Revista Científica da Escola Superior de Advocacia: Ciência e Profissões Jurídicas - Ed. 36

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Ciência e profissões Edição 36 Ano 2021

jurídicas

SÃO PAULO


CONSELHO SECIONAL

Gestão 2019/2021

OAB SP

DIRETORIA

PRESIDENTE Caio Augusto Silva Dos Santos VICE-PRESIDENTE Ricardo Toledo Santos Filho SECRETÁRIO-GERAL Aislan De Queiroga Trigo SECRETÁRIA-GERAL ADJUNTA Margarete De Cássia Lopes DIRETORA TESOUREIRA Raquel Elita Alves Preto


MEMBROS EFETIVOS: Ailton José Gimenez Alessandro Biem Cunha Carvalho Alexandre Cadeu Bernardes Alexandre Cotrim Gialluca Alexandre Luís Mendonça Rollo Ana Amélia Mascarenhas Camargos Ana Carolina Moreira Santos Ana Cristina Zulian Ana Laura Simionato Victor Ane Elisa Perez Antônio Carlos Chiminazzo Antônio Carlos Delgado Lopes Carlos Fernando de Faria Kauffmann Celso Fernando Gioia Clarissa Campos Bernardo Cláudia Patrícia de Luna Silva Cristiano Ávila Maronna Daniella Meggiolaro Paes de Azevedo Danyelle da Silva Galvão Diva Gonçalves Zitto Miguel de Oliveira Edson Roberto Reis Fabiana das Graças Alves Garcia Fabrício de Oliveira Klébis Flávio Olímpio de Azevedo Gabriella Ramos de Andrade Moreira Gislaine Caresia Glauco Polachini Gonçalves Guilherme Miguel Gantus Irma Pereira Maceira Ivan da Cunha Sousa João Emílio Zola Júnior José Meirelles Filho José Pablo Cortês José Paschoal Filho José Roberto Manesco Juliana Miranda Rojas Júlio César Fiorino Vicente Keilla Dias Takahashi Vieira Leandro Sarcedo Letícia de Oliveira Catani Luciana Gerbovic Amiky Luciana Grandini Remolli Luís Augusto Braga Ramos Luís Henrique Ferraz Luiz Eugênio Marques de Souza Luiz Fernando Sá e Souza Pacheco Luiz Gonzaga Lisboa Rolim Marco César Gussoni Marcos Antônio David Marcos Rafael Flesch Maria Das Graças Perera de Mello Maria Helena Villela Autuori Rosa Maria Sylvia Aparecida de Oliveira Marina Zanatta Ganzarolli Marisa Aparecida Migli Milton José Ferreira De Mello Odinei Rogério Bianchin Orlando César Muzel Martho Regina Maria Sabia Darini Leal Renata Silva Ferrara Roberto Pereira Gonçalves Rogério Luís Adolfo Cury Ronaldo José de Andrade Rosana Maria Petrilli

Roseli Oliva Rosineide Martins Lisboa Molitor Rubens Rocha Pires Sidnei Alzídio Pinto Sílvia Helena Melges Sônia Maria Pinto Catarino Suzana Helena Quintana Tayon Soffener Berlanga Thiago Testini de Mello Miller Walfrido Jorge Warde Júnior

MEMBROS SUPLENTES: Acyr Mauricio Gomes Teixeira Ana Paula Mascaro José Izzi André Luiz Simões de Andrade Anna Lyvia Roberto Custódio Ribeiro Antônio José Kaxixa Francisco Arnaldo Galvão Gonçalves Augusto Gonçalves Carlos Alberto dos Santos Mattos Carlos Eduardo Boiça Marcondes Moura César Piagentini Cruz Cláudia Elisabete Schwerz Cahali Cristiano Medina da Rocha Eduardo Silveira Martins Élio Antônio Colombo Júnior Éryka Moreira Tesser Eugênio Carlo Balliano Malavasi Fábio Gindler de Oliveira Fabrício Augusto Aguiar Leme Fernando Borges Vieira Fernando Fabiani Capano Fernando Mariano da Rocha Íris Pedrozo Lippi Isabela Guimarães Del Monde Isabella Aita Maciel de Sá João Batista Muñoz Jorge Pinheiro Castelo José Luiz Da Silva Kátia De Carvalho Dias Leandro Ricardo da Silva Lia Pinheiro Romano de Carvalho Liamara Borrelli Barros Luciana Andréa Accorsi Berardi Luiz Carlos Zuchini Luiz Donato Silveira Luiz Guilherme Paiva Vianna Maitê Cazeto Lopes Marcel Afonso Barbosa Moreira Marcelo Kajiura Pereira Marcelo Tadeu Rodrigues de Omena Marcos Antônio Assumpção Cabello Marcos Fernando Lopes Marcos Guimarães Soares Marie Claire Libron Fidomanzo Mário Luiz Ribeiro Maristela Sabbag Abla Rossetti Myrian Ravanelli Scandar Karam Nilson Bélvio Camargo Pompeu Odilon Luiz de Oliveira Júnior Ozéias Paulo de Queiroz Patrícia Helena Massa Paulo Henrique de Andrade Malara Pedro Renato Lúcio Marcelino

Pedro Ricardo Boareto Pedro Virgílio Flamínio Bastos Rafael Olímpio Silva De Azevedo Raquel Barbosa Renata Lorenzetti Garrido Rita Maria Costa Dias Nolasco Rodnei Jericó da Silva Rodrigo de Melo Kriguer Rosângela Ferreira da Silva Rubens Eduardo de Sousa Arouca Rutinaldo da Silva Bastos Ruy Janoni Dourado Sérgio Martins Guerreiro Sérgio Quintero Sidmar Euzébio de Oliveira Simone Henrique Stella Vicente Serafini Sueli Dias Marinha Sueli Pinheiro Sulivan Rebouças Andrade Taísa Cintra Dosso Thais Jurema Silva Thays Leite Toschi Thiago Penha de Carvalho Ferreira Thiago Rodovalho dos Santos Wagner Fuin Willey Lopes Sucasas William Nagib Filho

MEMBROS HONORÁRIOS VITALÍCIOS: Antonio Claudio Mariz de Oliveira Carlos Miguel Castex Aidar José Roberto Batochio João Roberto Egydio Piza Fontes Luiz Flávio Borges D’urso Marcos Da Costa Mario Sergio Duarte Garcia

MEMBROS EFETIVOS PAULISTAS NO CONSELHO FEDERAL: Alexandre Ogusuku Guilherme Octávio Batochio Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró

MEMBROS SUPLENTES PAULISTAS NO CONSELHO FEDERAL: Alice Bianchini Daniela Campos Libório Fernando Calza De Salles Freire


CONSELHO CURADOR

DIRETOR ESA OAB SP Fernando Fabiani Capano

DIRETORIA

ESCOLA SUPERIOR DE ADVOCACIA

VICE-DIRETORA ESA OAB SP Letícia de Oliveira Catani CONSELHO EDITORIAL ESAOABSP Otávio Luiz Rodrigues Júnior Gianpaolo Poggio Smanio Felipe Chiarello de Souza Pinto Carlos Eduardo do Nascimento Tatiana Shirasaki Liton Lanes Pilau Sobrinho COORDENAÇÃO TÉCNICA Coordenador Geral ESAOABSP Adriano de Assis Ferreira Coordenador Acadêmico Erik Chiconelli Gomes Revisão Técnica Raíssa Moreira Lima Mendes Musarra Apoio Técnico-Operacional Marcos de Jesus Martins Izidoro


Gestão 2019/2021

PRESIDENTE Edson Roberto Reis VICE-PRESIDENTE Sueli Aparecida de Pieri SECRETÁRIO Evandro Fabiani Capano CONSELHEIROS Cíntia Regina Portes José Meireles Filho Luciano de Freitas Santoro Marcos Antonio Madeira de Mattos Martins Silvio Luiz de Almeida REPRESENTANTE DO CORPO DOCENTE Giuliana Ghizellini Carrieri COORDENADOR DE CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO Eduardo Arantes Burihan REPRESENTANTE DO CORPO DISCENTE Ricardo Carazzai Areas


Ciência e profissões jurídicas W W W . E S A O A B S P. E D U . B R

Prefácio

................................................................................................................................................................. 9

Raíssa Moreira Lima Mendes Musarra Regina Célia Martinez

01. PROCESSO JURISDICIONAL ELETRÔNICO: ENTRE O INSTRUMENTALISMO E O PROCESSO CONSTITUCIONAL.......................................................................................................... 10 Fernando do Amaral Moreira Fernanda Letícia de Paula Abreu Vitória Dias Miguel Rocha Silva Fernanda Gomes e Souza Borges

02. I.A. E SEU EMPREGO EM PROVEDORES DE APLICAÇÃO PARA FINS DE DIREITO AUTORAL............................................................................................................. 30 Gleiner Pedroso Ferreira Ambrosio Alan Abdo Eckschmiedt Maria Rita Neiva

03. REFLEXÕES ACERCA DOS VALORES RELACIONADOS À INCORPORAÇÃO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NO DIREITO PENAL......................................................................... 46 Ana Julia Pozzi Arruda Ana Paula Bougleux Andrade Resende Fernando Andrade Fernandes

04. O AUMENTO DOS CRIMES CONTRA A HONRA DURANTE A PANDEMIA DO COVID-19 NO ÂMBITO DIGITAL: UMA NOVA ERA NO DIREITO PENAL....................... 70 Giovanna Aburad Delgado Sabbatini Iasmin Cortes Palotta Maria Júlia Calheiros Fontan Christiany Pegorari Conte


SUMÁRIO Edição 36 - Ano 2021

05. A RESPONSABILIDADE DO FACEBOOK FRENTE AOS PERFIS COMERCIAIS À LUZ DA LGPD E CDC ............................................................................ 84 Débora Tiago Devides Geórgia Vasconcelos Ferfoglia Thaís Romera Vianna Christiany Pegorari Conte

06. A LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS E SUA APLICABILIDADE JUNTO AO SISTEMA OPEN BANKING - ARMAZENAMENTO DIANTE DO CONSENTIMENTO............................................................. 102 Caroline Gobato Christiany Pegorari Conte. Isabella de Picoli Victória Coutinho Galvão dos Santos

07. PROCESSO CONSTITUCIONAL E TECNOLOGIA: A UTILIZAÇÃO DE APLICATIVOS DE MENSAGEM PARA A CITAÇÃO DENTRO DO PROCESSO E SEUS PROBLEMAS......................................................................... 116 Fernanda Gomes e Souza Borges Júlia Bielskis Mariana Assis da Aparecida Clara Lorrainy Diniz Barbosa Marcus Paulo Assis

ESCOLA SUPERIOR DE ADVOCACIA São Paulo OAB SP - 2021 Coordenador de Editoração Artur José Pavan Torres Jornalista Responsável Marili Ribeiro Coordenação Científica Raíssa Moreira Lima Mendes Musarra Regina Célia Martinez Arte e Diagramação Concept & Print Bureau Fale Conosco Largo da Pólvora, 141 Sobreloja - São Paulo SP Tel. +55 11.3346.6800 Publicação Trimestral ISSN - 2175-4462. Direitos - Periódicos. Ordem Dos Advogados

do Brasil


08. AUDIÊNCIAS VIRTUAIS: O PARADOXO ENTRE A INOVAÇÃO TECNOLÓGICA E A TUTELA DE DIREITOS............................................................................................................................ 132 Beatriz Thomazini Bianca da Silva Fernandes Bastos Luísa Lourenção Soraya Regina Gasparetto Lunardi

09. A PANDEMIA DO COVID-19 E A EFETIVAÇÃO DAS GARANTIAS JURÍDICAS POR INTERMÉDIO DE AUDIÊNCIAS VIRTUAIS EM ÂMBITO CÍVEL E PENAL................. 146 Adrielly Letícia Silva Oliveira Alessandra Pangoni Balbino Santos

10. A LIBERDADE DE EXPRESSÃO VERSUS A LEI DE SEGURANÇA NACIONAL EM AMBIENTES VIRTUAIS......................................................................................................................... 162 Rodrigo da Silveira Barcellos. Gustavo Silva Torres Pietro Ferreira Bello

11. A (IN) APLICABILIDADE DOS DANOS PUNITIVOS NO BRASIL......................................... 188 Rodrigo da Silveira Barcellos Calil Pellaes Mekanna Yasmin Fauze Mahmoud

12. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA DURANTE A PANDEMIA: A FRAGILIDADE DA REDE DE ACOLHIMENTO NO ESTADO DE SÃO PAULO............................................................... 216 Jessica de Jesus Mota Luiza Santos Rodrigues Raissa Rayanne Gentil Medeiros

13. ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS EM RAZÃO DA PANDEMIA NOS CONTRATOS DE LOCAÇÃO............................................................................................................. 240 Rodrigo da Silveira Barcellos Beatrice Ferrari Lucas Antonio Schoba Almeida


PREFÁCIO Raíssa Moreira Lima Mendes Musarra1 Regina Célia Martinez2 A trigésima sexta edição da Revista Científica Virtual da ESAOABSP é concebida com o esforço coletivo do grupo de pesquisa que esteve à frente da produção científica da Escola nos últimos dois anos. Assim, evidencia-se o estímulo à ciência em local cativo do ensino jurídico advocatício por parte da coordenação geral e acadêmica da instituição. A seleção dos pesquisadores e sua interação foram experiências incomuns na instituição. O período pandêmico demandou dedicação ainda maior para que a integração dos temas e desenvolvimento dos projetos fosse frutífera. Hoje, com cinco livros publicados e dois grandes Congressos Internacionais, dezenas de capítulos de livros e artigos, o grupo tem a honra de apresentar os artigos completos selecionados no II Congresso Internacional de Advocacia e Ciência Jurídica, divididos entre as edições 36 e 37 da Revista Científica Virtual da escola. Esta edição, especificamente, apresenta os temas relacionados à ciência e profissões jurídicas, ou do ponto de vista da ciência jurídica ou das ciências sociais aplicadas à compreensão das profissões no Direito. Desejamos uma excelente leitura! As Organizadoras 1  Raíssa Moreira Lima Mendes Musarra é pesquisadora em nível de pós-doutoramento do Programa de Pósgraduação em Ciência Ambiental (PROCAM), vinculado ao Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE/USP), na linha Governança, Impacto e Modelagem Socioambiental. Advogada e Pesquisadora da Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional São Paulo (ESAOAB/SP). Pós-graduada em Direito Público pela Universidade Gama Filho - RJ (2009). Mestre em Ciências Sociais (Sociologia e Antropologia) pelo Programa de PósGraduação de Ciências Sociais PPGCSoc-UFMA (2011) e Doutora em Ciências Sociais - Sociologia pelo programa de Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará - PPGCS-UFPA com estágio doutoral na Universidade de Paris, Villetaneuse - Paris XIII no Departamento “Sociologie/Droit”. Desenvolve pesquisas sobre Ação Pública e Meio Ambiente (Meio Ambiente Natural, Construído, Cultural e do Trabalho). raissa@musarra.com.br 2  Mestre e Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Jornalista. Advogada e Professora Titular Doutora e Pesquisadora do Centro Universitário de Jales (UNIJALES). Pesquisadora da Escola Superior de Advocacia. Mediadora, Conciliadora e Árbitra. Presidente da Associação Paulista de Conservadores e Restauradores de Bens Culturais. Membro efetivo da Comissão de Ensino Jurídico da OAB/SP. Avaliadora externa do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (Conpedi). Consultora Especialista do Conselho Estadual de Educação de São Paulo. Integrante do Banco de Avaliadores do Sistema Nacional de Avaliação de Educação Superior BASIS. Parecerista de diversas Revistas Científicas. Contato: reginamarar@uol.com.br Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

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01

PROCESSO JURISDICIONAL ELETRÔNICO: ENTRE O INSTRUMENTALISMO E O PROCESSO CONSTITUCIONAL Fernando do Amaral Moreira3 Fernanda Letícia de Paula Abreu4 Vitória Dias Miguel Rocha Silva5 Fernanda Gomes e Souza Borges6

RESUMO O crescimento da cibercultura atingiu também o mundo jurídico. Nesse ponto, o Processo Judicial eletrônico (PJe), implementado pela Lei 11.419/06, tem sido responsável por proporcionar uma série de vantagens ao sistema judiciário brasileiro. Entretanto, ainda há obstáculos a serem superados para que o processo eletrônico abandone o viés instrumentalista e contemple a perspectiva constitucional do processo. PALAVRAS - CHAVE Processo Jurisdicional Eletrônico. Processo Constitucional. Instrumentalismo.

3 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Lavras 4 Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Lavras 5 Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Lavras 6 Doutora em Direito Processual pela PUC/Minas; Mestre em Direito Processual pela PUC/Minas; Professora Adjunta II do Departamento de Direito da Universidade Federal de Lavras 10

36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


1. INTRODUÇÃO O mundo jurídico sempre acompanha a evolução da solução de conflitos e, nesse momento em que há um crescimento assíduo da cibercultura, percebese a necessidade dos meios jurídicos acompanharem essa modificação social. A partir desse raciocínio, o Processo Judicial eletrônico (PJe) foi criado para adaptar a tutela jurisdicional aos avanços tecnológicos. O objetivo deste trabalho é, a partir da análise bibliográfica, examinar se o Processo Judicial eletrônico contempla o devido processo legal constitucional, ou reforça a visão de que o processo é mero instrumento da jurisdição, prezando somente efetividade e celeridade do processo. Para alcançar tal objetivo, o artigo apresentará, em um primeiro momento, a Teoria Instrumental do Processo, bem como as diretrizes do Processo Constitucional. Por conseguinte, haverá uma contextualização dos impactos da revolução tecnológica e da globalização no mundo jurídico, sobretudo no que diz respeito ao acesso à justiça e seus entraves, bem como ao Processo Judicial eletrônico (PJe). Posteriormente, serão apresentados os benefícios e os pontos negativos da ampla utilização do processo eletrônico. Por fim, será debatido se a informatização do processo contempla o devido processo legal constitucional, ou reforça a instrumentalização processual, a qual flexibiliza direitos e garantias constitucionais em nome de um processo efetivo e célere. Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

2. TEORIA INSTRUMENTALISTA DO PROCESSO O instrumentalismo processual foi adotado no ordenamento jurídico brasileiro, sendo amplamente acolhido pelo Código de Processo Civil de 1973, a partir da Teoria da Relação Jurídica de Büllow. O jurista alemão Oskar von Bülow desenvolveu tal teoria na obra “Teoria das exceções processuais e dos pressupostos processuais”, a qual entende que o processo é uma relação jurídica entre juiz, autor e réu, que deve satisfazer certos pressupostos processuais, através de um vínculo de subordinação ao magistrado. De forma breve, a teoria da relação jurídica de Bulow é: Sintetizada no brocardo iudicium est actus trium personarum: iudicis, actoris et rei (“Juízo (processo) é o ato de três pessoas: o juiz, o autor e o réu”), a teoria preconiza que a relação jurídica processual (pública) se diferencia da relação jurídica de direito material (privada), uma vez que demanda o preenchimento de pressupostos processuais relacionados a três aspectos: a) sujeitos (autor, réu e Estado-juiz); b) objeto (prestação jurisdicional); c) pressupostos (pressupostos de caráter processual). [...] Ademais, caracteriza-se a relação jurídica processual pelo vínculo de subordinação entre as partes e pelo caráter de exigibilidade da prestação demandada perante o Estado. (FRANCO; 2012). 11


Como ponto positivo, a teoria da relação jurídica possibilitou que a ciência processual fosse vista de forma autônoma, contrária à visão com caráter privatista que vigorava até o momento. Posteriormente, a teoria da relação jurídica foi trazida ao Brasil sob a forma da corrente instrumentalista de processo, influenciada pelos estudos de Enrico Tulio Liebman, e sendo marcada pela obra “A instrumentalidade do processo”, de Cândido Rangel Dinamarco, a qual teve como destaque a distinção entre processo e procedimento, cujos autores Felipe Campos e Flávio Pedron (2018) explicam de forma notória. De acordo com tais autores, “procedimento” é o meio pelo qual se exterioriza o processo e promove o seu desenvolvimento. “Processo”, por sua vez, é um instrumento da jurisdição, o qual tem como objetivo alcançar o resultado previsto pelo direito material. Com isso, a corrente instrumentalista confere a “utilidade” como uma das diretrizes do processo tido como ferramenta, também chamados de escopos do processo, sendo eles “(a) o escopo social; (b) o escopo político e; (c) o escopo jurídico” (DINAMARCO; 2009). Assim, na visão instrumental, o magistrado fica encarregado também de decidir a partir de escopos não demarcados pelo sistema jurídico, fato que privilegia a interpretação do juiz, bem como afirma Marcus Vinícius Pimenta (2020). Com isso, o instrumentalismo confere ao magistrado a finalidade de alcançar esse

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“bem comum” idealizado pelos escopos do processo. Dessa forma, é atribuído ao juiz protagonismo em relação às partes na construção da decisão, conferindo ao magistrado abertura interpretativa de temas amplos e subjetivos como “justiça”, para que seja atingida uma espécie de “paz social” (MORBACH; 2019). Ademais, a partir da ideia de encarar o processo enquanto instrumento da jurisdição que visa atingir o resultado esperado pelo direito material, os instrumentalistas atribuem ao processo a necessidade de ser conduzido em prol da efetividade e celeridade para alcançar a finalidade prevista. 3. TEORIA DO PROCESSO CONSTITUCIONAL Por outro lado, o novo Código de Processo Civil de 2015 foi promulgado no sentido de contemplar preceitos constitucionais nas relações processuais. Isso significa que o processo passa a ser compreendido não como mero instrumento da jurisdição em que as partes são subordinadas ao magistrado, mas sim a partir de uma perspectiva de processo constitucional. Assim, o Direito Processual Constitucional, na visão de Baracho (1984), não é um ramo autônomo do Direito Processual, mas sim uma colocação científica a partir do ponto de vista metodológico e sistemático, em que o processo passa a ser examinado em consonância com a Constituição.

36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


Dessa forma, direitos e garantias

Importante ressaltar que, de acordo

constitucionais passam a nortear as

com Brêtas (2021), o devido processo legal

relações processuais, configurando o que

deve ser assegurado e é necessário que a

se entende por devido processo legal. Nas

prestação jurisdicional ocorra de forma

palavras de Brêtas (2015; pág. 228):

eficiente e com uma duração razoável. Todavia, mesmo que a duração razoável

Portanto, devido processo legal,

do processo deva ser assegurada, isto não

assim qualificado norma processual

pode implicar em uma violação de outros

fundamental, vem a ser um bloco

direitos e garantias fundamentais.

aglutinante e compacto de vários

Como visto anteriormente, algumas garantias constitucionais do devido processo legal que foram contempladas na Constituição Federal de 1988 e são inerentes a um Processo Constitucional são, por exemplo, o contraditório e a ampla defesa (vide art. 5°, LV, CF/88), garantias comumente associadas já que possuem uma forte ligação. Segundo ensinamentos de Didier (2017), o contraditório seria a garantia da parte de poder se comunicar no processo, ser ouvido, participar, ter ciência do que acontece e principalmente, ter o poder de influenciar na decisão (2017, pág. 92). Já a ampla defesa, intuitivamente, entende-se que seja a garantia de se defender no processo de maneira geral.

direitos e garantias fundamentais inafastáveis,

ostentados

pelas

pessoas do povo, quando deduzem pretensão à tutela jurídica como partes nos processos, perante os órgãos estatais jurisdicionais, quais sejam: direito de ação, garantia do juízo natural ou juízo constitucional, garantia da ampla defesa, garantia do contraditório paritário e participativo, garantia da fundamentação racional das decisões jurisdicionais centrada na reserva legal. Assim, a primazia da efetividade e celeridade processual defendida pela teoria instrumental é posta em segundo plano, na medida em que a metodologia de analisar o processo a partir de seu viés constitucional prioriza “permitir a geração de uma decisão jurisdicional participada e democrática, ou seja, um pronunciamento estatal decisório tecnicamente construído em conjunto pelos sujeitos do processo, quais sejam, partes e juiz” (BRÊTAS; 2015; pág. 230). Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

Outra importante garantia é a da publicidade (vide art. 5°, LX, CF/88) que determina que os atos do processo devam ser públicos tanto para as partes envolvidas quanto para terceiros. De acordo com Didier (2017) essa premissa serve para evitar “juízos arbitrários e secretos” além de “permitir o controle da opinião pública sobre os serviços da justiça” (2017, pág. 100). Ademais, destaca-se também a 13


paridade de armas (vide art. 5°, caput, CF/88) a qual trata-se da igualdade entre as partes envolvidas na relação processual, colocando-as em um mesmo patamar. Com base na visão de Didier (2017), tal garantia está estritamente relacionada à redução de desigualdades que dificultam o acesso à justiça (2017, pág. 111).

áreas do cotidiano. Hoje, a inteligência computacional se faz presente tanto no lazer, no trabalho, como na forma que os indivíduos se comunicam.

Deve-se citar também o dever de cooperação como uma das diretrizes do devido processo legal constitucional. De acordo com Brêtas (2017), cooperação não tem sentido de que os sujeitos processuais devem se forçar a colaborar em plena harmonia, de mãos dadas, auxiliando-se fraternalmente, em um cenário dialético naturalmente tenso. Mas sim, para o autor, o termo deve ser entendido a partir de um viés técnico, como comparticipação das partes em todos os atos e fases do procedimento, e se relaciona diretamente com o contraditório, na medida que exercem influência e diálogo junto ao juiz, em atividade processual compartilhada, para se chegar a uma decisão final construída em conjunto pelas partes.

disponíveis e acessíveis por meio de

Ademais, a revolução tecnológica e a globalização impactam diretamente no dinamismo do mundo contemporâneo, sobretudo quanto ao “fluxo de informações interconexões

pelos

computadores,

bem como a necessidade de velocidade característica do cotidiano hodierno”. (SALDANHA; MEDEIROS; 2020; pág. 33). Com isso, é necessário que a esfera jurídica não se torne obsoleta frente às transformações do mundo globalizado. A partir da inclusão do acesso à justiça no rol de garantias fundamentais na Constituição Federal de 1988, bem como pela facilidade de consulta jurídica trazida

pela

tecnologia,

tais

como

legislações, doutrinas e jurisprudências, os cidadãos começaram a buscar a prestação jurisdicional

para

os

mais

diversos

conflitos. Tal fato resulta em um número cada vez maior de processos pendentes na

4. OS IMPACTOS DOS AVANÇOS TECNOLÓGICOS NO MUNDO JURÍDICO E O ACESSO À JUSTIÇA O Direito tem passado por grandes mudanças frente aos avanços tecnológicos e ao fenômeno da globalização. O desenvolvimento das tecnologias de informação e telecomunicação tem resultado em mudanças nas mais diversas

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Justiça brasileira, que exigem por soluções mais ágeis, uma vez que, como afirma Mauro Cappelletti e Garth “uma justiça que não cumpre sua função dentro de um prazo razoável é para muitas pessoas uma justiça inacessível” (CAPPELLETTI; GARTH; 1988; pág. 20). O trabalho de Cappelletti e Garth “Florence Project (Projeto Florença)” é

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referência até os dias atuais quanto ao

proteção para interesses coletivos e

acesso à justiça. De acordo com os autores,

difusos; pouco conhecimento dos litigantes

existem duas finalidades para o acesso

quanto aos seus direitos. Assim, somado a

à justiça, sendo elas a acessibilidade de

essas questões apresentadas pela autora,

todos os cidadãos ao sistema jurídico para

pode-se citar também a morosidade como

reivindicar seus direitos e resolver litígios,

um problema generalizado do Poder

bem como a produção de resultados que

Judiciário brasileiro, fato que contribui

sejam socialmente justos (CAPPELLETTI;

para a descrença na justiça estatal.

GARTH, 1988, p. 08).

O Brasil compreende cerca de 18

Além disso, os autores trouxeram

mil magistrados em atuação sendo,

o conceito das ondas reformistas para

aproximadamente, 30 milhões de ações

ampliar o acesso à justiça. Para Cappelletti

julgadas anualmente. Nesse aspecto,

e Garth (1988), a primeira onda diz

entende-se que o Judiciário brasileiro

respeito à promoção do acesso gratuito

enfrenta um congestionamento referente

àqueles

condições

à tramitação dos processos, carecendo de

financeiras de custear os gastos da

uma otimização ocasionada pelo Processo

atividade jurisdicional. A segunda onda

Judicial eletrônico. Tratando de dados

buscou elevar o processo a um patamar

do próprio Conselho Nacional de Justiça

que não tratava mais apenas de questões

(CNJ)7, atualmente há mais de 80 milhões

individuais, mas também de direitos

de processos em trâmite e seria necessário

difusos e coletivos. Já a terceira onda

cerca de dois anos e meio para que todos

traz um enfoque amplo nas instituições,

fossem julgados, sem contabilizar os que

mecanismos, pessoas e procedimentos

ainda entrarão neste ínterim

que

não

tinham

responsáveis pela prestação jurisdicional, sobretudo na simplificação e otimização dos procedimentos. Quanto

aos

Dessa forma, é fulcral e irreversível a utilização da tecnologia nos serviços jurídicos, como uma forma de lidar com

obstáculos

para

o

as demandas do mundo globalizado e

pleno acesso à justiça, Piovesan (2017)

dinâmico.

identificou certas barreiras comuns em

judicial eletrônico (PJe) pode ser entendido

diversos países, sendo elas as elevadas

como uma ação da “terceira onda

custas judiciais, de modo que a justiça é

renovatória cappellettiana”, a qual surge

mais cara para os cidadãos com menores

com intuito de contribuir com o acesso de

recursos financeiros, proporcionalmente;

todos a uma ordem jurídica ágil e eficaz,

sistema jurídico que atribui preferência para interesses individuais, com pouca

Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

Nesse contexto, o processo

7 CNJ. Relatório Justiça em Números 2020. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justicaem-numeros/>. Acesso em: 25 jun. 2021. 15


com repercussões, inclusive, no conceito de duração razoável do processo (PINTO; SANTOS; 2017). 5. BENEFÍCIOS DO PROCESSO JUDICIAL ELETRÔNICO (PJE) Com o amplo acesso às tecnologias, entende-se que os indivíduos cotidianamente têm acesso a diversas informações de maneira prática, rápida e econômica. Quando há essa análise da necessidade dessa informatização no mundo jurídico, argumenta-se que a utilização dos processos no campo digital permite que todos os participantes do processo sejam beneficiados, facilitando inclusive ao magistrado. No Brasil, o avanço tecnológico no processo teve como marco inicial: a promulgação da Lei 8.245 de 1991 - Lei do Inquilinato – que previu no art. 58 a possibilidade de citação por meio do fac-símile. [...] Em 1999, avançamos com a Lei do Fax (Lei nº 9.800 de 1999) permitindo a transmissão de peças por meio do aludido sistema ou similar. A partir de então, passamos a ter a possibilidade de utilizarmos sistemas de transmissão de dados para a prática de atos processuais. [...] Ultrapassando tais etapas, destacase a edição da Lei nº 10.259 de 2001, que regulamentou a criação dos Juizados Especiais Federais, inovando e garantindo, pela primeira

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vez, um processo judicial totalmente eletrônico, com destaque para o trabalho desenvolvido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (Região Sul). Em 2004, destaca-se o texto da Emenda Constitucional nº 45 que estabeleceu a celeridade processual (duração razoável do processo) como princípio da administração, estabelecendo que meios ultrapassados e ineficientes devem, necessariamente, ceder a novas práticas administrativas que permitam a entrega célere e eficaz da prestação jurisdicional. [...] Nesse sentido, no intuito de se imprimir agilidade na tramitação processual, buscando uma razoável duração na prestação jurisdicional, a Lei nº 11.419 de 2006 ampliou as hipóteses de utilização dos meios eletrônicos para prática de atos processuais. (PINTO; SANTOS; pág. 114-115; 2017) Salienta-se que a Lei nº 11.419/2006, que ampliou as hipóteses de informatização do processo judicial, não tratou especificamente sobre o PJe, mas apenas de normas gerais para a utilização de meios eletrônicos para prática de atos processuais. Por outro lado, foi a Resolução nº 185 do CNJ, de 18/12/2013, que consistiu em um marco para a uniformização processual eletrônica nacional em uma mesma plataforma, uma vez que instituiu o PJe enquanto sistema, sendo um software criado pelo 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


