ABRIL 2021
43º Edição
VOOS DIURNOS Fotografia de José Luís Outono
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Indíce ABRIL 2021
04 ....... Pano para Mangas | Margarida Vargues
06 ....... Num verso longo | Licínia Quitério
08 ....... Confinados | Filomena Lima
10 ....... Criança versus Abeas Corpus |
Lara Roque Figueiredo & Isabel Malheiro
12 ....... Cantinho do João | João Correia
14 ....... Flores na Abíssinia | Carla Coelho
16 ....... Enredos | José Luís Outono
18 ....... Para Sempre | Sofia Agostinho
20 ....... Ré em Causa Própria | Adelina Barradas de Oliveira
24 ....... O
Ana Gomes
Mar Logo Ali |
26 ....... Carta ao meu Querido Mundo | Naydine Castro
36 ....... Pausa para Café | Prefácio
DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA DESIGN E PRODUÇÃO: DIOGO FERREIRA INÊS OLIVEIRA SITE: WWW.JUSTICACOMA.COM FACEBOOK: JUSTIÇA COM A
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Editorial
DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA
“Agora ninguém mais cerra as portas que Abril abriu!” Ary Dos Santos Lisboa, Julho-Agosto de 1975
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PANO PARA MANGAS Margarida Vargues
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A PA N H A DA NA REDE H
á precisamente dois anos que escrevo aqui! Diz-se que a velocidade do tempo é proporcional à idade e, se assim é, não quero imaginar a duração de um ano quando entrar nos noventas – isto é que é ter fé! Prefiro não fazer contas e viver cada dia o melhor que sei. E viver os dias o melhor que sei, é passá-los entre crianças e adolescentes. Em casa ou no colégio fazem-me rir, fazem-me chorar, levam-me ao desespero, carregam-me de preocupação e deixam-me a explodir de alegria. Nenhum é meu, contudo todos o são, mais que não seja durante o tempo que com eles estou. Eu e eles, eles e eu somos uma verdadeira montanha russa de emoções. Quantos são? Muitos! Muitos, mesmo. Este ano lectivo, quase cento e cinquenta, se não me falha a matemática. Diz-se por aí que o melhor do mundo são as crianças. E são! – mesmo com as suas dores de crescimento que, actualmente extrapolam muito mais as paredes do lar do que noutros tempos. Se por um lado as vivências são – aparentemente – diferentes, a sociedade – nós! – estamos muito mais atentos e abertos ao que se passa dentro de cada um. Cada criança é um mundo e há miúdos que carregam todos os mundos que os rodeiam sobre os seus, ainda, frágeis ombros. Com excepção dos loops e malabirismo que faço, diariamente, com o Present Simple do verbo “to be” e a exaustiva esquematização de como identificar o Sujeito, o Predicado e os Complementos Directo, Indirecto e Oblíquo numa frase, as minhas horas são tudo menos monótonas. À chegada meço-lhes a temperatura – não a corporal, mas a emocional, pois a cada hora e meia há uma caixinha de surpresas que me bate à porta. Os anos e a experiência ensinaram-me a tomar este tipo de cautela. Preciso saber com o que conto, até ondo posso ir e como lá chegar. Muitos entram sem tirar os olhos do telemóvel, como todos aqueles sobre quem escrevi há dois anos. Às vezes vêm em “modo urso”, que é como quem diz, de birra com o mundo e com eles próprios. Noutros dias são dominados pela euforia de algum acontecimento extraordinário – pelo menos para eles – e tenho dificuldade
em acalmar-lhes os ânimos. E é no meio desta euforia e birras próprias da idade que surgem as conversas mais difíceis. Nós, adultos, afirmamos muitas vezes que eles, adolescentes, têm uma vida fácil se a compararmos com a que tivemos. Em certos aspectos sim, já noutros desconfio que não, ou então fui eu e os que me rodeiam, que tivemos uma infância e adolescência muito privilegiadas. Apesar das precauções sou, por vezes apanhada na rede! E que rede? Aquela que os envolve e com a qual têm de aprender a lidar. Quer-se, em demasia, a maturidade que ainda não têm – ou porque é mesmo assim, ou porque vivem num casulo que não os deixa crescer. São as teias da idade, os dramas existenciais, os pais que não os compreendem e não os deixam “fazer nada”, os professores que são “os piores do mundo”, as notas que são injustas, os primeiros amores, ... Não sabem para onde se virar e deixam-me, igualmente, do avesso. A armadilha é montada no silêncio: a boca fecha-se e o olhar cai sobre o caderno para logo subir até mim. Aprendi a ler estes sinais e (ainda) tremo de cada vez que acontece. Antevejo uma confissão ou uma pergunta difíceis. Curiosamente, as confissões vêm dos rapazes e as perguntas das raparigas e os temas são, invariavelmente, muito semelhantes: eles porque tramaram alguma, elas porque vivem as emoções dos primeiros amores ou, entre os mais velhos, as dúvidas sobre o futuro. Fito-os num misto de receio e curiosidade. A responsabilidade é gigante e, qualquer coisa que lhes diga, pode assumir proporções dantescas. Eles já sabem que what happens in Vegas, stays in Vegas e isso dá-lhes a abertura necessária para o que se segue. Colecciono, na memória, uma grande parte destes inquéritos, pois o rol de dúvidas que surge a seguir à primeira pergunta ou confissão é inevitável. É o livro da minha vida escrito por eles. Quem sabe um dia não se transforma em papel, e lá registo os bolos que lhes faço para o lanche e, sem sobra de dúvida, a primeira vez que fui apanhada na rede com um “Margarida, como é que sei que estou apaixonada?”
