ESPAÇOS DESVIADOS: SEXUALIDADE E SUBVERSÃO LEONARDO REBELLO
ESPAÇOS DESVIADOS: SEXUALIDADE E SUBVERSÃO LEONARDO REBELLO
2019.2 ARQ1110 PROJETO FINAL ORIENTAÇÃO OTÁVIO LEONÍDIO
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SUMÁRIO
6 8 10 12 16 18 20 22 28 32 34 38 40 44 46 48 54
APRESENTAÇÃO VOCÁBULOS INTRODUÇÃO BREVE HISTÓRICO SEXUAL BANHEIRO / BANHEIRÃO A INTERNET COMPORTAMENTO CONFIGURAÇÃO ESPACIAL CRISE DO PROGRAMA GRINDR O CORPO NO APP USOS NÃO SEXUAIS CARTOGRAFIA INTERSEÇÕES INTERFERÊNCIAS LOCAIS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 5
APRESENTAÇÃO
Quando comecei a pensar o que poderia ser esse trabalho de conclusão, procurei investigar dois temas que mais me chamaram atenção ao longo desses 5 anos de curso: o corpo e o espaço. Ansioso como sou, os primeiros esboços que desenvolviam o assunto eram atropelamentos sobre tudo que eu sabia/entendia sobre esses temas: o espaço como supostamente sem limites e sem saída, indestrutível e impalpável, absoluto e incriado, e o corpo como uma natureza material onde ocorre a externalização do eu essência. Eu queria falar sobre o caráter de exercício do corpo no espaço e as coexistências que ele possibilita. Confuso, mas eu não fazia ideia de já estar falando sobre o que viria a seguir. Comecei então a andar em círculos. Falar sobre esses conceitos puramente sem um contexto maior e sem ter propriedade no assunto não me tirou do lugar, até que em uma determinada conversa me deparei com os seguintes questionamentos: “que corpo é esse que você quer falar?”, “que espaço é esse?” e “qual é a questão dessa relação?”. Bom, se tem um corpo o qual tenho propriedade para falar é o meu, e uma parte da identidade do meu corpo presente em outros, é a de ser um homem gay. Decidi então seguir pelo caminho da sexualidade a partir do meu local de fala e, assistindo à uma palestra da Judith Butler tive um clique ao ouvir um comentário da filósofa sobre o uso de banheiros. Esse comentário me deu o espaço a ser discutido e o primeiro objeto de estudo do trabalho: as práticas sexuais entre homens em banheiros públicos, os banheirões. 6
Nesse momento o trabalho assumiu o caráter sexual, abordando as relações entre os corpos, as questões espaciais que os envolvem, a relação entre espaço e uso, o papel da internet e, desde então, a pesquisa incorporou e se afastou de alguns temas, criou e descartou possibilidades e mudou de título 4 vezes. O texto apresentado aqui é apenas um recorte de uma investigação contínua, fruto de uma mente confusa, curiosa e com tesão. 7 7
VOCÁBULOS
Como o trabalho gira em torno de relações sexuais entre homens, não tem como falar sobre esse assunto sem utilizar o vocabulário próprio da cultura homossexual masculina, e para situar m elhor o leitor no trabalho, é necessário fazer algumas observações às algumas palavras (e símbolos) utilizados para definir algumas práticas e características. É importante ressaltar que dentro desse texto, eu estou sempre me referindo ao público masculino, a partir do meu olhar como um homem gay. Reconheço a importância de falar sobre outras sexualidades e gêneros, mas não possuo conhecimento nem a vivência de como é essa temática sob esse ponto de vista. Estou falando de um público restrito (e privilegiado). Ao longo do trabalho, eu optei na maioria das vezes pela utilização do termo entre homens ao invés de homossexuais, devido à grande parte dos homens presentes nos espaços que irei discutir não se orientarem sexualmente dessa forma. Utilizo a palavra prática constantemente em meu trabalho e, salvo momentos em que eu especificar quais, as práticas referidas são atos sexuais. Uma alternativa é a palavra pegação. Os espaços públicos aos quais me refiro são lugares incomuns para tais práticas. No caso dos banheiros, essas práticas são chamadas de banheirão.
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Para melhor entendimento sobre o banheirĂŁo, alguns termos devem ser assimilados. Chamo de vigilância os agentes que atuam como opressores Ă s prĂĄticas, tais como seguranças, zeladores, policiais, e seus dispositivos e intervençþes espaciais. Para atividades em grupo, geralmente um indivĂduo se propĂľe a ser o olheiro, ou seja, ele vigia o acesso ao banheiro e avisa aos praticantes quando alguĂŠm estiver entrando. E quando um local se torna conhecido por suas prĂĄticas, passa a ser considerado um lugar queimado. No caso dos espaços virtuais como aplicativos de encontros e chats online, onde ĂŠ necessĂĄrio chamar atenção em poucos caracteres, esse vocabulĂĄrio ĂŠ mais diverso e inclui nĂŁo sĂł palavras como sĂmbolos e emojis que possuem significados prĂłprios como preferĂŞncias sexuais, fetiches e uso de drogas, como por exemplo: “ativoâ€?, â€?passivoâ€?, “versĂĄtilâ€?, â€?maconhaâ€?, “cocaĂnaâ€?, relativo a sexo oral, urso (homem peludo), referente ao tamanho do pĂŞnis, entre outros. Em um ambiente assumidamente gay, como o aplicativo Grindr, homens nĂŁo assumidos, “fora do meioâ€? ou casados, frequentemente pedem por sigilo, nĂŁo exibindo seus rostos ou com fotos apenas de partes do corpo para nĂŁo serem identificados. Um encontro fora do aplicativo, nĂŁo surpreendentemente ĂŠ apelidado de real, e local ĂŠ como eles chamam o lugar que pode hospedar essas prĂĄticas no real.
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INTRODUÇÃO O que é normal? E por que é normal?