CNJ, traçando o modo específico para a implantação desse sistema. (LIMA; NETO; 2020). De acordo com o Relatório Justiça em Números de 20198, um total de 20,6 milhões de processos novos ingressaram no Poder Judiciário por meio eletrônico, número que correspondeu a 83,8% dos processos abertos naquele ano. Interessante observar que na Justiça Trabalhista, 100% dos casos foram iniciados por via eletrônica no TST, e 97,7% nos Tribunais Regionais do Trabalho. Ademais, vale salientar que os Tribunais de Justiça do Acre (TJAC), Alagoas (TJAL), Amazonas (TJAM), Mato Grosso do Sul (TJMS), Sergipe (TJSE) e Tocantins (TJTO) alcançaram 100% de processos eletrônicos nos dois graus de jurisdição. Com isso, percebe-se a grande adesão do processo judicial eletrônico, tendo em vista que, considerando os 10 anos cobertos pela série histórica, nota-se o ingresso de 108,3 milhões de casos por meio eletrônico. 5.1. DESBUROCRATIZAÇÃO E RACIONALIZAÇÃO DOS PROCEDIMENTOS INTERNOS As etapas que são eliminadas com essa informatização, para que o processo logo chegue às mãos do magistrado e, posteriormente, seja acessado pelas partes, permitem uma celeridade para 8  CNJ. Relatório Justiça em Números 2019. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justicaem-numeros/>. Acesso em 24 jun. 2021 Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

que o litígio alcance o mais rápido possível o seu objetivo: uma sentença legitimamente democrática. Nesse sentido, o Processo Judicial eletrônico tem grande importância já que possibilita que todos os documentos protocolados e as decisões prolatadas sejam acessados facilmente pelos envolvidos na relação processual, tendo em vista que ele não demanda comparecimento físico para qualquer procedimento, como nos processos tradicionais. Segundo os autores Saldanha e Medeiros (2020), a informatização do processo permite ao magistrado visualizar os documentos com antecedência, estudá-los, dar andamento aos processos e prolatar decisões a partir de seu computador pessoal, a qualquer hora do dia, fato que traz celeridade e aumento da produção. Um estudo realizado pelo Conselho Nacional de Justiça9, através do FGV, comprovou os benefícios e a eficiência que o Processo Jurídico eletrônico apresentou desde que foi implementado. Essa pesquisa demonstrou que menos de 25% dos PJe ultrapassaram a margem de 4 anos de duração, ao contrário dos processos físicos que tramitaram por mais de 4 anos. Além disso, a pesquisa explicitou que quanto ao tempo de cartório do processo (sendo o tempo em que o processo está aguardando a realização de alguma demanda cartorária) os 9  PROCESSO Eletrônico (PJe) tem tramitação mais rápida no Judiciário. [S. l.], 14 mar. 2018. Disponível em: <https:// www.cnj.jus.br/processo-eletronico-pje-tem-tramitacaomais-rapida-no-judiciario/>. Acesso em: 14 jun. 2021. 17


processos físicos apresentam uma média de 144,19 dias, e os PJes já alcançaram uma margem de 97,36 dias, atingindo um marco de quase 50% de redução. Essa característica corrobora com a celeridade e proporciona uma maior publicidade, uma vez que qualquer indivíduo pode vir a ter acesso à processos que não tramitem em segredo de justiça, além de promover atos processuais imediatos, como intimações. Com isso, o processo eletrônico colabora para a desburocratização do Poder Judiciário, na medida que o procedimento, assim que praticado, já se torna parte do sistema, reduzindo a necessidade de intermediações humanas, dispensando também a conferência de listas de atos e envio de dados a órgãos especializados em publicações; além da automação de outras atividades braçais como de numeração, carimbo e juntada de peças aos autos (SOARES; 2012). Dessa forma, torna-se possível um procedimento mais acessível, ágil e menos oneroso. Além disso, a informatização do processo não apenas contribui para a dinamização da realização dos atos processuais, mas também colabora para maior eficiência do órgão jurisdicional. O software criado pelo CNJ faz uma ampla racionalização dos procedimentos internos do órgão jurisdicional, através da organização das incumbências a serem executadas por meio do padrão denominado “caixa de tarefas”, o qual facilita o controle das atividades desenvolvidas em cada setor, bem como

18

possibilita uma visualização facilitada dos setores com maior demanda10. Assim, a eliminação das etapas de longos deslocamentos físicos para cada demanda judicial, a maior agilidade na juntada de peças aos autos, a celeridade que o processo chega nas mãos do magistrado, e a organização das tarefas no software, resulta na diminuição de tempo que o processo fica parado, e possibilita que os servidores do órgão jurisdicional atuem de uma maneira mais célere e eficaz, poupando esforços para as tarefas com maior urgência/complexidade. 5.2 FACILITAÇÃO JUSTIÇA

DO

ACESSO

À

Outro benefício trazido pela automação desse procedimento é a democratização do acesso à justiça. A informatização derruba as barreiras geográficas que podem atrapalhar o dinamismo do sistema jurídico. Com a revolução tecnológica, o acesso à justiça não precisa se dar mais pelo acesso físico aos tribunais. Através do processo eletrônico, tornou-se possível que a proximidade ocorra no campo virtual, sem que haja a exigência das pessoas se deslocarem até o local para a prestação jurisdicional, sendo necessário apenas o acesso aos meios de telecomunicações 10  LIRA, Luzia Andressa Feliciano de. SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. O Processo Judicial eletrônico (PJe) como instrumento que viabiliza o acesso à Justiça. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/ artigos/?cod=91836ea292e68886>. Acesso em: 25 junho. 2021. 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


e da rede mundial de computadores ao alcance daqueles que necessitam de solução para suas demandas (LIMA; OLIVEIRA; 2019). Por outro lado, ainda é possível citar a ampliação do acesso à justiça pelo fato de que as demandas judiciais não precisam se limitar ao horário de funcionamento do fórum, como acontece nos processos tradicionais. Ainda, o software criado pelo CNJ disponibiliza um instrumento que realiza a “contagem dos prazos processuais, considerando-se a área de competência dos órgãos jurisdicionais e respectivos feriados locais (para a suspensão dos prazos)”11. Com isso, as partes são beneficiadas pelo melhor controle e aproveitamento de seus prazos processuais. O acesso à justiça através dos processos eletrônicos é aumentado, e isso viabiliza o alcance dos direitos constitucionais a todos os indivíduos que recorrem à justiça e viabiliza um devido processo legal mais efetivo. Com isso, minimizaria a sobrecarga do sistema jurídico evitando que os processos tenham um retardo em suas decisões, o que ocasionava uma descrença na justiça. Contudo, com o processo eletrônico, essa questão começa a mudar de figura, mas deve-se haver sempre cautela para que todos sejam contemplados e que 11  LIRA, Luzia Andressa Feliciano de. SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. O Processo Judicial eletrônico (PJe) como instrumento que viabiliza o acesso à Justiça. pág.12. Disponível em: <http://www.publicadireito.com. br/artigos/?cod=91836ea292e68886>. Acesso em: 25 junho. 2021. Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

os direitos constituídos sejam sempre salvaguardados. 5.3. VANTAGENS AMBIENTE

PARA

O

MEIO

Além das vantagens quanto ao princípio da razoável duração e do acesso à justiça, é possível apontar os benefícios para o meio ambiente trazidos pela informatização do processo. Com o processo tornando-se digital, a necessidade de impressão de folhas de papel é reduzida drasticamente, bem como na “diminuição de obras de construção civil para possibilitar novas instalações” (PINTO; SANTOS; pág. 120; 2017), contribuindo para o combate ao desmatamento. Por fim, cita-se um dado que comprova a vantagem também financeira do PJe para os tribunais: o Tribunal do Trabalho da Paraíba demonstrou12 que, de 2007 até 2017, a economia realizada em folhas do tamanho convencional A4 foi de 2.838.000, que convertendo em reais, daria uma poupança de R$ 102.168,00. Ressalta-se também que, o PJe, ambientalmente falando, impediu o corte de 3 mil árvores. 12  AARB. Implantação do PJe reduziu em 58% o consumo de papel na Justiça do Trabalho: A tramitação eletrônica de quase 100% dos processos tem impacto no consumo de recursos do meio ambiente. Publicado em 08/06/2020. Disponível em: <https://www.aarb.org.br/implantacao-do-pje-reduziuem-58-o-consumo-de-papel-na-justica-do-trabalho/>. Acesso em: 12 jun. 2021 19


6. ENTRE O INSTRUMENTALISMO E O PROCESSO CONSTITUCIONAL Apesar do PJe mostrar-se bastante vantajoso em um primeiro momento, não podemos nos esquecer que a plataforma enfrenta uma série de percalços internos e externos os quais, de certa forma, poderiam comprometer não só o seu pleno funcionamento na prática como também as garantias constitucionais processuais. A nossa proposta é, então, refletir até que ponto estas garantias estariam sendo flexibilizadas em nome da efetividade e celeridade, ratificando a noção de um processo instrumentalista e, por outro lado, até que ponto estas estariam sendo salvaguardadas, tendendo a viabilizar o processo constitucional. Assim sendo, para fazemos a referida análise, selecionamentos os seguintes pontos:

Justiça de Minas Gerais13 suspendeu os prazos dos processos que tramitavam em meio eletrônico, exatamente por conta de uma instabilidade que o sistema estava enfrentando. Enquanto o sistema ficou fora do ar, não foi possível acessar informações, fazer juntada de documentos, dentre outros trâmites; logo, os processos ficaram

parados.

Segundo

Rezende

(2016), citando Porto Júnior (2014), nem sempre os tribunais que se utilizam do meio eletrônico têm ciência dessas instabilidades

e,

consequentemente,

nem sempre os prazos são prorrogados quando tais problemas técnicos ocorrem. Nesse ponto, destacamos que é preciso ter cuidado. Isto porque o acesso à justiça não pode ser prejudicado por conta da instabilidade do sistema. Por outro lado, caso haja grandes períodos de “tempos mortos do processo” somado às sucessivas prorrogações de prazo, isto pode acabar

6.1. INSTABILIDADE DA PLATAFORMA Assim como as demais plataformas inseridas no âmbito virtual, o Processo

delongando excessivamente a prestação jurisdicional, prejudicando a garantia da razoável duração do processo.

Judicial eletrônico também está sujeito a instabilidades. O legislador considerou estes imprevistos ao estabelecer no artigo 10, §2º, da Lei N°11.419/06 que em situações nas quais o sistema fique indisponível por algum motivo técnico, o

6.2. A QUESTÃO DA ACESSIBILIDADE A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - Tecnologia da Informação e da Comunicação (Pnad

prazo ficará automaticamente prorrogado para o primeiro dia útil seguinte à resolução do problema. Recentemente,

20

o

Tribunal

de

13  OAB UBERABA. Prazos do PJe estão suspensos até 4 de maio. Publicado em 03/05/2021. Disponível em: <https://www.oabuberaba.org.br/ noticias/1059#:~:text=Atendendo%20pedido%20da%20 OABMG%2C%20o,que%20faltava%20para%20sua%20 complementa%C3%A7%C3%A3o>. Acesso em 24 jun 2021 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


Contínua TIC) 201914, aponta que cerca

processual

e

acompanhamento

de

de ¼ (um quarto) dos brasileiros não têm

prazos. Tal situação configura-se um

acesso à Internet. Esse número é resultado

empecilho aos “vulneráveis cibernéticos”-

de diversos fatores como:

a falta de

termo comumente utilizado na literatura

disponibilidade ou o elevado preço do

ao discutir este assunto - para o pleno

serviço; a falta de conhecimento para

exercício de seus direitos e preservação

uso; a falta dos equipamentos necessários

de suas garantias constitucionais.

(computadores, modem, celulares, etc) para que esse acesso seja feito, dentre outros. Em áreas rurais a porcentagem é ainda maior comparada com as áreas urbanas. Nesse ter

rompido

caso,

apesar

barreiras

do

PJe

geográficas,

proporcionado o acesso 24 horas por dia ao sistema, disponibilizado a opção de consultas públicas que significam importantes avanços para as garantias do acesso à justiça e da publicidade, todos

esses

benefícios

poderão

ser desfrutados se houver o acesso à Internet, marginalizando aquela parcela da população considerada “desconectada”. Essa situação só piora para aqueles que entram com suas demandas sem a figura de um patrono. Isso porque além de ter as restrições de acesso quando não possuem um certificado digital, caberá a esta pessoa por conta própria estar constantemente se conectando ao sistema, para fins de movimentação 14  AGÊNCIA BRASIL. Um em cada 4 brasileiros não têm acesso à internet, mostra pesquisa: Número representa 46 milhões que não acessam a rede. Publicado em 29/04/2020. Disponível em: <https:// agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-04/umem-cada-quatro-brasileiros-nao-tem-acesso-internet> Acesso em 12 jun. 2021 Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

6.3 DIFICULDADE DE USO Uma pesquisa realizada pela Associação dos Advogados de São Paulo15 no ano de 2020 demonstrou que mais de 60% dos participantes apontaram a dificuldade com a usabilidade do sistema do PJe como fator que dificulta o acesso à Justiça Federal no Estado de São Paulo. Nesse ponto, não podemos desconsiderar que, no Brasil, há uma pluralidade de sistemas judiciais eletrônicos que são usados por todo o território nacional. Isso quer dizer que mesmo que o PJe esteja em todos os Estados do Brasil, nem sempre este é o único sistema implantado nas comarcas do país. Tal fato exige dos advogados, das partes e dos demais envolvidos na relação processual uma constante capacitação para que se domine o uso destas ferramentas, além de disporem de aparatos tecnológicos necessários (softwares, redes privadas, etc) para o acesso aos mais diversos sistemas, adaptando-se a essa 15  CONSULTOR JURÍDICO. Morosidade e uso do PJe são principais problemas no acesso à Justiça Federal de SP. Publicado em: 24/11/2020. Disponível em: <https:// www.conjur.com.br/2020-nov-24/uso-pje-problemasacesso-justica-federal-paulista> Acesso em 20 jun. 2021 21


nova realidade do Judiciário. Todas essas dificuldades podem estar contribuindo para que haja uma certa resistência em se adotar o software criado pelo CNJ.

está em uma posição que demonstra

Desse modo, então, para que o PJe seja cada vez mais frutífero é preciso que seus operadores saibam como utilizá-lo da melhor forma possível. As falhas na sua utilização podem afetar importantes fundamentos do devido processo legal. Mais do que simplificar procedimentos burocráticos, o PJe, para se aproximar dos preceitos do Processo Constitucional, deve ser manejado de modo a realizar as garantias constitucionais.

Symantec17, o Brasil é o terceiro país que

uma fragilidade de conhecimentos em cibersegurança. Outro dado relevante ao se discutir essa questão é que, segundo a mais recebe ataques cibernéticos. Tudo isso expõe um grande problema que não se restringe só ao PJe, mas é atinente ao uso da Internet como um todo: a insegurança. Apesar da

de

publicidade

haver

a

processual,

garantia muitas

informações que nutrem o banco de dados desses sistemas judiciais eletrônicos são pessoais e, nesses casos, a privacidade não pode ser violada. Essa discussão está cada vez mais em pauta nos tempos atuais

6.4. VULNERABILIDADES DE SEGURANÇA

por conta, principalmente, da vigência da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei Nº

Assim como qualquer outro sistema inserido em um meio virtual, o PJe também está sujeito a ataques de hackers. Esses ataques podem ser muito danosos à

13.709, de 14 de agosto de 2018). Dessa forma, com o sistema infectado, dentre outras implicações, temos a dificuldade de efetivação das garantias processuais.

prestação jurisdicional já que estes agentes maliciosos ao invadirem e tomarem o controle do sistema podem corromper ou apagar arquivos, sequestrar e vender informações,

causar

instabilidades,

provocando uma verdadeira desordem nos processos. Segundo empresa

22

estudo

americana

realizado de

pela

consultoria

7. CONCLUSÃO Diante do exposto, verifica-se que o mundo experimentou uma verdadeira revolução na medida em que foram surgindo novas tecnologias. Vive-se hoje uma realidade cada vez mais informatizada. Evidentemente, o Direito, como parte da

em gestão Oliver Wyman16, o Brasil

2021

16  ITFORUM. Brasil aparece mal em índice que mede conhecimento em cibersegurança. Publicado em: 08/04/2021. Disponível em: <https://itforum.com. br/noticias/brasil-aparece-mal-em-indice-que-medeconhecimento-em-ciberseguranca/> Acesso em 20 jun.

17  TECMUNDO. Por que o Brasil é tão propenso a ataques hacker? Publicado em: 27/02/2021. Disponível em: <https://www.tecmundo.com.br/seguranca/211787brasil-tao-propenso-ataques-hacker.htm> Acesso em 20 jun. 2021 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


sociedade também teve de se atualizar,

em prática. Assim sendo, o nosso propósito

evitando tornar-se antiquado. É nesse

foi, então, analisar se tal celeridade

ponto que o Processo Judicial eletrônico

estaria sendo priorizada em detrimento

(PJe) surge para exercer um crucial papel

das

para a desburocratização do Judiciário.

processuais, o que afastaria o PJe da

Tal esfera do Poder vem assiduamente

demais

garantias

constitucionais

Teoria do Processo Constitucional.

enfrentando um antigo problema: a

Concluímos, dessa forma, que

morosidade. Isso quer dizer que muitos

a problemática inerente ao referido

processos

ao

software criado pelo CNJ vai muito além

Judiciário e que, até que a prestação

do que a própria plataforma. Isso porque

jurisdicional seja concluída, muito tempo

os obstáculos enfrentados pelos sistemas

é despendido. Obviamente que o tempo

judiciais eletrônicos estão relacionados ao

é necessário para que esta prestação seja

funcionamento dos servidores; ao acesso

feita, entretanto, a delonga excessiva é

à Internet no país; aos conhecimentos

prejudicial ao acesso à justiça.

técnicos das pessoas a respeito das novas

chegam

diariamente

Inegavelmente, percebe-se que o referido sistema eletrônico tem mostrado ser uma ferramenta muito importante, já que agiliza tarefas que, no âmbito dos processos físicos demoram mais para serem feitas; rompem barreiras geográficas e quiçá temporais; aliviam a sobrecarga de trabalho sobre os funcionários dos órgãos jurisdicionais; dentre outros proveitos que contribuem para um maior acesso à justiça,

tecnologias; à cibersegurança, etc. Todas essas questões são ainda muito recentes e têm grandes implicações práticas. Tais obstáculos levam a uma resistência em se adotar essas novas tecnologias; compromete o acesso de todos os jurisdicionais aos meios virtuais; gera transtornos ao andamento do processo e, como vimos, até mesmo a privacidade de dados está em jogo.

além de uma prestação jurisdicional mais

Dessa forma, há ainda muito a

dinâmica; ágil; eficiente; célere; gerando

ser feito para que o PJe aproxime-se

vantagens econômicas; organizacionais e,

gradativamente da Teoria do Processo

como vimos, até mesmo ambientais.

Constitucional, prezando pela efetivação

É exatamente nesse ponto que o PJe tenderia a aproximar-se de um instrumentalismo processual dado que toda

essa

celeridade

proporcionada

provocaria uma maior produção de resultados, colocando o direito material Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

de direitos e de garantias constitucionais. O PJe e demais sistemas judiciais eletrônicos precisam ser inclusivos com todos os cidadãos. As partes devem ser capazes de entenderem o funcionamento do sistema; acessá-lo; participarem ativamente do

23


processo; exercerem sua defesa; terem

Judicial eletrônico estaria abandonando

acesso às informações; influenciar nas

um viés instrumentalista para aproximar-

decisões; cooperarem entre si; ocuparem

se dos preceitos previstos na Constituição

um patamar de igualdade com os demais

Federal de 1988, tornando-se um genuíno

envolvidos; tudo isso feito em um tempo

mecanismo de efetivação de direitos e

ágil e com a devida segurança.

garantias constitucionais. Além do mais,

Assim, para que isto seja possível, providências precisam ser tomadas. O PJe deve sempre ter seus servidores atualizados. As falhas devem ser corrigidas e brechas de segurança devem ser

quanto mais acessível o sistema for, mais a resistência a ele será superada e, possivelmente, em um momento posterior, o PJE poderá substituir integralmente o processo físico.

estancadas. O sistema tem de ser capaz de suportar os dados e a quantidade de acessos simultâneos, reduzindo ao máximo as instabilidades. Ademais, é necessário também que possua cada vez mais recursos inclusivos, levando em conta todas as desigualdades de condições existentes entre os usuários. Somado a isso, é fundamental que haja uma educação voltada para o domínio das ferramentas tecnológicas, além de políticas públicas de inclusão digital, tornando paulatinamente mais acessível tanto a infraestrutura computacional (computadores, rede de Internet, por exemplo), quanto o manuseio desses recursos virtuais. Este é um trabalho contínuo que envolve, principalmente, o Poder Público e a sociedade civil. O próprio Judiciário pode e deve adotar medidas administrativas que auxiliem nessas questões. É com base em todas essas melhorias que poderemos considerar que Processo 24

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OAB UBERABA. Prazos do PJe estão suspensos até 4 de maio. Publicado em 03/05/2021. Disponível em: <https://www.oabuberaba.org.br/ noticias/1059#:~:text=Atendendo%20pedido%20da%20OABMG%2C%20 o,que%20faltava%20para%20sua%20complementa%C3%A7%C3%A3o>. Acesso em 24 jun 2021 PIMENTA , Marcus Vinicius . Processo constitucional : Consonâncias e Dissonâncias entre as proposições de Couture , Fix - Zamudio , Baracho , Andolina e Vignera . Revista da Faculdade Mineira de Direito , Volume 23 , número 45. 2020. PINTO, Lucas Baffi Ferreira; SANTOS, Fernando Rangel Alvarez dos. Avanço tecnológico e o processo judicial eletrônico à luz do acesso à justiça. Acesso à justiça I [Recurso eletrônico on-line] organização CONPEDI/ UFPR Coordenadores: Luciana Costa Poli; Sérgio Henriques Zandona Freitas; Joana Stelzer –Florianópolis: CONPEDI, 2017. PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 10 ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2017. REZENDE, Heverton Lopes: O processo judicial eletrônico e o princípio da celeridade. Âmbito Jurídico. 1 de novembro de 2016. Disponível em: <http:// bitly.ws/dq3R> Acesso em 16 maio 2021. SALDANHA, Alexandre Henrique Tavares; MEDEIROS, Pablo Diego Veras . Processo judicial eletrônico e inclusão digital para acesso à justiça na sociedade da informação. Revista eletrônica [do] Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, Curitiba, PR, v. 9, n. 90, p. 32-47, jul. 2020. SOARES, Tainy de Araújo. Processo judicial eletrônico e sua implantação no Judiciário brasileiro. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3307, 21 jul. 2012. TECMUNDO. Por que o Brasil é tão propenso a ataques hacker? Publicado em: 27/02/2021. Disponível em: <https://www.tecmundo.com.br/ seguranca/211787-brasil-tao-propenso-ataques-hacker.htm> Acesso em 20 jun. 2021

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I.A. E SEU EMPREGO EM PROVEDORES DE APLICAÇÃO PARA FINS DE DIREITO AUTORAL Gleiner Pedroso Ferreira Ambrosio18 Alan Abdo Eckschmiedt19 Maria Rita Neiva20 RESUMO A preocupação pela qual os provedores de aplicação têm desenvolvido em relação à proteção dos direitos autorais em rede tem intensificado cada vez mais, sendo o uso de algoritmos uma forma mais prática de fiscalizar tais conteúdos. Todavia, casos concretos de fiscalização destes têm, em algum grau, limitado muitas publicações que possuem uma ausência clara de prejuízo à obra originária, ponto esse em que se propõe uma flexibilização. PALAVRAS-CHAVE Direito autoral, algoritmos, flexibilização.

18  Graduando em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e pesquisador da CNPQ pelo grupo de pesquisa “Filosofia do Direito (Neo)Kantiana”. Email para contato: ambrosiouser@outlook.com. Link para lattes: http://lattes.cnpq.br/3676232506619839 19  Graduando em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Email para contato: alan.eck@ outlook.com. Link para lattes: http://lattes.cnpq.br/0797240647314118 20  Doutora “cum laude” em Direito pela Universidade Carlos III de Madrid (Espanha), especialista em Direito Autoral e Digital, professora de Direito Digital pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e advogada. Email para contato: maria.neiva@mackenzie.br. Link para lattes: http://lattes.cnpq. br/3461557337982250 30

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1. INTRODUÇÃO Sem sombra de dúvidas, a maneira pela qual a humanidade lida com as suas criações é um fenômeno bastante antigo e, portanto, propício a diversas discussões e vontades. Talvez um exemplo bastante interessante esteja envolto na figura da Igreja Católica: ao longo de sua história, esta sempre procurou utilizar as diversas manifestações artísticas em voga ao seu favor, como forma de auxiliar não só em sua imagem, mas também em suas funções. Sim, obras como a do teto da Capela Sistina, um dos maiores marcos artísticos já existentes, não fora pedida à Michelangelo apenas para deixar a Igreja mais bela, mas também porque, sendo a maioria dos fiéis analfabetos e totalmente desconhecedores do latim, as obras de arte eram uma forma de facilitar o entendimento sobre os acontecimentos bíblicos. Então, perpassando vários momentos da humanidade, o interesse pelo criar factualmente sempre existiu. Todavia, em determinado momento, compreendeuse que essas criações não podiam somente compreender remunerações aos seus respectivos criadores, mas, mais importante ainda, deviam ser protegidas. E, desde a Revolução Francesa, a pontual preocupação com a questão do domínio público, por exemplo, significou um importante passo para uma mentalidade capaz de abranger, em determinado grau, uma função social das obras, tendo em vista expandir o acesso à cultura por elas proporcionada. Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

Neste interim, todavia, se existe um evento que alterou profundamente a maneira como se protege (ou se busca proteger) essas criações, tal evento é a chegada da internet, ponto esse que demanda desenvolvimento pormenorizado. 2. ADVENTO DA INTERNET: UMA MUDANÇA ESTRUTURAL Uma das preocupações mais comuns dos criadores em relação às suas próprias obras (pelo menos em um cenário mais recente) diz respeito à pirataria, pois tal conduta não só impacta em seu faturamento, mas também na de seus estúdios, gravadoras, distribuidoras, enfim, a depender do meio no qual o criador está inserido. Mas, a pirataria não é um problema isolado, pois há ao menos mais um problema que tem assolado essa situação: a prática dos plágios. O plágio em si talvez tenha um impacto ainda pior do que o da pirataria propriamente dita, pois, nesta, ao menos ocorre a clara identificação do autor, enquanto que, naquele, um terceiro está tirando proveito de sua criação tanto no aspecto financeiro como no aspecto intelectual, possivelmente ainda mais danoso. E, bem, se olharmos pelo prisma dos anos 60 até os anos 80 do século passado, pelo menos, talvez não houvesse uma configuração tão complexa na dispersão e prática do plágio e da pirataria como ocorre hoje: enquanto as máquinas 31


copiadoras de filmes e músicas eram bastante arcaicas – prejudicando a qualidade de transmissão da obra, por exemplo -, a identificação de plágios era muito mais recorrente entre figuras de maior exposição ao público do que quando do envolvimento de uma parte desconhecida. Então, com o advento da internet – e em pleno mundo globalizado –, toda essa lógica se “especializa”, sendo até difícil fazer um diagnóstico preciso de todas as mudanças por ela trazidas. Mas, certamente, o Direito Autoral é um dos pontos mais influenciados por tal fenômeno e, em plena Revolução 4.0 de hoje, a questão ganha ainda mais relevância. Se, tal como anteriormente apontado, questões referentes ao plágio e à pirataria eram mais sensíveis àqueles artistas mais conhecidos, em uma rede de comunicação vasta como a presente, certamente produtores de conteúdo artístico, ao conseguirem divulgar mais facilmente suas obras, também acabam por expor mais facilmente tais criações às situações de plágio e pirataria, o que demanda maior dificuldade no controle desses eventos. 3. AS DIFICULDADES DO DIREITO AUTORAL NOS MEIOS DIGITAIS Desde a realização da Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas - ratificada pelo Brasil em 1975 –, consolidou-se a principal figura de preocupação internacional no resguardo

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da matéria de Direitos Autorais. Em tese, a proteção por ela proposta está disposta no seguinte trecho do documento: Art. 2º, 1) Os temas “obras literárias e artísticas”, abrangem todas as produções do domínio literário, cientifico e artístico, qualquer que seja o modo ou a forma de expressão, tais como os livros, brochuras e outros escritos; as conferências, alocuções, sermões e outras obras da mesma natureza; as obras dramáticas ou dramático-musicais; as obras coreográficas e as pantomimas; as composições musicais, com ou sem palavras; as obras cinematográficas e as expressas por processo análogo ao da cinematografia; as obras de desenho, de pintura, de arquitetura, de escultura, de gravura e de litografia; as obras fotográficas e as expressas por processo análogo ao da fotografia; as obras de arte aplicada; as ilustrações e os mapas geográficos; os projetos, esboços e obras plásticas relativos à geografia, à topografia, à arquitetura ou às ciências. Porém, ainda que seu proposto âmbito de proteção demonstre ser bastante vasto (haja vista a convenção ser válida até hoje e, mais ainda, ter refletido no rol igualmente exemplificativo do art. 7º da Lei de Direitos Autorais brasileira), a ascensão dos meios digitais trouxe uma certa dificuldade aos países no sentido de regulamentarem, em seus próprios 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


ordenamentos21, a proteção no contexto do novo milênio. Como exemplo, imagina-se a seguinte situação: um usuário de redes sociais decide postar a leitura de um curto trecho de um livro de sua preferência no sentido de engajar uma reflexão sobre seu conteúdo publicamente. Porém, ainda que este pareça um ato inofensivo, ele pode incorrer em contrariedade tanto à referida convenção quanto à LDA: a começar pelo disposto do “ARTIGO 11 ter, 1)” da primeira, dispõe-se: “Os autores de obras literárias gozam do direito exclusivo de autorizar: 1º a recitação pública de suas obras, inclusive a recitação pública por todos os meios ou processos”. E, no que diz respeito à LDA, o apontamento tende a ser o mesmo, tal como apontado a seguir: “Art. 29. Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como: I - a reprodução parcial ou integral”. Isso apenas para citar um exemplo do que ocorre tanto no âmbito normativo nacional quanto internacional. Assim sendo, se um comportamento tão simples em rede social pode ser interpretado como um desrespeito ao direito autoral, logo é possível concluir que sua recorrência nesse meio é bastante grande. Portanto, possuindo os provedores de aplicação alguma responsabilidade 21  “4) Os Países da União reservam-se a faculdade de determinar, nas legislações nacionais, a proteção a conceder aos textos oficiais de caráter legislativo, administrativo ou judiciário, assim como as traduções oficiais desses textos.” Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1970-1979/ D75699.htm Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

nos conteúdos dispostos em sua rede como procederiam eles para identificar esses erros massivamente praticados por usuários? É exatamente aqui que surge o campo de atuação da I.A. e seus algoritmos de parametrização de conteúdo em rede. 4. REGIME DE RESPONSABILIDADES DOS PROVEDORES DE APLICAÇÃO À LUZ DO MCI Desenvolvendo mais propriamente tal esfera de responsabilização, cabe a realização de um breve e importante comentário acerca da forma pela qual o Marco Civil da Internet trata o tema. A princípio, por meio do caput de seu art. 19, assim se delimita a regra geral: Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado

civilmente

por

danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário22. 22  CONTEÚDO bloqueado no YouTube? Fique atento aos direitos autorais. Buffalo, 28 de Maio de 2020. Disponível em: http://buffalodigital.com.br/ blog/direitos-autorais-no-youtube/. Último acesso em: 18/11/2020 33


Aqui, trata-se de questão absolutamente sensível a um Estado Democrático de Direito como o Brasil, pois sendo a presente Constituição Federal de 1988 um reflexo direto dos abusos e injustiças das mais variadas esferas no período do regime militar brasileiro (19641985), claro é que algumas questões seriam radicalmente alteradas com a produção da carta constitucional, sendo o combate à censura um deles. Todavia, sabendo da emergência de possíveis danos a serem expostos em ambiente de rede, como procederia o Direito brasileiro para assegurar uma relação de equilíbrio entre a defesa da liberdade de expressão e os danos causados neste meio, em especial nos provedores de aplicação mais expoentes ao uso comum? Ora, se forem identificadas, por exemplo, postagens em uma rede social que infrinjam a legislação nacional em sua esfera cível, seria extremamente dificultoso que o provedor de aplicação procedesse com a remoção do conteúdo de forma direta, uma vez que o Direito Civil goza de fundamentos próprios que demandam uma análise mais pormenorizada do caso concreto, somente possível com a devida interpretação da legislação pelo julgador, ponto esse em que o caput do art. 19 do MCI incide. Por outro lado, utilizando como exemplo a maior proximidade legal entre a Convenção de Berna e a Lei de Direito Autorais, claro parece que a função fiscalizadora dos provedores de aplicação

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nas questões de direitos autorais seria muito mais fácil. Por isso, a redação do parágrafo 2º do art. 19 do MCI aponta: “§ 2º A aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou a direitos conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição Federal”. Ao submeter a possibilidade de sanção quando da existência de infração a conteúdos de direito autoral em um provedor de aplicação, basta que exista uma lei específica em território nacional para que que se crie terreno à previsão técnica a ser conhecida pelo mesmo. E, hoje, já temos a LDA (que, importante frisar, não trata de um regime específico de responsabilidade civil dos provedores para infrações a direitos autorais, apenas de forma mais genérica. Por isso, ainda há uma lacuna legal a ser preenchida, capaz de atender a essa especificidade). Vigorando a LDA, para além do problema legal de sua não especificidade quanto à responsabilização referida, há também um problema organizacional sobre como os provedores de aplicação conseguiriam analisar todas as postagens em seu domínio e submetê-las a uma apuração sobre possíveis desrespeitos a direitos autorais. Assim sendo, o uso de algoritmos, para tanto, seria um método facilitador, ponto em que se desenvolverá mais propriamente. 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


5. NOTAS SOBRE A DOUTRINA DO “NOTICE AND TAKEDOWN” E O CONTEXTO DO MCI De acordo com o posicionamento doutrinário de Anderson Schreiber, (SCHREIBER, 2015) a forma de responsabilização civil do provedor de aplicação por conteúdos danosos gerados por terceiros, nos termos do artigo 19 do Marco Civil da Internet, seria um grave retrocesso em nosso ordenamento jurídico. Explica-se. A prática jurisprudencial corriqueira em nossos tribunais, no período anterior ao MCI, era pautada por aplicações mais ou menos precisas da doutrina norteamericana do chamado “notice and takedown”, como será explicado adiante, após a apresentação deste conceito. Assim, novamente pelas palavras de Anderson Schreiber (SCHREIBER, 2015), temos que: Inspirada no Digital Millennium Copyright Act, a referida teoria nasce no campo do direito autoral, para criar uma espécie de exceção à responsabilidade por violação de direitos autorais na internet, assegurando imunidade aos provedores que atendessem prontamente à notificação do ofendido para a retirada do material impróprio. Com a notificação, o controvertido dever geral de monitoramento permanente da rede transforma-se em uma obrigação específica de agir, que Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

não poderia mais ser afastada pelo argumento da inviabilidade prática de monitoramento e que, se atendida, isentaria o notificado de responsabilidade civil. Ou seja, pelo procedimento adotado nas cortes norte-americanas, o provedor de aplicações, de maneira proativa e eficaz, poderia remover o conteúdo sinalizado como ilícito pelo próprio ofendido. Além da notificação deste, com seus requisitos específicos de admissibilidade, haveria espaço para a chamada “contra-notificação”, elaborada pelo próprio terceiro cujo conteúdo foi removido, de forma a manter certo nível de contraditório no procedimento. Uma vez superada sua aplicação “pela metade”, como pontua Schreiber, tal abordagem poderia obter grande sucesso em solo pátrio, tão logo fossem normatizadas as características do procedimento em questão pelas leis nacionais. Como leciona o autor supramencionado: O espaço restrito do julgamento de um caso concreto não permitia um desenvolvimento detalhado do funcionamento integral do instituto e, assim, a noção de notice and takedown começava a fazer estrada na nossa jurisprudência, sempre com a melhor das intenções, mas de forma algo arriscada. Um mecanismo essencialmente procedimental começava a aparecer 35


nas nossas decisões judiciais sem um procedimento regulado, sem previsão de contra-notificação e de outras garantias que o cercavam em sua origem, resultando em uma versão deformada do instituto original, amparada mais no argumento de autoridade da experiência norteamericana que propriamente na compreensão dessa experiência e na sua adequação ao cenário brasileiro, naturalmente diverso e peculiar. Concretamente, o que ocorrera foi que a previsão do parágrafo 2º do art. 19 do MCI acabou por afastar a regra geral do caput do próprio art. 19, com seu art. 31 remetendo o assunto à LDA que, como apontado antes, não fixa um procedimento específico de retirada dos conteúdos. E isso fez com que os próprios provedores, talvez inspirados em legislações estrangeiras ao se “instalarem” no Brasil (como a Digital Millenium Copyright Act - DMCA, por exemplo), estabelecessem, através de seus termos de uso, procedimentos próprios de remoção de conteúdo, o que cria enorme insegurança jurídica às partes envolvidas. E, além da clara ausência de um procedimento regulado ao ordenamento brasileiro, não só o MCI estaria positivando uma previsão absolutamente indesejada aos usuários de provedores de aplicação quanto, até mesmo, inconstitucional em seu artigo 19, visto que até mesmo o exercício do contraditório se encontraria prejudicado. 36

Em

suma,

ao

declarar

a

imprescindibilidade de provocação do judiciário para a obtenção da tutela pretendida, o que o MCI obteve, de fato, foi o engessamento da prestação e um maior sufocamento do Judiciário, ao mesmo tempo em que sepultou a abordagem do “notice and takedown”. Vale mencionar, ainda, que ao impor que a ordem deva ser específica, a lei criou margem para que o provedor se escuse ao cumprimento da ordem judicial por conta de sua falta de especificidade. Finalmente,

nos

absteremos

de

abordar os pontos nos quais o autor declara a inconstitucionalidade do artigo 19 do MCI (art. 5°, incisos X e XXXV; art. 1°, III; entre outros, em suas conclusões), mas procederemos a pontuar sua irrelevância, nos termos em que Schreiber expõe: Se a vítima da lesão ao seu direito fundamental precisa recorrer ao Poder Judiciário, pleiteando uma ordem judicial, a ser expedida à empresa, o art. 19 lhe é inteiramente inútil pela simples razão de que a possibilidade de recorrer ao Poder Judiciário sempre existiu no direito brasileiro e o descumprimento de ordem judicial, independentemente de qualquer consideração sobre responsabilidade

civil,

configura

crime de desobediência (CP, art. 330).

