)

240 O RETRATO DE DORIAN GRAY

mas o senhor foi feito para ser bom — sua aparência é de pura bondade. Devo encontrar-lhe uma agradável esposa. Lorde Henry, o senhor não acha que o sr. Gray deveria se casar?

— Vivo dizendo-lhe isso, Lady Narborough — disse Lorde Henry curvando-se.

— Bom, precisamos procurar um par apropriado para ele. Vou examinar a Debrett 142 com muito cuidado hoje à noite e elaborar uma lista com todas as jovens damas qualificadas.

— Com as respectivas idades, Lady Narborough? — pergun tou Dorian.

— Certamente, com as idades levemente editadas. Mas nada deve ser feito com pressa. Quero que seja o que o Morning Post 143 chama de aliança adequada e também que os dois sejam felizes.

— Que disparate as pessoas falarem sobre casamentos feli zes! — exclamou Lorde Henry. — Um homem pode ser feliz com qualquer mulher, desde que não a ame.

— Ah! Como o senhor é cínico! — gritou a velha senhora, afastando sua cadeira e acenando para Lady Ruxton com a cabe ça. — O senhor deve vir jantar comigo novamente em breve. É um tônico admirável, muito melhor do que o que Sir Andrew receita para mim. Deve me dizer que pessoas gostaria que eu reunisse, no entanto. Quero que seja um evento encantador.

— Gosto de homens com futuro e mulheres com passado — respondeu ele. — Ou a senhora acredita que, dessa forma, a festa seria monopolizada pelas mulheres?

142 Debrett’s é uma editora e empresa especializada em etiqueta social, profissional e comportamental. Desde sua fundação, em 1769, edita diversas publicações com listagens de famílias de nobres e pessoas tidas como importantes na sociedade britânica. (N. do T.)

143 O Morning Post foi um jornal conservador britânico publicado em Londres entre 1772 e 1937. (N. do T.)

OSCAR WILDE 241

— Receio que sim — disse ela, rindo, enquanto se levantava. — Mil perdões, minha querida Lady Ruxton — acrescentou. — Não tinha visto que ainda não havia terminado seu cigarro.

— Não há problema, Lady Narborough. Fumo demais. Vou começar a moderar meu consumo, no futuro.

— Por favor, não faça isso, Lady Ruxton — disse Lorde Henry. — A moderação é algo fatal. Apenas o suficiente é tão ruim quanto uma refeição. Mais do que o suficiente é tão bom quanto um banquete.

Lady Ruxton olhou para ele com curiosidade.

— Deve vir explicar-me o que disse algum dia desses, Lorde Henry. Parece-me uma teoria fascinante — murmurou ela, saindo da sala.

— Agora lembrem-se de não se estenderem muito falando de política e escândalos — exclamou Lady Narborough da porta. — Se o fizerem, com certeza estaremos nos engalfinhando lá em cima.

Os homens riram, e o sr. Chapman levantou-se, muito sério, da ponta da mesa e juntou-se às pessoas mais importantes 144 . Dorian Gray mudou de lugar e foi sentar-se ao lado de Lorde Henry. O sr. Chapman começou a falar em voz alta sobre a situação na Câmara dos Comuns. Gargalhou de seus adversários. A palavra doutrinário — palavra tão aterrorizante para a mente britânica — reaparecia de tempos em tempos no meio de suas explosões. Uma aliteração145 servia-lhe como ornamento da oratória. Ele hasteou a Union Jack 146 no mastro do pensamento. A estupidez herdada pelo povo — ou o

144 No original, o autor usa duas expressões em inglês, “foot of the table” e “top of the table”, que têm como conotação as áreas ocupadas pelas pessoas menos importantes (ou de companhia menos agradável) e mais importantes, respectivamente, em uma mesa durante um banquete ou outra reunião de pessoas. (N. do T.)

145 Repetição de sons consonantais. O autor usa de ironia para descrever os discursos políticos e, por extensão, a classe política. (N. do T.)

146 Bandeira do Reino Unido. (N. do T.)

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bom senso inglês, como ele alegremente denominou — mostrou ser o baluarte adequado para a sociedade.

Um sorriso curvou os lábios de Lorde Henry e ele virou-se, olhando para Dorian.

— Está melhor, meu querido amigo? — perguntou. — Parecia bastante indisposto durante o jantar.

— Estou muito bem, Harry. Estou cansado. É tudo.

— Estava encantador na noite passada. A duquesinha lhe é muito devotada. Disse-me que vai para Selby.

— Prometeu-me ir no dia 20.

— Monmouth estará lá também?

— Ah, sim, Harry.

— Ele me entedia terrivelmente, quase tanto quanto a ela. Ela é muito inteligente, inteligente demais para uma mulher. Falta-lhe o encanto indefinível da fraqueza. São os pés de argila que tornam precioso o dourado de uma escultura. Seus pés são muito bonitos, mas não são pés de argila. Pés de porcelana branca, se preferir. Passaram pelo fogo, e o que o fogo não destrói acaba enrijecendo. Ela é bastante experiente.

— Há quanto tempo está casada? — perguntou Dorian.

— Uma eternidade, de acordo com ela. Acredito que já faz dez anos, de acordo com o nobiliário, mas dez anos com Monmouth de vem parecer-se muito com a eternidade, ainda mais se acrescentados ao tempo real. Quem mais irá?

— Ah, os Willoughbys, Lorde Rugby e sua esposa, nossa anfi triã, Geoffrey Clouston, o grupo de sempre. Convidei Lorde Grotrian.

— Gosto dele — disse Lorde Henry. — Muitas pessoas não gostam, mas acho-o encantador. Compensa o vestir-se ocasional mente de forma exagerada com sua educação sempre absolutamente exagerada. Trata-se de um tipo muito moderno.

OSCAR WILDE 243

— Não sei se ele poderá ir, Harry. Pode ter de ir para Monte Carlo com o pai.

— Ah, que estorvo são os parentes! Tente fazê-lo ir. Por falar nisso, Dorian, você partiu muito cedo ontem à noite. Saiu antes das onze. O que fez depois? Foi direto para casa?

Rapidamente, Dorian olhou para ele e franziu a testa.

— Não, Harry — disse finalmente —, cheguei em casa perto das três da manhã.

— Você foi para o clube?

— Sim — respondeu ele. Então, mordeu o lábio. — Não, não quis dizer isso. Não fui para o clube. Fiquei perambulando. Esqueci o que fiz... Como você é curioso, Harry! Sempre quer saber o que os outros estão fazendo. Eu sempre quero esquecer o que tenho feito. Cheguei às duas e meia, se quer saber a hora exata. Havia deixado minha chave em casa, e meu criado teve de me deixar entrar. Se quer alguma prova a respeito, pode perguntar para ele.

Lorde Henry encolheu os ombros.

— Meu querido, não me importo nem um pouco! Vamos para a sala de estar. Não vou querer xerez, obrigado, sr. Chapman. Algo aconteceu com você, Dorian. Conte-me o que foi. Você não é você mesmo hoje à noite.

— Não se preocupe comigo, Harry. Estou irritado e de mau humor. Devo ir visitá-lo amanhã ou no dia seguinte. Peça desculpas por mim a Lady Narborough. Não vou subir. Acho que vou para casa. Devo ir para casa.

— Tudo bem, Dorian. Espero vê-lo amanhã, à hora do chá. A duquesa estará lá.

— Tentarei ir, Harry — disse ele e saiu da sala. Enquanto voltava para casa, tinha consciência de que a sensação de terror que pensara ter estrangulado voltara-lhe. As perguntas casuais de Lorde Henry fizeram-no perder o controle por um instante, e

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ele ainda queria estar no controle. Coisas perigosas precisavam ser destruídas. Ele estremeceu. Odiava a ideia de sequer tocá-las. Ainda assim, precisava fazê-lo. Tinha certeza disso e, ao trancar a porta de sua biblioteca, abriu o compartimento secreto dentro do qual havia enfiado o casaco e a bolsa de Basil Hallward. O fogo da lareira, imenso, estava aceso. Empilhou mais lenha nela. O cheiro das roupas chamuscadas e do couro queimado era horrível. Levou quarenta e cinco minutos para consumir tudo. No final, sentiu-se fraco e enjoado e, depois de acender alguns incensos argelinos em um braseiro de cobre, lavou as mãos e a testa com um refrescante vinagre perfumado com odor de almíscar. De repente, tomou um susto. Seus olhos adquiriram um brilho estranho e, inquieto, ele mordeu o lábio inferior. Entre duas jane las encontrava-se um grande armário florentino, feito de ébano e incrustado com marfim e lápis-lazúli. Começou a observá-lo como algo capaz de fascinar e amedrontar, algo que continha aquilo que mais desejava e que quase odiava. Sua respiração tornou-se mais rápida. Uma vontade louca tomou conta dele. Acendeu um cigarro e então jogou-o fora. Suas pálpebras caíram até que os longos cí lios quase tocaram suas bochechas. Ainda assim, ele continuava a observar o armário. Por fim, levantou-se do sofá em que estivera deitado, foi até ele e, destrancando-o, mexeu em alguma mola oculta. Uma gaveta triangular abriu-se lentamente. Seus dedos moveram-se instintivamente em sua direção, adentraram a gaveta e agarraram algo. Era uma pequena caixa chinesa de laca preta com detalhes de ouro, finamente trabalhada, as laterais moldadas em ondulações curvas e pequenos cordões de seda, dos quais pendiam cristais redondos e borlas com fios de metal trançados. Abriu-a. Dentro havia uma pasta verde, opaca como cera, com um odor curiosamente pesado e persistente.

Hesitou por alguns momentos, com um estranho sorriso iner te no rosto. Então, tremendo, apesar do ambiente terrivelmente quente da sala, ergueu-se e olhou para o relógio. Faltavam vinte

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minutos para a meia-noite. Colocou a caixa de volta, fechando as portas do armário ao fazê-lo, e foi para seu quarto.

Quando, com golpes de bronze no ar sombrio, a meia-noite soou, Dorian Gray, com vestes comuns e um cachecol enrolado no pescoço, esgueirou-se silenciosamente de sua casa. Na Rua Bond, encontrou uma carruagem com um bom cavalo. Fez-lhe sinal para que parasse e, com a voz baixa, deu o endereço ao condutor.

O homem balançou a cabeça.

— É muito longe para mim — murmurou ele.

— Aqui tem um soberano147 para você — disse Dorian. — Terá mais outro se for rápido.

— Muito bem, meu senhor — respondeu o homem —, estará lá em uma hora. — E, depois que recebeu sua moeda, disparou em direção ao rio.

147 Um soberano (em inglês, sovereign) é uma moeda do Reino Unido. (N. do T.)

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CAPÍTULO 16

Uma chuva fria começou a cair, e os postes de luz, desfocados, pareciam medonhos na névoa úmida. Os bares estavam fechando, e homens e mulheres obscuros aglomeravam-se em grupos disper sos ao redor de suas portas. De alguns bares, ouvia-se o som de gargalhadas horrorosas. Em outros, bêbados brigavam e gritavam. Reclinado na carruagem, com o chapéu cobrindo sua fronte, Dorian Gray observava com olhos apáticos a sórdida vergonha da grande cidade e, vez ou outra, repetia para si mesmo as palavras que Lorde Henry lhe dissera no dia em que se conheceram: “Curar a alma pelos sentidos e os sentidos pela alma”. Sim, era esse o se gredo. Já tentara várias vezes e tentaria novamente agora. Havia antros de ópio onde podia-se comprar o esquecimento, antros de horror onde a memória dos pecados antigos podia ser destruída pela loucura dos pecados novos.

A lua pairava baixa no céu, como uma caveira amarela. De vez em quando, uma nuvem enorme e deformada estendia um longo bra ço sobre ela, escondendo-a. Os lampiões a gás diminuíram e as ruas tornaram-se mais estreitas e lúgubres. Certa vez, o homem se perdeu e teve de refazer o caminho por quase um quilômetro. Uma espécie de vapor subia do cavalo quando ele pisava nas poças. As janelas late rais da carruagem estavam embaçadas por uma névoa acinzentada.

— Curar a alma pelos sentidos e os sentidos pela alma! — Como as palavras ressonavam em seus ouvidos! Sua alma, certamente, estava mortalmente doente. Seria verdade que os sentidos poderiam curá-la? Sangue inocente fora derramado. O que poderia expiar essa falta? Ah! Para isso não havia expiação; mas, apesar de o perdão ser impossível, o esquecimento ainda era uma possibilidade e ele

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estava determinado a esquecer, a apagar aquela coisa, esmagá-la como se esmaga a víbora que lhe picou. Na verdade, que direito tinha Basil de falar-lhe daquela forma? Quem nomeou-o juiz dos outros? Ele dissera coisas terríveis, horríveis, intoleráveis.

A carruagem avançava devagar, tornando-se mais lenta a cada passo. Ele ergueu a portinhola e pediu ao homem que dirigisse mais rápido. A horrenda fome de ópio começou a corroê-lo. Sua garganta queimava e suas delicadas mãos contraíam-se nervosamente. Ele golpeou loucamente o cavalo com sua bengala. O condutor riu e saí ram em disparada. Ele riu em resposta, e o homem ficou em silêncio.