Normal é um estado; uma palavra para categorizar o que é considerado natural, sem apresentar nenhum desvio de conduta socialmente aceitável. De acordo com a etimologia da palavra, “normal” vem do latim normalis que significa “de acordo com a regra” e, como qualquer tipo de regulador, é veiculado a um determinado ponto de vista. Essa visão cônica, que direciona seu olhar para o que considera importante, é imposta por grupos com interesses em comum que se instituem como um padrão. Foucault diz que “[...] o grande fantasma é a ideia de um corpo social constituído pela universalidade das vontades. Ora, não é o consenso que faz surgir o corpo social, mas a materialidade do poder se exercendo sobre o próprio corpo dos indivíduos.” O poder parte dos corpos, que criam normatizações de comportamentos e pensamentos em diferentes instâncias de poder — o Estado, as crenças religiosas, a indústria, etc —, promovendo enquadramentos, levando os corpos à previsibilidade. Não há destaques no normal. A normatização é um dispositivo de controle.
1 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 28. ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2014
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Como diz Preciado: “O corpo é um texto socialmente construído, um arquivo orgânico da história da humanidade como história da produção-reprodução sexual, na qual certos códigos se naturalizam, outros ficam elípticos e outros são sistematicamente eliminados ou riscados. [...]”
A homossexualidade, assim como outras identidades sexuais, ainda que privilegiada, é frequentemente atacada com esse processo de normatização pelas instâncias de poder citadas. O discurso principal relaciona o normal à natureza reprodutiva dos corpos, estabelecendo assim a heterossexualidade como o padrão sexual/comportamental. A maneira como o corpo homossexual se relaciona atualmente é uma consequência da formação dessa normatividade.
2 PRECIADO, Paul B. Manifesto Contrassexual. São Paulo: n-1 edições, 2017.
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BREVE HISTÓRICO SEXUAL Como qualquer coisa que tem seu sentido de “normalidade“ retirado, a história da homossexualidade no Brasil sempre foi encoberta e/ou diminuída, tratada como uma consequência recente de um mundo globalizado. Fato é que, até onde se tem registros, existem relatos homoafetivos no país desde a sua colonização e, muito provavelmente, antes também. Historicamente, a pegação entre homens em espaços públicos no meio urbano do Rio de Janeiro, se dava por lugares específicos: zonas e “buracos”. Curiosamente, esses lugares eram bastante conhecidos, como o Campo de Santana, por exemplo, que durante os séculos XVIII e XIX era famoso por abrigar o flerte entre cavalheiros. O Centro do Rio era lugar ideal para essas práticas que aconteciam abertamente nas ruas, pois na metade do século XX, o bairro se encontrava abandonado pelo Estado devido ao foco de expansão da cidade em direção às zonas Sul e Norte. A atual região do Aeroporto Santos Dumont, apelidada de Via Ápia, foi um dos pontos de encontro mais conhecidos nos anos 60 ao receber diversas visitas noturnas de homens para encontros momentâneos na rua. Buraco do Cauby, buraco da Maysa e buraco da Rua da Quitanda são apenas mais alguns nomes entre muitos outros que durante os anos 80 viviam entre “normalidade” e perversão. Esses lugares, como quase tudo na vida, tiveram seu auge e sua decadência. 3 MOREIRA, Antônio Carlos. Só para Cavalheiros: Crônicas Urbanas do Jornal Lampião. Rio de Janeiro, 1997.
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Mapeamento Via Ápia
Porém, alguns acontecimentos fizeram com que esses lugares perdessem sua vitalidade. A presença da criminalidade e a repressão policial constantemente entravam em conflito com os homens envolvidos à essas práticas na rua, ocasionando violência, prisões e, em alguns casos, mortes. A retomada de investimentos no Centro e o aumento de estabelecimentos voltados para sexo entre homens (cinemas pornô, saunas e bares gays), contribuíram para a diluição de alguns pontos de pegação. Esses lugares foram apresentados como alternativas para encontros mais privados, ajudando a popularizar o sexo entre homens, mas também a vulgarizá-los.
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Mas, apesar dessas práticas sexuais entre homens em espaços públicos poderem ser controladas, elas sempre aconteceram e possivelmente sempre vão acontecer, porém, ocupando outros lugares a partir de brechas. O escritor e curador Stephen Wright define a dinâmica de como operam as “brechas”: “Essas folgas [brechas] na ação normativa (às vezes chamada de vazios legais) emergem rapidamente, mas são prontamente bloqueadas, o que torna o uso de brechas um modo particularmente dinâmico de operação em ambientes vigiados. Os usuários dessas práticas sabem por experiência e observação que, embora seja possível e divertido driblar as autoridades por um tempo, no momento em que a brecha é descoberta, sua janela de oportunidade já começa a se fechar e é hora de partir pra outra.” Em uma existência considerada como “anormal”, a utilização das brechas é necessária para manter vivo o direito de exercício. Dessa forma, podemos entender as brechas como uma condição necessária para que essas práticas sexuais aconteçam representando assim um lugar de resistência. Vamos visualizar melhor essa dinâmica a seguir.
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WRIGHT, Stephen. Para um léxico de usos. São Paulo: Editora Aurora, 2016.
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BANHEIRO / BANHEIRÃO
A partir da definição da palavra no dicionário, podemos observar que banheiro pode ser qualquer cômodo onde ficam instalados equipamentos sanitários, como vaso, bidê, chuveiro, banheira, mictórios, etc. No senso comum, refere-se a um lugar que abriga equipamentos para necessidades fisiológicas e de higiene do corpo; um espaço privado onde o ser humano lida com sua natureza revelada. É no banheiro onde ocorre uma inversão, e a importância dos membros são alteradas: a cabeça deixa de ser a parte mais importante e a relevância é voltada para os membros inferiores. Toda a atenção do momento retorna para si mesmo, para então o corpo pôr para fora tudo que não lhe coube absorver, em atos solitários, sujos, fétidos, mas que provocam alívio. Ninguém permanece no banheiro porque ele não é um espaço de abrigar, e sim de receber o que ninguém quer. Historicamente, “Para os aristocratas do período barroco, o banheiro deveria ir a eles, e não o contrário. Não havia banheiros em Versalhes, e certo era que os criados deveriam trazer uma latrina móvel para os quartos, ou cadeira de retrete que, logo depois de usada, era recolhida pelos criados.” A criação de um lugar para abrigar tais atos fez com que esse exercício fisiológico fosse algo a ser encoberto, onde o usuário precisa se conter em um pequeno espaço e os demais respeitarem sua privacidade. 5 TEIXEIRA, Carlos M. História do corredor. Texto previamente publicados no livro (do autor) Entre, Instituto Cidades Criativas, 2009.