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Agora, após a análise da doutrina

Antes de se adentrar mais a fundo

do “notice and takedown” e o contexto

acerca do funcionamento do Content

(permeado por críticas) do Marco Civil da

ID, vale mencionar os componentes

Internet, prosseguiremos com a análise

necessários e as estruturas mínimas de

detida de dois casos nos quais a tecnologia desenvolveu-se para atender as demandas do provedor de aplicações frente à atos ilícitos de terceiros: o Youtube Content Id e o Facebook Rights Manager.

funcionamento de um algoritmo qualquer. Dessa forma, será viável a análise com embasamento

técnico

e

posterior

aplicação ao caso em tela, a fim de traçar indagações fundamentadas acerca das seguintes hipóteses: são os strikes

6. I.A E SEUS ALGORITMOS NO MEIO DIGITAL – YOUTUBE E ID CONTENT

(forma pela qual a plataforma penaliza o

O site Buffalo faz uma interessante

diretrizes da plataforma, por exemplo, em

abordagem acerca da política direitos autorias da plataforma do Youtube,

produtor de conteúdo pelo desrespeito às face de infrações do usuário para com o direito do autor) realizados pelo algoritmo

apontando, em especial, o funcionamento

do Youtube uma afronta à liberdade

de seu algoritmo Content ID:

de expressão e ao direito autoral dos

O YouTube se compromete a ajudar os proprietários de direitos autorais a encontrar e reivindicar conteúdos com violações na plataforma. E para isso, ele conta com a ferramenta Content ID. Ela é responsável por localizar esses conteúdos e fornecer as informações necessárias para que a medida certa seja tomada (...) No entanto, ainda há brechas para o uso de materiais protegidos por direitos autorais. Seja por meio do uso aceitável, ou da permissão concedida pelo detentor dos direitos23 23 CONTEÚDO bloqueado no YouTube? Fique atento aos direitos autorais. Buffalo, 28 de Maio de 2020. Disponível em: http://buffalodigital.com.br/blog/direitos-autorais-no-youtube/. Último acesso em: 18/11/2020 Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

criadores de conteúdo? Ou então, seriam os strikes uma forma viável de proteger o maior número de interesses na rede virtual? Bom, de plano, podemos sintetizar o funcionamento de uma aplicação de inteligência artificial como sendo aquela detentora de 3 componentes indispensáveis: (i) o algoritmo (software), (ii) o hardware e (iii) os dados que o alimentam (atualmente, na maioria das vezes, utiliza-se o Big Data). O primeiro é definido de maneira semelhante por diversos autores, de todos, podemos citar Kaufman (1), Ed Finn (2) e Cormen (3) (KAUFMNAN, 2018).

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1) “Algoritmo é um conjunto de instruções matemáticas, uma sequência de tarefas para alcançar um resultado esperado em um tempo limitado” (2018) 2) “Instruções matemáticas para manipular dados ou raciocínio por meio de um problema” (2017) 3) “Qualquer procedimento computacional bem definido que toma algum valor ou conjunto de valores como entrada e produz algum valor ou conjunto de valores como saída” (2002) O segundo, por sua vez, é o que possibilita a execução daquilo que pretende a programação feita. Em outras palavras, o hardware é o maquinário que confere poder computacional ao software. O último, e o mais importante atualmente, são os dados. Os dados são o valor de entrada que terá seu destino determinado pelo algoritmo e processado pelo hardware, de maneira a atingir um resultado esperado. No século da sociedade da informação, temos grandes bancos de dados que alimentam os algoritmos e garantem que algum objetivo seja atingido pela aplicação de IA - trata-se do chamado Big Data. De acordo com Andrea De Mauro, Big Data é “a representação de ativos de informação caracterizados por um volume, velocidade e variedade tão grandes que requerem uma tecnologia e métodos analíticos específicos para sua 38

transformação em valor” (2016). Finalmente, podemos começar a pontuar como opera o Content ID. Sabemos que essa é uma forma que o próprio Youtube encontrou para contornar a sistemática do notice and takedown neste, a plataforma identifica possíveis transgressões de direitos e prosseguiria com remoção notificada do conteúdo. Com aquele dispositivo, criado em 2007, o Youtube se faz valer de uma base de dados disponibilizada pelos proprietários de conteúdo autoral, que preencheram um formulário na plataforma que os garantem o benefício de consultar o banco de dados do Content ID para facilmente identificar e tomar ação contra usuários que o venham a plagiar. Explica-se: o proprietário de conteúdo autoral submete ao Youtube seu formulário que, se aprovado, implicará na criação de uma impressão digital com traços distintivos de seus arquivos de áudio ou vídeo. Esses, por sua vez, são arquivados junto a um banco de dados com bilhões destas impressões digitais, feitos a partir de um incontável número de arquivos de áudio e vídeo de centenas de anos. O Content ID, por meio dessa base de dados valiosa e de seu algoritmo, é capaz de correlacionar padrões entre essas impressões digitais e apontar possíveis plágios. A partir daí, o proprietário é notificado e pode escolher entre bloquear o conteúdo, incluir anúncios pagos no vídeo, ou acompanhar as estatísticas do vídeo para descobrir 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


fatos possivelmente rentáveis acerca de seu conteúdo (onde faz mais sucesso, com qual público, etc.). Ao usuário que em tese tenha infringido direito autoral alheio cabe, simplificando, aceitar ou contestar a decisão do proprietário do direito. O que se nota, enfim, é que foi criado um dispositivo tecnológico que colabora com os interesses do provedor de aplicação ao servir de filtro tecnológico de conteúdos veiculados em sua plataforma. Todavia, a utilização dessas tecnologias pode vir a dar ensejo a ocorrer um abuso de direito. Explicando melhor, acompanhe a hipótese: tal como mencionado alhures, um pequeno trecho de livro, citado em uma publicação de usuário da plataforma (que não o próprio autor ou titular), poderia dar ensejo a remoções ou strikes injustos, pois sabe-se que há determinada dose de arbítrio ao proprietário do conteúdo autoral (como dito acima, basicamente, remover conteúdo, acrescentar propagandas ou utilizar-se das estatísticas), de acordo com as próprias determinações da plataforma (explicadas acima) em influenciar à esfera jurídica alheia ao remover-lhe conteúdo de seu canal, por exemplo. Fácil de se cogitar hipóteses de abuso deste direito (de disponibilização do conteúdo na plataforma) ao imaginar que nem sempre o autor da obra ‘plagiada’ é lesado diretamente. Vezes há em que quem promove o strike não é o autor, mas sim um titular, ou seja, aquele terceiro investido de direitos do autor, como Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

se autor fosse, que nem sequer precisa ter participado do processo de criação da obra. Tal fato pode gerar censura injustificada e entraves para a circulação última de cultura, ao mesmo tempo que pode debilitar a atuação profissional de outrem. 7. OUTRO EXEMPLO: FACEBOOK E RIGHTS MANAGER Com o intuito de evitar o freebooting, prática muito comum na plataforma Facebook que consiste na postagem de conteúdo notoriamente viral, sem ter o direito autoral pelo mesmo, a rede social criou em 2016 um mecanismo chamado Rights Manager, pelo qual gerencia conteúdos elegíveis para receberem proteção autoral, evitando plágios. A ideia é similar ao que ocorreu no Youtube, com o Content ID. Neste, o usuário deverá preencher um formulário que, após análise, será determinado se é passível ou não de receber atenção da aplicação de IA. No Rights Manager, de forma semelhante, o usuário que acredita possuir material autoral, passível de receber proteção do direito do autor, deve candidatar-se. Vale a menção, todavia, ao que o próprio Facebook diz, na redação original de seu próprio site, sobre quem deve candidatar-se: A powerful and always-advancing platform, Rights Manager is built for creators and publishers who have a large or growing catalog of content

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that people love to share. Delivering a high-level of insight and detail for both your account and your files, it helps protect your creations and drive the right results for your goals. We also understand that Rights Manager may not be right for everyone’s needs. If you don’t manage a large content catalog, post new content on a regular basis or want to learn a new, robust tool, you may prefer to report individual infringements through our IP reporting form. It’s highly efficient and even allows you to report more than one piece of matching content at a time.24 Ou seja, pode-se deduzir - através da alta carga de exclusividade contida no processo de aceitabilidade dos formulários emitidos pelos usuários, tanto para o Content ID, quanto pelo Rights Manager - que os filtros contra abusos de direitos autorais são destinados, via de regra, aos grandes produtores, vez que a aplicação de plano indica que não será qualquer pessoa apta a receber atenção das aplicações. Tal fato não pode ser confundindo com um discurso underdog “clichê” no qual as grandes corporações minimizam direitos dos produtores menores em prol dos grandes. O que é digno de destaque aqui são os problemas de ordem técnica 24  RIGHTS Manager. Facebook. Disponível em: https://rightsmanager.fb.com/. Último acesso em: 19/11/2020 40

que dão ensejo a tratamentos legislativos diferenciados nas relações autorais e no próprio uso dos filtros. Tais realidades técnicas podem causar danos para toda sorte de pessoas, sendo válido apontar, ademais, que a solução de tais problemas está no próprio avanço da Inteligência Artificial. E, nesse momento, é inevitável destacar o papel dos filtros tecnológicos enquanto preventores de violações de direitos autorais. Assim, com base no artigo de Maria Cecília Oliveira Gomes, denominado “Os filtros tecnológicos podem contribuir para a prevenção das violações dos direitos autorais na internet?” , sabemos que a célebre advogada, especialista no tema, propõe solução semelhante ao disposto acima que, em linhas gerais, indica serem os filtros tecnológicos o caminho mais eficaz a tal problemática, especialmente na sua função preventiva, tendo em vista o volume absolutamente massivo de conteúdos originais passíveis de violação na era da informação. Tanto é verdade que ao se mensurar uma outra opção de análise totalmente manual, no caso a caso, rapidamente se percebe a importância de um mecanismo mais direto como o de um algoritmo. Todavia, a autora não deixa de destacar a importância dos mecanismos de aprendizagem de máquina (deep learning, machine learning, etc) para o bom aproveitamento dos filtros tecnológicos, de forma a aperfeiçoá-los. Tal ponto merece também especial destaque.

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O aperfeiçoamento das aplicações de IA que regem os filtros tecnológicos das grandes empresas como Youtube e Facebook será ponto chave para a superação das maiores controvérsias que tais plataformas têm em matéria de direito autoral (e outras) - e recursos não são poupados para a otimização desses instrumentos. Por exemplo, no caso do filtro tecnológico como o Content Id, em um conflito entre o autor da obra e o indivíduo que a utilizou na rede social, fica a critério do primeiro decidir em último caso se a obra permanece ou não na rede. Tudo isso somente foi possível, ademais, por conta do filtro tecnológico que sinalizou um “plagio” ao autor - possivelmente de maneira excessivamente automatizada, vez que o algoritmo é incapaz de contextualizar o uso a que se destinava aquele conteúdo. Um caminho para solucionar essa sensibilidade extrema dos filtros tecnológicos adviria pela própria melhoria tecnológica do algoritmo, caso em que, por exemplo, sua programação já levar em conta a regra dos três passos (abordada em capítulo próprio) e conferir maior razoabilidade às atitudes deste. Todavia, é essencial que o Direito não se mantenha inerte frente às inovações tecnológicas que surgem para atender as demandas sociais. Concomitante aos avanços no estado da técnica, então, devem evoluir também as normas que integram o ordenamento Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

jurídico. Façamos então ecoar as lições de Anderson Schreiber mais uma vez. Em seu artigo “Marco Civil da Internet: Avanço ou Retrocesso? A Responsabilidade Civil por Dano derivado do Conteúdo Gerado por Terceiro” (SCHREIBER, 2015), Anderson relata: A ideia de que a internet é um espaço

de

máxima

liberdade

imune, por sua ausência de base geográfica, a controles normativos ou governamentais – contribui, em certa medida, para novas formas de opressão, como o bullying virtual e o chamado online hate speech, revelando o que tem sido chamado de “dark side” das redes sociais: seu crescente papel na propagação do ódio. O que pode observar, enfim, é que a liberdade de expressão pode ser cerceada mais facilmente tão logo não haja normas reguladoras que incidam sobre as novas tecnologias que moldam o cotidiano de seus usuários. Concluímos com o magistério do jurista supramencionado (GOMES, 2018) que: O único caminho, portanto, é a aplicação de normas que assegurem que a liberdade de expressão não seja exercida em desfavor de si própria. Como já se disse no passado em relação à liberdade de contratar, também a liberdade de expressão é “autofágica”, no sentido

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de que, em qualquer ambiente em que haja desigualdade de forças, a liberdade de expressão do mais forte tende a subjugar a liberdade de expressão do mais fraco. Em

via de regra, incita produções legislativas.

cenários desiguais, a ausência de

Trata-se de um fato que cria zonas cinzentas na positivação jurídica que, frente às omissões legais, pode gerar três efeitos práticos: (i) gerar uma onerosidade operacional aos entes tecnológicos (em deveres de fiscalização, por exemplo, pois inexistindo uma legislação clara sobre determinado tipo de controle, a operabilidade do ente tecnológicos terá grau notoriamente subjetivo); ou (ii) induz a uma judicialização exacerbada dos temas (como, por exemplo, ocorreu com a não aceitação do notice and takedown em nosso ordenamento, mesmo que com ajustes, em detrimento do que dispõe o artigo 19 do MCI); ou então (iii) faz com que a segurança jurídica que a sociedade conta provenha primeiramente da jurisprudência (pois se a produção legislativa se mostra omissão, assim o judiciário não poderá se mostrar, em especial por parte dos órgãos superiores).

normas não costuma resultar em maior liberdade, mas, ao contrário, em mera aparência de liberdade, na medida em que a omissão normativa beneficia tão-somente aqueles que, detendo maior poderio econômico e técnico, se vêem, finalmente, livres para perseguir seus interesses sem precisar respeitar regras instituídas no interesse da sociedade como um todo. Porém, vale pontuar, a atividade legislativa nunca é tão veloz quanto o desenvolvimento da tecnologia e o eterno devir das relações humanas. Sabe-se disso ao acompanhar a evolução histórica que tivemos desde o Marco Civil da Internet (2014), que se omitiu a tratar de direitos autorais, sob a escusa de que lei própria regeria o tema, a Lei de Direitos Autorais. Todavia, à época da elaboração desta lei (década de 90), sua normatividade visava regular uma sociedade predominantemente analógica, que infelizmente não levou em conta a latência que as novas tecnologias traziam consigo e que o futuro veria disromper. Assim sendo, retoma-se a suma importância do desenvolvimento tecnológico para não frear o progresso 42

humano, pois a eficácia que a tecnologia promove é anterior à segurança que a lei prevê. Falando mais diretamente, é justamente a inovação tecnológica que,

Assim, em um plano mais abrangente, caberá ao avanço das aplicações de IA, tais como as abordadas neste trabalho (Content ID e Rights Manager), superar as condições técnicas tanto de operação25 quanto 25 Obviamente, parece claro que ajustes futuros serão feitos: “(seja evitando AI Bias - melhorias nos dados; promovendo um aprendizado de máquina - melhorias no software; disponibilizando bancos de dados de qualidade - novamente, melhoria nos dados; conferido melhor capaci36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


de delimitação (deficiência na previsão legal), de forma a conferir maior eficácia ao empreendedor ou ao mero usuário, evitando-lhe litígios e responsabilizações cíveis descabidas, sem, contudo, punir o produtor de conteúdos que se faz valer da plataforma para circular seu conteúdo original, desde que de forma razoável e lícita. Diante desse anseio, a “Regra dos Três Passos” parece ser um mecanismo bastante útil a tal lógica, ponto em que se detalhará a seguir. 8. INTERVENÇÃO: A “REGRA DOS TRÊS PASSOS” (THREE STEP TEST)

presente texto, se o filtro tecnológico tem em seus algoritmos uma restrição bastante alta de postagem, a convivência do usuário dentro do provedor de aplicação se torna engessada e nebulosa. Assim, não é exagero considerar que, diante da atual previsão dos provedores de aplicação apresentados, talvez deva haver uma maior liberdade nos posts dos usuários no que diz respeito ao conteúdo autoral, meio pelo qual se propõe a aplicação da “regra dos três passos”, prevista no art. 9.2 da Convenção de Berna . Em suma, tal como apontado por BASSO (2007), a presente regra diz:

Em um cenário pré-MCI, é extremamente importante apontar que não havia uma previsão legal que tratasse expressamente sobre a presente problemática (a LDA, por exemplo, não estendia uma consideração específica à responsabilização dos provedores de aplicação em meio-digital26), ponto esse que protagonizou forte discussão pelo STJ sobre a inviabilidade do monitoramento de conteúdo. Diante disso, a criação dos já referidos “filtros tecnológicos” se mostrou uma alternativa bastante viável e rápida na identificação e eliminação de conteúdo. Todavia, como constatado ao longo do

A norma geral contida na Convenção de Berna, conhecida como a regra do three-step test, guia os legisladores nacionais (e demais intérpretes do Direito) com relação ao direito de “reprodução” por terceiros. Esse teste autoriza exceções/ limitações ao direito de Autor e, por conseguinte, o direito de reprodução por terceiros não-autorizados apenas nas seguintes hipóteses:

dade computacional ao software - melhorias no hardware; etc)

(iii) não prejudiquem injustificadamente os legítimos interesses do Autor.

26 “Os casos de pedido de remoção por violação se enquadravam como responsabilidade civil objetiva e solidária” Referenciada de: GOMES, M. C. A. Os Filtros Tecnológicos Podem Contribuir para a Prevenção das Violações dos Direitos Autorais na Internet? Revista da ABPI – nº 153, Maio/Abril de 2018 Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

(i) em certos casos especiais; (ii) que não conflitem com a exploração comercial normal da obra, e

Por via práticas, por exemplo, a recitação de uma música em rede social que vise, dentro de um grupo de estudos artísticos, instruir os ouvintes acerca de seu conteúdo em nada causa confusão 43


com uma possível exploração comercial desta obra (algo que o algoritmo, através do Big Data, não consegue identificar atualmente), e muito menos prejudica os interesses do autor da obra, pois ainda que, por ventura, o mesmo tenha feito a composição buscando unicamente o ganho financeiro, a exposição de uma obra com fins educacionais em nada pode prejudicar a obra de um criador. Muito pelo contrário! E, inclusive, tal previsão já se encontra amparada no art. 46, VIII, da LDA, onde se assegura: A reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores. Em suma, a ideia de se aplicar a regra dos três passos visa equilibrar, ao mesmo tempo, o direito do autor e os direitos do usuário, que, muitas vezes, goza de objetivos absolutamente legítimos, como educação, pesquisa, entre outros27. Então, para que tanto os direitos autorais possam ser devidamente protegidos, como a própria divulgação/publicização do conteúdo pelo usuário possa ser 27  Raciocínio central na flexibilização das políticas de direitos autorais nos meios digitais. Disponível em: GUIBAULT, Lucie. Discussion paper on the question of exceptions to and limitations on copyright and neighbouring rights in the digital era. In: Council of Europe, 1998, Strasbourg). 44

mais adequada e livre, deve haver uma readequação dos filtros tecnológicos, executados através de algoritmos próprios – como o Content ID –, pois isso não só “desburocratiza” quaisquer possíveis intervenções feitas pelos provedores de aplicação (diminuindo os riscos de se receber uma demanda judicial, por exemplo) como também cria uma dispersão de conteúdo absolutamente favorável aos seus criadores. Assim sendo, portanto, em consonância ao disposto do three-step test, a proposta de intervenção do presente artigo é justamente que os referidos filtros tecnológicos não devem gozar do mero notice and takedown, pois ainda que se identifique um conteúdo usado conflitante com o conteúdo do autor (música, vídeo, etc.), caso este não conflite com a exploração comercial normal da obra e nem prejudique injustificadamente os legítimos interesses do Autor, sua mera remoção parece ser um ato injusto no caso concreto, reforçando tal proposta de readequação exposta. “De lege ferenda”, de cara a uma futura regulação específica do regime de responsabilidade dos provedores de internet em relação a conteúdo protegido por direitos autorais, seria interessante a fixação de parâmetros legais mais objetivos, inspirados, por exemplo, nos critérios da regra do três passos, que orientassem os provedores na análise e eventual remoção desses conteúdos de forma a garantir uma maior segurança jurídica e proporcionalidade a este processo.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BASSO, M. As Exceções e Limitações aos Direitos de Autor e a Observância da Regra do Teste dos Três Passos. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo v. 102 p. 493 – 503, jan./dez. de 2007. CONTEÚDO bloqueado no YouTube? Fique atento aos direitos autorais. Buffalo, 28 de Maio de 2020. Disponível em: http://buffalodigital.com.br/ blog/direitos-autorais-no-youtube/. Último acesso em: 18/11/2020; Convenção de Berna. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ decreto/1970-1979/D75699.htm. Último acesso em: 08/11/2020; GOMES, M. C. A. Os Filtros Tecnológicos Podem Contribuir para a Prevenção das Violações dos Direitos Autorais na Internet? Revista da ABPI – nº 153, Maio/Abril de 2018; GUIBAULT, Lucie. Discussion paper on the question of exceptions to and limitations on copyright and neighbouring rights in the digital era. In: Council of Europe, 1998, Strasbourg; KAUFMAN, D. Os meandros da Inteligência Artificial: conceitos-chave para leigos. Revista Estado da Arte, Fevereiro de 2018. Disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/os-meandros-da-inteligenciaartificial-conceitos-chave-paraleigos/#:~:text=Algoritmo%20%C3%A9%20 um%20conjunto%20de,esperado%20em%20um%20tempo%20limitado.&text=De%20forma%20mais%20pragm%C3%A1tica%2C%20 o,%E2%80%93%20Inside%20Search%20%E2%80%93%20Google); NOVA política de conteúdo do YouTube já derrubou mais de 17 mil canais. Canaltech, 03 de Setembro de 2019. Disponível em: https://canaltech.com. br/internet/nova-politica-de-conteudo-do-youtube-ja-derrubou-mais-de17-mil-canais-148625/. Último acesso em: 09/11/2020; RIGHTS Manager. Facebook. Disponível em: https://rightsmanager.fb.com/. Último acesso em: 19/11/2020. SCHREIBER, Anderson. “Marco Civil da Internet: Avanço ou Retrocesso? A Responsabilidade Civil por Dano derivado do Conteúdo Gerado por Terceiro”. 2015. Disponível em: http://www.andersonschreiber.com.br/downloads/ artigo-marco-civil-internet.pdf. Último acesso em 16/05/2021

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Reflexões Acerca dos Valores Relacionados à Incorporação da Inteligência Artificial no Direito Penal Ana Julia Pozzi Arruda28 Ana Paula Bougleux Andrade Resende29 Fernando Andrade Fernandes30

RESUMO O objetivo geral desta investigação consiste em analisar as influências da incorporação e da utilização de mecanismos de inteligência artificial no sistema jurídico-penal, buscando o fundamento valorativo que conduz tal processo. Acerca das bases utilizadas para a análise, busca-se estabelecer um diálogo entre os valores identificados na sociedade contemporânea e as diretrizes constitucionais de política criminal, a partir da referência aos acertos e às falhas da metodologia neokantista quanto à permissividade axiológica no estudo do Direito. Por fim, a pesquisa segue o método de abordagem dedutivo pela identificação dos elementos jurídicos e sociais existentes na sociedade contemporânea e, posteriormente, pelo apontamento da influência deste cenário na conformação da relação entre inteligência artificial e direito penal.

PALAVRAS-CHAVE: Inteligência Artificial; Política Criminal; Direito Penal; Neokantismo e Sociedade Contemporânea. 28  Bolsista CAPES. Mestranda em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Campus de Franca (FCHS/UNESP). Email: ajpa.arruda@gmail.com. Telefone: (16) 99775-0404. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3666240341174232 29  Mestranda em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Campus de Franca (FCHS/UNESP). Email: apbougleux@gmail.com. Telefone: (34) 99174-0241. Lattes: http:// lattes.cnpq.br/0295264909705831 30  Professor Assistente doutor da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Campus de Franca (FCHS/UNESP). Pós-Doutorado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (2011). Doutorado em Direito pela Universidade de Coimbra (2000). Email: feranfer@uol.com.br. Lattes: http://lattes.cnpq. br/0485191470301548 46

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1. INTRODUÇÃO

decisões inseridas neste contexto, são

Há um extenso - e, destaque-se, interessantíssimo - debate acerca das fronteiras entre a condição humana e a inovação tecnológica. Ou seja, deste debate resultam interessantes questões, tais como o que caracteriza uma ação como humana em sua essência? Em que medida tais ações podem ser reproduzidas pelas inovações tecnológicas? E como utilizar as novas tecnologias em benefício do desenvolvimento social? Na literatura, como se verifica em “1984” (ORWELL, 2009) ou em “Admirável Mundo Novo” (HUXLEY, 2014), por vezes são retratados cenários distópicos, nos quais a condição humana é praticamente anulada, em nome do progresso, da padronização e do controle. Por outro lado, na realidade, os mesmos avanços elevaram a sociedade a um patamar de altíssimo desenvolvimento tecnológico, sem o qual é inimaginável a organização da vida coletiva. Assim, temse o cenário constituído de uma sociedade globalizada

e

econômica,

altamente

dependente da tecnologia científica e comunicacional, na busca do eterno aprimoramento e automatização sem fim. De todo modo, constata-se que a incorporação de novas tecnologias nos mais diversos âmbitos do cotidiano sequer pode ser denominado tendência, mas já consiste em uma realidade. Por tal razão, estando atividade judicial e respectivas Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

pertinentes as reflexões que discutam como as inovações tecnológicas podem ser utilizadas nesta atividade em prol da sociedade. Dentre tais inovações, o presente trabalho contempla a análise do uso de mecanismos de inteligência artificial para auxílio na tomada de decisão pelo julgador. No âmbito do Sistema jurídicocriminal, a discussão é de especial relevância, em razão da maior sensibilidade das questões sobre as quais se dá a atuação penal, notadamente relacionadas a violações de direitos fundamentais e afetação de bens jurídicos essenciais. Além disso, é inegável que toda imposição de pena representa uma ação organizada do Estado para, via de regra, restringir a liberdade do indivíduo. Assim, justificamse as limitações e racionalizações da atuação do poder punitivo estatal frente às diretrizes de política criminal tendentes a uma expansão da intervenção penal. Todavia, as implicações da configuração social no âmbito jurídico não podem ser desconsideradas quando da análise material do exercício de tal poder punitivo. Por isso, as atuais demandas da sociedade por segurança e controle, que, em última análise, também impulsionam o desenvolvimento tecnológico, devem ser levadas em conta para compreensão do processo de modernização da justiça penal. É certo que tais referências axiológicas coexistem no meio social

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em uma interrelação de continuidades e rupturas com a orientação teleológica constitucional. Questiona-se, então, qual ordem de valores predomina quando se está em pauta a incorporação de mecanismos computacionais,

especialmente

relacionados à inteligência artificial, no Sistema Jurídico-Penal, e a adequação de tais premissas ao fundamento do Estado Democrático de Direito. 2. DA INCORPORAÇÃO DE NOVAS TÉCNICAS AO DIREITO PENAL É comum a afirmação de que a sociedade vive um tempo de transformação, marcada pela transição do analógico para o digital. O contexto a que se refere esta afirmativa diz respeito à modificação da vida em sociedade, havendo constante introdução do que se entende por tecnologia no cotidiano. Levando-se em conta, portanto, a dependência recíproca existente entre as Ciências Jurídico-Criminais e a sociedade31, há que se atentar para as influências que sofre o Sistema de Justiça Criminal quando dessa mudança de paradigma, as quais são fruto do avanço técnico que teve início na sociedade

31  Neste sentido, Fernando Fernandes “(...) o sentido da relação existente entre modelo de estado, institucionalização de uma determinada organização social, e respectivo modelo de Direito Penal é de interferência recíproca. No que se refere à forma do relacionamento, é evidente que somente poderá ser um relacionamento dinâmico, como provam as mudanças que um modelo determina no outro, antes referidas” (2003, p. 58) 48

industrial32. Logo, em se tratando de uma sociedade econômica, globalizada, do risco e marcada pela complexidade, tornase inevitável que essas características adquiram relevância também no ambiente jurídico, especialmente em âmbito criminal. Inicialmente, a consideração das novas tecnologias pelo Direito Penal manifestou-se através dos crimes cometidos nas redes informáticas, os quais foram objeto na Convenção de Budapeste, também denominada Convenção sobre o Cibercrime, no ano de 2001. A Convenção tratou especificamente das infrações à segurança da informação (notadamente confidencialidade, integridade e disponibilidade de dados e sistemas informáticos), infrações relacionadas com os computadores (falsidade e burla informática), infrações relacionadas com o conteúdo (pornografia infantil) e infrações 32  Ao proceder-se a um exercício de regressão histórica, na história recente da humanidade, ter-se-á que a sociedade industrial foi responsável pelo aumento de produção, e consequentemente aumento do lucro, através da introdução de maquinário à cadeia produtiva. Assim, houve aprimoramento dos recursos técnicos, que levou a processos mais complexos e modificação da forma de produção. Essa modificação, decorrente do incremento da técnica, levou ao aumento exponencial dos riscos existentes na sociedade, tendo sido possibilitados os excedentes econômico e de produção. Nesse contexto, os excedentes produzidos ocasionam a ampliação do mercado de tal maneira que seja necessário romper fronteiras, provocando abertura econômica dos mercados, bem como abertura político-ideológica, de modo a gerar necessidade de experiência global, que tem por consequência a mundialização e resulta em uma sociedade fortemente econômica. Torna-se, portanto, patente admitir que os atributos de sociedade econômica, do risco e globalizada são resultados da sociedade industrial, os quais persistem na sociedade contemporânea. Para além disso, é certo que a complexidade da sociedade contemporânea resulta do complemento da técnica na sociedade industrial; cf. BAUMAN, 1999; BECK 2011; GIDDENS, 1991. 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


relacionadas aos direitos autorais e direitos conexos. No entanto, progressivamente, observou-se a manifestação da tecnologia no âmbito das Ciências Jurídico-Criminais com outra roupagem, qual seja, para além de ser meio pelo qual os delitos são cometidos, passou a ser também instrumento capaz de auxiliar a lógica de operação do próprio sistema. Desse modo, visando atribuir maior objetividade e eficácia à atividade judicial, seja com relação ao funcionamento do sistema de justiça penal, seja em relação ao procedimento investigativo ou em relação à própria tomada de decisão dos magistrados, passou-se a promover a utilização de sistemas que, através da análise de um banco de dados preexistente e valendo-se do método estatístico, auxilia na predição de eventos futuros. Assim, John Roberts, Chief Justice dos Estados Unidos, quando questionado em 2017 sobre a possibilidade de prever um dia em que smart machines, conduzidas por inteligência artificial, auxiliariam um juiz na reconstrução de um fato criminoso ou na tomada de decisão judicial, respondeu: “é um dia que está aqui” e complementou dizendo que “está colocando uma pressão significativa na forma como o judiciário trata as coisas”33. Em outros termos, é necessário fazer um alerta sobre a percepção 33  Tradução livre de “It’s a day that’s here and it’s putting a significant strain on how the judiciary goes about doing things”, cf. THE NEW YORK TIMES, 2017, online. Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

de que instrumentos de inteligência artificial são apenas matéria de ficção científica ou de um futuro longínquo. Contrariamente a esse entendimento, os sistemas de inteligência artificial compõem a vida em sociedade há anos e têm incidência cada vez mais forte. Assim, a incorporação dessas novas técnicas ao Direito é decorrência de uma revolução quantitativa e qualitativa nas operações realizadas com dados, expressas pela disponibilidade de quantidades imensas de dados, os quais são produzidos diária e massivamente em uma sociedade hiperconectada34, e pelo poder computacional sem precedentes, relacionado à alta capacidade de processamento e cada vez menores custos de armazenamento (RODRIGUES, 2020b, p. 10). Exemplificativamente, em se tratando da utilização de sistemas de inteligência artificial para auxiliar o funcionamento do sistema de justiça penal, tem-se a adoção de instrumentos de avaliação aplicados ao sistema penal britânico, como o Offences Brought to Justice (OBTJ), aplicado em 34  Hiperconectividade refere-se ao “estado de disponibilidade dos indivíduos para se comunicar a qualquer momento e tem desdobramentos importantes. Podemos citar alguns: o estado em que as pessoas estão conectadas a todo momento (always-on); a possibilidade de estar prontamente acessível (readily accessible); a riqueza de informações; a interatividade; o armazenamento ininterrupto de dados (always recording). O termo hiperconectividade está hoje atrelado às comunicações entre indivíduos (person-to-person, P2P), indivíduos e máquina (human-to-machine, H2M) e entre máquinas (machine-to-machine, M2M) valendo-se, para tanto, de diferentes meios de comunicação. Há, nesse contexto, um fluxo contínuo de informações e massiva produção de dados.”; cf. MAGRANI, 2018, p. 21. 49


âmbitos policial e jurisdicional para fins de avaliar a quantidade de ilícitos detectados, investigados e levados aos órgãos de jurisdição penal, bem como estabelecer metas anuais de investigações procedidas pela polícia (BRANDARIZ GARCIA, 2016, p. 193).

se capaz de atribuir maior confiança à política criminal35, sendo essa confiança intrinsecamente ligada à atuação do poder judiciário e não mais aos poderes públicos como um todo (RODRIGUES, 2020a, p. 266). Importa, portanto, elucidar o que se entende por inteligência artificial.