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LICÍNIA QUITÉRIO
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NUM VERSO LONGO É QUE SE JOGA A VIDA UM VERSO LONGO E BRANCO COM SABOR A CAMINHOS, A LONJURAS UM VERSO DE PALAVRAS SONORAS A TILINTAREM NAS ESQUINAS GASTAS PELOS CORPOS VIVOS DE MANHÃ E À NOITE ADORMECIDOS JOGAR ÀS ESCONDIDAS, FECHAR VOGAIS, ABRIR VOGAIS, GRITAR DITONGOS OU CANTÁ-LOS OU SOFRÊ-LOS DAS CONSOANTES FAZER CORDAS, SALTÁ-LAS, REPETI-LAS, IGNORÁ-LAS O VERSO É LONGO E A VIDA PERDEU O GOSTO DE ESPERAR MELHOR DEIXÁ-LO ALI NA ALVURA DA FOLHA A JOGAR COM AS PALAVRAS UM DOMINÓ DE VELHOS À TARDINHA ANTES QUE O SOL SE ESCONDA E O VERSO SE RECUSE E EMUDEÇA LICÍNIA QUITÉRIO MAIO DE 2016
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CONFINADOS
Filomena Lima Há quem esteja confinado e há quem esteja confinaaaaaaaaaaado. Ou seja, confinado dentro do confinamento já que confinado agora é básico e normal. Mas, dentro disso, há o confinamento embirrante dos superconfinados da mente, os que estão confinadamente possuídos. Há ainda os confinados ao silêncio, a uma espécie de jogo do sisudo, confinados e à distância. Não podemos esquecer que somos latinos e por natureza solares, risonhos, festivos. Mas, por via de termos sido ostracizados, amarfanhados, oprimidos, durante décadas viemos para a luz pálida da cidade cheios de medos e de enredos ocultos. De invejas e más resoluções para o que entendemos serem agora os nossos direitos.
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Passamos de humildes miserabilistas a cidadãos detentores de direitos, mas ainda continuamos humildes. E continuamos tendencialmente constrangidos ou potencialmente tiranos dos deveres alheios. Serão precisas décadas para que se faça de nós cidadãos naturalmente educados e livres mas não necessariamente contidos pois a nossa natureza é peninsular, de raiz colorida e falamos com voz colocada e audível, não em sussurros unionistas - palavra que pretende definir características de outros países da UE e somos naturalmente dados a festas, toques e a sermos solidários.
e tão pontual e idealmente serena como os demais que não tinham de deixar os filhos na escola.
‘Podem falar mais baixo’ que tenho um bebé a dormir, pede rispidamente a vizinha do rés do chão direito, uma mãe na década dos trinta, típica ansiosa, amarfanhada, mas com face de realizada atinada tecnocrata, a um pequeno grupo de duas adultas e uma criança que, ao passarem no patamar de acesso ao rés do chão, iam rindo de qualquer peripécia do momento, numa travessia de cerca de 9 metros quadrados. As condições acústicas do lugar são péssimas, é certo. Em Portugal não se vive só pobremente, também se vive pobrezinhamente, má construção, fraco aquecimento, paredes meias, etc. Do nosso lado do prédio, o rés do chão esquerdo, dormia, nesse momento, uma criança habituada a risos e a trinados. Pergunto se a ternura é quente ou fria, se é silenciosa ou estrondosa. Pode ser ambas mas não pode é ser tão agreste. Tão elementarmente carente. Mas chegou a apetecer-me dar-lhe um abraço. Não houve pior década, para mim, do que a dos 30. Só deveres e responsabilidades sem o dom da competência serena que, ela a competência, estava ainda a caminho de ser adquirida. Apenas a competência desgrenhada, carregada daquilo a que chamo a ira da rectidão, de mãe, mulher, profissional algures. A alegria alheia ofende se estamos tristes e descompensados? Uma mãe recente não pode/não deveria estar triste e cansada. Apenas feliz e realizada. A culpa não é dela mas de alguém que exige demais e se calhar dá de menos. Deveria pensar ‘Que pena tenho de não conseguir rir assim e de não conseguir que o meu filho durma regalado no meio de sons e gargalhadas e principalmente que durma de noite.’ Cuidado, mãe, o seu filho é português. Não o sobrecarregue com hábitos ‘polite’. Basta que seja educada, que respeite que seja gentil. Hoje quando vejo jovens de 30 e picos ao volante lembro me de mim aos 30 e picos ao volante, completamente focada em chegar a algum lado, no auge da minha carreira de ansiosa e de supermulher tcharan, cheia de certezas e pressas e compromissos
Para dormir, o melhor engenho é possuir uma alma feliz e adocicada. Gostaria que alguém dissesse a essa jovem mãe desesperada que a perfeição pode matar. Basta ser tri-S, ou seja, simples suave e suficiente. E que ser mãe não é desculpa para a vida. Relaxe e goze. Mas depois penso como é difícil ser mãe, responsável por uma família e ter uma carreira ou uma missão ou uma profissão e ainda ser mulher com toda a carga de exigência que subliminarmente nos foi imposta ainda antes de nascermos. O meu avô fez-me desejar ter uma profissão para ser independente e realizada. Mas pensou que o meu mundo estaria habitado só por pessoas como ele que vivia para ser solidário com as mulheres da casa e as respeitar. E lembro o avô recordado por Valter Hugo Mãe que lhe pedia que não se desiludisse. ‘Quem se desilude morre por dentro’ e que dizia ‘ é urgente viver encantado.’ Por isso, compreendo a vizinha do lado, exausta, quem sabe se sozinha na sua responsabilidade, desencantada talvez, e tudo farei para que mulheres na década dos trinta não se sintam tão cansadas e fustigadas pela vida. A única coisa que poderei dizer a quem tem menos três décadas do que eu é ‘não te subentendas’. Há uma vida completa que te espera mas principalmente há um mundo de gente que precisa de mulheres inteiras e não subentendidas, que tenham encontrado o seu ponto neutro ideal, sem mais-valias nem sobrecargas e, muito menos, sem heroísmos. Não gosto de ouvir falar em mulheres guerreiras (incomoda-me pensar num mundo de guerreiros, prefiro um de parceiros). Apenas idealizo mulheres com o encantamento e leveza de não terem de pagar o custo das suas próprias vidas e ainda o das vidas dos que deveriam ter do seu lado. Viver em equipinha faz bem a todos.
