Hitchcock por Eric Rohmer e Claude Chabrol¹ André Bazin
Quando eu era menino, havia em algum lugar atrás da Étoile (seria na avenida Wagram ou na Grande-Armée?) uma vitrina publicitária de rolamento de esferas SKF que era objeto de toda a minha admiração. Viam-se ali extraordinárias combinações mecânicas nas quais as forças de fricção se achavam maravilhosamente próximas do nada. Um volante de aço, lançado firmemente, bastava para arrastar, por sua simples energia cinética, um incrível jogo de polias e correias sobre seus eixos de transmissão. Essa mecânica soberbamente inútil girava assim, durante horas, sem qualquer intervenção humana. Lembro-me ainda de ter visto outra dessas maquinarias de aço, de um brilho escuro, cujo movimento era infinitamente mantido pela simples queda de uma gota d’água de minuto em minuto. O mais impressionante, porém, foi um jogo de precisão em que se via, numa extremidade da vitrina, cair sobre uma chapa de metal polido, ligeiramente inclinada, uma bolinha de aço que, ricocheteando sobre uma série de outras chapas convenientemente orientadas, vinha, ao cabo de seus impecáveis impactos, alojar-se no nicho estreito que infalivelmente a aguardava. Rohmer e Chabrol hão de tomar, como é de meu desejo, por um cumprimento o fato de seu livro sobre Hitchcock ter despertado irresistivelmente em minha memória essa lembrança quase esquecida. Não sabemos, ao termo dessa leitura apaixonante, se a perfeição do sistema, sua precisão micrométrica aliada à elegância e flexibilidade das articulações, assim como à dureza infrangível do material, decorre da obra que analisam ou apenas do pensamento deles. Mas um fato, pelo menos, é certo: é que aquilo que ousarei chamar de espetáculo intelectual, ideal, virtual que eles suscitam em nosso espírito equivale seguramente ao melhor dos filmes de Hitchcock2. ....................................................................................... Publicado originalmente no livro O cinema da crueldade de André Bazin; organização François Truffaut [tradução Antonio de Pádua Danesi]. São Paulo: Martins Fontes, 1989, pp. 163-170. 2 Creio dever completar este artigo com uma citação da carta que André Bazin me escreveu cinco meses antes de morrer: “Acabo de terminar meu texto sobre Orson Welles, que conta com 80 páginas ao invés das 50 previstas, e essa resenha sobre o Hitchcock de Rohmer e Chabrol, da qual não me orgulho. O melhor dela é o que cito em abundância. Esse livro é um pequeno monumento crítico, uma maravilha de escrita e de composição. Mas quem perceberá isso? É que a causa estava antecipadamente perdida. Hitchcock é dado menor de uma vez por todas. Creio, aliás, que o é. Mas o livro de Chabrol não. Ele beira o sublime. Diga isso a Rohmer, caso ele ache que minha resenha é de complacência...” (Carta de André Bazin a François Truffaut – 7 de junho de 1958) 1
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