Quanto aos sistemas capazes de apoiar os procedimentos investigativos, cita-se, dentre inúmeros existentes, a tecnologia desenvolvida pelo Departamento de Polícia de Los Angeles, em parceria com a Universidade da Califórnia, denominada PredPol, pautada em uma forma de policiamento preditivo baseado no lugar, que objetiva apontar locais com maior probabilidade de ocorrerem novos crimes (BRAGA, 2020, p. 696/670).

A inteligência artificial (IA) é tida como um artefato capaz de raciocinar ou agir, visando desempenho análogo ao de um ser humano ou em busca de um ideal de inteligência (RUSSEL, NORVIG; 2013; p. 2). De modo mais específico, nos termos do Grupo de peritos de alto nível sobre a inteligência artificial (GPAN IA), sistemas de inteligência artificial são:

Por fim, no que diz respeito aos instrumentos que auxiliam a tomada de decisão judicial, destacam-se os sistemas denominados Correctional Offender Management Profiles for Alternative Sanctions (COMPAS), desenvolvido por uma empresa norte-americana, e o Level of Service Inventory-Revised (LSI-R), desenvolvido por uma empresa canadense. Ambos funcionam como mecanismos de avaliação de risco, programados para apontar a probabilidade de reincidência ou predizer comportamento criminoso, e são utilizados com o objetivo de apoiar a elaboração da sentença pelo magistrado (RODRIGUES, 2020b, p. 15). Nesse contexto, a inteligência artificial, enquanto fruto do avanço técnico na sociedade contemporânea, mostra50

sistemas de software (e eventualmente também de hardware) concebidos por seres humanos, que, tendo recebido um objetivo complexo, atuam na dimensão física ou digital percebendo o seu ambiente mediante a aquisição de dados, interpretando os dados estruturados ou não estruturados recolhidos, raciocinando sobre o conhecimento ou processando as informações resultantes desses dados e decidindo as melhores ações a adotar para atingir o objetivo estabelecido. (GPAN IA, 2018, p.47) Ciente do caráter instrumental e 35  Erik Fontenele Nybo aponta que na sociedade em que as máquinas aparentemente demonstram ser mais confiáveis do que a natureza humana, sendo inclusive capazes de orientar as pessoas a tomarem decisões, opera o governo dos algoritmos, denominado algocracia; cf. NYBO, 2019, p. 9. 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


abrangente da inteligência artificial, e, portanto, sem ignorar as diversas formas de incorporação da IA no Direito Penal, o presente artigo propõe reflexão acerca da utilização de sistemas que oferecem algum substrato de análise aos magistrados quando do proferimento de decisões judiciais36. Nesse contexto, a análise de um banco de dados previamente existente realizada por um sistema computacional anteriormente programado é capaz de, através de uma lógica valorativa e análise quantitativa, influenciar de forma categórica questões importantes na vida de um indivíduo, especialmente relacionadas à sanção penal arbitrada.

alimentados, treinados e validados, os sistemas de IA passam a atuar de modo autônomo, pautando as decisões no objetivo previamente estabelecido.

Necessário esclarecer, portanto, que instrumentos técnicos capazes de auxiliar o funcionamento do sistema penal são cada vez mais adotados. Frise-se que resta superada a dúvida sobre a capacidade dos sistemas de inteligência artificial atuarem sob lógica valorativa, especialmente diante da capacidade de aprendizagem cumulativa que possuem, segundo a qual “os agentes de aprendizagem melhoram sua habilidade de aprender à medida que adquirem mais conhecimento” (RUSSEL, NORVIG; 2013; p. 680). Assim, uma vez

O recurso à análise de dados e algoritmos, baseados em variáveis atinentes à pessoa, quer pelo que diz respeito à sua história (registro criminal ou tipo de crimes cometidos) quer às suas características sociodemográficas (idade, gênero ou situação profissional), e a aplicação de IA à política punitiva permitem a tomada de decisões, designadamente e para o que aqui interessa, na determinação da medida concreta da pena baseadas no risco de reincidência do agente (RODRIGUES, 2020a, p. 272)

36  Destaque-se que não se trata dos denominados “juízes robôs”, sistemas de IA capazes de elaborar “boas decisões judiciais”, os quais seriam responsáveis pelo processo decisório em sua integralidade, como ocorre na Estônia com relação a litígios de menor complexidade e menor valor econômico envolvido. Sobre os Juízes Robôs, Luís Greco pondera sua possibilidade fático-descritiva, mas impossibilidade normativo-prescritiva, por haver ausência de responsabilização desses sistemas com relação às decisões proferidas, fato que colidiria frontalmente com a dignidade da pessoa humana, notadamente dos jurisdicionados; cf. GRECO, 2020, online. Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

A

análise que ora se propõe está relacionada aos sistemas que, baseados em dados da vida pregressa de determinado indivíduo (dados contidos em registros oficiais) e dados fornecidos voluntariamente (dados de consulta aberta ou obtidos por meio de questionário), geram análise estatística de probabilidade e risco, pautados em comportamentos de grupos sociais que possuem perfil análogo, bem como em teorias voltadas para esses grupos. Em outras palavras, tem-se:

Nesse contexto, esses instrumentos de avaliação de risco (risk assessment tools) encontram-se diretamente relacionados a um ideal de eficácia, vez que possuem maior capacidade de processamento e armazenament o, bem como objetividade 51


e neutralidade, pois são supostamente livres da subjetividade e emoções humanas, e, portanto, mais racionais. É nesse sentido que Anabela Miranda Rodrigues aponta para o desenvolvimento de uma racionalidade penal marcadamente tecnocrática e de cunho economicista, que absorveu muito da política criminal de filiação norte-americana (2020a, p. 272). Assim, na conjuntura em que sistemas de IA geram relatórios de avaliação de risco sobre indivíduos que estão sendo julgados e classifica-os conforme a probabilidade de reincidência, torna-se praticamente inevitável a influência no processo decisório dos magistrados. Nesse sentido, aponta-se que o ser humano tende a atribuir maior credibilidade a avaliações empíricas quando comparado a evidências não empíricas, além de não ser usual que indivíduos desafiem recomendações algorítmicas (HARVARD, 2017, p. 1536). A inevitável influência destas alternativas no processo decisório do juízo coloca em pauta o princípio do juiz natural, expresso, no Ordenamento Jurídico brasileiro, pelo art. 5º, XXXVII e LIII da Constituição Federal, que consagram “não haverá juízo ou tribunal de exceção”, bem como “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. Além disso, põe-se em questão a individualização e o processo de dosimetria da pena, quando da análise de questões pessoais do réu, bem como o princípio da legalidade, caros ao Direito Penal material. Por fim, o direito

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processual penal também poderá ser suscitado, especialmente em se tratando do devido processo legal, contraditório e ampla defesa. Assim, uma série de ressalvas deve ser feita com relação à utilização desses sistemas de IA para fins de auxílio na tomada de decisão judicial, não somente com relação aos atributos de eficiência, objetividade e neutralidade, mas também à lógica de valoração exercida. Importa, portanto, que a incorporação de tecnologias às Ciências JurídicoCriminais seja feita de forma refletida e comedida, frente ao risco de acabar por afetar diretamente direitos e garantias fundamentais de ordem material e processual penal, sentido no qual propõese reflexão acerca da lógica valorativa atrelada ao processo de incorporação de inteligência artificial no Direito Penal para fins de auxiliar a tomada de decisão judicial37. 3. FATORES QUE LEGITIMAM A INCORPORAÇÃO DE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NO DIREITO PENAL A expansão do uso da inteligência artificial no âmbito jurídico - e todos os demais campos da vida contemporânea - leva a questionamentos no que tange 37  A título elucidativo, conforme exposto, o objeto de análise do presente estudo é a utilização de sistemas automatizados produtores de relatórios de avaliação de risco e que de algum modo influenciam o processo decisório do magistrado, portanto, sem ignorar a abrangência do termo, as menções a “inteligência artificial” neste artigo são majoritariamente referentes aos mencionados sistemas. 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


à compatibilidade e a adequação desta opção, buscando-se alternativas para que a incorporação das tendências tecnológicas seja feita de forma correta. É certo que esta introdução não pode ser orientada unicamente por critérios pragmáticos e eficientistas, os quais podem conflitar com a racionalidade jurídica esperada do Sistema jurídico-criminal, ou com a identidade social firmada pelo modelo de Estado adotado. Algumas inovações tecnológicas, além da tradicional ideia de automação e redução de custos, trazem promessas de maior objetividade, imparcialidade, precisão e certeza. Os mecanismos de inteligência artificial são instrumentos, então, pensados para imitar a racionalidade humana e, ainda, melhorála pela eliminação das falhas cognitivas e erros próprios da condição humana. Todavia, a absoluta neutralidade no Direito não pode ser mais que ilusão retórica, tendo em vista que, invariavelmente, opera-se com juízos valorativos. No âmbito jurídico-criminal, a questão torna-se ainda mais evidente, na medida em que o Direito Penal, como agência de controle social formal, ocupase apenas das mais graves violações aos bens jurídicos penalmente protegidos. Ou seja, de antemão, verifica-se que há um juízo valorativo no fundamento da organização jurídico-criminal, seja com relação à hierarquização dos bens jurídicos, para seleção daqueles que são penalmente relevantes, seja com relação

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à limitação do Direito Penal às violações mais graves. A interpretação no âmbito das Ciências sociais aplicadas, enquanto integrantes das Ciências culturais ou, do espírito – como então eram denominadas –, em uma perspectiva valorativa foi mais desenvolvida a partir da metodologia Neokantista liberal do início do Século XX, baseada na referência da realidade a valores38. Esta abordagem metodológica foi uma reação à postura antifilosófica que havia surgido na segunda metade do Século XIX, de forma a evidenciar um retorno à filosofia por meio da referência a valores (MIR PUIG, 2003). Conforme explica Silva-Sánchez, tais valores não eram previamente dados da realidade, mas sim inerentes ao processo de conhecimento e, portanto, dependentes do sujeito observador: Pois bem, por um lado, a dimensão de valor de uma realidade, o cultural, o que lhe atribui um sentido, surge dentro do próprio processo de conhecimento; não está presente naquela realidade de modo prévio. Por outro lado, os processos de conhecimento se mostram diretamente condicionados por circunstâncias históricas e particulares de cada sociedade, não 38  Neste sentido, Karl Larenz conceitua valor como: “Os valores são reguladores, quer dizer, não são objetivos concretos da vida e da atividade, mas constituem padrões abstratos pelos quais hão de ser aferidos e orientados na vida todos os fenômenos dentro dos domínios da cultura que lhes dizem respeito” (LARENZ, 1997, p. 137) 53


podendo a ideia kantiana acolherse de uma “consciência em geral” (SILVA-SÁNCHEZ, 1992, p. 56, tradução livre)39 Diferenciava-se, sobretudo, das ciências da natureza, cujo método científico fundava-se, principalmente, no conhecimento empírico, ou seja, na observação da realidade tal como se apresentava. Por isso, Karl Larenz afirma que o objeto de análise das ciências naturais não seria passível de compreensão, apenas de percepção, ao passo que, nas ciências da cultura, abrese espaço para aporte das estruturas de sentido a partir da referência a valores (LARENZ, 1997). Isto demonstra como a metodologia neokantista, inclusive pela melhor separação entre o objeto das ciências da cultura e da natureza, dá início à superação do positivismo naturalista. Contudo, a problemática do neokantismo foi justamente a ausência de indicação expressa dos valores que deveriam orientar o processo de conhecimento, deixando tal escolha exclusivamente ao sujeito observador, tendo em vista que não havia uma classe de valores universais nem absolutos. Dessa forma, tem-se um relativismo axiológico ou subjetivismo epistemológico, que 39  “Ahora bien, por un lado, la dimensión de valor de una realidad, lo cultural, lo que le atribuye un sentido, surge en el seno del propio proceso de conocimiento; no está presente en aquella realidad de modo previo. Por otro lado, los procesos de conocimiento se muestran directamente condicionados por circunstancias históricas y particulares de cada sociedad, no pudiendo acogerse la idea kantiana de una ‘conciencia en general’” (SILVA-SÁNCHEZ, 1992, p. 56) 54

suscitou diversas críticas posteriormente, porque condicionava o resultado do processo de conhecimento às escolhas valorativas individuais (SILVA-SÁNCHEZ, 1992). Transpondo tal cenário para o âmbito jurídico, tem-se que o Direito faz parte das chamadas “Ciências Sociais Aplicadas” e, portanto, integrava a categoria das ciências culturais. Assim, o sentido das normas jurídicas deveria ser compreendido a partir da “ideia de Direito” ou, conforme Gustav Radbruch, deveria expressar a realização do fim último de seu sentido, qual seja servir à justiça (LARENZ, 1997). Em outras palavras, os conceitos e institutos do Direito deveriam se reportar à orientação teleológica do sistema, de forma que reproduzissem os valores axiológicos de justiça, ou da ideia de Direito. Entretanto, a abstração teleológica e o relativismo axiológico permitem aportes de critérios subjetivos quanto à percepção da realidade e, consequentemente, surgem espaços para interpretações arbitrárias e, possivelmente, autoritárias acerca dos fins da justiça e do Direito. É neste sentido que se dá a crítica de Zaffaroni ao método neokantiano: Para os neokantianos, aquilo que põe ordem no mundo e o faz disponível é o valor, que permite localizar cada entidade em seu lugar. À pergunta: o que são os valores? respondem que os valores não são, mas sim valem.

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Ficaria pendente saber para quem valem ou quem faz que valham – pelo menos no campo dos valores jurídicos –, e a resposta poderia ser talvez para quem os impõe, questão central da axiologia, referida à objetividade e à subjetividade dos valores, que não discutimos agora, mas é mister advertir que o neokantismo não tem outro remédio a não ser sustentar a tese da objetividade (ZAFFARONI, 2019, p. 131) Em que pese as necessárias e pertinentes críticas ao neokantismo, há que se ressaltar seus méritos, sobretudo ao evidenciar que este desenvolvimento epistemológico chamou atenção para as “referências valorativas da construção conceitual no Direito penal, e a caracterização destes valores como fatores não inerentes ao objeto, nem absolutos, nem universais ou imutáveis, mas sim condicionados subjetivamente e culturalmente” (SILVA-SÁNCHEZ, 1992, p. 57). Posteriormente, é justamente a permissividade axiológica herdada do neokantismo que constitui uma das bases de desenvolvimento do Funcionalismo racional teleológico, uma das correntes doutrinárias que adquiriu status significativo nos últimos tempos. Atualmente, tendo por base uma opção epistemológica de um Sistema jurídico-penal que opere a partir da confluência entre política criminal, criminologia e dogmática, defende-se que

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é a política criminal a responsável por dar o sentido dos critérios valorativos aplicados ao problema e à estrutura punitiva estatal, de acordo com os fins do direito penal, notadamente quanto à proteção de bens jurídicos. No contexto do Estado Social e Democrático de Direito, que tem por fundamento a proteção e promoção da dignidade humana, esta função transsistemática e valorativa deve refletir a ordem axiológica constitucional (DIAS, 1999). No mesmo sentido, tem-se a posição segundo a qual: Conservando a sua posição de plena autonomia, a política criminal deve ser transcendente em relação às demais ciências criminais, tornandose trans-sistemática, de modo que entre ela e a dogmática jurídico-penal se estabeleça uma autêntica relação de unidade funcional (...) Ou seja, se a política criminal é trans-sistemática em relação ao Direito Penal, ela deve ser imanente à concepção de Estado plasmada na Constituição (FERNANDES, 2001, p. 35) Assim, é importante ressaltar que o termo “política criminal”, aqui, não faz referência ao que comumente é interpretado como estratégia de repressão pelo recrudescimento punitivo, mas sim no sentido contemporâneo referente ao “conjunto dos procedimentos pelos quais o corpo social organiza as respostas ao fenômeno criminal” (DELMAS-MARTY, 2004, p. 3). Neste sentido, tais intervenções 55


podem ser de diversas naturezas, como relacionadas a sanções administrativas, procedimentos restaurativos e, inclusive, jurídico-criminais. Da mesma forma, Roxin afirma que “(...) a política criminal, que se importa com os conteúdos sociais e fins do direito penal, encontra-se fora do âmbito do jurídico” (2002, p. 12). O objeto da política criminal, portanto, não é apenas o delito, tradicionalmente definido como fato típico, ilícito e culpável, mas também fenômenos de patologia social que estão relacionados ao aumento da criminalidade, como a marginalidade social, a violência simbólica, a seletividade do sistema penal, dentre outros. E é justamente este aspecto da política criminal que a relaciona com o modelo de Estado plasmado na Constituição, pois é nesta que se encontra a referência teleológica para o desenvolvimento social e jurídico. Dessa forma, a realidade contemporânea, no recorte espacial do Ocidente, está predominantemente organizada em torno do Estado material Social e Democrático de Direito, o que significa: Sob esta designação quero compreender todo o Estado democrático e social que mantém intocada a sua ligação ao direito, e mesmo a um esquema rígido de legalidade, e se preocupa por isso antes de tudo com a consistência efetiva dos direitos, das liberdades e das garantias da pessoa; mas que, 56

por essa razão mesma, se deixa mover, dentro daquele esquema, por considerações de justiça na promoção e na realização de todas as condições - políticas, sociais, culturais, econômicas - do desenvolvimento mais livre possível da personalidade ética de cada um (DIAS, 1999, p. 33) Na Constituição Brasileira, o compromisso democrático com a dignidade humana e os princípios jurídicocriminais conduzem à conformação de um sistema penal de ultima ratio para proteção de bens jurídicos penalmente relevantes, de forma que a intervenção estatal deve se limitar ao mínimo necessário e apenas quando insuficientes ou inadequados os demais meios de proteção não-penais. Trata-se dos tradicionais critérios da fragmentariedade e subsidiariedade a que deve ser submetida a análise a respeito da intervenção penal. Assim, todo instituto e instrumento de direito penal deve ser submetido a um juízo valorativo para verificar a adequação ou não às diretrizes de política criminal constitucionalmente estabelecidas, sob pena de ilegitimidade do exercício do poder punitivo. A referência constitucional à dignidade da pessoa humana impõe às estruturas jurídico-criminais que “a supressão ou restrição de algum direito inerente a esta última somente será possível na medida da necessidade para a proteção de um outro direito” (FERNANDES,

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2003, p. 66). Portanto, o fundamento democrático da política criminal remete necessariamente à observância de três critérios fundamentais ao sistema penal: proporcionalidade - jamais equivalência nesta relação entre restrição e proteção de direitos, o que deve repercutir tanto nas normas de direito material quanto de direito processual penal; necessidade de utilização do meio mais gravoso pela ausência de outros meios aptos a tal proteção; e idoneidade, relativo à adequação da tutela penal na proteção de um bem (FERNANDES, 2003). Esta configuração do sistema jurídico-penal em consonância com as diretrizes do Estado Democrático de Direito é, evidentemente, resultado do processo histórico de desenvolvimento do Estado (passando pelo Estado Liberal e, posteriormente, pelo Estado Social), bem como das construções epistemológicas relacionadas às ciências criminais e à hermenêutica jurídica. Demonstra-se, portanto, que o Direito, notadamente o Direito Penal, é fruto do contexto histórico, cultural, político e socioeconômico, em uma relação de mútua referência com as normas jurídicas40. Neste mesmo sentido, Jakobs afirma: (...) é impossível dissociar o Direito penal da sociedade; o Direito penal constitui um cartão de apresentação da sociedade altamente expressivo, 40  Especificamente sobre as implicações históricas no desenvolvimento dogmático, cf. ZAFFARONI, 2002. p. 447467. Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

da mesma forma que sobre a base de outras partes da sociedade é possível extrair conclusões bastante fiéis sobre o Direito penal. Por exemplo, que se imponha a pena máxima por bruxaria, por contar piadas sobre o Führer ou por assassinato, caracteriza a ambos, ao Direito penal e à sociedade (JAKOBS, 1996, p. 22, tradução livre).41 Sendo assim, em que pese as limitações normativas-axiológicas impostas ao Sistema jurídico-penal, sobretudo relacionadas a princípios constitucionais e valorações políticocriminais, é certo que também há uma via de influência na conformação do direito penal que parte da sociedade e atinge as estruturas normativas. Ou seja, há uma inegável projeção das características da sociedade contemporânea no Sistema jurídico-penal, a qual pode ser positiva no sentido de atualização e adequação normativa na compreensão das estruturas sociais; mas, por outro lado, pode se apresentar como problemática, se e quando conflitar com as referidas limitações. Nesse sentido, Silva Sánchez destaca a existência de uma tendência 41  “(...) es imposible desgajar al Derecho penal de la sociedad; el Derecho penal constituye una tarjeta de presentación de la sociedad altamente expresiva, al igual que sobre la base de otras partes de la sociedad cabe derivar conclusiones bastante fiables sobre el Derecho penal. Por ejemplo, que la pena máxima se imponga por brujería, por contar chistes sobre el Führer o por asesinato, caracteriza a ambos, al Derecho penal y a la sociedad” (JAKOBS, 1996, p. 22) 57


de expansão do direito penal nos ordenamentos jurídicos atuais, sobretudo relacionada a novas tipificações e maior recrudescimento punitivo, bem como “criação de novos bens jurídico-penais, ampliação dos espaços de riscos jurídicopenalmente relevantes, flexibilização das regras de imputação e relativização dos princípios político-criminais de garantia” (SILVA SÁNCHEZ, 2002, p. 21). Apesar de o direito penal ser o instrumento de maior severidade à disposição do Estado, é indispensável ressaltar que a motivação para o seu uso não reside unicamente em uma política estatal punitivista, mas também denota uma demanda social por proteção e segurança. No

que

contemporânea,

tange

à

portanto,

sociedade importa

destacar alguns elementos e características a partir dos quais já se evidenciam implicações em termos jurídico-criminais, tendo em vista a conformação de novos interesses ou novas valorações sobre interesses preexistentes. Primeiramente, aponta-se

o

contexto

da

chamada

modernidade reflexiva, a qual representa a efetiva passagem da sociedade industrial, marcadamente alicerçada no progresso tecnológico e científico, para a sociedade do risco, na qual se vivenciam os riscos, os efeitos colaterais ou reflexos deste progresso na conformação as relações sociais, políticas e econômicas. Assim, o risco corresponde à incerteza e desafia as premissas científicas

58

de racionalização, uma vez que coloca em xeque a capacidade do ser humano de prevê-lo e controlá-lo. Ao acrescer a este cenário o fenômeno da globalização, no qual a sociedade encontra-se integrada e conectada, o risco adquire dimensões mundiais e torna-se independente das fronteiras que delimitam o espaço do Estado moderno. Em outras palavras, Anthony Giddens explica: A globalização – que é um processo de desenvolvimento desigual que tanto fragmenta quanto coordena – introduz novas formas de interdependência mundial, nas quais, mais uma vez, não há ‘outros’. Estas, por sua vez, criam novas formas de risco e perigo ao mesmo tempo em que promovem possibilidades de longo alcance de segurança global (GIDDENS, 1991, p. 190) Os riscos, portanto, estão distribuídos no mundo, não são delimitáveis e podem afetar a todos os cidadãos. Além disso, são ameaças de procedência humana, são falhas técnicas do progresso científico e não meros acasos da natureza, o que reforça, neste sentido, as demandas inesgotáveis por novas fontes de controle, previsão e segurança. Há, assim, um aparente paradoxo42, mas que, na 42  É importante ressaltar o elemento econômico que contribui para a perpetuação do paradoxo: “eles surgem sobretudo da ambivalência dos riscos na sociedade de mercado desenvolvida: os riscos não são nesse caso apenas riscos, são também oportunidades de mercado. É precisamente com o avanço da sociedade de risco que se desenvolvem como decorrência as oposições entre aqueles 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


realidade, retroalimenta-se em uma espiral ascendente: o progresso tecnológicocientífico traz novos riscos, os quais demandam mais progresso tecnológicocientífico para serem controlados. Certamente, como consequência da maior vivência subjetiva dos riscos (que, sem dúvidas, é superior a sua própria existência objetiva), aponta-se a constante e infindável demanda por segurança, a qual desagua - não apenas, mas em grande medida - no Estado e no Direito Penal (SILVA SÁNCHEZ, 2002). Dessa forma, os fatores risco, segurança e globalização parecem ser elementos centrais no direcionamento do Sistema jurídico-criminal para uma abordagem eficientista da criminalidade. Ao fazer uma comparação entre sociedade industrial, fundada no paradigma da sociedade de classes, e a pós-industrial, sendo esta marcada pelos riscos e pela reflexividade, Ulrich Beck demonstra de forma muito evidente como tais paradigmas influenciam nas configurações axiológicas e normativas: Dito de maneira esquemática, sistemas axiológicos inteiramente diversos são alavancados nesses dois tipos de sociedades modernas. Em sua dinâmica evolutiva, as sociedades de classes continuam referidas ao ideal da igualdade (em suas várias formulações, da ‘igualdade de que são afetados pelos riscos e aqueles que lucram com eles” (BECK, 2011, p. 56) Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

oportunidade’ até as variantes de modelos socialistas de sociedade). Não é o caso da sociedade de risco. Seu contraprojeto normativo, que lhe serve de base e de impulso, é a segurança. O lugar do sistema axiológico da sociedade “desigual” é ocupado assim pelo sistema axiológico da sociedade “insegura”. Enquanto a utopia da igualdade contém uma abundância de metas conteudístico-positivas de alteração social, a utopia da segurança continua sendo peculiarmente negativa e defensiva: nesse caso, já não se trata de alcançar efetivamente algo “bom”, mas tão somente de evitar o pior. O sonho da sociedade de classe é: todos querem e devem compartilhar do bolo. A meta da sociedade de risco é: todos devem ser poupados do veneno (BECK, 2011, p. 59-60) Nesse contexto, a tendência tecnocrática, decorrente da progressiva confiança depositada nos instrumentos técnicos, somada às principais características da sociedade contemporânea acaba por eleger a segurança como fator fundamental para legitimar a introdução de sistemas de inteligência artificial nas Ciências JurídicoCriminais. A crescente busca por maior previsibilidade e segurança pode ser expressa por um anseio irrefletido, que permite a incorporação de técnicas de forma arriscada e imponderada, contexto no qual a sociedade estaria disposta a 59


ceder liberdade em troca de segurança (RODRIGUES, 2020a, p. 269). Assim, a extrema valorização (e constante necessidade) da segurança constitui fator fundante da sociedade contemporânea, ainda que as ameaças não estejam completamente desvendadas. Nesse sentido, Bauman e Lyon afirmam que “os principais meios de obter segurança, ao que parece, são as novas técnicas e tecnologias de vigilância, que supostamente nos protegem, não de perigos distintos, mas de riscos nebulosos e informes” (2013, p. 95). O desenvolvimento dos instrumentos de inteligência artificial surge, portanto, com os propósitos de redução de custos do poder público, melhorar a capacidade de processamento e aproveitamento dos dados à disposição das instâncias de controle e, consequentemente, atribuir maior confiança à política criminal. Assim, os governos buscam inovações como forma de aprimoramento de sua atuação, sendo a tecnologia não apenas instrumento para exercício do poder, mas também modificadora das relações de poder e dos limites de governabilidade (NYBO, 2019, p. 9). Isto posto, sendo irrefreável a tendência da incorporação destes mecanismos no funcionamento do sistema de justiça criminal, a questão do tempo presente é como harmonizálos com os fundamentos democráticos, sem que configurem mero utilitarismo ou gerencialismo empírico das demandas contemporâneas.

60

Retoma-se, então, a questão das finalidades político-criminais que devem ser consideradas quando se tem em mente a lógica valorativa a ser introduzida pelos mecanismos de inteligência artificial. A abordagem neokantista esclarece que o sistema jurídico-penal, quando dissociado de seu fundamento político e do respectivo modelo de Estado, pode ser instrumentalizado para os mais diversos fins e permeado por diferentes referenciais axiológicos. Por outro lado, a Constituição Federal estabelece como limites indisponíveis os princípios de garantias fundamentais e dignidade da pessoa humana, os quais devem ser levados em conta indispensavelmente quando da incorporação de novos elementos à sistemática Jurídico-Criminal.

