FLORES NA ABISSÍNIA Carla Coelho
Um dos livros que me encantou por estes dias foi O cheiro das flores à noite de Leila Slimani. Parte de um convite que foi feito à autora para passar uma noite num museu, sozinha, em Veneza. Talvez por confessadamente nada saber de arte contemporânea, a escritora detémse pouco no que por lá viu. Opta antes por percorrer o museu interior que é a sua memória. Fala sobre a sua vida em Marrocos, sobre a ligação ao pai e sobre o ofício de ser escritora. O livro – cuja leitura terminei em dois dias – é como as duas outras obras de ficção da escrita que conheço, O Jardim do Ogre e Canção Doce. Inteligente, articulado e perguntador. Dá-se o caso de eu também sonhar com um convite para passar uma noite no museu. E há muito tempo, diga-se. Talvez tenham sido as aventuras de Bem Stiller no filme À Noite no Museu. Imagino-me horas sentada à frente de As tentações de Santão Antão, até que o peixe ali representado levante voo do quadro e se venha sentar ao meu lado, inaugurando uma língua em que nos possamos entender. Tive o mesmo desejo (de ficar ali fechada) no Museu Britânico em Londres, os leões das portas assírias a ganharem vida e passearem
pelas salas da porcelana chinesa e dos bambus japoneses com a elegância que os caracteriza. Escusado será dizer que pelo menos até ao momento esse convite não apareceu. Sobra a imaginação, esse presente divino aos pobres e remediados. Graças a ela posso imaginar o que seria estar fechada num museu à noite. Fecho os olhos e vejo-me nos corredores do Museu de Évora. Está uma noite quente, como é sempre de esperar no Verão alentejano. Entre no museu sem expectativas. É talvez esse o melhor estado de espírito para entrar num museu, como de resto o será para qualquer outra entrada em qualquer outro momento da vida. Não sei é se será humanamente possível andar pela vida sem nada esperar. Mas, ao menos num museu, consegui ter um estado de espírito digno de um monge budista. É um privilégio estar aqui sozinha, Chamarme-ão snob talvez, mas cada vez gosto mais destes momentos em que tenho um pedaço de civilização só para mim, sinto uma espécie de compensação divina pelas vezes que tenho de aguentar
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