ABRIL 2022
49º Edição
Fotografia de Fernando Corrêa dos Santos
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Indíce ABRIL 2022
04 ....... Medidas anti SL APPs | Otília Leitão
12 ....... Pano para Mangas | Margarida Vargues
14 ....... Abril águas mil | José Luís Outono
16 ....... 25 de Abril | Lícinia Quitério
18 ....... Cantinho do João | João Correia
20 ....... Flores na Abíssinia | Carla Coelho
24 ....... Com base na ignorância | Pedro Álvares de Car valho
30 ....... O Perfeito Nazi | Duarte Rodrigues Nunes
34 ....... Ré em Causa Própria | Adelina Barradas de Oliveira
36 ....... O
Ana Gomes
Mar Logo Ali |
38 ....... A palavra ao leitor | João Severino
DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA DESIGN E PRODUÇÃO: DIOGO FERREIRA INÊS OLIVEIRA SITE: WWW.JUSTICACOMA.COM FACEBOOK: JUSTIÇA COM A
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Editorial
DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA
A revista de Abril não queria falar de Guerra ... mas falou. E falou de outras coisas, coisas que se sentem e que nos espantam e nos fazem sonhar. Não conseguimos deixar de falar sobre o que sentimos, o que nos faz reflectir e o reflexo do que sucede à nossa volta É dia 25 de Abril e sabemos que não seremos mais obedientes, não deixaremos mais de pensar e reflectir, nunca mais seremos subjugados, nunca mais diremos sim sentindo que é não. Ficam os textos e as imagens que falam juntos. A coragem de os escrever sem filtros e com a preocupação de falar da realidade. Num 25 de Abril em 2022 em que o Mundo está em Guerra Adelina Até breve.
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OTÍLIA LEITÃO Jornalista e jurista, PHD em Ciências da Comunicação.
Medidas anti SLAPPs!
CONTRA ONDA DE CENSURA SOB A FORMA DE LITÍGIOS E PREVENÇÃO DE UM “ESTALO” NA LIBERDADE DE EXPRESSÃO E NA DEMOCRACIA A União Europeia prepara-se para emitir uma Diretiva sobre medidas anti-SLAPPs, para combate a processos judiciais abusivos que visam silenciar aqueles que ousam denunciar o que está mal em defesa do interesse público. Numa proposta modelo a EU, que tem uma visão alargada de informação e liberdade de expressão, pretende alertar os Estados membros para sensibilizar legisladores, juízes, advogados, jornalistas, ambientalistas, defensores dos direitos humanos e sociedade civil em geral, para o que designa “uma onda de censura sob a forma de litígios”. Tais estratégias “intimidatórias”, muitas vezes sob a forma de processos de difamação com pedidos de indemnizações colossais, levam aqueles que investigam ou criticam a calar-se, pedir desculpas ou a “corrigir” declarações, com medo, em prejuízo do estado democrático.
Mas afinal o que são SLAPPs? O termo, acrónimo de Strategic Lawsuit Against Public Participation, foi introduzido em 1996 pelos académicos George Pring e Penélope Canan, da Universidade de Denver. Na sua obra SLAPPs: Getting Sued for Speaking Out, os autores explicam as principais características e perigos dessas estratégicas. Há quem utilizando a sua tradução literal, lhe chame um” estalo” na democracia, pelo impacto de tais estratagemas jurídico-legais sobre a crítica, a verdade e a liberdade, tão necessárias à saúde do discurso público. No conceito americano essas estratégias são atentatórias da liberdade de expressão e ilegais em vários Estados. Geralmente são ações eficazes, porque, mais do que ganhar a causa em tribunal com todos os seus custos, esgotamento de recursos e meios, visam destruir as vidas pessoais. Pring definiu que deve ser uma questão de interesse público a que vai distinguir os processos judiciais legítimos daqueles que visam impedir o discurso público.
A característica principal das SLAPPs, além do equilíbrio desigual de poderes entre o autor e o réu, é a tendência de transferir o debate da esfera política para a jurídica, com ações judiciais em resposta aos esforços para responsabilizar os poderosos. Os autores Dwigt H. Merriam e Jeffrey A. Benson consideram um ataque à saúde do diálogo público e da Constituição e incluem também a crítica contra o eleitorado, uma comunicação contra algum membro do governo ou outras personalidades oficiais. A SLAPP mais vulgar assume a forma de um processo de difamação pois pretende diminuir a estima, o respeito, a boa vontade e confiança, com o objetivo de picar o adversário, trazer um efeito derrogatório, sentimentos ou opiniões desagradáveis contra a pessoa ou grupo. Muitas vezes a pessoa acusada desiste de se defender pela morosidade do litígio, como aconteceu com o caso italiano de Nello Trocchia, processado por danos
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Alguns casos europeus Na Polónia e desde 2015, o segundo maior diário recebeu mais de 55 ameaças de ações judiciais por parte de várias pessoas, incluindo membros do partido no poder; Na Eslovénia , em 2020, três jornalistas foram alvo de 13 processos de difamação cada, por denunciarem fraudes fiscais; Em França, em 2018, empresário Vincent Bolloré e o seu grupo empresarial arrastaram jornalistas e ONGs ((Mediapart, L’Obs e Le Point) a tribunais, para que deixassem de escrever sobre os seus interesses em África. Ainda neste país, Valérie Murat, ativista ambiental, deverá defender-se das ações movidas pelo Conseil Interprofessionnel du Vin de Bordeaux (CIVB) por ter denunciado os perigosos tóxicos utilizados e chamado a atenção para a lavagem verde de várias vinhas de Bordelais, que vendem vinhos com um rótulo de cultivo particularmente ecológico (Haute Valeur Environnementale), apesar de estarem contaminados com mais de 28 pesticidas diferentes. Em Espanha, um produtor de carne pediu 1 milhão de euros de indenização a um ativista ambiental, por criticar as suas práticas de gestão de resíduos; Em Portugal a produtora de pasta de eucalipto Celtejo (grupo Altri) moveu uma ação contra o ativista Arlindo Marques, que acusou a empresa de poluir o rio Tejo. Desde 2015, que Marques publicava vídeos e provas fotográficas da poluição do rio nas redes sociais, encaminhando-as para as autoridades competentes. A empresa exigia 250 mil euros de indemnização, numa disputa que terminou em 2019. Um outro caso refere-se a Pedro Triguinho, ambientalista, por ter denunciado a fabricante de óleos vegetais, Fabrióleo, como um verdadeiro ‘cancro’ poluidor”. Foi absolvido, mas seguiu-se outro processo, da mesma empresa, por denúncias feitas em 2017, no final de uma manifestação do movimento Protejo, no Terreiro do Paço, em Lisboa.
à reputação e com uma exigência de 38 milhões de euros, em abril de 2018. O pedido foi rejeitado pelo tribunal civil de Nápoles em dezembro de 2021, três anos e meio depois.
Na Europa as SLAPPs preferem os media para abafar corrupção e discriminação Ao contrário dos Estados Unidos da América, onde pelo menos dezanove estados têm medidas antiSLAPs, na Europa não existem leis específicas. O mais recente relatório anual da Plataforma do Conselho da Europa para a proteção e segurança dos jornalistas (2021), alerta para o crescente aumento das SLAPSs. Também o relator especial das Nações Unidas para os direitos humanos, Clement Nyaletsossi Voule, notou o crescer de ações de empresas contra ambientalistas e Dunja Mijatović, comissário do Conselho da Europa para os direitos humanos, corroborou essa preocupação alertando ser a altura para agir contra tais práticas. Um estudo da OSCE sobre os media e o abuso do sistema judicial (2021), elaborado pelo CASE Coalition Against SLAPPs, grupo de organizações não governamentais, base de consulta pela Comissão Europeia, concluiu que os alvos principais são os jornalistas e os media. Os seus perseguidores são políticos e gente do mundo dos negócios. Os assuntos têm um carácter internacional e dizem respeito à governabilidade, corrupção, negócios, discriminação, às polícias e à segurança. A pesquisa In Europe: How The EU Can Protect Watchdogs From an Abusive Lawsuits, efetuada em 31 países incluindo Portugal, identificou 530 casos entre 2010 e 2021. O Reino Unido e a França surgem em primeiro lugar e com processos de carácter internacional. Neles se verificam uma relação de poder muito díspar, pois quem mais coloca os litígios são empresários (34/%), políticos (24%), figuras públicas e organizações.
Anti SLAPPs versus SLAPPs não dispensam exigências de rigor, ética e independência A necessidade de medidas anti-SLAPPs fez-se sentir depois do assassínio, em Malta, da jornalista de investigação Daphne Caruana Galizia, em outubro de 2017. O Conselho da Europa revelou em 2020 que, mesmo depois da sua morte, alguns das 40 ações que lhe foram movidas persistem e estão pendentes contra seu marido e três filhos. Os alertas sobre este tipo de litígios têm sido assinalados por diversos países e, em 2018, a Resolução do Parlamento Europeu sobre Media Pluralism and Media Freedom in the European Union, de 3 de maio, preconizou a elaboração de
uma Diretiva sobre leis que contrariem o alargar do fenómeno das SLAPPs na Europa. O CE diz que este problema não diz respeito apenas à imprensa, mas a todos aqueles que falam pelo interesse público e responsabilizam os poderes. Todos correm o risco de se tornar o alvo de “SLAPPs”. O CE considera que estes processos ameaçam o estado de direito, ao impedirem que alguns se manifestem contra atividades ilegais e casos de corrupção. Na medida em que abusam das leis e dos tribunais, essas ações também representam uma sobrecarga para os sistemas de justiça e representam uma ameaça à confiança mútua e à cooperação entre os tribunais dos países da
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Medidas anti SLAPPs! Otília Leitão
O INTERESSE PÚBLICO NA ÉTICA E DEONTOLOGIA DOS JORNALISTAS
UE. Tais estratégias também desencorajam aqueles que pretendem realizar livremente o seu trabalho, sobretudo em países onde o risco de serem processados é maior, dificultando a sua liberdade de movimento.
PORTUGAL: há medo de bulies Em Portugal as ações estratégicas para silenciar a crítica começam a evidenciar-se perante processos de investigação e, embora não se saiba se são deliberadas, porque legais, algumas suscitam uma específica reflexão, pois não podemos perder de vista a exigência de rigor e ética daqueles que denunciam em nome do interesse público, nomeadamente os Jornalistas. O país foi colocado quarto lugar, num concurso europeu para chamar a atenção dos maiores agressores legais, pela Coalition Against SLAPPs in Europe (CASE) que promoveu em 2021 o European SLAPP Contest. Nele ficou registada a empresária Isabel dos Santos, na categoria internacional “concedida aos esforços mais desavergonhados de um reclamante internacional para usar os tribunais europeus para silenciar críticas e dissidências”. A filha do ex-presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, foi referida no início de 2020 pelos Luanda Leaks, e deu origem uma série de investigações criminais em empresas associadas em Portugal, Angola e Holanda. A CASE recorda que, alguns meses antes dessa divulgação, a empresária processou a exeurodeputada portuguesa Ana Gomes que a acusou de lavagem de dinheiro, alegando que a sua reputação e bom nome foram prejudicados. Em 2018 o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas alertou para estes processos no que considerou “Bulling económico” e deu exemplo da TVI, alvo de processos indemnizatórios na sequência da emissão do trabalho de investigação das jornalistas Judite França e Alexandra Borges, intitulado ‘O segredo dos deuses’.