Não podemos esquecer que somos latinos e por natureza solares, risonhos, festivos.
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LARA ROQUE FIGUEIREDO
Criança & versus Habeas Corpus
Se o século XX ficou conhecido como o século das crianças, o século XXI será certamente o século da efetivação dos direitos que lhes foram reconhecidos.
ISABEL MALHEIRO
A evolução jurídica mundial permite afirmar que, à ideia de direitos humanos subjaz a ideia de que todas as pessoas, incluindo as crianças, gozam dos direitos consagrados para os seres humanos e que é dever dos Estados promover e garantir a sua efetiva proteção igualitária. Assim, e em nome do princípio da igualdade reconhece-se já em todo o mundo a existência de proteção jurídica e direitos específicos de certos grupos de pessoas, entre os quais estão as crianças. Toda a pessoa individual ou coletiva é suscetível de ser sujeito de direitos ou obrigações jurídicas, tendo por tal personalidade jurídica. Este conceito de personalidade está intimamente ligado com o princípio da dignidade da pessoa humana que tem fundamento constitucional. Assim, podemos também dizer que todo o ser humano, incluindo as crianças, tem personalidade jurídica. A Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo , tal como o próprio nome o refere, visa proteger a criança, mas também garantir que o seu passado familiar não tem de condicionar o seu futuro, pelo que é função do Estado garantir que a criança ou jovem possa crescer com direito à sua autodeterminação, à vinculação afetiva, ao são desenvolvimento da sua personalidade. Por isso qualquer providência neste âmbito, está sujeita aos princípios enumerados no art.º 4.º, nomeadamente da proporcionalidade e atualidade, da intervenção mínima e da prevalência da família.
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De entre as várias medidas de proteção existentes, surge o acolhimento que pode ser residencial ou familiar. Segundo o último relatório CASA , em 2019, encontravam-se em regime do acolhimento 7.046 crianças e jovens. E tendo em conta o mesmo relatório, as 7.046 crianças e jovens em acolhimento a 1 de novembro de 2019, representavam 0,26% da população residente até aos 24 anos (2.719.644 crianças e jovens dos 0 aos 24 anos em Portugal, censos 2011). O mais comum, pelo menos até ao final de 2020 pois só em 4 de Dezembro foi publicada a famigerada regulamentação do acolhimento familiar constante da Portaria 278-A/2020, é o acolhimento residencial, medida em aplicação à larga maioria das 7046 crianças e jovens acolhidas. A qualquer criança ou jovem que se encontre em acolhimento residencial, tal como refere o n.º 2 do art.º 49.º da LPCJP, tem de ser garantido um efetivo exercício dos seus direitos. Assim, cada criança deverá ter o tratamento específico que a sua particular situação requer tendo sempre como princípio norteador o do superior interesse da criança, ou como a doutrina tem vindo a defender, o do MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA . Os Direitos das Crianças consagrados pela Convenção Sobre os Direitos das Crianças são direitos extra-
fotografias: unsplash
constitucionais, com a mesma força dos direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição (arts.16.º, 17.º e 18.º da CRP). A própria Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, protege também os direitos das crianças ao estabelecer no art.º 24.º, que as crianças têm direito à proteção e que todas as crianças têm o direito de manter regularmente relações pessoais e contactos diretos com ambos os progenitores, exceto se isso for contrário aos seus interesses. Assim, em todos os processos que respeitem a crianças, quem tem de ser o principal protagonista é a criança. Ora, um dos direitos das crianças ou dos jovens, tal como de qualquer ser humano, é o direito à liberdade. E quando o Tribunal priva a criança ou o jovem acolhido da liberdade, excedendo aqueles princípios do art.º 4.º da LPCJP, nomeadamente da proporcionalidade e atualidade, da intervenção mínima e da prevalência da família, impedindo-o de, por exemplo, de visitar a sua família? Quid iuris? Privar uma criança ou um jovem da sua liberdade não respeita a sua individualidade e principalmente não respeita a Constituição da República Portuguesa, como decorre do artigo 27.º, nem a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, como decorre da alínea d) do n.º 1 do seu artigo 5.º. O Estado tem obrigação de assegurar que todas as crianças tenham uma vida digna, que adquiram valores sociais e
não pode hipotecar definitivamente as relações pessoais no seio da família biológica, em conformidade com a Convenção sobre os Direitos da Crianças, com o art.º 8.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e com os art.ºs 36.º, 67.º e 68.º da CRP. Tal como já decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça , apesar de as medidas de promoção e proteção visarem afastar o perigo em que a criança se encontre e proporcionar-lhe as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, educação, bemestar e desenvolvimento integral, certo é também que a medida de acolhimento residencial não obstante não caber nos conceitos de “detenção” ou “prisão” a que se reportam os arts. 220.º e 222.º, do Código de Processo Penal, não deixa de configurar uma privação de liberdade merecedora da aplicação, por analogia, do regime da providência extraordinária de habeas corpus. Isto porque a Lei de Promoção e Proteção de Crianças em Perigo não prevê nenhum meio expedito que assegure um qualquer abuso na aplicação de uma medida que restrinja a liberdade de uma criança e, de facto, o Habeas Corpus é a única providência extraordinária e expedita destinada a assegurar o direito à liberdade enquanto direito constitucionalmente garantido (art.º 27º, 28º e 31º da CRP). E de outro modo cremos que não poderá ser. Coartar a possibilidade de a criança ou jovem poder lançar mão
