50 Edição

Page 1

JUNHO 2022

50º Edição

1


Indíce ABRIL 2022

04 ....... Cantinho do João | João Correia

06 ....... Abuso sexual de crianças | Conceição Cunha

08 ....... As leis naturais da mudança | Carlos Monteiro

10 ....... Pano para Mangas | Margarida Vargues

12 ....... Justiça com A | José Marques Vidal

14 ....... Ré em Causa Própria | Adelina Barradas de Oliveira

18 ....... O

Ana Gomes

Mar Logo Ali |

20 ....... Tráfico de seres humanos | Conceição Gomes

22 ....... Flores na Abíssinia | Carla Coelho

24 ....... Não existência - um direito | João Pires da Rosa

28 ....... Infância Perdida | Isabel Malheiro Almeida

32 ....... Você corta a Etiqueta? | Margarida de Mello Moser

34 ....... As paredes azuis | Lícinia Quitério

DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA DESIGN E PRODUÇÃO: DIOGO FERREIRA INÊS OLIVEIRA SITE: WWW.JUSTICACOMA.COM FACEBOOK: JUSTIÇA COM A

2


Editorial

DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA

Junho sempre será para mim o mês da criança, o mês das minhas férias até Outubro, o mês dos dias longos ou de Solstício, o mês da praia, da simplicidade de pés descalços, de liberdade de Ser, o mês Azul e Amarelo.

E porque Junho é o mês da criança a Vossa JustiçA com A dedicou alguns dos seus escritos e a sua Capa desenhada pelo Henrique Vogado às Crianças, fala-vos de férias de miúdos e graúdos, mas não só.

Trouxemos realidades diárias, opiniões livres sobre temas muito atuais e delicados que gostaríamos que lessem e refletissem connosco. Sem medos e sem ressentimentos, de uma forma aberta e simples, harmonizando forças e operando mudanças, com Coragem!, a JustiçA com A deste mês é uma porta ao Mar que trazemos dentro de nós.

E porque Junho é mês de Solstício, de Férias e de Casamentos, deixamos uma pequena nota aos noivos (Junho também é mês de Santo casamenteiro) e um texto em azul que vale muito a pena ler.

3


O meu amigo russo não gostava de Putin. Aliás, quando falava nele, no mesmo ano em que este ocupou o poder, chamava-lhe nomes feios e assim veio para Portugal onde o conheci a servir às mesas num restaurante em frente a minha casa. O tipo era esperto e falava um português perfeito, com algum sotaque mas com uma gramática excelente pelo que não resisti a perguntar-lhe sobre como

é que aprendeu a falar português e eis que a resposta não pode deixar de ser excelente, ou seja, confidenciou-me que quando chegou a Portugal comprou um livro escrito em português e traduziu todas as palavras nele constantes para russo e assim foi. Também me confidenciou que, nos seus

4


CANTINHO DO JOÃO João Correia

primeiros dias por cá, assistiu a um concerto de Monica Sintra e achou a nossa pronúncia muito estranha, mas que, passado uns tempos, se habituou. Mais tarde, a servir às mesas, brincava comigo sobre os erros ortográficos que o seu patrão português cometia, sobretudo quando escrevia “irvilhas” ao invés de “ervilhas”. O meu amigo russo deu-me aulas de russo, das quais eu aprendi apenas algumas frases correntes, através de um livro com o símbolo da extinta União Soviética cuja personagem principal chamava-se “Valodia” mas sempre ficaram. E o mesmo insistia que ninguém podia aprender russo sem primeiro aprender o seu alfabeto, o qual foi, de facto, um desafio. O meu amigo russo teve problemas com a embaixada russa, muito embora já fosse português pois, o senhor embaixador (sim

escrevi com letras pequenas) não gostava de cidadãos russos que faziam traduções sem para isso estarem autorizados pela embaixada. Ou seja, por ele controlados. Reencontrei o meu amigo russo há pouco, perto do meu local de trabalho, onde lhe perguntei sobre se estava a ter chatices com a guerra na Ucrânia. O mesmo é, actualmente, empresário e disse-me que trabalha com muitos ucranianos os quais são indiferentes, salvas raras e honrosas excepções, ao facto de ele ser russo, recomendando-o a outros ucranianos. Fiquei contente e desejei-lhe boa sorte na expectativa de o encontrar em breve pois, o meu amigo russo é bom para o meu país, tal como os seus clientes ucranianos que com ele trabalham.

5


MARIA CONCEIÇÃO FERREIRA DA CUNHA BREVE REFLEXÃO SOBRE UM TEMA COMPLEXO: O ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS O mote para esta minha reflexão, assim como o desejo de a partilhar convosco, surgiu com a recente polémica em torno do acórdão do Tribunal da Relação de Évora¹ , que condenou um professor pelo crime de abuso sexual de crianças, mas mudando o enquadramento dos factos, ao considerar não terem sido praticados “atos sexuais de relevo”, mas “contactos de natureza sexual” (o que implica uma pena mais leve).

instância a enquadrar o comportamento do professor nos “atos sexuais de relevo” e o TRE nos “contactos de natureza sexual”? A “introdução de uma das suas mãos (do professor) por dentro da roupa das menores e, em contacto com a pele destas, o toque, a carícia, a massagem no pescoço, peito/tronco, mamilos e barriga” (sumário do acórdão) deve ser qualificada como “ato sexual de relevo” ou “contacto de natureza sexual”?

Não irei abordar (nem o poderia fazer neste contexto) todas as questões complexas que o acórdão convoca, mas centrar-me apenas no problema da distinção entre “atos sexuais de relevo” e “contactos de natureza sexual”. O que terá levado o tribunal de primeira

Na verdade, e tal como o próprio acórdão refere, “a lei penal não fornece uma densificação do conceito de ato sexual de relevo, nem casuística exemplificativa. Esta situação confere margem de apreciação a quem julga, em função das realidades sociais,

1- Proc. Nº 95/17.8JASTB.E2 de 24/5/2022. 2- Cf., por todos, DIAS, Jorge de Figueiredo, «Comentário ao art. 163º do CP», in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 2ª ed., 2012, p. 720, § 12; ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Lisboa, 4ª ed., 2021, p. 702, n. 8 e p. 735, n. 11, com referência à jurisprudência; e CUNHA, Maria da Conceição Ferreira da, Os crimes contra as Pessoas – Relatório sobre o programa, os conteúdos e os métodos de ensino da disciplina, Universidade Católica Editora, Porto, 2017, p. 133, 3.4. 3- DIAS, Jorge de Figueiredo, «Nótula antes do art. 163º do CP», in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 2ª ed., 2012, p. 711, § 6.

6


das conceções dominantes e da própria evolução dos costumes” (sumário do acórdão), mas também é verdade que doutrina e jurisprudência têm vindo a tentar densificar estes conceitos, embora não haja uma fronteira evidente e que gere perfeito consenso, sobrando sempre zonas cinzentas . Será conveniente ter em conta que o crime de abuso sexual de crianças (art. 171º) engloba vários tipos de atos sexuais de diferente gravidade e a que correspondem molduras penais diferentes, embora todos eles coloquem entraves ao “livre desenvolvimento da personalidade do menor, em particular na esfera sexual” : os atos mais graves são os de penetração (cópula e atos equiparados), seguem-se os “atos sexuais de relevo” e, por fim, os contactos de natureza sexual. Ora, se relativamente aos primeiros a lei é clara, a fronteira entre os segundos e terceiros é mais difícil de traçar. No entanto, parte da doutrina (onde me incluo ) e jurisprudência considera que se deve ter em conta, nesta distinção, a contraposição entre contactos fugazes/demorados, em zonas menos íntimas/ mais, íntimas, por cima/por baixo da roupa. Estes critérios parecem fazer sentido até porque, no crime de importunação sexual de maior de 14 anos (art. 170º), o caso paradigmático dos “contactos de natureza sexual” é o “apalpão de rua” (ou seja, contacto fugaz e por cima da roupa). Assim, estando em causa crianças, também esta distinção entre toques por cima ou por baixo da roupa me parece de relevar (distinção em que se baseara a decisão de 1ª instância).

Penso que a qualificação de um ato como sendo ou não de relevo não deve depender da frequência da sua prática – esta frequência terá importância, evidentemente, para se contabilizar o número de crimes, não para o enquadramento de cada comportamento, uma vez que o crime em causa não exige reiteração. Por outro lado, a prática do ato em público, ou em privado, pode eventualmente ter importância para se ponderar a pena concreta, mas não para alterar a sua qualificação, transmutando um ato sexual de relevo num contacto de natureza sexual…. Salientese ainda que, na determinação da pena concreta, e como fator agravante, é muito relevante a relação professor/aluna. Por fim, mas mais importante, sendo as vítimas crianças, a qualificação do comportamento do agente não pode estar dependente da sua perceção acerca desse comportamento. As crianças têm de ser protegidas dos abusos dos adultos, exatamente por causa da sua vulnerabilidade e independentemente de terem ou não consciência de que está em causa um abuso. No caso concreto, estas crianças até se sentiram perturbadas, incomodadas (pelo menos algumas delas), mas mesmo que tal não tivesse ocorrido, ou não tivesse sido provado, não deixavam de merecer igual grau de proteção. Na verdade, se fizéssemos depender o grau de gravidade do comportamento do agente da perceção da vítima, uma pessoa inconsciente ou com grave incapacidade, assim como crianças muito pequenas, não poderiam ser consideradas vítimas de crimes sexuais (ou, pelo menos, dos crimes sexuais mais graves)!