Em 12 de Junho de 2019, a Federação Internacional de Jornalistas aprovou uma Carta de Ética Global na qual atualiza o código de Ética de Bordéus de 1954. Composta de 16 pontos e abrangendo 37 itens sobre aspetos de uma conduta desejável, evoca o direito de todos à livre informação no âmbito do artigo 19º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e proclama que “a responsabilidade do jornalista com o público tem prioridade sobre qualquer outra responsabilidade, em particular para com seus empregadores e autoridades públicas”. Recorda que o jornalista deve respeito à verdade à proteção das fontes e à não discriminação. Código Deontológico do Sindicato dos Jornalistas portugueses, com 11 pontos, tem quase tantos deveres (34) quanto a Carta de Ética Global. Ambos os documentos relativamente à ética e conduta dos jornalistas contêm: “ o direito de investigar livremente os factos de interesse público”; O dever de “não suprimir informações essenciais”; o dever de “verificação dos factos” e “o respeito pela dignidade”. O jornalista “digno desse nome, não deve ser compelido a desempenhar atos contrários às suas convicções ou à sua consciência”.
institucional, entre os quais o Governo, Assembleia da República, Entidade Reguladora para a Comunicação Social e a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista para a necessidade de darem atenção e procurarem limitar, este fenómeno, de facto e de direito, que põe em causa o saudável funcionamento da democracia. Apelou ainda ao Conselho Superior de Magistratura para que esteja atento sobre a forma como esta pressão é exercida. Num debate sobre Bullying Económico, em 2021, o CDSJ evidenciou a preocupação pela pressão económica exercida através Neste eram relatados factos de interesse público sobre de instrumentos jurídicos, sobre os jornalistas e os responsáveis da Igreja Universal do Reino de Deus órgãos de comunicação social, a qual condiciona num processo pouco claro de adoções de crianças. fortemente a investigação jornalística. Outros jornalistas têm sido alvo de ações idênticas, nomeadamente uma ação apresentada contra o O professor Jónatas Machado, da Universidade jornalista José António Cerejo e o jornal Público, a de Coimbra, lembrou que as técnicas usadas são propósito de uma investigação sobre o comportamento o aproveitamento da morosidade da justiça e dos do ex-primeiro ministro José Sócrates quando era custos da defesa, fazendo gastar tempo e energias deputado do PS por Castelo Branco. Este ameaçou, com diferentes tipos de queixas junto de entidades já em 2022, processar diversos media e jornalistas reguladoras. sobre a cobertura do processo judicial por corrupção, “Operação Marquês”, em que está envolvido. O Professor explicou que se usa muitas vezes o Na sua posição o CDSJ alertou também o poder político- atentado ao bom nome, reputação e à privacidade
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para se exigirem indemnizações muito pesadas. O objetivo será a “retaliação” e “punir o crítico”, dissuadindo, não só aquele que criticou, mas também todos os outros que poderiam criticar, considerou. Esta, disse, é uma forma muito grave de atentado à liberdade de expressão que pretende “aniquilar” o adversário, e “uma ameaça à cidadania e à participação democrática”. Jonatas Machado defendeu que uma aposta na legislação anti-SLAPP daria aos juízes meios para despistar este tipo de ações. Ao mesmo tempo, argumentou, os jornalistas e os cidadãos deveriam gozar de uma “imunidade” semelhante à dos políticos, sempre que se discutam temas de “relevante interesse público”.
Os mecanismos anti-SLAPP e a prova de mérito Embora nenhum estado-membro da União Europeia tenha desenvolvido ainda uma estrutura de combate às SLAPPs, como as legislações dos EUA, Canadá e Austrália que já apresentam um particular desenvolvimento jurídico, vários textos aprovados no âmbito do Conselho da Europa referem-se ao problema, ou de outras formas de procedimentos intimidativos ou vexatórios intentados contra media e jornalistas, incluindo online. Nos Estados Unidos, o Colorado, um dos dezanove Estados que assinaram uma lei anti-SLAPP para proteger a liberdade de expressão em assuntos públicos, aprovou legislação para prevenir os media e jornalistas da ameaça financeira de casos de difamação sem fundamento, proteções essenciais para a recolha de notícias sem medos. Um requerente que apresentar um caso sem mérito e que os tribunais rejeitem ao abrigo de uma lei anti-SLAPP, pode ser condenado a reembolsar as custas judiciais sofridas pelo réu na sua defesa. Um dos casos mais famosos de ações abusivas ocorreu com Oprah Winfrey em 1996, depois de um show intitulado “Dangerous Food”, no qual a autora convidou especialistas da doença das vacas loucas, a comentarem, e disse na altura que não comeria outro hambúrguer. Os fazendeiros pediram mais de 12 milhões de dólares, por danos. Na Europa, a Recomendação sobre as funções e responsabilidades dos intermediários da Internet, adotada pelo Comitê de Ministros em março de 2018, estabelece a seguinte obrigação: “As autoridades nacionais devem considerar a adoção de legislação adequada para evitar litígios estratégicos contra a participação pública (SLAPP) ou abusivos e vexatórios, litígio utilizado com
o objetivo de restringir o direito à liberdade de expressão de usuários, provedores de conteúdo e intermediários”. Também a Declaração do Comitê de Ministros sobre a utilidade das normas internacionais relativas à busca oportunista de jurisdição em casos de difamação (2012), trata de um aspeto específico das SLAPPs: “Turismo judicial”, uma tática amplamente utilizada de buscar um foro de fácil apreensão e que se considere o mais apto, para proferir a decisão mais favorável. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) já apreciou vários litígios sobre o equilíbrio entre a liberdade dos media e a proteção da reputação individual. Por exemplo, em 2017 o Tribunal julgou uma ação de difamação contra um editor do jornal diário irlandês, Herald, condenado a pagar mais de um milhão de euros. Alegou que a condenação foi excessiva e violou o direito à liberdade de expressão. Na sua deliberação o TEDH clarificou que não é necessário decidir se a indemnização por danos, impugnada, teve, de facto, um efeito assustador na imprensa: “Por uma questão de princípio as indemnizações imprevisíveis, em casos de difamação, são consideradas capazes de ter tal efeito e, portanto, exigem o escrutínio mais cuidadoso (...)”.
A Diretiva futura contra “ações judiciais abusivas” Em 2020 e na sequência de consultas a profissionais do direito, académicos, organizações dos direitos humanos, a União Europeia esboçou uma Diretiva Modelo anti-SLAPP, personalizada. É proposto que a definição e o método de análise adotado forneça aos legisladores uma base sólida para um futuro instrumento e reitera a necessidade premente de novas medidas com vista a salvaguardar o mercado interno e o Estado de direito na União Europeia. Sheldrick, em Blocking Public Participation: The Use of Strategic Litigation to Silence Political Expression, refere que o modelo substitui Strategig Lawsuit Public Participation, (na sua tradução, Ação Estratégica), por “Ação Judicial Abusiva Contra a Participação Pública”. Trata-se de uma nuance já que tais ações são legais. A proposta fornece uma narrativa da natureza do que são processos judiciais relevantes e o efeito inibidor que elas têm sobre a participação pública. De acordo com o modelo elaborado, “ação judicial abusiva” refere-se a uma reclamação que surge de uma participação pública de alguém na defesa de
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Medidas anti SLAPPs! Otília Leitão
assuntos de interesse público. É manifestamente infundada ou caracterizada por elementos indicativos de abuso de direitos ou de leis de processo e, portanto, usa o processo judicial para fins que não sejam genuinamente afirmar, reivindicar ou exercer um direito. À laia de conclusão notamos que para a União Europeia, o fluxo livre de informações e ideias está no cerne da própria noção de democracia, sendo necessário salvaguardar um espaço público pluralista em que os cidadãos possam participar de uma forma informada nas decisões que os afetam. Também o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem defendido nas suas deliberações
que conceder indemnizações excessivamente elevadas pode ter um efeito negativo na liberdade de expressão, pelo que considera que os Estados têm a obrigação de criar um ambiente propício à participação nos debates públicos de todos os interessados, permitindolhes expressar suas opiniões e ideias sem medo. Diremos que, como a democracia e o Estado de direito precisam de defender-se de ameaças constantes, esperamos que os legisladores se inspirem nessas propostas para estabelecer regras para combater esses processos maliciosos e garantir o debate público sobre questões de interesse geral.
Resultados de um inquérito
SLAPPs! para que vos quero? LEIS ANTI-SLAPPS E EDUCAÇÃO ÉTICA DOS CIDADÃOS SERÃO ANTÍDOTOS
Para compreender a perceção dos cidadãos sobre o que são as SLAPPs e a importância no seu combate, lançámos um inquérito com cinco questões que foi colocado na rede social Facebook e em grupos de jornalistas, ambientalistas, advogados e defensores dos direitos humanos. O inquérito esteve online de 20 de março a 30 de março. Obteve-se uma amostra, de conveniência, de 127 respostas.
A análise descritiva, da amostra, destaca que mais de metade dos respondentes são mulheres (60,6%). Os homens representam 39,4%, das pessoas que preencheram o questionário. No que diz respeito às idades, sobressarem as pessoas entre os 26 e 52 anos e dos 52 aos 78 anos. 89% dos participantes possui o ensino superior e os restantes 11% têm o ensino secundário.
Participaram jornalistas, magistrados, advogados, professores, administrativos sociólogos, assessores, juristas, engenheiros agrícolas, técnicos de sustentabilidade, enfermeiros, médicos, empresários, funcionários públicos e outras não especificadas.
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Menos de metade conhece o termo SLAPP
Sobre o conhecimento do termo SLAPPs (acrónimo de Strategic Lawsuit Against Public Participation), verificou-se que a maioria dos respondentes desconhecem esse termo (66%,1). Os que conhecem este termo representam 33,9%.
Leis anti-SLAPP e sensibilização Convidados a sugerir medidas que contrariem tais processos judiciais estratégicos ou abusivos contra, 70,9% dos respondentes defendeu a criação de leis para o efeito. Quase metade dos participantes no inquérito sugeriu que os magistrados devem ser sensibilizados para o problema (49,6%). Outro tanto (47,2%), preconiza que se fomentem medidas dissuasoras no sentido de evitar que tais processos prossigam.
Em quarto lugar surgiu a importância da sensibilização de jornalistas para o problema das SLAPPs (31,4%), seguindo-se um maior conhecimento do tema pelos ativistas de direitos humanos (14,2) e ambientalistas (7,9%). Outras medidas sugeridas pelos participantes, e em igual percentagem, apontam para a transparência de processos, educação ética aos cidadãos, educação no ensino universitário, sensibilização de advogados e mudança de regime político (0,8%).
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Medidas anti SLAPPs! Otília Leitão
Quando instados a comentar se os jornalistas precisam de proteção no exercício do direito a Informar, os participantes, uma larga maioria (84,3%) confirmou que os jornalistas precisam de proteção no exercício da sua atividade. 15,7% dos respondentes disseram que os jornalistas não precisam de proteção.
Sobre a equação da trilogia do Direito à Informação, a Informar e ser Informado, enquanto direitos fundamentais, 68% dos inquiridos confirmaram com um “Sim”, que estes direitos são direitos fundamentais. Outros respondentes, em percentagens inferiores, manifestaram a sua concordância
com expressões: “absolutamente”, “sim, mas com limitações”, “completamente”, “sem abusos”, “constitucionalmente”. Tais resultado, leva-nos a inferir que todos os participantes no inquérito concordam que estes direitos dão fundamentais.