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dessa providência viola o princípio da igualdade, ínsito no art.º 13.º da Constituição da República Portuguesa, viola o art.º 37.º da Convenção Sobre os Direitos da Criança, que atribui à criança privada de liberdade o direito de aceder rapidamente à assistência jurídica ou a outra assistência adequada e o direito de impugnar a legalidade da sua privação de liberdade perante um tribunal ou outra autoridade competente, independente e imparcial, bem como o direito a uma rápida decisão sobre a matéria, viola o art.º 7.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos que prescreve a igualdade de todos os seres humanos na proteção da lei e viola o n.º 4 do art.º 5.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos que preceitua que qualquer pessoa privada da sua liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegítima. Não aceitar que uma criança possa recorrer à providência do Habeas Corpus no âmbito das medidas de promoção e proteção, significa um retrocesso na evolução no Direito das Crianças e nos Direitos Humanos, já que perpassa a ideia de criança como um ser menor há muito abandonada pelo Direito.
A PERSPECTIVA DA BALEIA Há um ano Luís Sepúlveda deixou-nos, vítima da pandemia e sobre a qual eu não tenho paciência para escrever pois, muito sinceramente, estou farto dela. E ainda, tenho mais do que fazer do que falar do vírus. Pelo contrário, sobre Sepúlveda haverá sempre muito que dizer, e por vezes, mais do que dizer, haverá que sentir. Sou a crer que li todos os seus livros, mas sinceramente não me recordo, por vezes, em que livro concreto é que li certa história ou, em que momento me apercebi de certa passagem, mas seja como for, com ele aprendi que não se deve romantizar a caça à baleia quando descreveu, num dos seus episódios, um rapaz, que depois de ler o Moby Dick, ficou convencido que a caça à baleia envolvia aventura, adrenalina, nobreza de carácter, espírito de missão, entre outras coisas que, afinal não se revelaram reais quando o mesmo optou por embarcar num baleeiro com vista a apreender a verdadeira experiência relatada por Herman Melville.
Também conheci um caracol que se chama “rebelde” o qual, com a ajuda de uma tartaruga chamada “memória” não só conseguiu ir muito longe na vida como ainda conseguiu salvar toda a sua comunidade. Mas, sempre muito devagar, como é próprio dos caracóis. Sobre um cão chamado “fiel”, e após a sua leitura, fiquei um bom par de horas perturbado pois, só me apetecia abraçar o cão a que Sepúlveda se refere na sua obra muito embora, por experiência própria, saiba que os cães não apreciam abraços, ou pelo menos, nos termos em que os humanos os sentem. Há ainda uma gaivota e o gato que a ensinou a voar, um gato e um rato que se tornaram amigos numa referência a amizades impossíveis ou, pelo menos improváveis tornando-as não só possíveis como igualmente frutíferas. Há sempre uma consciência ecológica de referência, em que a ligação humana aos animais é carregada
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CANTINHO DO JOÃO João Correia NÃO É FÁCIL FALAR DE ESCRITORES POIS, TUDO O QUE SE POSSA DIZER FICARÁ SEMPRE AQUÉM DO QUE ELES SÃO OU DO QUE ELES REPRESENTAM NO NOSSO IMAGINÁRIO.
de equívocos que se procuram esclarecer. Ou com o esforço dos animais ou com o esforço dos humanos que vivem nas suas histórias, pois, o velho que lia romances de amor bem sabia que a onça era mais dotada que qualquer humano e que, se não o matou quando teve oportunidade foi porque assim optou por não o fazer. Muito embora o pudesse, se o quisesse.
Em jeito de curiosidade, diz-nos Sepúlveda que na costa do Chile, em 1820, um grande cachalote branco atacou e afundou um navio baleeiro porque os seus tripulantes mataram uma baleia fêmea e a sua cria. Dá-nos assim o Moby Dick mas agora na prespectiva da baleia. Nas palavras do seu autor, ela, a justiça implacável do mar.
Há ainda uma baleia branca que habita os mares do sul e que se expressa numa antiga linguagem do mar, em que a sua memória fala do homem e do seu mundo, do que aprendeu com o homem, do encontro com outras baleias, dos motivos dos homens e do seu primeiro encontro com os baleeiros. Fala também, dos seus eternos confrontos com estes, da violência que lhes reservava em jeito de retribuição, das dezenas de arpões que colecionava nas suas costas como memória dos seus encontros com os humanos. Ela enquanto maldição que havia de os perseguir sem tréguas, com a força daqueles que já não têm nada a perder.
