Adoráveis e Dissimuladas

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“ADORÁVEIS E DISSIMULADAS”: as relações amorosas e sexuais de mulheres pobres na Belém do final do século XIX e início do XX

cotidiano do namoro desses personagens, muitas vezes omitido ou ignorado nos autos processuais.

3.3 Cartas de Amor A consulta dos processos nos possibilitou ter acesso a um conjunto singular de fontes constituídas de fotografias, bilhetes e cartas de amor escritas pelos acusados. Esses registros pertencentes às menores, para quem estavam dirigidos, eram por elas entregues ao chefe de segurança da província na tentativa de, através deles, provar a existência do relacionamento com o namorado ora acusado de defloramento. Nos processos que consultamos há, em sete deles, cartas anexadas aos autos pela parte queixosa, todas elas, vale ressaltar, sendo dos acusados se dirigindo à menor. Do ponto de vista do encaminhamento dos processos, o que vemos é que na maioria das vezes as correspondências pouco auxiliavam no argumento da parte queixosa, pois dificilmente eram aceitas como prova pelos juízes, que, em geral, alegavam que as cartas haviam sido anexadas irregularmente, ou que, embora ajudassem a configurar o namoro entre a ofendida e o réu, não ajudavam na determinação de ser o réu o autor ou não do defloramento. O marítimo Raymundo, paraense de 28 anos, morador na Vila do Pinheiro, orgulhava-se em declaração a um amigo de ter conseguido “quem o defendesse” das acusações de Eufrosina, mãe de Vivência, de 18 anos, também paraense, e moradora da mesma Vila do Pinheiro à época do processo, de ter deflorado sua filha. Em carta escrita à mãe da menor, afirmava já ter contratado advogado e que não temia “a questão” que essa abriria contra ele, Raymundo. Vivência e Raymundo moravam inicialmente na cidade interiorana de Vigia, de onde aquele saiu para vir morar em Belém, na dita Vila do Pinheiro, balneário próximo à capital. Desde sua partida, a correspondência entre ele e Vivência passou a ser constante. Ele lhe escrevera diversas cartas e, na maior parte, delas renovava o amor que sentia por “Vivi”, como a chamava nas cartas. Em suas correspondências, Raymundo afirmava ser ela “O único alimento de seu coração”, que a paixão que sentia estava deixando-o “Magro e completamente acabado, coagido e sem prazer para nada, acaba-se tudo para mim, acho os dias compridos e tem horas que digo para a velha que estou para morrer”.


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