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Dos inquiridos, 88,2% disseram desconhecer a existência de processos de SLAPPs em Portugal. Apenas 11,8% disseram ter conhecimento deste tipo de estratégias intimidatórias. Convidados a partilharem, sucintamente, os casos que conheciam, obtivemos a partilha de doze pessoas Algumas partilhas indicam situações já referidas pela nossa investigação como o caso de Luanda leaks/ Isabel dos Santos e dos guardiões do Tejo, mas do conjunto das respostas surgem outras que indiciam estratégias limitadoras da liberdade de expressão. “um juiz desembargador residente no interior profundo do país que põe ações contra jornalistas em tribunal muito recôndito e pede indemnizações de centenas de milhares de euros” exemplifica um dos participantes. Outro exemplo citado relaciona-se com “atentados ambientais em que se denunciam crimes ambientais e depois quem denuncia sofre retaliações”. “A participação em assembleias gerais via digital ou presencial que limitam a participação de quem não tem acesso a meios digitais ou vive longe do local da AG.”, foi também uma circunstância cerceadora da liberdade de expressão.
Os processos da Segurança Social, são a pandemia na justiça”. Um “Juiz que presidiu ao julgamento, não assinou as respetivas Atas, nem a Meritíssima que assinou esses documentos compareceu a qualquer uma das citadas audiências”, assim como “alguns artigos de jornalistas, são pagos no sentido de influenciar a opinião”, são apontados como um exemplo de estratégias cerceadoras do apuramento da verdade. Por último foi partilhado o facto de funcionários de uma autarquia terem denunciado casos de corrupção durante uma assembleia geral, e depois sere surpreendidos com processos disciplinares, sendo obrigados a desmentir o que disseram e acusados de terem o “complexo de Deus”. Dos resultados aqui demonstrados, e numa espécie de analogia, concluímos que a maior parte das pessoas desconhece não só o termo SLAPPs mas também o tipo do seu conteúdo. A maioria concorda que são necessárias leis no combate a este fenómeno, mas preconiza também a sensibilização de profissionais e de educação ética dos cidadãos. Todos concordam que o Direito à informação de Informar e ser Informado são fundamentais e uma larga maioria considera que os jornalistas precisam de proteção no exercício de informar.
Outra partilha refere que “o próprio Estado, consciente do seu dever de proteção social aos contribuintes, sobrecarrega a justiça com processos que estão perdidos à partida.
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PANO PARA MANGAS Margarida Vargues
FILMES DE UM A V IDA
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as últimas semanas, muito se tem falado na comunicação social sobre o ensino em Portugal, especialmente sobre a crescente e gritante falta de professores, não só por ser uma classe maioritariamente à beira da idade da reforma, mas também por ser uma profissão nada - mesmo nada! - atractiva aos olhos dos mais jovens. De uma coisa podemos ter a certeza: sem professores não há médicos, não há engenheiros, não há arquitectos, não há advogados, não há juízes, não há… a lista é infinita, tal como as razões que têm levado ao abandono da carreira por muitos profissionalizados. A título de curiosidade, e movida por esta avalanche de notícias, fui consultar as tabelas salariais em vigor e fazendo contas ao tempo que (não) tenho de serviço - por ter estado afastada do ensino praticamente desde que me formei -, caso concorresse e ficasse colocada - hoje, quase de certeza ficaria! - o meu salário líquido mal daria para pagar as despesas fixas e, caso a colocação exigisse uma mudança para longe, com sorte conseguiria pagar um quarto partilhado e alimentar-me-ia de latas de atum com massa o mês inteiro. Este facto, aliado ao que vivencio e oiço sobre o que se passa dentro das salas de aula, levoume a ir buscar um dos filmes da minha vida - e quiçá das escolhas que fui fazendo ao longo dos anos. E de que filme se trata, afinal? Nada mais, nada menos que o Clube dos Poetas Mortos. Quem nunca o viu que se acuse! Se se acusou, não espere mais - está disponível no Youtube para compra ou aluguer. Sim, também deve existir pirateado, mas como o exemplo vem de cima, adquiri-o para o dar a conhecer aos meus alunos e para o (re)ver tantas quantas vezes que me apetecer. O filme é longo para a duração das aulas. Infelizmente… Assim deixei ao critério de cada aluno que escrevesse o fim da história a partir de alguns momentos de viragem. Só depois o mostrei até ao fim. Houve textos surpreendentes, outros nem por isso. Nada fora do normal. Deste modo, nas últimas semanas, as palavras Carpe Diem ou O Captain! My Captain! entraramme pela alma seis vezes. Seis vezes. Comovo-
me sempre. A última cena deixa-me lavada em lágrimas. O curioso é que apesar de ter sido realizado em 1989 e de a história se passar nos anos 50 do século passado, há cenas que podiam acontecer agora, neste início de anos 20 do século XXI. A prepotência e intransigência dos pais retratados transporta-me para as exigências actuais de que na cabeça de muitos, os filhos são prodígios e que valores na pauta inferiores a 4 ou 17, de acordo com o nível de ensino, não são notas válidas. Por incrível que pareça, ainda há quem exija que os filhos estudem para ser isto ou aquilo, em prol do status, do reconhecimento, da placa dourada numa qualquer porta onde possa ser exibido o título conseguido. Isto causa angústia, frustração e dor. É uma faca de dois gumes, onde o meio termo é difícil de encontrar, onde os egos se sobrepõem ao SER e fomentam o TER (“ Se tiveres um 18, ofereço-te…”) Temo que se esteja a criar uma geração de TERES HUMANOS… E onde entra Mr. Keating - o professor cujos métodos de ensino são muito pouco ortodoxos - na sociedade de hoje? Ainda há alguns como ele, felizmente. Mas como ele, também nós, os professores, somos castigados por um sistema onde o aluno tem sempre razão e onde as notas são inflacionadas em prol do “bem de todos” apenas para não haver problemas nem milhares de burocracias para cumprir, que mais parecem um castigo que um dever. A liberdade de pensamento e de interpretação são tolhidos por programas extensos, obsoletos, muitas vezes aborrecidos e que fomentam a memorização sem criar conexões entre as diversas áreas. As notas são sobrevalorizadas em detrimento da vocação e dos talentos naturais. Está tudo à distância de um click e as teclas de Ctrl C + Ctrl V fazem o trabalho que pertence ao cérebro. É mais fácil. Dá menos trabalho. As notas desejadas continuam a preencher a pauta. Utopia, ou não, acredito na mudança. Acredito na existência de outros Mr. Keating na vida das gerações mais novas. Acredito, ainda, que o ser professor venha também a ter direito à tal placa dourada, ao reconhecimento, ao salário ajustado,
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ABRIL ÁGUAS MIL José Luís Outono
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Comenta o povo sobre regularidades climatéricas, perdão …comentava, porque a realidade de hoje é mil vezes bem diferente. Tentando rever alguns calendários de tempos mil, é curioso notar que nem só de clima vive o homem, por entre outros contos de entendimentos mil, onde o velho dicionário já olha para a reforma muito mais cedo, face a namoros mil e outros casamentos que riscam a história e organizam vontades mil de conveniência pessoal, para um caminhar de interesses mil. E o mundo entra em decomposição com políticas mil, poluição mil, e as cruzes dos cemitérios mesmo com as orações mil, aumentam num cair a mil pés sem argumento para um filme de sorrisos mil. O humor natural e benéfico transformou-se em negócios mil, e a própria saúde cai constantemente na bolsa do vermelho perante saudades nas cotações de cuidados mil, hoje meros contos de ilusões mil. O argumento do filme vida, mais não é do que um mapa de cumprimentos mil, onde o gesticular lógico de pedidos com mil benesses, deturpam
orçamentos de mil páginas onde cada zero é conjugado com deduções mil de emendas para ganhar cadeiras de mil sossegos apregoados, ditadores de mil rios onde as mil espécies de alimentações mil, são meros palcos secos de desertos mil, e a sede acontece. Os olhos infantis choram lágrimas mil, num terreno escorregadio de ditas surpresas mil, mas infernos de mil chamas, que alimentam cegueiras mil sem castigos mil, porque as grades mil deixaram cair alegações de teatros mil, onde até o voto é um engano mil, mesmo longe destas mil fronteiras com invasões e provocações mil. Dizem as notícias de mil olhares, que o relógio é um mero indicador de horas mil, e até o direito sucessório é um rendilhado de espertezas mil. Argumentam os desafiadores que a cláusula mil nunca existiu, e o milhão se não for multiplicado por mil é um desalento de águas mil, e poluidoras de planetas mil com buracos espaciais de mil estudos, e suposições de mil de vidas … a mil milhões de pesquisas mil. Abril águas mil, dizem!
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Licínia Quitério
25 de Abril 16
Era uma vez um inglês, súbdito de Sua Majestade a Rainha Isabel, a primeira do seu trono, senhora de grande pudor e maior religiosidade. Grande era a urgência de Sua Majestade em combater os católicos, derrotálos, custasse o que custasse, que bastava de heresias, mordomias e ousadias, com anglicanos disputadas. Foi nesse tempo de feroz guerrear que Dom Francis Trezian, desapossado de títulos e propriedades, meteu pernas a navio e ala que se faz tarde, em derradeira tentativa de salvar a pele da fúria dos inimigos. Quis o destino, como se costuma dizer, que aportasse a terras lusas, exactamente ao porto de Lisboa, cidade que sempre acolheu estranhas gentes vindas dos mais estranhos mundos, o que não era o caso, dado tratar-se de um cidadão de país aliado, por razões de casórios e domínios. A Lisboa chegou, em Lisboa ficou e, segundo não rezam as crónicas, bem se acostumou a estas gentes morenas e versejadoras, tanto melhor ainda quanto se travou de conhecimentos e amizades com conterrâneos seus, por boa ou má sorte também ali chegados. Por feitos ou virtudes, foi Dom Francis Trezian ganhando fama de santidade. Vá-se lá saber quando e porquê é um povo tocado por palavras ou actos incomuns na humanidade de seu tempo.
A parca chegou, no ano de 1608, pondo fim à sua viagem de danos e venturas. Dezassete anos decorridos após a sua morte, no dia 25 de Abril de 1625, quis a comunidade inglesa de Lisboa, a católica, bem entendido, prestar-lhe homenagem devida, tratando para tal de lhe arranjar sepultura condigna. Milagre foi dito quando, ao exumarem o corpo, o encontraram inteiro e incorrupto. De santidade se trataria, sem dúvida, o que a Igreja não confirmou, mas os homens acharam, e, para afirmarem a incorrupção do corpo e o seu triunfo na terra, lhe quiseram dar túmulo vertical onde repousasse, em posição bem apropriada para uma ascensão celeste. Com tal desígnio, precisamente um ano depois, no dia 25 de Abril de 1626, foi colocado no mármore, como se de pé estivesse, Dom Francis Trezian, conforme atesta lápide evocativa, na Igreja de São Roque de Lisboa.
Em 25 de Abril de 1974, na mesma cidade de Lisboa, as gentes morenas e versejadoras afirmaram o seu triunfo sobre a opressão e na vertical ergueram a sua santa Liberdade.
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Sobre os prefácios, os posfácios e sobre os agradecimentos aos tradutores. Nunca li um prefácio, mas quando terminei a “Conversa na Catedral” tive que o fazer.
explicar algo complexo a alguém, através do exemplo ou da comparação.
Talvez para encontrar, de imediato e sem grandes esforços, uma opinião sobre o livro que me ajudasse a pôr as ideias na ordem. Sempre ouvi dizer que as pessoas, quando sofrem um acidente de viação, reconstroem a realidade de modo não muito fidedigno uma vez que devido ao choque ou trauma, nem sempre se recordam de tudo o que sucedeu de uma forma clara ou com nitidez.