Não é fácil falar de escritores, como já referi, mas há escritores, sonhadores e contadores de fábulas como ninguém e sobre estes, muito embora não seja fácil de falar, sempre nos restam os animais que, de uma forma ou de outra, nos dizem muito sobre quem os criou. Sobre Sepúlveda, o escritor, sonhador, o contador de fábulas que nos deixou. Deixando-nos também e, porém, as personagens sobre as quais ninguém pode deixar de se apaixonar pois, se um gato pode ensinar uma gaivota a voar, tudo o resto apenas depende da nossa vontade de sonhar.
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FLORES NA ABISSÍNIA Carla Coelho
Revejo de tempos em tempos A Grande Beleza. O desejo de o fazer veio durante o período de confinamento, mas, como não tinha o filme, nem modo de o adquirir, tive de esperar pela oportunidade certa. A espera em si mesmo tem uma quota parte de prazer como sabemos e foi esse o pensamento que me consolou.
Gambardella o protagonista, passear-se por locais que são também os meus, como a Villa Giullia. Em particular porque aí se confronta com o trabalho de um artista norte-americano que durante décadas se fotografou todos os dias, oferecendo-nos um registo subtil, mas indelével, de como os dias passam e a vida se escoa.
Depois, o filme surgiu-me por um preço módico e tudo se conjugou para a desejada revisão da matéria dada. Porquê este filme, interroguei-me. Precisamente este que não tenho, enquanto tantos outros também amados aguardavam a oportunidade de serem revisitados?
Por isso, sei que o que me conduz a rever periodicamente este filme é mais do que a recordação de momentos felizes na cidade que me convocou a revisitar este filme, melancólico e intrigante.
Talvez, por um lado, precisamente o facto de não o ter o tenha tornado mais desejado. Depois, Roma é, de facto, uma das minhas cidades. O Coliseu, as múltiplas fontes que se espalham pela cidade, umas mais conhecidas do que outras, mas todas belíssimas, a Boca da Verdade, a Vila Borghese e, claro, o Vaticano que se alberga dentro da capital italiana são apenas alguns dos motivos para ir e voltar à cidade. Nunca é sem emoção que vejo Jep
Jep celebra os seus sessenta e cinco anos e com isso entra num momento reflexivo. O que fez da vida que passou? Gastou-a bem? Intui que não, mas a pergunta é como poderia despendela melhor. Para essa reflexão todos convocamos elementos distintos e Jep não é excepção. Mergulhado no turbilhão mundano de Roma tem algumas amizades seguras, sabe distinguir o essencial do acessório, é realista sem ser cínico. Consegue agarrar a oportunidade de amar. Tem uma alegria de viver que não passa ao lado da tristeza existencial. É isto que torna o filme tão maravilhoso e ao mesmo tempo
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GAMBARDELLA
tão terrível. Para onde vai a vida, o que acontece ao tempo? Parece que temos tanto tempo e afinal tudo se esgota tão rapidamente. Esfuma-se. Não acredito em milagres e não creio que desta pandemia vamos sair globalmente melhores. Parece-me que sairemos mais ou menos na mesma, o que é uma pena. Vejo com apreensão o apelo para o regresso à normalidade ou, mais modestamente, à nova normalidade. Não encontro, a nível global, um questionamento sobre as origens deste vírus e de que forma podemos evitar a repetição de situações como a presente. É seguro que elas surgirão. Não identifico uma reflexão sobre a facilidade com que a nossa população se adaptou ao confinamento. Talvez andemos todos demasiado cansados, talvez o ritmo de vida que levamos seja extenuante. Talvez.
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Um outro italiano Tiziano Terzani deixou uma frase que se tornou um dos meus mantras. Desiludido com as utopias políticas que viveu intensamente disse “a única revolução possível é a revolução interior”. Vi e revi Jep Gambardella passeando-se pela madrugada romana, respirando o ar matinal cheio de promessas que o correr do dia acaba por não confirmar, imerso em sinais de eternidade que apenas reforçam a natureza efémera de quem somos e do que vivemos. Gambardella tinha uma mensagem para mim e creio que a percebi. Procuro adaptar a minha vida, tão crivada de compromissos e concessões, ao que pretendo que seja a minha nova normalidade. Por via das dúvidas vou por o DVD na minha mesa de cabeceira. Posso precisar do conselho de Jep a qualquer momento. Aconselhovos, se me permitem, a que façam o mesmo. Tempus fugit.
Enredos ENREDOS
Estranhos pensamentos assintomáticos de uma possível teoria residencial em Marte … na avenida da cultura no condomínio tela e cidade foto. Diria a pragmática distância luz, que há sonhos multiplicados por sistemas de conectividade, em pormenores de simbologia ousada, mas há impossíveis sempre possíveis não na porta do nosso querer.
Afinal a alta relojoaria, dita precisa e determinante na matemática da vida, de hoje … deve tanto ao rasgo sombra do relógio de Sol de ontem. Preocupado ficará o “chip” quando a força da bateria finalizar, enquanto reguladores do trânsito mundano consultarão apenas os azimutes eternos sem cargas ou recargas indutoras de forças reguladoras … e precisas!
Outros séculos distantes do nosso passado descobriram mundos, apenas com bússolas e sextantes, liofilizando descobertas de hoje e curas ainda hoje por descobrir.