O caminho parecia interminável, e as paredes assemelhavam-se a uma teia negra de alguma aranha agigantada. A monotonia tornou -se insuportável e, quando o nevoeiro adensou-se, ele sentiu medo. Então, passaram por algumas olarias isoladas. A névoa estava mais leve ali e ele podia ver as estranhas fornalhas em formato de garrafa com suas línguas de fogo laranja parecidas com leques. Um cachorro latiu enquanto passavam e, ao longe, na escuridão, alguma gaivota errante grasnou. O cavalo tropeçou em um buraco, deu uma guinada para o lado e começou a galopar. Depois de algum tempo, deixaram a estrada de terra e co meçaram a chacoalhar novamente em ruas de paralelepípedos. A maioria das janelas estava escura mas, vez ou outra, sombras fantásticas ficavam evidentes contra alguma persiana iluminada. Ele as observava com curiosidade. As sombras moviam-se como marionetes monstruosas e gesticulavam como se estivessem vivas. Odiou-as. Uma raiva cega apoderou-se do seu coração. Ao dobrarem uma esquina, uma mulher gritou-lhes algo de uma porta aberta e dois homens correram atrás da carruagem por cerca de cem metros. O condutor acertou-os com o chicote.

Dizem que a paixão nos faz pensar em círculos. Certamente, com uma repetição repulsiva, os lábios mordidos de Dorian Gray desenharam e redesenharam aquelas palavras sutis que tratavam

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da alma e dos sentidos até encontrar nelas a expressão completa, por assim dizer, do seu humor, e justificar, pela aprovação inte lectual, as paixões que — sem tal justificativa — continuariam a dominar seu temperamento. Esse único pensamento rastejou por cada célula de seu cérebro; e o feroz desejo de viver, o mais terrível de todos os desejos do homem, estimulou-lhe cada nervo e fibra trêmulos. A feiura que antes era-lhe odiosa, pois tornava as coisas reais, tornou-se estimada, pelo mesmo motivo. A feiura era a única realidade. As brigas grosseiras, o covil repugnante, a violência crua da vida desregrada, a vilania literal do ladrão e do pária, tudo era mais vívido, na intensa realidade das sensações, do que todas as formas graciosas da arte e as sombras oníricas das canções. Era de que ele precisava para o esquecimento. Em três dias, estaria livre.

De repente, o homem parou com um solavanco no topo de uma estrada escura. Sobre os telhados baixos e as chaminés recortadas das casas, erguiam-se os mastros negros dos navios. Coroas de né voa branca agarravam-se como velas fantasmagóricas aos jardins.

— Em algum lugar por aqui, não é, meu senhor? — perguntou através da portinhola, com a voz rouca.

Dorian assustou-se e olhou ao redor.

— Aqui está bom — respondeu e, saindo às pressas e dando ao condutor a paga extra que lhe havia prometido, caminhou rapi damente em direção ao cais. Aqui e ali, uma lanterna brilhava na popa de algum imenso navio mercante. A luz tremia e fragmen tava-se nas poças. O pavimento enlameado parecia uma capa de chuva molhada.

Correu para o lado esquerdo, olhando para trás vez ou outra para ver se estava sendo seguido. Em cerca de sete ou oito minutos, chegou a um casebre asqueroso, espremido entre duas fábricas desoladas. Em uma das janelas de cima, havia um lampião. Parou e deu uma singular batida à porta.

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Depois de algum tempo, ouviu passos no corredor e alguém soltando a corrente. A porta abriu-se silenciosamente, e ele entrou sem dizer nenhuma palavra à figura atarracada e disforme, que se espremeu contra a sombra quando ele passou. No final do saguão, pendia uma cortina verde esfarrapada chacoalhando com o vento forte que o seguira desde a rua. Ele arrastou-a para o lado e entrou em uma sala comprida e baixa que parecia ter sido um salão de baile de terceira categoria. Lampiões de gás flamejantes e estridentes, desfocados e distorcidos pelos espelhos pútridos à sua frente, es palhavam-se pelas paredes. Refletores gordurosos de latão estriado protegiam-nos formando trêmulos discos de luz. O chão estava coberto por uma serragem de cor ocre, pisoteado aqui e ali até virar lama e manchado por escuros anéis de bebida derramada. Alguns malaios encontravam-se agachados perto de um fogão a carvão, brincando com espécies de peças de jogo e mostrando os dentes brancos enquanto jogavam. A um canto, com a cabeça enterrada nos braços, um marinheiro esparramava-se sobre uma mesa e, ao lado do balcão pintado com cores espalhafatosas que ocupava um lado da sala, duas mulheres caçoavam de um velho que esfregava as mangas do casaco com uma expressão de nojo.

— Ele acha que tem formigas-de-fogo sobre ele — riu uma delas, enquanto Dorian passava. O homem olhou para ela aterro rizado e começou a choramingar.

No fundo da sala havia uma pequena escadaria que levava a um recinto escurecido. Enquanto Dorian subia apressado seus três frágeis degraus, o forte odor de ópio o atingiu. Respirou fundo e suas narinas estremeceram de prazer. Quando ele entrou, um jovem de lisos cabelos loiros, que, curvado sobre um lampião, acendia um lon go e fino cachimbo, olhou para ele e acenou com a cabeça, hesitante.

— Você por aqui, Adrian? — murmurou Dorian.

— Onde mais eu estaria? — respondeu ele, indiferente. — Nenhum dos meus amigos fala mais comigo.

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— Achei que tinha partido da Inglaterra.

— Darlington não fará nada. Meu irmão pagou a conta, afinal. George não fala comigo tampouco... Não me importo — acrescentou com um suspiro. — Contanto que se tenha isto aqui, ninguém precisa de amigos. Acho que tive amigos demais.

Dorian estremeceu e olhou ao redor, para as coisas grotescas que se encontravam em tão assombrosas posturas nos colchões esfarrapados. Os membros retorcidos, as bocas escancaradas, os olhos fixos e sem brilho, tudo aquilo o fascinava. Ele sabia em que estranhos paraísos eles estavam sofrendo, e que infernos enfadonhos mostravam-lhes o segredo de alguma nova alegria. Encontravam-se numa situação melhor que a sua. Ele continuava preso aos pensamentos. A memória, como uma horrível doença, corroía-lhe a alma. De tempos em tempos, parecia ver os olhos de Basil Hallward olhando para ele. Ainda assim, sentiu que não pode ria ficar. A presença de Adrian Singleton perturbava-o. Ele queria estar onde ninguém o conhecesse. Queria escapar de si mesmo.

— Vou para o outro lugar — disse, depois de um instante.

— No cais?

— Sim.

— A gata louca com certeza estará lá. Eles não permitem mais sua entrada aqui.

Dorian deu de ombros.

— Estou farto de mulheres que me amam. As mulheres que me odeiam são muito mais interessantes. Além disso, o negócio é melhor por lá.

— Praticamente igual.

— Gosto mais do deles. Venha tomar alguma coisa comigo. Preciso beber algo.

— Não quero nada — murmurou o jovem.

— Tudo bem.

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Adrian Singleton levantou-se com esforço e seguiu Dorian até o bar. Um mestiço, com um turbante esfarrapado e um sobretudo surrado, sorriu e articulou algum cumprimento horroroso enquanto dispunha uma garrafa de conhaque e dois copos diante deles. As mulheres voltaram-se para eles e começaram a tagarelar. Dorian deu as costas para elas e disse algo em voz baixa para Adrian Singleton.

Um sorriso torto, parecido com uma adaga malaia, contorceu-se no rosto de uma das mulheres.

— Estamos muito orgulhosas esta noite — caçoou ela.

— Pelo amor de Deus, não fale comigo — gritou Dorian baten do o pé no chão. — O que você quer? Dinheiro? Aqui está. Nunca mais fale comigo.

Duas fagulhas vermelhas faiscaram por um instante nos olhos embriagados da mulher e logo depois se apagaram, deixando-os opa cos e vidrados. Ela sacudiu a cabeça e arrancou as moedas do balcão com dedos gananciosos. Sua companheira observou-a com inveja.

— É inútil — suspirou Adrian Singleton. — Não me importo em voltar. De que adianta? Estou muito feliz aqui.

— Você me escreverá se precisar de qualquer coisa, não é? — disse Dorian, depois de um instante.

— Talvez.

— Boa noite, então.

— Boa noite — respondeu o jovem, subindo os degraus e limpando a boca ressecada com um lencinho.

Dorian andou até a porta com uma expressão de dor no rosto. Assim que afastou a cortina, uma risada horrenda irrompeu dos lábios pintados da mulher que pegara seu dinheiro.

— Lá vai o pacto do demônio! — soluçou ela, com uma voz rouca.

— Maldita seja! — respondeu ele. — Não me chame assim. Ela estalou os dedos.

254 O RETRATO DE DORIAN GRAY

— Você prefere ser chamado de Príncipe Encantado, não é? — ela berrou atrás dele.

Subitamente, o marinheiro sonolento pôs-se de pé ao ouvi-la fa lar e olhou ao redor, desesperado. O som da porta do saguão fechan do-se caiu em seus ouvidos. Saiu correndo como em uma perseguição.

Dorian Gray apressou-se ao longo do cais sob a chuva fina. Seu encontro com Adrian Singleton comovera-o estranhamente, e ele se perguntava se a ruína daquela jovem vida recairia realmente sobre ele, como Basil Hallward lhe afirmara de forma tão infame e ofensiva. Mordeu o lábio e, por alguns segundos, seus olhos entristeceram-se. Ainda assim, afinal, que lhe importava? Os dias eram curtos demais para uma pessoa carregar os fardos dos erros dos outros sobre seus ombros. Cada homem vivia a própria vida e pagava o preço por fazê-lo. Só era lamentável ter de pagar tantas vezes por um único erro. Era preciso pagar muitas e muitas vezes, na verdade. Em suas relações com o homem, o destino nunca fechava suas contas. Há momentos, dizem os psicólogos, em que a paixão pelo pecado, ou pelo que o mundo chama de pecado, domina tanto nossa natureza que cada fibra do corpo, assim como cada célula do cérebro, parece estar tomada por terríveis impulsos. Nesses momentos, homens e mulheres perdem seu livre-arbítrio. Como autômatos, movem-se em direção a seu terrível fim. Seu poder de escolha lhes é suprimido e sua consciência ou morre ou — se continuar vivendo — vive apenas para dar à rebelião seu fascínio e à desobediência seu encanto. Pois todos os pecados, como os teó logos não se cansam de nos lembrar, são pecados de desobediência. Quando aquele espírito elevado, aquela estrela da manhã do mal, caiu do céu, foi por sua rebeldia.

Insensível, concentrado no mal, com a mente manchada e a alma faminta por rebelião, Dorian Gray apressava-se, acelerando o passo à medida que avançava. Mas, ao desviar seu caminho sob uma arcada sombria, que lhe serviu muitas vezes como atalho para

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o lu gar de má fama para onde se dirigia, sentiu-se subitamente agarrado por trás e, antes que tivesse tempo de se defender, foi jogado contra a parede, com uma mão brutal ao redor do pescoço.

Lutou loucamente pela vida e, fazendo um terrível esforço, conseguiu puxar os dedos que o sufocavam. Em um segundo, ouviu o ruído de um revólver e viu o brilho de um cano lustroso apontado diretamente para sua cabeça e a forma obscura de um homem baixo e musculoso diante dele.

— O que você quer? — sussurrou ele.

— Fique quieto — disse o homem. — Se você se mexer, mato-o.

— Você está louco. O que lhe fiz?

— Você arruinou a vida de Sibyl Vane — foi a resposta — e Sibyl Vane era minha irmã. Ela se matou. Sei disso. Sua morte é culpa sua. Jurei que o mataria em retorno. Por anos, tenho procu rado por você. Não tinha nenhuma pista, nenhum rastro seu. As duas pessoas que poderiam descrevê-lo estão mortas. Não sabia nada a seu respeito além do apelido que ela costumava usar para chamá-lo. E o ouvi, por acaso, esta noite. Faça suas pazes com Deus, pois hoje à noite você vai morrer.

Dorian Gray ficou nauseado pelo medo.

— Nunca a conheci — gaguejou ele. — Nunca ouvi falar dela. Você está louco.

— É melhor confessar seus pecados, pois, tão certo quanto sou James Vane, você vai morrer!

Seguiu-se um instante aterrador. Dorian não sabia o que dizer ou fazer.

— De joelhos! — urrou o homem. — Dou-lhe um minuto para reconciliar-se. Nada mais. Vou embarcar hoje à noite para a Índia e tenho de fazer meu dever primeiro. Um minuto. Isso é tudo.

Os braços de Dorian caíram para o lado. Paralisado de terror, ele não sabia o que fazer. Subitamente, uma louca esperança passou pela sua mente.

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— Pare — gritou ele. — Há quanto tempo sua irmã morreu? Rápido, diga-me!

— Dezoito anos — disse o homem. — Por que me pergunta? O que importam os anos?

— Dezoito anos — riu Dorian Gray, com um toque de triunfo na voz. — Dezoito anos! Coloque-me sob o lampião e olhe para o meu rosto!

James Vane hesitou por um momento, sem entender o que aquilo significava. Então, agarrou Dorian Gray e arrastou-o para longe da arcada.

Ainda que vacilante com o vento, a fraca luz serviu para mostrar-lhe o erro hediondo, ao que parecia, em que havia caído, pois o rosto do homem que ele tencionara matar tinha todo o desabrochar da meninice, toda a pureza imaculada da juventude. Ele parecia um rapaz com pouco mais de vinte verões, dificilmente mais velho do que sua irmã, se é que o era de fato, quando se se pararam tantos anos atrás. Era óbvio que esse não era o homem que destruíra a vida dela.

Ele soltou seu pescoço e cambaleou para trás.

— Meu Deus! Meu Deus! — gritou. — E eu o teria matado!

Dorian Gray respirou profundamente.