A obra é comparável a um caleidoscópio ou a um puzzle sendo a leitura da mesma realizada através daquele ou mediante o preenchimento das peças deste num exercício de elevada dificuldade que nos deixa, não poucas vezes, frustrados. A compensação (ou frustração) surge quando, no final, nos recordamos da obra como recordamos uma pintura impressionista após a vermos exibida numa qualquer exposição. Ficam as impressões na memória causadas por uma técnica de cruzamento de narrativas levada à exaustão, não só capítulo após capítulo, mas também parágrafo a parágrafo e por vezes, até dentro do mesmo parágrafo. Há quem lhe chame realismo mágico.
No dito prefácio encontrei diversas percepções sobre Lima, cidade que já tive o prazer de visitar, opiniões sobre a política sul americana assim como um relato da nossa postura (europeia) face a esta. Só para o final é possível ler, no dito prefácio, sobre o livro de Llosa encontrando neste algumas comparações e exemplos que nos ajudam a compreender o que aconteceu, não fosse esta a forma mais fácil de
É pródiga em diálogos dando-nos a conhecer a sua história mediante uma conversa entre Santiago
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CANTINHO DO JOÃO João Correia FICA ASSIM A RECOMENDAÇÃO SOBRE O QUE PODEMOS APRENDER COM OS PREFÁCIOS, POSFÁCIOS E AGRADECIMENTOS
Zavala e Ambrósio, entre Queta e Hortênsia, entre D. Fermin e Caio Bermudez, entre muitos outros. E para mim, que sempre achei que ninguém sabe escrever se não souber escrever diálogos, fiquei sem palavras (dúvidas houvesse). Ainda sobre prefácios, mas desta feita sobre tradutores, não pude esquecer o que li noutra obra de Mário Vargas Llosa, o “Tempos Duros”, sobre Cristina Rodriguez e Artur Guerra, ambos tradutores que se juntaram no universo profissional, relação essa que deu origem a um filho. Ambos, juntos, traduziram mais de duzentos livros, de diversos autores, não distinguindo o trabalho de um e de outro uma vez que, como se lê nos agradecimentos constantes dessa obra, o teclado de casa funciona a quatro mãos. No final, leem tudo em voz alta para que o outro possa ouvir e assim concluem, ambos, os retoques finais. Têm uma pequena horta em casa e dedicam-se
às terapias alternativas tendo aprendido a apreciar música jazz com o seu filho mais novo. Fica assim a recomendação sobre o que podemos aprender com os prefácios, posfácios e agradecimentos que rodeiam as obras constantes dos livros que lemos, como se de borboletas esvoaçando em redor de flores se tratasse. Não sendo estes obras literárias são, contudo, janelas abertas para uma melhor compreensão das obras primas que rodeiam, dando a possibilidade de, se assim o quisermos, imaginarmos outros contos, histórias ou aventuras que poderiam, quiçá, integrar outros livros os quais, por sua vez poderiam conter outros prefácios, posfácios e agradecimentos num ciclo, não diria vicioso, mas apenas delicioso. Fica o desafio.
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FLORES NA ABISSÍNIA Carla Coelho
Um dos livros que me encantou por estes dias foi O cheiro das flores à noite de Leila Slimani. Parte de um convite que foi feito à autora para passar uma noite num museu, sozinha, em Veneza. Talvez por confessadamente nada saber de arte contemporânea, a escritora detémse pouco no que por lá viu. Opta antes por percorrer o museu interior que é a sua memória. Fala sobre a sua vida em Marrocos, sobre a ligação ao pai e sobre o ofício de ser escritora. O livro – cuja leitura terminei em dois dias – é como as duas outras obras de ficção da escrita que conheço, O Jardim do Ogre e Canção Doce. Inteligente, articulado e perguntador. Dá-se o caso de eu também sonhar com um convite para passar uma noite no museu. E há muito tempo, diga-se. Talvez tenham sido as aventuras de Bem Stiller no filme À Noite no Museu. Imagino-me horas sentada à frente de As tentações de Santão Antão, até que o peixe ali representado levante voo do quadro e se venha sentar ao meu lado, inaugurando uma língua em que nos possamos entender. Tive o mesmo desejo (de ficar ali fechada) no Museu Britânico em Londres, os leões das portas assírias a ganharem vida e passearem
pelas salas da porcelana chinesa e dos bambus japoneses com a elegância que os caracteriza. Escusado será dizer que pelo menos até ao momento esse convite não apareceu. Sobra a imaginação, esse presente divino aos pobres e remediados. Graças a ela posso imaginar o que seria estar fechada num museu à noite. Fecho os olhos e vejo-me nos corredores do Museu de Évora. Está uma noite quente, como é sempre de esperar no Verão alentejano. Entre no museu sem expectativas. É talvez esse o melhor estado de espírito para entrar num museu, como de resto o será para qualquer outra entrada em qualquer outro momento da vida. Não sei é se será humanamente possível andar pela vida sem nada esperar. Mas, ao menos num museu, consegui ter um estado de espírito digno de um monge budista. É um privilégio estar aqui sozinha, Chamarme-ão snob talvez, mas cada vez gosto mais destes momentos em que tenho um pedaço de civilização só para mim, sinto uma espécie de compensação divina pelas vezes que tenho de aguentar
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De ol hos bem fechados, como se est ivesse à noite nu m museu e fenícia, por exemplo, para não falar de civilizações anteriores, tão velhas que lhes chamamos pré-históricas. O museu guarda alguma dessas peças e há desde logo uma delas que me chama à atenção. Tocame num ponto sensível, que me visita com frequência: a mortalidade.
ouvir as conversas banais dos outros ou as suas crianças a chorarem na livraria aos domingos de manhã. Frei Manuel do Cenáculo foi, entre muitas outras coisas, um devoto arqueólogo, o primeiro de que houve registo neste nosso país. O museu leva o nome dele, numa homenagem redobradamente merecida. É que Manuel não se limitava a apreciar a arqueologia. Fez muito por ela no nosso país e, tendo vivido longamente no Alentejo, não deixou de realizar ali numerosas explorações. Abundam pedaços de vida romana, árabe
Os tempos felizes estão registados nos andares superiores do museu. Uma surpresa me está reservada. Há Josefa d’Óbidos. Que sorte temos em a termos connosco. Agora que os quadros das pintoras saem das reservas dos museus e dos depósitos poeirentos onde estiveram durante tantos anos, agora que Artemisia, Sofia Sofisloba, Angie Kauffaman, Berthe Morisot, Vigéé Lebrun, enfim elas e tantas outras foram redescobertas. Calha bem termos a Josefa. E também temos a Aurora Silva. Para que as nações do mundo vejam que sempre fomos um povo civilizado. Muito antes da Paula Rego e da Vieira da Silva também já tínhamos mulheres a pintar. Há sempre um português em todo o lado. E uma portuguesa também. Aconteceu-nos a nós o que sucedeu pelo resto da Europa, arrumámos os quadros das mulheres e acabámos por nos esquecer que elas existiam. Talvez tenha sucedido o mesmo com as partituras de músicas e os livros de poesia, com a teoria política e escalpelização dos
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FLORES NA ABISSÍNIA Carla Coelho
motivos para a salvação ou danação das almas. Ainda vamos descobrir muita coisa a propósito destes temas. Mas, desvio-me. Não queria falar da Josefa que nem sequer aprecio grandemente. Nem dos quadros de pintores oitocentistas portugueses, retratando cenas felizes com agricultores portugueses. A mim, calham-me mais os quadros do Mário Eloy, que via a miséria que as cores bonitas dos campos pintados tantas vezes ignoravam. Uma agricultora sadia pintada entre o feno fica bem na sala de jantar do burguês. Os seus filhos a berrar de fome no casebre já não. O que me surpreendeu tarde foi topar (como diria Eça) com um quadro de Pieter Brueghel, o Filho, colocado discretamente numa das salas do museu. Sem aviso prévio, nem publicidade, o que bem demonstra que por aqui estamos seguros do nosso valor. O quadro chama-se A Festa de Casamento. Os Brueghel, Velho e Novo, registaram a miséria do povo, cientes que estavam das revoltas e levantamentos populares constantes. Não é fácil convencer os outros que temos sangue azul e por isso mandamos neles. Ou que os pobres entrarão mais facilmente no paraíso do que os ricos, pois deles é o reino dos céus. Demora séculos a convencer os outros deste tipo de coisas. E os quadros de Brueghel atestam isso mesmo. Basta pensar numa outra obra Obras de Misericórdia também exposta nas paredes de um museu português, desta vez do Museu Nacional de Arte Antiga. Retrata a distribuição de pão pelo povo, composto de velhos, crianças e aleijados. Ninguém ali está com um ar conformado, como se reconhecesse que o pão duro que lhes é entregue é aquilo que lhes é devido. Como sei que é duro, o pão? Porque me contraria o leitor? Achará que estavam a distribuir ao povo brioches? Poderia ser croissants, concedo. Desculpem se tergiverso, mas sozinha no museu toda a noite sempre teria de arranjar com que me entreter. Se não, ainda
me punha a imaginar fantasmas e larápios. Estou perdoada? Então, volto à teorização dos croissants que não podiam estar na pintura de que vos falo. Pelo simples motivo de que quando foram inventados, já os dois Brueghel se tinham finado. Reza a lenda gastronómica que devemos os croissants aos padeiros austríacos, que os criaram como celebração da derrota do exército do Império Otomano, que tentava entrar em Viena. Foi Maria Antonieta quem os levou para França. Pelo que podemos aventar que se ela tivesse dito, num qualquer dia do ano de 1789 que se povo não tinha pão que comesse croissants, talvez, a sugestão tivesse caído melhor. On saura jamais. Enfim, caro leitor não tendo sido ainda inventados os afinal populares croissants e à míngua de brioches, vamos conceder que aos mendigos retratados pelo Brueghel coube o pão duro. Que, aliás, molhado em leite, água ou vinho, se torna mole, como tantas gerações de portugueses e portuguesas podem atestar. O pão fresco esse está retratado no outro quadro, com o título A Festa de Casamento. É o momento da abundância, da alegria, de esquecer as penúrias do quotidiano ainda que por umas horas. Também isso (sobretudo isso) faz a vida. Não conheço quadros destes pintores que se foquem no indivíduo. Pintam essencialmente cenas do colectivo. A aldeia em festa, em trabalho, os pobres à porta das igrejas à espera do fim da missa. A vida material, as lutas diárias e os fugazes momentos de alegria, numa crítica social que não passava despercebida e continua a convocar-nos. Que quadros pintariam os Brueghel se lhes fossem dadas a ver imagens das pistas de aterragem cheias de gente desesperada, de reportagens dando conta de pais que vendem um rim para alimentar os filhos, de crianças que nascem em barcos e acabam no fundo dos oceanos
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antes de aprenderem a gatinhar, de homens e mulheres que fogem com os filhos numa mão e o fiel amigo de quatro patas ao colo? Que testemunho terrível deixariam da nossa época? Haveria ainda assim, no meio da miséria, uma criança a dançar, um cãozinho a dormir a sesta e dois enamorados a beijarem-se. A luz que contraria a escuridão. A claridade que nos diz que as trevas são superadas. Talvez não hoje. Mas serão afastadas. A madrugada imaginada acaba sempre por chegar. Nem toda a arte é premeditada. O que me conduz à outra peça do museu que não deixaria de enfrentar (o termo não é demasiado forte, acreditem) nessa noite no museu. A pedra funerária de Nice, feita de mármore branco e onde se lê: “Quem quer que tu sejas, viandante, que passares por mim neste lugar sepultada, se de mim tiveres pena – depois de teres lido que faleci no meu vigésimo ano de vida – e se o meu descanso te sensibilizar, rogarei que, fatigado, tenhas mais doce descanso, mais tempo vivas e longo tempo envelheças nesta vida que não me foi lícito disfrutar. Chorar, de nada te serve. Porque não aproveitas os anos? Inaco e Io mandaram fazer para mim. Via, é preferível, apressa-te, agora que leste o que tinhas para ler. Vai, Nice viveu vinte anos”.