Nesta perspetiva, os toques por baixo da roupa, o “contacto com a pele” das crianças, “o toque, as carícias”, “no peito/tronco, mamilos e barriga”, seriam enquadráveis nos “atos sexuais de relevo”.

Ora, é evidente que uma pessoa inconsciente, assim como uma criança, ou mesmo um bebé, pode ser vítima destes crimes , ensinando-nos os estudos da área da psicologia que um abuso sexual de uma criança pequena pode ter graves repercussões no desenvolvimento da sua personalidade.

Mas o que mais surpreende são os fundamentos invocados para este enquadramento legal, ou seja, para não conferir a estes atos o qualificativo “de relevo”: só terem sido praticados uma vez com cada vítima; terem sido praticados em público e “porque, como primeira abordagem do género, é suscetível de ter deixado dúvida, em meninas tão jovens, quanto ao seu propósito” (sumário do acórdão – aspeto este mais desenvolvido no acórdão).

Assim, se o conceito de ato sexual de relevo pode suscitar dúvidas, a fundamentação do tribunal, desvalorizando a gravidade das condutas, atendendo à eventual falta de perceção das vítimas acerca do seu significado, não convence; pelo contrário, as exigências de proteção das crianças imporiam que se salientasse a gravidade de tais comportamentos.

4- Cf. CUNHA, Maria da Conceição Ferreira da, Os crimes contra as Pessoas – Relatório sobre o programa, os conteúdos e os métodos de ensino da disciplina, Universidade Católica Editora, Porto, 2017, p. 133, 3.4; FIGUEIREDO DIAS distingue entre «um simples beijo» e o «beijo lingual» e entre «um simples toque» e a «carícia insistente», o que me parece fazer todo o sentido, mas dá exemplos de alguns toques mais íntimos, não os enquadrando nos «atos sexuais de relevo», enquanto, em minha opinião, tais toques que já mereceriam o qualificativo «de relevo», a menos que fossem muito fugazes e por cima da roupa (cf. «Comentário ao art. 163º do CP», in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 2ª ed., 2012, p. 720, § 12). Divergindo de FIGUEIREDO DIAS e fazendo referência a vários acórdãos, ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Lisboa, 4ª ed., 2021, p. 702, n. 8 e p. 735, n. 11. 5- Claramente neste sentido, Dias, Jorge de Figueiredo, «Comentário ao art. 163º do CP», in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 2ª ed., 2012, p. 723, § 19.

7


CARLOS MONTEIRO Nascido em Beja, Carlos Monteiro, licenciou-se em Engenharia do Ambiente, fez mestrado em Engenharia Sanitária e desde o ano de 2010 que se dedica também à “Engenharia de pessoas e de equipas”. Empresário, Sócio – Gerente do BLIVE Health & Fitness e do BLIVE Pilates STUDIO, Mentor da área Mental Health – BINYOU, Formador e Coach Profissional nas áreas da liderança, comunicação e comportamento humano. Procura diariamente viver de acordo com o lema de vida “Seja a mudança que quer ver no mundo.”

As leis naturais da mudança Nesta “nova era”, a mudança comportamental parece ser fascinante, plena de luz e se possível algo que se possa partilhar com as centenas de “amigos” que nas redes sociais se conectam connosco. Se mudar fosse fácil, e existissem de facto receitas repletas de “ciência” com passos e etapas que não podemos deixar de cumprir, estávamos numa sociedade mais empática, próspera, com um forte cariz colaborativo, vivendo alinhada com valores universais. No entanto, assistimos diariamente a um esforço desmesurado que apela a mudanças rápidas, na perspetiva de levar-nos a acreditar que somos os únicos responsáveis pela nossa qualidade de vida e pelo sucesso que alcançamos, não raras vezes mensurado através da acumulação de coisas que obtemos através do que fazemos. Sobre este assunto, sugiro a leitura do livro “A Sociedade do Cansaço” do Autor germano-coreano Byung-Chul Han, o qual nos remete para uma reflexão interessante sobre a condição humana num mundo ocidental repleto de estímulos e de vida em “alta performance”. A viragem para um novo ano, é sempre

uma boa altura para renovarmos energias, colocarmos novas intenções nos projetos que queremos alavancar e no caminho de crescimento que pretendemos percorrer nos meses que teremos pela frente. Ora sabendo nós que a motivação humana é um processo emocional, acreditar à partida que esta energia que se renova no dia 1 de janeiro de cada ano vai ser o combustível suficiente para responder aos desafios e às solicitações que iremos enfrentar ao longo dos próximos tempos é no mínimo ingénuo. Não irá chegar! Nesta minha estreia na “Justiça com A”, quero partilhar 2 leis (naturais) da mudança comportamental que me têm ajudado a operar mudanças e que podem ser utilizadas em diferentes contextos de vida.

A primeira lei refere-se ao que os físicos designam por “ação, reação e resultante”. Se mobilizarmos este processo para a nossa mudança comportamental, entendemos que quando pretendemos operar uma mudança na nossa vida, seja resolver um problema, perder peso, melhorar um relacionamento ou mesmo iniciar um novo hábito, há uma força que resiste a esta mudança e procura retirarlhe força para que possamos prosseguir

8


“QUERO PARTILHAR 2 LEIS (NATURAIS) DA MUDANÇA COMPORTAMENTAL QUE ME TÊM AJUDADO A OPERAR MUDANÇAS”

em frente de forma congruente e consistente. Em termos práticos, este comportamento reflete a forma automática como estamos habituados a lidar com o comportamento a mudar. O resultado é que em pouco tempo, os “velhos comportamentos” que por breves instantes foram agitados, tendem a cristalizar-se de novo. Conhece este processo? Ao encontrarmos uma terceira força e a mobilizarmos para este sistema, esta pode ser capaz de integrar e harmonizar as forças de “ação” e “reação”. Esta componente pode funcionar como a “cola” que unifica e transforma esta aparente divisão – aquilo que ouvimos repetidamente e a que chamamos de “propósito”! É uma força capaz de criar algo novo.

Se esta primeira lei nos permite iniciar novos caminhos rumo à mudança que pretendemos implementar em diferentes áreas da nossa vida, a segunda lei lembra-nos que estes processos precisam de ser alimentados ao longo do tempo. O que significa que a energia que originou inicialmente a mudança vai encontrando novas formas ao longo do caminho, transformando necessariamente o propósito inicial. Esta “lei de ordem”, remete-nos para

que possamos ao longo processo de transformação seguir de forma comprometida e consistente, rompendo com os automatismos que pretendemos alterar, encontrando assim em cada etapa novos propósitos de transformação. Na prática, esta lei quer lembrar-nos que o motivo que nos fez começar um novo hábito, vai-se alterando ao longo do tempo, tornando-se mais claro e mais alinhado com aquilo que queremos ser. E o que tipicamente a nossa condição humana nos faz como entramos no ciclo de transformação? Deixamos gradualmente os velhos hábitos ganharem terreno, não encontrando novas motivações para seguir determinados rumo à mudança desejada. Como o nosso percurso de vida tem uma perspetiva finalista, que nos coloca (sempre) em ação para um caminho natural de transformação, é bom lembrar que “ninguém se banha duas vezes no mesmo rio”. Por isso, a cada “banho”, fica o convite para que o possamos fazer em maior consciência, abertura e aprendizagem.

9


PANO PARA MANGAS Margarida Vargues

Benjamin Button é, na sua essência e em simultâneo, o paradoxo da vida e um dos mais íntimos desejos do ser humano, com todas as dores de (de)crescimento que, com o passar do tempo acabam perdidas algures numa parte menos clara do nosso cérebro. Nascer. Crescer. Morrer.

Apesar de a morte ser o que temos de certo, enquanto seres vivos, que dê um passo em frente quem, em criança não quis ser adulto e, em adulto já não desejou - pelo menos uma vez - voltar à infância?

Uma espécie de nostalgia e pensamento Pessoanos que tanto nos acompanha como nos larga no meio do caos que é o ser-se adulto. Inevitavelmente, os pequenos querem pertencer ao maravilhoso mundo dos crescidos. Penso que todos passamos por isso...

Foi deste dilema existencial que, há uns tempos se gerou, entre alguns dos meus miúdos, uma acesa discussão sobre este mesmo assunto. Deixei-os debatê-lo, sendo que eles eram as vítimas e os adultos os vilões. Os argumentos?

10


O MUNDO AO CONTR ÁR IO Os adultos podem fazer o que querem. Os adultos não têm de trabalhar ao fim de semana e não têm T.P.C. Os adultos podem ir jantar fora com os amigos. Os adultos não têm de pedir autorização para nada. Os adultos... Os adultos... Os adultos...