— Você esteve prestes a cometer um terrível crime, meu rapaz — disse ele olhando-o com severidade. — Que isso lhe sirva como aviso para não se vingar com as próprias mãos.

— Perdoe-me, senhor — murmurou James Vane. — Fui en ganado. Uma palavra que eu ouvi por acaso naquele maldito antro colocou-me na pista errada.

— É melhor você ir para casa e guardar essa pistola ou pode ter problemas — disse Dorian, dando meia-volta e descendo len tamente a rua.

James Vane ficou na calçada horrorizado. Tremia da cabeça aos pés. Depois de um tempo, uma sombra negra que vinha se

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arrastando ao longo da parede gotejante moveu-se para a luz e aproximou-se dele com passos furtivos. Ele sentiu uma mão pousar em seu braço e olhou ao redor assustado. Era uma das mulheres que estava bebendo no bar.

— Por que você não o matou? — rosnou ela e aproximou seu rosto macilento do dele. — Percebi que você o seguia quando saiu correndo do Daly’s. Seu idiota! Deveria tê-lo matado. Ele tem muito dinheiro e é tão ruim quanto o próprio mal.

— Ele não é o homem que estou procurando — respondeu ele — e não quero o dinheiro de ninguém. Quero a vida de um homem. O homem cuja vida desejo deve ter quase quarenta anos agora. Esse é pouco mais que um menino. Graças a Deus não tenho o sangue dele nas mãos.

A mulher soltou uma risada penetrante.

— Pouco mais que um menino! — zombou ela. — Ora, meu rapaz, faz quase dezoito anos que o Príncipe Encantado transformou-me no que sou.

— Está mentindo! — gritou James Vane.

Ela levantou sua mão para o céu.

— Juro por Deus que estou lhe dizendo a verdade — exclamou.

— Jura por Deus?

— Que Ele me torne muda se não for verdade. É a pior escória que vem aqui. Dizem que ele se vendeu ao diabo pelo rosto bonito. Faz quase dezoito anos que o conheci. Desde então, ele não mudou muito. Eu, no entanto, mudei — adicionou ela, com um olhar indecente.

— Você jura?

— Juro. — Surgiu como um eco rouco de sua boca murcha. — Mas não lhe diga que contei — clamou ela. — Tenho medo dele. Dê-me algum dinheiro para minha hospedagem de hoje.

Ele desvencilhou-se dela com uma blasfêmia e correu para a esquina da rua, mas Dorian Gray tinha desaparecido. Quando olhou para trás, a mulher também sumira.

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CAPÍTULO 17

Uma semana depois, Dorian Gray estava sentado no so lário em Selby Royal, conversando com a bela Duquesa de Mon mouth, que, com seu marido, um homem de sessenta anos com a aparência cansada, estava entre seus convidados. Era hora do chá e a luz suave do enorme lampião forrado de renda que estava sobre a mesa iluminava a delicada porcelana e a prataria traba lhada do serviço comandado pela duquesa. Suas mãos brancas moviam-se delicadamente entre as xícaras, e seus lábios carnudos e vermelhos sorriam para algo que Dorian lhe havia sussurrado. Lorde Henry, recostado em uma cadeira de vime drapeada com seda, observava-os. Em um divã cor de pêssego sentava-se Lady Narborough, fingindo ouvir o duque descrever o último besouro brasileiro que adicionara à sua coleção. Três rapazes em vistosos smokings serviam bolinhos de frutas a algumas das damas. O grupo consistia de doze pessoas e esperava-se mais gente no dia seguinte.

— Sobre o que os dois estão falando? — disse Lor de Henry perambulando até a mesa e pousando sua xíca ra. — Espero que Dorian tenha lhe contado sobre o meu plano de renomear tudo, Gladys. É uma ideia encantadora.

— Mas eu não quero mudar de nome, Harry — retrucou a duquesa, olhando para ele com seus encantadores olhos. — Estou muito satisfeita com meu próprio nome e tenho certeza de que o sr. Gray deve estar satisfeito com o dele.

— Minha querida Gladys, não mudaria seus nomes de maneira nenhuma. Os dois são perfeitos. Tinha em mente principalmente as flores. Ontem colhi uma orquídea para a minha lapela. Era uma coisa maravilhosa, cheia de manchinhas, tão impactante quando

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os sete pecados capitais. Em um momento impensado, perguntei a um dos jardineiros como a chamavam. Ele me disse que era um belo espécime de Robinsoniana ou algo medonho do gênero. É uma triste verdade, mas perdemos a capacidade de dar nomes adorá veis às coisas. Nomes são tudo. Nunca discuto ações. Minha única briga é com as palavras. É por isso que odeio o realismo vulgar na literatura. O homem que dá a uma pá o nome de pá deveria ser obrigado a usar uma. É a única coisa para a qual ele é adequado.

— Então do que deveríamos chamá-lo, Harry? — perguntou ela.

— Seu nome é Príncipe Paradoxo — disse Dorian.

— Eu o reconheceria em um instante — exclamou a duquesa.

— Não posso concordar com tal nome — riu Lorde Henry afundando-se em uma cadeira. — Dos rótulos, não há escapatória. Recuso o título.

— A realeza não pode abdicar — caiu como uma advertência dos belos lábios.

— Você quer que eu defenda meu trono, então?

— Sim.

— Dou-lhe as verdades de amanhã.

— Prefiro as mentiras de hoje — respondeu ela.

— Você me desarma, Gladys — exclamou percebendo a tei mosia de seu ânimo.

— De seu escudo, Harry, não de sua espada.

— Nunca me curvo perante a beleza — disse ele, com um aceno da mão.

— Esse é o seu erro, Harry, acredite em mim. Você valoriza demais a beleza.

— Como pode dizer isso? Admito acreditar que é melhor ser belo do que ser bom. Mas, por outro lado, ninguém está mais dis posto do que eu a reconhecer que é melhor ser bom do que ser feio.

262 O RETRATO DE DORIAN GRAY

— A feiura é um dos sete pecados mortais, então? — exclamou a duquesa. — Por isso sua analogia com a orquídea?

— A feiura é uma das sete virtudes mortais, Gladys. Você, como uma boa conservadora, não deve desvalorizá-las. Cerveja, a Bíblia e as setes virtudes mortais fizeram da Inglaterra o que ela é.

— Você não gosta do seu país, então? — perguntou ela.

— Eu moro nele.

— Para que possa censurá-lo melhor.

— Prefere que eu adote o veredito da Europa nesse assunto? — indagou ele.

— O que eles dizem sobre nós?

— Que Tartufo148 emigrou para a Inglaterra e abriu uma loja.

— É de sua autoria, Harry?

— Ofereço-a a você.

— Não posso usá-la. É verdadeira demais.

— Não há nada a temer. Nossos conterrâneos nunca reconhe cem uma descrição.

— Eles são práticos.

— São mais astutos do que práticos. Na sua contabilidade, compensam a estupidez com a riqueza e o vício com a hipocrisia.

— Ainda assim, fizemos grandes coisas.

— Grandes coisas nos foram impostas, Gladys.

— Carregamos seu fardo.

— Apenas até a Bolsa de Valores.

Ela balançou a cabeça.

148 Tartufo é o personagem principal de uma comédia de Molière de mesmo nome. Trata-se de um devoto religioso que, hipócrita e dissimulado, engana dois dos outros personagens com suas artimanhas. O termo “tartufo”, tanto em língua portuguesa como em outros idiomas, passou a ter a conotação de pessoa hipócrita ou falso religioso. (N. do T.)

OSCAR WILDE 263

— Acredito na raça — exclamou ela.

— Ela representa a sobrevivência dos insistentes.

— Já é um progresso.

— A decadência me fascina mais.

— E quanto à arte? — perguntou ela.

— É uma doença.

— Amor?

— Uma ilusão.

— Religião?

— O substituto elegante da crença.

— Você é um cético.

— Nunca! O ceticismo é o início da fé.

— O que é você?

— Definir é limitar.

— Dê-me uma pista.

— Os traços se apagam. Você se perderia no labirinto.

— Você me deixa confusa. Vamos falar de outra pessoa.

— Nosso anfitrião é um assunto encantador. Anos atrás, ele foi nomeado Príncipe Encantado.

— Ah! Não me lembre disso — exclamou Dorian Gray.

— Nosso anfitrião está bastante desagradável esta noite — respondeu a duquesa, enrubescendo. — Acredito que ele pense que Monmouth tenha se casado comigo baseado em princípios puramente científicos, como o melhor espécime de uma borboleta moderna que ele poderia encontrar.

— Bom, espero que ele não enfie alfinetes na senhora, du quesa — riu Dorian.

— Ah! Minha criada já faz isso, sr. Gray, quando está irritada comigo.

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— E por que ela se irrita com a senhora, duquesa?

— Pelas coisas mais triviais, sr. Gray, posso garantir-lhe. Normalmente porque chego faltando dez minutos para as nove dizendo-lhe que preciso estar vestida até as oito e meia.

— Que irracional da parte dela! A senhora deveria adverti-la.

— Não me atrevo, sr. Gray. Ora, ela inventa chapéus para mim. Lembra-se daquele que usei na festa do jardim de Lady Hilstone? Não se lembra, mas é gentileza sua fingir que sim. Bom, ela faz isso do nada. Todos os bons chapéus são feitos do nada.

— Assim como todas as boas reputações, Gladys — interrompeu Lorde Henry. — Cada efeito que causamos nos dá um inimigo. Para ser popular, é preciso ser medíocre.

— Não com as mulheres — disse a duquesa balançando a cabeça — e as mulheres governam o mundo. Garanto-lhe que não podemos suportar mediocridades. Nós, mulheres, como se costuma dizer, amamos com nossos ouvidos enquanto vocês, homens, amam com seus olhos, se é que já chegaram a amar.

— Parece-me que nunca fazemos nada além disso — mur murou Dorian.

— Ah! Então, o senhor nunca ama realmente, sr. Gray — res pondeu a duquesa fingindo tristeza.

— Minha querida Gladys! — exclamou Lorde Henry. — Como pode dizer isso? O romance vive pela repetição, e a repetição con verte um apetite em arte. Além disso, cada vez que amamos é a única vez. A diferença de objeto não modifica a singularidade da paixão. Ela apenas a intensifica. Podemos ter somente uma grande experiência na vida, na melhor das hipóteses, e o segredo da vida é reproduzir essa experiência sempre que possível.

— Mesmo quando se é ferido por ela, Harry? — perguntou a duquesa depois de um instante.

OSCAR WILDE 265

— Especialmente quando se é ferido por ela — respondeu Lorde Henry.

A duquesa virou-se e olhou para Dorian Gray com uma ex pressão curiosa nos olhos.

— O que tem a dizer sobre isso, sr. Gray? — perguntou. Dorian hesitou por um momento. Então, lançou a cabeça para trás e riu.

— Sempre concordo com Harry, duquesa.

— Mesmo quando ele está errado?

— Harry nunca está errado, duquesa.

— E a filosofia dele o faz feliz?

— Nunca busquei a felicidade. Quem quer felicidade? Sempre busquei o prazer.

— E encontrou, sr. Gray?

— Muitas vezes. Vezes demais.

A duquesa suspirou.

— Estou buscando paz — disse ela — e, se não for me vestir, não terei nenhuma esta noite.

— Deixe-me pegar-lhe algumas orquídeas, duquesa — excla mou Dorian, pondo-se de pé e atravessando o solário.

— Você está flertando excessivamente com ele — disse Lorde Henry à prima. — É melhor tomar cuidado. Ele é fascinante demais.

— Se não fosse, não haveria batalha.

— Os gregos contra os gregos, é isso?

— Estou do lado dos troianos. Eles lutaram por uma mulher.

— Foram derrotados.

— Há coisas piores que a captura — respondeu ela.

— Você galopa com as rédeas soltas.

— É o ritmo que dá a vida — foi a réplica.

266 O RETRATO DE DORIAN GRAY

— Devo escrevê-lo no meu diário esta noite.

— O quê?

— Que uma criança queimada ama o fogo.

— Nem sequer estou chamuscada. Minhas asas estão intactas.

— Você as usa para tudo, exceto para voar.

— A coragem passou dos homens às mulheres. É uma nova experiência para nós.

— Você tem uma rival.

— Quem?

Ele riu.

— Lady Narborough — sussurrou. — Ela o adora completamente.

— Você me enche de apreensão. O apelo à antiguidade é fatal para nós, os românticos.

— Românticos! Vocês têm todos os métodos da ciência.

— Os homens nos educaram.

— Mas não puderam entendê-las.

— Descreva-nos como sexo — desafiou-o.

— Esfinges sem segredos.

Ela olhou para ele, sorrindo.

— Como o sr. Gray está demorando! — disse ela. — Vamos ajudá-lo. Ainda não lhe disse a cor do meu vestido.

— Ah, você deve combinar seu vestido com as flores dele, Gladys.

— Isso seria uma rendição prematura.

— A arte do romance começa com seu clímax.

— Devo manter uma oportunidade para recuar.

— À maneira dos Partas 149?

149 O Império Parta (247 a.C.-224) foi uma das principais potências político-culturais iranianas da antiga Pérsia. (N. do T.)

OSCAR WILDE 267

— Eles encontraram segurança no deserto. Nunca poderia fazer isso.

— Às mulheres, nem sempre é permitido escolher — ele res pondeu, mas mal tinha acabado sua frase quando, do fundo do solário, surgiu um gemido sufocado, seguido do ruído surdo de uma forte queda. Todos se assustaram. A duquesa ficou imobilizada de terror. E, com medo nos olhos, Lorde Henry correu através das palmeiras agitadas até encontrar Dorian Gray deitado de bruços no chão de ladrilhos como em um desmaio que parecia a morte.