Sei que Brueghel e Nice estão ligados. Pelo menos para mim, ainda que de forma momentânea e apenas por os ter elegido para este passeio imaginário. Claro que é preciso ter tempo. Olhar bem para os protagonistas do quadro de Brueghel. Cada rosto irrepetível, cada gesto infungível. Se observarmos bem, cada um dos retratados é uma pessoa diferente. Em quem se inspirou o pintor na verdade? Seria no vizinho do lado ou na mulher que lhe vendeu o pão nessa manhã? E o que fizerem estes com a sua vida? O que são as massas se não um conjunto de indivíduos, cada um deles com aspirações únicas a correrem o risco de naufragarem no grande mar do desígnio colectivo que alguém escolheu para os outros? A mensagem é a mesma: livra-te do que não te serve, não permitas que te amesquinhem, não de tornes coisa pouca. Olha que não tens outra. Neste passeio apenas parcialmente imaginado, levo-os comigo. Nice e todos os outros e outras a quem não soube o nome.
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Estamos em guerra. É certo que não temos tropas portuguesas, de qualquer exército da União Europeia (EU) ou de qualquer país da NATO, de armas em riste no espaço territorial da Ucrânia (descontando, aqui, black ops, que podem, ou não – não temos, por definição, forma de saber –, estar a operar naquele território, mas oficialmente inexistentes). Mas estamos em guerra. Porque fazemos parte de um determinado bloco de países que tem uma determinada forma de organização política interna, que faz parte de, pelo menos, duas organizações (UE e NATO) que partilham não todos, mas um determinado conjunto de interesses geopolíticos e geostratégicos, estamos inseridos, gostemos ou não, concordemos ou não, cada um de nós e as nossas famílias, num bloco relativamente uniforme de interesses que se contrapõe a um outro que, neste momento no tempo, é corporizado pela Rússia. Existe, portanto, uma clara oposição entre a comunidade em que nos inserimos e a Rússia. E essa comunidade não só decidiu essa oposição, como tomou parte efectiva pelo outro interveniente, a Ucrânia, proporcionando-lhe ajuda não só humanitária, mas, sobretudo, para o que ora releva, militar, quer sob a forma de entrega directa de equipamento militar, quer sob a forma de “empréstimos” de dinheiro para aquisição desse mesmo equipamento, quer, ainda, atacando os interesses russos pela via económica e financeira das mais diversas formas, tanto a nível estatal como pessoal. Não ocorreu, no entanto, de que eu tenha conhecimento, qualquer declaração de guerra dirigida à Rússia por qualquer dos membros desta comunidade. Seria mentira, porventura, afirmar que estamos em guerra. Mas, claramente, essa mentira é verdade, porque, se é uma verdade que «[a] guerra é a continuação da política por outros
meios» (von Clausewitz), não é menos verdade que mediante a política se podem desenvolver e concretizar guerras. Quer as clássicas “guerras por procuração”, quer as guerras comerciais e financeiras. Este é o primeiro tropo – A verdade da mentira de que estamos em guerra. Mas, estando em guerra, impõe-se a pergunta – porque estamos em guerra? Uma resposta simples seria esta – a Rússia invadiu um país soberano, em violação do direito internacional. A questão é que o Direito Internacional Público vale, em boa e crua verdade, aquilo que os Estados, quiserem, sobretudo os Estados que detêm um poder bélico que lhes permite, na prática, ditar as regras de engajamento. De todo o modo, existe, é certo, um “Direito dos Conflitos Armados”, também designado por “Direito Internacional Humanitário” (DIH). Uma vez que o Direito Internacional Humanitário é parte integrante do Direito Internacional Público, as suas fontes correspondem, naturalmente, às deste último. O Artº 38.º, do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça, define essas fontes, sendo que, de acordo com o artº 38.º, nº 1, als. a) a d), do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça, considerado uma declaração oficial sobre as fontes do Direito Internacional, o Tribunal deve aplicar: a) Convenções internacionais (observe-se que “convenção” é outra palavra para “tratado”); b) Costume internacional, como prova de uma prática geral aceita como lei; c) Os princípios gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas; e d) As decisões judiciais e os ensinamentos dos publicitários mais qualificados, como meios subsidiários para a determinação das normas de direito.
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Os tratados e os costumes são, assim, as principais fontes do Direito Internacional. Em relação ao DIH, os tratados mais importantes são as Convenções de Genebra de 1949, os Protocolos Adicionais de 1977 e as chamadas Convenções de Haia. Embora os tratados vinculem apenas as partes de um tratado, os Estados também podem estar vinculados às regras do direito consuetudinário internacional. A esse propósito tem-se considerado que tais regras «são estabelecidas por meio da prática repetitiva e uniforme de Estados envolvidos em conflitos armados ou de terceiros Estados em relação a conflitos armados, na convicção de que comportamento praticado é obrigatório. Dois elementos são considerados para determinar a existência do direito consuetudinário: prática e opinio iuris. A prática refere-se à conduta do Estado que é consistente (mas não necessariamente uniforme por completo) ao longo do tempo. Opinio iuris é um elemento subjetivo, ou seja, a crença de que esse padrão específico de ação é exigido por lei. Na área do DIH, exemplos de prática incluem expressões em declarações oficiais, manuais militares e também podem ser encontrados em alegações de violações de um estado contra outro estado, ou em defesas contra violações» (“Direito Internacional Humanitário Consuetudinário”, CICV, 29 de outubro de 2010. Disponível em inglês: https://casebook.icrc.org). Este Direito Internacional humanitário consuetudinário é de importância crucial nos conflitos armados de hoje porque preenche lacunas deixadas pelo direito dos tratados em conflitos internacionais e não internacionais e, assim, fortalece a proteção oferecida às vítimas. Repare-se que estamos no Século XXI e não no Século XIX ou na primeira metade do Século XX. Na época em que o jus ad bellum admitia a licitude do recurso à força, era necessário um acto formal dos Estados para que fosse desencadeada a aplicação do jus in bello, consistindo este acto numa declaração de guerra ou num reconhecimento de beligerância. No entanto, a declaração de guerra corresponde a uma mera «cortesia» de uma época extinta. O jus ad bellum (regulamentando o recurso à força armada)
refere-se ao princípio de travar uma guerra com base em causas precisas, como a autodefesa. Nos referidos e passados tempos, os Estados não eram proibidos de fazer guerra nem quando tinham o direito de fazer a guerra (jus ad bellum). Actualmente, no entanto, o uso da força entre os Estados é proibido por uma regra de Direito Internacional (o jus ad bellum mudou para um jus contra bellum) [expresso nas Nações Unidas, Carta das Nações Unidas, 26 de junho de 1945, Capítulo I, Artº 2.º. 4, determinando que «[t]odos os Membros devem abster-se em suas relações internacionais de ameaças ou uso da força contra a integridade territorial ou independência política de qualquer estado, ou de qualquer outra forma inconsistente com os Propósitos das Nações Unidas», disponível em: https://www.unicef.org/brazil/carta-das-nacoesunidas]. São permitidas exceções a essa proibição geral em casos de autodefesa individual e coletiva (reconhecido na ONU, Carta das Nações Unidas, 26 de junho de 1945, Capítulo VII, Ar.º. 51: «Nada na presente Carta deverá prejudicar o direito inerente à legítima defesa individual ou coletiva se um ataque armado ocorrer contra um Membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para manter a paz e a segurança internacionais. As medidas tomadas pelos Membros no exercício deste direito de legítima defesa devem ser imediatamente comunicadas ao Conselho de Segurança e não devem de forma alguma afetar a autoridade e responsabilidade do Conselho de Segurança nos termos da presente Carta de tomar, a qualquer momento, ações como esta considerar necessário para manter ou restaurar a paz e segurança internacionais»); medidas de fiscalização do Conselho de Segurança das Nações Unidas (estabelecido no Capítulo VII da Carta das Nações Unidas) e, admite-se, para fazer cumprir o direito dos povos à autodeterminação (guerras de libertação nacional) [A legitimidade do uso da força para fazer cumprir o direito dos povos à autodeterminação (reconhecida no Artº 1. de ambos os Pactos de Direitos Humanos das Nações Unidas)
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foi reconhecida pela primeira vez na resolução 2105 (XX) da Assembleia Geral da ONU, adotada em 20 dezembro de 1965, disponível em inglês: https:// undocs.org]. Mas, como é lógico, pelo menos um lado de um conflito armado internacional contemporâneo está, necessariamente, a violar as regras de jus ad bellum, apenas pelo uso da força, por mais respeitoso que seja o DIH, e nenhuma das excepções acima apontadas se aplica à questão ora versada. Ora, uma das alterações introduzidas nas codificações normativas internacionais foi precisamente o abandono da expressão “guerra” pela de “conflito armado”. A este propósito, escreve-se no Comentário sobre as Primeiras Convenções de Genebra de 1949, que: «A substituição desta expressão muito mais geral (conflito armado) pela palavra ‘guerra’ foi deliberada. Pode-se argumentar quase que infinitamente sobre a definição legal de ‘guerra’. Um Estado sempre pode fingir, quando comete um acto hostil contra outro Estado, que não está fazendo guerra, mas apenas se envolvendo em uma ação policial ou agindo em legítima defesa. A expressão ‘conflito armado’ torna esses argumentos mais difíceis. Qualquer diferença que surja entre dois Estados e leve à intervenção das Forças Armadas é um conflito armado...mesmo que uma das Partes negue a existência de um estado de guerra» (Jean S. Pictet, Comentário da Primeira Convenção de Genebra para a Melhoria das Condições dos Feridos e dos Enfermos das Forças Armadas em Campanha ,Genebra: CICV, 1952, 32. Disponível em inglês: https://ihl-databases. icrc.org/ihl/COM/365-570005?OpenDocument). Esta constitui a segunda verdade da mentira, no caso, narrada pela Rússia, quando alega que está a realizar uma “operação especial”. Trata-se de um mero jogo de palavras, que só engana os mais crédulos, ou quem quer ser enganado. A este propósito recorde-se que O Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia (ICTY) desenvolveu a primeira definição abrangente do conceito, nos termos da qual «existe um conflito armado sempre que há recurso à força armada entre Estados ou violência armada prolongada entre autoridades governamentais e grupos armados organizados ou entre esses grupos dentro de um Estado» [(Sassòli, Bouvier e Quintin,
“ICTY, The Prosecutor v. Tadić, Jurisdiction” em HDLPiW Vol. 3, 7. Veja: ICTY, ICTY Prosecutor v. Dusko Tadić, IT94-1- AR72 (1995)]. Em forma de codificação temos a Primeira a Convenção de Genebra, “Convenção de Genebra de 12 de agosto de 1949 para a Melhoria das Condições dos Feridos e dos Enfermos das Forças Armadas em Campanha”, 12 de agosto de 1949, Capítulo I, Artº 2.º (disponível em http://www.direitoshumanos.usp. br/index.php/Table/Conven%C3%A7%C3%A3o-deGenebra/) Torna-se, para mim, neste quadro, evidente que:
1.º Estamos perante um conflito armado internacional; e 2.º O fautor desse conflito é exclusivamente a Rússia, país ao qual se devem imputar todas as responsabilidades pelo despoletar do mesmo. Encontramos, a este propósito, o segundo tropo:
“a verdade é a primeira vítima da guerra”. Esta é uma realidade inescapável. A partir do momento em que todos os países da NATO e da EU tomaram o partido da Ucrânia e se decidiram a ajudála directa e indirectamente, criaram-se dois blocos comunicacionais, impermeáveis e contraditórios, relembrando que, cada um de nós vive no primeiro dos referidos blocos. De um lado temos a narrativa (termo propositadamente aqui escolhido) noticiosa que nos é fornecida pelos outlets mediáticos dos países da comunidade em que estamos inseridos. Do outro teremos a narrativa noticiosa da Rússia. Lamentavelmente, diria mesmo inexplicavelmente, a EU – e Portugal – decidiu proibir a difusão de meios noticiosos directa ou indirectamente detidos pela Rússia (estatal ou privadamente). Não estando nós em guerra declarada, inexistindo, que eu conheça, qualquer decisão tomada por qualquer órgão representativo eleito, no sentido dessa proibição (e mesmo que existisse) entendo que estamos perante um claro acto de censura e violação dos diretos à informação, em clamorosa violação do direito fundamental à liberdade expressão e informação,
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consagrado no artº 35.º, da nossa Constituição, e em violação igualmente do artº 11.º, da Carta Dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2016/C 202/02). Para além de objectivamente censurável, esta opção, ao não permitir o acesso à narrativa noticiosa russa, amputando o direito cívico à autodeterminação informativa e à apreciação crítica e racional de ambos os lados da narrativa, permite, ao invés, o florescimento de passarinhos (não lhes chamos pombas porque a essa qualificação não chegam) da paz, portadores de narrativas putinescas, com inspiração em espaços informativos marginais, sem fontes confiáveis e confirmáveis de informação, uns mais “maluquinhos” que outros, todos lutando contra moinhos de vento mais ou menos imaginários e apressando-se em qualificar todos os outros de “carneiros” ou “mentecaptos”. No fundo, esta muito criticável opção, fez mais mal do que bem na medida em que uma sociedade só parcialmente (isto é, só em parte e sempre parcial e enviesadamente) informada é uma sociedade agrilhoada a uma verdade, impossibilitada do exercício cívico da apreciação crítica e criteriosa da realidade alcançável. Falam-nos, bastas vezes, os tais “passarinhos” das razões primordiais e profundas do conflito, sempre com a intenção não só de compreender (o que seria aceitável, na medida em que compreender não é aceitar ou concordar, mas, tão só, empaticamente reconhecer a alteridade do outro) mas, sobretudo, de justificar a agressão russa e criticar a actuação do bloco de interesses em que, como disse e repito novamente, cada um de nós, goste ou não, está inserido. Sucede que, pela minha parte, não vejo como se funda racional e pragmaticamente, esta segunda narrativa, dos “passarinhos da paz”. Em primeiro lugar porque a justificação russa para a agressão armada à Ucrânia (a toda a Ucrânia, recordo, e não apenas ao leste da mesma) é caricata, sobretudo vinda de quem vem.
