Devemos acreditar em Hitchcock?
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André Bazin
H 297
Ninguém há de negar que Alfred Hitchcock é o homem mais hábil do cinema mundial; cada um de seus filmes é uma viagem aos confins da técnica da qual regressamos deslumbrados – mas são como fogos de artifício. Resta saber o que há além disso. Quando Hitchcock deixou os estúdios ingleses por Hollywood, em 1939, já havia dado ao cinema britânico um dos raros filmes de primeira linha que este produziu antes da guerra: Os 39 degraus (The 39 Steps, 1935), que tivemos a oportunidade de assistir recentemente. Embora datado de 1935, esse filme não envelheceu, salvo talvez por alguns detalhes técnicos secundários. Mas neste caso a técnica não tem muita importância, pois trata-se essencialmente de um filme de roteiro (e que roteiro!) e de direção de atores. A encenação é brilhante e rápida, mas de forma alguma acrobática. Ao chegar à América, provavelmente Hitchcock já era classificado como um especialista do filme policial de atmosfera e psicológico, mas não como um virtuose da câmara. Como acontece tantas vezes em Hollywood, Hitchcock confirmou-se ainda mais em sua especialidade no tocante aos temas, mas, por outro lado, mostrou-se rapidamente e cada vez mais inclinado aos efeitos técnicos e às proezas da encenação; não no sentido grandioso e espetacular, mas no sentido, mais sutil, da expressão cinematográfica. Após A sombra de uma dúvida (Shadow of a Doubt,1943), Quando fala o coração (Spellbound, 1945), Interlúdio (Notorious, 1946), Um barco e nove destinos (Lifeboat, 1943), Hitchcock passou a ser incontestavelmente o Cecil B. de Mille da decupagem. Duas proezas únicas na história do cinema, nos limites do impossível, se não do absurdo, balizam essa experiência: em Um barco e nove destinos, a unidade de lugar é reduzida às dimensões de um barco de salvamento, e, em Festim diabólico (Rope, 1948), a unidade de tempo é respeitada a ponto do filme ser rodado num único plano, sem interrupções das tomadas (em dez planos na realidade, pois os rolos são de apenas 300 metros, mas essa contingência é meramente acidental, as conexões de fim de rolo passam despercebidas).
....................................................................................... Publicado originalmente no livro O cinema da crueldade de André Bazin; organização François Truffaut [tradução Antonio de Pádua Danesi] – São Paulo: Martins Fontes, 1989, pp. 111-114. 1