O livro de reclamações ficou cheio!

E continuaram, agora em sua defesa:

Nós temos de estudar ao fim de semana. Nós não podemos fazer nada. Nós não podemos sair com os nossos amigos.

E para concluir:

Quando ao final do dia chegas a casa e tens o jantar na mesa, alguém teve de o cozinhar, certo? Se estás doente ou te sentes mal, quem é que te leva ao médico e trata de ti? Quando não sabes alguma coisa, antes de perguntares ao Google, quem é que te tira dúvidas? Quando queres ou precisas de uns ténis novos, quem é que os paga? Tens o privilégio de viver numa casa, certo? Quem a comprou? Lá em casa, tomas banho de água quente, acendes a luz quando fica escuro e não te falta internet. Tudo isso tem um custo. Quem paga? Se vais almoçar fora com a família quem é que, antes de saír do restaurante, tira o cartão ou o dinheiro da carteira? Também não chegas aqui a pé, vens de carro que, por sua vez, precisa de combustível. Como é que isso é possível? E se os pais não trabalhassem e ganhassem um salário, como irias ter tudo isto?

A conversa acabou com um silêncio sepulcral, olhos esbugalhados pousados em mim e cabeças pensativas. Tenho a certeza que nem tão cedo se irão esquecer desta conversa e que, um dia, desejarão voltar à infância, mais que não seja para fugir às responsabilidades da vida adulta.

Deixei-os falar até não haver mais nada a dizer. Quando se acalmaram, pedi-lhes permissão - com um ar aparentemente sério - para falar, isto é para me defender, para defender os adultos-maus-da-fita.

Embora queiramos, também, ser crianças como escape ao peso do ser adulto, não há como voltar atrás. Benjamin Burton existe, apenas, na fantasia. Compete-nos saber viver os anos o melhor que podemos e orientar as nossas crianças para que façam o mesmo. Há tempo para tudo, as oportunidades estão ao virar da esquina e, independentemente da idade, apenas temos de as aproveitar. Se nos fugirem é porque não nos cabiam e outras nos estão reservadas.

Optei por lhes colocar questões em vez de contraargumentar. Então, vamos lá ver...

Que Junho seja sempre o mês em que celebramos a infância!

Os adultos dizem que estudar é o nosso trabalho, e nós trabalhamos e não ganhamos nada com isso!!!

11


José Marques Vidal Juiz Conselheiro do STA Jubilado

JUSTIÇA COM A A Justiça está na praça pública por fás ou nefas, a propósito ou a despropósito, com fundamento ou sem alicerce firme, à vontade do freguês, que a liberdade quando nasce a todos dá a palavra sem censura, boa ou má tanto faz. E isto vem a propósito das qualidades que a lei estatutária dos magistrados do M. º P. º e a dos juízes exigem a quem exerça aquelas funções. Acima de tudo o respeito pela legalidade e a imparcialidade na decisão a tomar, que o juiz assumirá com inteira independência, e os agentes do M. º P. º com o travão da responsabilidade hierárquica, e em conformidade com as suas consciências. “Mal por ter cão e mal por não ter” é, talvez, o jargão popular mais ajustado à função, em especial à judicial, pois, decidindo o juiz entre partes desavindas, será bestial para a parte vencedora e besta para a parte vencida. Ouve-se dizer com frequência o “juiz foi por nós” ou “contra nós”, raramente, o “juiz fez justiça”. E assim o odioso de uma decisão judicial, aberrante por natureza por outra não ser possível com os entorses que a Assembleia da República coloca

12


no fabrico das leis, recai inteira sobre os ombros dos juízes que as aplicam e não são imputadas aos deputados legisladores. Bastarão os requisitos legais e estatutários para fazer um bom magistrado ou um bom juiz? À colação chamo, sempre com a maior saudade, o Conselheiro Eduardo Arala Chaves, magistrado judicial que exerceu o cargo de ProcuradorGeral da República de 1977 a 1984, e com quem tive a honra de colaborar de perto como viceprocurador-geral, por escolha sua. O Dr. Arala Chaves dizia acreditar nos ritmos de trabalho, referia ser trabalhador das madrugadas, e já ter notado que eu só funcionava em pleno a partir do início da tarde. Justificava o seu labor matutino com a conjunção do ditado popular do “cedo erguer dá saúde e faz crescer” e a sua prática habitual, desde pequeno, enquanto eu apenas podia assacar às noitadas estudantis de Coimbra a tendência vespertina para o meu maior rendimento laboral. Nos dias em que o tempo aquecia, período que se iniciava na Primavera e terminava em meados do Outono, a meio da tarde, entrava no meu gabinete: - Colega, são as exigências do ritmo corporal: vou para casa, olhe pelo Palácio. Mas não partia sem darmos um pequeno passeio pelo parque ajardinado do Palácio, por vezes nos sentarmos num banco à sombra das tílias, ali ficarmos em cavaqueira amena sobre as coisas da vida. E foi num desses momentos distendidos que me perguntou: - Ó colega _ gentileza de tratamento que os mais antigos e graduados na magistratura tinham para com os mais novos _ em seu parecer qual é a qualidade maior que um juiz deve possuir para exercer as funções com a dignidade que merecem?

- Nada disso colega. O juiz pode ter todas essas qualidades, que irão pelo cano abaixo se lhe falhar a qualidade maior. Devo ter ficado com ar aparvalhado por não alcançar e descortinar a ideia que lhe sorria nos lábios - A coragem colega! Um juiz sem coragem para decidir sem pressões, sejam estas de que estilo forem, não garante a independência, a seriedade e a imparcialidade da decisão. A coragem é qualidade básica e essencial para se ser um bom juiz. Dei a mão à palmatória por omitir a coragem como primeira condição para alguém ser juiz. Talvez por a considerar inerente à condição de humano, anterior à de julgador, de homem que anda no mundo de face erguida e sem enganar ninguém.

“Dei a mão à palmatória por omitir a coragem como primeira condição para alguém ser juiz”

Realmente, as qualidades exigidas por lei ao juiz, independência, isenção e imparcialidade no exercício do cargo são descuradas quando lhe falta a coragem de as manter em situações de ameaça ou de pressão. Deixo aqui a minha homenagem aos magistrados e juízes que diariamente exercem as respectivas funções com coragem e independência. (Escreve sem respeito pelo AO, imposto de forma ilegal e anti-constitucional)

Por não esperar a pergunta, agarrei-me aos chavões estatutários: independência, dignidade, isenção, imparcialidade, seriedade…

13


UM AMOR NÃO CORRESPONDIDO

14


RÉ EM CAUSA PRÓPRIA Adelina Barradas de Oliveira

Conversar sobre Direito e Literatura e espreitar um Mundo tão vasto como aquele que se descortina numa aproximação tímida ao tema Fica-se com água na boca e uma vontade de aprender mais, e surpreende-nos o facto de um professor de literatura se interessar pela análise de textos jurídicos sendo certo que, não podemos esquecer que Alexandre Herculano fez a revisão do Código de Seabra. Prova de que... interessa que as leis sejam bem escritas, prática que se vai perdendo POR QUEM não sabe que, uma simples vírgula pode modificar um diploma inteiro. Analisar textos jurídicos pertence ao mundo dos juristas para quem uma boa discussão sobre a interpretação da letra da lei e da conjugação das suas letras, ou até uma sessão bem acesa sobre o espírito do legislador (quase como uma sessão espírita), dá imenso gozo. Ao que consta há um

“movimento favorável” a esta ligação entre o Direito e a Literatura no sentido de que, que um bom jurista deve ler muita literatura ou dominar o seu Mundo, para que possa dedicarse à aplicação do Direito e à resolução de conflitos com mais à vontade. E ENTÃO DEIXO 3 QUESTÕES Faz a Literatura falta para solução de conflitos? Faz a Literatura falta a quem é de Direito? Há alguma semelhança entre Direito e Literatura? E pergunto-me ainda se, para lá deste exercício de interpretação da lei que nós os juristas fazemos constantemente, desde os bancos da Faculdade, há alguma coisa de literário naquilo que escrevemos. Não há! E se alguém quer ser Juiz ou

15


RÉ EM CAUSA PRÓPRIA U m a mor não cor r espond ido

Juíza, desengane-se que não vai ser escritor. Também não vão ser escriturário, mas será muitas vezes escriba. É verdade que há muito de nós nas decisões que damos, mas não tanto que nos permite uma qualquer discricionariedade, ou uma qualquer opinião, ou uma possibilidade de adjetivar comportamentos, textos ou factos a não ser processualmente. Faz a Literatura falta para solução de conflitos? A literatura pode em si mesma trazer horizontes e conhecimento, mas não pode trazer soluções. Trará a abertura de espírito, uma luz sobre as regras da experiência e da lógica (aquelas que norteiam a forma de apreciar a prova – contidas no artº 127º do CPP), mas, não trará soluções mágicas. Faz a Literatura falta a quem é de Direito? Pelo menos de 2 formas. Não nego que a Literatura é necessária não só ao conhecimento, ao alargar de horizontes como à formação de opinião sólida e livre. Mas também o são a Filosofia, a História, a Sociologia, a Psicologia

e sem dúvida o Viajar...O sentar numa esplanada e observar... o escutar as conversas em redor... os que passam... Já experimentaram? Quanto mais vasto o Horizonte e mais treinados os Sentidos, mais aberto está o Aplicador da Lei ao Outro... por tantos outros que já leu e, por tantos outros que já viu, ouviu, avaliou, julgou. E é-nos necessária também como refúgio de agruras,