Ele foi carregado imediatamente para a sala de estar azul e deitado em um dos sofás. Depois de um tempo, voltou a si e olhou em volta com uma expressão atordoada.

— O que aconteceu? — perguntou ele. — Ah! Estou me lem brando. Estou seguro aqui, Harry? — Ele começou a tremer.

— Meu querido Dorian — respondeu Lorde Henry —, você simplesmente desmaiou. É tudo. Você deve estar extenuado. Seria melhor não descer para o jantar. Tomarei seu lugar.

— Não, eu descerei — disse ele, esforçando-se para se levan tar. — Prefiro descer. Não posso ficar sozinho.

Ele foi para seu quarto e se vestiu. Havia uma alegria impru dente e irresponsável em suas maneiras quando sentou-se à mesa, mas, vez ou outra, um arrepio de terror percorria seu corpo quando lembrava-se de que, espremido contra a janela do solário, como um lenço branco, ele vira o rosto de James Vane observando-o.

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CAPÍTULO 18

No dia seguinte, ele não saiu da casa e, de fato, passou a maior parte do tempo no seu quarto, adoecido com um medo feroz de morrer e, ainda assim, indiferente à vida em si. A convicção de que era caçado, capturado, perseguido começara a dominá-lo. Se a tapeçaria balançava com o vento, ele estremecia. As folhas mortas que eram sopradas contra as vidraças enclausuradas pareciam-lhe suas próprias resoluções desperdiçadas e seus arrependimentos desgovernados. Quando fechava os olhos, via novamente o rosto do marinheiro espiando através do vidro manchado pela névoa, e o horror parecia uma vez mais pousar a mão sobre seu coração. Mas talvez tenha sido apenas sua imaginação que chamara a vingança através da noite e colocara aquelas horrendas formas de punição diante dele. A vida real era caótica, mas havia algo terrivelmente lógico na imaginação. Foi ela que criou o remorso para correr atrás do pecado. Era ela que fazia com que cada crime gerasse sua deformada prole. No mundo ordinário dos fatos, os maus não eram punidos, nem os bons recompensados. O sucesso era concedido aos fortes e o fracasso era impelido aos fracos. Isso era tudo. Além disso, se algum estranho estivesse rondando a casa, ele teria sido visto pelos criados ou pelos caseiros. Caso alguma pe gada tivesse sido encontrada nos canteiros de flores, os jardineiros teriam lhe comunicado. Sim, tinha sido apenas sua imaginação. O irmão de Sibyl Vane não voltara para matá-lo. Ele partira em seu navio para naufragar em algum mar gelado. Com relação a ele, de qualquer forma, estava seguro. Ora, o homem não sabia quem ele era, não poderia saber. A máscara da juventude salvara-o.

OSCAR WILDE 271

Mas, mesmo tendo sido uma mera ilusão, como era terrível pensar que a consciência pudesse despertar fantasmas tão ter ríveis, dando-lhes formas visíveis e fazendo-os mover-se diante de nós! Que tipo de vida ele teria se, dia e noite, as sombras de seu crime espreitassem-no de cantos silenciosos, caçoassem dele de lugares secretos, sussurrassem em seu ouvido enquanto ele participava de um banquete, despertassem-no com dedos gélidos enquanto ele dormia! À medida que esse pensamento lhe penetrava no cérebro, ele empalidecia de terror, e o ar parecia-lhe tornar-se subitamente mais frio. Ó, em que hora de loucura descontrolada ele matara o amigo! Como era horrorosa a mera lembrança da quela cena! Ele reviu tudo mais uma vez. Cada horrendo detalhe voltava-lhe à mente com horrores adicionais. Da negra caverna do tempo, terrível e envolta em escarlate, erguia-se a imagem de seu pecado. Quando Lorde Henry adentrou o quarto, às seis horas, encontrou-o chorando como alguém cujo coração estava prestes a despedaçar-se.

Foi apenas no terceiro dia que ele se aventurou a sair. Havia algo no ar límpido com odor de pinho daquela manhã de inverno que parecia lhe trazer de volta sua alegria e seu entusiasmo pela vida. Mas não foram apenas as condições físicas do ambiente que lhe causaram tal mudança. Sua própria natureza revoltou-se contra o excesso de angústia que procurava mutilar e arruinar a perfeição de sua tranquilidade. Isso sempre acontece com temperamentos sofisticados e finamente trabalhados. Suas fortes paixões devem ferir ou subjugar-se. Ou elas matam o homem ou a si mesmas. Dores e amores superficiais continuam vivos. Os grandes amores e as grandes dores são destruídos pela própria plenitude. Além disso, ele estava convencido de que fora vítima de uma imaginação acometida pelo terror e agora olhava para seus medos do passado com um pouco de dó e bastante desprezo.

Depois do café da manhã, ele caminhou com a duquesa no jardim por uma hora e então atravessou o parque para juntar-se

272 O RETRATO DE DORIAN GRAY

ao grupo de caça. A fria geada caía como sal sobre a grama. O céu assemelhava-se a uma xícara de metal azul de cabeça para baixo. Uma fina camada de gelo rodeava o lago raso e repleto de junco.

Em um canto do bosque de pinheiros, ele avistou Sir Geoffrey Clouston, o irmão da duquesa, retirando dois cartuchos usados de sua arma. Ele saltou da charrete e, depois de mandar o cavalariço levar a égua de volta, foi até seu hóspede através das samambaias ressecadas e do mato irregular.

— Tem tido uma boa caçada, Geoffrey? — perguntou ele.

— Não tão boa, Dorian. Acho que a maior parte dos pássaros foi para céu aberto. Ouso dizer que será melhor depois do almoço, quando formos para outro terreno.

Dorian caminhou ao seu lado. O ar penetrante e perfumado, as luzes marrons e vermelhas cintilando no bosque, os gritos roucos dos batedores ressoando de tempos em tempos, seguidos dos es talos agudos das armas, tudo isso fascinava-lhe e enchia-o de uma deliciosa sensação de liberdade. Ele dominou-se pela desatenção da felicidade, pela forte indiferença da alegria.

Subitamente, de um amontoado de grama velha a cerca de vinte metros à sua frente, com as orelhas de pontas pretas eretas e avançando sobre os longos membros traseiros, surgiu uma le bre. Ela disparou rumo a um bosque de amieiros 150 . Sir Geoffrey colocou a arma no ombro, mas havia algo no movimento gracioso do animal que encantou Dorian Gray de uma forma tão inusitada que ele gritou imediatamente:

— Não o mate, Geoffrey. Deixe-o viver.

— Que tolice, Dorian! — riu seu companheiro e, enquanto a lebre saltava para dentro do bosque, ele atirou. Ouviu-se dois 150 Árvore típica da Europa, do sudoeste da Ásia e do norte da África. (N. do T.)

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gritos, o grito de dor de uma lebre, que é terrível, e o grito de um homem em agonia, que é ainda pior.

— Por Deus! Acertei um batedor! — exclamou Sir Geoffrey. — Que espécie de idiota se colocaria na frente das armas? Parem de atirar aí! — ordenou o mais alto que pôde. — Um homem está ferido.

O líder dos guarda-caças veio correndo com uma vara na mão.

— Onde, meu senhor? Onde está ele? — gritou. Ao mesmo tempo, os tiros haviam cessado por toda a linha.

— Aqui — respondeu Sir Geoffrey com raiva, correndo na di reção do bosque. — Por que diabos você não mantém seus homens na retaguarda? Acabou com a minha caçada pelo resto do dia.

Dorian observava-os enquanto eles mergulhavam no bosque de amieiros, afastando os galhos mais frágeis, agitados pelo vento. Em alguns instantes emergiram de volta arrastando atrás de si um corpo para a luz do sol. Ele virou-se horrorizado. Teve a impressão de que a desgraça o acompanhava por onde quer que fosse. Ouviu Sir Geoffrey perguntar se o homem estava realmente morto e a resposta afirmativa do guarda-caças. Subitamente, o bosque pa recia ter ganhado vida, ficando repleto de rostos. Ouviu o pisotear de uma multidão de pés e o zumbido baixo de vozes. Um imenso faisão de peito acobreado veio voando entre os galhos acima dele.

Depois de alguns instantes — que lhe pareceram, dado seu estado transtornado, como horas infindáveis de dor —, ele sentiu uma mão pousada em seu ombro. Tomou um susto e olhou ao redor.

— Dorian — disse Lorde Henry —, é melhor que eu lhes diga que a caçada será interrompida pelo resto do dia. Não seria apropriado continuar.

— Gostaria que fosse interrompida para sempre, Harry — respondeu, com amargor. — A coisa toda é hedionda e cruel. O homem está...?

Ele não pôde terminar a frase.

274 O RETRATO DE DORIAN GRAY

— Receio que sim — retrucou Lorde Henry. — Recebeu todo o impacto do tiro no peito. Deve ter morrido quase que instanta neamente. Venha; vamos para casa.

Caminharam lado a lado sem falar nada, na direção da alameda, por quase cinquenta metros. Então Dorian olhou para Lorde Henry e disse, com um longo suspiro:

— Isso é um mau presságio, Harry, um péssimo presságio.

— O quê? — perguntou Lorde Henry. — Ah, esse acidente, presumo. Meu querido amigo, não há o que fazer. Foi culpa do próprio homem. Por que ele se meteu na frente das armas? Além disso, não temos nada a ver com isso. É bastante embaraçoso para Geoffrey, claro. Não é de bom tom alvejar batedores. As pessoas vão pensar que se tem uma péssima pontaria. E não é o caso de Geoffrey; ele é um excelente atirador. Mas é inútil falar sobre esse assunto.

Dorian balançou a cabeça.

— É um mau presságio, Harry. Sinto como se algo horrível fosse acontecer com algum de nós. Comigo, talvez — acrescentou, passando a mão sobre os olhos, com um gesto de dor.

O homem mais velho riu. — A única coisa horrível no mundo é o tédio, Dorian. Esse é o único pecado para o qual não há perdão. Mas não é muito provável que soframos disso, a não ser que esses su jeitos continuem tagarelando sobre isso no jantar. Direi-lhes que tal assunto deve tornar-se tabu. Quanto aos presságios, eles não exis tem. O destino não nos envia arautos. Ele é sábio demais, ou cruel demais, para tanto. Além disso, que diabos poderia acontecer com você, Dorian? Você tem tudo que um homem pode desejar no mundo. Não existe ninguém que não adoraria trocar de lugar com você.

— Não há ninguém com quem eu não trocaria de lugar, Harry. Não ria assim. Estou lhe dizendo a verdade. O camponês miserável que acabou de morrer está melhor do que eu. Não tenho medo da morte. É a aproximação da morte que me apavora. Suas asas mons truosas parecem girar no pesado ar ao meu redor. Meu Deus! Você

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não vê um homem movendo-se atrás das árvores ali, à espreita, esperando por mim?

Lorde Henry olhou na direção indicada pela mão enluva da e trêmula.

— Sim — disse ele, sorrindo —, vejo o jardineiro esperando por você. Suponho que ele queira perguntar-lhe que flores gostaria de ter na mesa esta noite. Como você está ridiculamente nervoso, meu querido amigo! Você deve ir ver meu médico quando voltarmos para a cidade.

Dorian suspirou aliviado ao ver o jardineiro aproximando-se. O homem tocou o chapéu, olhou por um momento para Lorde Henry com certa hesitação e, então, revelou uma carta, entregando-a a seu patrão.

— A senhora pediu-me para esperar por uma resposta — ele murmurou.

Dorian colocou a carta no bolso.

— Diga à senhora que já vou entrar — disse friamente. O homem virou-se e avançou com rapidez na direção da casa.

— Como as mulheres apreciam fazer coisas perigosas! — riu Lorde Henry. — É uma de suas qualidades que mais admiro. Uma mulher flertará com qualquer pessoa no mundo, contanto que outros estejam olhando.

— Como você aprecia dizer coisas perigosas, Harry! Na situa ção presente, você se encontra bastante enganado. Gosto muito da duquesa, mas não a amo.

— E a duquesa o ama muito, mas não gosta tanto de você, o que faz de vocês uma combinação perfeita.

— O que você está dizendo é uma infâmia, Harry e, nesse caso, não há nenhum motivo para infâmia.

— A base de toda infâmia é uma certeza imoral — disse Lorde Henry acendendo um cigarro.

276 O RETRATO DE DORIAN GRAY

— Você sacrificaria qualquer um, Harry, em prol de um epigrama.

— O mundo encaminha-se para o sacrifício por conta própria — foi a resposta.

— Gostaria de poder amar — exclamou Dorian Gray com uma profunda nota de compaixão em sua voz. — Mas pareço ter perdido a paixão e esquecido do desejo. Estou concentrado demais em mim mesmo. Minha própria personalidade tornou-se um fardo para mim. Quero fugir, ir embora, esquecer. Foi tolice minha ter vindo para cá. Acredito que deva enviar um telegrama para Harvey pedindo-lhe que apronte o iate. Em um iate, estamos a salvo.

— A salvo de que, Dorian? Você está com problemas. Por que não me diz do que se trata? Sabe que eu o ajudaria.

— Não posso lhe dizer, Harry — ele respondeu com tristeza. — E ouso afirmar que é apenas minha imaginação. Esse lamentável acidente perturbou-me. Tenho um terrível pressentimento de que algo do tipo pode acontecer comigo.

— Que tolice!

— Espero que seja, mas não consigo evitar essa sensação. Ah, aí está a duquesa, parecendo Ártemis 151 em um vestido feito sob medida. Pode ver que já voltamos, duquesa.