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“O banheiro doméstico surge nessa época [séc. XVIII] com a função de ser um local para o exercício da privacidade das pessoas. As mesmas atribuem significados e ações que estão envolvidos com a noção de intimidade no cotidiano dos membros da família. Assim, as pessoas usam o banheiro doméstico com um sentido singular de privacidade. A partir do momento em que vão utilizar um banheiro público, ressignificamno; compreendem o encontro com os outros e também exercitam uma privacidade no coletivo. Portanto, o banheiro público torna-se um lugar ambíguo de ser: ao mesmo tempo um local de uso coletivo e privado da pessoa. Trata-se de um espaço cuja função de higiene remete ao uso dos órgãos genitais para a secreção e fluido, mas que podem tornar-se também de prática sexual.” O que nos faz estranhar atividades sexuais em um banheiro é o senso comum de que o prazer não é uma necessidade do corpo que pode ser satisfeita de modo prático como as necessidades fisiológicas, que curiosamente, envolvem os mesmos membros em seus atos. Tudo isso, devido ao prazer ser reduzido apenas à reprodução, ele não deve ser visto nem ouvido, por isso é restringido aos quartos e relações heterossexuais. O banheirão, como são chamadas as práticas sexuais entre homens em banheiros públicos, é uma dupla subversão. Primeiro pois é um ato que não deve ser realizado em um banheiro segundo os usos que foram estabelecidos previamente para aquele lugar, e o senso comum de que práticas sexuais não devem se tornar públicas. Segundo, pelo casal do ato (ou mais), serem indivíduos do mesmo sexo, o que torna o prazer uma pura perversão. 6 COSTA NETO, Francisco Sales da. Banheiros públicos: os bastidores das práticas sexuais. UFRN. Natal, RN, 2005
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A INTERNET
Para a ocupação de novos espaços para essas práticas, a internet tem um papel fundamental. Do final dos anos 90 até cerca de 2010, chats online como o UOL e blogs da plataforma Blogspot foram os principais meios de divulgação de lugares de encontros em meio a conteúdos pornográficos, contribuindo até em tornar o sexo em espaços públicos um fetiche. Grupos no Facebook, perfis no Twitter, entre outros, são meios muito fáceis de encontrar esse tipo de informação atualmente. Em contrapartida a essa democratização, tais espaços acabam tendo pouca longevidade, o que leva à apropriação de outros pontos e assim sucessivamente. Uma estratégia bastante utilizada pelos praticantes para evitar queimar os lugares, é de divulgar fotos nessas redes sociais citadas, dos locais onde essas práticas acontecem sem dizer onde é, levando o usuário a reconhecer ou não o local. Nesse contexto, podemos identificar, algumas dinâmicas de encontros: fortuitos ou “despretensiosos”, quando os homens momentaneamente se envolvem nessas práticas; encontros combinados, quando o lugar é o ponto de encontro; e os encontros de “busca”, quando a fama do lugar atrai homens que vão já com esse objetivo. 18
COMPORTAMENTO No nosso dia a dia, nos habituamos a, em um ambiente cheio de pessoas, agir como se estivéssemos sozinhos. O antropólogo Erving Goffman chama esse efeito de desatenção civil. Em uma troca de olhares, “[...] uma pessoa dá a outra um aviso visual suficiente para demonstrar que ela compreende que a outra está presente (e que admite abertamente tê-la visto), e no próximo momento ela retira sua atenção para expressar que a segunda não constitui um alvo de curiosidade ou intenção especial”. Nos banheiros públicos masculinos, esse processo se dá de uma maneira muito cuidadosa, afinal, o olhar pode incitar uma forma de desejo e a masculinidade, que é frágil, evita qualquer tipo de contato com outros homens dentro desses espaços. E é neste mar de desencontros de olhares que os praticantes estabelecem contato, e a partir dessa “atenção civil” a aproximação acontece. Todo o ato se resolve no olhar, na linguagem corporal e nos sinais que os corpos emitem, tudo sem emitirem uma palavra. O silêncio pode ser considerado um marco de uma ausência, mas, dentro de um banheiro, ele é uma presença constante de uma “normalidade” instaurada neste ambiente tão íntimo e ao mesmo tempo compartilhado. Dentro das práticas entre homens em banheiros públicos, o silêncio é fundamental para manter a fachada de naturalidade enquanto esses atos velados acontecem.