Putin preside a um país que mais não é do que uma autocracia autoritária oligárquica, sem liberdade de expressão e informação, desde há muitos anos. E inspira-se muito em Ilan Ilyn cuja obra foi ressuscitada, na Rússia, na última década do século passado, tendo sido toda republicada e distribuída, por todos os funcionários públicos do país, tendo o centésimo aniversário da Revolução Bolchevique (imaginese, conhecendo a obra de Ilyn!) sido comemorado na televisão Russa com um documentário que apresentava este filósofo como uma autoridade moral (ver, a este propósito, com abundantes indicações de fontes primárias pesquisáveis, Timothy Snyder, “Rússia, Europa, América – O caminho para o finda da liberdade”, Edições 70, 2019, págs. 26 a 46, notas 6 a 47). Putin citou, amplamente, em várias intervenções e/ou discurso, Ilyn, quer directamente, quer invocado o seu pensamento. E qual era esse pensamento? Era – é – o de um fascista autoproclamado, vendo o fascismo como a política do mundo vindouro, admirando Mussolini e manifestandose impressionado com Hitler; defendendo que o comunismo havia sido imposto à Rússia pelo decadente (nas suas palavras) Ocidente; ansiando pelo dia em que a Rússia se libertaria de si própria e libertaria os outros com uma espécie de fascismo cristão (antinómico que nos pareça tal conceito); Cioram, o autor romeno fascista, acompanhou Ilyn nestes pensamentos; no essencial, e para o que ora interessa, do pensamento de Ilyn, no que conflui com os interesses de Putin, resulta que há que retornar a uma Rússia íntegra, pura e virginal, para que será necessário retornar a um passado mítico e fantasioso. No fundo, não estamos senão perante um conservadorismo reacionário, inaugurado por Josephe de Maistre, que escreveu o “Considerations on France” (Cambridge Texts in the History of Political Thought). Apresentando-se, De Maistre, como fortemente crítico da Revolução Francesa ou, melhor dito, dos seus desenvolvimentos, o mesmo via a Revolução Francesa como um mero interlúdio, defendendo o retorno a um passado que via como idílico e totalmente virtuoso, tenho sido o gérmen dos autoritarismos não
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comunistas e fascismos do século XX, ao não admitir a possibilidade de que as pessoas, em liberdade, fossem capazes de reconhecer as regras do bom viver e de confiar que as outras as seguiriam, reconhecendo-as. Apenas Deus podia ser a fonte dessa possibilidade. Por isso, o conservadorismo sucedâneo de De Maistre é reaccionário, no sentido em que está sempre com o pensamento num passado que desenha como idílico, perfeito, ao qual quer retornar. Neste pensamento não há lugar para o indivíduo, nem sequer, como deve ser, para o indivíduo, para a Pessoa, social e culturalmente integrado. Não há lugar para a comunidade, para a família, mas, tão só, para um Estado totalitário. É esta – mitigada, ou até desvirtuada, pelo venalismo típico das autocracias oligárquicas – a proposta que a Rússia da actualidade traz ao mundo, e é essa mítica cruzada pela recuperação de um passado que o é irremediavelmente, que, bem lá no âmago da escuridão da mente de Putin, a invasão da Ucrânia pretende concretizar. Em segundo lugar, porque, entre este bloco – por ora, pelo menos de forma desbragada e evidente, constituído pela Rússia – e o bloco que àquele se opõe, em que Portugal está inserido, inexistem quaisquer dúvidas, para mim, sobre a opção a tomar. Não só porque penso que a democracia demoliberal – por muitos defeitos que tenha e tem (veja-se o exemplo acima, relativo à censura dos meios de comunicação russos – constitui a melhor forma de governo das sociedades, mas porque prezo a minha liberdade, a liberdade da minha família e da minha
comunidade. Neste perspectiva, como não tomar as dores da Ucrânia como nossas? Como não a apoiar na luta pela sua própria sobrevivência? Como não contrariar o agressor – a Rússia – de todas as formas possíveis que não impliquem, por ora, um claro engajamento militar armado directo? Desejarão os “passarinhos da paz”, ficando toda a comunidade Ocidental numa posição de mero observador imparcial e não interveniente, que a Rússia prossiga com os seus planos imperialistas e chegue a pontos (não só de acção, mas de extensão geográfica) que implicariam, inevitavelmente, a destruição de liberdades que esses mesmos “passarinhos da paz” têm por seguras e que lhes permitem, apesar de tudo, explanar e publicitar livremente as suas ideias e convicções? É que, parecem esquecer que essas suas liberdades, num regime como o do tipo russo, de imediato, violenta e irremediavelmente, seriam reduzidas a pó no exacto momento em que o seu exercício contrariasse ou sequer colocasse em causa o pensamento oficial e autorizado. Ou seja, ou bem que gostariam disso, e partilham das convicções ideológicas do regime russo, constituindo, por isso, uma verdadeira Quinta Coluna no nosso meio, ou bem que padecem de uma ingenuidade patológica.
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Duarte Rodrigues Nunes
Bruno Langbehn, O Perfeito Nazi O livro O Perfeito Nazi foi escrito pelo cineasta e escritor britânico Martin Davidson, filho de um escocês e de uma alemã .
Continuação... Bruno Langbehn conseguiu os seus intentos, tendo entrado para as SS em 12 de setembro de 1937 com o posto de Untersturmführer (2.º tenente). Prosseguindo na sua condição de Apparatchik e beneficiando do muito maior prestígio das SS face às SA, Bruno Langbehn logrou ser nomeado para a Frente Alemã do Trabalho (Deutsche Arbeitsfront ou DAF), liderada por Robert Ley, organismo que, a partir de 10/05/1933, substituíra a totalidade dos sindicatos alemães, que haviam sido ilegalizados e os seus líderes detidos. Bruno foi nomeado supervisor/administrador sénior (Gaufachswalter). E foi igualmente nomeado Chefe do Departamento Regional (Landesdienstsellenleiter) de Berlim da Associação dos Odontologistas do Reich (Reichsverband Deutscher Dentisten), pese embora tivesse pouco mais de 30 anos, o que demonstrou o reconhecimento da sua dedicação à causa nazi. Na prossecução da política racial nazi, a Associação dos Odontologistas do Reich, incluindo o Departamento Regional de Berlim, levou a cabo a expulsão de odontologistas judeus do exercício da profissão. Mas, ainda no que tange à sua admissão nas SS, Bruno Langbehn, foi nomeado para o departamento mais importante das SS, o SD (Sicherheitsdienst) Hauptamt (Departamento Central do Serviço de Segurança ), mais concretamente para o departamento de elite Reichsführung SS, ligado
à liderança das SS (e ao Reichsführer Heinrich Himmler), em cujo Amt II (que controlava a segurança interna do Reich, vigiando instituições e pessoas percecionadas pelo regime como opositoras da Weltanschauung nazi) foi colocado. Contudo, apesar da sua pertença às SS, de manter o contacto com os seus anteriores comparsas das SA e de residir em Charlottemburg (o local onde foi levada a cabo a maior violência contra os judeus em todo o país nessa fatídica noite), o autor não logrou apurar se Bruno Langbehn tomou parte no Pogrom antissemita que teve lugar na noite de 9 de novembro de 1938, a Noite de Cristal (Kristallnacht), que constituiu uma represália do regime contra os judeus em virtude do assassinato no conselheiro da embaixada alemã em Paris, Ernst von Rath, por um judeu polaco. Com a invasão da Polónia em 1 de setembro de 1939 e com a declaração de guerra da Inglaterra e da França à Alemanha no dia 3, iniciou-se uma nova etapa na carreira de Bruno Langbehn, que, apesar de ser membro das SS e ter mais de 30 anos de idade, se apresentou como voluntário, tendo sido integrado numa unidade de artilharia antiaérea nos arredores de Berlim. Contudo, na primavera de 1940, quando a Alemanha, após ter conquistado a Dinamarca e invadido a Noruega a 9 de abril de 1940 (a Noruega só foi conquistada em junho desse ano),
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se preparou para conquistar a Holanda, a Bélgica, o Luxemburgo e a França (desencadeando a ofensiva no dia 10 de maio), Bruno Langbehn, apesar da sua idade, foi transferido para a Frente Ocidental, mas mal chegou a entrar em combate em virtude de ter sofrido um acidente com um cavalo, que se assustara com o tiroteio e o atirou contra uma parede, ferindo-o com gravidade e impedindo-o de continuar a combater, obrigando igualmente à desistência da profissão de odontologista, que exercia a tempo parcial. Por isso, foi integrado na sede do SD na Prinz-Albrecht Strasse (onde também se situava a sede da Gestapo ), onde, como Inspekteur (inspetor) de Berlim, ficou a chefiar as operações dos serviços secretos na capital, acumulando essas funções com as de Chefe do Departamento Regional de Berlim da Associação dos Odontologistas do Reich. Terá sido graças a este último cargo que Bruno Langbehn se apercebeu de que um odontologista judeu, Hartmann Levy (que se suicidou em outubro de 1942 para escapar às provações da deportação) possuía um consultório que ficara vago e, seguidamente, conseguir a sua expropriação e oferecê-lo à sua sogra, Ida, que (tal como Bruno quando, mais tarde, regressou à profissão) aí passou a exercer a sua atividade de odontologista. Com o fracasso da invasão da União Soviética (iniciada em 22 de junho de 1941) no inverno de 1941-42, vários altos dignitários das SS reuniramse em Wannsee em 20 de janeiro de 1942, tendo adotado a chamada Solução Final do Problema Judaico na Europa (Endlösung), que determinou o assassinato em massa dos judeus e de outras minorias étnicas. Todavia, o autor também não conseguiu descortinar qual o papel que o seu
avô desempenhou na Endlösung, designadamente se participou em atrocidades contra os judeus ou outras minorias étnicas, pese embora o papel relevante que as SS e, dentro delas, o SD tiveram na organização e na execução do Holocausto. De acordo com o livro, o autor logrou apurar que o seu avô, em 1942, além de Inspekteur em Berlim, estava colocado no Departamento (Amt) VI do RSHA , que correspondia ao SD na sua vertente de proteção da segurança internacional (a vertente da segurança interna correspondia ao Amt III), tendo sido promovido a Hauptsturmführer (Capitão) no início de 1943 e não tendo sido novamente promovido até ao final da guerra. Em meados de junho de 1944, Bruno Langbehn foi enviado, juntamente com a mulher, para Praga, a sua última colocação durante a guerra. No entanto, pouco tempo depois de ter chegado a Praga, Bruno Langbehn foi preso pela Gestapo, por suspeitas de estar envolvido no complot para matar Hitler, no âmbito do qual, no dia 20 de julho de 1944, o Conde Claus Schenck von Stauffenberg (um Coronel do Exército alemão) fizera explodir uma bomba no Quartel-General de Hitler em Rastenburg com o objetivo de o matar.