16


principalmente a nós penalistas ou aos juízes de família... tantas vezes ao juiz de instrução criminal que apanha o primeiro impacto com os factos. É uma forma de fugir à nossa realidade profissional, aos livros de Direito que só se conseguem ler em Estado de Necessidade. Então podemos concluir que a Literatura alarga horizontes e também é um refúgio. Há alguma semelhança entre Direito e Literatura? Há Direito e Literatura encontramse indiscutivelmente na atividade de comunicar, cada um à sua maneira e na atividade da interpretação. Mas, saber ler / interpretar e escrever/ exprimir/comunicar pode tornar um ser escritor, mas não o pode tornar julgador. O Direito interpreta para aplicar, corretamente, a Lei ao caso concreto. A Literatura conta a Vida interpretando-a. A regra do Direito é saber interpretar os factos e a lei que aplica aos mesmos A regra da literatura é fazer as interpretações que quiser da Vida e contá-la. O Juiz não pode fazer das suas decisões Literatura. Nem deve! Pode ter um estilo claro e rigoroso às vezes ligeiramente coloquial para que se faça entender, mas um Juiz não pode nem deve, nos seus escritos decisórios, ser um escritor. Não é apenas um aplicador da Lei, nem é apenas a voz da Lei, mas não é seguramente um escritor nem nenhuma sentença é uma obra literária se bem que as haja muito bem escritas. Às vezes escrevo e se gostarem e entenderem o que escrevo, se sentirem

que já sentiram aquilo, então talvez eu tenha conseguido uma aproximação à Literatura e comunico de uma forma rica e emotiva. Já no que respeita às minhas sentenças ou acórdãos, se convencer ao fundamentar a minha decisão a razão por que condenei ou absolvi, estarei a decidir e a exercer influência com ela MAS! sem emotividade, sem metáforas, sem analogias. Em ambas as atividades estou a comunicar, mas de formas diferentes. Há um romancear dos factos que me está interdito no exercício da carreira. Diria que Literatura e Direito é um caso de amor não correspondido. O Direito olha em frente cego pela Lei, só perante ela responde e lá vai ditando o que ela, a Lei, lhe diz, aplicando-a a tudo o que são factos praticados por gente de carne e osso detendo-se e analisando (ao abrigo da Lei) o que foi feito e, aplicando-a corta a direito e diz que faz Justiça. Lá vem de quando em vez um mais sentimental agarrar o Direito, os factos e a Lei, e escrever umas coisas que, contudo, nem próximo da Literatura chegam E então, a Literatura que olha de longe, de perto, de vários ângulos o Direito, é o seu refúgio. O refúgio dos dias infinitos a aplicar e a obedecer à Lei. E o Direito é fonte de Literatura, rico de factos, de gente, de acontecimentos estranhos, de perfis que são livros, romances, filmes... . Mas se a Literatura pode andar de mãos dadas com o Direito já ele não o pode fazer com a Literatura

17


E O MAR LOGO ALI Ana Gomes

Senti a implacável solidão enclausurar-me, tomar-me por presa fácil e deixei-me ir (…) Nunca tinha atravessado um deserto tão imenso (…) estar ali sentado era igual a estar enterrado vivo.

João Tordo, O livro dos homens sem luz, 2022, Companhia das Letras

18


FÉRIAS?... Estamos no hemisfério norte, verão de junho a setembro, espaço e tempo onde as pessoas sentem a maior incidência dos raios solares e os dias longos. No lugar que escolherem, gozam férias, interrupção relativamente longa de trabalho, destinada ao descanso de trabalhadores. Os estudantes têm direito a férias grandes. Quem já não estuda ou trabalha beneficia de férias permanentes, viajando ou ficando na casa de sempre. Quem trabalha terá mesmo de otimizar o mês a que tem direito, concretizar tudo o que não teve oportunidade de fazer durante os onze meses anteriores, seja descansar, seja mergulhar de cabeça no projeto que com o entusiasmo ficou guardado na gaveta de baixo. Chegado o momento, a maioria está exausta, desmotivada e ansiosa, menos pela preparação das férias, mais pelo que o trouxe até ali, trabalho, muito trabalho. Sinal dos tempos. Depois de alguns anos deslocada, Rebeca foi às nuvens quando finalmente conseguiu colocação perto da família e dos amigos. Pelo caminho fez outros amigos, é certo, e conhece Portugal como muitos dizem de outros países quando afirmam que gostam de viajar para conhecer novas culturas. Os portugueses, não deixando de ser portugueses, são tão diversos e esse conhecimento profundo devo-o à profissão que escolhi.

Rebeca é Juíza há uma década. Como dizíamos, no movimento anual de Juízes voltou à casa de partida e pôde finalmente pensar em constituir família, pois a vida de saltimbanco nem faz prolongar casamentos nem é o ideal para fazer aumentar a família. Se quisesse tinha ido para o circo. Gosto da estabilidade de um lugar. Estava feliz e crente de que tudo ia organizar-se como tinha previsto. Foi preencher um lugar num Juízo de onde tinha sido retirado um outro Juiz anos antes. Na área cível, eram quatro e passaram a três. O colega Juiz que lhe abriu a porta já lá estava desde a Reforma de 2014. Saiu para se dedicar a outra atividade. Quando a nossa Juíza lá chegou percebeu porque tinha tido tanta sorte. Perto de casa. Atolada em trabalho. Ainda é do tempo em que chegado o fim do dia saía com a sensação de missão cumprida. Amanhã será outro dia. Conseguia respirar. Agora, a secretária está sempre vazia e o “citius” (plataforma do Ministério da Justiça que os Juízes são obrigados a usar) é um poço na época das chuvas: vês os processos onde tens de trabalhar no próprio dia (com um zero), nos dias seguintes (com -1, -2, etc.) e à superfície e por vezes a transbordar aqueles que já estão no sistema há mais tempo, sem que tenhas um efetivo controlo de qual o trabalho que desenvolves em cada dia. Depois, o “citius” talvez seja o sistema mais mal-educado que conhece: a meio de uma operação, muitas vezes “não responde” e amua

19

mesmo, temos de lhe virar as costas e premir o botão “desligar”. No início, Rebeca até lidava bem com isso, fazia uma pausa, ia à janela cravava um café ao colega do lado, e dizia que era o sistema a zelar pelo bem-estar de quem trabalha. O direito à pausa! Quando as pausas eram forçadas num momento em que estava concentrada a escrever um despacho e o tentava guardar, Rebeca tinha vontade de subir pelas paredes de tão irritada. São meses assim: a plataforma eletrónica, um ecrã que cansa os olhos, a falta de material para trabalhar, a litigiosidade a aumentar, o número de processos a crescer e Rebeca tem de os abocanhar, digerir durante uns meses e, depois de produzida a prova, verter a sentença, não sem antes refletir muito sobre a situação e qual a melhor solução para o caso concreto, atividade humana demorada e dependente de uma disponibilidade mental que o Juiz de hoje, pressionado pela estatística, não tem. Querem transformar os Juízes em máquinas para assim mais facilmente os substituírem pela inteligência artificial? Estamos em junho, muitas audiências marcadas, muitas sentenças se lhes seguirão. Chegará julho e agosto. Férias? Juízes assoberbados? Juízes calmos, equilibrados e em paz consigo? Estarei de volta em setembro?