7 GOFFMAN, Erving. Comportamento em Lugares Públicos. Rio de Janeiro: Vozes, 2010.
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O sexo, como um ato que grita, só se relaciona com o silêncio quando o tratamos com repressão, e a repressão funciona, decerto, como condenação ao desaparecimento; o que não deve ser visto nem ouvido ocupa lugares de quietude e desaparece aos olhos da “normalidade”. Desse modo, a visão e a audição abrem caminho para um outro sentido, o tato. Existem algumas condições que fazem certos banheiros e vestiários abrigarem práticas sexuais entre homens. Talvez o mais importante seja o fato desses lugares se localizarem em regiões muito movimentadas com uma rotatividade intensa de pessoas que frequentam objetivamente e permanecem por curtos períodos. Os usuários do banheiro que desejam apenas aliviarem suas necessidades fisiológicas, geralmente não abrem seus olhares para perceberem os homens que estão ao seu redor e o que fazem, apenas compreendem a presença do outro – através da atenção civil – e ao atingirem seu objetivo, saem do espaço sem perceber que algo poderia estar se acontecendo. Dessa forma, os adeptos à pegação conseguem facilmente fingir “normalidade”, ao passar bastante tempo lavando as mãos, penteando o cabelo, de pé em frente ao mictório, ou de prontidão dentro das cabines, enquanto aguardam o momento certo para (re)começarem suas práticas. Aqui, o papel do olheiro é importante pois assegura que as práticas aconteçam sem interrupções da “normalidade” do lugar. Banheiros de redes de fast-food e rodoviárias são ótimos exemplos que permitem esses encontros rápidos e invisíveis ao constante movimento de pessoas. Esses longos gestos de fachada, aliados ao olhar e ao silêncio, são as principais regras de como se comportar no banheirão. 21
CONFIGURAÇÃO ESPACIAL
Apesar dessas práticas não precisarem de tantas especificidades para acontecerem, a configuração desses espaços é um fator atraente para ditar o ritmo dos atos. Logo na entrada, a presença da porta simboliza a exclusão daquele lugar com o que há do lado de fora; ela assegura a privacidade dos usuários, mas também funciona como um alarme. Além disso, visto que a vigilância é sempre mediada por um agente humano, e que o uso de câmeras e outros artifícios são antiéticos em um banheiro ou vestiário, a porta também permite que esses agentes possam entrar e sair repetidamente a fim de checar o espaço e manter o controle. Além dos faxineiros, a presença policial e de possíveis delatores também é uma preocupação constante para os praticantes, especialmente quando ela se dá de forma paisana. Quando os conflitos entre frequentadores e policiais acontecem, quase sempre terminam de forma negativa, como relata o pesquisador e frequentador de banheirões Tedson Souza: “Apesar de ter ouvido muitos relatos, [eu] nunca presenciei casos de extorsão em campo, nem sofri chantagens por parte de policiais, mas já ouvi xingamentos, fui vítima de agressões verbais e presenciei agressões físicas tanto por parte de seguranças quanto por policiais”. 8 SOUZA, Tedson. Fazer Banheirão: As dinâmicas das interações homoeróticas nos sanitários públicos da estação da Lapa e adjacências. UFBA: Salvador, 2012.
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Quando a atuação da vigilância é falha por algum motivo, são adotadas estratégias para dificultar essas práticas: prender a porta aberta com cabos de vassoura e latas de lixo ou, em alguns casos, desinstalando a porta do local. Os mictórios, que promovem rapidez e praticidade, são objetos vistos como perigosos para a vigilância, pois podem vir a incitar o desejo de outros homens. Logo, a estratégia para lidar com isso é retirar os mictórios dos locais ou cobri-los, alegando problemas técnicos. As cabines privadas não se salvam dos olhos da vigilância, e cada vez mais vem sofrendo modificações para castrar as práticas de banheirão. Através de sinalizações com os pés, os praticantes demonstram seu interesse e, quando correspondidos, desenvolvem um jogo de contorcionismo para sentar no chão e atravessar seus membros para o outro lado, quando não o corpo inteiro. Logo, as paredes internas que são divisas com outras cabines estão sendo alteradas para modelos que vão até o chão, a fim de impedir qualquer contato com outros homens.
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Espaços que possuem nichos e cantos sem a visão direta da entrada e obstáculos visuais são os mais utilizados pelos praticantes, visto que as técnicas de repressão mencionadas acima não as influenciam diretamente. O pesquisador Alan Fragoso, em sua tese sobre pegações cariocas, cita um caso que presenciou no banheiro de uma estação de metrô: “[...] com a retirada deles [mictórios], é muito difícil supor outra hipótese senão o controle das manifestações eróticas. No entanto, mesmo que não se possa mais fingir que está urinando no mictório, o espaço vazio ainda permite que os corpos interajam nesse vácuo que surge após a retirada dos aparelhos. Em vista disso, foram aplicados tapumes para isolar e preencher as possíveis lacunas de circulação.” E de forma esperada, quando a vigilância já não consegue mais retomar o controle sobre o que acontece naquele espaço, ela priva o acesso, fechando-o por tempo indeterminado, a fim de enfraquecer e dispersar tais práticas.
9 FRAGOSO, Paulo Alan Deslandes. Pegações cariocas: dos banheiros públicos aos vagões do metrô. Revista Periódicus, Bahia, n. 8, v. 1 nov.2017.-abr. 2018. p. 177-212.
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Ilustrações com base nas fotografias de Alan Fragoso.
Parede após a retirada dos mictórios
Parede após o posicionamento de tapumes
CRISE DO PROGRAMA
Essas práticas ocupam espaços que a arquitetura não consegue antever e trata-se de uma sequência de acontecimentos, podendo se tornar um ciclo ou não, visto que não se pode prever quando e se esse uso subversivo irá acontecer. Essa dinâmica é mais complexa do que como ela é apresentada aqui pois envolvem diversas variáveis descritas anteriormente, mas na maioria dos casos acontecem na seguinte ordem:
O lugar é determinado para um uso específico
O uso alternativo subverte-o, se instalando nas brechas no espaço
Readequação; dispersão;
O uso alternativo ocupa o espaço
dissolução
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Além dessas práticas subverterem o uso do espaço, também subvertem o próprio espaço, e toda lógica que a arquitetura determina é pervertida. Essas vontades sexuais possuem tamanha força e potência que acabam invisibilizando a arquitetura. Além disso, há uma separação do uso proposto e do uso subversivo que, possibilitados pelas brechas espaciais, conseguem ter uma vida simultânea. A parede que divide torna-se um local de encontro, os espaços de circulação tornam-se espaços de permanência, os equipamentos de uso individual tornam-se coletivos. Para os praticantes, o banheiro perde brevemente a sua condição de banheiro e se transforma um campo de possibilidades sexuais, assim como nas ruas antigas do Centro do Rio, onde o espaço de trânsito era também o espaço do sexo. A questão é, se dois tipos de usos diferentes compartilham das mesmas condições para que possam acontecer e acontecem em um mesmo espaço, o que faz com que um seja mais propício que o outro? Eu julgo ser o programa de necessidades. 29
A partir de uma breve busca no dicionário, notamos que a palavra “programa” pode adquirir múltiplos significados, entre eles: 1. Lista escrita em que se enumeram as partes de que deverá compor-se algo; programação; 2. Lazer previamente planejado; 3. Proposição de um projeto que se pretende executar; 4. Encontro de duas pessoas com a finalidade de fazer sexo, mediante pagamento. Independente do significado, tal palavra sempre possui um caráter de planejamento e no âmbito da arquitetura não seria diferente. Sob o nome de “programa de necessidades”: “[…] exprime as exigências do cliente e as necessidades dos futuros usuários da obra. Em geral, descreve sua função, atividades que irá abrigar, dimensionamento e padrões de qualidade, assim como especifica prazos e recursos disponíveis para a execução. A elaboração desse programa deve, necessariamente, proceder o início do projeto, podendo, entretanto, ser complementado ao longo de seu desenvolvimento.”
