FLORES NA ABISSÍNIA Carla Coelho
O i menso ma r ent re nós Foi uma recomendação da professora de francês, talvez a minha favorita de entre os muitos que me passaram pela vida. A edição era no original, em língua francesa, das edições Minuit, elas próprias cheias de história. Vercors, herói da resistência frente aos nazis, é o autor do pequeno livro. A história parece simples: durante a ocupação alemã, avô e neta vêm-se obrigados a receber em sua casa um oficial alemão. Exercem a única oposição possível: não lhe dirigir a palavra, ignorá-lo, agir como se ele não existisse. Ao capitão germânico não lhe é indiferente este ostracismo surdo. Antes da guerra era músico e só a contragosto tomou o seu lugar nas fileiras. Não perdeu a delicadeza e aparenta não estar corrompido pelo poder que o seu lugar lhe confere. Por isso, aceita o silêncio dos seus forçados hospedeiros, mas não lhes facilita a vida. Fala-lhes, é atencioso, mostra-se presente de uma forma delicada. Não age como se o silêncio não o incomodasse. Pelo contrário, e de forma mais
incómoda para quem lê, parece estar animado da convicção de que avô e neta vão ceder a falar-lhe. Não pelo medo ou sequer pelo hábito. Antes por se esquecerem da farda e o reconhecerem como pessoa. Passaram muitos anos desde que li este livro. Sendo tão belo acho o título dos mais felizes de sempre. Quando mergulhamos percebemos como o silêncio do mar esconde tantas e tantas coisas. Parece incrível que todos os seres que por lá vivem se mantenham mudos ainda que palpitantes de vida. A acalmia que vemos à superfície é muitas vezes enganadora. As ondas revoltas que nos estragam um dia de praia são por vezes irrelevantes para os que têm nos oceanos a sua casa. Entre 50% a 60% do corpo humano é composto por água. Quase a mesma proporção do planeta Terra. Para quem acredita em coincidências é um facto curioso. Para quem não crê nelas é seguramente muito mais.
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