— Fiquei sabendo de tudo, sr. Gray — ela respondeu. — O pobre Geoffrey está terrivelmente aborrecido. E parece que você lhe pedira para não atirar na lebre. Que curioso!

— Sim, foi muito curioso. Não sei o que me levou a fazê-lo. Al gum capricho, suponho. Ela parecia a mais adorável das criaturinhas vivas. Mas sinto que tenham lhe contado sobre o homem. É um assunto tão horrível.

151 Deusa da caça, da Lua, da castidade, do parto e dos animais selvagens. É uma das mais veneradas divindades da mitologia grega e, na mitologia romana, é chamada de Diana. (N. do T.)

OSCAR WILDE 277

— É um assunto desagradável — interrompeu Lorde Henry. — Mas não tem absolutamente nenhum valor psicológico. Agora, se Geoffrey tivesse atirado de propósito, como seria interessante! Gostaria de conhecer alguém que tivesse cometido um assassinato de verdade.

— Que horrendo de sua parte, Harry! — exclamou a duquesa.

— Não é, sr. Gray? Harry, o sr. Gray está adoentado novamente. Está a ponto de desmaiar.

Dorian endireitou-se com esforço e sorriu.

— Não é nada, duquesa — murmurou ele; — meus nervos estão terrivelmente descontrolados. Apenas isso. Receio ter caminhado até muito longe esta manhã. Não ouvi o que Harry disse. Ele foi muito mau? Deve me dizer alguma outra hora. Acho que devo ir deitar-me. A senhora vai perdoar-me, não vai?

Haviam chegado ao grande lance de escadas que levava da estufa ao terraço. Quando a porta de vidro fechou-se atrás de Dorian, Lorde Henry virou-se e olhou para a duquesa com seus olhos sonolentos.

— Está muito apaixonada por ele? — ele perguntou.

Ela ficou alguns instantes sem responder, apenas admiran do a paisagem.

— Gostaria de saber — disse, afinal.

Ele balançou a cabeça.

— A certeza pode ser fatal. É a incerteza que nos encanta. Uma névoa torna tudo maravilhoso.

— Mas pode-se perder o caminho.

— Todos os caminhos levam ao mesmo ponto, minha que rida Gladys.

— E que ponto é esse?

— A desilusão.

— Foi como iniciei minha vida — ela suspirou.

— Ela veio-lhe com um título.

278 O RETRATO DE DORIAN GRAY

— Estou cansada de folhas de morango152 .

— Elas tornam-se sua identidade.

— Apenas em público.

— Você sentiria falta delas — disse Lorde Henry.

— Não vou desfazer-me das pétalas.

— Monmouth tem ouvidos.

— Os velhos estão fartos de ouvir.

— Ele nunca sentiu ciúmes?

— Quem dera tivesse.

Ele olhou ao redor como se procurasse algo.

— O que está procurando? — ela perguntou.

— A ponta do seu florete 153 — respondeu ele. — Você a dei xou cair.

Ela riu.

— Mas ainda tenho a máscara.

— E ela torna seus olhos ainda mais encantadores — foi sua resposta.

Ela riu novamente. Seus dentes à mostra pareciam sementes brancas em um fruto escarlate.

No andar de cima, em seu próprio quarto, Dorian Gray esta va deitado em um sofá, com cada fibra de seu corpo formigando de terror. Subitamente, a vida tinha se tornado um fardo muito horrível de suportar. A pavorosa morte do batedor infeliz, abatido em um matagal como um animal selvagem, parecia-lhe prever sua própria morte. Ele quase desmaiou ao ouvir o que Lorde Henry dissera com um tom casual e cínico de chacota.

152 Símbolo do ducado e, por extensão, de um duque ou duquesa. (N. do T.)

153 Uma das três armas utilizadas na esgrima. (N. do T.)

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Às cinco horas, ele tocou a sineta chamando o criado e deu-lhe ordens para arrumar sua bagagem para o expresso noturno rumo à cidade e aprontar a carruagem para partir às oito e meia. Estava determinado a não dormir nem mais uma noite em Selby Royal. Era um lugar de mau agouro. A morte caminhara por ali em plena luz do sol. A grama da floresta fora manchada com sangue.

Então escreveu um bilhete para Lorde Henry dizendo-lhe que iria para a cidade consultar seu médico e pedindo-lhe que entre tivesse seus convidados na sua ausência. Enquanto o colocava no envelope, alguém bateu à porta e seu criado informou-lhe que o líder dos guarda-caças queria vê-lo. Ele franziu a testa e mordeu o lábio.

— Mande-o entrar — murmurou ele, após alguns instantes de hesitação.

Assim que o homem entrou, Dorian tirou seu talão de cheques de uma gaveta e estendeu-o à sua frente.

— Suponho que tenha vindo para tratar do infeliz acidente desta manhã, Thornton — disse, tomando uma caneta.

— Sim, senhor — respondeu o guarda-caças.

— O pobre rapaz era casado? Havia pessoas que dependiam dele? — perguntou Dorian, parecendo entediado. — Se houver, não gostaria que fossem abandonados à própria sorte e irei enviar-lhes qualquer quantia em dinheiro que você achar necessária.

— Não sabemos quem ele é, meu senhor. Por isso tomei a liberdade de vir falar com o senhor a esse respeito.

— Não sabem quem ele é? — disse Dorian, com indiferença. — O que quer dizer? Ele não é um de seus homens?

— Não, senhor. Nunca o vimos antes. Parece um marinhei ro, senhor.

A caneta caiu da mão de Dorian Gray e ele sentiu como se o coração houvesse parado subitamente de bater.

280 O RETRATO DE DORIAN GRAY

— Um marinheiro? — ele exclamou. — Você disse um marinheiro?

— Sim, senhor. Ele parece ter sido alguma espécie de mari nheiro; tem tatuagens nos dois braços e todo esse tipo de coisas.

— Foi encontrada alguma coisa com ele? — disse Dorian, inclinando-se para a frente e olhando para o homem com olhos perplexos. — Algo que possa revelar seu nome?

— Algum dinheiro, meu senhor, não muito, e um revólver de seis tiros. Não havia nenhuma identificação de nenhuma espécie. Um homem com aparência decente, mas rude, meu senhor. Acre ditamos ser algum tipo de marinheiro.

Dorian pôs-se de pé imediatamente. Uma terrível esperança tremulou à sua frente. Agarrou-se nela loucamente. — Onde está o corpo? — exclamou ele. — Rápido! Devo vê-lo imediatamente.

— Está em um estábulo vazio na sede da fazenda, meu senhor. O povo não gosta de ter esse tipo de coisa em suas casas. Dizem que um corpo traz azar.

— Na sede da fazenda! Vá para lá imediatamente e o encontrarei em seguida. Diga a um dos cavalariços para trazer meu cavalo. Não. Não há necessidade. Vou eu mesmo para o estábulo. Ganhará tempo.

Em menos de quinze minutos, Dorian Gray estava galopando pela longa alameda tão rápido quanto podia. As árvores pareciam passar por ele como uma procissão fantasmagórica e sombras furio sas atiravam-se em seu caminho. Em certo momento, a égua virou bruscamente em direção a uma porteira branca, quase arremessan do-o ao chão. Ele a chicoteou no pescoço com seu açoite. Ela partiu o ar sombrio como uma flecha. As pedras voavam de seus cascos.

Por fim, chegou à sede. Dois homens estavam sem fazer nada no pátio. Ele saltou da sela e jogou as rédeas para um deles. No estábulo mais distante, uma luz tremia. Algo parecia dizer-lhe que o corpo estava ali, e ele correu para a porta, colocando a mão sobre o trinco.

OSCAR WILDE 281

Parou por um instante, sentindo que estava a ponto de desco brir algo que iria refazer ou arruinar sua vida. Então, abriu a porta com um empurrão e entrou.

Sobre uma pilha de sacos no canto oposto estava o cadáver de um homem vestido com uma camisa ordinária e calças azuis. Um lenço manchado fora colocado sobre o rosto. Uma vela grosseira, presa a uma garrafa, crepitava ao seu lado.

Dorian Gray estremeceu. Sentiu que não poderia ser a sua mão a tirar o lenço e chamou um dos empregados da fazenda.

— Tire essa coisa do rosto dele. Quero vê-lo — disse apoiando-se no batente da porta.

Quando o empregado afastou o lenço, ele deu um passo à frente. Um grito de alegria irrompeu de seus lábios. O homem que fora atingido no bosque era James Vane.

Ele ficou ali por alguns minutos olhando para o corpo inerte. Ao cavalgar de volta à casa, seus olhos encheram-se de lágrimas, pois sabia que estava seguro.

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CAPÍTULO 19

Não adianta me dizer que você se tornará bom — excla mou Lorde Henry, mergulhando seus dedos brancos em uma tigela de cobre avermelhado cheia de água de rosas. — Você é praticamente perfeito. Rogo -lhe, não mude.

Dorian Gray balançou a cabeça.

— Não, Harry, fiz coisas terríveis demais na minha vida. Não vou mais fazê-las. Comecei minhas boas ações ontem mesmo.

— Onde esteve ontem?

— No interior, Harry. Fiquei hospedado em uma pequena pousada, sozinho.

— Meu caro rapaz — disse Lorde Henry, sorrindo —, qualquer um pode ser bom no interior. Não há tenta ções por lá. Essa é a razão pela qual as pessoas que vivem fora da cidade são completamente primitivas. A civilização não é, de forma nenhuma, algo fácil de atingir. Há apenas duas formas pelas quais os homens podem alcançá-la. Uma delas é sendo culto, a outra, sendo corrupto. As pessoas do interior não têm a oportunidade de ser nem um nem outro, então ficam estagnadas.

— Cultura e corrupção — repetiu Dorian. — Conheço um pouco de ambas. Parece-me terrível que possam ser encontradas juntas. Pois eu tenho um novo ideal, Harry. Vou mudar. Acredito já ter mudado.

— Você ainda não me contou qual foi sua boa ação. Ou você disse que havia feito mais de uma? — perguntou seu companheiro, enquanto entornava em seu prato uma pequena pirâmide car mesim de morangos com sementes e, com uma colher perfurada em forma de concha, espalhava açúcar refinado sobre eles.

OSCAR WILDE 285

— Posso contar-lhe, Harry. Não é uma história que eu poderia contar a mais ninguém. Poupei alguém. Parece presunçoso, mas você entende o que quero dizer. Ela era muito bonita, muitíssimo parecida com Sibyl Vane. Acredito que foi o que primeiro me atraiu nela. Você se lembra de Sibyl, não lembra? Parece que foi há tanto tempo! Bom, Hetty não era da nossa classe, claro. Era apenas uma garota em uma aldeia. Mas eu a amei de verdade. Tenho quase cer teza de que a amei. Durante todo esse maravilhoso mês de maio que estamos tendo, costumava ir vê-la duas ou três vezes por semana. Ontem, ela me encontrou em um pequeno pomar. As flores da macieira caíam sem parar em seus cabelos, e ela ria. Deveríamos ter fugido juntos ao amanhecer. Subitamente, decidi deixá-la tão graciosa quanto a encontrara.

— Tenho de acreditar que o ineditismo da emoção deve ter-lhe dado uma sensação de verdadeiro prazer, Dorian — interrompeu Lorde Henry. — Mas posso terminar seu idílio no seu lugar. Você deu-lhe bons conselhos e partiu seu coração. Foi esse o início de seu aperfeiçoamento.

— Harry, você é horrível! Você não deve dizer essas coisas terríveis. O coração de Hetty não está partido. Claro, ela chorou e tudo o mais. Mas nenhuma desgraça recaiu sobre ela. Ela pode viver, tal qual Perdita, no seu jardim de hortelãs e calêndulas.

— E chorar pelo infiel Florizel 154 — disse Lorde Henry, rin do, enquanto recostava-se na cadeira. — Meu querido Dorian, você tem um temperamento dos mais curiosamente infantis. Você acredita que, agora, essa garota se contentará com qualquer um de sua própria posição? Imagino que algum dia ela se casará com um carroceiro grosseirão ou um lavrador sorridente. Bom, o simples fato de tê-lo conhecido e amado vai ensiná-la a desprezar o marido,

154 Perdita e Florizel são personagens da peça Conto do Inverno, de William Shakespeare. Ambos formam um par amoroso. (N. do T.)

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e ela será miserável. Do ponto de vista moral, não posso dizer que tenho muita consideração por sua grande renúncia. Mesmo sendo apenas o início, é inferior. Além disso, como você sabe que Hetty não está flutuando neste exato momento em alguma represa sob a luz das estrelas, com lindos nenúfares ao redor, como Ofélia?

— Não posso suportar isso, Harry! Você caçoa de tudo e depois insinua as tragédias mais graves. Agora lamento ter lhe contado tudo. Não me importo com o que você me diz. Sei que fui correto ao agir como agi. Pobre Hetty! Ao cavalgar pela fazenda esta ma nhã, vi seu rosto pálido à janela, como um ramo de jasmins. Não vamos mais falar sobre isso, e não tente me convencer de que a primeira boa ação que fiz em anos, a primeira pequena abnegação que já cometi é, na verdade, um tipo de pecado. Quero ser melhor. Serei melhor. Diga-me algo sobre você. O que está acontecendo na cidade? Não vou ao clube há dias.

— As pessoas ainda estão falando do desaparecimento do pobre Basil.

— Pensei que já teriam se cansado do assunto a essa altura — disse Dorian servindo-se de um pouco de vinho e franzindo levemente a testa.