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mas há impossíveis sempre possíveis não na porta do nosso querer
José Luís Outono
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A SOFIA AGOSTINHO
Para Sempre As frases mais difíceis e também as mais sentidas são sempre escritas com conhecimento de causa – seja na primeira pessoa, seja por conhecimento indireto mas profundo. Da violência doméstica todos nós, sem exceção, já ouvimos ou soubemos de alguma situação deste tipo e as perguntas que ficam sempre por fazer são: como é que reagiste? O que fizeste para alterar isso? Durante muitos e longos anos, neste país, a violência doméstica foi aceite e até incentivada -era normal o marido “mandar” na mulher como se esta fosse um objeto. Posteriormente e de forma paulatina, o paradigma societário alterou-se e a violência doméstica em si alterouse também, tornou-se um tema mais falado, mas ainda assim muito pouco porquanto ainda se sucediam os atropelos á vontade e auto determinação feminina, os episódios de violência e os crimes contra as mulheres, embora de uma forma mais velada e menos aberta aos olhos de uma sociedade. Atualmente a violência doméstica é transversal – contra homens, mulheres,
pais, avós ou até tios – apesar de os casos mais divulgados serem os casos de violência doméstica contra mulheres. Então surgem novas perguntas: qual foi o momento em que nós esquecemos que a figura materna, a figura paterna e a família são a génese da existência humana e de qualquer sociedade? Será que não conseguimos entender que enquanto se perpetuar o ciclo de violência as nossas crianças e o futuro da nossa sociedade continuará enfermo de cicatrizes que não se apagam? Todos falamos de violência doméstica, atualmente todos pensam, discutem ou conversam sobre este tema, porque todos de forma direta ou indireta tivemos conhecimento desta questão – mas será que temos noção das verdadeiras mazelas ou cicatrizes deixadas em que sofre na pele este tipo de maus tratos? A resposta dada por qualquer vítima será sempre “são cicatrizes que duram uma vida inteira”, ou então “nada apaga o que eu vivi”. E este eco vivencial traumático reflete-se quer no adulto que sofre a violência doméstica, quer na criança que em tenra idade assiste à cena do pai a espancar a mãe, da mãe a agredir o pai com um utensilio doméstico, ou, dos pais a agredirem os avós ou um avô.
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QUANTOS DE NÓS EM QUARENTENA – COM MAIS OU MENOS CONFORTO PENSAMOS NA SEGURANÇA E NO SOSSEGO QUE TEMOS DENTRO DAS NOSSAS CASAS?
Até ao final da sua vida, esse adulto ou essa criança – para lá de todas as mazelas ou marcas físicas – ficará marcado de tal forma que a sua capacidade de se relacionar com o próximo – seja em que contexto for nunca mais será a mesma. Preceitua o artigo 152.º do Código Penal que quem “infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”, contra cônjuge ou ex cônjuge, namorado ou namorada ou pessoa com relação análoga à dos cônjuges mas sem coabitação, progenitor de descendente comum em 1.º grau ou pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite, pratica o crime de violência doméstica. Prossegue este mesmo artigo indicando as circunstâncias agravantes da moldura penal abstratamente aplicável. Apesar da consagração penal, ainda existem no nosso país casos de violência doméstica e o ano que passou apenas trouxe de forma mais nítida, para as vitimas, esta realidade. O Covid e os seus efeitos entre eles, a quarentena, a perda de postos de trabalho ou a redução das remunerações conduziu a situações inimagináveis de dependência e convivência mais estreita entre agressores e vitimas. Quantos de nós em quarentena – com mais ou menos conforto - pensamos na segurança e no sossego que temos dentro das nossas casas? Pois é! Uma vítima de violência doméstica tornase um alvo ainda maior entre portas, no recato do lar, onde ninguém sabe, vê ou às vezes sequer ouve a violência a acontecer. É com a desculpa da frustração e dos eventos que ocorrem – isolamento, perda de remunerações/perda de trabalho, consumo de álcool ou de estupefacientes exacerbados pela pandemia – que o agressor ganha forma, tamanho e peso e que a violência escala. Quem nos tempos de pandemia ousou pensar nisto –
como será viver no terror, de uma violência constante – física ou psicológica - perpetrada por um “ente querido”, 24/h por dia, sete dias por semana e sem aviso prévio? Como será sentir que não há por onde fugir? Olho para esta situação quase como se fosse estar numa casa a arder com todas as portas e janelas trancadas… Não há por onde fugir, a morte ou os danos físicos são algo inevitável e o fogo e o fumo estão por todo o lado. Em tempo de pandemia há situações que ganharam novos contornos – e não são só as situações de pobreza – são também as situações de violência doméstica. Torna-se necessário repensar o atual modelo legal – penal e não penal – aplicável às situações de violência doméstica e garantir que as vítimas têm meios de escapar aos seus agressores de forma eficaz e que não ficam à sua mercê debaixo do mesmo tecto ou facilmente acessíveis. É necessário interpelar as estruturas governamentais e a sociedade civil para que reequacione a forma como se vê, lida e soluciona as situações de violência doméstica, optando por políticas de prevenção eficazes, mas também por soluções eficazes que não passem apenas por providências cautelares ou pela aplicação de uma sanção penal. Atualmente a violência doméstica é um crime público, mas antes de ser um crime público é uma questão humana, que transcende género, idade, ou grau de parentesco e que ganha contornos mais gravosos em tempos de pandemia. Se o pilar de qualquer sociedade é a estrutura familiar, urge então, mais que nunca pelos efeitos causados pela pandemia, a necessidade de proteger as vitimas de violência doméstica, para que possamos ter crianças, mulheres, homens e idosos felizes… Porque uma sociedade que não sabe cuidar dos seus idosos, educar as suas crianças e fomentar o crescimento pessoal dos homens e das mulheres – e isso passa também pela erradicação de qualquer forma de violência - nunca será uma verdadeira sociedade. Urge humanizar.