Maria da Conceição Gomes

Tráfico de seres humanos SE HÁ ESCRAVOS POR NATUREZA, É PORQUE OS HÁ CONTRA A NATUREZA; A F O R Ç A F O R M O U O S P R I M E I R O S, E A C O VAR D I A P E R P E T U O U- O S. - JEAN-JACQUES ROUSSEAU

Os imigrantes, as crianças, as mulheres, os idosos, os doentes mentais, são pessoas vulneráveis, em situação de merecerem proteção à escala mundial, objetivada em Convenções e Acordos internacionais. Os crimes de tráfico de seres humanos são bárbaros e contendem com a dignidade e o valor da pessoa humana, princípio estrutural da República Portuguesa. O crime de tráfico de seres humanos é um crime de natureza nacional e transnacional, extremamente organizado que conduz a uma multiplicidade de comportamentos ilícitos, por parte dos seus agentes, como a exploração sexual, a pornografia, a prostituição, o tráfico de crianças e de jovens, a corrupção, o branqueamento de capitais, obstrução à justiça. É a escravatura do século XXI. Portugal é um país que se vem preocupando com os Direitos Humanos desde sempre. Aboliu a escravatura em 1869 e a pena de morte em 1867. Tem-se mantido atento aos comportamentos ilícitos que atentam contra a vida, a dignidade, a liberdade do ser humano e, também,

aos diplomas publicados a nível nacional e internacional sobre o tema. A nível internacional a iniciativa de combate ao Tráfico de Seres Humanos assumiu particular expressão com a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, assinada em Roma, em 1950, em que o Tráfico de Pessoas integrou a agenda do Conselho da Europa. De acordo com os compromissos assumidos por Portugal nas várias instâncias internacionais, concretamente no âmbito da Organização das Nações Unidas, do Conselho da Europa, da União Europeia e da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, Portugal desde 2007 tem vindo a incluir nas grandes opções do plano o combate ao flagelo do tráfico de seres humanos, reforçando o conhecimento do fenómeno, a ação pedagógica e preventiva junto dos diversos intervenientes, a proteção e assistência às vítimas e o sancionamento dos traficantes. A preocupação e a atenção são grandes porque, Portugal é um “País de Destino”, onde se inserem vítimas para fins de exploração laboral na agricultura, provenientes de países de leste; sendo também um “País Origem” de onde saem vítimas para exploração laboral, cujo destino

20


é essencialmente Espanha e sendo um “País de Trânsito”, dessas vítimas, maioritariamente menores de idade, do sexo feminino, nacionais de países africanos, principalmente oriundas da Africa Central, e atualmente da Ucrânia. Como revelou há bem pouco tempo a comissária europeia dos Assuntos Internos no Parlamento Europeu, há relatórios sobre menores não acompanhados a passar a fronteira da Ucrânia, em risco de ser vendidos para tráfico humano. Johansson disse que há “adultos a fazeremse passar por pais das crianças”, que depois as integram em redes criminosas para tráfico humano. Alguns dos menores, segundo a comissária, estariam a residir em orfanatos. “Metade dos dois milhões de refugiados que entraram na União Europeia poderão ser crianças”, referiu aos eurodeputados. A comissária europeia acrescentou que os menores “precisam de normalidade” e de apoio educativo. Ylva Johanson, que visitou várias zonas da fronteira ucraniana, disse na altura que o pior ainda estava para vir e que a Europa “vai enfrentar um grande teste”. Não podemos esquecer a deterioração da situação dos refugiados, em sequência da invasão russa à Ucrânia. Em apenas 12 dias, dois milhões de pessoas fugiram da Ucrânia por causa da guerra. A dimensão é equivalente ao número de refugiados que chegaram à UE nos anos de 2015 e 2016. O espaço Schengen apesar de, numa primeira visão, facilitar a livre circulação de pessoas veio dar mais amplitude a este tipo de comportamento criminosos por essa mesma razão. A livre circulação de pessoas é excelente tanto para os cidadãos que cumprem a lei e precisam por motivos profissionais ou pessoais, circular, mas também o é para quem vê nesta abertura de fronteiras uma forma de transgredir e encobrir aos seus comportamentos ilegais. Com a Guerra na Ucrânia mais de um milhão de pessoas – a maioria mulheres e crianças – fugiram do país. Já foram ouvidos relatos de mulheres e famílias jovens que aceitaram ofertas de transporte ‘gratuito’ uma vez através da fronteira para os países vizinhos apenas para serem entregues a gangues criminosas que exigem pagamento. Uma mulher ucraniana de 27 anos disse ao Daily Mail: “Eu ouvi de um amigo que cruzou para a Polónia e me disse que ela foi com um cara que disse que a levaria para Varsóvia de graça, mas quando eles chegaram lá ele pediu dinheiro. Ele

foi agressivo com ela, mas ele não se machucou apenas dizendo que devia o dinheiro a ela e teria que pagá-la trabalhando para ele. Ela começou a gritar e conseguiu fugir enquanto as pessoas estavam assistindo. Estamos espalhando a palavra entre as pessoas para que tomem cuidado”. Lauren Agnew, especialista em políticas de tráfico humano da instituição de caridade CARE, disse ao site inglês: “A guerra na Ucrânia criará uma situação cada vez pior em termos de tráfico humano. Isso terá um efeito cascata na população vulnerável em toda a Europa e os refugiados correm um risco cada vez maior de exploração. É certo que, com o passar do tempo, veremos um aumento nos números causados por refugiados sendo explorados por traficantes e acabando potencialmente como profissionais do sexo, envolvidos em gangues criminosos ou trabalho forçado e escravidão doméstica”. **** Para a investigação deste crime de tráfico de seres humanos nesta fase conturbada, não basta o recurso aos métodos tradicionais de obtenção de prova, sendo necessário que os investigadores utilizem outros mecanismos, designados de meios alternativos ou técnicas especiais de investigação criminal. É ainda necessário que os Estados cumpram todas as exigências impostas nos Tratados e, em simultâneo e aumente a sensibilização por parte da população na observação de indícios da prática deste crime. Há hoje em dia uma maior consciência da prática destes ilícitos quer por parte dos Estados quer por parte do cidadão em geral. É necessário que os órgãos de polícia criminal o Ministério Público e o Poder Judicial estejam atentos na investigação do crime e aplicação da Lei. É necessário que os 193 países membros da ONU que aprovaram unanimemente os novos objetivos de desenvolvimento sustentável e integral, não esqueçam que é absolutamente necessário tomar medidas imediatas e eficazes para erradicar este tipo de crimes. É necessário que os Media não cubram com o seu manto de invisibilidade aqueles que mais necessitam de proteção e de Justiça. É necessário que os Tribunais estejam atentos e tenham a sensibilidade necessária para apreciar as provas e aplicar a lei. Na parte que cabe a Portugal o empenho é constante Na parte que cabe aos Juízes o papel será sempre o de zelar pela defesa do Direito e dos Direitos.

21


FLORES NA ABISSÍNIA Carla Coelho

O i menso ma r ent re nós Foi uma recomendação da professora de francês, talvez a minha favorita de entre os muitos que me passaram pela vida. A edição era no original, em língua francesa, das edições Minuit, elas próprias cheias de história. Vercors, herói da resistência frente aos nazis, é o autor do pequeno livro. A história parece simples: durante a ocupação alemã, avô e neta vêm-se obrigados a receber em sua casa um oficial alemão. Exercem a única oposição possível: não lhe dirigir a palavra, ignorá-lo, agir como se ele não existisse. Ao capitão germânico não lhe é indiferente este ostracismo surdo. Antes da guerra era músico e só a contragosto tomou o seu lugar nas fileiras. Não perdeu a delicadeza e aparenta não estar corrompido pelo poder que o seu lugar lhe confere. Por isso, aceita o silêncio dos seus forçados hospedeiros, mas não lhes facilita a vida. Fala-lhes, é atencioso, mostra-se presente de uma forma delicada. Não age como se o silêncio não o incomodasse. Pelo contrário, e de forma mais

incómoda para quem lê, parece estar animado da convicção de que avô e neta vão ceder a falar-lhe. Não pelo medo ou sequer pelo hábito. Antes por se esquecerem da farda e o reconhecerem como pessoa. Passaram muitos anos desde que li este livro. Sendo tão belo acho o título dos mais felizes de sempre. Quando mergulhamos percebemos como o silêncio do mar esconde tantas e tantas coisas. Parece incrível que todos os seres que por lá vivem se mantenham mudos ainda que palpitantes de vida. A acalmia que vemos à superfície é muitas vezes enganadora. As ondas revoltas que nos estragam um dia de praia são por vezes irrelevantes para os que têm nos oceanos a sua casa. Entre 50% a 60% do corpo humano é composto por água. Quase a mesma proporção do planeta Terra. Para quem acredita em coincidências é um facto curioso. Para quem não crê nelas é seguramente muito mais.

22


Por vezes, quando vou no trânsito ou me desloco pelos corredores do supermercado, quando atravesso os jardins ou me sento numa sala de cinema, ocorre-me como cada um de nós transporta em si um imenso mar, desconhecido mesmo para quem tantas vezes segue ao nosso lado. Mais ainda, quantas vezes albergamos em nós territórios, ilhas, grutas, florestas submersas, bancos de corais, que desconhecíamos até ao exacto instante em que se nos revelam? Qual de nós pode realmente dizer que se conhece?

Gosto de tentar adivinhar o que o que vai na alma dos que se cruzam comigo. Uma tarefa impossível, mas a que me dedico desde pequena, talvez por ser filha única. Sobrou-me sempre tempo para observar e imaginar. Antigamente, nas ruas a maior parte das pessoas parecia-me seguir absorvida nos seus pensamentos (ou quem sabe, conjugando o trânsito com um abençoado momento mindful?). Hoje, grande parte segue a falar com um interlocutor guardado dentro da caixa mágica de que nos tornámos dependentes. Quem diria que o telefone ia ser o centro das nossas vidas? Nem o seu inventor poderia ter imaginado tal coisa.