Todavia, Hitler escapou apenas com ferimentos, tendo sido despoletada uma vaga de repressão sem precedentes na Alemanha hitleriana, desta vez visando políticos e militares que haviam sido fiéis ao regime, mas que com ele haviam rompido. Bruno Langbehn acabou por ser libertado, uma vez que a sua detenção se devera a confusão entre o seu nome e o de um advogado implicado na conspiração (o Dr. Carl Langbehn), que foi julgado no Volksgericht (Tribunal do Povo), presidido pelo sinistro Roland Freisler, condenado à morte e executado. Após a sua libertação, Bruno Langbehn dedicou-se à missão que estava a ser levada a cabo pelo Amt VI do SD em Praga: preparação de ações antiguerrilha, que os alemães sabiam que estavam em vias de acontecer logo que as tropas soviéticas se aproximassem da cidade, dado que haviam intercetado comunicações entre o Governo checoslovaco no exílio e a Resistência, em que aquele incitava a Resistência a levar a cabo ações armadas contra os alemães, à semelhança do que sucedera no ano anterior em Varsóvia. Com o desmoronamento da Frente Leste alemã e a iminente chegada do Exército Vermelho a Praga, no dia 5 de maio de 1945 rebentou uma
Bruno Langbehn numa fotografia de 1941 com a sua mulher e as duas filhas mais velhas do casal Langbehn
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Bruno Langbehn, O Perfeito Nazi Duarte Rodrigues Nunes
insurreição em Praga contra os alemães, que se iniciou com a ocupação da estação de rádio por resistentes, que incitaram à revolta e à morte aos ocupantes alemães. Construíram-se barricadas e os alemães reagiram com bombardeamentos aéreos sobre as posições dos resistentes checos e fuzilamentos em massa no campo de concentração de Teresienstadt. O grupo de exércitos alemães comandado pelo Marechal (Generalfelmarschall) Ferdinand Schörner, que se encontrava nos arredores de Praga enfrentando as tropas soviéticas não apoiou os alemães no interior da cidade, pois Schörner estava mais preocupado em escapar em segurança para o Ocidente (para se render aos aliados ocidentais) do que em apoiar os defensores de Praga e ser feito prisioneiro pelos soviéticos. Por isso, a defesa de Praga ficou nas mãos dos membros das SS e da polícia, que levaram a cabo uma campanha sangrenta para tentar reconquistar o controlo da cidade e esmagar a rebelião, que não parava de aumentar de intensidade, sendo muito elevadas as baixas de ambos os lados. As SS cometeram terríveis atrocidades, retirando civis checos (incluindo crianças) que nada tinham a ver com os revoltosos de abrigos antiaéreos e de casas (que incendiavam) e assassinando-os à baioneta. Também os resistentes checos linchavam os alemães que faziam prisioneiros e chacinaram civis alemães (incluindo crianças). Os revoltosos conseguiram dominar a situação e, dias depois, passaram a controlar a cidade. Bruno Langbehn, sabia que ele, a mulher e as filhas (que, entretanto, se haviam juntado aos pais) corriam grande perigo se ele fosse detido e identificado como oficial das SS. Por isso, destruiu todas as provas (uniformes, insígnias e documentos) que o ligassem às SS e conseguiu roupas civis (que lhe terão sido arranjadas por um vizinho checo, o filho do porteiro do seu prédio, que fizera amizade com as filhas de Bruno ), o que o livrou de ser imediatamente abatido pelos revoltosos quando chegaram à residência de Bruno Langbehn. Contudo, esquecera-se de se desfazer de duas espingardas de caça, pelo que, apesar de trajar como um mero civil alemão, foi detido e levado para a prisão, tal como a sua família. Foram colocados em celas separadas, apenas se tendo reencontrado muitos meses depois. Bruno Langbehn foi colocado numa cela juntamente
com outros alemães e, a dada altura, foram levados para fora da cela e começaram a ser abatidos com tiros na cabeça por um guerrilheiro checo, mas, para sua sorte e de um outro membro do grupo, apareceu um oficial soviético, que, chocado com a situação, impediu o guerrilheiro de continuar a abater os prisioneiros, que foram novamente conduzidos à cela. Algum tempo mais tarde, Bruno Langbehn foi julgado num Tribunal popular checo, mas, como não foi identificado como sendo oficial das SS, livrou-se de ser condenado à morte, tendo sido entregue aos soviéticos, que o transferiram para uma prisão na Hungria, de onde foi libertado em 14 de setembro de 1945. Nunca foi descoberta a sua pertença às SS em virtude de nunca ter feito a tatuagem das SS e de ninguém o ter denunciado enquanto tal. Regressou a Berlim no final de 1945, reencontrando a sua sogra Ida, mas desconhecendo o paradeiro da sua mulher e das suas filhas. Estas só conseguiram chegar a Berlim mais tarde, após terem estado detidas durante 18 meses num campo de trabalho na Checoslováquia. E, quando chegaram à sua antiga residência, Bruno, que temia ser preso, só as deixou entrar depois de se certificar de que eram realmente quem diziam ser. Reunida a família e porque as tropas aliadas de ocupação estavam a esquadrinhar a Alemanha à procura de criminosos de guerra nazis, Bruno Langbehn decidiu que a sua família iria utilizar o apelido Holm, a fim de evitar a sua própria responsabilização no âmbito dos processos de desnazificação do pós-Guerra. Assim, durante 4 anos, os Langbehn passaram a ser os Holm e mudaram-se de Berlim para um subúrbio dormitório de Hamburgo chamado Wedel. Metade da população de Wedel eram refugiados/deslocados, o que facilitou de sobremaneira a ocultação da verdadeira identidade dos Langbehn e, sobretudo, a de Bruno. Com o início da Guerra Fria, a procura de nazis e ex-SS como Bruno Langbehn afrouxou, o que permitiu que, em 1950-1951, os Holm tivessem voltado a ser os Langbehn, tendo-se mudado novamente para Berlim e Bruno voltado a exercer a sua função de odontologista, obtendo uma nova licença sem grande dificuldade e, mais do que isso, embora sem realizar estudos adicionais, deixou de
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ser Dentist (odontologista) para passar a ser Zahnarzt (médico dentista). Apesar de nunca ter sido incomodado pelo seu passado nazi e de ter retomado sem problemas a sua antiga profissão e com melhor estatuto, Bruno Langbehn era um verdadeiro ditador em casa, sendo inflexível e sombriamente reprovador para as suas filhas, ao ponto de a mãe do autor ter optado por emigrar para a Escócia para fugir do regime ditatorial que o pai instituíra em casa. Para além disso, demonstrava orgulho na sua conduta anterior a 1945, mantendo o contacto com os seus antigos camaradas da guerra e continuando a ser um nazi convicto, embora, ao envelhecer, tivesse acabado por perder alguns dos seus tiques ditatoriais, tornando-se mais compreensivo. Na década de 1960, Bruno Langbehn envolveu-se com outra mulher, abandonando o lar conjugal. Como a sua mulher e avó do autor pediu o divórcio, Bruno Langbehn retaliou cortando todo o contacto com a família de um dia para o outro, apenas se tendo reatado os contactos, e de forma intermitente, a partir de meados da década de 1970. No fundo, Bruno Langbehn foi um nazi de quase primeira hora, tomou certamente parte nas violentas lutas de rua entre as SA e os opositores do nazismo, foi também um oportunista que se serviu da sua posição nas SA e depois nas SS para conseguir proveito pessoal e um nazi convicto que jamais renegou a sua ideologia e sempre se orgulhou do seu passado nazi e, ao mesmo tempo, um tirano entre paredes para as suas filhas e alguém que, apesar do seu orgulho no seu passado nazi, se comportou de forma cobarde, escondendo-se dos processos de desnazificação, mudando o apelido da sua família, alojando-se numa pequeníssima habitação nos arredores de Hamburgo (tendo abandonado Berlim) e falsificando os questionários de desnazificação. A (triste) história de vida de Bruno Langbehn, ainda que tendo ocorrido num momento histórico muito específico, não é, de modo algum, sobretudo nos tempos de crise em que vivemos, uma história irrepetível. De facto, a História vem demonstrando que os cidadãos optam sempre, em primeira linha, por regimes democráticos e que a instauração de regimes antidemocráticos, tanto por via legal (como na Alemanha e na Itália) como por via revolucionária ou de guerra civil (como na URSS, Espanha ou Portugal), é consequência do descrédito dos cidadãos nos governantes, nas instituições e nos partidos democráticos (República de Weimar na Alemanha, governos italianos do pós-Primeira Guerra Mundial, Rússia czarista, República espanhola, I República em Portugal), o que, por sua vez, resulta, entre outros fatores mas sobretudo, de escândalos de corrupção e de um fraco desempenho das instituições democráticas na resolução dos problemas que assolam a sociedade. E é por via do descrédito nos regimes democráticos e nas suas instituições que a mensagem extremista e
demagógica (e acompanhada da promessa de soluções “milagrosas”) de indivíduos e movimentos populistas/ extremistas/antidemocráticos é ouvida e aceite pelos cidadãos descontentes, que acabam por, nas eleições, votar em partidos extremistas, permitindo-lhes eleger alguns dos seus membros (quando não logram ganhar as eleições, obtendo uma maioria parlamentar e constituindo Governo, o que lhes permite liquidar mais rapidamente os regimes democráticos) e, dessa forma, ascender a um palco privilegiado para a disseminação das suas ideias antidemocráticas/populistas/racistas, para a manipulação dos cidadãos e para incrementam a sua popularidade ao criarem nos cidadãos uma imagem de que “põem o dedo na ferida”, são corajosos e honestos, desmascaram as mentiras, as negociatas e as meias-verdades dos políticos dos partidos democráticos, dão voz aos desfavorecidos e/ou injustiçados pela sociedade, etc. Vivemos indubitavelmente tempos de profunda crise económica e social e, sobretudo, de valores, que tem gerado uma enorme e crescente massa de cidadãos descontentes e revoltados com as condições difíceis da vida que levam e, sendo confrontados quase quotidianamente com novos escândalos que envolvem indivíduos das chamadas “elites”, sentem que vivem em condições particularmente difíceis para que outros possam não pagar impostos ou enriquecer através da corrupção e de negócios altamente lesivos para o Estado e para os cidadãos, com a participação ou, no mínimo, com a complacência das instituições dos regimes democráticos. Não é, pois, à toa que se assiste ao surgimento/ ressurgimento de líderes e movimentos antidemocráticos, ao recrudescimento das atividades de grupos e grupelhos extremistas (neonazis e não só) e a uma reescrita da História mediante a reabilitação (ou mesmo a negação das suas atrocidades) e o saudosismo de ditadores do passado (Hitler, Estaline, Mussolini, Franco, Salazar). E, mais grave do que isso, para além da incontrolável Internet (que permite a disseminação ilimitada de propaganda extremista), os media sedentos de audiências não têm qualquer pejo em dar tempo de antena (usualmente mediante entrevistas) a indivíduos defensores de ideais extremistas (que o aproveitam para, despudoradamente, disseminarem a sua propaganda extremista e manipularem os cidadãos menos atentos, informados ou instruídos) e as autoridades públicas autorizam a realização de manifestações de organizações extremistas ou não reprimem aquelas que não foram autorizadas, tal como sucedia com o Partido Nazi nos tempos de Bruno Langbehn. Em suma, sendo impossível evitar em absoluto a criação de Brunos Langbehn deste tempo, haverá que criar as condições necessárias para que se não tornem na maioria dos cidadãos, a bem do Estado de Direito e das liberdades fundamentais.