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Roteiro para desenvolvimento do projeto de arquitetura da edificação, IAB.
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Essa idealização é uma antecipação de uma distribuição espacial e comportamental e, desse modo, podemos dizer que o programa sempre diz a alguém que dita e alguém que tem a escolha de se submeter; envolve uma questão de imposição de poder e submissão. Devemos nos atentar que: 1. O lugar é o que é porque está inserido no espaço e é subordinado a outro lugar; é uma construção social em prol de uma normatização; 2. As pessoas possuem vontades próprias. Sempre há alguém no controle (fisicamente ou não), porém a apropriação espacial nem sempre vai ao encontro do uso proposto. Logo, levando em conta essas duas considerações, percebemos que os espaços possuem múltiplas potências que vazam do que é proposto à ele. Sendo assim, o programa de necessidades é ainda relevante?
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GRINDR Através da democratização de sistemas de geoposicionamento global (GPS) em dispositivos eletrônicos móveis, o usuário de aplicativos que utilizam essa funcionalidade é inserido em um ambiente virtual sobreposto ao real, a fim de promover deslocamentos e localizar algo ou alguém próximo. No app Moovit, você acompanha ônibus em tempo real e paradas mais próximas, no Waze monitora o trânsito, e indica saídas para trajetos mais rápidos, e no Google Maps, além da sua funcionalidade de mapa, pesquisa lojas e serviços de seu interesse em um raio específico. Todos esses aplicativos levam em consideração a sua localização, sendo ela um pré-requisito para a sua participação e obtenção de informações no espaço virtual. No campo sexual atualmente, os encontros entre homens também se aproveitam dos dispositivos móveis através de aplicativos como o Hornet, Tinder, Scruff, Grindr, entre outros, sendo este último, o aplicativo voltado para o público gay mais utilizado do mundo com cerca de 4 milhões de usuários. Joel Simkhai, criador do aplicativo, relata ter tido uma juventude solitária de encontros com outros homens o que fez com que o seu nascimento-gay (a forma de como ele despertou a sua sexualidade) fosse online. Simkhai já era frequentador de chats homoeróticos no início dos anos 2000, e em 2008, tirando proveito da tecnologia disponível criou o Grindr com o fim de ser um Waze para homens perdidos em busca de sexo. 11
https://expandedramblings.com/index.php/grindr-facts-statistics/
12 JAQUE, Andrés. Grindr Archiurbanism. Log 41. Working Queer. 2017. (Traduzido e adaptado)
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A interface do aplicativo consiste em uma grade de fotos organizadas de acordo com a distância das pessoas em relação a você. Ao tocar em uma foto, você abre o perfil do usuário e tem acesso a informações físicas, preferências sexuais, o que está buscando, entre outras categorias. Todas essas informações são dadas pelos usuários, que escolhem o que compartilhar. Grindr é um radar gay, uma visão raio-x da homossexualidade na cidade que repre-senta uma camada exclusiva de distribuição de corpos no espaço de um urbanismo fragmentado, para uma busca de sexo sem que essa prática perpasse locais reconhecidos pela socialização homossexual devido ao caráter privado do aplicativo. 13
Ibid.
14 MARACCI, João Gabriel; MAURENTE, Vanessa Soares & PIZZINATO, Adolfo (2019). Experiência e produção de si em perfis do aplicativo Grindr. Athenea Digital, 19(3), e2315.
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O CORPO NO APP Marshall McLuhan tinha uma intuição na década de 1950 sobre as tecnologias da comunicação funcionarem como uma extensão do corpo. De fato, o Grindr (e as ferramentas possibilitadas pelos celulares) funcionam decerto como uma prótese. “Esta perspectiva [da prótese], proposta por Paul Preciado (2002), fundamenta-se na compreensão do dildo como um órgão sexual que se acopla ao corpo, compondo assim uma nova configuração de encadeamentos para o desejo, o prazer, o sexo etc. Em relação ao Grindr, entende-se que sua possibilidade de conexão contínua produz um similar acoplamento, a partir do qual a conexão técnica do uso da ferramenta produz uma nova formulação para os sujeitos usuários, seja na busca por parceiros, na relação com outros usuários e também nos modos de nomeação e produção de si mesmo através da ferramenta.” Com seu “mapa” feito somente com fotos, o aplicativo promove a relevância da aparência como forma de chamar atenção. O mais comum é ver fotos de homens sem camisa, com roupas de praia ou academia sem aparecer o rosto na maioria das vezes. Devido a esses usuários, o Grindr ganhou o carinhoso apelido de açougue. Já que o aplicativo foi criado para tal finalidade, os homens se permitem mostrar seus atributos físicos como forma de atrair outros para encontros. 15
Ibid.