Outros transeuntes seguem a ouvir música ou as notícias. São poucos os que fazem contacto visual com quem lhes passa ao lado ou à frente, embora não poucos dos que conduzem buzinem a quem tem a ousadia de entrar à sua frente na fila de automóveis ou deixe passar uns segundos antes de iniciar a marcha quando o vermelho passa a verde. Também há os que gesticulam furiosos quando paramos no sinal amarelo, esquecendo que a regra de trânsito a que o mesmo corresponde diz-nos para abrandar a marcha e não acelerar para evitar o vermelho. A maior parte das pessoas com quem me cruzo tem um semblante tranquilo e suponho que também eu o terei se alguém me observar. Os adultos ditos normais, sabem defender-se. Ao contrário das crianças, cujos rostos nos dizem logo como estão as águas. Sabendo que as aparências enganam, dou por mim a pensar em tudo o que os outros terão lá dentro, bem afivelado no semblante sem história. Julgo ver em alguns rostos uma certa luminosidade que me remete para as águas do Mediterrâneo: um novo amor, um filho que acabou de nascer, a perspectiva de umas férias ao sol, sem máscara e sem horários? Noutros, se olharmos bem, vemos um mar revoltoso, cheio de tormenta, do qual não se sabe como irá sair. Ou o pressentimento da tempestade. Noutros rostos ainda, adivinhamos icebergs como os que pontificam nas águas geladas do Pólo Norte, porventura uma estratégia para que o mundo deixe de nos ferir, imunizando o coração e a alma aos seus desmandos. Nunca perguntei a nenhuma das pessoas com quem me cruzo o que está a sentir. Afinal, sou uma pessoa adulta normal, não ando para aí a fazer perguntas inconvenientes que podiam até levar a que eu e o meu interlocutor chegássemos atrasados aos respectivos empregos. Imagino a perplexidade do eventual interpelado, o seu choque, perante a interpelação: diga lá, como está hoje esse imenso mar que traz dentro de si? Pergunta indiscreta e com altas probabilidades de se revelar inconveniente …

23


JOÃO PIRES DA ROSA

NÃO EXISTÊNCIA - UM DIREITO

24


CONFESSO

danos da própria criança. O meu ponto de chegada há-de ser o meu ponto de E foi quanto a esta última partida. Ou … o meu ponto de parte que expressei o meu voto partida há-de ser o meu ponto de vencido, colocando a mim de chegada. mesmo a exactíssima pergunta que é o ponto de partida para Tanto faz. este texto: No Supremo Tribunal de Justiça, em recurso de revista se alguém, podendo não ter n º 9 4 3 4 /0 6 . 6T B M T S . P 1 . S 1 , nascido, nasce na situação de relatado pela Exma Conselheira uma insuportável deficiência, Ana Paula Boularot, no qual que lhe não permite o direito à intervim como adjunto, com vida como um direito à vida com acórdão datado de 17 de qualidade, deve ou não deve Janeiro de 2013, essa pessoa ser indemnizada pelos danos patrimoniais e uma mulher grávida sujeita- não patrimoniais que essa não se aos meios de diagnóstico qualidade transporta? Deve, pré-natal, com o escopo de ou não deve, essa pessoa ser determinar se o seu feto é, a primeira das pessoas a ser ou não, portador de uma indemnizada, por forma a que deficiência; a sua vida se aproxime o mais possível de uma vida … com em virtude de falta de qualidade?! informação correcta sobre o Que resposta deve dar o diagnóstico, a gravidez é levada direito a uma acção intentada até ao seu termo, acabando por um criança, que nasceu, por nascer uma criança com contra a clínica ou o médico deficiências tais que teriam que, com culpa, subscreveram permitido à mãe lançar mão os exames que roubaram à da faculdade de interromper mãe a faculdade de decidir voluntariamente a gravidez, pelo não nascimento, pedindo nos termos que são traçados uma indemnização por pelo art. art. 142.º, n.º 1, al. c), do danos patrimoniais ou não CP; patrimoniais emergentes do seu nascimento deficiente, contra Clínica onde realizou os a essa acção comummente exames e o médico ecografista chamada de wrongful life? que os subscreveu, os pais da Pode ou não pode o direito criança que nasceu deduziram dar uma resposta afirmativa a pedido de indemnização por um tal pedido? danos patrimoniais e não Porque se pode …deve. patrimoniais próprios e, em Não pôde, em particular representação do filho, pedido não pôde na acção em que fui de indemnização igualmente vencido, em 17 de Janeiro de por danos patrimoniais e não 2013, como não havia podido patrimoniais deste. já no acórdão do STJ, relatado No que agora importa pelo Exmo Conselheiro Pinto direi – a acção foi julgada Monteiro em 19 de Junho procedente quanto ao pedido de 2001, ao que sabemos de indemnização por danos o primeiro que entre nós se próprios dos pais da criança, debruçou sobre tal matéria. improcedente quanto ao Mas não me conformo com pedido de indemnização dos uma tal resposta.

25

Alguém, pensando na criança que nasceu e suporta o peso acrescido da vida, pode aceitar uma tal resposta? Não creio. E acredito que o direito pode, ao contrário, dar uma resposta ao pedido de quem sofre. Sobretudo se o direito procurar uma resposta em nome da vida e não, rodando sobre si próprio e esquecendo a vida, atingir ainda mais a vida … com qualidade, em nome do respeito por uma amargura de vida. Porque a vida que nos interessa, que interessa ao direito, é esta vida em concreto, esta vida que – sem qualidade – não pode todavia deixar de ser vivida, e não uma ideia abstracta de vida pela vida que esquece quem, podendo não ter nascido, tem todavia que suportar a vida – a sua vida. E como a vida pode ser uma sobrecarga! Não devem ser chamadas para aqui quaisquer considerações morais ou religiosas que tenham a ver com o princípio da vida, até porque a principal de todas essas questões é sempre o respeito por esta vida que nasceu, que vive, e à qual é imperioso trazer a qualidade sem a qual a vida não é vida. Dir-se-á, desde logo, que há a dificuldade de encontrar o contraponto para o cálculo, para a fixação de uma indemnização a arbitrar, pois sempre se poderá dizer que a vida que se vive ( mesmo sem qualidade ) é necessariamente melhor que a vida que se não viveu. Então, entre o não ter nascido e o ter nascido, ainda


João Pires da Rosa

Não existência - um direito

que sem qualidade, sempre será mais valioso o ter vivido e, por isso, não haveria um dano que seja necessário suportar – e sem dano não há indemnização. Mas não é assim: o dano, a sobrecarga, existe e o contraponto não pode ser a não existência, o contraponto há-de ser a existência … com qualidade. Quando se quer olhar para o dano sofrido o farol só pode ser a vida ( a vida com qualidade ) e não a nãovida. É por aí que se há-de sentir o peso de viver, o encargo de viver, quando se podia não ter vivido. Poderá, como já referimos, existir uma dificuldade acrescida no cálculo da indemnização. Mas não poderá ser isso a obstar ao reconhecimento do direito a essa mesma indemnização Dito isto: não há indemnização sem dano, como não pode nascer no património de alguém o direito a ser indemnizado se correlativamente não nascer num outro património o dever de indemnizar, a obrigação de indemnizar. E onde poderá radicar esse “pretenso” dever se a deficiência que traduz o dano que esmaga esta vida já existe desde a concepção dela e não pode ser imputada a quenquer que seja? E se, por outro lado, o direito à vida está protegido, de uma forma absoluta, quer na Constituição da República Portuguesa quer nas Convenções Internacionais que a enformam, a começar na Declaração Universal dos Direitos do Homem? É assim – art.24º, nº1 da Constituição: a vida humana é inviolável abrangendo essa inviolabilidade « não apenas a vida das pessoas, mas também a vida prénatal, ainda não investida numa pessoa, a vida intra-uterina ( independentemente do momento em que se entenda que esta tem início ) e a vida do embrião fertilizado » Gomes Canotilho, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, pág.449.

Mas atenção – escrevem também os mesmos autores na mesma obra e local: « a protecção da vida intra-uterina não tem que ser a mesma em todas as fases do seu desenvolvimento … |sendo que| relativamente à interrupção voluntária da gravidez, não existindo uma proibição absoluta do aborto, parece todavia não existir também o reconhecimento constitucional de um direito ao aborto … compet|indo| à lei … estabelecer os limites ( nomeadamente os de natureza temporal ) da faculdade de interrupção voluntária de gravidez, ou pelo menos, da não punição penal ». O que tem também a ver com – art.67º da Constituição – a protecção da família, incluindo a obrigação por parte do Estado ( al.c ) do nº2 ) de garantir, no respeito da liberdade individual, o direito ao planeamento familiar, promovendo a informação e o acesso aos métodos e meios que o assegurem, e organizar as estruturas jurídicas e técnicas que permitam o exercício de uma maternidade e paternidade conscientes. É dentro do indeclinável respeito da liberdade individual, constitucionalmente garantido, que a mesma Constituição permite que a lei coloque nas mãos do Homem a faculdade – o direito, mas não o dever – de deixar ou não deixar correr uma vida pré-natal até ao seu “investimento como pessoa”, até ao nascimento – a personalidade adquire-se no momento do nascimento completo e com vida ( art.66º, nº1 do CCivil ). Foi exactamente com este enquadramento que, no Supremo Tribunal de Justiça, no recurso de revista no processo nº9434/06.6TBMTS.P1.S1, de 17 de Janeiro de 2013, expressei o meu voto de vencido no sentido de, em tese, admitir um direito à não existência « desde que a lei portuguesa reconheceu, nos termos previstos no art.142º do CPenal, a não punibilidade da interrupção voluntária da gravidez, colocando a vida, nesses precisos casos, nas mãos dos homens, mais especificamente da mulher/ mãe ».