4. DOS RISCOS PARA O SISTEMA JURÍDICO-PENAL Os diferentes valores que podem figurar na base das propostas relativas à introdução de mecanismos de Inteligência Artificial no Direito Penal possuem implicação direta com o Estado Democrático de Direito e a consequente manutenção da racionalidade do sistema jurídico-criminal. É certo que as demandas contemporâneas contribuem para a reconfiguração da estrutura axiológica, sobre a qual estão edificados os pressupostos constitucionais democráticos, mas é preciso que sejam mantidos os parâmetros mínimos que caracterizam o regime político estatal. 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


Quanto à utilização dos mecanismos de inteligência artificial para auxílio à tomada de decisão judicial, por não ser - ainda - algo presente na realidade brasileira, há uma dificuldade maior em se fazer prognósticos sobre sua aplicação prática. Todavia, isto não diminui a premente necessidade de se estabelecer as limitações deste processo, bem como evidenciar a quais riscos está submetida tal utilização. No âmbito jurídico-penal, tais reflexões adquirem especial relevância por se tratar de um instrumento normativo que lida com as mais graves violações a direitos, bem como possui legitimidade para intervir na esfera de liberdade dos cidadãos. No que tange ao processo penal: Afirma-se, pois, que, em linha de princípio, o código de rito (Código de Processo Penal) não é, e não pode ser, uma série de “técnicas” de actuação do Direito Penal, neutra em relação às escolhas político-criminais que neste se exprimem, segundo a ideia de mera instrumentalidade do processo penal (...) (FERNANDES, 2001, p. 69) Dessa forma, não há que se questionar o papel fundamental desempenhado pelo juiz para a efetivação das normas de ordem processual, sobretudo no que tange à supervisão das partes e à garantia dos direitos fundamentais do réu (e dos demais envolvidos na relação processual). Conforme Ferrajoli, há duas espécies de garantias quanto ao juiz, as garantias

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orgânicas, que dizem respeito à posição institucional do poder judiciário com relação aos demais poderes e as partes no processo, e as garantias procedimentais, relativas a aspectos probatórios e de formação do juízo (FERRAJOLI, 2002). No que tange às garantias orgânicas, estas compreendem princípios como a independência, a imparcialidade, o juiz natural e demais elementos que caracterizam o modelo acusatório de separação entre juiz e acusação. Por outro lado, as garantias procedimentais visam proteger o princípio processual de livre-conhecimento e formação da livre-convicção do juiz, portanto abarcam o ônus da prova, o princípio do contraditório, a motivação dos atos judiciários, a publicidade, dentre outros (FERRAJOLI, 2002). Tal sistema de garantias visa preservar o devido processo legal e asseverar um processo justo de base democrática. Assim, a lógica de introdução dos mecanismos de inteligência artificial não pode unicamente ser fundamentada em celeridade e eficientismo, tendo em vista a existência de condicionantes garantistas essenciais para o sistema democrático e para o processo acusatório. Modificações estruturais com base em razões de pragmatismo e utilitarismo por vezes fazem eco à lógica de que direitos e garantias fundamentais são obstáculos à persecução penal e à justiça, quando, na verdade, a observância a tais limites é o próprio fundamento de legitimidade da intervenção punitiva. 61


Como pode ser observado pelo funcionamento dos sistemas de auxílio à tomada de decisão, os quais operam para avaliar riscos ou valorar comportamentos visando prever possíveis casos de reincidência, há que se ter de forma clara em que medida tais sistemas são compatíveis com o princípio da presunção de inocência, por exemplo. Alimentar tais sistemas com dados do réu, parece flertar com um direito penal do autor, de modo que marca um contrassenso no caminho de evolução epistemológica do sistema jurídico-penal. Importa destacar, nesse mesmo sentido, que a incorporação desses sistemas à lógica jurídico-penal revela impacto significativo sobre os direitos fundamentais,

especialmente

em

se

tratando de privacidade, proteção de dados pessoais, não discriminação e igualdade (RODRIGUES, 2020b, p. 28), havendo ampla discussão acerca da

há que se elevar atenção para o dever de fundamentação das decisões, publicidade dos atos e livre convencimento. Introduzidos sob a expectativa de causarem impacto positivo no Sistema de pela

Justiça

Criminal,

racionalização

e

do

justificados processo

de

determinação da medida concreta da pena, os sistemas de inteligência artificial acabam por levantar objeções relevantes. Cite-se, nesse sentido, a opacidade inerente

ao

funcionamento

desses

sistemas, uma vez que sendo em sua maioria produtos de empresas privadas, seu procedimento por vezes é protegido por segredo industrial. Assim, não haveria possibilidade de avaliar a ponderação feita sobre os dados analisados, tampouco validar os resultados obtidos, sentido no qual se impõe “obstáculo ao controlo público da decisão a que o julgador chega” (RODRIGUES, 2020a, p. 274). Outra

afetação de direitos constitucionais, para

objeção

versa

sobre

contrariar

uma

além de direitos de ordem material e

a

processual. Cite-se, de pronto, questões

recomendação gerada por sistemas de

relacionadas ao devido processo legal,

inteligência artificial, bem como a suposta

contraditório e ampla defesa, bem como individualização e dosimetria da pena . 43

Além disso, em se tratando da atividade de elaboração da sentença pelo magistrado,

dificuldade

de

desresponsabilização

do

magistrado

com relação à decisão proferida, vez que pautada em avaliação teoricamente mais racional e objetiva. Por fim, mas sem a pretensão de esgotar a questão, existe

43  Colocados em discussão no célebre caso State v. Loomis, julgado nos Estados Unidos da América, no qual o Tribunal de Wisconsin foi provocado pela oposição do direito ao due process e individualização da decisão em detrimento do segredo industrial pelo qual estava protegido o software produtor da avaliação de risco; cf. HARVARD, 2017, online. 62

o empecilho da reprodução de preceitos discriminatórios inerentes ao banco de dados ou à lógica de programação do próprio sistema; também nesse ponto 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


encontra-se o equívoco de considerar

Por sua vez, as tentativas de

o funcionamento desses sistemas, bem

superação das objeções colocadas à

como os seus produtos, como neutros.

inteligência

Nesse sentido reside a problemática em se considerar que a inteligência artificial em qualquer caso seria capaz de solucionar controvérsias intrínsecas ao Sistema de Justiça Criminal, como decisões

pautadas

em

convicção

puramente pessoal ou emocional. Há que se ponderar que as tentativas de estruturar uma racionalidade jurídica tem papel importante em Estados Democráticos, justificadas pela inexistência de espaço para que a convicção subjetiva do magistrado seja critério para resolução de conflitos (RODRIGUES, 2020a, p. 284), entretanto, a discricionariedade

artificial

dizem

respeito

ao estabelecimento de princípios para utilização (CEPEJ, 2018) ou requisitos para que se possa considerar um sistema de IA confiável (GPAN IA, 2019). Nesse contexto, a introdução de inteligência artificial no direito justamente com a finalidade de atribuir maior confiança e segurança enseja discussões sobre o uso ético dos próprios sistemas de IA44. Assim, a Carta Ética Europeia sobre o uso da Inteligência Artificial em sistemas judiciais cuidou de estabelecer princípios para

a

utilização

desses

sistemas,

quais sejam, o respeito aos direitos fundamentais, a não discriminação, a qualidade e segurança, a transparência,

do juízo, ainda que realizada sob a égide

imparcialidade e fairness e a utilização sob

de determinados marcos normativos

controle do usuário.

e principiológicos, é capaz de garantir uma prestação jurisdicional conciliada à realidade fática.

automática,

concebê-lo

como tal significa fazer dele uma máquina cega, presa da estupidez ou, pior, dos interesses e dos condicionamentos de poder mais ou menos ocultos e, em todo caso, favorecer

introdução de novas técnicas às Ciências Jurídico-Criminais encontra objeções e

(...) em nenhum sistema o juiz é uma máquina

Diante do exposto, é certo que a

sua

riscos delas decorrentes, especialmente no que diz respeito à afetação de direitos fundamentais. Alguns autores ponderam, portanto, que o fenômeno ora retratado, expresso por um esforço para racionalizar a determinação da medida da pena em busca de maior coerência, não é atividade recente (RODRIGUES, 2020a, p. 281).

irresponsabilidade

política e moral (FERRAJOLI, 2002, p. 140)

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44  Fato que coloca em pauta o paradoxo trazido acima no texto, segundo o qual “o progresso tecnológico-científico traz novos riscos, os quais demandam mais progresso tecnológico-científico para serem controlados”. 63


Entretanto, o que se observa na prática é o aumento das demandas no âmbito da justiça criminal, bem como o incremento da

população

prisional,

inexistindo

reflexos positivos apurados dessa busca por maior racionalidade e eficiência. Por fim, é necessário destacar que os riscos retratados não constituem tão somente problemas de tecnologia, mas de Política Criminal, no sentido material dos usos que são feitos do poder punitivo. É a política, não é a tecnologia – no caso, a orientação política criminal em que esta se inscreve – que é responsável por criar um sistema de justiça penal fortemente punitivo ou seletivo. Transformar este sistema é uma tarefa política, não tecnológica (RODRIGUES, 2020a, p. 282)

O desenvolvimento tecnológico é elemento fundamental de organização da sociedade contemporânea. Nesse sentido, há uma série de novas tecnologias a serem utilizadas no âmbito jurídico-penal pelas agências de controle, que buscam otimizar os resultados da investigação ou da persecução penal. Os mecanismos de inteligência artificial estão inseridos neste contexto e fazem eco aos valores da sociedade contemporânea, quais sejam, de otimização, redução de custos, previsibilidade, segurança, controle e confiança. No

processo

de

evolução

epistemológica das ciências criminais, a permissividade axiológica das normas é acentuada pela intervenção do método neokantiano liberal, da primeira metade

Assim, a expectativa sem precedentes

do Séc. XX, fundado na ideia da realidade

de que a tecnologia, especificamente

referida a valores. Assim, abre-se espaço

sistemas de inteligência artificial, seria

para uma interpretação normativa e

capaz de atender às necessidades de

conformação do sistema jurídico-penal,

segurança da sociedade contemporânea

a partir dos referenciais teleológicos

deve ser alvo de grandes ressalvas.

predominantes

Nessa perspectiva, a incorporação de

todavia, proceder-se a uma delimitação

novas técnicas ao Direito Penal deve

específica de tal conteúdo.

obrigatoriamente ser pensada frente aos referentes axiológicos dos quais decorrem a demanda em contraposição à Política Criminal constitucionalmente estabelecida, sob o risco dessa introdução ofender direitos e garantias fundamentais, contrariamente

ao

confiança e eficácia. 64

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

incremento

de

na

sociedade,

sem,

É neste âmbito que se ressalta a necessidade de cautela em admitir valorações conforme necessidades

e

demandas sociais, podendo-se incorrer no mesmo relativismo axiológico neokantiano. A estrutura jurídica contemporânea dá primazia às normas constitucionais e

36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


aos valores ali consagrados, os quais

das garantias constitucionais. Por outro

conformam

lado, há louváveis iniciativas que tentam

de

Estado

o e,

respectivo

modelo

consequentemente,

o

superar tais críticas no sentido de

caráter teleológico que se deve ter por

estabelecer diretrizes de harmonização

fundamento de toda organização social. A política criminal encontra-se inserida neste contexto e, portanto, verifica-se a necessidade de discutir a atuação da inteligência artificial apenas na medida em que corrobore com a conformação de um sistema jurídico-penal em observância ao pressuposto democrático da dignidade da pessoa humana. Todavia, nota-se um fundamento utilitarista quando se discute a introdução de mecanismos de auxílio à tomada de decisão judicial, em detrimento de efetividade a valores constitucionais. Isto denota como algumas características da sociedade contemporânea, dentre as quais se destaca eficiência e segurança, produzem

implicações

normativas

e

entre o funcionamento da inteligência artificial e procedimentos éticos no sistema de justiça criminal, sobretudo visando garantir a não-discriminação, a igualdade, a transparência e a imparcialidade. Por

fim,

cumpre

ressaltar

que

não há como pensar o futuro das ciências criminais sem fazer referência às inovações tecnológicas, da mesma forma, não há como pensar o futuro da humanidade sem o respeito a direitos e garantias fundamentais. O progresso em caráter excessivo e desenfreado não está distante das perspectivas distópicas, razão pela qual a inteligência artificial somente pode ser concebida dentro de limites para assegurar a dignidade da pessoa humana.

institucionais, repercutindo diretamente na flexibilização de direitos e garantias fundamentais. Especialmente, destaca-se os tensionamentos produzidos no âmbito da presunção de inocência, do devido processo legal, do contraditório e ampla defesa, bem como da individualização e dosimetria da pena. Diante de tais contradições, surgem diversas

objeções

aos

instrumentos

tecnológicos de apoio à decisão judicial, tendo em vista os limites indisponíveis

Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

65


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Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

69


04

O Aumento dos Crimes Contra a Honra Durante a Pandemia do Covid-19 no Âmbito Digital: uma Nova Era no Direito Penal Giovanna Aburad Delgado Sabbatini45 Iasmin Cortes Palotta46 Maria Júlia Calheiros Fontan47 Christiany Pegorari Conte48

RESUMO O presente artigo tem por objetivo estudar o aumento de Crimes Contra a Honra durante a pandemia do Covid-19 no ambiente virtual, relacionando-os à superexposição das pessoas na internet e nas redes sociais, e as suas possíveis consequências para as pessoas que se expõem à conteúdos sem medir a veracidade destes, principalmente em um ambiente em que se circula uma quantidade maior de fake news do que próprias informações verídicas. Ainda, o trabalho pretende trazer dados e estatísticas sobre o aumento desses crimes, além de dissertar sobre os limites da internet e se os mesmos existem. Por fim, pretende-se abordar as legislações acerca desse tema, bem como as dificuldades da investigação dos mesmos. 45  Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Membro do Grupo de Estudos de Direito Digital da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. 46  Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Membro do Grupo de Estudos de Direito Digital da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. 47  Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Membro do Grupo de Estudos de Direito Digital da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. 48  Advogada. Mestre em Direito da Sociedade da Informação pela FMU/SP. Doutoranda em Educação pela PUC Campinas. Professora de Direito Penal e Processual Penal da PUC Campinas. Coordenadora da Extensão em Crimes Digitais e da Especialização em Direito Digital da PUC Campinas. Vice-Presidente da Comissão de Direito Digital da OAB/SP, Membro do Núcleo temático sobre Direito, Inovação e Tecnologia da ESA/SP. 70

36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


1. INTRODUÇÃO

prática desses crimes na rede, sejam elas

Com o advento da internet e da sociedade da informação, as pessoas começaram a depender cada vez mais dos aparelhos tecnológicos e da vida online, chegando a um momento em que o mundo virtual representa uma verdadeira extensão do mundo físico, inclusive no que tange a utilização da internet para a prática de crimes. Nesse sentido, durante a discussão apresentada no texto, tem-se o recorte para os crimes contra a honra, os quais já possuem disposição nos artigos 138, 139 e 140 do Código Penal brasileiro, porém, quando falamos das redes sociais e da

físicas, patrimoniais ou psicológicas, e que podem ser causadas de forma permanente, sendo um dos motivos para isso a replicabilidade infinita desses delitos, os quais são impossível de mensurar quantas vezes serão vistos e compartilhados. Desse

modo,

o

objetivo

do

presente trabalho consiste na análise do aumento dos crimes contra a honra no âmbito digital durante a pandemia do Covid-19, sendo isto, por fim, pretendese demonstrar os dados obtidos durante a pesquisa explicativa-exploratória, sendo esta realizada com base no método observacional-estatístico.

internet no geral, é evidente que a honra do indivíduo merece uma maior atenção, uma vez que, ela pode ser afetada a qualquer momento, e por isso, deve-se ter legislações específicas eficazes para a Além disso, mesmo que se tenham voltadas

para

2.1 SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO O atual modelo de organização social, apelidado por Bruno Bioni de sociedade

punição dos agentes. leis

2. CONCEITOS

esses

crimes,

a

sensação de impunidade impera sobre a sociedade, visto que, ao serem cometidos na rede mundial de computadores, temse a exigência de uma inovação dos procedimentos investigatórios, os quais

da informação, consiste em uma estrutura societária que tem como elementos centrais a própria informação, a comunicação e o conhecimento compartilhado, sendo estes caracterizados por integrarem o alicerce do desenvolvimento econômico, como a terra o foi para sociedade agrícola e a

em muitos casos precisam chegar a perfis

eletricidade para a sociedade industrial49.

falsos ou que não possuem identificação,

O advento da referida organização

por exemplo. Ainda, pretende-se falar também

se deu com a revolução digital, concebida em meados de 1960 e também conhecida

sobre as consequências para as vítimas da 49  BIONI, 2020, página 4. Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

71


como

quarta

sendo

revolução

fundamentada

industrial50,

precipuamente

para que uma pessoa seja considerada integrante da referida geração.

pela popularização dos computadores em um primeiro momento , e, atualmente, 51

pela conectividade, o uso incessante da internet e a ininterrupta evolução da tecnologia como um todo.

Isto posto, podemos verificar que o ambiente virtual, conhecido também como virtualidade53, paulatinamente se tornou uma extensão do ambiente físico, sendo isto resultado de uma evolução

Com efeito, a humanidade atingiu

concomitante da sociedade, tecnologia e

um patamar em que já não se é possível

internet, gerando a gradual transição das

imaginar uma sociedade inteiramente

atividades para o âmbito digital, como,

analógica e desconectada, isto é, sem

por exemplo, o comércio, que atualmente

a interferência da tecnologia digital e

o uso contínuo da internet, muito pelo

que existem lojas que não possuem

contrário, as atividades analógicas tendem

um estabelecimento físico, realizando

a diminuir cada vez mais conforme a

somente vendas virtuais.

evolução das máquinas, sendo restritas ao que for substancialmente humano, e a conectividade aumentará conforme o crescimento e aprimoramento do fluxo informacional. C,

tão

difundido

virtualmente

No entanto, o referido avanço não pode ser resumido somente em benefícios, tendo em vista que a tecnologia pode ser utilizada tanto para o bem quanto para o mal54, sendo eventualmente manipulada

Um exemplo é o surgimento da geração

está

assim

denominada

por alguns usuários para possibilitar a

pela

prática de infrações penais dentro do

Google , formada por pessoas que

ambiente virtual, como ocorre com os

estão constantemente conectadas com a

crimes contra honra e diversos outros.

52

internet e interagem com esta diariamente. Embora 65% de sua composição seja de pessoas com menos de 35 anos, a geração C não possui uma divisão por faixa etária, como observamos nas gerações X, Y e

50  SCHWAB, 2016, página 16.

A sociedade da informação e a virtualidade55 como uma extensão do ambiente físico tornaram necessária a atualização da compreensão de diversos

51

53  SYDOW, 2020, página 52.

Z, haja vista que basta a conectividade e a constante interação com a internet

SYDOW, 2020, página 21.

52  THINK WITH GOOGLE, 2013, disponível em: https:// www.thinkwithgoogle.com/consumer-insights/consumertrends/meet-gen-c-youtube-generation-in-own-words/ 72

2.2 SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO, DIREITO PENAL E DIREITO PROCESSUAL PENAL

54  SYDOW, 2020, página 22. 55  SYDOW, 2020w, página 52. 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


institutos do Direito Penal e Processual

diversos projetos de lei nesse sentido,

Penal como um todo, uma vez que estes

como o Projeto de Lei 236/201257.

foram demasiadamente afetados pela referida expansão.

A solução encontrada para suprir o desfasamento entre a realidade e o

O impacto em tais áreas pode ser

ordenamento jurídico foi a maior utilização

considerado mais intenso e brusco,

da doutrina e da jurisprudência, servindo

visto que o Direito Penal e o Direito

estas como apoio para a compreensão da

Processual

caracterizados

nova realidade e sua interpretação com

por serem regidos pelo princípio da

base no arcabouço de leis já existentes.

subsidiariedade,

conhecido

Dessa maneira, surge o Direito Penal

como princípio da intervenção mínima,

Informático, responsável por estudar a

sendo assim, só devem ser aplicados

aplicação do Direito Penal inserido em um

quando for estritamente necessário56,

contexto de tecnologia e imaterialidade.58

Penal

são

também

pois servem como a ultima ratio, já que são responsáveis pela proteção dos bens jurídicos mais relevantes, tais como a vida, o patrimônio, a honra, entre outros. Destarte, a utilização subsidiária do Direito Penal e Processual Penal, juntamente com o processo legislativo brasileiro e a adoção, pelo Brasil, do sistema jurídico da civil law, acarretam na existência de um ordenamento jurídico muitas vezes arcaico, uma vez que o

2.3 DIREITO PENAL INFORMÁTICO O Direito Penal Informático surge a partir da necessidade de se compreender o Direito Penal, o Direito Processual Penal e a Criminologia à luz do contexto da virtualidade, uma vez que esta exige a reinterpretação de institutos clássicos e a concepção de novos institutos, como explica Spencer Toth Sydow:59

legislador não é capaz de acompanhar

O Direito Penal Informático é o ramo

simultaneamente todas as mudanças,

do Direito Penal que estuda os valores

e, ainda que o fosse, a aprovação das

sociais juridicamente relevantes que

leis depende de um processo legislativo

estão inseridos em e/ou modificados

burocrático, sendo consequentemente

por um contexto informático, sejam

moroso. Em vista disso, temos como

eles valores já existentes submetidos

exemplo o Código Penal e o Código de

à uma nova ótica da virtualidade,

Processo Penal, que não sofrem uma reforma integral desde 1940 e 1941, respectivamente,

embora

existam

57  PLS 236/2012, 2012, disponível em: https://www25. senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/106404 58  SYDOW, 2020, página 76.

56  CUNHA, 2020, página 81. Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

59  SYDOW, 2020, página 76. 73


sejam eles novos valores criados a partir de uma nova sociedade influenciada pela tecnologia. No tocante a classificação dos delitos, Direito Penal Informático se divide em crimes digitais próprios, caracterizados por atentarem contra a segurança da informação, softwares ou hardwares, e crimes digitais impróprios, que são as infrações penais já previstas pelo ordenamento jurídico, mas que ganharam uma nova forma de execução, como os crimes contra a honra. Ademais, vale ressaltar que diversas particularidades do Direito Penal, do Direito Processual Penal e da Criminologia acabam se reinventando com a tecnologia e a virtualidade, sendo isto também englobado pelo Direito Penal Informático, como por exemplo a produção probatória em crimes digitais. 3. ASPECTOS LEGAIS E GERAIS DOS CRIMES CONTRA A HONRA NO ÂMBITO VIRTUAL Embora existam leis que versem sobre os crimes contra a honra no Código Penal brasileiro, com o fenômeno da internet e da sociedade da informação, surgiu-se a necessidade da criação de leis específicas, as quais regulamentassem as relações virtuais e versassem sobre os crimes contra a honra no âmbito virtual. A primeira delas a ser citada foi o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965 de 2014), o qual estabelece direitos, deveres 74

e princípios na utilização da Internet no Brasil. No que tange os crimes contra a honra na internet, tem-se o artigo 10, o qual dispõe sobre a proteção a honra e o artigo 15, que define a responsabilidade dos provedores de internet. Art. 10, Lei nº 12.965: A guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de internet de que trata esta Lei, bem como de dados pessoais e do conteúdo de comunicações privadas, devem atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas. Art. 15, Lei nº 12.965: O provedor de aplicações de internet constituído na forma de pessoa jurídica e que exerça essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos deverá manter os respectivos registros de acesso a aplicações de internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 6 (seis) meses, nos termos do regulamento. Há também o Projeto de Lei nº 1.589/2015, o qual pretende tornar mais rigorosa a punição dos crimes contra a honra praticados na internet, responsabilizando os agentes com pena mais altas e buscando agilizar o processo de retirada de conteúdos da internet. No entanto, tal projeto ainda permanece em tramitação no Congresso Nacional. 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


Por fim, tem-se o Pacote Anticrime (Lei nº 13.964 de 2019), que possui disposto a triplicação da pena dos crimes contra a honra cometidos na rede mundial de computadores. Como consta no Art. 121, § 2º “Se o crime é cometido ou divulgado em quaisquer modalidades das redes sociais da rede mundial de computadores, aplica-se em triplo a pena.” Inicialmente, essa parte foi vetada pelo Presidente da República, entretanto, esse veto foi derrubado pelo Congresso Nacional. Dessa forma, é válido ressaltar a importância de leis que regulem os crimes contra a honra cometidos na internet, uma vez que, elas são fundamentais na garantia dos direitos das vítimas, à medida que também possuem a função de certificar que o agente seja responsabilizado. 3.1 PROCEDIMENTO INVESTIGATÓRIO E A RESPONSABILIZAÇÃO DO AGENTE No tocante a responsabilização do agente, tem-se que evidenciar a dificuldade das investigações dos crimes cibernéticos, visto que, na maioria das vezes são cometidos por perfis falsos ou por perfis de difícil identificação, além de serem facilmente replicados, causando uma sensação de impunidade nas pessoas. Como demonstra um estudo feito pelo MIT60, o qual constatou que uma notícia falsa, no Twitter, é mais 60  https://news.mit.edu/2018/study-twitter-false-newstravels-faster-true-stories-0308 Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

compartilhada do que uma verdadeira, chegando a ser 70% mais replicada. Essas fake news constantemente imputam falsas atitudes às suas vítimas, quando não ofendem a honra dessas pessoas. Desse modo, é fato que os crimes no âmbito digital alteraram o Direito Penal e Direito Processual Penal em vários aspectos, principalmente no que se refere a comprovação da prática desses delitos, já que, o direito digital exigiu que novas formas de investigações fossem feitas. De acordo com Pinheiro Walber (2018) “O trabalho dos peritos que atuam na investigação de cybercrimes é dividido nas seguintes etapas: Coleta e preservação de informações; Extração de informações; Análise de Informações; Produção do laudo pericial;”61 No entanto, para que ocorra a quebra de sigilo de dados, por exemplo, é necessário uma autorização judicial, além de que, quando se tratam dos perfis falsos já citados anteriormente, é exigido uma busca ainda mais profunda aos provedores de acesso, colocando em xeque o trabalho dos profissionais que atuam na investigação, já que, na maioria das vezes eles se encontram despreparados e sem os equipamentos essenciais para esta ocorra. Como expõem Sílvio de Castro Cerqueira e Claudionor Rocha (2013):62 61  PINHEIRO, Walber. Crimes contra honra na internet. Ipog. 2018. Disponível em: https://blog.ipog.edu.br/ tecnologia/crimes-contra-a-honra-na-internet/. 62  CERQUEIRA, Sílvio Castro; ROCHA, Claudinor. Crimes cibernéticos: desafios da investigação. Cadernos Aslegis, p. 155, 2013. 75


As instituições responsáveis pelas

as instituições consigam acompanhar a

investigações criminais não podem

evolução do Direito Penal e Processual

se dar ao luxo de parar no tempo

Penal.

e esperar que os acontecimentos ditem suas respostas à sociedade. Atendendo aos princípios gerais do

Direito

Administrativo,

elas

precisam, sob pena de ingressar na esfera de ineficiência, se adiantar ao crime e construir estruturas que lhes permitam efetivamente cumprir suas missões constitucionais dentro dos preceitos afetos às ações do administrador público. Deixar de buscar a evolução propiciada pelo mundo

da

tecnologia

equivale

a negar o emprego de novos e eficientes instrumentos de combate

ainda,

algumas

características dos crimes contra a honra no âmbito virtual importantes a serem elencadas. A primeira relaciona-se ao momento da consumação, a qual segundo Cleber Rogério Masson (2020) será em um tempo diferente para as três espécies de crimes contra a honra: para a Difamação, o crime se consuma no momento em que o terceiro toma conhecimento do fato; na Calúnia, a consumação se dá no momento em que o crime, de fato, se consumou; já

ao crime moderno, que é executado sem aviso, sem violência, sem

Já com relação ao local do crime,

busca refúgio no anonimato do universo

cibernético

e

restará

impune se não houver o devido preparo da força repressora. (p. 155) Nessa perspectiva, faz-se cada vez mais imprescindível a especialização de um serviço que combata tais crimes, seja a implementação de delegacias especializadas em crimes digitais, como já vem sendo feito aos poucos, ou então

76

Existem

na Injúria, se dá no momento em que a vítima toma conhecimento do fato.

contato pessoal, onde o criminoso

o

3.2. CARACTERÍSTICAS GERAIS

investimento

em

profissionais

de

geralmente, tem-se como critério para definição de competência, o local em que supostamente o crime tenha sido realizado e a ação fora concluída, como demonstra o julgado a seguir: EMENTA:

CRIME

A

PRATICADO

HONRA

CONTRA PELA

INTERNET. NATUREZA FORMAL. CONSUMAÇÃO NO LOCAL DA PUBLICAÇÃO OFENSIVO. JUÍZO

DO

CONTEÚDO

COMPETÊNCIA

SUSCITANTE

PARA

DO O

tecnologia, os quais podem ajudar na

CONHECIMENTO E JULGAMENTO

busca pelos agentes, para que dessa forma,

DO FEITO. 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


1. Crimes contra a honra praticados

físicos de espaço provocam um conflito

pela

formais,

entre estados soberanos em virtude das

momento

diferentes espécies normativas e formas

da disponibilização do conteúdo

de investigação de cada lugar, sendo

ofensivo no espaço virtual, por

esse mais um ponto a ser analisado e

força da imediata potencialidade de

que possivelmente pode alterar o Direito

visualização por terceiros.

Penal e Processual Penal.

2. Conflito conhecido para declarar a

4. CONSEQUÊNCIA DOS CRIMES CONTRA A HONRA NA INTERNET

internet

consumando-se

são no

competência do Juízo suscitante para o conhecimento e julgamento do feito. (CC 173.458/SC, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA

SEÇÃO,

25/11/2020,

DJe

julgado

em

27/11/2020)

Nos últimos anos, e principalmente durante a pandemia, o número de pessoas conectadas aumentou muito. A internet se tornou meio e fim para diversas atividades, sendo elas lazer, trabalho, educação, entre

No entanto, há divergências com

outros. No entanto, parece ser essencial

relação a essa posição adotada pela

a adoção de comportamentos para se

doutrina majoritária, uma vez que, a noção

inserir no meio digital. Torna-se inevitável

de espaço no ambiente virtual pode não ser a mesma no espaço físico, esse é o entendimento do doutrinador espanhol Ramón J. Moles:63

ver sem ser visto. A visibilidade se tornou base primordial para a sociedade virtual. Todos estão conectados, observam e são observados.

de

O crime contra a honra, naturalmente,

fronteiras territoriais, mas de normas

causa o adoecimento físico e psíquico, além

ou técnicas, que regulam sistemas

de danos à integridade, personalidade

de acesso e que não pertencem ao

e

O

ciberespaço

não

dispõe

mundo jurídico. Assim, não vigora o conceito de soberania e nem de competência territorial. Sendo assim, o caráter transnacional dos crimes cibernéticos, o qual como mostrado acima, altera os conceitos 63  Ramón J. MOLES, Territorio, tiempo y estrutura del ciberespacio p.25-26. Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

dignidade,

emocionalmente, consequências

desestabilizando proporcionando gravíssimas

como

doenças mentais e até mesmo a morte. No meio digital, com as proporções que uma notícia ou comentário tomam, as consequências dessa enorme visibilidade são infinitamente maiores e mais severas.

77


4.1. A SUPEREXPOSIÇÃO NO AMBIENTE VIRTUAL É inegável que vivemos em um mundo cada vez mais digitalizado. Com a pandemia do COVID-19 os números apenas aumentaram. A migração para o meio foi gigantesca, e as lacunas na legislação para regular suas relações se multiplicam a cada dia. As redes oferecem oportunidades diversas e, com isso, a quantidade de informação aumenta a cada dia. Esse excesso de informação vem acompanhado do excesso de exposição. Assim que criamos nossa conta em uma rede social, e começamos a nos expor, criamos um pressuposto para que qualquer um possa entrar nela e falar o que quiser. Além disso, criamos novas relações e vínculos nesse ambiente, migramos laços para o mundo digital. É de se entender, portanto, que essas relações deveriam acontecer da mesma forma que sempre aconteceram no “mundo real”. Esse é o ideal, mas infelizmente algumas pessoas se aproveitam das vantagens da internet para ultrapassar limites. 4.2. OS LIMITES DIGITAIS O rápido desenvolvimento da tecnologia e o estabelecimento das redes sociais como meio de comunicação acabou trazendo consequências nocivas e prejudiciais à sociedade que não foram previstas. A internet teve, e ainda tem, o poder de desmanchar barreiras erguidas 78

no passado que serviam como censura informal (Bauman). Limites que foram estabelecidos na sociedade, por meio do costume e do hábito, começam a ser ultrapassados e desafiados. É como se essas barreiras repetidas e exigidas por tanto tempo fossem ignoradas, esquecidas e desaprendidas dentro das fronteiras do mundo digital. A internet deu o poder de fala para muitas pessoas para expressar opiniões, ideias, descontentamentos, reflexões, entre outros, e muitas vezes os limites cercando o direito de fala é ultrapassado. É muito comum o uso da liberdade de expressão para justificar um comentário ofensivo. A internet evoluiu drasticamente nos últimos anos. Novas plataformas surgiram, novas formas de comunicação e interação social, novos comportamentos diante da tecnologia e a mudança veloz fez com que os usuários das redes se tornassem confortáveis no ambiente digital. É ainda muito nova a maneira como as coisas funcionam nesse mundo virtual, e, para muitos, existe uma sensação de vazio. Quando estamos conectados de um lado da tela, sem ver quem está do outro lado, ou no caso das redes sociais, o número de pessoas que podemos alcançar, criase uma falsa impressão de impunidade. Esse “vazio” e o uso de anonimato, acaba incentivando a conduta ilícita. A ideia de “ninguém pode me ver, meu usuário não é meu nome, portanto ninguém pode descobrir que sou eu.”. Cria-se assim uma falsa sensação de segurança e poder.

36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


4.3. ATÉ ONDE VAI A LIBERDADE DE EXPRESSÃO?

4.4. A NORMALIZAÇÃO DE CONDUTAS ANORMAIS

É inevitável que quando abordado

Atualmente, com a popularização das

o tópico das redes sociais seja levantado

redes sociais e de seus influenciadores,

também os limites da liberdade de

uma nova ordem parece ser erguida junto a

expressão. São diversos os discursos de ódio encontrados que apresentam como defesa os pontos “liberdade de expressão” e “é minha opinião”. Parece que quando tratamos de redes sociais, qualquer opinião é válida, mesmo que esta lese direito alheio ou denigra a imagem de outro. A linha entre a liberdade de expressão e a ofensa é extremamente tênue.

uma nova hierarquia de poder. As regras do jogo mudaram. Condutas ilícitas são vistas como meros erros que não se sujeitam a qualquer penalidade, e a omissão, perante crimes no ambiente digital, é vista como autopreservação e liberdade de escolha. Essas ações ilícitas acabam se tornando condutas normais e recorrentes no meio digital, como se existisse uma legislação própria que é seguida naturalmente, pelo

Considerando, ainda, as proporções

costume. Como se os usuários das redes

internet,

encontrar

julgassem os réus independentemente de

comunidades que apoiem esses discursos

órgãos oficiais e, assim, fizessem justiça

de ódio e que criem uma base de defesa.

com as próprias mãos.

da

é

possível

Dessa forma, o racismo, homofobia,

No caso dos crimes contra a honra,

xenofobia, entre muitos outros, passam

essas ofensas ilícitas são muitas vezes

despercebidos.

a

vistas como opinião ou simples comentário

importância desses crimes se torna

e quando causam grande repercussão ou

fútil, perde força, pois não se aplicam

desagrado social, vemos um pedido de

consequências à altura, e, novamente, se

desculpas e o caso é encerrado. Com esse

possibilita a repetição.

tratamento, as ações ilícitas acabam se

De

certa

forma,

A liberdade de expressão tornouse uma rede de proteção que justifica comentários, opiniões e piadas ofensivas. Com isso, diversas condutas ilícitas ganharam força e se tornaram mais frequentes.

tornando condutas normais e recorrentes. A calúnia,

difamação

e

injúria,

especialmente, não são consideradas infrações e cometidas no mundo digital, elas alcançam proporções inimagináveis. Na internet, um comentário ofensivo compartilhado mil vezes e visto dez mil vezes acaba incentivando aqueles que também tem algo semelhante a dizer.

Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

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Falamos aqui do efeito manada, uma teoria

estiveram conectadas nas redes sociais

da psicologia que descreve a tendência

durante a pandemia do Covid-19, tendo

humana de repetir ações feitas por outras

como desfecho os aumento dos crimes

pessoas. Assim, se um fala e não tem

contra a honra durante esse período.

consequências, eu posso falar também.

Como demonstram os gráficos a seguir, dos quais os dados foram retirados do

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante

o

exposto

em

site Safernet64, uma sociedade civil de todo

o

trabalho, é visível que os crimes contra

direito privado, apoiada por vários órgãos do governo, que possui o intuito de

a honra ganharam uma nova forma, a

transformar a internet, mostrando dados

digital, a qual junto com os outros crimes

para as pessoas e facilitando a forma de

cibernéticos inauguram uma nova era tanto para o Direito Penal, quanto para o Direito Processual Penal. Alguns crimes como calúnia, injúria e difamação, além de exigirem novas técnicas de investigação

fazer denúncias.

por serem cometidos na internet, mesmo

Figura 1- Gráfico que mostra o aumento de denúncias do crime de racismo entre os anos de 2016 e 2020.

que já tivessem previsão no Código Penal, precisaram também ganhar novas disposições na legislação brasileira, visto que, quando cometidos no âmbito virtual podem possuir danos irreparáveis, sejam eles físicos, patrimoniais ou psicológicos. Com a expansão da vida “real” para a virtual, passou-se a ter uma grande superexposição da vida das pessoas, as quais não podem medir as consequências

Fonte: gráfico feito pelas autoras a partir dos dados do Safernet.

dessa exposição, que muitas vezes podem ser indevidas. Em virtude disso, por exemplo, surgiu uma nova profissão, que são remunerados por mostrarem o seu dia a dia. Ademais, pode-se notar um aumento crítico do número de pessoas que 80

64

https://indicadores.safernet.org.br/index.html 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


Figura 2- Gráfico que mostra o aumento de denúncias do crime de neonazismo entre os anos de 2016 e 2020.

Fonte: gráfico feito pelas autoras a partir dos dados do Safernet.

Figura 3- Gráfico que mostra o aumento de denúncias do crime de homofobia entre os anos de 2016 e 2020.