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ABRIL SILÊNCIOS E VERDADES MIL “Eu tenho uma espécie de dever... de dever de sonhar ... de sonhar sempre.... E assim me construo e invento o palco e o cenário entre luzes brancas e luzes invisíveis. Um dever de vencer o inimigo invencível... Voar no limite improvável... tocar o inacessível chão... É minha lei virar esse Mundo cravar esse chão.... Quantas guerras terei de vencer por um pouco de paz? .... e seja lá como for vai ter fim a infinita aflição... e o Mundo vai ver uma flor brotar do impossível chão.”
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RÉ EM CAUSA PRÓPRIA Adelina Barradas de Oliveira
.... Quem dera que fosse assim.....
Acreditem que ao contrário do que se diz por aí, os tribunais não são só uma máquina
Do que eu gostaria neste texto de Abril era
de fazer justiça na hora, assim como uma
de vos falar do que me vai na alma, porque
empresa de entregar pizzas.
pela minha alma perpassam coisas simples
O que os Tribunais fazem é não elevar a voz.
e a vontade de um desabafo com quem me queira ou possa ouvir e, neste caso, ler.
O que eu queria mesmo neste Abril que nos cheira a Liberdades conquistadas e a temor
É um bom exercício de catarse.
de as perder, era dizer-vos que
há uns dias
que não me preocupo com a vida dos outros, E sem queixas, sem dores de alma, sem
nem com os problemas dos outros, que não
alegrias
um
me preocupo com a liberdade ou a segurança
desabafo de silêncio e espera, semelhante ao
dos outros até porque, eu sendo juíza, nem
dos que não temem porque não devem.
sequer sou super juíza.
Só que eu vivo também dentro dos tribunais
Há dias em que nem me preocupo com as
e, os tribunais, que são assim uns locais de
reações às decisões dos tribunais porque
gente estranha que se queixa, queixa , queixa
os Juízes não se preocupam, nem com os
mas trabalha para além do imaginável e a
recursos que são actos legítimos de quem
quem chamam “agentes judiciários”, como se
pode reagir às decisões. Os juízes também
não houvesse neles titulares de um Poder de
não se preocupam com as restantes reações,
Estado, não têm silêncios, têm sussurros.
simplesmente decidem em consciência e
Acreditem-me.
aguardam o decurso normal do processo.
excessivas,
sem
mentiras...
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RÉ EM CAUSA PRÓPRIA A br il Silêncios e Ver dades M il
Neste Abril com aroma a Liberdades que não queremos perder, que implicam conquistas de
Quando a prosa é boa a gente sente que só
muitos Direitos, era dos meus dias de calma
não é nossa porque não nos levantámos de
aparente que gostaria de vos falar. Aparente
noite para escrevê-la quando bateu aquela
porque condicionada aos deveres.
vontade de o fazer.
E é tão bom não cumprir um dever... . ____
........ Tanta noite que deixo as ideias para de manhã e não acordo com elas, e se acordo,
Espreguiço-me na meia hora de esplanada e
nem concordo. Em que buraco negro caíram
fico a observar os poucos turistas que devem
entretanto?
ter chegado ao País por terra ou são da terra. Observo os que trabalham, os que passam e os
Mas mais do que o dever de escrever em Abril,
que se sentam a ver, a observar, a imaginar,...
o mês em que se aprende a dizer saudade,
como eu, com cheiro a mar ao fundo.
Liberdade, e conquista, eu tenho um Dever...
Há tantas vidas nos olhares e nos pés
O dever de sonhar sempre.
descalços,
E mais que o dever de sonhar, tenho o dever
calçados em sofrimento, em
silêncios, em esperas, em medos...
de realizar e de fazer o impossível possível, e ao inatingível,... a esse, tenho o dever de o
Há anos de trabalho para se conseguir uma
tornar em algo logo ali, à mão, ao alcance de
semana de liberdade e descoberta. Há mãos
todos os homens e mulheres, em nome de
cansadas,
passam
Direitos Fundamentais que se escondem em
um ano à secretária, pés quase descalços
costas
vergadas
que
Tratados que ficam amarelecidos no tempo e
sentados e balanceantes por cima do rio, que
na lembrança dos homens e das mulheres, e
passam o ano em saltos altos... fechados nas
dos meninos....
regras, nos prazos, no sufoco do parecer o que se não sente.
Eu tenho um dever... O dever de me preocupar com o Outro... e curioso, faço-o
E eu com um esgotamento de palavras......
incansavelmente por vocação.
Estou mesmo com um esgotamento, não me
Eu tenho o dever de fazer cumprir os Deveres
sai o rio de uma prosa que vos convença e vos
e de impor o respeito pelos Direitos, de fazer
faça sentir assim, daquela forma que a gente
os silêncios certos nos momentos certos e
sente quando a prosa é boa.
erguer a voz quando, e só quando houver
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E mais que o dever de sonhar, tenho o dever de realizar e de fazer o impossível possível, e ao inatingível,... a esse, tenho o dever de o tornar em algo logo ali, à mão, ao alcance de todos os homens e mulheres,
necessidade, contra qualquer Dever de Reserva mal definido, que não pode negar-me, nunca, o Direito a não calar a Verdade. Se para não ferir a Verdade há alturas em que o silêncio a protege, o silêncio dos que não temem porque não devem, há alturas em que a avalanche de indiferença e de pressa é tão grande que faz falta um grito de Verdade. Mas ele deve ser tão certeiro que não poderá ser vulgar. Será tão certeiro quanto a demora do silêncio que o prepara. Meçam, pois, a minha verdade pelo volume do meu silêncio mas não se enganem, porque não a calarei se necessário for. Abril é quando tiver de ser.