26


Há um tempo e uma condição, estritamente definidos na lei, em que o direito de ser ou de não ser, de existir ou não existir, está nas mãos do Homem, está nas mãos da mulher/mãe onde repousa o indestrutível direito de decidir se sim ou não quer fazer caminhar até ao nascimento o nascituro que é ainda isso mesmo, um nascituro, que faz ainda parte de si própria, e que só virá a autonomizar-se como pessoa se essa for a vontade da mulher grávida. Este é um direito da mulher grávida, um direito que é uma faculdade – não um dever – que tem necessariamente duas faces, com igual peso: ela, a mulher grávida, e só ela, porque só dela é o consentimento sem o qual nenhuma intervenção é lícita, decidirá da existência ou não existência, do caminho para a existência ou do fechamento desse caminho. Nesse(s) tempo(s) e nessa(s) circunstância(s), o direito à não existência é a outra face, tem o mesmo valor, do direito à existência, e estão ambos colocados com igual juridicidade, nas mãos dela, da mulher grávida. Esse é um direito que é património seu, de si própria como um todo – não como uma simples mulher mas como uma mulher pejada, direito que só ela pode exercitar e à qual se garantem todos os poderes que lhe permitam esse exercício. Quando ela se decide pela não existência é ainda o seu direito que ela exercita ( ainda que umbilicalmente ligado à via pré-natal que em si mesma transporta ), sem prejuízo de se pensar que um direito do feto, passe a expressão, se há-de autonomizar um dia e incorporar no seu exclusivo património, se ele vier a nascer porque – nº2 do art.66º do CCivil – os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu nascimento. O direito de existir – ou de não existir - será, pois, ainda e sempre, direito da mãe enquanto o nascituro não nascer ( ou se não nascer )! O nascituro – o embrião ou o feto – é ainda mãe enquanto se não autonomizar como pessoa pelo nascimento. Persistir ou não persistir no caminho da existência – nos tempos e nas circunstâncias em que a lei coloca essa decisão nas mãos da mãe – é ainda direito desta.

responsáveis nos termos em que o art.800º do CCivil responsabiliza o devedor pelos actos dos seus representantes legais ou auxiliares ) com ele contratualiza a prestação de serviços médicos, definidos em protocolo da Direcção Geral de Saúde como os adequados à determinação e informação de eventuais distúrbios ou malformações do feto que transporta, é ainda por si mesma e para protecção de si própria que a mãe celebra o contrato. Pois ela não é pessoa diferente do que é, e ela é uma mulher pejada já se disse – é esta concreta mulher que celebra o contrato para interesse seu e o seu feto é ainda ela própria, o feto faz ainda parte da sua própria pessoa ( sem prejuízo de a sua personalidade em formação se poder autonomizar mais tarde e com ela se autonomizar o direito que antes era – por força da própria concepção legal do nascimento da personalidade, do art.66º, nº1 do CCivil – ainda … mãe! ). Não pode assim, nem é preciso, se bem entendo, falar-se de um contrato em benefício de terceiro porque o contrato é ainda em benefício do próprio contratante e a contraparte – o médico ou a clínica – sabe bem quem é a contratante/mãe – sabe bem que é por estar grávida ou se pensar grávida que a mulher contratualiza consigo os exames destinados a permitir-lhe o exercício livre e consciente do seu direito ao planeamento familiar ou a uma maternidade consciente. Pouco importa que mais tarde, por hipótese, esse direito se venha a automizar e se radique numa novo ser, numa nova pessoa. O que importa é que naquele momento o direito é ainda de uma pessoa única e depois renasce, multiplicando-se, numa outra pessoa. Nem isto é uma realidade longe do direito ou que perturbe o direito. Pelo contrário, é uma realidade que acompanha e com a qual o direito convive; é assim em todos os processos de divisão onde o que era inicialmente o direito de apenas uma entidade se diversifica posteriormente em diferentes direitos radicados nos diferentes patrimónios nascidos dessa divisão/multiplicação.

Quando a mãe procura um médico ou uma clínica especializada ou um outro estabelecimento de saúde ( estes últimos

27


Isabel Malheiro Almeida

A INFÂNCIA PERDIDA

28


Quase diariamente, e bem, somos alertados pelos meios de comunicação social para o flagelo da violência doméstica, maioritariamente perpetrado sobre mulheres. E de facto, a mediatização desde crime tem tido impacto na sociedade e naturalmente na própria justiça, cada vez mais atenta e eficaz na punição destes crimes, como reflexo da relevância dos valores sociais. Mas a violência doméstica não se esgota, infelizmente, na violência sobre as mulheres, ou na violência conjugal. Veja-se o aumento dos casos de violência contra idosos, que resulta não só dos maustratos de que por vezes são vítimas, mas também do abandono a que muitas vezes são votados, e veja-se, principalmente, o caso das crianças que são também vítimas dessa violência conjugal, enquanto testemunhas da mesma. Segundo um relatório da ONU, um bilião de crianças com idades compreendidas entre os 2 e os 17 anos experienciaram violência física, sexual ou emocional, ou negligência no último ano. Experienciar violência na infância tem impactos no desenvolvimento das crianças, e tal como é lema do programa contra a violência da UNICEF, nenhuma violência contra as crianças é justificável e toda a violência contra as crianças pode ser prevenida. Apesar de Portugal ter sido um dos primeiros países a ratificar a Convenção de Istambul com vista à eliminação de quaisquer práticas discriminatórias, protegendo os seus cidadãos de qualquer forma de violência, e considerando a violência doméstica uma

violação de direitos humanos, tipificando já o crime de violência doméstica contra crianças testemunhas de violência doméstica, o que é certo é que desde 2013, ano da ratificação da convenção, ainda pouco mudou no que respeita às crianças. É que não basta ao Estado ratificar tratados ou convenções, introduzir normas de igualdade de género nos procedimentos da administração pública ou proceder a alterações legislativas, tal como recentemente sucedeu com a Lei 57/2021, de 16 de agosto. É necessário enraizar essa necessidade de proteção das crianças enquanto vítimas de violência doméstica e, principalmente, tomar as medidas necessárias para que a coordenação entre os DIAP regionais, nomeadamente as SEIVD, e os Tribunais de Família na verdade se concretize, e ocorra em tempo útil. Mas, e principalmente, no que respeita ao estatuto de vítima que estas crianças vão tendo já nos processos-crime de violência doméstica atenta a exposição a tal crime, quantos pedidos de indemnização civil foram deduzidos em nome da criança contra o agente da violência doméstica? E nos que foram deduzidos que investigação é feita sobre os reais impactos no desenvolvimento daquela criança submetida a violência? Não podemos olvidar que o que é vivido na infância, molda as características da personalidade do adulto e não basta arbitrar às crianças que são vítimas uma quantia monetária normalmente irrisória, diga-se, a título de indemnização para que se pense estar assim tutelado o seu melhor interesse. É premente que estas crianças tenham uma voz ativa também nestes processos e que, os tribunais sejam dotados de meios

29


jovens que são vítimas especialmente vulneráveis pela sua condição, e que, continuam a ser vistas como um objeto sem voz que, sobre a superintendência do adulto “protetor”, vêem muitas vezes o seu futuro hipotecado pela violência que vivenciaram. A Estratégia do Conselho da Europa sobre os Direitos da Criança (2016-2021), referia que os sistemas judiciais europeus não estão ainda suficientemente adaptados às necessidades específicas das crianças e que a investigação demonstra que os direitos da criança a ser, entre outros, protegida e a não ser discriminada, nem sempre são cumpridos na prática, uma vez que as crianças envolvidas em conflitos e em contacto com a lei têm direitos específicos aos quais o sistema de justiça muitas vezes não responde de forma adequada. E o sistema judicial português, não obstante os avanços verificados, continua a não estar adaptado a tais necessidades, o que é ainda mais visível nos processos de violência doméstica.

que possam tutelar efetivamente os seus interesses da mesma forma que as vítimas diretas destes crimes. Quem, e como se protege, especialmente, a criança para que possa desenvolver-se física, intelectual, moral, espiritual e socialmente de forma saudável e normal, quando testemunha um crime destes? Tem sido enorme a evolução do Direito das Crianças nas últimas décadas, no entanto é necessário continuar a percorrer este caminho de modo a tornar o atual sistema de administração da justiça para crianças eficaz e capaz de responder através de mudanças conceituais aos direitos de tantas crianças e