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Além da grade de fotos, ao selecionar um perfil, você pode visualizar outras informações que os homens disponibilizam como o nome de exibição, uma breve descrição sobre o usuário, idade, peso, altura, preferências sexuais, interesses e a distância exata entre vocês. Uma outra categoria bastante utilizada são as tribos: uma normatização de padrões corporais/comportamentais que descrevem o usuário, como ursos (homens peludos de grande porte), barbies (homens malhados), papai (homens maduros), garotos (homens mais novos), nerd, soropositivo, trans e discretos (homens não assumidos ou que não são heteronormativos). Todos esses campos não são obrigatórios para preencher, e perfis “fantasma”, sem fotos e informações são comuns. A máxima “sem foto sem papo” é quase sempre aplicada, a não ser que as fotos sejam enviadas no primeiro contato. E além da possibilidade de se descrever através dessas informações o aplicativo dispõe de filtros para encontrar homens que estejam dentro das suas preferências. Essa possibilidade de se editar e criar uma persona on-line é um grande atrativo para os usuários, que se permitem ir “direto ao ponto”, sem a obrigação de precisarem se justificar aos outros. O meio de comunicação é aberto (e quase sempre monossilábico), você pode ir diretamente no perfil e iniciar uma conversar. Devido a essa automatização da busca por encontros, existe um padrão de conversas que se repetem constantemente: “blz?”, “afim de que?”, “o que curte”, “real?”, “local?”, “tem outras fotos?”, etc. E de forma rápida e direta, os usuários manifestam seus desejos e decidem o rumo que conversa terá.
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Para quem não tem nenhum pudor, arranjar encontros reais não tem dificuldades, basta a disposição do outro. Porém o aplicativo introduziu uma nova forma de relações sexuais através do virtual, onde muitos encontros acontecem através das próprias conversas, e a troca de fotos íntimas e palavras sexuais já bastam para satisfazer o desejo, liberado pelo auto prazer. O encontro real não é uma finalidade nem uma garantia. Nesse caso, mais do que um dispositivo de localização, o celular atua como um intermediário entre os homens e também como uma extensão do corpo; é através dele que o corpo do outro se materializa e torna-se presente. O autor Andrés Jacque descreve:
“A textura da tela de vidro alcalino-aluminossilicato de um smartphone é semelhante à pele lisa, então esfregar o polegar na tela das fotos de perfil dos usuários do Grindr, é como tocar na pele jovem e sem pelos de um corpo nu. A tela promove interação: bloquear, favoritar e trocar mensagens são as próximas etapas. Quando a imagem de um usuário é tocada, seu perfil se expande para ocupar a tela inteira.”
16 JAQUE, Andrés. Grindr Archiurbanism. Log 41. Working Queer. 2017. (Traduzido e adaptado)
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Estar no Grindr é como conviver em um espaço coletivo onde todo mundo se vê e se conhece visualmente, mas as interações não são visíveis. As funcionalidades de bloquear, favoritar, conversar e chamar atenção de alguém (taps), permanecem próprias aos usuários assim como as interações no espaço real, mas de uma forma mais abrupta, seletiva e indiferente. Cruzar na rua com alguém que você viu/conheceu no Grindr é como cruzar com alguém que você reconhece e não conhece, mas tem uma foto íntima dela em seu celular. 37
USOS NÃO SEXUAIS
Além de trocas de mensagens eróticas, fotos íntimas e encontros marcados, as possibilidades de interações junto a interface do aplicativo semelhante a uma vitrine, permitem que os usuários se aproveitem de suas configurações para utilizá-lo de outras formas. O mais comum é a venda de serviços sexuais, os famosos GPs (garotos de programa), que se dedicam a mostrar seus corpos e atributos para quem possa interessar, mas “dispensam curiosos”. Em relação a mercadorias, é comum encontrar perfis que oferecem drogas ilícitas e em alguns casos, ainda oferecem serviços de entrega, e outro tipo, mas que raramente aparece, é a de artigos e roupas eróticas, que me parece mais propício para o contexto. Por outro lado, a condição social do aplicativo promove encontros e conflitos políticos. Não é raro encontrar perfis que manifestam seus ideais e defendem seus partidos políticos, especialmente em épocas de eleição. No aplicativo ainda há apoiadores do atual presidente do Brasil, mesmo depois de ter feito diversas ameaças e desrespeitar à comunidade LGBTQ+. Sem surpresas, os homens que o apoiam são heteronormativos e se dizem conservadores, que tiram proveito da discrição do Grindr em conter seu espaço somente para quem participa do aplicativo, para permanecerem em sigilo (ao espaço real). Ser heteronormativo não é um problema mas pode ser, visto que em um mundo onde a masculinidade é exaltada, eles estabelecem uma hierarquia de importância onde a feminilidade é discriminada.
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A facilidade de localizar e conversar com homens que você nunca viu pode ser perigoso visto que não se pode saber quem ela é de verdade e quais suas intenções. Em 2014, a polícia do Egito foi acusada de prender e multar homens localizados pelo aplicativo se passando por civis em busca de encontros. Na Rússia, nos últimos 5 anos, há diversos relatos de ocorridos da mesma natureza, promovido (não diretamente) pelo próprio governo e sociedade homofóbica que através da associação da homossexualidade à pedofilia, tem finalidade de violentar, extorquir e matar a população LGBTQ+. Mas não só de pessoas de má fé vive o Grindr, a dimensão social permite a integração dos homens à localidade. É comum encontrar viajantes procurando dicas e informações a pessoas locais sobre a cidade, quando não somente encontros. E essa integração e sentimento de comunidade atinge outros níveis quando é relacionado a sobrevivência. “Um refugiado chamado Fareed chegou a Idomeni após uma extensa jornada iniciada em Cabul em outubro de 2015. Ao longo do percurso, 15 usuários do Grindr o ajudaram a evitar a polícia e encontrar o campo. Com o aplicativo, Omar poderia encontrar estranhos próximos dispostos a ajudar com informações locais atualizadas, enquanto a maioria confiaria nas indicações de outros refugiados ou amigos distantes.”