Esses dados, os quais mostram o aumento de denúncias de crimes que podem se encaixar na classificação dos crimes contra a honra no âmbito virtual, ilustram que, de fato, tem-se o aumento dos crimes contra a honra na internet, e esse se dá devido a diversos fatores, sejam eles o aumento de pessoas conectadas, a superexposição indevida ou até mesmo a sensação de impunidade que se tem pela dificuldade em punir os agentes.

Fonte: gráfico feito pelas autoras a partir dos dados do Safernet

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81


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


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05

A Responsabilidade do Facebook frente aos Perfis Comerciais à luz da LGPD e CDC Débora Tiago Devides65 Geórgia Vasconcelos Ferfoglia66 Thaís Romera Vianna67 Christiany Pegorari Conte68 RESUMO O presente artigo resgata a história da maior rede social contemporânea, que inaugurou um novo modo de comunicação e revolucionou o mercado digital: o Facebook. A princípio, o fundador idealizou que a coleta de dados propiciasse uma melhor experiência aos usuários, oferecendo anúncios personalizados. Contudo, tal atividade foi encarada como oportuna às empresas que desejavam promover seus produtos. Logo, o aplicativo passou a utilizar os dados pessoais dos usuários para promover os produtos, de modo que isto se tornou sua maior fonte de receita. Entretanto, essa exploração econômica atingiu proporções inimagináveis, quando por meio de combinações estratégicas, forneceu informações cruciais à empresa britânica especializada em operações de dados, Cambridge Analytica, influenciaram nas eleições norte-americanas. 65  Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Membro do Grupo de Estudos de Direito Digital da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. 66  Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Membro do Grupo de Estudos de Direito Digital da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. 67  Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Membro do Grupo de Estudos de Direito Digital da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. 68  Advogada. Mestre em Direito da Sociedade da Informação pela FMU/SP. Doutoranda em Educação pela PUC Campinas. Professora de Direito Penal e Processual Penal da PUC Campinas. Coordenadora da Extensão em Crimes Digitais e da Especialização em Direito Digital da PUC Campinas. Vice-Presidente da Comissão de Direito Digital da OAB/SP, Membro do Núcleo Temático sobre Direito, Inovação e Tecnologia da ESA/SP. 84

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Este fato histórico, gerado pela negligência do Facebook, foi essencial para que o mundo debatesse em escala global a necessidade da regulamentação da proteção e segurança de dados. Consequentemente, na União Europeia foi aprovada a Global Data General Protection Regulation (“GDPR”), que impulsionou a criação da Lei Geral de Proteção de Dados (“LGPD”) no Brasil. Nesta senda, o Marco Civil da Internet dispõe acerca das atividades no meio digital, com fundamentos jurídicos essenciais para a proteção de dados, garantindo as relações comerciais e, principalmente, a responsabilidade civil objetiva dos prestadores de serviço no ambiente virtual, uma vez que o consumidor, ora usuário, é figura hipossuficiente nesta relação. Também, traz uma faceta com embasamento no que diz respeito à livre iniciativa, à livre concorrência e à defesa do consumidor, previsto já em seus primeiros artigos. Portanto, há uma evidente referência ao Código de Defesa do Consumidor (“CDC”). Com isso, dentro da esfera das grandes empresas de dados, com ênfase no Facebook, o consumidor torna-se o produto e, portanto, um meio lucrativo com sua privacidade exposta e a captura dos dados pessoais. Por conseguinte, as legislações vigentes no país levam em conta a necessidade de proteção do consumidor, tendo em vista a evidente vulnerabilidade destes. À vista disso, segundo os embasamentos do CDC, Marco Civil e da LGPD, em harmonia com as diretrizes da Constituição Federal de 1988, o Facebook deve garantir que a experiência dos usuários seja segura. Atenção especial, inclusive, às contas comerciais e perfis pessoais com finalidades comerciais, em que o uso de informações de empresas colocam em risco sua credibilidade e toda sua fundação. Em resumo, os princípios da LGPD devem ser observados e, caso contrário, devem incidir todas as penalidades e sanções cabíveis. Por todo o exposto, não restam dúvidas que embora o Facebook justifique suas operações através do Consentimento e do Legítimo Interesse, estes não podem ser viciados, uma vez que se caracteriza a relação consumerista. Dessarte, comprometer a segurança e privacidade do usuário diante do interesse político e econômico pode trazer repercussões irreparáveis, tanto a níveis individuais, quanto às estruturas comerciais. PALAVRAS-CHAVE Facebook, Responsabilização Civil, Código de Defesa do Consumidor, Marco Civil da Internet, Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD.

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1. INTRODUÇÃO O final do século passado expôs ao mundo técnicas disruptivas, capazes de mudar a sociedade a partir da otimização do fluxo de informações, que apenas em alguns anos ultrapassou o correspondente a diversos séculos dedicados às criações. Consequentemente, instaurou-se uma nova fase, denominada a Era da Informação, que foi - e tem sido responsável por gerar inúmeros impactos nunca antes imaginados. Para tanto, o avanço tecnológico acerca da sociedade contemporânea súplica por respostas adequadas às situações emergentes, tornando-se evidente a necessidade do saber jurídico para disciplinar tais empecilhos que reverberam em uma complexa realidade, que, muitas vezes, permeia a ética e viola direitos. Sob essa perspectiva, o presente artigo objetiva compreender a criação das redes sociais, bem como analisar as consequências advindas desta nova realidade. Por certo, esta pesquisa é debruçada no uso de jurisprudência, diplomas legais e doutrinas sobre o assunto, bem como as Políticas e Termos de Uso da Plataforma, que é o objeto do estudo. À vista disso, o marco simbólico que traz à tona o real poderio dos meios de comunicação e revela a influência do Facebook fora das telas, é rememorado pelo escândalo da Cambridge Analytica.

86

Como será detalhado, os dados pessoais foram comercializados para fins eleitorais. A empresa, então, foi acusada e declarou sua culpa ao utilizar informações de 87 milhões de usuários do website durante a campanha presidencial, que teve por resultado a eleição do ex-presidente Donald Trump (PRESSE, 2019). Ademais, neste ponto, é relevante destacar que a pesquisa faz um recorte com foco nos perfis comerciais, nos quais os usos das informações referentes a essas contas podem comprometer toda a estrutura da empresa, pois eventuais exposições de seus dados podem acarretar na perda de credibilidade, o vazamento de suas estratégias e consequentemente danos irreparáveis em toda a sua fundação. Em decorrência disto, há que se distinguir os termos “Perfil” e “Página”. Como alude a Central de Ajuda do Facebook, o primeiro termo se define como o local disponível para que os usuários possam compartilhar suas informações pessoais. Em contrapartida, a criação da página, isto é, o perfil comercial, é subordinada ao perfil, sendo este um requisito indispensável para desenvolvê-la. Isso porque se refere a um local destinado a artistas, figuras públicas, empresas, marcas, organizações e organizações sem fins lucrativos que usam para se conectar com fãs ou clientes. Nesse condão, será demonstrada a relação consumerista entre o provedor de serviços e o usuário, pois este é o sujeito hipossuficiente neste vínculo, fazendo jus 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


às prerrogativas de proteção em razão de sua vulnerabilidade. Também, por meio de outros embasamentos legislativos, quais sejam, Marco Civil da Internet e Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), em harmonia com as diretrizes da Constituição Federal de 1988, serão apontadas as razões pela qual incide a responsabilidade objetiva do website em detrimento de eventuais danos ocasionados às páginas. 2. PANORAMA HISTÓRICO Como demonstrado, a partir da migração das relações interpessoais para o âmbito digital, o volume de dados ascendeu de forma expressiva, vez que a internet se tornou um meio acessível para que os usuários se integrassem a partir de interesses ou valores comuns. Nesta ótica, no ano de 2004, surgiu o Facebook, originalmente nomeado “TheFacebook”, em que a participação era restrita aos estudantes da Universidade de Harvard. Posteriormente, diante da aderência global, ele passou a atrair usuários de todos os continentes e faixas etárias, como demonstram as estatísticas da matéria do jornal El País: Em julho de 2018, o Facebook declarou ter 1,45 bilhão de usuários ativos em todo o mundo. Seu aplicativo de publicidade mostra alguns a menos. Pode ser por causa da metodologia de cálculo: “O Facebook poderia, para um tipo de Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

cálculo, considerar como usuários diários quem passar pelo menos um minuto por dia, ou quem passar pelo menos três minutos, ou simplesmente que abram a sessão”, explica Rubén Cuevas (COLOMÉ, 2018). Denota-se, assim, a receptividade do website e o nível de confiabilidade conquistado ao longo dos anos. Este fato nutriu - e tem nutrido - o ambiente virtual com dados pessoais, que diante do uso indevido dos agentes de tratamento, são aptos a prejudicar e discriminar os titulares, conforme será demonstrado adiante. No que diz respeito às páginas, é possível concluir que estas estão diante de um risco ainda maior, pois elas armazenam dados pessoais de terceiros, que anuíram em fornecê-los em razão dos termos de privacidade da plataforma. Importante mencionar, ainda, que dentre as finalidades primordiais dos criadores, destacava-se o intuito de propiciar ao indivíduo uma experiência agradável e individualizada, com diversas funcionalidades integrativas, como se observa no seguinte excerto: O Facebook oferece aos seus utilizadores, com um simples clique, formas rápidas e fáceis de interação social: cumprimentar um amigo (denominado “poke”), enviar mensagens simples, ou indicar aprovação a um comentário ou

87


imagem através do botão “gosto”. É também possível comprar ou vender itens no marketplace e encontrar entretenimento na página de jogos.69 Contudo, diante do crescimento a nível continental e da possibilidade que empreendedores encontraram para expandir seus negócios a partir dos anúncios pagos, as informações dos titulares ficaram sujeitas a violações. Porquanto, nas palavras de Irineu Francisco Barreto Júnior (2017), sob o contexto da Sociedade da Informação, foi dada à informação o status de principal mercadoria, ou valor, a ser produzido e perseguido no terceiro milênio, reorganizando as economias capitalistas e esse modo de produção.70 Ou seja, os dados de titulares se tornaram suscetíveis, de modo que é completamente possível mapear perfis a partir das informações fornecidas, sabendo, inclusive, o tempo de uso no dispositivo, locais visitados, compras realizadas e até mesmo o número do cartão de crédito. De acordo com a Política de Dados do Facebook: Coletamos informações de e sobre computadores, telefones, TVs conectadas e outros dispositivos 69  ALVES, Pedro et al, Novas formas de comunicação: história do Facebook. Uma história necessariamente breve, [s.l.], [s.d.]. 70  A relevância do conceito Sociedade da Informação para a pesquisa jurídica. In: PAESANI, Liliana Minardi (Coord.). Direito na sociedade da informação. São Paulo: Atlas, 2007. p. 66. 88

conectados à web que você usa e que se integram a nossos Produtos, e combinamos essas informações dos diferentes dispositivos que você usa. Por exemplo, usamos as informações coletadas sobre seu uso de nossos Produtos em seu telefone para personalizar melhor o conteúdo (inclusive anúncios) ou os recursos que você vê quando usa nossos Produtos em outro dispositivo, como seu laptop ou tablet, ou para avaliar se você, em resposta a um anúncio que exibimos em seu telefone, realizou uma ação em um dispositivo diferente. Com efeito, comprova-se a valoração dos dados na atualidade por meio do grande escândalo que envolveu o Facebook e a empresa Cambridge Analytica, no ano de 2018. Como explicitado pelo site britânico The Guardian, mais de 50 milhões de perfis foram colhidos pela empresa citada em um grande caso de violação de dados, com fins de propaganda política, sem qualquer consentimento dos titulares envolvidos. As informações foram mineradas por meio do aplicativo thisisyourdigitallife, e assim elucida Silas Martí: Tudo começou em junho de 2014, quando o professor Aleksandr Kogan, da Universidade Cambridge, no Reino Unido, criou um teste de personalidade no Facebook com 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


o pretexto de conduzir um estudo psicológico de usuários. Mesmo que só 270 mil pessoas tenham feito o teste de Kogan, o sistema permitiu que sua equipe visse o perfil de 50 milhões de usuários, pois também captava as informações de todos os amigos delas. No ano seguinte, Kogan repassou essa informação à Cambridge Analytica, que então contratou outros especialistas, entre eles Christopher Wylie, que acabou revelando o esquema ao jornal britânico The Observer (a versão dominical do Guardian) para influenciar a eleição dos EUA.71 Por

conseguinte,

apenas

com

poucos dados, foi possível traçar perfis com

elevada

precisão,

utilizando

a

ciência comportamental para disseminar a propaganda eleitoral a cada perfil, utilizando-se inclusive de notícias falsas para atingir o fim desejado. De acordo com o levantamento da BBC News (2018), uma corporação pública de rádio e televisão do Reino Unido, foram desenvolvidos cerca de 35 a 45 mil tipos de anúncios. Como resultado desta manipulação, a imagem dos candidatos à presidência foi alterada, e o exercício da cidadania e da transparência foi severamente

dados, então, deu-se por meio da vitória do líder do Partido Republicano, Donald Trump, atingindo as pretensões esperadas. Por força

deste

fato

histórico,

presume-se que a operação do tratamento de dados pessoais, com as múltiplas funções previstas, tratava-se de um pretexto para que o aplicativo pudesse comercializá-los, posto que esta atividade tornou-se a fonte de renda mais lucrativa dele. Além

do

consequências

mais,

em

deste

razão

incidente,

das a

sociedade alertou-se para a necessidade da regulamentação de dados. Consoante ao estudo realizado pela plataforma digital The Policy Corner, nunca foi tão imperativo ter uma discussão aberta sobre a proliferação da tecnologia em nossas vidas e como ela afetará nossos direitos de privacidade e nossa segurança, tanto em nível pessoal quanto nacional (ISAAK; HANNA, 2018, p. 56–59). Salienta-se, ainda, que diante do domínio e da magnitude do Facebook, os incidentes de vazamentos não foram suficientes para a alteração do status quo. Como bem disserta a mencionada reportagem do El País (2018): Esse domínio quase monopolístico,

corrompido. O desfecho do vazamento de

aparentemente interminável, não se viu

71  MARTÍ, S. Entenda o escândalo do uso de dados

Cambridge Analytica, das fake news ou

do Facebook. Folha de São Paulo, 22 mar. 2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/03/ entenda-o-escandalo-do-uso-de-dados-do-facebook.shtml. Acesso em: 15 Abr. 2021. Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

afetado por enquanto pelas crises da da violência em países como Myanmar, Sri Lanka e Filipinas. Em Myanmar, onde 89


o Facebook admitiu sua responsabilidade na difusão de mensagens de ódio contra a

3. O MARCO CIVIL DA INTERNET E O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

minoria rohingya, as palavras “Facebook” e “Internet” são sinônimos. O país viveu sob uma junta militar até 2011. Hoje, mais da metade da sua população tem conta no Facebook, e desse contingente, 44% o usam diariamente. O crescimento é extraordinário.

Como

multas bilionárias pelo hackeamento, os temores com a falta de privacidade e o cansaço dos usuários são ameaças cotidianas para o Facebook. Por enquanto, no entanto, nada o afeta.

se a essencialidade de as páginas serem amparadas de maneira integral. Antes de mais nada, é imperioso destacar o Marco Civil da Internet (MCI), Lei 12.965/2014, visto que este estabelece os princípios, digital. Nesta senda, este traz à tona a preocupação

referente

às

fundamentos

gerais,

não

havendo,

O artigo 2º, inciso V, do MCI assim prevê: Artigo 2º - A disciplina do uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão, bem como:

especial na proteção de dados do Facebook. Isso porque, em uma análise comparativa, a hipótese de tratamento de dados em

V - a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor (BRASIL, 2014).

desatenção às legislações vigentes pode acarretar severas consequências àqueles que possuem informações armazenadas no aplicativo.

De forma idêntica, o artigo 3º estes

podem

ser

usuários, ainda

em mais

prejudicados, pois além das informações de caráter sensível, sejam elas pessoais ou de clientes, o comércio eletrônico é utilizado para fins de subsistência, podendo o mau uso do provedor implicar em vazamento de dados e divulgações

90

de

modo específico em todas as suas esferas.

para fins comerciais merecem atenção

estratégicas.

bases

portanto, urgência ao tratar a matéria de

Neste raciocínio, os perfis utilizados

particular,

manifesta-

garantias, direitos e deveres no ambiente

(...) As críticas por suposto monopólio,

Contudo,

demonstrado,

discorre sobre a responsabilidade dos fornecedores

no

ambiente

digital,

além de garantir o funcionamento das atividades neste espaço. Posto isso, é clara a referência ao Código de Defesa do Consumidor (CDC), Lei nº. 8.078/1990, devendo ambos dialogarem entre si. Este, por sua vez, se reinventou no

mundo

virtual

para

continuar

36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


desempenhando seu papel protetivo essencial nas relações de consumo, e foi elaborado sobre os pilares de caráter protetivo e com enfoque humano. Acrescente-se apresenta

uma

que

gama

de

o

CDC

definições

e regulamentações, cujos pontos de destaque são quatro: o consumidor, o fornecedor, a vulnerabilidade deste último e, por fim, a responsabilidade dos fornecedores. O primeiro deles é definido como toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final, segundo o disposto em seu artigo 2º. Ademais, sobre o segundo termo, é esclarecido no artigo 3º, qual seja: Artigo 3° - Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços (BRASIL, 1990). Dessarte, conforme aduzido, as pessoas jurídicas de direito privado que mantêm atividades no ambiente virtual, como redes sociais, configuram o papel de fornecedoras. Por isso, é possível que Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

o CDC incida sobre esta relação e seja aplicado, bem como, que os usuários destas redes assumam a posição de consumidores, independente de serem perfis destinados ao comércio ou não. Vale

ressaltar

que

apesar

do

parágrafo 2º, deste artigo 3º, disciplinar que a atividade é mediante remuneração e as redes sociais, em princípio, são gratuitas, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já reconheceu que essas empresas se enquadram no conceito do CDC de fornecedor, pois recebem valores advindos dos usuários para publicidade veiculada neste espaço. Em

consonância,

entendimento Desembargador

adotado Tasso

é

o

mesmo

pelo

ilustre

Caubi

Soares

Delabary em seu voto: Existe relação de consumo entre o demandado e os usuários do site, uma vez que o Facebook se enquadra no conceito de fornecedor de serviços, conforme estatui o artigo 3º, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor. Veja que expressão contida no dispositivo mediante remuneração leva à compreensão de que devem ser incluídos todos os contratos nos quais é possível identificar uma remuneração indireta do serviço, como se vê na hipótese dos autos: muito embora o serviço prestado pelo Facebook não seja pago diretamente pelo usuário, ainda assim há o ganho

91


indireto do fornecedor, o que torna evidente a relação de consumo entre as partes. (TJ-RS; Apelação Cível nº 70056113202; Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Tasso Caubi Soares Delabary, Julgado em 25/09/2013) Pela princípios

lógica, e

baseando-se

conceitos

nos

insculpidos

nesta lei, o usuário se caracteriza como um

consumidor

no

âmbito

digital,

prevalecendo a hipossuficiência. Logo, faz jus a todas as prerrogativas dispostas, que se norteiam pela proteção do consumidor em relação aos possíveis abusos dos fornecedores. Por outro lado, no que concerne à responsabilidade civil, a legislação consumerista

defende

a

Teoria

da

Responsabilidade Objetiva, em que é dispensada a análise do dolo ou culpa para sua incidência, bastando a comprovação de verdadeiro dano e o nexo causal entre a conduta ilícita do fornecedor e a lesão ao consumidor.

Inclusive, esse entendimento se confirmou em recente decisão do Juiz Fernando Moreira Gonçalves, do 8º Juizado Especial Cível da Comarca de Goiânia, conforme se vê: Não paira dúvida no sentido de que se trata de relação de consumo o liame que envolve as partes, devendo, assim, se proceder a apreciação da presente demanda à luz dos princípios norteadores do Código de Defesa do Consumidor. O

consumidor

possui

proteção

constitucional, conforme art. 5º, inciso XXXII e art. 170, inciso V da Constituição Federal. Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final e fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação,

Isto posto, sendo o Facebook uma

importação, exportação, distribuição

rede social, não há dúvida que existe

ou comercialização de produtos ou

relação de consumo entre este aplicativo

prestação de serviços (arts. 2º e 3º,

e seus usuários, devendo ser aplicado os

CDC). As demandas que envolvem

princípios norteadores do MCI e do CDC.

relação consumerista podem ser

No mais, vale ressaltar que a pesquisa é

delimitada

aos

perfis

comerciais;

entretanto, os dispositivos legais de 92

proteção incidem tanto para o perfil pessoal quanto para as páginas.

ajuizadas no foro do domicílio do consumidor, a exemplo do presente caso, em consonância como art. 101, 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


I, do CDC e Súmula 21 do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. Portanto, verificada a competência deste juízo. (8º

Juizado

Especial

Cível

da

Comarca de Goiânia, Processo nº. 5603449.80.2019.8.09.0051.

Juiz:

Fernando Moreira Gonçalves. Data da publicação: 14 de fev. 2020) Ademais, nota-se que os tribunais têm pacificado essa temática, sendo este entendimento refletido em diversos julgados, tal como os precedentes abaixo: APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. POSTAGEM ABUSIVA. ESPAÇO PÚBLICO VIRTUAL. FACEBOOK. APLICABILIDADE DO CDC. Existe relação de consumo entre o demandado e os usuários do site facebook, uma vez que o réu se enquadra no conceito de fornecedor de serviços, conforme estatui o art. 3º, § 2º, do CDC. A expressão mediante remuneração leva à compreensão de que devem ser incluídos todos os contratos nos quais é possível identificar uma remuneração indireta do serviço, o que ocorre na espécie; embora o serviço prestado não seja pago diretamente pela usuária, ora autora, ainda assim há o ganho indireto do fornecedor, sendo inegável a incidência das regras da lei consumerista.

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DENÚNCIA. NOTIFICAÇÃO EXTRAJUDICIAL NÃO CUMPRIDA. MENSAGENS IMPRÓPRIAS. DEVER DE INDENIZAR CONFIGURADO. QUANTUM INDENIZATÓRIO. MANUTENÇÃO. Responsabilidade imputada ao servidor de hospedagem, diante da sua desídia, pois, mesmo após ter sido notificado acerca da invasão do perfil criado pela autora, não excluiu a página do site de relacionamento facebook, fato que só veio a fazer em momento tardio, por meio de ordem judicial. Danos morais configurados. Valor da condenação mantido de acordo com as peculiaridades do caso concreto, bem como observada a natureza jurídica da condenação e os princípios da proporcionalidade e razoabilidade. SUCUMBÊNCIA. PRINCÍPIO DA CAUSALIDADE. Princípio da causalidade que impõe a parte que deu causa a demanda suportar o ônus da sucumbência. RECURSO DESPROVIDO. (TJ-RS, Apelação Cível Nº 70056113202, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Tasso Caubi Soares Delabary, Julgado em 25/09/2013) CIVIL E CONSUMIDOR. INTERNET. RELAÇÃO DE CONSUMO. INCIDÊNCIADO CDC. GRATUIDADE DO SERVIÇO. INDIFERENÇA. PROVEDOR DE CONTEÚDO. 93


FISCALIZAÇÃO PRÉVIA DO TEOR DAS INFORMAÇÕES POSTADAS NO SITE PELOS USUÁRIOS. DESNECESSIDADE. MENSAGEM DE CONTEÚDO OFENSIVO. DANO MORAL. RISCO INERENTE AO NEGÓCIO. INEXISTÊNCIA. CIÊNCIA DA EXISTÊNCIA DE CONTEÚDO ILÍCITO. RETIRADA IMEDIATA DO AR. DEVER. DISPONIBILIZAÇÃO DE MEIOS PARA IDENTIFICAÇÃO DE CADA USUÁRIO. DEVER. REGISTRO DO NÚMERO DE IP. SUFICIÊNCIA. 1. A exploração comercial da internet sujeita as relações de consumo daí advindas à Lei nº 8.078/90. 2. O fato de o serviço prestado pelo provedor de serviço de internet ser gratuito não desvirtua a relação de consumo, pois o termo mediante remuneração, contido no art. 3º, § 2º, do CDC, deve ser interpretado de forma ampla, de modo a incluir o ganho indireto do fornecedor. 3. A fiscalização prévia, pelo provedor de conteúdo, do teor das informações postadas na web por cada usuário não é atividade intrínseca ao serviço prestado, de modo que não se pode reputar defeituoso, nos termos do art. 14 do CDC, o site que não examina e filtra os dados e imagens nele inseridos. 4. O dano moral decorrente de mensagens com conteúdo ofensivo inseridas no site pelo usuário não constitui risco inerente à atividade dos provedores de conteúdo, de modo que não se lhes aplica a 94

responsabilidade objetiva prevista no art. 927, parágrafo único, do CC/02. 5. Ao ser comunicado de que determinado texto ou imagem possui conteúdo ilícito, deve o provedor agir de forma enérgica, retirando o material do ar imediatamente, sob pena de responder solidariamente com o autor direto do dano, em virtude da omissão praticada. 6. Ao oferecer um serviço por meio do qual se possibilita que os usuários externem livremente sua opinião, deve o provedor de conteúdo ter o cuidado de propiciar meios para que se possa identificar cada um desses usuários, coibindo o anonimato e atribuindo a cada manifestação uma autoria certa e determinada. Sob a ótica da diligência média que se espera do provedor, deve este adotar as providências que, conforme as circunstâncias específicas de cada caso, estiverem ao seu alcance para a individualização dos usuários do site, sob pena de responsabilização subjetiva por culpa in omittendo. 7. A iniciativa do provedor de conteúdo de manter em site que hospeda rede social virtual um canal para denúncias é louvável e condiz com a postura esperada na prestação desse tipo de serviço - de manter meios que possibilitem a identificação de cada usuário (e de eventuais abusos por ele praticado) - mas a mera disponibilização da ferramenta não é suficiente. É crucial que haja a efetiva 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


adoção de providências tendentes a apurar e resolver as reclamações formuladas, mantendo o denunciante informado das medidas tomadas, sob pena de se criar apenas uma falsa sensação de segurança e controle. 8. Recurso especial não provido. (STJ REsp: 1308830 RS 2011/0257434-5, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 08/05/2012, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 19/06/2012 RDDP vol. 114 p. 134) Ante o exposto, cabe ao Facebook a adoção de boas práticas de governança, capazes de garantir ao consumidor, qual seja, perfil comercial, um ambiente seguro e ausente de possíveis abusos e ilegalidades, devendo sempre adotar condutas que não causem ou permitam dano aos perfis, sob pena de responsabilização.

a privacidade do indivíduo, estabelecendo garantias e controle para o tratamento de dados. Assim, foi deliberado que a existência deste é subordinada à existência de uma hipótese legal que o assegure. A análise do consentimento, bem como do legítimo interesse, se faz necessária, pois pressupõe a discussão sobre a possibilidade de vício, já que há caracterização de relação consumerista entre o detentor de dados pessoais e o Facebook. Assim, a exigência do estudo dos requisitos do consentimento válido e do interesse legítimo para o tratamento de dados é trazida à tona. Nessa senda, a LGPD é fundamentada na hipótese legal do consentimento do titular de dados, em que a finalidade primordial é proteger os dados pessoais, vedando o tratamento nos casos em que a finalidade divergir da que foi acordada

4. A LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS E OS PRINCÍPIOS Embora o Brasil já tivesse legislações que assegurassem a proteção de dados, inclusive em na própria Carta Política de 1988, a LGPD, Lei nº 13.709/18, influenciada no regulamento europeu (General Data Protection Regulation), foi responsável por consolidar as garantias dos titulares, bem como definir um órgão responsável por fiscalizar e criar diretrizes aos agentes de tratamento.

nas condições originais. Esta hipótese se desdobra no artigo 5º, inciso XII, da LGPD definindo se por uma “manifestação livre, informada e inequívoca pela qual o titular concorda com o tratamento de seus dados pessoais para uma finalidade determinada” (BRASIL, 2018). Cabe ainda, fazer alusão ao Código Civil, que estabelece a necessidade de a anuidade ser plena, não podendo haver vícios ou limitações, e estando sujeita à anulação em caso de irregularidades.

Ela tem, por maior escopo, proteger Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

95


Portanto, a relação consumerista existente entre a rede social e o titular de dados, detentor de contas destinadas a fins comerciais, emerge a discussão acerca da possibilidade de aplicação de consentimento neste âmbito, tendo em vista a possibilidade de vício de vontade do consumidor. Ainda, o legítimo interesse é a hipótese legal responsável por disciplinar o tratamento de dados para finalidades legítimas, vinculadas à atividade do controlador e em conformidade com os interesses do usuário detentor dos dados, conforme se depreende do artigo 10º da LGPD: Artigo 10. O legítimo interesse do controlador somente poderá fundamentar tratamento de dados pessoais para finalidades legítimas, consideradas a partir de situações concretas, que incluem, mas não se limitam a: I -apoio e promoção de atividades do controlador; e II -proteção, em relação ao titular, do exercício regular de seus direitos ou prestação de serviços que o beneficiem, respeitadas as legítimas expectativas dele e os direitos e liberdades fundamentais, nos termos desta Lei. § 1º Quando o tratamento for baseado no legítimo interesse do controlador, somente os dados 96

pessoais estritamente necessários para a finalidade pretendida poderão ser tratados. § 2º O controlador deverá adotar medidas para garantir a transparência do tratamento de dados baseado em seu legítimo interesse. § 3º A autoridade nacional poderá solicitar ao controlador relatório de impacto à proteção de dados pessoais, quando o tratamento tiver como fundamento seu interesse legítimo, observados os segredos comercial e industrial (BRASIL, 2018). Essa hipótese proporciona preferência à expectativa do titular frente ao tratamento de seus dados, atendendose ao requisito da necessidade e da proporcionalidade na utilização dos dados pessoais. Com a aplicação do referido princípio, pretende-se afastar tratamentos invasivos, abrangentes e inesperados, permitindo apenas aqueles onde há uma finalidade evidente, específica para o caso, ética e legal. Ressalte-se que o conceito de legítimo interesse está em construção, devendo ser analisado a cada caso concreto, conforme determina o artigo 10º, inciso I, com a ponderação dos direitos e liberdades fundamentais do titular de dados e do controlador. Também, devem ser examinadas as repercussões em relação ao usuário detentor dos dados, bem como o equilíbrio entre os interesses legítimos 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


do controlador, com salvaguardas para proteger os impactos indesejados ao

tratamento de dados pessoais, tendo em

para este.

fim anunciado, autêntico e específico.

vista que todo tratamento deve ter um

Porém, ainda há dúvidas quanto à

Quanto ao princípio da segurança,

aplicabilidade desse conceito frente ao

que consiste na proteção integral durante

ordenamento jurídico brasileiro, inclusive

o período que a informação for utilizada, o

no tratamento de dados do Facebook em

acesso não autorizado é terminantemente

perfis comerciais, onde se qualifica uma

proibido, a fim de que os indivíduos não se

relação consumerista e a ponderação dos

tornem vítimas em eventuais acidentes de

princípios se faz ainda mais complexa.

vazamento de dados ou quaisquer outros

Contudo, apesar do tratamento de dados realizado por esta plataforma, de

danos morais ou materiais que sejam capazes de prejudicá-los.

início, estar em conformidade com os

Para tanto, é imprescindível que as

requisitos legais do legítimo interesse e

redes sociais, em especial o Facebook,

do consentimento, é evidente a existência

objeto do estudo, adequem-se às normas

de fomentados questionamentos acerca

protetivas, haja vista que as utilizações

dessa legalidade, a fim de evitar que os

abusivas

direitos e liberdades dos indivíduos sejam

provedores de internet colocam em risco

ameaçados.

toda a credibilidade do negócio, trazendo

Ao estabelecer parâmetros para as operações, a LGPD elenca um rol de

dos

dados

pessoais

pelos

prejuízos financeiros e danos irreparáveis na esfera da integridade.

dez princípios taxativos, que atrelados à boa-fé, que devem ser observados pelos agentes de tratamento. Dentre os princípios mencionados, o princípio da finalidade é responsável pela garantia de que o tratamento deve ser amparado por propósitos legítimos, específicos, explícitos

e

informativos

ao

titular,

vedando o uso indiscriminado de dados e fazendo jus ao princípio da adequação. Ainda sobre a aplicação deste, insta salientar que o consentimento deve basear-se em finalidades determinadas, anulando autorizações genéricas para o Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

5. CONCLUSÃO O tratamento de dados pessoais dentro do Facebook torna-se cada dia mais lucrativo, visto que a partir de padrões e preferências são traçados os perfis de consumo dos usuários. Sendo assim, o resultado é um direcionamento personalizado de marketing, ou até mesmo a venda desse conjunto de dados para terceiros, criando uma relação de consumo entre a imensa plataforma digital e seus clientes.

97


Verificou-se, inicialmente, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor nas relações existentes entre a rede social e os usuários de perfis voltados para fins comerciais. Dialogando ainda, com o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados, responsáveis por regulamentar as relações no ambiente virtual. Quanto à aplicação das hipóteses legais e os princípios norteadores da Lei Geral de Proteção de Dados, entendeuse que apesar de a plataforma estar teoricamente

em

conformidade

com

todos os preceitos legais, os institutos como o legítimo interesse e a finalidade devem ser aplicados com atenção e cautela, com o objetivo de resguardar os direitos do titular de dados, com ênfase na sua privacidade. Por todo o exposto, defendese

a

responsabilização

objetiva

do

Facebook frente ao seu dever de garantir segurança aos seus utilizadores. Quanto às contas comerciais, verificou-se que essa máxima deve ser seguida com rigor, em razão do risco reputacional, envolvendo a credibilidade e o risco de vício do consentimento do titular, por tratar-se de relação consumerista, em que o consumidor tem posição de notória vulnerabilidade.