A maioria dos tribunais portugueses nem sequer tem uma sala adequada a ouvir crianças e apesar de já começar a ser comum nos tribunais de família haver um técnico, normalmente um psicólogo, para explicar à criança o que ali se vai passar, na verdade isso acontece cinco minutos antes de se realizar a diligência, o que por si só evidencia logo que não passa de um mero formalismo para que se possa afirmar ter um sistema adequado às crianças. Particularmente no que aos processos de violência doméstica respeita, não é efetuada qualquer avaliação sobre o impacto que tal violência tem na criança e, não existe em todo o sistema uma qualquer coordenação com uma equipa multidisciplinar, tanto para a avaliação dos danos causados pelo agressor àquela criança e que deveriam objetivamente

30


Isabel Malheiro Almeida

A Infância Perdida

ser tutelados, como para uma proposta terapêutica que é necessária a maioria das vezes e que deveria ser atendida em sede processual, nomeadamente, ser tida em consideração na condenação do agressor. A própria jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e do Comité Europeu dos Direitos Sociais tem vindo a ilustrar as diversas situações nas quais os direitos da criança estão em causa, identificando uma série de violações da Convenção Europeia dos Direitos Humanos em relação às crianças e, o Comité Europeu dos Direitos Sociais identificou também vários Estados em infração à Carta Social Europeia, nomeadamente por não terem proibido os castigos corporais de forma suficientemente rigorosa e vinculativa. Não acautelar devidamente os interesses das crianças quando são vítimas de violência doméstica é submetê-las ao castigo eterno de perda da infância/juventude. Um sistema judiciário amigo da criança foi uma das prioridades da estratégia do Conselho da Europa para os direitos da criança 2016-2021 e as crianças e os jovens têm direito a uma justiça amiga da criança. Os princípios da justiça amiga da criança incluem a participação, o bem-estar da criança, a dignidade, a proteção contra a discriminação e o Estado de direito, e as crianças, enquanto vítimas de violência doméstica por a presenciarem, continuam a ser discriminadas pelo nosso sistema judiciário que não as consegue ver como as maiores vítimas do crime que em regra é diretamente perpetrado contra o adulto “protetor” que

foi incapaz de as proteger e, a que a criança assiste, na maioria das vezes com a frustração de nada poder fazer para o impedir. E isso, tem de ser ponderado na medida da pena a aplicar ao agressor e no pedido cível que haja sido deduzido em nome da criança. É tempo de as crianças deixarem de ser tratadas como seres inferiores e marionetas de um sistema que, na verdade, não as coloca no centro como há muito já se impõe que o faça. Impõe-se um sistema que permita que todas as crianças possam vivenciar a sua infância não se tornando adultos agressivos e agressores, e isso passará por dotarmos o sistema judiciário de meios para que tal suceda, mas também por uma maior consciencialização de todos os atores judiciários do papel central que estas crianças devem ter nos processos de violência doméstica e na necessidade da sua proteção. Urge construir uma cultura e um sistema responsável pela infância que é retirada a estas crianças criando meios alternativos para as compensar devidamente pela violência a que foram sujeitas.

31


MARGARIDA DE MELLO MOSER.

VOCÊ CORTA A ETIQUETA? Já a r pa ou ss pa ei àf er ro “Já passei a roupa a ferro Já passei o meu vestido Amanhã vou-me casar E o Manel é meu marido Todos me querem E eu quero alguém Quero o meu amor Não quero mais ninguém”

Começou a época ..... Há casamentos ao sábado, ao domingo, às sextas, mas a coisa está tão complicada, que também já ninguém estranha quando são num outro qualquer dia da semana. É o sinal dos tempos. As limitações e os sucessivos adiamentos dos últimos dois anos, fazem deste ano, um ano de muito casório. A trabalheira que dava aos Pais, principalmente às Mães, um casamento há alguns anos, não é preciso recuar

muitos, já hoje quase ninguém tem ideia. Hoje eles continuam a pagar tudo, mas a maior parte dos filhos, a grande maioria dos noivos, acha que têm que ser eles a decidir o texto do convite, a lista de convidados, os pormenores .... E acham que não se vê a diferença? Pois é, mas vê-se, vê-se até muito bem. O ideal é sempre chegar a um consenso, como em tudo na vida, aliás. Pessoalmente, gosto muito dos convites à antiga, como agora se diz. São claros, precisos e concisos. E afinal, se somos convidados para o casamento do Manuel gostamos de saber quem é a Maria dele. E qual é a altura do ano, o mês ideal para casar? Tanto faz? Não, mesmo!

32


Tem que pesar tudo muito bem. O melhor é começar por comprar um caderno. Pode em vez disso usar o computador, o Ipad, o telemóvel? Poder, poder, pode, mas não é a mesma coisa. Eu explico. São tantas as coisas a tratar e tão diferentes, e encadeiam tanto umas nas outras, que é bom e prático poder num segundo passar de um para outro assunto, sem ficar sem rede, sem bateria, e poder tomar notas rapidamente. E aí vem o rol de coisas para fazer ... A primeira, a partir da qual tudo se define, é o orçamento.

A música da cerimónia e da boda

O tema, se se quiser ter uma base

O bolo dos noivos

Se, em tempos idos, isso era um problema da família da noiva, hoje, na maior parte das vezes, as despesas são a meias ou, uma base a meias e o banquete, a boda, a festança, o que lhe quiserem chamar, proporcional ao número de convidados que cada família convida.

A lista de presentes é uma daquelas coisas difíceis. Hoje foi transformada em nib, a maior parte das vezes, para ajudar a pagar a lua-de-mel. Mas há convidados que não gostam de ser confrontados com essa modalidade (tenho que confessar que é o meu caso).

Mas atenção aos pormenores, como sempre devemos.

A minha sugestão é que haja uma alternativa, uma lista de presentes numa loja, de preços diversificados, porque quando convidamos também sabemos que a capacidade financeira dos nossos convidados é também, muitas vezes, diversificada.

Definido o orçamento, vamos às listas. E acreditem, são muitas listas.

Uma folha de contactos permanentes

Outra de esporádicos

Possíveis datas

Tipo de casamento - civil ou religioso

Se for religioso - o livro da Missa e escolher intervenientes e textos de acordo com o celebrante

Tratamento de papéis e prazos

Os padrinhos

Local

Listas de convidados - alargadas, para depois ajustar - ou não

O vestido ou o fato

Os sapatos

As alianças

As flores

O bolo

O fotógrafo

A ementa ou as ementas, dependendo da duração do acontecimento Claro que é possível contratar alguém que trate de tudo, ou quase tudo. Mas isso fará toda a diferença no resultado final. Vai dar menos trabalho - ou não, porque às vezes a coisa não tem nada a ver com o que queremos. E dar a volta ao texto, normalmente dá mais trabalho do que escrever um original. Já está estoirado só com a leitura? Pois bem, cortando ou não a etiqueta, isto é apenas uma amostra. Cada um destes pequenos assuntos a tratar vai levar a uma data de deslocações, telefonemas, mensagens, desilusões e momentos felizes. No final, o que interessa mesmo é que a organização seja um sucesso, e que o acontecimento seja o que se quer - um final feliz!

33


AS PAREDES AZUIS

34


LICÍNIA QUITÉRIO Na época, usava-se pintar as paredes de cores fortes. Ele mandou pintar a sala de azul, azulão de mar aberto. Comprou sofás de napa vermelha, móveis em módulos ajustáveis, de linhas rectas. A kitchnette simpática, funcional. Ligou a aparelhagem e ouviu-se música francesa. Na relação com a Conceição, que Nanette se chamava, viera-lhe o interesse pela França. A música, os livros, até a comida. Aprendera a fazer omeletas que, explicava, tinham de ser “baveuses” no interior. Joana olhava em redor da sala, estranhando as cores, os sons, um tremor desusado nas ancas, uma súbita vontade de não estar ou de ficar para sempre. Léo vociferava “je pisse, j’éjacule”. Ele preparava dois uísques. Puro para ele, com soda para ela. Estava calor, o calor das noites belas e ardentes da cidade, nos seus abismos e clausuras. Transpiravam trinta anos de vida, de espanto ainda. Transgrediam, tremiam, mas não se detinham. Dançavam e bebiam e bebiam e dançavam. “Je t’aime moi non plus”, susurrava Jane Birkins. Bem se podia dizer que choravam, tremendo nas cordas finas da ternura. Sabiam da noite única impressa nas paredes azuis, no sofá vermelho, no ligar e desligar do pequeno frigorífico, no chiar do elevador, no tilintar do gelo nos copos. No dia seguinte, ele foi buscá-la ao emprego, para almoçarem. Tirou do bolso um gancho de cabelo e disse: deixaste-o no sofá, tens de ter mais cuidado. Sentiu a censura, cortante, a boca fina no beijo rápido, a compressão dos malares. Mesmo depois de cortar o cabelo bem curtinho, não voltou à sala com paredes azuis. Houve outras salas, até deixar de haver. Entretanto, a transgressão encorpava nas veias da cidade.

35


36


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.