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RÉ EM CAUSA PRÓPRIA Adelina Barradas de Oliveira
CONFISSÃO
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sonhos de realização enquanto caem aviões abatidos por manobras militares e ninguém assume responsabilidades. Eu pecadora me confesso de me ter licenciado em Direito e esquecer por vezes as razões que me levaram a fazê-lo.
Faz anos de que eu pecadora me confesso a vós senhor e a vós irmãos que pequei muitas vezes por palavras actos e omissões. De que peco ainda muitas vezes por palavras e por actos e todos os dias por omissões. Eu pecadora me confesso de continuar a fechar os olhos e seguir em frente, como se todo o Mundo fosse um local de praia e areia branca em que as marés se repetem com as luas e eu assisto, serena, de pensamento pendurado no olhar e sorriso encostado ao queixo, no punho aberto quando devia fechar-se. Eu pecadora me confesso de continuar a minha vida a assegurar a minha carreira e a minha sobrevivência e a dos meus e de ler jornais todos os dias como se visse filmes.
Confesso-me pecadora por dilema e lutadora por sistema e, confesso-vos a vós senhor e a vós irmãos hoje, que faz anos que muitos inocentes morreram por nada, que tenho consciência de que hoje, faz horas que muitos outros inocentes morreram por razão nenhuma. E não peço absolvição do meu pecado e nem suporto penitência. O que eu preciso de ouvir dizer e a cada um de nós é :- Guilty! - como num filme americano em que os jurados decidem da minha pena... Mas não há pena para mim, como não há pena para as nações que violam os Direitos Humanos e essas, são todas as Nações formadas e reconhecidas no Mundo e principalmente, essas. Eu pecadora me confesso por pecar muitas vezes por pensamentos e por actos e, todos os dias, por omissões.
Eu pecadora me confesso por fazer férias enquanto o ébola destrói vidas e anunciam ora a cura, ora a propagação do vírus. Eu pecadora me confesso de partilhar com amigos gargalhadas e sorrisos,
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A TERRA The Earth is four billion, six hundred million years old, and you’re going to reach one hundred at the most.. Janne Taller, “Nothing”, 2016, Strident Publishing (tradução do dinamarquês de Martin Aitken Translation)
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Em pleno verão, logo após sair o resultado do concurso para movimento de Juízes, Vanessa escolheu um pequeno apartamento para morar. A partir de setembro, mudar-se-ia: um novo Tribunal, uma nova terra! Preocupou-se em conhecer o espaço onde iria trabalhar. A colega que a antecedeu indicou-lhe o apartamento que arrendara, que a distância entre casa e Tribunal não iria permitir ir e vir, ainda que um ou outro dia pudesse trabalhar à distância. Decidiu, então, instalar-se e passar a fazer parte da comunidade: a cada dois dias ia às compras na mercearia, todas as manhãs bebia o café na pastelaria mais frequentada, três vezes por semana fazia exercício no parque, quando enchia o balde levava as embalagens à reciclagem. O apartamento foi-se transformando na sua nova casa e todos os fins de semana apanhava o comboio para matar saudades da família. De segunda a sexta usava a bicicleta para as pequenas deslocações e ao fim do dia desfrutava do espaço só seu, do sossego, do silêncio entrecortado pelos sons das máquinas de lavar, que a mãe sempre lhe disse que não as podia dispensar quando tivesse uma casa. A máquina de lavar roupa avariou, deixou de emitir som, deixou de rodar, mantendo tudo encharcado, não lavado, e deixando Vanessa sem saber o que fazer. As vezes que pôde
E O MAR LOGO ALI Ana Gomes
insistiu com o senhorio para que resolvesse o problema, que sem a máquina como faria, como lavaria a roupa, que vive sozinha, mas uma máquina é indispensável, ao que o homem lamentava que a máquina tinha acabado de sair da garantia, que não tinha pago o que chamavam uma extensão da garantia, que muito arrependido estava, pois agora – já se tinha informado – era um arranjo caríssimo que mais valia comprar uma máquina nova de uma marca modesta, veja menina, quase mil euros ao lixo quatro anos depois, e olhe que a sua colega que aqui esteve antes era muito cuidadosa. Vanessa compreendia a frustração do homem e respondia que ainda se lembrava de quando a bisavó decidira comprar uma máquina de lavar roupa e os anos que durou, tantos que passou de herança para a avó. Que tanto avanço na tecnologia e tanto discurso sobre o não desperdício de recursos tinha levado,
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paradoxalmente, a que uma máquina de lavar visse diminuída a esperança de vida. Tentou poupar a roupa, porque na pequena vila não havia lavandarias, passou-lhe pela cabeça pedir ajuda ao jovem vizinho, mas retraiu-se. Ao fim de uns dias, quando saiu do Tribunal foi à drogaria. Levaram-lhe o novo objeto a casa e na mala guardou, depois de pagar, o sabão de Marselha. Chegou a casa, arregaçou as mangas e começou a bater as camisas na tábua e a esfregá-las com vigor crescente com o sabão. Roupa, água, espuma, roupa, espuma e água. O aroma espalhou-se pelo pequeno varandim onde coube o tanque de cimento e uma Vanessa cada vez mais entusiasmada. O cheiro da casa da sua bisavó invadiu os apartamentos vizinhos e perfumou a tarde de quem passava na rua.
JOÃO SEVERINO
A PALAVRA AO LEITOR porque hoje é sábado •
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PORQUE HOJE É SÁBADO continuamos a sofrer com uma guerra que teve início há quase dois meses, deixando milhares de mulheres e crianças sem horizonte e milhares de mortos... PORQUE HOJE É SÁBADO a president da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, mostra que há mulheres com muita coragem… PORQUE HOJE É SÁBADO o governo vendeu-se à Caixa Geral de Depósitos… PORQUE HOJE É SÁBADO os artistas plásticos, cantores, músicos e técnicos ligados à arte estão reunidos porque ainda não acreditam que têm um ministro da Cultura sem a mínima noção do que há-de fazer… PORQUE HOJE É SÁBADO o primeiro-ministro está arrependido de não ter formado governo só com mulheres… PORQUE HOJE É SÁBADO a antiga ministra da Justiça reforma-se como juíza, recebendo mensalmente 6.750 euros, sem nunca ter sido juíza…
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PORQUE HOJE É SÁBADO temos uma nova ministra na Justiça sem perfil para o cargo… PORQUE HOJE É SÁBADO ninguém sabe o que faz a procuradora-Geral da República… PORQUE HOJE É SÁBADO nasceu mais uma criança num bunker da Ucrânia… PORQUE HOJE É SÁBADO o Tribunal da Relação do Porto obriga o proprietário de um café de Felgueiras a pagar 30 mil euros ao assaltante por este ter sido baleado… PORQUE HOJE É SÁBADO o president da Assembleia da República tem uma loira toda vistosa como guarda-costas… PORQUE HOJE É SÁBADO a selecção de futebol de Portugal vai ao Mundial do Qatar empurrada pela Itália… PORQUE HOJE É SÁBADO mais uma mulher levou uma sova enorme do marido porque não comprou vinho… PORQUE HOJE É SÁBADO é dia de Marcelo Rebelo de Sousa passear com a nova namorada… PORQUE HOJE É SÁBADO Manuel Pinho anda pelas offshores à procura dos milhões de euros sacados ao Ricardo Salgado… PORQUE HOJE É SÁBADO a TAP continua a ver a Euroatlantic a voar para Timor-Leste… PORQUE HOJE É SÁBADO o Cristiano Ronaldo pode anunciar o fim da carreira aos 50 anos… PORQUE HOJE É SÁBADO continua a guerra de mais de uma década entre o desembargador Marcolino de Jesus e a juíza Paula Sá… PORQUE HOJE É SÁBADO o PSD com Luís Montenegro passará a ser o partido do táxi… PORQUE HOJE É SÁBADO o José Milhazes vai comentar a Guerra na Ucrânia na televisão de Mirandela… PORQUE HOJE É SÁBADO o PCP continua a ser estalinista ao votar contra a audição do president da Ucrânia no Parlamento… PORQUE HOJE É SÁBADO só as estudantes da Faculdade de Direito de Lisboa é que são assediadas sexualmente, os professors nunca foram… PORQUE HOJE É SÁBADO o Benfica poderá vir a jogar um futebol decente… PORQUE HOJE É SÁBADO a atleta Mamona, do Sporting, deve ter ido a uma Conservatória mudar de nome… PORQUE HOJE É SÁBADO o CDS-PP com Nuno Melo deve tentar regressar ao Governo para comprar submarinos… PORQUE HOJE É SÁBADO os generais que foram uma vergonha no Ultramar hoje vão para a televisão comentar a guerra na Ucrânia… PORQUE HOJE É SÁBADO há um milhão de pensionistas com um pecúlio menor que 300 euros… E PORQUE HOJE É SÁBADO escrevi este texto com toda a Liberdade porque há 50 anos aconteceu o 25 de Abril… • (Inspiração do texto na composição musical Dia da Criação – Porque hoje é sábado - de Vinicius de Moraes)
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