17 Independent: Gay hunters, How criminal gangs lure men on dating apps before extorting cash and beating them https://www.independent.co.uk/news/ world/europe/gay-hunters-russia-moscow-apps-gangs-homophobia-a8865376. html 18 JAQUE, Andrés. Grindr Archiurbanism. Log 41. Working Queer. 2017. (Traduzido e adaptado)
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CARTOGRAFIA O Grindr – assim como outros aplicativos com a mesma proposta – é o verdadeiro radar gay (gaydar), que é tanto um dispositivo que determina a posição e a distância de um objeto quanto, um equipamento de monitoramento. O compartilhamento de sua localização é a condição imprescindível para o seu uso; sem a sua permissão, o aplicativo não irá exibir ninguém, e ao consentir, a arquitetura é dissipada e a população é filtrada proporcionando uma transparência seletiva entre aqueles que participam de uma camada exclusiva de um urbanismo fragmentado. Jacque define: “O Grindr é um espaço próprio. Não é uma cidade. Enquanto as cidades são frequentemente vistas como locais de convergência social, o Grindr é um dispositivo que classifica o social, uma infraestrutura que torna seus usuários membros selecionados de uma comunidade especializada na sociedade. “É mais propagado do que construído. Não é totalmente virtual nem físico. É um archiurbanism que reinventou o domínio offline, evoluindo das falhas tradições duradouras do queer urbano, onde a normatividade foi desafiada e encontrar estranhos se tornou possível.” As ruas, as construções, a vegetação, tudo desaparece e dá lugar à uma seleção de fotos disposta em uma grade contínua. Somente a distribuição dos corpos importa. Esse tipo de visualização se apresenta como mais dinâmica, pois justamente por não mostrar o urbanismo, não exibe os possíveis obstáculos urbanos do trajeto, que poderiam limitar os encontros atuando como “corta-prazeres”, como relevos, transportes, a movimentação da localidade, criminalidade e etc. 19
Ibid.
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Quando não é explicitado em seu perfil de onde a pessoa é ou está, é possível estimar sua localização a partir da distância física que o aplicativo diz existir entre vocês. Cabe a você ter noção espacial para identificar a localização do outro no seu entorno. Quando os usuários ocultam esse dado ou não possuem noção de distâncias, o entendimento de onde o outro se localiza é a partir de conhecidos, que vou apelidar de Marcos. Os Marcos são homens que por trocas de conversas, encontros ou algum conhecimento, você sabe quais são suas localizações e por esse motivo atuam como um “checkpoint” de até onde a sua visão espacial atinge sem precisar necessariamente de um conhecimento cartográfico da cidade. A disposição dos homens em seu entorno se torna menos virtual e mais palpável; de uma foto entre outras em uma grade de perfis, para um corpo sexual que se localiza entre mim (x) e Marcos (y). O mapa urbano (possibilitado pelo Google/Apple Maps) só aparece no Grindr quando você quer procurar por homens remotamente com base de sua localização. Dessa forma, a partir do movimento de pinça dos dedos, a visão do usuário eleva-se, se afastando do seu ponto de origem que gradativamente vai enxergando cada vez mais outras ruas, bairros, regiões, de modo a enxergar a cidade em sua totalidade (o céu não é o limite), para então entrar em queda e dar mergulhos abruptos retornando à escala humana, mas sem provocar uma colisão com o chão e sim uma leve aterrisagem. Com o movimento de mais um toque, você é transportado para outro lugar e a sua grade de perfis muda completamente de acordo com a localização escolhida. No Grindr é possível ser onipresente.
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INTERSEÇÕES Após a análise desses dois espaços, o banheiro e o Grindr, podemos perceber que ambos permitem visões espaciais que filtram o real e o que é normatizado. Resumidamente, no caso dos banheirões, a subversão ocorre ao ocupar o espaço com um uso que além de ser diferente do proposto, é uma prática que não é bem vista, principalmente entre pessoas do mesmo sexo. As práticas acontecem de forma rápida e momentânea. Diferentes ao que é proposto, não são alheias ao real, elas se apresentam como simultâneas e sobrepostas. A potência de subversão que o lugar tem, se instala no espaço através das brechas coexistindo com o uso comum do ambiente. Podemos considerar assim, a prática do banheirão como uma prótese ao banheiro: algo que não é originário dali, mas que se acopla e possibilita uma nova forma de utilizar o local. No caso do Grindr, a plataforma virtual já é preparada para possibilitar esses encontros sexuais a partir de um filtro voluntário do espaço real, porém possui um contexto curioso. Ao considerarmos que ela é uma prótese do nosso corpo, podemos afirmar que ela também é o nosso corpo. As relações que se estabelecem dentro do aplicativo, não são menos reais do que face a face, apenas de outra natureza. O espaço em que o Grindr opera então, não é o espaço da interface do aplicativo, e sim o campo real em que o corpo vaga rotineiramente. Por se tratarem de locais públicos, o compartilhamento do estar é presente, porém em contextos diferentes. No caso dos banheiros, vimos que o efeito da desatenção civil faz com que esse reconhecimento de corpos seja mínimo possível. Já os praticantes do banheirão, partem da máxima explicitação de seu interesse para os corpos favoráveis a receber esses sinais dentro de condições e configurações espaciais variáveis.
