Prefácio à edição brasileira do livro Hitchcock/Truffaut: entrevistas¹ Ismail Xavier
As duas fotos que abrem este prefácio2, capa e contracapa da edição francesa deste livro, nos oferecem um ponto de partida sugestivo, pelo cotejo dos gestos e de seu sentido. A da página ao lado nos traz Janet Leigh (Marion, no filme) na célebre sequência do assassinato em Psicose (Psycho, 1960); a anterior focaliza Hitchcock em plena entrevista com François Truffaut. Na imagem de Psicose, Marion se despede da vida: braço esticado, mão acima do rosto, espalmada, não mais se defendendo dos golpes, mas já submergindo na zona escura em que se aloja seu corpo quase inerte. Tudo compõe, na passagem da luz à sombra (de cima para baixo), um quadro de valores que muitos dirão expressionista. Tal efeito se deve mais ao tratamento dado à imagem no livro do que à textura do fotograma, mas a aproximação com o expressionismo é válida desde O inquilino (The Lodger: A Story of the London Fog, 1926), ela se fez visível e deixou traços ao longo da carreira do cineasta. De qualquer modo, tudo se acentua nesta imagem fixa. No filme, Marion não está assim tão disponível, pois a vemos num paroxismo de violência construído pela montagem, em que a sucessão rápida de fragmentos compõe, na mente do espectador, todo o horror de uma retaliação que não se mostra em nenhum plano. Ao final da sequência, lá está a vítima, sozinha, no último aceno para um olhar que não é senão o do aparato, e o de todos os que, atrás da câmera e na sla de projeção, fruem, não importa se com temor ou tremor, a morte como espetáculo. Está composto mais um quadro na galeria de mulheres assassinadas no cinema, situação-limite em que se pode decidir a reputação de um cineasta. Pela intensidade e duração, a cena da morte de Marion é um momento especial no percurso de Hitchcock, sempre em lida com essa questão-tabu que tanto mobilizou a crítica: a reprodução, pela imagem em movimento, do instante “sagrado” de passagem, quando esse momento único, de solidão intransferível, se faz presente na tela. A morte e o sexo – ou também o crime, que os une – compõe a cena proibida que o fundador dos Cahiers du
....................................................................................... Publicado originalmente sob o título “Prefácio à edição brasileira” no livro Hitchcock/ Truffaut: entrevistas – São Paulo: Companhia das Letras, 2004, pp. 15-19. 2 As fotos indicadas pelo autor se encontram neste catálogo nas páginas 67 e 68. 1
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