H
Hitchcock e o sonho
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Donald Spoto
95
“A vida, talvez seja, um sonho aterrorizante.” Joseph Conrad “À noite, você dorme um sono tranquilo, geralmente cheio de sonhos plácidos e estúpidos. Eu, eu os farei conhecer o pesadelo.” Estas palavras foram pronunciadas, com grande sangue frio, por tio Charlie (Joseph Cotten), o sociopata charmoso e elegante de A sombra de uma dúvida (Shadow of a Doubt, 1943), de Alfred Hitchcock.
Estas mesmas palavras poderiam ter saído da boca do diretor, cujo centenário comemoramos em 1999. Suas obras não são, afinal, sonhos filmados? Uma série de imagens serenamente coerentes, com certa dose de suspense, todas a serviço da grande tradição do filme sentimental? Isto pode surpreender, ainda mais quando se pensa que o ideal hitchcockiano é constituído por uma longa sequência de 53 filmes sentimentais: histórias de amor não ditas, de amor negado, de amor abortado, de amor perdido, de amor esperado, de amor reconquistado. Complô de espionagem, impulso assassino, traição, roubo, rapto, distorção da realidade – todos estes elementos são o que chamamos de McGuffin, meros pretextos que servem à verdadeira temática do filme, à sua lógica profunda. A cada vez, reencontramos uma espécie de variação do tema da história de amor. Mas para voltar à obra de Hitchcock. A sombra de uma dúvida (mantendo o mesmo exemplo) é uma história de amor. Vemos até mesmo um casamento encenado, que dá arrepios, entre tio Charlie e sua sobrinha, já que ele passa um anel por seu dedo e a relembra da ligação espiritual que os une. Este trabalho é um filme de suspense moral, no qual uma menina ingênua, que também se chama Charlie (Teresa Wright), toma conhecimento de pesados antecedentes (e impulsos assassinos) que ela pode ter herdado, sobre os laços estranhos, não menos comuns, que a unem a seu tio Charlie e à sua loucura.
....................................................................................... Publicado originalmente com o título “Hitchcock et le rêve” no livro Hitchcock et l’Art: coïncidences fatales. Montreal e Paris: Centre Pompidou e Mazzotta, 2001, pp. 41-50. 1