— Meu caro rapaz, eles têm falado sobre o assunto há apenas seis semanas, e o público britânico não está apto ao esforço men tal de ter mais de um tópico a cada três meses. No entanto, eles têm estado com muita sorte ultimamente. Tiveram meu divórcio e o suicídio de Alan Campbell. Agora, conseguiram o misterioso desaparecimento de um artista. A Scotland Yard ainda insiste que o homem de sobretudo cinza que partiu para Paris no trem da meia-noite no dia 9 de novembro era o pobre Basil, e a polícia francesa declara que Basil nunca sequer chegou a Paris. Imagino que dentro de quinze dias seremos informados de que ele foi visto em São Francisco. É algo curioso, mas todo mundo que some parece ter

OSCAR WILDE 287

sido avistado em São Francisco. Deve ser uma cidade encantadora e possuir todas as atrações do outro mundo.

— O que você acha que aconteceu com Basil? — perguntou Dorian, segurando seu Borgonha155 contra a luz e imaginando como ele podia discutir o assunto com tanta calma.

— Não tenho a mínima ideia. Se Basil decidiu esconder-se, não é da minha conta. Se ele está morto, não quero pensar nisso. A morte é a única coisa que me aterroriza. Eu a odeio.

— Por quê? — disse o homem mais jovem, com um ar cansado.

— Porque — disse Lorde Henry, passando a treliça dourada de uma vinaigrette 156 aberta sob o nariz — hoje em dia pode-se sobreviver a tudo, exceto à morte. A morte e a vulgaridade são os dois únicos fatos do século XIX que não podemos justificar. Vamos tomar nosso café na sala de música, Dorian. Você deve tocar Chopin para mim. O homem com quem minha esposa fugiu tocava Chopin primorosamente. Pobre Victoria! Gostava muito dela. A casa é bastante solitária sem ela. Claro, a vida de casado é apenas um hábito, um mau hábito. Mas lamentamos a perda até mesmo de nossos piores hábitos. Talvez sejam os que mais nos fazem falta. Eles são uma parte tão essencial de nossa personalidade. Dorian não disse nada e levantou-se da mesa, passou à sala ao lado, sentou-se ao piano e deixou seus dedos perderem-se pelo marfim branco e preto das teclas. Depois que trouxeram o café ele parou e, olhando para Lorde Henry, disse:

— Harry, já lhe ocorreu que Basil pode ter sido assassinado? Lorde Henry bocejou.

— Basil era bastante popular e sempre usava um relógio

155 Vinho tinto da região francesa de mesmo nome. (N. do T.)

156 As vinaigrettes eram pequenas caixas contendo aromatizantes tônicos (muitas vezes rapé e até mesmo opiáceos), muito em voga na Europa do século XIX. (N. do T.)

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Waterbury 157. Por que ele seria assassinado? Ele não era inteligente o bastante para ter inimigos. Claro, tinha um talento maravilhoso para a pintura. Mas um homem pode pintar como Velásquez e ainda assim ser tão enfadonho quanto possível. E Basil era realmente bastante enfadonho. Só me interessei por ele uma única vez, anos atrás, quando me disse que tinha uma adoração feroz por você e que você era a maior inspiração de sua arte.

— Eu gostava muito de Basil — disse Dorian, com uma nota de tristeza em sua voz. — Mas as pessoas não estão dizendo que ele foi assassinado?

— Ah, alguns dos jornais, sim. Mas me parece absolutamente improvável. Sei que há lugares horrorosos em Paris, mas Basil não era o tipo de homem que os frequentava. Ele não tinha curiosidade. Era seu principal defeito.

— O que você diria, Harry, se eu lhe dissesse que assassinei Basil? — perguntou o homem mais novo. Observou-o atentamente depois do que falara.

— Eu diria, meu querido amigo, que você está representando um personagem que não combina com você. Todo crime é vulgar, assim como toda vulgaridade é um crime. Não faz parte da sua per sonalidade, Dorian, cometer um crime. Sinto se estou ferindo sua vaidade ao dizê-lo, mas asseguro-lhe que é verdade. O crime pertence exclusivamente às classes inferiores. Não os culpo nem um pouco. Imagino que o crime representa para eles o que a arte representa para nós, apenas um método de obter sensações extraordinárias.

— Um método de obter sensações? Você acredita, então, que um homem que já matou uma vez poderia, provavelmente, cometer o mesmo crime de novo? Não me diga isso.

157 Empresa relojoeira dos Estados Unidos famosa por fabricar peças baratas e populares. Depois de declarar falência em 1944, foi reformulada e mudou seu nome para Timex, que existe até hoje. (N. do T.)

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— Ah, tudo acaba se tornando um prazer se o fizermos com muita frequência — exclamou Lorde Henry, rindo. — Esse é um dos segredos mais importantes da vida. Deveria imaginar, no entanto, que um assassinato é sempre um erro. Nunca deveríamos fazer nada de que não podemos falar depois do jantar. Mas deixemos o pobre Basil em paz. Gostaria de poder acreditar que ele teve um fim tão romântico quanto o que você sugere, mas não consigo. Ouso dizer que ele caiu de um ônibus no Sena e que o condutor abafou o escândalo. Sim, imagino que tenha sido esse seu fim. Consigo vê-lo deitado de costas sob aquelas águas verdes e opacas, com as pesadas barcaças flutuando sobre ele e longas algas presas em seus cabelos. Quer saber, não acredito que ele teria pintado mais alguma coisa de qualidade. Nos últimos dez anos, sua pintura havia decaído bastante. Dorian soltou um suspiro, e Lorde Henry atravessou a sala e co meçou a acariciar a cabeça de um curioso calafate158 , um pássaro de plumagem cinza com crista e cauda rosadas, que se equilibrava sobre um poleiro de bambu. Quando seus dedos pontiagudos o tocaram, ele deixou a capa branca das pálpebras enrugadas cair sobre os olhos negros e cristalinos e começou a balançar-se para a frente e para trás.

— Sim — continuou ele virando-se e tirando o lenço do bolso —, sua pintura tinha decaído bastante. Parecia-me que ele perdera algo. Perdera um ideal. Quando você e ele deixaram de ser grandes amigos, ele deixou de ser um grande artista. O que separou vocês? Imagino que ele o tenha entediado. Se foi por isso, ele nunca o perdoou. É um hábito que pessoas enfadonhas têm. A propósito, o que aconteceu com aquele retrato maravilhoso que ele fez de você? Acredito que nunca mais o vi desde que ele o finalizou. Ah! Lembro de você ter me dito anos atrás que o enviara para Selby e que o perderam ou roubaram-no pelo caminho. Você nunca o recu

158 Java parrot, no original, é uma incorreção. A ave descrita pelo autor corresponde, na verdade, ao Java sparrow, pássaro indonésio. (N. do T.)

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perou? Que pena! Era realmente uma obra-prima. Lembro-me de ter desejado comprá-lo. Gostaria de tê-lo agora. Ele fazia parte do melhor período de Basil. Desde então, seu trabalho tornou-se aquela curiosa mistura de pintura ruim e boas intenções que sempre dá a um homem o direito de ser chamado de típico artista britânico. Você chegou a pôr um anúncio para encontrá-lo? Deveria tê-lo feito.

— Não me lembro — disse Dorian. — Suponho que sim. Mas nunca gostei realmente do retrato. Arrependo-me de ter posado para ele. Sua mera recordação me é odiosa. Por que você o mencio nou? Ele costumava evocar-me certas falas curiosas de uma peça — Hamlet, acho. — Como eram mesmo?

“Como a pintura de uma dor, Um rosto sem coração.” 159

Sim, eram exatamente assim.

Lorde Henry riu.

— Se um homem trata a vida artisticamente, seu cérebro está no coração — respondeu ele, afundando-se em uma poltrona.

Dorian Gray balançou a cabeça e tocou algumas notas baixas no piano.

— “Como a pintura de uma dor” — repetiu ele —, “um rosto sem coração.”

O homem mais velho recostou-se e olhou para ele com os olhos semicerrados.

— A propósito, Dorian — disse depois de uma pausa —, “que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder” — como é mesmo a citação? — “a sua própria alma 160” ?

159 Cena 7 do Ato 4 de Hamlet. No original, “Like the painting of a sorrow, / A face without a heart.” (N. do T.)

160 Trecho bíblico do livro de Marcos, capítulo 8, versículo 36. (N. do T.)

OSCAR WILDE 291

A música trepidou e Dorian Gray, assustando-se, olhou para o amigo.

— Por que me pergunta isso, Harry?

— Meu caro amigo — disse Lorde Henry erguendo as sobran celhas com um ar de surpresa —, perguntei-lhe porque pensei que poderia me dar uma resposta. Apenas isso. Estava atravessando o parque domingo passado e, próximo ao Marble Arch, havia uma pequena multidão de pessoas de aparência desleixada ouvindo um ordinário pregador de rua. Quando passei por ele, ouvi-o gritando essa pergunta para o público. Pareceu-me bastante dramático. Londres é muito rica em curiosas aparições desse tipo. Um do mingo chuvoso, um cristão inculto em uma capa de chuva, um círculo de rostos pálidos e doentios sob um teto desalinhado de guarda-chuvas pingando e uma maravilhosa frase lançada ao ar por lábios histéricos e estridentes — à sua maneira, algo muito bom, uma insinuação e tanto. Pensei em dizer ao profeta que a arte tem alma, mas o homem não. Receio, no entanto, que ele não me compreenderia.

— Não, Harry. A alma é uma terrível realidade. Pode ser com prada, vendida e trocada por itens de menor valor. Pode ser envene nada ou aperfeiçoada. Há uma alma em cada um de nós. Sei disso.

— Tem certeza disso, Dorian?

— Absoluta.

— Ah, então deve ser uma ilusão. As coisas das quais se tem certeza absoluta nunca são verdade. Essa é a fatalidade da fé e a lição do romance. Como você está sério! Não seja tão sisudo. O que você ou eu temos a ver com as superstições de nossa época? Não, nós desistimos de nossa crença na alma. Toque alguma coisa para mim. Toque um noturno, Dorian, e, enquanto toca, diga-me em voz baixa como você manteve sua juventude. Você deve ter algum segredo. Sou apenas dez anos mais velho do que você e estou enrugado, corroído e amarelado. Você está realmente maravilhoso, Dorian. Você nunca

292 O RETRATO DE DORIAN GRAY

pareceu mais encantador do que hoje à noite. Lembra-me do dia em que o vi pela primeira vez. Você era bastante atrevido, muito tímido e absolutamente extraordinário. Você mudou, claro, mas não na aparência. Gostaria que me contasse seu segredo. Faria qualquer coisa no mundo para retomar minha juventude, exceto fazer exer cícios, acordar cedo ou tornar-me respeitável. Juventude! Não há nada como ela. É ridículo falar da ignorância da juventude. Agora, as únicas pessoas cujas opiniões ouço com o mínimo de consideração são pessoas muito mais jovens do que eu. Elas parecem tão à frente de mim. A vida revelou-lhes sua derradeira maravilha. Quanto aos mais velhos, sempre contradigo os mais velhos. Faço-o por convicção. Se você perguntar-lhe sua opinião sobre algo que aconteceu ontem, eles solenemente lhe darão as opiniões vigentes em 1820, quando as pessoas usavam golas altas, acreditavam em tudo e não sabiam absolutamente nada. Como é adorável essa peça que está tocando! Eu me pergunto se Chopin a compôs em Maiorca, com o mar cho rando ao redor da propriedade e a névoa salina espalhando-se pelas vidraças. É maravilhosamente romântica. Que benção ainda nos restar uma arte que não é imitativa! Não pare. Quero música esta noite. Parece-me que você é o jovem Apolo e que eu sou Marsias 161 , a ouvir-lhe. Tenho minhas tristezas, Dorian, que até mesmo você desconhece. A tragédia da velhice não é sermos velhos, mas que outros sejam jovens. Às vezes fico surpreso com minha própria sinceridade. Ah, Dorian, como você está feliz! Que vida maravilhosa você teve! Você sorveu tudo profundamente. Esmagou as uvas no seu palato. Nada lhe foi ocultado. E, para você, tudo tem sido meramente o som de uma música. Nada o arruinou. Você ainda é o mesmo.

— Não sou o mesmo, Harry.

161 Na mitologia grega, Marsias é um sátiro que aparece como figura central em duas histórias que envolvem música. Em uma delas, referida no trecho acima, ele passa a se considerar um músico tão perfeito que desafia Apolo para uma competição, sendo que o vencedor teria o direito de punir o perdedor. Apolo vence, e Marsias é amarrado a uma árvore e esfolado vivo. Do seu sangue, nasce o Rio Marsias, na atual Turquia. (N. do T.)

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— Sim, você é o mesmo. Pergunto-me como será o resto da sua vida. Não a estrague com renúncias. No momento, você é um espécime perfeito. Não se torne incompleto. Agora você é impe cável. Não precisa balançar a cabeça, você sabe que é. Além disso, Dorian, não se engane. A vida não é comandada por vontade ou intenção. A vida é apenas uma questão de nervos, fibras e células lentamente aprimoradas, nas quais o pensamento se esconde e a paixão alimenta seus sonhos. Você pode imaginar-se seguro e achar-se forte. Mas um tom de cor acidental em um quarto ou no céu da manhã, um perfume específico que você certa vez amou e que traz consigo memórias sutis, uma linha de um poema esquecido que você encontra novamente, o ritmo de uma peça musical que você não toca mais — estou lhe dizendo, Dorian, é de coisas como essas que nossas vidas dependem. Browning 162 escreve sobre isso em algum lugar; mas nossos sentidos vão descrevê-las por nós. Há momentos em que o perfume do lilás branco passa subitamente por mim e sou obrigado a reviver outra vez o mês mais estranho da minha vida. Gostaria de poder trocar de lugar com você, Dorian. O mundo condenou a nós dois, mas sempre o idolatrou. Ele sempre vai idolatrá-lo. Você é o tipo de pessoa que nossa época está buscando e que teme ter encontrado. Estou tão feliz por você nunca ter cria do nada, nunca ter esculpido uma estátua, pintado um quadro ou produzido qualquer coisa além de si mesmo! A vida tem sido sua arte. Você se dedicou à música. Seus dias são seus sonetos. Dorian levantou-se do piano e passou a mão pelos cabelos.