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No aplicativo, a exposição é total, mas de forma selecionada pelo usuário. Em um contexto onde muitos procuram as mesmas coisas, existe uma vontade de se destacar em meio a essa totalidade de possibilidades. Porém em contrapartida à essa superexposição, o interesse é volátil: “Na sociedade expositiva cada sujeito é seu próprio objeto-propaganda; tudo se mensura em seu valor expositivo. A sociedade exposta é uma sociedade pornográfica; tudo está voltado para fora, desvelado, despido, desnudo, exposto. O excesso de exposição transforma tudo em mercadoria que está à mercê da corrosão imediata, sem qualquer mistério” Em ambos os espaços, todos se veem e estão cientes de suas presenças, dependendo do interesse e do desejo dos indivíduos para partirem da visão para o tato. E quando os contatos são estabelecidos, as práticas são veladas e acontecem “fora” dessa exibição dos corpos. Outra semelhança entre os dois modos de relações sexuais, é a impossibilidade de apontar especificamente a localização de seus agentes. As práticas em banheiros acontecem geralmente de forma espontânea a partir do desejo de um indivíduo à outro(s). Não é possível indicar o ponto geográfico dessas práticas, quando elas são mapeadas, já terminaram. O Grindr por outro lado, apesar de disponibilizar a distância na qual outro usuário se encontra, não determina a sua posição em um mapa, logo, sua localização pode se encontrar na distância dada, em qualquer direção partindo de onde se está. 20
HAN, Byung-Chul. Sociedade da transparência. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
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INTERFERÊNCIAS
Trabalhar com um tema tão complexo como esse, me possibilitou abrir vários caminhos a serem explorados, e um deles foi a vontade de interferir na dinâmica de como essas relações se estabelecem de forma a utilizarem das tecnologias em seu favor. Em um primeiro momento, pensei em intervir nos equipamentos sanitários dos banheiros a fim de promover a coexistência dos usos propostos e subversivos de forma que as práticas sexuais se tornassem parte do uso comum do banheiro. Divisórias móveis em cabines privadas, glory holes semelhantes a mictórios e espaços reservados somente para sexo foram algumas ideias iniciais de interferências, porém, elas correriam o risco de não serem utilizadas, visto que o que as potencializam é o fato de acontecerem marginalmente e de forma velada. Além disso, essas interferências, teriam um caráter utópico, pois estariam “normalizando” o sexo em banheiros e levando em conta o prazer como uma necessidade do corpo possível de ser satisfeito de forma prática, o que é longe de ser nossa realidade. Dessa forma, a intervenção não deve ser no espaço real, e sim no espaço restrito do Grindr.
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Croqui das divisรณrias mรณveis
LOCAIS
A interface do novo aplicativo, Locais, seguiria a mesma lógica da cartografia de grade de organizar por proximidade, porém, agora não mostrando perfis de homens e sim de lugares. Os usuários registrariam individualmente espaços públicos possíveis de acolherem práticas sexuais, porém a classificação deles seria coletiva, logo, outros usuários poderiam adicionar informações para contribuir. O perfil indicaria então quantas pessoas que possuem o aplicativo estão naquele lugar no momento, baseado no sistema de geolocalização do celular. O que difere a exposição desse lugar à exposição dos corpos no Grindr é que nesse novo app, não haveria espaço para inserir nome ou descrição, apenas fotos, levando os usuários a reconhecerem ou não o lugar, preservando a discrição deles. Dessa forma, o aplicativo também mantém o caráter de radar do Grindr ao reorganizar os perfis de acordo com a sua movimentação pela cidade. Ao selecionar o lugar na interface, é possível visualizar e editar informações sobre determinado lugar assim como os perfis de homens no Grindr, em categorias que levariam em consideração as características e potencialidades do lugar como, o tipo de espaço público que se localiza (para além de banheiros), o seu tamanho (m² estimada), o limite de pessoas que ele suporta, os tipos de contatos que são permitidos baseado na movimentação do lugar e da vigilância (encontros rápidos ou longos) e tipos de “tribos” que frequentam. 48
No novo aplicativo também seria possível assinalar se o lugar está queimado ou não, que depois de muitas marcações, esse local seria excluído da grade. O aplicativo funcionaria como um catálogo onde se pode favoritar ou bloquear um local, mas não interagir com outros homens, fazendo com que o desejo os levem a esses lugares. Locais absorveria o que é positivo às práticas nos dois espaços estudados: do banheiro, o anonimato e a tensão sexual e do Grindr, o caráter de catálogo facilitado pela tecnologia. Dessa forma há uma descentralização da exposição própria no aplicativo para a visualização de uma exposição controlada de lugares reais. A sua localização não importa mais para ninguém além de você mesmo. É difícil dizer se o aplicativo alcançaria seu objetivo sem ter seu uso subvertido justamente porque não é possível prever as ações das pessoas, apenas estimar. Logo, parafraseando Arthur, 22 anos, 3km de distância: tudo pode acontecer, inclusive nada. 49
Ilustração perfil Grindr
Ilustração perfil Locais
O corpo é sexual. Em Manifesto Contrassexual, o filósofo espanhol Paul B. Preciado propõe a retirada da relevância dos órgãos reprodutivos, ditos pela sociedade heterocentrada como únicos possíveis de produzir prazer, para a ampliação do sexo para todo o corpo, pois todas as partes são passíveis de produzir prazer; o corpo é uma potência sexual. O prazer é algo tão íntimo que os indivíduos se utilizam do que têm para se satisfazerem. Normas podem ser desviadas. 52
AGRADECIMENTOS
Para finalizar, eu preciso agradecer à algumas pessoas que contribuíram com esse trabalho. Primeiramente ao meu orientador Otávio Leonídio por ter aceitado e incentivado o trabalho desde o início, não vejo como eu o desenvolveria com outras orientações. À minha coorientadora não oficial Juliana Biancardine, que me deu suporte e ótimos apontamentos ao trabalho. À queridíssima professora Lígia Saramago, responsável por explodir a minha cabeça com suas aulas e conhecimentos. Ao meu amigo Michel Masson por ter plantado algumas pulgas atrás da minha orelha, talvez até sem saber. Às minhas queridas amigas: Thaís Lima, que me ajudou na revisão de algumas partes do texto e traduziu trechos do inglês, e Clara Jacques, que me ajudou na diagramação e encadernação. Ao meu grupo de amigos dessa jornada de 5 anos (e meio) pelo suporte mútuo. E por último, mas não menos importante, meus pais, por me apoiarem sempre e investirem em minha educação. Obrigado.