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A Lei Geral de Proteção de Dados e sua Aplicabilidade Junto ao Sistema Open Banking Armazenamento Diante do Consentimento Caroline Gobato72 Christiany Pegorari Conte73 Isabella de Picoli74 Victória Coutinho Galvão dos Santos75

RESUMO O resumo expandido em perspectiva trata do novo Sistema Financeiro Aberto, mais conhecido como “Open Banking” junto à Lei Geral de Proteção de Dados. Tal sistema, se refere a um novo mecanismo que possibilita o compartilhamento de dados, produtos e serviços através da integralização das plataformas participantes, a fim de expandir e melhorar a aplicabilidade e eficiência do mercado de créditos e pagamentos. Além disto, esta nova modalidade de sistematização possibilita a democratização do mercado financeiro, impulsionando a economia nacional, afetando diretamente o contexto macroeconômico no país. O Open Banking foi implementado pelo Banco Central do Brasil (BACEN), com o objetivo de alavancar o Sistema Nacional Financeiro, por meio de sua inovação, porém, visando, ainda, a proteção e a segurança de dados dos consumidores. 72  Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Membro do Grupo de Estudos de Direito Digital da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. 73  Advogada. Mestre em Direito da Sociedade da Informação pela FMU/SP. Doutoranda em Educação pela PUC Campinas. Professora de Direito Penal e Processual Penal da PUC Campinas. Coordenadora da Extensão em Crimes Digitais e da Especialização em Direito Digital da PUC Campinas. Vice-Presidente da Comissão de Direito Digital da OAB/SP, Membro do Núcleo temático sobre Direito, Inovação e Tecnologia da ESA/SP. 74  Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Membro do Grupo de Estudos de Direito Digital da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. 75  Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Membro do Grupo de Estudos de Direito Digital da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. 102

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No entanto, sabe-se que as empresas, coletam, tratam e descartam dados diariamente de forma automática e dinâmica. Diante disto, é imprescindível realizar-se uma análise pormenorizada da aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), nº 13.709, à vista deste novo modelo de sistematização, para que eventuais dados armazenados, possa ter o tratamento destinado pela Lei, que engloba, além dos tópicos mencionados, a coleta, o acesso, armazenamento, modificação e distribuição de dados (FORMA DE TRATAMENTO DE DADOS QUE O OPEN BANKING REALIZA). Assim, como a implementação do PIX, sistema de pagamento instantâneo do Banco Central que teve início no final do ano de 2020 e facilitou a maneira que instituições financeiras realizam suas transações, o Open Banking possibilita de forma mais dinâmica o acesso de dados e informações de clientes entre as instituições, fornecendo ao consumidor a possibilidade de reunir todas as suas contas, investimentos e serviços dentro de um único sistema. Diante disso, com o surgimento de uma legislação que regulamente a questão do fornecimento e compartilhamento de dados no Brasil, qual seja a LGPD, vigente desde 2020, se torna evidente sua aplicação dentro também do âmbito financeiro, visto que a transparência e a segurança no compartilhamento de dados é meta a ser alcançada no cerne da nova lei. No que tange o consentimento do titular dos dados, a LGPD, abrange o conceito de consentimento em seu artigo 5°, inciso XII. Além disso, a Lei nº 12.965/2014, conhecida como o Marco Civil da Internet no Brasil também preocupou-se em delimitar, exigir e privilegiar o consentimento do usuário como alicerce da utilização, armazenamento e tratamento de dados. Assim, se faz cada vez mais necessário, tendo em vista o princípio da transparência que rege a LGPD, uma análise da figura do consentimento dentro do âmbito do mercado financeiro. Nesse sentido os objetivos da pesquisa são: (i) analisar o sistema financeiro Open Banking (ii) analisar a aplicabilidade da Lei Geral de Proteção de Dados, à vista do referido sistema (iii) analisar o consentimento estipulado pela referida lei, e sua aplicabilidade direta ao sistema. O resultado esperado é a necessidade de aplicação estrita da LGPD ao sistema Open Banking, e seu respectivo cumprimento. Por fim, salienta-se que para o desenvolvimento da pesquisa, será utilizado estritamente a pesquisa PALAVRAS-CHAVE Tecnologia - Open Banking - Lei Geral de Proteção de Dados - Transparência - Consentimento - Banco - Economia - Direito

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1. INTRODUÇÃO O presente artigo visa, à luz do novo Sistema Financeiro Aberto implementado no país, também conhecido como open banking, analisar a possibilidade, cada vez mais ampla, do compartilhamento de dados pessoais dos usuários de sistemas bancários entre as instituições financeiras. Nesse sentido, é necessário observar o advento da Lei Geral de Proteção de Dados no Brasil (LGPD), bem como a figura do consentimento especificada dentro da normativa, a fim de entendermos os riscos inerentes à figura do open banking e o facilitamento do compartilhamento de dados. Em um primeiro momento, será analisado, de forma breve, no que consiste o novo sistema financeiro aberto e seus principais objetivos, bem como suas fases de implementação estipuladas pelo Banco Central do Brasil e as finalidades de cada fase. Após, serão apresentados os riscos inerentes ao sistema considerando a proteção dos dados pessoais e falhas que podem desencadear fraudes. No desenvolvimento da pesquisa, será também apresentada a Lei Geral de Proteção de dados (LGPD), e sua obrigatória aplicação dentro do sistema open banking, levando em consideração, principalmente, a figura do consentimento detalhada na lei e os problemas que podem ser ocasionados relativos a segurança jurídica e privacidade de dados dentro do sistema.

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Por fim, será analisada a figura da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), dentro desse sistema, levando em conta, novamente, a LGPD. Nesse contexto, será possível concluir sobre as reais vantagens do sistema open banking, bem como os riscos que o mesmo efetivamente ocasionará quando estiver em pleno funcionamento dentro do país. 2. O SISTEMA OPEN BANKING Em 2017, o Brasil, visando melhorar a crise econômica brasileira, começou o processo de adesão à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE, com o intuito de reiniciar os mecanismos de desenvolvimento econômico sustentável, com uma maior preservação do meio ambiente, bem como a inclusão social. Nesse sentido, criando um melhor cenário para a situação econômica brasileira. Sobretudo, para que isso pudesse ocorrer, era necessário implementar alguns instrumentos legais, e, um desses instrumentos se trata do “open banking” ou “Sistema Financeiro Aberto” Isto posto, o Sistema Financeiro Aberto, conhecido como “Open Banking”, trata-se de um novo mecanismo que possibilita o compartilhamento de dados, produtos e serviços através da integralização das plataformas participantes, a fim de expandir e melhorar a aplicabilidade e eficiência do mercado de créditos e pagamentos. Além disto, 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


esta nova modalidade de sistematização possibilita a democratização do mercado financeiro, impulsionando a economia nacional, afetando diretamente o contexto macroeconômico no país.

e Vicente Bagnoli: “O Open Banking

O sistema em questão foi implementado pelo Banco Central do Brasil (BACEN), com o objetivo de alavancar o Sistema Nacional Financeiro, por meio da inovação do mercado financeiro, porém, visando, ainda, a proteção e a segurança de dados dos consumidores.

mercado, e, consequentemente, acirrando

2.1. FASES DE IMPLEMENTAÇÃO Com vistas a aumentar a velocidade com que as transações no mercado de crédito são realizadas, o Banco Central do Brasil (BACEN), em 2021, deu início à

representa uma mudança no modo como os serviços financeiros são prestados, possibilitando

a

geração

de

novas

oportunidades para os consumidores e o a competição.” (BAGNOLI e RIBEIRO, 2020, p.221). De acordo com o Banco Central do Brasil, para a implementação do sistema, foi criada uma “estrutura de governança”,

que

reúne

entidades

representativas relacionadas ao mercado financeiro e é composta por um Conselho Deliberativo, responsável por decidir sobre a implementação, padrões técnicos, estudos,

entre

outros

fatores

que

compõem o sistema76.

implementação do sistema “Open Banking”,

Ademais, a implementação do Open

o qual passou a ter eficácia pouco tempo

banking, que é composta de quatro etapas,

após o início da vigência da Lei Geral de

inicialmente estava prevista para ser

Proteção de Dados (LGPD), em 2020, no

concluída até o mês de agosto de 2021,

país.

porém foi adiada pelo Banco Central, Nesse sentido, o sistema intenciona

permitir, com o consentimento dos clientes, a abertura de dados pessoais e financeiros, tratados na LGPD, a fim de tornar o mercado financeiro mais eficaz, com a possibilidade de os clientes escolherem entre uma maior gama de serviços

fornecidos

por

instituições

agora tendo a expectativa de ser finalizada até setembro de 2022. Nos dias atuais, o sistema ainda vigora em sua primeira fase, implementada em fevereiro, que consiste no compartilhamento entre instituições financeiras de informações sobre canais de atendimento, serviços e produtos financeiros tradicionais.

financeiras, reduzindo os riscos, haja

Essa primeira fase, possui como

vista que os procedimentos operacionais

objetivo que ocorra uma comparação

tendenciam a se padronizar com o sistema. Assim, para Alexandre Ogêda Ribeiro Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

76  BRASIL. Banco Central Do Brasil, Home Page <https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/ openbanking> Acesso em: 01 de junho de 2021. 105


entre produtos e serviços fornecidos pelos agentes financeiros, fazendo com que se alinhem mais a necessidade dos consumidores, que poderão escolher de forma mais facilitada o que necessitam. Na segunda fase, com previsão de início para o dia 15 de julho de 2021, os consumidores terão o controle para permitir o compartilhamento de dados como

dados

cadastrais,

transações

em conta, informações sobre cartões e operações de crédito, visando o surgimento de produtos e serviços mais personalizados e acessíveis. A terceira etapa da implementação do sistema visa que os clientes possam ter acesso a serviços, como ofertas de crédito por exemplo, sem a necessidade de acessar o aplicativo de cada instituição financeira ou comparecer a cada agência. Por fim, na quarta e última fase, é previsto que seja ampliada a gama de informações e dados que podem ser compartilhados

pelos

consumidores,

objetivando a criação de produtos e serviços ainda mais alinhados à real necessidade do usuário. Assim, o respectivo sistema, por ter como finalidade utilizar de forma ampla os dados de seus consumidores, necessita estar em consonância com a

LGPD,

especialmente

no

aspecto

do consentimento no que tange às informações pessoais e profissionais dos correntistas. 106

2.2. RISCOS RELATIVOS À IMPLEMENTAÇÃO A implementação do Open Banking, apesar de seus mais variados benefícios para as instituições financeiras, podem também acarretar em alguns riscos práticos aos próprios controladores. Inicialmente, ressalta-se a clara perda de exclusividade por parte das instituições financeiras, dos dados relativos aos correntistas. Para Alexandre Ogêda Ribeiro e Vicente Bagnoli: “com o compartilhamento de dados e de serviços de forma mais aberta e abrangente, as instituições tendem a perder a exclusividade das informações de seus clientes.” (BAGNOLI e RIBEIRO, 2020, p.224). Isso porque, em razão da implementação desta nova forma de sistematização, o compartilhamento de dados acarretará em maior abrangência destes junto às demais instituições financeiras, o que gera como consequência alto nível de compartilhamento de dados. Ademais, o modelo Open Banking, ao permitir o compartilhamento de dados objetivando que o serviço seja cada vez mais adequado ao usuário, enseja também que novas empresas iniciem sua atuação no mercado. Assim, cria-se o risco de que, informações que hoje se encontram em poder de poucas instituições antigas e muito conhecidas, sejam compartilhadas com as novas empresas, o que pode ocasionar uma irresponsabilidade 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


no tratamento de dados das novas empresas. Assim, se faz necessário uma regulamentação e fiscalização das políticas de cada instituição financeira, a fim de mitigar os riscos. Em decorrência de tal, deverá o Open Banking fazer uso de tecnologia de criptografia de ponta, vez que maiores serão os riscos cibernéticos advindos de eventuais fraudes, o que poderá prejudicar e influenciar a imagem das instituições participantes e do sistema em geral. 3. APLICAÇÃO DA LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS JUNTO AO SISTEMA OPEN BANKING O Sistema Financeiro Aberto, é uma inovação decorrente da nova realidade tecnológica que se estende pelo mundo, inclusive o Brasil, visa facilitar os investimentos no país dentro do setor financeiro de forma a induzir um crescimento econômico. Como a implementação no PIX, sistema de pagamento instantâneo do Banco Central que teve início no final do ano de 2020 e facilitou a maneira que instituições financeiras realizam suas transações, o Open Banking possibilita de forma mais dinâmica o compartilhamento de dados e informações de clientes entre as instituições, fornecendo ao consumidor a possibilidade de reunir todas as suas contas, investimentos e serviços dentro de um único sistema. Assim, o Banco Central do Brasil,

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ao apresentar as diretrizes para a implementação do Open Banking no Brasil em 2019, aduziu sobre alguns dos dados que serão contemplados pelo modelo brasileiro como por exemplo os dados cadastrais dos clientes (nome, filiação, endereço, entre outros) e dados relativos a transações efetuadas. Nesse sentido, com o surgimento de uma legislação que regulamente a questão do fornecimento e compartilhamento de dados no Brasil, a Nova Lei de Proteção de Dados (LGPD) vigente desde de 2020, se torna evidente sua aplicação dentro também do âmbito financeiro, visto que a transparência e a segurança no compartilhamento de dados é meta a ser alcançada no cerne da nova lei. No que tange o consentimento do titular dos dados em questão, é importante, como dito anteriormente, que este se adeque a Lei Geral de Proteção de Dados. Esta, por sua vez, abrange o conceito de consentimento em seu artigo 5°, inciso XII. Além da Constituição Federal, a Lei nº 12.965/2014, conhecida como o Marco Civil da Internet no Brasil também preocupou-se em delimitar, exigir e privilegiar o consentimento do usuário como alicerce da utilização, armazenamento e tratamento de dados. Por efeito disso, a recente Lei Geral de Proteção de Dados abordou também o consentimento do usuário como fundamento imprescindível, entretanto, deixou de ser único requisito delimitado. 107


3.1. A LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS E A FIGURA DO CONSENTIMENTO

Em 2018, a Lei n° 13.709, mas conhecida como Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), foi aprovada, visando regulamentar o tratamento de dados pessoais em diversos âmbitos, incluindo as plataformas digitais, a fim de proteger direitos fundamentais como o direito à privacidade, que está previsto na Constituição Federal de 1988, artigo 5°, inciso X, bem como proteger o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural. Assim, a respectiva lei, que teve como início da sua vigência o ano de 2020, ao regular o tratamento dos dados pessoais, passou a oferecer o controle dos seus dados pessoais aos cidadãos, por meio da criação de parâmetros para as empresas e outras organizações presentes no Brasil, para que estas pudessem tratar as informações pessoas físicas identificadas (ou identificáveis). À vista disso, trouxe, em seu bojo, a figura do consentimento, que é estabelecido especialmente em seu artigo 5°, no qual é trazido o seu conceito, dentre outros. Nesse sentido, o consentimento, segundo a LGPD, artigo 5°, inciso XII, é: “XII - consentimento: manifestação livre, informada e inequívoca pela qual o titular concorda com o tratamento de seus dados pessoais para uma finalidade determinada;”

108

Assim, a figura do consentimento, sobretudo, trata-se de manifestação livre, informada e inequívoca do titular dos dados, de maneira que não pode esta ser deduzida por parte das grandes plataformas digitais. O consentimento válido deve ser claramente concedido pelo cliente, alcançando os parâmetros legais, de modo a permitir o compartilhamento de seus dados pessoais com a plataforma, gerando maior autonomia ao titular em face às suas informações pessoais. Nesse espeque, vale ressaltar que, o simples silêncio do titular não caracteriza consentimento, devendo ser manifestado por gesto certeiro, caracterizando consentimento tácito por ato determinado, por manifestação escrita ou oral. Ainda, deverá ser livre de vícios, sem intervenção ou coerção, sem vícios de consentimento, bem como não pode ser genérico, deve ser destinado especificamente para o compartilhamento de dados, empregado em um tratamento de dados específico, bem como conter todas as informações características do tratamento a ser realizado. 3.2. O CONSENTIMENTO COMO REQUISITO OBRIGATÓRIO PARA O ARMAZENAMENTO DE DADOS Em razão da criação e aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados, o consentimento passou a ser requisito obrigatório para o compartilhamento

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de dados pessoais do titular. Sobretudo, foram elencados diversas hipóteses para que possa ocorrer esse tratamento de informações. Em seu artigo 7°, inciso I, é trazida a obrigatoriedade deste: Art. 7º O tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado nas seguintes hipóteses: I - mediante o fornecimento de consentimento pelo titular; II - para o cumprimento de obrigação legal ou regulatória pelo controlador; III - pela administração pública, para o tratamento e uso compartilhado de dados necessários à execução de políticas públicas previstas em leis e regulamentos ou respaldadas em contratos, convênios ou instrumentos congêneres, observadas as disposições do Capítulo IV desta Lei; IV - para a realização de estudos por órgão de pesquisa, garantida, sempre que possível, a anonimização dos dados pessoais; V - quando necessário para a execução de contrato ou de procedimentos preliminares relacionados a contrato do qual seja parte o titular, a pedido do titular dos dados; VI - para o exercício regular de direitos em processo judicial, administrativo ou arbitral, esse último nos termos da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996 (Lei de Arbitragem) ; VII - para a proteção da vida ou da Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

incolumidade física do titular ou de terceiro; VIII - para a tutela da saúde, exclusivamente, em procedimento realizado por profissionais de saúde, serviços de saúde ou autoridade sanitária; (Redação dada pela Lei nº 13.853, de 2019) Vigência IX - quando necessário para atender aos interesses legítimos do controlador ou de terceiro, exceto no caso de prevalecer em direitos e liberdades fundamentais do titular que exijam a proteção dos dados pessoais; ou X - para a proteção do crédito, inclusive quanto ao disposto na legislação pertinente. Nesse sentido, o consentimento é a primeira hipótese a permitir o tratamento de dados pessoais dentro da LGPD e, dentro do Open Banking, a principal pressuposto a autorizar o compartilhamento de dados da pessoa natural com grandes empresas e o mercado financeiro em geral. 3.3. SEGURANÇA JURÍDICA PRIVACIDADE DE DADOS

E

A

Sabe-se que na atualidade diversos problemas se concretizam e ocorrem em decorrência da integralização de dados proporcionada pelas atuais tecnologias, principalmente pela internet. A promulgação da LGPD, bem como demais normas que visam o 109


estabelecimento específico de normas acerca da proteção e privacidade na internet, é resposta legislativa direta aos problemas existentes e decorrentes da rede, que incluem a distorção de informações, o super compartilhamento, e todas as formas de tratamento de dados previstas no rol taxativo do art. 5º da lei supramencionada. No mais, diante a própria figura do consentimento, já mencionada no presente trabalho, é de extrema importância o quanto estabelecido no art. 7º da LGPD, a fim de regulamentar de forma expressa que o compartilhamento de dados somente ocorrerá diante da autorização pelo consumidor, relativo ao direito que engloba. À vista disso, ressalta-se a importância da devida regulamentação para verificação de segurança jurídica diante eventual responsabilização. Tratando-se de relação de consumo, especificamente relação onde há a presença do tratamento de dados sensíveis, como é o caso da relação jurídica advinda do Open Banking, cujas informações possuem poder de influenciar diretamente diversas vertentes da vida financeira do consumidor, inclusive, a concessão e obtenção de crédito, é de suma importância para a verificação exata do regulamentado nos dispositivos legais, que haja pleno e irrestrito conhecimento acerca da extensão do referido consentimento. os 110

Ocorre que, grande parte das vezes, consumidores são bombardeados

de informações que ressaltam apenas as facetas favoráveis vinculadas ao consentimento, deixando de lado as problemáticas decorrentes deste, como as consequências já mencionadas. Neste espeque, ressalta-se a necessidade de atuação dos órgãos regulamentadores, a fim de que seja realizada efetiva fiscalização acerca da extensão do consentimento, visando a garantia de segurança jurídica, bem como da implementação devida e coerente do sistema Open Banking. 3.4. ANPD E O OPEN BANKING A Autoridade Nacional de Proteção de dados, ANPD, instituída pelas leis 13.709/2018 e 13.853/2019, foi criada com intuito de ser responsável pela proteção dos dados pessoais, devendo ainda zelar, implementar e fiscalizar o cumprimento da Lei Geral de Proteção de Dados de forma direta e indireta em todo território brasileiro. De outro lado, tem-se o BACEN, que possui diversas atribuições, e entre elas, o dever de supervisionar o sistema financeiro e executar as políticas monetárias. Por fim, há a figura do Conselho Monetário Nacional, CMN, que possui como função primordial a coordenação das políticas públicas e privadas de crédito. Nesse sentido, o Open Banking vem sendo implementado aos poucos sob supervisão do próprio BACEN.

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Como já esgotado no presente artigo, a intenção do sistema é a ampliação de acesso aos dados dos correntistas, e diante disso, há massivo tratamento de dados pessoais, cujas operações deveriam ser fiscalizadas pela própria ANPD. Além disso, de forma isolada, há a atuação e regulamentação do próprio CMN. A Lei Geral de Proteção de Dados assim estabelece, em seu artigo 55: Art. 55-J. Compete à ANPD: I - zelar pela proteção dos dados pessoais, nos termos da legislação; II - zelar pela observância dos segredos comercial e industrial, observada a proteção de dados pessoais e do sigilo das informações quando protegido por lei ou quando a quebra do sigilo violar os fundamentos do art. 2º desta Lei; III - elaborar diretrizes para a Política Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade; IV - fiscalizar e aplicar sanções em caso de tratamento de dados realizado em descumprimento à legislação, mediante processo administrativo que assegure o contraditório, a ampla defesa e o direito de recurso; [...] VIII - estimular a adoção de padrões para serviços e produtos que facilitem Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

o exercício de controle dos titulares sobre seus dados pessoais, os quais deverão levar em consideração as especificidades das atividades e o porte dos responsáveis; [...]

X - dispor sobre as formas de publicidade das operações de tratamento de dados pessoais, respeitados os segredos comercial e industrial; XI - solicitar, a qualquer momento, às entidades do poder público que realizem operações de tratamento de dados pessoais informe específico sobre o âmbito, a natureza dos dados e os demais detalhes do tratamento realizado, com a possibilidade de emitir parecer técnico complementar para garantir o cumprimento desta Lei; [...] XIII - editar regulamentos e procedimentos sobre proteção de dados pessoais e privacidade, bem como sobre relatórios de impacto à proteção de dados pessoais para os casos em que o tratamento representar alto risco à garantia dos princípios gerais de proteção de dados pessoais previstos nesta Lei; (BRASIL, 2018) Com isso, como se observa da própria lei, é obrigação da Agência Nacional de Proteção de Dados zelar pela proteção

111


dos dados pessoais de todos, dados estes que, conforme já exposto, na quarta etapa da implementação do Sistema Financeiro Aberto, serão cada vez mais passíveis de compartilhamento entre as instituições financeiras. Entretanto, o que percebe-se atualmente é a multiplicidade de órgãos atuando de forma individual, entretanto, buscando o mesmo fim, qual seja o devido tratamento de dados. Entretanto, no que tange a aplicação no Open Banking, notase maior influência e incidência do próprio BACEN, tornando a atuação da ANPD, a qual deveria ser prioritária e mais incisiva para que não haja o distanciamento da LGPD, prejudicada e distante. Assim, é evidente as dificuldades e problemáticas do exercício regulamentador por mais de um órgão , de forma que para o correto desenvolvimento do Open Banking é necessário que os três órgãos, principalmente o BACEN e a ANPD, estejam alinhados.

Nesse sentido, é possível analisar que o processo de implantação deste sistema, dividido em fases, permite, em cada uma delas, um maior número de informações passíveis

de

compartilhamento.

A

instituição utilizadora do sistemas terá de ser extremamente específica sobre o tratamento que está oferecendo, bem como o titular deverá especificar, se acordo com a lei, quais tratamentos dados está se submetendo a aderir. Isto posto, tais instituições financeiras precisarão utilizar-se de meios eficazes para recolher este consentimento de maneira válida, respeitando os requisitos legais, tais como a manifestação clara, inequívoca e que parte livre e puramente da manifestação de vontade do consumidor, sem vícios de consentimento. Assim, é possível concluir que, a análise da forma em que o consentimento foi colhido e concedido pelo titular, é imprescindível, à luz da Lei Geral de Proteção de Dados, uma vez que um grande fluxo de informações pessoais

4. CONCLUSÃO Ante

ao

exposto,

foi

possível

verificar que, com a implementação do novo sistema Open Banking de compartilhamento de dados de usuários entre instituições financeiras, a proteção dos dados regulamentada pela Lei Geral de Proteção de Dados também recai sobre

de pessoas físicas podem ser veiculados por este novo Sistema Financeiro Aberto, que concernem, não somente dados do âmbito financeiro do cliente, mas que são passíveis de ser utilizados em diversas situações e formas, já que os dados são questões universais no mundo atual.

os mesmos. Sobretudo, esta é a principal via que possibilita o tratamento desses dados por estas instituições. 112

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Acesse: https://issuu.com/ esa_oabsp www.esaoabsp.edu.br

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07

PROCESSO CONSTITUCIONAL E TECNOLOGIA: A UTILIZAÇÃO DE APLICATIVOS DE MENSAGEM PARA A CITAÇÃO DENTRO DO PROCESSO E SEUS PROBLEMAS Fernanda Gomes e Souza Borges77 Júlia Bielskis78 Mariana Assis da Aparecida79 Clara Lorrainy Diniz Barbosa80 Marcus Paulo Assis81

77  Doutora em Direito Processual pela PUC/Minas, professora Adjunta do Departamento de Direito da Universidade Federal de Lavras. Líder do GEPPROC/UFLA. 78  Graduanda no curso de Direito na Universidade Federal de Lavras, integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa em Processo Constitucional, do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital e pesquisadora com o PIVIC/UFLA. 79  Graduanda no curso de Direito na Universidade Federal de Lavras, integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa em Processo Constitucional. 80  Graduanda no curso de Direito na Universidade Federal de Lavras, integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa em Processo Constitucional. 81  116

Graduando no curso de Direito na Universidade Federal de Lavras. 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


RESUMO Não se pode ignorar a influência que os avanços tecnológicos possuem na vida humana. Principalmente quando se trata do ambiente jurídico. Nesse sentido, é necessário investigar como a tecnologia vem modificando o Direito Processual. Tendo em vista que essa área é reconhecida por seu conservadorismo. Apesar da utilização por meio de aplicativos, como o WhatsApp, ainda há diversas controvérsias quando se trata de usar esses aplicativos para se comunicar no processo, principalmente na citação. Tendo isso em vista, o objetivo do trabalho é entender as nuances da utilização de aplicativos de mensagens no processo de citação. Com isso, busca-se compreender se a utilização dessa ferramenta está de acordo com o processo constitucional, ou se é somente uma ilusão que o judiciário vem enfrentando. Destarte, a partir da leitura dos trabalhos acadêmicos coletados, foi averiguado que a utilização de aplicativos para a citação precisa se atentar com as regras do devido processo legal, sob pena de culminar em abusos. PALAVRAS CHAVE Tecnologia; whatsapp; processo constitucional; citação

1. INTRODUÇÃO: As constantes transformações e viradas tecnológicas são fatos inegáveis na

a estabelecer a próxima era estável” (CASTELLS, 2013, p. ). É incontestável que a sociedade enfrenta um desses

de situações estáveis, pontuadas em

intervalos em decorrência da revolução tecnológica, de tal forma que o direito deve estar preparado para acompanhar essas mudanças, dado que: “O direito não é um fenômeno estático. É dinâmico” (NASCIMENTO; NASCIMENTO, 2015, p. 35). Em decorrência de tal fato, deve-se sempre se atentar para as modificações na sociedade e como esta irá alterar o Direito, tendo em vista a função dos

intervalos raros por eventos importantes

técnicos do Direito de serem guardiões

que ocorrem com grande rapidez e ajudam

dos direitos fundamentais.

atualidade. Isto se deve, principalmente, por decorrência de novas tecnologias, que vêm adentrando cada vez mais nos nossos cotidianos. Nesse âmbito, alguns estudiosos afirmam que estamos vivendo uma revolução tecnológica (CASTELLS, 2013). Sendo assim, podemos averiguar que “A história da vida (...) é uma série

Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

117


Com isso em vista, pode-se averiguar

usados com fim à citação de partes,

que quando se trata de Direito Processual

nesse ponto, é necessário averiguar se

observa-se um forte incentivo para a

está se mostra como uma alternativa

utilização de meios tecnológicos dentro

tátil capaz de proporcionar a sustentação

dos processos, sob o argumento genérico, na grande maioria das vezes, que essas ferramentas celebrariam a celeridade processual. Para Borges (2018), esse

carecerem dos meios regulamentares e de certificação necessários que o confiram caução.

aumento na utilização da tecnologia,

Diante disso, o presente trabalho

muitas vezes é motivado por uma crença

tem como objetivos traçar as nuances

ilusória de que o uso desses meios poderia salvar o ambiente jurídico das mazelas da função jurisdicional. Nesse ponto, portanto, com o presente trabalho, busca-se averiguar se a utilização dos aplicativos de comunicação, tais como o WhatsApp, para a citação do réu, está em conformidade com o processo constitucional. Logo, por ter a citação, caráter de tamanha importância para o trâmite judicial, deve esta ser feita de forma justa, indubitável e efetiva, visando cumprir com a segurança jurídica, e demais prerrogativas que englobam o curso e o raciocínio processual. Nesse ponto, a citação representa o ato mais importante da relação processual, dado que inicia

118

e segurança que tal medida requisita, por

processuais que permeiam o advento da citação do réu, utilizando de pesquisa e análise teórica acerca da adoção destas novas técnicas processuais, as quais devido ao seu alcance e natureza, podem contribuir para a facilidade e eficácia desta fase processual e permitir se compreender até que ponto o uso de tais aplicativos é válido e compatível para com as normas processuais constitucionais. Não

obstante,

objetiva-se

ainda

enxergar a influência que o uso destes meios tecnológicos exercem nas relações jurídicas e processuais, assim como estas impactam na existência, construção e evidenciação de princípios de suma importância para o processo e para o ordenamento jurídico em si, além de abrir espaço para a discussão

de forma válida o trâmite processual,

acerca do ponto central: até onde o uso

sendo assim indispensável (LUNA, 2018).

destes aplicativos de mensagens podem ser

Partindo desta premissa, por mais que

benéficos para/ nas relações processuais,

meios eletrônicos, tais como o aplicativo

evidenciando os possíveis abusos que

de mensagens Whatsapp, apresentem

podem decorrer e emergir consubstanciados

formas de assegurar à função jurisdicional

por detrás da promessa de maior efetividade

a celeridade que tanto é almejada, quando

e celeridade. 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


Para a sua realização inicialmente foram coletados 10 trabalhos acadêmicos, por meio de uma pesquisa não sistemática, utilizando da plataforma Google Acadêmico, no modo pesquisa avançada, utilizando como palavra-chave a frase “citação por whatsapp”.A seleção dos trabalhos se deu pela proximidade dos resumos lidos com a temática desta pesquisa. A pesquisa teve como marco temporal o período de 2015 a 2020, tendo em vista que o ano de 2015 foi marcado pela vigência do Código de Processo Civil, o qual inovou ao trazer aspectos do Processo Constitucional. Além disso, recursos jornalísticos que tratam da citação por aplicativos também foram levados em consideração e sobre as estatísticas do uso do celular e do acesso à internet. Para completar, foram lidos textos de grandes teóricos do processo constitucional, verbi gratia José Alfredo de Oliveira Baracho. Em

síntese,

análise da citação por meio dos aplicativos de mensagem. 2. DIREITO PROCESSUAL CONSTITUCIONAL: Para

esclarecer as

problemática,

faz-se

nuances

da

primordial

a

compreensão do significado do processo constitucional. Sendo esse, portanto, o objetivo da presente seção. Por uma boa parcela de tempo, o processo foi enxergado como mero instrumento à vontade da jurisdição, fruto da teoria instrumentalista desenvolvida por Büllow. Nesse ponto, a partir do momento em que a parte provoca o judiciário, haveria uma relação jurídica entre o autor e o juiz (CAMPOS; PEDRON, 2018). Essa teoria, coloca o processo como uma relação triangular, na qual o juiz possui destaque. No Brasil,

procedimento

pode-se notar que essa teoria veio com a

em

diálogo

influência de Liebman, iniciando a Escola

trabalhos acadêmicos, notícias e obras

Paulista de Processo. Em síntese, para

constitucionalistas. Nesse sentido, para a

aqueles que seguem o instrumentalismo,

interpretação dos resultados foi utilizado

este é visto como um conjunto de atos,

o método de análise discursiva.

tais como a distribuição da petição inicial,

metodológico

o

efeitos da revelia. E, por fim, será feita a

coloca

O artigo está dividido em quatro partes. Na primeira será dissertado

citação, dentre outros. Na

Declaração

Universal

dos

acerca do que é o direito processual

Direitos Humanos de 1948, pode-se

constitucional. Na segunda parte será

notar que esta ajudou na consolidação do

feita uma análise das novas tecnologias

entendimento, em âmbito internacional,

no processo. Na terceira será feito uma

de que é necessária a constitucionalização

breve explicação acerca da citação e sua

de direitos processuais nas constituições

importância para o processo, além dos

formadas na metade do Século XX

Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

119


(PIMENTA, 2020). Sendo assim: “para a

Conforme explica Pimenta (2020):

racionalização do exercício do poder e

Para o autor [Baracho], o Processo garante a participação do povo na construção do Estado Democrático de Direito e, na tentativa de conciliação entre o Estado Liberal e o Estado Social, é o novo centro da vida política e metodologia eficaz de concretização das pretensões constitucionais de impedir a concentração do poder (PIMENTA, 2020, p. 268).

a efetivação dos direitos fundamentais é necessária a aproximação entre a Constituição e o Processo. Para tanto, a proteção processual é elevada a direito fundamental que garante o cumprimento dos

demais

direitos

fundamentais”

(PIMENTA, 2020, p. 257). O primeiro autor a tratar sobre o direito processual constitucional é Kelsen em La garantir juridictionnelle de la Constitution, propondo uma nova forma de controle de constitucionalidade, e não um estudo amplo a respeito da constitucionalização dos princípios constitucionais. Assim, somente com a publicação da obra Processo

Constitucional,

em

1984,

pelo estudioso José Alfredo de Oliveira Baracho,

o

processo

constitucional

começa a ganhar forças no Brasil. Nesse sentido, devemos entender que: “O processo constitucional está ligado à justiça constitucional (...) os conceitos de processo e jurisdição são correlatos entre

É importante notar que o processo constitucional não deve ser entendido como um ramo autônomo do direito. Isto se deve ao fato de que o processo constitucional

uma

visão

técnica

e científica que se busca configurar constitucionalmente

o

Estado

Democrático de Direito (DIAS, 2015). Sendo assim, deve-se notar que não é possível discutir o direito constitucional sem dizer sobre processo, bem como também não é possível estudar processo sem que seja no âmbito constitucional. Deste modo, na contemporaneidade,

si, ao passo que outras indagações atentam

120

é

para os caracteres processuais dessa

em

decorrência

do

albergado

na

jurisdição” (BARACHO, 1982, p.100). O

Constituição de 1988, com a inserção

processo constitucional, portanto, deve

de matérias infraconstitucionais nesta

ser compreendido como uma garantia

e de sua concomitante leitura com base

de espaço constitucionalizado, indo em

nos preceitos trazidos pelo texto magno,

oposição à visão de que o processo é

vemos o que nos é denominado de

tão somente o instrumento técnico da

constitucionalização do direito. Processo

jurisdição (CAMPOS; PEDRON, 2018).

pelo qual é feita filtragem e interpretação 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


das demais normas legais conforme o

sob interpretação lógicosistemática

disposto pela lei maior, base e sustentáculo

das normas do art. 5º, incisos II, XXXV,

do ordenamento brasileiro. Dentre estas

XXXVII, LII, LIV, LV e LXXVIII, do art.

conformações, se encontra presente e

93, incisos IX e X, e dos arts. 133 e 134,

de forma marcante no diário jurídico, a constitucionalização do processo, o qual agora se pauta e se alicerça em princípios e preceitos constitucionais, os quais, embora ainda carreguem alguns reflexos de um ultrapassado instrumentalismo, são de fundamental importância para a efetivação das garantias estabelecidas pela Carta Magna.

todos da Constituição Federal, deve ser compreendido como um bloco aglutinante e compacto de vários direitos e garantias fundamentais e inafastáveis ostentados pelas partes litigantes contra o Estado, quais sejam: a) direito de amplo acesso à jurisdição, prestada dentro de um tempo útil ou lapso temporal razoável; b) garantia do

juízonatural;

c)

garantia

do

contraditório; d) garantia de plenitude

Sendo assim, nota-se que: Esses enumerados direitos e garantias fundamentais do povo, posto que estatuídos no extenso rol do art. 5º

da defesa, com todos os meios e recursos a ela (defesa) inerentes, aí incluído, também, o direito da parte à presença do advogado ou do defensor

da Constituição Federal vigente, são

público; e) garantia da fundamentação

meios desenvolvidos pela técnica

racional das decisões jurisdicionais,

jurídica do Estado Democrático de

com base no ordenamento jurídico

Direito, com o objetivo de controlar a

vigente (reserva legal); f) garantia de

regularidade constitucional dos atos

um processo sem dilações indevidas.

estatais em geral (gênero) e do ato

Portanto,

jurisdicional (espécie), em particular

mediante

a

garantia

fundamental do devido processo

(DIAS, 2015, p. 229).

legal, que se integra na garantia maior

Posto isso, o processo constitucional

modelo constitucional do processo,

se torna crucial para a construção do

qualquer um do povo faz atuar a

Estado Democrático de Direito.

jurisdição, viabilizando a efetiva tutela

do processo constitucional ou do

Ademais, deve-se enfatizar que, conforme mais

disciplina

importante

Dias

garantia

(2009),

a

processual

constitucional é o devido processo legal, posto que: Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

de seus direitos. (DIAS, 2009, p.6). O Código de Processo Civil de 2015, portanto, buscou seguir com o processo constitucional.