— Sim, a vida tem sido excelente — murmurou ele —, mas não vou ter a mesma vida, Harry. E você não deve dizer essas coisas extravagantes para mim. Você não sabe tudo a meu respeito. Acho que se soubesse até mesmo você se afastaria de mim. Você ri. Não ria.

— Por que parou de tocar, Dorian? Volte e toque o noturno mais uma vez para mim. Olhe para a lua cor de mel que paira no

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162 Robert Browning (1812-1889) foi um poeta e dramaturgo inglês. (N. do T.)

céu sombrio. Ela está à sua espera para encantá-la e, se você tocar, chegará mais perto da terra. Não vai tocar? Vamos para o clube, então. A noite tem sido encantadora e devemos terminá-la de forma encantadora. Há alguém no White’s que deseja muitíssimo conhecê-lo, o jovem Lorde Poole, o filho mais velho de Bournemouth. Ele já copiou suas gravatas e implorou-me para apresentá-lo a você. É bastante encantador e me lembra muito você.

— Espero que não — disse Dorian com o semblante triste. — Mas estou cansado hoje à noite, Harry. Não irei para o clube. São quase onze horas e quero ir para a cama cedo.

— Fique. Você nunca tocou tão bem quanto esta noite. Havia algo no seu toque que era maravilhoso. Tinha mais expressividade do que jamais ouvira antes.

— É porque me tornarei bom — respondeu ele, sorrindo — Já estou um pouco mudado.

— Para mim, você não pode mudar, Dorian — disse Lorde Henry. — Você e eu sempre seremos amigos.

— Ainda assim, você me envenenou com um livro certa vez. Não poderia perdoá-lo. Harry, prometa-me que você nunca vai emprestar aquele livro a ninguém mais. Ele é prejudicial.

— Meu querido menino, você realmente está começando a virar um moralista. Logo estará agindo como os convertidos ou os revivalistas, alertando as pessoas contra todos os pecados dos quais você se cansou. Você é encantador demais para fazê-lo. Além do mais, isso é inútil. Você e eu somos o que somos e seremos o que seremos. Quanto a ser envenenado por um livro, isso não existe. A arte não tem influência sobre as ações. Ela aniquila o desejo de agir. É extraordinariamente estéril. Os livros que o mundo chama de imorais são livros que mostram ao mundo sua própria vergonha. Apenas isso. Mas não discutamos literatura. Apareça amanhã. Vou cavalgar às onze. Poderíamos ir juntos e o levarei para almoçar com Lady Branksome depois. Ela é uma mulher encantadora e quer

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consultá-lo a respeito de algumas tapeçarias que está pensando em comprar. Tente vir. Ou almoçamos com nossa pequena duquesa? Ela tem dito que, ultimamente, nunca mais o vê. Talvez você tenha se cansado de Gladys? Achei que teria. A língua ferina dela irrita qualquer um. Bom, de qualquer forma, esteja aqui às onze.

— Preciso realmente vir, Harry?

— Certamente que sim. O parque está bastante encantador ultimamente. Acredito que não tenha havido lilases tão bonitos desde o ano em que o conheci.

— Muito bem. Estarei aqui às onze — disse Dorian. — Boa noite, Harry. — Ao chegar à porta, ele hesitou por um momento, como se tivesse algo mais a dizer. Então, suspirou e saiu.

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CAPÍTULO 20

Estava uma noite adorável, tão quente que ele jogou o casaco sobre o braço e nem sequer enrolou seu lenço de seda no pescoço. Enquanto caminhava para casa, fumando seu cigarro, dois jovens rapaze s em trajes formais passaram por ele. Ele ouviu um deles sussurrar para o outro: “Esse é Dorian Gray”. Lembrou-se de como ficava feliz quando apontavam para ele, fitavam-no ou falavam a seu respeito. Agora, estava cansado de ouvir o próprio nome. Parte do encanto da pequena aldeia para onde ia com tanta frequência ultimamente era que ninguém sabia quem ele era. Disse muitas vezes à garota a quem convencera a amá-lo que era pobre, e ela acre ditara nele. Havia lhe dito certa vez que era perverso e ela rira dele, respondendo que as pessoas perversas eram sempre muito velhas e muito feias. Que risada dera ela! — parecia um melro cantando. E como ficava bonita em seus vestidos de algodão e seus enormes chapéus! Ela não sabia de nada, mas tinha tudo que ele perdera.

Quando chegou em casa, encontrou o criado esperando-o acordado. Mandou-o para a cama e jogou-se no sofá da biblioteca, começando a refletir sobre algumas das coisas que Lorde Henry lhe dissera.

Seria mesmo verdade que nunca conseguimos mudar? Ele sentia uma nostalgia brutal da pureza imaculada de sua infân cia — sua infância rosada, como Lorde Henry uma vez a cha mara. Ele sabia que fora maculado, que enchera sua mente de corrupção e suscitara monstruosidades com seus caprichos; que tinha sido uma má influência para outros e tivera imen so prazer com isso; e, das vidas que cruzaram a sua, foram as mais belas e cheias de possibilidades que ele incentivara à ver gonha. Seria tudo irreparável? Não haveria esperanças para ele?

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Ah, em que momento monstruoso de orgulho e paixão ele suplicara para que o retrato carregasse o fardo de seus dias e ele mantivesse o esplendor imaculado da juventude eterna! Toda a sua desgraça devia-se a isso. Teria-lhe sido melhor se cada pecado de sua vida tivesse trazido consigo sua punição certa e ligeira. Havia purificação na punição. A oração do homem perante um Deus justíssimo deveria ser “feri-nos por nossas iniquidades” e não “perdoai nossos pecados”.

O espelho estranhamente entalhado com que Lorde Henry presenteara-o havia tantos anos estava sobre a mesa, e os cupidos com seus membros pálidos riam-se dele como antigamente. Ele tomou-o nas mãos, como fizera naquela noite horrorosa, quando notou pela primeira vez a mudança no quadro fatal e, com os olhos enfurecidos e turvos pelas lágrimas, olhou para seu escudo polido. Certa vez, alguém que o amava terrivelmente escrevera-lhe uma carta insana, terminando com essas palavras idólatras: “O mundo mudou porque você é feito de marfim e ouro. As curvas dos seus lábios reescrevem a história”. Tais frases voltaram à sua memória e ele repetiu-as inúmeras vezes para si mesmo. Então, abominou a própria beleza e, arremessando o espelho no chão, esmagou-o em estilhaços prateados sob seu calcanhar. Fora sua beleza que o arruinara, a beleza e a juventude pelas quais havia suplicado. Não fosse por essas duas coisas, sua vida poderia estar livre de máculas. Sua beleza fora para ele apenas uma máscara, sua juventude, mera chacota. Na melhor das hipóteses, o que era a juventude? Uma época verde e imatura, um tempo de humores superficiais e pensamentos doentios. Por que usara ele seus trajes? A juventude o arruinara.

Era melhor não pensar no passado. Nada poderia alterá-lo. Era em si e em seu futuro que ele precisava pensar. James Vane estava oculto em um túmulo sem nome no cemitério de Selby. Alan Campbell atirara em si mesmo em seu laboratório certa noite, mas não revelara o segredo que fora forçado a saber. A euforia vigente acerca do desaparecimento de Basil Hallward logo passaria. Já

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começava a diminuir. Estava perfeitamente seguro quanto ao ocorrido. Na verdade, não era a morte de Basil Hallward o que mais pesava em sua mente. Era a morte em vida de sua própria alma que o perturbava. Basil pintara o retrato que arruinou sua vida. Ele não podia perdoá-lo por isso. O retrato é que fizera tudo. Basil lhe dissera coisas insuportáveis e que, ainda assim, ele tolerara pa cientemente. O assassinato fora apenas uma loucura momentânea. Quanto a Alan Campbell, seu suicídio tinha sido sua própria obra. Ele escolhera fazê-lo. Não era de modo nenhum culpa sua.

Uma nova vida! Era disso que ele precisava. Era por isso que estava esperando. Certamente, já a tinha iniciado. Havia poupado uma criatura inocente, de qualquer forma. Nunca mais seduziria a inocência. Seria uma pessoa boa.

Ao pensar em Hetty Merton, começou a imaginar se o retrato na sala trancada havia mudado. Certamente não continuaria tão horrível quanto antes. Talvez se sua vida se tornasse pura, ele seria capaz de expelir todos os sinais das perversas paixões do rosto. Talvez as marcas do mal já teriam desaparecido. Ele iria olhar.

Tomou o lampião da mesa e subiu as escadas. Quando destran cou a porta, um sorriso de alegria cruzou seu rosto de aparência estranhamente jovem e pairou por um momento em seus lábios. Sim, ele seria bom, e a coisa horrenda que ele escondera não seria mais motivo de terror para ele. Sentia-se como se aquele peso já tivesse sido retirado de si.

Ele entrou em silêncio, trancando a porta atrás de si, como era seu costume, e retirou a tapeçaria púrpura da frente do retrato. Um grito de dor e indignação irrompeu dele. Não conseguia ver nenhuma mudança, a não ser um ar malicioso nos olhos e, na boca, a ruga curvada dos hipócritas. A coisa continuava repugnante — mais repugnante, se possível, do que antes — e o orvalho escarlate que manchava a mão parecia ainda mais brilhante, como se o sangue tivesse acabado de ser derramado. Ele, então, estremeceu. Teria

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sido apenas vaidade que o levara a praticar sua única boa ação? Ou o desejo de uma nova sensação, como Lorde Henry havia sugerido, com sua risada irônica? Ou aquela vontade de representar um papel que nos leva, às vezes, a fazer coisas melhores do que realmente somos? Ou, talvez, tudo isso? E por que aquela mancha vermelha estava maior do que nunca? Parecia ter se espalhado como uma horrorosa doença sobre os dedos enrugados. Havia sangue nos pés pintados, como se aquela coisa tivesse gotejado — sangue até mesmo na mão que não segurara a faca. Confessar? Isso significava que ele deveria confessar? Para se entregar e ser condenado à morte? Ele riu. Sentia que a ideia era monstruosa. Além disso, mesmo que confessasse, quem acreditaria nele? Não havia nenhum vestígio do homem assassinado em lugar nenhum. Tudo que lhe pertencera tinha sido destruído. Ele mesmo queimara o que se encontrava no andar de baixo. O mundo simplesmente diria que ele estava louco. Calariam-no se ele insistisse em sua história... Ainda assim, era sua obrigação confessar, sofrer a execração pública e divulgar sua redenção. Havia um Deus que convocou os homens a confessarem seus pecados tanto à terra quanto ao céu. Nada que ele fizesse o purificaria até que contasse seu pecado. Seu pecado? Ele deu de ombros. A morte de Basil Hallward parecia-lhe muito pouco. Estava pensando em Hetty Merton. Pois era um espelho injusto esse espelho da sua alma que contemplava. Vaidade? Curiosidade? Hipocrisia? Não houvera nada mais em sua renúncia além disso? Houvera algo mais. Ao menos, era assim que pensava. Mas quem poderia saber?... Não. Não houvera nada além disso. Por vaidade, ele a poupara. Por hipocrisia, usara a máscara da bondade. Por curiosidade, tentara negar a si mesmo. Reconhecia-o agora. Mas esse assassinato — ele iria persegui-lo por toda a vida? Teria de carregar o fardo do seu passado para sempre? Deveria realmente confessar? Nunca. Havia apenas uma prova contra ele. O próprio quadro — essa era a prova. Ele iria destruí-lo. Por que o mantivera por tanto tempo? Antes, sentira prazer em vê-lo mudar

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e envelhecer. Ultimamente, não sentia o mesmo prazer. Ele o man tivera acordado à noite. Quando estava fora, o medo de que outros olhos pudessem vê-lo o impregnava. Ele contaminara de melancolia suas paixões. A simples memória de sua existência arruinara muitos momentos de alegria. Tinha sido como uma consciência para ele. Sim, fora a consciência. Ele o destruiria.

Olhou em volta e viu a faca que apunhalara Basil Hallward. Ele a limpara inúmeras vezes, até que não sobrasse nenhuma mancha nela. Era brilhante e cintilava. Da mesma forma que ele matara o pintor, mataria também sua obra e tudo que ela significara. As sim, mataria o passado e, com o passado morto, ele estaria livre. Mataria essa monstruosa alma viva e, sem seus horrendos avisos, ele ficaria em paz. Agarrou a coisa e apunhalou o quadro com ela. Ouviu-se um grito e um estrondo. Fora um grito de agonia tão pavoroso que os criados, assustados, acordaram e arrastaram-se para fora de seus aposentos. Dois cavalheiros, que passavam pela praça logo abaixo, pararam e olharam para a grande casa. Continuaram caminhando até encontrarem um policial e trouxeram-no de volta. O homem tocou a campainha várias vezes, mas não houve resposta. A não ser por uma luz em uma das janelas do andar superior, a casa estava toda escura. Depois de um tempo, ele afastou-se e ficou em um alpendre vizinho, à espreita.

