Nicanor, assessor jurídico aposentado no Tribunal Regional Eleitoral, é hoje consultor e ferrenho adepto do modelo convencional. É contra as urnas modernas e torce o nariz sempre que alguém afirma que são seguras, confiáveis e invioláveis. Quando dizem que foram feitos muitos testes e até hoje ninguém violou, pelo que se sabe, Nicanor contra argumenta: mas e o que não se sabe? Ele participou de diversos debates, mesas redondas, escreveu artigos etc. mas a cada dia fica mais isolado. Sugeriu inspecionar o processo de fabricação das urnas, obter laudos dos testes de confiabilidade, checar a constituição, mas o tempo se esgotou e uma decisão precisa ser tomada, “duela a quem duela”. Ele decidiu não entregar os pontos facilmente e argumentar até o instante derradeiro, mas sabia que se o processo se prolongasse, não haveria tempo suficiente para as providências. Por fim, contrariado, reconheceu a derrota. As pessoas comentaram: - Nicanor, não entendemos os motivos de sua resistência. - A possibilidade de vazamento existe. Os órgãos oficiais dizem que não há casos registrados, mas quantos casos não registrados estão por aí? - Para com isso Nicanor. As urnas são seguras. Aceita que dói menos. - Se fosse verdade, o mundo inteiro estaria usando. - Isso depende da cultura, da vontade do povo e das leis de cada país. Nicanor forçou a barra e conseguiu uma saída honrosa. Decidiu que aceitaria a urna se fossem aumentadas as garantias, como por exemplo um nicho inviolável para o armazenamento. - Tá bom Nicanor. Você venceu. Aceitamos o nicho – disse a cunhada. - Assim é bem melhor. Muito mais seguro. - Agora deixa de frescura, pega a urna e vamos até o crematório buscar as cinzas da mamãe – disse a esposa. - Vocês vão. Eu vou ficar em casa e inspecionar o nicho inviolável. Enquanto as irmãs foram ao crematório buscar as cinzas Foto: Crematório de SP da mãe, Nicanor conferiu minuciosamente o revestimento de chumbo do nicho inviolável de concreto que construiu no fundo do quintal, embaixo do canil dos Pit Bulls Nero e Calígula. - Não confio nessa droga de urna. Se a velha conseguir escapar, meus meninos estarão atentos. Eles nunca a foram com a cara da mocreia.
magazine 60+ #29 - Novembro/2021 - pág.60