Correntes D’Escritas 40
Lucho Manuel Alberto Valente para Carmen Yáñez e Daniel Mordzinski
Têm sido dias difíceis estes dias. Não gosto de apagar contactos no telemóvel e cada vez mais o meu telemóvel está cheio de mortos.
Dossier
O teu contacto dizia “Lucho” e, entre outros dados, tinha um número que quase nunca atendias. Talvez porque nesses momentos estivesses à conversa com o tal velho que lia romances que só eram de amor porque tu os escrevias. Ou voasses com aquela gaivota, que Zorbas ensinou a voar, sobre o porto de Hamburgo onde há muito foste feliz sem o saber. Ou estivesses na Patagónia, na Amazónia, nas muitas geografias onde o coração se perdeu e o sonho ganhou asas. Porque o mundo foi sempre a tua casa mesmo quando, em Gijón, frente ao mar, passeavas os cães e acreditavas que a palavra honra era invencível.
É por isso que não tenho a certeza de que tenhas morrido – pode ser mais uma das tuas invenções, das tuas histórias falsas, dos teus delírios de criador de fábulas. E, se assim for, que lição tiraremos desta súbita ausência e do silêncio que caiu de repente sobre nós? Lembras-te do dia em que Letelier escondeu uma peça do xadrez de Sarabia na piscina do Altis? Tu se calhar encontraste finalmente essa peça e foste devolvê-la ao Antonio, esteja ele onde estiver, como diria o Negro, e por lá ficaram à conversa, entre dois copos de vinho e um assado que não resististe a fazer. O meu telefone está cheio de mortos. Onde diz “Lucho” vou pôr “Mentiroso”. E continuarei a telefonar para esse número que nunca atendes, que nunca atenderás, simplesmente porque estás a escrever o fim da história. 18 de Abril de 2020
A história dirá um dia das histórias que inventavas, que todos sabíamos serem falsas, ou melhor, literatura em vida. Porque em ti as duas coisas se confundem - literatura e vida – e nunca se sabe onde uma começa e outra acaba.
Há no poema três referências que talvez devam ser explicitadas: aos romancistas Hernán Rivera Letelier (chileno), Antonio Sarabia (mexicano, já falecido) e Mario Delgado Aparaín (que entre os amigos é referido carinhosamente por El Negro, embora seja branco e uruguaio). O presente poema foi originalmente publicado no JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, em 22 de Abril de 2020