— De quem é essa casa, policial? — perguntou o mais velho dos cavalheiros.

— Do sr. Dorian Gray, meu senhor — respondeu o policial. Olharam um para o outro e, enquanto iam embora, sorriram com desdém. Um deles era o tio de Sir Henry Ashton. No interior da casa, na ala dos empregados, os criados, sem seus trajes completos, sussurravam entre si. A velha sra. Leaf chorava e torcia as mãos. Francis estava pálido como a morte.

Depois de cerca de quinze minutos, ele chamou o cocheiro e um dos lacaios e arrastou-se escada acima. Bateram à porta, mas não

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houve resposta. Gritaram. Tudo permanecia imóvel. Finalmente, depois de tentarem forçar a porta em vão, subiram no telhado e pularam para a varanda. As janelas cederam facilmente — os parafusos estavam velhos.

Quando entraram, encontraram pendurado na parede um esplêndido retrato de seu patrão, assim como o tinham visto pela última vez, em todo o resplendor de sua extraordinária juventude e beleza. Deitado no chão jazia um homem morto, em trajes for mais, com uma faca no coração. Estava ressequido, enrugado e tinha um rosto repulsivo. Só depois de examinarem seus anéis é que reconheceram quem era.

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O retrato de Dorian Gray

Quando ficamos felizes, somos sempre bons, mas quando somos bons nem sempre ficamos felizes.

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Caros estudantes,

A literatura é a expressão máxima das palavras e nos proporciona as mais variadas situações: da mais verossímil à mais inverossímil. Ficaríamos aqui horas apresentando as mais fantásticas criações já escritas e conversando so bre elas, e vocês, certamente, têm as suas preferidas. É na tural que seja assim, pois dessa maneira formamos nossa capacidade leitora. Confesso-lhes um segredo: por vezes, prefiro quando um(a) aluno(a) revela-me não ter gostado de um livro. E sabe por quê? Porque houve um processo de comparação em que o(a) aluno(a) buscou em suas referên cias elementos justificando o seu desagrado.

Esse universo que nos absorve e ora surpreende, ora inquieta, só existe graças às visões ímpares dos escrito res. Embora seja impossível formular conceitos precisos a respeito de tais visões, contamos com as valiosas contri buições daqueles que dedicaram uma vida produzindo ou analisando tal arte.

O que encanta dentro deste universo é que tudo é per mitido em suas páginas. Nesse ambiente sem amarras sur

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gem os clássicos, obras que ultrapassam seu tempo e mar cam um período na história. E o que mais chama a atenção, às vezes, é que a beleza não está na trama, mas na forma da narrativa – separando assim os escritores dos meros mor tais (uma elegia); se pudéssemos resumir tudo isso num simples ditado: Uma ideia modesta na mão de um grande escritor torna-se uma grande ideia; já uma grande ideia na mão de um escritor medíocre torna-se uma péssima ideia.

Um artista busca, na sua manifestação artística, o ponto máximo da beleza e perfeição. O pintor, seu maior quadro; o músico, a sua melhor composição; o escritor, a sua maior obra literária. Todos estão unidos indiretamente por uma paixão pela beleza. E quando essa paixão extrapola-se e as ideias de sentido e significado resumem-se em “o belo pelo belo”, a beleza basta! Nada além dela. Surgem clássicos como O retrato de Dorian Gray e figuras como Oscar Wilde.

Como é possível uma obra atravessar um século ape nas preocupada com o belo, o superficial, os disfarces? Não seria um equívoco que a tornaria fadada apenas ao contex to do seu tempo? Pode ser que sim, mas, tratando-se de

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O retrato de Dorian Gray (1890), a beleza ao escrever sobre a própria beleza – numa espécie de versão narcisista moderna sobre um personagem que se apaixona pela pintura de seu próprio retrato, satiriza o amor romântico e até mata pelo belo – escancara todo o poder de persuasão e domínio que as palavras podem criar através da literatura: a arte da palavra.

Qual caminho deve traçar quem vê em seu próprio retrato uma beleza ímpar, que sobrepõe às demais, dando-lhe a condição de encantamento?

O que leva ao amor ou simplesmente a ignorá-lo e dei xar se levar pelos prazeres da vida? Quais seriam as escolhas? Dorian Gray fez as escolhas dele. Será que são as mesmas que você faria?

O romance – gênero literário desta obra – por sua extensão maior se comparado com contos ou novelas, permite que se jam exploradas narrativas amplas, com possibilidade de tramas complexas e desenvolvimento profundo dos personagens. O narrador não se concentra apenas na narrativa principal, aque la que é vivida pelo protagonista, mas também são criadas nar

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rativas secundárias, que possibilitam um conhecimento mais íntimo e amplo dos demais personagens, que, em alguns mo mentos, dividem o protagonismo com o personagem principal. Assim, quando comparado com o conto e a novela, o romance revela sua principal característica: destacar do modo que o nar rador acha necessário os personagens e suas aparições.

Os narradores também têm um papel fundamental: nes ta obra, por exemplo, a terceira pessoa onisciente permite ao leitor saber tudo que os personagens pensam e sentem, além de transitar pelo leque de lugares que a narrativa aborda. Por isso, entender conceitos básicos sobre o gênero literário ro mance é fundamental para assimilar o teor de uma obra lite rária em toda sua extensão.

Oscar Fingal O’Flahertie Wills Wilde é um dos artis tas que mais contrariaram a visão dos críticos que defendem a não comparação entre a obra e a vida de um autor. Wilde foi diferente; fez questão de deixar transparecer e incentivar essa mistura: vida e obra. Suas mais variadas facetas, sua forma de ver o mundo e os traços de alguém a frente de seu tempo sempre foram muito presentes em sua arte.

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O escritor, poeta e dramaturgo nasceu em Dublin, em 16 de outubro de 1854, quando a atual República da Irlan da ainda pertencia ao Reino Unido; foi o segundo filho de uma família de três irmãos. Viveu boa parte da sua vida em Londres e passou seus últimos anos de vida em Paris, na França, onde está enterrado.

Pertenceu a uma família abastada e teve uma educação privilegiada, que lhe proporcionou estudar em grandes ins tituições, como a Universidade de Oxford, na Inglaterra. Co lecionou muitas polêmicas e situações interessantes; assim, antes mesmo de publicar O retrato de Dorian Gray, já era con siderado uma personalidade influente no meio das artes, o que lhe rendeu várias palestras nos Estados Unidos no final do século XIX. Mas, no auge de sua fama, levando uma vida “atípica” aos olhos da sociedade vitoriana inglesa da época, envolveu-se em um caso de amor com o jovem Alfred Dou glas, também conhecido como Bosie, de caráter problemáti co, filho do Marquês de Queensberry, John Douglas.

O relacionamento nunca foi aceito pelo pai do jovem, que acusou Wilde de sodomia, o que causou um grande

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escândalo sexual na época. Ambos foram a julgamento, e Wilde desafiou o marquês a provar sua acusação, confian te em sua vitória. Entretanto, com a ajuda de detetives, a acusação foi comprovada, e o escritor foi condenado a dois anos de trabalhos forçados.

Após cumprir a pena, sua vida entra numa verdadeira derrocada. Muda-se para Paris, onde tem um final de vida simples, e destina-se a publicar obras de questões filosófi cas – além de evidenciar questões sobre a homossexuali dade, que define como a forma mais perfeita de afeição e amor. Morre de meningite no dia 30 de novembro de 1900.

Sua obra pertenceu ao movimento que defendia a arte pela arte, ou simplesmente que a arte é superior à natureza (vida) e que a natureza copia a arte – a sua própria cara. Wilde acreditava que só a beleza seria capaz de derrotar os horrores da sociedade; mote que o fez trazer a sua própria marca ao esteticismo.

Uma entre tantas questões transversais é: Como um autor pode representar e trazer tal concepção para dentro de uma obra literária? E ainda fazer dela um clássico?

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Assim como Dorian Gray, o narrador onisciente em terceira pessoa – aquele que tudo sabe sobre a trama e o que sentem e pensam os personagens –, por meio de seus personagens, brinca e manipula o leitor: eu e você, fazendo-nos assumir, durante a leitura, o papel de Dorian Gray. Faço-lhes uma simples pergunta: Quantas vezes so mos impactados com o efeito das definições de Lorde Harry sobre a vida e suas nuances e refletimos, ou até mesmo anotamos, esses aforismos – gênero literário que, em poucas palavras, aborda, por meio de experiências reais ou filosóficas, questões morais ou da natureza prática a fim de defini-las – persuasivos que transcor rem e compõem as páginas da obra, em sua visão aristocra ta e hedonista de um dândi.

Daí a importância da leitura de O retrato de Dorian Gray para nossa formação leitora e, principalmente, para nossa vida. Afinal, não é comum folhear as páginas de um livro e se deparar com opiniões tão contundentes e originais a respeito da vida. Como os trechos abaixo: Escolho meus amigos por sua boa aparência, meus conhecidos por seu bom caráter e meus inimigos pelo bom intelecto.

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Meu querido amigo, não estou falando sério. Mas não consigo deixar de detestar meus familiares. Suponho que isso se deva ao fato de que nenhum de nós suporta outras pessoas com os mesmos defeitos que os nossos.

Outro ponto importante na conversa entre Dorian Gray e Harry é a crítica que o jovem faz às teorias do lorde. Harry responde não se tratar de teorias, mas sim da natureza, que nada mais é do que a própria vida. E que vida é essa? Como se ele, em sua maior transparência, demonstrasse desobediência à cordialidade e firmasse um pacto com a realidade na sua mais pura manifestação, como na frase do filósofo e crítico literário italiano Antonio Gramsci (1891-1937) “entre o otimismo da vontade e o pessimismo da razão”.

A obra propõe ao leitor um encontro com a arte em suas variadas manifestações. Como, muitas vezes, o amor pode interferir na genialidade, surge uma dúvida muito in trigante: artistas são felizes?

Tomemos os exemplos de Basil, o autor do retrato, e de Sybil Vane, ao interpretar Julieta na exibição de Romeu e

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Julieta e suas consequências. O amor é fator determinante para o resultado de suas produções artísticas? Será que a arte, assim como o provérbio popular “ostra feliz não faz pérola”, se refere também à condição do artista? Para além do enredo principal, O retrato de Dorian Gray permite-nos a experiência de conhecer o intrínseco de cada artista e tam bém a ignorância banal de cada ser.

Curiosamente, no trecho reproduzido a seguir, o de sencanto pela arte – aquela tão defendida e essencial para vida como os personagens acreditam – surge justamente quando a jovem Sybil conhece o amor.

Dorian, Dorian! — ela exclamou. — Antes de conhecê-lo, atuar era a única realidade da minha vida. Eu só vivia no teatro. Acreditava que tudo aquilo era verdade. Era Rosalinda em uma noite e Pórcia na outra. A alegria de Beatriz era a minha alegria, e as tristezas de Cordélia também eram minhas. Acreditava em tudo. As pessoas comuns que atuavam comigo pareciam-me ser divinas. Os cenários pintados

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eram meu mundo. Não conhecia nada além de sombras e julgava-as reais. Então você surgiu — ah, meu lindo amor! — e libertou minha alma da prisão. Você ensinou-me o que é a verdadeira realidade. Hoje, pela primeira vez na minha vida, vi através do vazio, da farsa, da estupidez da frívola exibição em que sempre vivi.

Ainda na busca da contemplação do amor perfeito, o narrador nos coloca em xeque sobre o amor de um casal apaixonado e questiona a representação social – ou seja, aquilo que o outro é para a sociedade.

Eu a amava porque era maravilhosa, porque tinha talento e inteligência, porque você dava vida aos sonhos dos grandes poetas e for ma e substância às sombras da arte. Você jogou tudo isso fora. Você é superficial e estúpida. Meu Deus! Como fui louco em amá-la! Que tolo eu fui! Você não é nada para mim agora. Nunca mais a verei.

Durante toda a leitura fica evidente a presença, numa espécie de emaranhado, das relações interpessoais que os

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personagens estabelecem entre si, dando à prosa o seu mais alto requinte, em que os diálogos vão revelando disfarces, inverdades e interesses num jogo bastante envolvente. As tramas se desenham e surpreendem durante toda a leitura, pois firma-se uma espécie de antítese wildiana – um contraposto egoísta do que acontece na sociedade. O período de publicação da obra coincide com o final do realismo, marcado pela preocupação com o conflito entre as classes, e tendo a arte como papel revelador das desigualdades e in justiças. Contudo, em O retrato de Dorian Gray, todas essas questões são irrelevantes.

Como ponto final, para abrir as cortinas da leitura, após essa breve conversa – afinal, a leitura é essencial para responder aos questionamentos apontados e aos diversos que aparecerão – busquem suas próprias respostas. Por fim, o que pode fazer uma pessoa ao deixar de ser amada? Ou quão desinteressante pode ser uma pessoa que mostra quem de fato é? Encanta-se pelo disfarce ou pelo real?

A superficialidade pode ser mais interessante?

Divirtam-se!

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Dorian Gray é jovem e pretende tirar da vida todo o prazer que ela pode oferecer. No entanto, encara-a de uma forma completamente sem limites. Rico, popular e de beleza incomum, Dorian fascina todos que o cercam. Mas que segredos estariam por detrás desse curioso dom?

Uma das mais célebres obras de Oscar Wilde, O retrato de Dorian Gray instiga o leitor com a impressionante saga do jovem que não envelhece. Em diálogos afiados e repletos de ironia, o autor critica os valores da aristocracia na era vitoriana, revelando toda a sua hipocrisia.

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