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“ADORÁVEIS E DISSIMULADAS”: as relações amorosas e sexuais de mulheres pobres na Belém do final do século XIX e início do XX
a honra do lar alheio. Vingou o mal precedente aberto, e Talismã que vê o quanto são protegidos os réos desses crimes, ao ponto de todo mundo aperta-lhes a mão, não trepidou em envolver nos mesmos labirintos, duas rapariguinhas, órphãs de certo, e que não calcularam a irreparável perda que iam soflrer, incompatibilizando-as para as funcções normaes da mãe de família e arredando-se inconscientemente do lar, sacrário onde a mulher repara o fruto legítimo de seu amor, pondo todo o cuidado e todo o carinho na árdua e espinhosa tarefa de formação de seu caráter. Ahí entregamos o facto a apreciação da polícia, e folgamos que ella saiba bem cumprir o seu dever116.
A impunidade é destacada pelo jornal como o principal motivo da frequência de raptos e defloramentos registrados em Belém. As provocações contidas na matéria fazem referência aos descaminhos desses casos, cujo desenrolar dificilmente atendiam às expectativas dos queixosos. O termo “dom-juanismo”117 é frequentemente utilizado pelos redatores dos jornais para fazer referência aos homens acusados de defloramento. Eles são tidos como os piores tipos de ladrões que há, pois roubam aquilo que, segundo o periódico, “É mais perigoso para a sociedade: a honra alheia”. Por isso, seria necessário convencê-los de que “O pudor de uma menina não para ahi qualquer manta de pirarucu”118. De que maneira esses homens acusados de defloramento representavam a menor ofendida, e que expectativas eles demonstravam em suas falas acerca do envolvimento (ou não) com a menor que ora os acusavam?
3.1 Quando eles falam sobre elas... Deteriorar a imagem da menina ofendida foi um dos principais artifícios usados por esses personagens masculinos para se eximir do possível julgamento de procedência de um processo. Orientados por advogados e funcionários das chefaturas de segurança, ou mesmo por conhecidos, eles procuravam, em seus 116 Diário de Notícias, 22.10.1891, p.2.
117 Don Juan é considerado por muitos o sedutor por excelência de nossa cultura. Personagem literário que se embaralha à realidade, ele encanta e seduz a mulher ao mesmo tempo em que acena com promessas de casamento, abandonando-a tão logo ela esteja conquistada (Ribeiro, Renato Janine. A Sedução e Suas Máscaras: ensaios sobre Don Juan. Companhia das Letras, 1988).
118 Diário de Notícias, 1.08.1893, p.2. O pirarucu é o maior peixe de escamas da bacia amazônica. Sua carne é comumente salgada e vendida cm “mantas”, pedaços, facilmente encontrados nos mercados da capital.