“Tenho uma espécie de dever de sonhar sempre, pois, não sendo mais, nem querendo ser mais, que um espectador de mim mesmo, tenho que ter o melhor espetáculo que posso. Assim me construo a ouro e sedas, em salas supostas, palco falso, cenário antigo, sonho criado entre jogos de luzes brandas e músicas invisíveis.” Fernando Pessoa PESSOA, F. Livro do Desassossego, por Bernardo Soares.
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AS TRÊS M ARIAS
O cantar saiu do quarto e propagou-se pelo corredor às escuras, descendo a escada em direção ao átrio. Saindo para a rua, as notas esfumaram-se na humidade como uma molécula ínfima. Djaimilia Pereira de Almeida, Luanda Lisboa Paraíso, 2018, Companhia das Letras
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Conheceram-se no Tribunal onde a mais nova iniciou o estágio e de onde a mais velha estaria quase a sair para a Relação de Coimbra, na altura com 45 anos.
E O MAR LOGO ALI Ana Gomes
São três as Marias, nascidas no mesmo dia do ano exatamente com dez anos de intervalo, coincidência que se somou a outra que as ligaria para sempre: no ano 2000, estavam a exercer funções no mesmo Tribunal. Após meia dúzia de almoços, descobriram a curiosidade tamanha e com isso nasceu a amizade entre três Juízas, três Mulheres, três gerações. Não discutiam só os processos, as experiências pessoais, ou as notícias do jornal. Partilhavam todos os momentos, a ponto de ali, sem saberem, terem vivido o período mais feliz das suas vidas. Entretanto, cada uma seguiu o seu caminho e retomaram os contactos mais frequentes há cerca de um ano, quando o mundo acordou sobressaltado com o grande susto das nossas vidas. No dia 19 de abril, voltaram a encontrarse para passar a porta do auditório e ir a dois espetáculos: um para que compraram bilhete, na plateia; outro, o de ocupar o mesmo espaço com outros, desconhecidos, todos imensamente felizes, embora sem
se poder captar o sentimento pelos sorrisos. A música começa e as cabeças sobem até ao teto, planando muito perto do limite superior da sala. Em fá sustenido menor, o dramatismo e a queda, cada um no seu lugar, as três Marias separadas por uma cadeira entre si. Depois, com a tonalidade maior (Polaca op. 53, Chopin), os sorrisos saltam da máscara, os membros movimentamse primeiro como figuras articuladas, muito tímidos. As Marias tocam-se, abraçam-se, todos acabam por se levantar, chocar à bruta com todos, com a alegria de estarem assim pela primeira vez em muito tempo, ganhando o momento o valor da descoberta.
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Carta ao meu querido mundo Querido mundo, hoje acordei cansada sem esperança. Esperança da cura do mundo . Apesar das incertezas afligirem o meu ser, quero voar. Ter a liberdade do vento, do rio e dos pássaros, escolher onde pousar e cantar. Estou confiante, sem medo! Querido mundo, se pudesse voar em busca do ar. Possuiria muito mais do que meras curas. A falta da liberdade é uma tortura. Mais do que decepção. Sei lá eu... ... . Traria todas as coisas de todas as cores . A cura à humanidade e a da saudade.
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Naydine Castro
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FG.
Pausa para café Prefácio A “ESTÓRIA” deste pequeno livro, é uma fantasia real de um pioneiro livre pensador e livre viajante, cujo destino foi sendo paulatinamente construído por forças circunstanciais, ao sabor de vontades dispersas e inesperadas. O Jorge entrou na Igreja de Santos-o-Velho, e por lá ficou, talvez hoje já seja pároco numa capela alentejana, mas deixou escrito o que gostaria de fazer na vida. Teve como colega de carteira na então designada “escola primária”, um Amigo excecional, que se prontificou a “construir” as vivências de ambos nesse período impar das suas existências, com a exigência de que as suas vidas ficassem ligadas para sempre e explicitamente consagradas. Esse Ser excecional, chamava-se Luís Vassalo Rosa, e está referido num tempo de verbo CHAMAR, que infelizmente tenho que utilizar, com uma mágoa infinita, porque o Luís “partiu” exatamente no dia do meu aniversário em 2018. Por isso a ele dedico a descrição do que ambos construímos, sabendo que ele o faria com o requinte que sempre punha onde quer que andasse. O nosso “passo” académico foi divergente, uma vez concluído o liceu, ele foi para arquitetura e eu para engenharia.
designada Índia Portuguesa, quando ele era Adjunto do Senhor Governador Geral, General Vassalo e Silva e eu, Representante da TAP na Administração dos Transportes Aéreos da India Portuguesa, isto em 1961, ano da retoma do controlo dos enclaves pelas forças militares indianas. Mais tarde, em 1976, voltámos a cruzarmo-nos, agora no maior Polo Industrial jamais construído de raiz em Portugal, concebido e gerido Gabinete da Área de Sines, onde o projeto de urbanístico da Cidade de Sto André a ele adjacente, foi de sua autoria. A isso sucedeu-se, já num âmbito governamental, a nossa colaboração intima no Fundo de Fomento de Habitação e mais tarde, na designada Secretaria de Estado. Caro Luís, os Amigos são para as ocasiões, e o teu espírito impoluto, a tua competência sobejamente conhecida e reconhecida, são marcos indeléveis na minha vida e na vida de Portugal, onde deixas-te a tua mão, desde a Catedral de Bragança ao Plano Diretor de Sines. Até Sempre “O Jorge”
As nossas vidas voltaram a cruzar-se na então
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