Introdução (1966) do livro Hitchcock/ Truffaut: entrevistas¹ François Truffaut
Tudo começou com um tombo na água. Durante o inverno de 1955, Alfred Hitchcock veio trabalhar em Joinville, no estúdio SaintMaurice, na pós-sincronização de Ladrão de casaca (To Catch a Thief, 1955), cujas externas tinha filmado na Côte d’Azur. Meu amigo Claude Chabrol e eu resolvemos ir entrevistá-lo para os Cahiers du Cinéma. Tínhamos pedido emprestado um gravador para registrar a entrevista, que gostaríamos que fosse longa, precisa e fiel. Estava bastante escuro naquele auditório onde Hitchcock trabalhava, enquanto na tela desfilava sem parar, como que rolando, uma cena curta do filme que mostrava Cary Grant e Brigitte Auber pilotando um barco a motor. No escuro, Chabrol e eu nos apresentamos a Alfred Hitchcock, que nos pede que o esperemos no bar do estúdio, do outro lado do pátio. Saímos, ofuscados pela luz do dia e, comentando com a empolgação de verdadeiros fanáticos por cinema as imagens hitchcockianas que víramos em primeira mão, dirigimo-nos, sempre em frente, para o bar que ficava logo ali, a quinze metros. Sem perceber, nós dois pulamos no mesmo passo a borda estreita de um laguinho congelado, da mesma cor cinza do asfalto do pátio. O gelo quebrou imediatamente e fomos parar no fundo, com água até o peito, aparvalhados. Pergunto a Chabrol: “E o gravador?”. Ele ergue devagar o braço esquerdo e tira da água o aparelho, pingando. Como num filme de Hitchcock, era uma situação sem saída: naquele laguinho inclinado, em declive muito suave, era impossível alcançarmos a beira sem escorregar de novo. Foi preciso a mão prestativa de um passante para nos tirar dali. Finalmente saímos, e uma roupeira, na certa com pena de nós, levou-nos para um camarim onde pudéssemos nos despir e secar as roupas. No caminho, disse-nos: “Puxa! meus filhos, coitados! Vocês são figurantes de Rififi (Rififi chez les hommes, Jules Dassin, 1955)?”. “Não, senhora, somos jornalistas.” “Então, nesse caso, não posso cuidar de vocês!” ....................................................................................... Publicado originalmente no livro Hitchcock/ Truffaut: entrevistas, de François Truffaut e Helen Scott; tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, pp. 23-31. 1
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