121


3. AS NOVAS TECNOLOGIAS NO PROCESSO: É inegável o papel que as novas tecnologias vêm tomando no Direito Processual. No Brasil já temos os robôs Alice, Sofia e Mônica ajudando no Tribunal de Contas da União, sem falar da presença de Victor, o 12º ministro do STF. Muitas dessas tecnologias se utilizam de algoritmos para ajudar nas tomadas de decisões. É preciso compreender, no entanto, que a colocação de robôs e a facilitação do processo por meio da tecnologia não é necessariamente sinônimo de um processo que garanta de forma eficaz os direitos processuais. Como pode-se ver no caso da utilização dos algoritmos estes podem resultar em uma série de problemas, tais como: data sets viciados, uma vez que nem sempre os dados são perfeitos; opacidade na atuação, levantando o desafio em se poder ter acessibilidade e compreensão dos algoritmos, faltando, assim, transparência; e, a possibilidade de promover a discrição estrutural, tendo em vista que algoritmos não são neutros (FERRARI; BECHER, 2018). A partir disso, portanto, é essencial refletir sobre os males que a utilização da tecnologia de forma exacerbada no processo pode gerar no Direito brasileiro, visto que, o direito brasileiro, não sendo um direito exclusivamente baseado na letra da lei, mas consubstanciado na importância 122

da interpretação pessoal de caso a caso, não pode ser conferido ou mesmo mantido por padrões computadorizados de decisão e/ou algoritmos de interpretação única e exclusiva da realidade fática, ignorando as

demais

nuances.

Assim

sendo,

evidenciando, também, os abismos sociais que permeiam as existências e realidades brasileiras, é importante frisar como não é de se esperar que certas tecnologias abarque a gama de divergências étnicas, regionais, sociais e pessoais, bem como não é de se acreditar que todos os grupos que compõem o território brasileiro tem acesso pleno à todos os tipos de tecnologias referenciadas e utilizadas no processo, como celulares, redes de internet e afins. 4. CITAÇÃO E OS EFEITOS DA REVELIA NO BRASIL: Partindo das garantias constitucionais de acesso à justiça, devido processo e contraditório- localizados no artigo 5º, respectivamente, nos incisos XXXV, LIV e LV -, é garantido às partes que sejam intimadas e devidamente citadas para compor a lide processual. Neste sentido, a citação corresponde, em regra, ao ato pelo qual as partes são convocadas, independentemente de sua vontade, para integrar litígio, sendo este instrumento de comunicação de atos processuais, responsável pela existência processual

36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


regular, se tratando de pressuposto sem

Nesse sentido, falar em contraditório

o qual a relação processual não se forma,

é se referir a concretização do princípio

já que esta se eiva de nulidade. Isto se dá,

político

por a carência de citação ferir diretamente

das partes. Sendo a citação uma forma

o direito ao contraditório e a ampla defesa,

de garantir este importante princípio do

garantias constitucionais previstas no

direito processual.

art. 5º, LV da CF/88, sendo, deste modo, qualquer decisão proferida sem que o réu tenha sido citado, dotada de vício, o qual por sua relevância, pode ser contestado a qualquer momento, mesmo após trânsito em julgado. Antes de adentramos a citação em si, faz-se necessário compreender o contraditório, dado que este:

da

participação

democrática

Assim, conforme já retratado, uma das formas de comunicação de atos processuais dirigidos às pessoas que comporão a lide, lhes conferindo o devido acesso ao jurisdicionário, é a citação. A citação, a qual é alvo de análise deste estudo, consiste em um rito de suma importância ao trâmite processual, pois é por meio dela que são convocados o réu, o

não significa apenas ciência bilateral e contrariedade dos atos e termos do processo e possibilidade que

executado ou qualquer outro interessado, independentemente de anuência, para que ingressem na composição. Nesta

as partes têm de contrariá-los,

perspectiva, como predispõe o artigo 238

mas é compreendido técnica e

da Codificação Processual Civil (Lei nº

cientificamente como garantia de

13.105 de 16 de março de 2015) “Citação

participação efetiva das partes no

é o ato pelo qual são convocados o réu, o

desenvolvimento do processo em

executado ou o interessado para integrar

suas fases lógicas e atos, a fim de que,

a relação processual” tendo este ato,

em igualdade de condições, possam

uma dupla função, ou seja, a de convocar

influenciar em todos os elementos e discussões sobre quaisquer questões de fato e de direito que surjam nas diversas etapas do itinerário procedimental,

que

despontem

como potencialmente importantes para a decisão jurisdicional que será proferida (DIAS, 2015, p. 230).

Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

o réu para que compareça em juízo, e a de cientificar-lhe da existência de uma demanda ajuizada em seu desfavor. Deste modo, a muito se discutiu sobre a natureza deste instrumento. Muitos doutrinadores e juristas como BUENO (2014, p.416-417) entendem que a citação se tratava de um pressuposto

123


processual o qual confere a existência

e, portanto, não aperfeiçoa nem contribui

do processo em si, sendo por meio dela

para a relação processual, tornando inútil

que se chama em juízo o réu ou demais

e inoperante quaisquer acordão a ser

interessados para que se defendam. Deste

proferido, o qual, por ser encontrar eivado

modo, não seria possível se conceber a

de vício– já que contraria estes preceitos

existência do processo se não fosse o réu

e garantias constitucionalizados- pode ser

devida e validamente citado, ou seja, sem

decretado nulo a qualquer tempo. Assim,

que este tivesse ciência de que a função

segundo versa o artigo 239 do CPC “Para

jurisdicional,

a validade do processo é indispensável a

devidamente

provocada,

intenta impetrar contra ele ação jurídica.

citação do réu ou do executado [...]”.

Em contramão, Didier (2015, p. 607-

Desta forma, a citação sai do logus

608) leciona que a citação se trata de uma

de mero pressuposto de existência para

condição de eficácia do processo para com

se embrenhar no âmbito de condição de

relação ao polo passivo, ou seja, no lugar

eficácia processual para com relação ao réu

de ser um pressuposto de existência, este

e requisito de validade de todos os demais

rito processual consiste em um requisito de

atos processuais que dela sucedem. E

validade, a qual confere legitimidade aos atos

nesta perspectiva, essa exigência legal

presentes e futuros que vierem por deste

permeia em todos os aspectos que digam

decorrer. Neste sentido, leciona o artigo 312

respeito ao processo, sejam os ritos

do Código de Processo Civil, o qual dispõe

procedimentais comuns ou especiais.

que: “Considera-se proposta a ação quando a petição inicial for protocolada, todavia, a propositura da ação só produz quanto ao réu os efeitos mencionados no art. 240 depois que for validamente citado”. Assim, a citação válida é o ato pelo qual se completa a relação processual, e permite que o polo passivo possa iniciar e exercer seu direito ao contraditório e a ampla defesa, direitos fundamentais previstos no art. 5º da Carta Magna. Deste modo, uma sentença que venha a ser proferida em processo sem que haja a citação do réu, se trata de ato defeituoso, 124

5. CITAÇÃO POR MEIO APLICATIVOS DE MENSAGEM:

DOS

Em contramão a um formalismo exacerbado de outrora e tendo como base preceitos instrumentalistas que focam na ideia de fazer com que o processo alcance os resultados práticos equivalentes aos fins que se propõem, tendo como objetivo ser o processo, um meio, um instrumento, pelo qual visa alcançar seus fins. Neste sentido, Dinamarco leciona que o direito processual apresenta resquícios formais na medida que impõem e designa 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


formas a serem observadas ao juiz exercer a jurisdição e na defesa dos interesses das partes. Todavia, com o advento da regra da instrumentalidade das formas, encontra-se cada vez mais presente no direito processual a moderna noção de flexibilização das formas procedimentais, que afrouxa e concede uma interpretação mais racional das normas que exigem e prezam pela rigidez dos meios em favor do alcance de objetivos fins, se atentando às peculiaridades e particularidades do caso concreto. Dese modo, preceitua o artigo 188 do CPC que:

em desrespeito aos princípios e garantias processuais. O que vem ocorrendo atualmente, principalmente em contexto de pandemia, nos atos de comunicação processual, por força do artigo 9º da Lei nº 11.419 de 2006, a qual regula a informatização judicial e no artigo 246, V do CPC, que permite o uso de meios eletrônicos que sejam a tais atos compatíveis. Todavia, para se falar de citação por aplicativos de mensagens, devemos avaliar a viabilidade técnica para tal uso. Devemos nos questionar acerca de

Art. 188. Os atos e os termos processuais independem de forma determinada, salvo quando a lei expressamente a exigir, considerando-se válidos os que, realizados de outro modo, lhe preencham a finalidade essencial.

variáveis tais como o acesso à internet;

Assim, tornou-se cada vez mais

meios de acesso ou não à internet,

recorrente a possibilidade de se flexibilizar

pode-se analisar por meio de dados de

alguns atos processuais de modo a

2018 levantados pela Pesquisa Nacional

melhor

circunstâncias

por Amostra de Domicílios Contínua -

da causa posta à apreciação, ou até

tecnologia da informação e Comunicação

mesmo a favor das partes, dotando-se o

(Pnad Contínua - TIC), divulgado pelo

juiz de certa liberdade para assegurar a

Instituto

igualdade entre polos, a ampla defesa e a

Estatística (IBGE), que cerca de 45,960

instrumentalidade dos atos processuais e

milhões de brasileiros ainda não têm

afastar a formalidade dos atos processuais,

acesso à internet, são os chamados

desde que esta flexibilização não cause

excluídos digitais, que se enquadram

prejuízos processuais as partes ou importe

nestas estatísticas por diversos motivos,

adequá-los

às

Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

o acesso aos smartphones; as falhas que os aplicativos, e, mais especificamente, o WhatsApp, aplicativo objeto de estudo no presente artigo apresentam; dentre outras. Quando se trata da detenção de

Brasileiro

de

Geografia

e

125


tais como não saber usar as redes; achar

perdendo a sua efetividade, ou, o mais

caro os equipamentos para acesso; ou não

grave, com a confirmação de leitura

possuir sinal na região que residem, entre

entende-se que ele está ciente, e sua

outros, e, dessa maneira, por seu difícil

ausência o torna revel no processo.

acesso, tenderão a ficar prejudicados caso a citação por WhatsApp se torne uma realidade.

demonstra

também é um fator de exclusão, visto que, novamente segundo dados da Pnad Contínua de 2018, aproximadamente 20,7% da população brasileira com 10 anos ou mais não possuem o item, e por motivos parecidos, acham o aparelho caro demais, não têm interesse, ou compartilham o smartphone.

avanço

nunca

visto

e

funcionalidades

o meio jurídico tenha que ficar atento para as modificações que esses meios trazem no Direito, buscando sempre resguardar dos

os

indivíduos.

direitos Luna

fundamentais (2018),

relata

que a doutrina, majoritária, se mostra pacífica ao relatar que a comunicação dos atos por meio eletrônico retardaria a demanda processual. Contudo, há ainda controvérsias quando se fala da utilização

Ainda, pode-se falar de algumas do

WhatsApp que prejudicam o uso do

de aplicativos de comunicação, tais como o WhatsApp, como meio de comunicação dos atos processuais (LUNA, 2018).

aplicativo de mensagem para citação. O

O CNJ já demonstrou entendimento

aplicativo tem como possibilidade tirar

de que a utilização do WhatsApp para

a confirmação de leitura das conversas,

a

o que pode ser muito útil para algumas

consonância com o art. 19 da Lei nº

pessoas e em alguns momentos, mas nos

9.099/1995, o qual determina que “As

casos da citação isso atrapalha, pois é

intimações serão feitas na forma prevista

preciso ter certeza de que a pessoa citada

para citação, ou por qualquer outro

recebeu e leu essa citação para que o

meio idôneo de comunicação”, e pela Lei

processo seja formado. Outros problemas podem surgir nos casos em que o celular é compartilhado, principalmente quando é emprestado para crianças jogarem, ou assistirem vídeos e filmes, pois a criança pode apagar a mensagem por acidente e o citado nunca saberá da mensagem, 126

um

antes. Nessa perspectiva, faz com que

Por sua vez, o acesso ao smartphone,

peculiaridades

Conforme demonstrado, a tecnologia

comunicação

processual

está

em

11.419/2006, a qual inaugura o processo eletrônico no Brasil. O Código de Processo Civil de 2015, também demonstra uma forte tendência para aceitar o uso do meio eletrônico na tramitação de processos e na comunicação dos atos. Esse fato pode ser averiguado no art. 246 do CPC,

36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


o qual determina que a citação pode ser

Diante do exposto, portanto, pode-

realizada por meio eletrônico. Podendo

se verificar a tendência para se pensar a

ver, com isso, a tendência que o Direito

aplicação das novas tecnologias como

vem demonstrando em aceitar acatar a

uma forma de melhorar a efetividade

tecnologia no ambiente jurídico.

das garantias essenciais para garantir

Colovati

e

Bussab

(2018),

se

mostram favoráveis às modificações que estão ocorrendo no direito, em razão da tecnologia, determinando que:

os direitos fundamentais. De modo que conforme o AgRg no Recurso Especial Nº 1.051.441 - RS (2008/0088985-0), entende-se que a relação da citação por WhatsApp seria um meio plausível, em

Certo é que não se pode mais pensar no processo civil como meio de efetivação, celeridade e dinamização sem englobar os avanços tecnológicos, mormente quando tais avanços mostram-se como positivas ferramentas na construção de um processo civil mais simplificado e acessível aos cidadãos. (COLOVATI; BUSSAB, 2018, p.100)

razão da noção de instrumentalidade

Opinião semelhante é apresentada

existem vários benefícios da citação

Oliveira, 2019, que determina que o sistema processual brasileiro deve ir além da utilização dos meios tradicionais de comunicação dos atos, sendo necessário que se adequem às novas tecnologias. Sendo defendido que: A tutela jurisdicional efetiva constitui um direito fundamental dos cidadãos, devendo o processo ser um instrumento de satisfação do direito material constitucional. Portanto, o processo deve seguir suas garantias constitucionais, proporcionando a concretização do direito material (OLIVEIRA, 2019, p. 41) Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

das formas, da boa-fé processual, da cooperação,

celeridade,

e

economia

processual. Por outro lado, Pereira (2020), alerta que inexistem leis que admitem a utilização do WhatsApp para a realização de citação, sendo assim, desprovido de base legal. Dessa forma:

pelo WhatsApp que são inegáveis, no entanto, o processo não pode se moldar conforme a vontade do Autor, pois esse tipo de citação prejudica demasiadamente o direito. Para ser aceitável, só com uma lei criando

regras

específicas

para

casos de eventuais falhas do sistema (PEREIRA, 2020, p. 78) Esse trabalho concorda com o posicionamento de Pereira, dado que é essencial a elaboração de uma lei que determina regras claras para a utilização do WhatsApp no momento da citação. 127


Essa legislação, portanto, teria como

Ademais,

não

de

se

crer

objetivo garantir os direitos estabelecidos

veemente, sem prévias discriminações e

na

com

discussões, que tais avanços tecnológicos

isso o processo constitucional. Diante

são acolhedores, visto que muito da

Magna

Carta,

defendendo

disso, apesar da tentação em se utilizar o aplicativo de mensagem, tendo em vista a celeridade processual, este meio se torna perigoso, por carecerem dos meios regulamentares e de certificação necessários que o confiram caução.

modernidade

Ante o exposto, consoante todas as assertivas e argumentações trabalhadas no presente artigo, reiteramos a ineficácia e impossibilidade da utilização corriqueira de aplicativos de mensagens, dos quais destacamos o WhatsApp por ser o mais frequentemente utilizado no território nacional, nos processos em face de citação do réu. Tal direcionamento, como já disposto, se dá pela consistente e ininterrupta desigualdade social que perpetua sobre nosso território, criando enormes abismos sociais que abarcam realidades extremamente discrepantes.

pode

trazer

mazelas significativas para os sistemas jurídicos e sociais de um país, como, por exemplo, erros de programação, perpetuação de padrões discriminatórios baseados em ideais retrógrados e, por fim, mas não menos importante, a inexistência da

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS:

precoce

possibilidade

de

interpretação

conforme a pessoa que se coloca diante dos tribunais, visto que, máquinas são criadas para repetirem padrões e não fazer balanceamentos e interpretações conforme caso a caso. Por fim, reiteramos que ao produzir esse trabalho não pretendemos perpetuar um

posicionamento

retrógrado,

conservador e moralista do direito, mas, em um primeiro momento, garantir a continuidade de direitos básicos, que muito poderiam se ferir com o uso inadequado e inepto de modernidades, estabelecendo, para isso, uma discussão prévia sobre a temática.

Nesse ínterim, não há de se acreditar que, por uma parcela ter acesso privilegiado e comum de celulares e demais mecanismos de mensagem, toda a demais sociedade brasileira pode vir a ter, já que, no enorme ecossistema de existências e realidades, os abismos sociais são cada vez mais profundos e distantes.

128

36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


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08

AUDIÊNCIAS VIRTUAIS: O PARADOXO ENTRE A INOVAÇÃO TECNOLÓGICA E A TUTELA DE DIREITOS Beatriz Thomazini82 Bianca da Silva Fernandes Bastos83 Luísa Lourenção84 Soraya Regina Gasparetto Lunardi85

82  Bacharela pela Instituição Toledo de Ensino (ITE), Especialista em Direito Constitucional pela instituição Damásio de Jesus e Pós Graduanda em Direitos Humanos pela instituição CEI e em Direito das Mulheres pela Escola Superior de Direito. 83  Bacharela e Mestranda em Direito Constitucional pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). (14) 99734-0200. 84  Bacharela pela Instituição Toledo de Ensino (ITE), Pós Graduanda em Direito das Mulheres pela Escola Superior de Direito. 85 Professora Livre Docente em Direito Constitucional, Direitos Fundamentais e Pesquisadora da UNESP. Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pós-doutorado pela Universidade Politécnica de Atenas. Avaliadora do Sistema Nacional da Educação Superior MEC, CNPQ e FAPESP. Pesquisadora com Bolsa Produtividade (CNPQ). 132

36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


RESUMO Os avanços tecnológicos da Era Digital otimizaram as comunicações e informações, influenciando também o Poder Judiciário, que implantou atos virtuais sob o escopo da celeridade e ampliação do acesso à justiça para tutelar direitos. Apesar de já se utilizar videoconferências em processo judicial desde 2009, hodiernamente essa ferramenta está mais presentemente no universo processual, após ser decretado o isolamento social em razão da pandemia de Covid-19, ampliando as hipóteses de adoção e aprimorando sua regulamentação. Partindo dessa premissa, abordar-se-á às consequências das audiências virtuais para a democracia, haja vista a relação paradoxal existente entre os avanços tecnológicos e a tutela de direitos da cidadania, levando-se em consideração a cumulação de interseccionalidades. Metodologicamente, a pesquisa será qualitativa, de natureza exploratória, com abordagem dedutiva e procedimento bibliográfico, almejando demonstrar que os benefícios das audiências virtuais, mesmo com suas dificuldades, são capazes de materializar direitos, especialmente no que

diz respeito ao acesso à justiça e à razoável duração do processo. PALAVRAS-CHAVE Acesso à Justiça. Audiência Virtual. Avanços Tecnológicos. Cidadania. Pandemia.

1. INTRODUÇÃO

mundial de computadores (DIAS, 2021),

Hodiernamente, vivemos em uma Era Digital, consolidada em meados do século XX e marcada pela eletrônica, gerando avanços científicos e tecnológicos que impactaram nos âmbitos pessoal, profissional,

econômico

e

político,

que esse processo de constante e célere transformação e inovação tecnológica influenciou a vida humana em diversas áreas,

alterando

significativamente

o modo de trabalhar e a forma de se comunicar.

otimizando os fluxos informacionais, os

Essa modernização alcançou também

processos produtivos e as comunicações.

a esfera do Poder Judiciário, impactando

Tamanhas

foram

as

facilidades

ocasionadas pela atual Quarta Revolução Industrial, com a mitigação de barreiras geográficas e a conexão virtual de pessoas e informações, principalmente com a rede Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

diretamente nos processos que, além de passarem a ser digitais, ainda contaram com a incorporação de atos e serviços virtuais, tais quais as audiências por videoconferência que, em um primeiro 133


momento, eram restritas às ações penais,

uso diante da interseccionalidade de

tais qual dispôs a Lei nº 11.900/2009,

desigualdades

passando a abranger, posteriormente,

marcam cenário brasileiro, provocando

hipóteses relacionadas a outras áreas

também uma exclusão digital.

do direito com o escopo de assegurar o acesso à justiça, devido processo legal e sua razoável duração.

que

Na sequência, será abordada relação paradoxal existente entre as modernizações tecnologias e a tutela de direitos, haja

A partir de tais premissas, o presente

vista uma adequada e abrangente inclusão

artigo abordará, em um primeiro momento,

digital

sem a pretensão de esgotar o assunto, a

constitucionais, tal qual o acesso à justiça,

influência dos avanços tecnológicos no

mas, quando inexiste essa capacitação

Poder Judiciário, mais especificamente

especialmente

no que diz respeito às audiências virtuais,

vulneráveis da sociedade, há o fomento de

positivadas

discriminações interseccionais.

em

nosso

ordenamento

jurídico a partir de 2009, bem como o aumento exponencial de sua utilização e regulamentação nos dias hodiernos, em razão da necessidade de se manter um distanciamento social como forma de prevenção do contágio, diante da situação de calamidade provocada pela pandemia de Covid-19, cumulada com a impossibilidade de suspender todas as demandas e atos judiciais durante esse período. se buscar o melhor interesse processual e a tutela direitos da cidadania por meio de uma prestação jurisdicional acessível, célere e efetiva, problematizar-se-á as consequências das audiências virtuais para a democracia, especialmente no que tange ao acesso à justiça e razoável duração

do

processo,

é

Com

capaz

materializar

dos

isso,

direitos

grupos

após

a

mais

análise

de

seus benefícios e entraves, almeja-se demonstrar que as audiências virtuais, mesmo práticas,

as

dificuldades

podem

ser

técnicas

e

consideradas

instrumentos efetivadores de direitos fundamentais como expressão genuína da cidadania, principalmente no que diz respeito ao acesso à justiça e à razoável duração do processo.

Posteriormente, sob o interim de

expondo-se

as vantagens e desvantagens de seu 134

socioeconômicas

Para

tanto,

adotar-se-á

como

metodologia uma pesquisa qualitativa, de natureza exploratória, com abordagem dedutiva e o procedimento de revisão bibliográfica. A Influência da Era Digital no Poder Judiciário Desde meados do século XX, a Era Digital tornou-se uma realidade, trazendo 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


avanços eletrônicos e tecnológicos cada vez

mais

instantâneos,

das audiências por videoconferência.

aprimorados

e intrínsecos a todos os âmbitos de nossa vida. Essas constantes evoluções provocam impactos econômicos, sociais, políticos e profissionais, em virtude da otimização das comunicações e dos fluxos informativos – especialmente àqueles que ocupam as classes da sociedade com maior poder aquisitivo.

Com a vigência dessa normativa, a partir de janeiro de 2009, foi incorporada no ordenamento jurídico brasileiro a realização de interrogatório de réu preso, a oitiva de testemunha e a carta rogatória por meio do sistema de videoconferência, com o intuito de prevenir risco à segurança pública, viabilizar a participação do réu no referido

Considerando que essas facilidades

haja

ato processual,

relevante

dificuldade

quando

para

seu

e aproximações trazidas pelo mundo

comparecimento em juízo, bem como

virtual - principalmente a internet -

impedir a influência do réu no ânimo de

ocasionaram o que CASTELLS (2015)

testemunha ou da vítima.

chamou de “fim da geografia”, o Poder Judiciário

também

“modernizou-se”,

implementando certas inovações digitais ao adotar processos e alguns atos e serviços digitais, incluindo-se audiências, sob o escopo de facilitar e ampliar o acesso dos cidadãos à justiça, haja vista se tratar de um direito fundamental assegurado constitucionalmente (art. 5º, inciso 35). Objetivando

Todavia, que

o

uso

mostrou-se

foi das

no

de

2020

audiências

virtuais

indispensável

exponencialmente.

Isso

e

cresceu

ocorreu

em

virtude da declaração pública de situação de pandemia de Covid-19, em março, que ocasionou a imposição do lockdown no território brasileiro como forma de tentar conter avanço do contágio no país. Com isso, todos os serviços e as atividades

aprimorar

a

tutela

foram paralisados, incluindo as do Poder

jurisdicional de direitos da cidadania de

Judiciário que, inicialmente, tiveram suas

maneira célere, eficaz e com respeito às

demandas e prazos suspensos até abril

garantias legais do devido processo (art. 5º,

do mesmo ano, com exceção da Justiça

LIV, CF), da sua razoável duração (art. 5º,

Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal.

LXXVIII, CF), bem como da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, LV, CF), a Lei nº 11.900 alterou o Código de Processo Penal, em 2009, prevendo a formalização legal de determinados atos processuais e Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

Diante desse cenário de suspensão dos trabalhos presenciais não essenciais, a Recomendação nº 62/2020 dispôs, entre outras medidas, a realização de audiência

135


de custódia por videoconferência nas hipóteses em que a pessoa estivesse privada de liberdade. A corroborar com as prevenções, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Resolução nº 312, de 19 de março de 2020, para alterar seu Regimento Interno de modo a acrescentar o art. 118-B, que ampliou as hipóteses de julgamento por meio eletrônico, podendo ocorrer sessão virtual extraordinária do Plenário Virtual e a manifestação de sustentação oral na forma de memorial ou gravação audiovisual. Objetivando uniformizar o funcionamento dos serviços judiciários em todo o país, ainda com a prevenção do contágio, e garantir o acesso à Justiça durante a crise desencadeada pela propagação do novo coronavírus, o Conselho Nacional de Justiça estabeleceu, através da Resolução nº 313/2020, o regime de Plantão Extraordinário a vigorar no período emergencial. Frente à necessidade de readaptar a prestação jurisdicional ao sistema de trabalho remoto, a Portaria nº 61, de 31/03/2020, instituiu a plataforma emergencial de videoconferência para realização de audiências e sessões de julgamento nos órgãos do Poder Judiciário, no período de isolamento social, sendo facultativo aos tribunais seu uso e não excluindo a utilização de outras ferramentas computacionais que alcancem o mesmo objetivo.

136

Em 20 de abril de 2020, surgiu nova Resolução do CNJ, nº 314, prorrogando parcialmente, no âmbito do Judiciário, o regime previamente instituído, mas modificando as regras de suspensão de prazos processuais. Mantendo-se a prática de atos virtuais por meio de videoconferência, foi determinado que as audiências de primeiro grau considerassem as dificuldades de intimação de partes e testemunhas, realizando-se somente quando for possível a participação, sendo vedada a responsabilidade aos advogados e procuradores em providenciarem o comparecimento daquelas em atos virtuais. Caso houvesse eventual impossibilidade técnica ou prática, cabível a suspensão de tais atos mediante decisão fundamentada. No mês seguinte, a Resolução nº 318 do CNJ novamente prorrogou, em parte, o regime instituído pelas Resoluções anteriores e, no tocante às audiências e sessões de julgamento virtuais, recomendou-se a intimação das partes e procuradores por meios oficiais e com interstício mínimo de cinco dias. Mesmo com a retomada parcial dos trabalhos presenciais em junho de 2020, a Resolução nº 322 do CNJ recomendou que, sempre que possível, as audiências deveriam continuar sendo realizadas por videoconferência ou mista, com participação presencial daqueles que não disporem de meios virtuais. Atendo-se ao posterior agravamento do cenário pandêmico, em julho e agosto, 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


entraram em vigências as Resoluções do CNJ nº 329 e 330, regulamentando novamente as audiências e outros atos processuais por videoconferência em processos penais, considerando em tais casos as dificuldades de ordem técnica e prática de sua realização. Em que pese a formalização de tais modernidades tecnológicas no processo judicial encontrar-se efetivada, é preciso averiguar também a forma como elas se manifestam no mundo prático, analisando suas vantagens e dificuldades para tutelar e materializar o direito de acesso à justiça e à razoável duração do processo, levando em consideração que o Brasil é um país marcado com grandes desigualdades socioeconômicas, cumulando exclusões interseccionais que alcançam também o âmbito digital.

vicissitudes, é capaz de tutelar os direitos da cidadania dos litigantes – em especial o acesso à justiça e a razoável duração do processo - ou então se acaba por fomentar desigualdades sociais em razão da exclusão digital vivenciada no país. Isso porque, haja vista que menos da metade dos brasileiros utilizaram a internet em 2013, sendo que somente 31,2 milhões de domicílios tinham acesso aquela

(PESQUISA

AMOSTRA

DE

NACIONAL

DOMICÍLIOS,

POR 2013).

Também se constatou que as Regiões Sudeste (57,0%), Sul (53,5%) e CentroOeste (54,3%) registraram proporções acima

da

média

nacional

(49,4%),

enquanto as Regiões Norte (38,6%) e Nordeste (37,2%) registraram os menores níveis. Ou seja, em uma análise breve

2. A MATERIALIZAÇÃO DE DIREITOS A PARTIR DAS AUDIÊNCIAS VIRTUAIS Partindo de uma perspectiva materialista, mostra-se imprescindível problematizar o uso das audiências virtuais na prática, abordando suas consequências para a democracia, considerando todas as partes envolvidas no processo, mas, principalmente, as partes e seus procuradores. Ainda que se reconheça a existência de problemas técnicos, jurídicos, operacionais e práticos a serem melhorados, é preciso analisar se a adoção das videoconferências, mesmo com suas

Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

das estruturas e das relações políticoeconômicas que regem a Internet, é possível constatar que ela reproduz virtualmente as desigualdades “reais” existentes no país. E com pandemia de Covid-19 essa estruturação acabou se consolidando ainda mais, uma vez que grande parte dos serviços e produtos passaram a serem disponibilizados

virtualmente,

assim

como a própria execução do trabalho, que passou a ser remoto, isto é, digital, por meio do home office. Nesse sentido, em pesquisa mais recente, segundo o Comitê Gestor da 137


Internet do Brasil (2019), os consumidores

E, partido do ponto em que o acesso

de baixa renda têm enfrentado mais

à justiça é um princípio constitucional e

dificuldades na pandemia para acessar a

direito fundamental, que vem previsto no

rede mundial de computadores em função

inciso XXXV do Artigo 5º da Constituição

das franquias contratadas. Somente 48% da população das classes D e E possuem acesso à internet, enquanto nas classes A e B esse percentual é de 92% e 91%, respectivamente (COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL, 2020). Ou seja, podemos observar, que mesmo passados sete anos de intervalo entre os dados apresentados, há uma persistência na manutenção de desigualdades quanto ao acesso à internet, que com a pandemia

audiências em modo virtual – on-line são aliadas ou não da democracia. Já que mesmo que se analise o contexto social em que o Brasil está inserido, não há alternativa para o Poder Judiciário, que deve ser ágil e eficiente, se este se mantiver distante do processo de modernização dos meios virtuais. Assim dizendo, o que se visa analisar são as vantagens e desvantagens

de Covid-19 apenas se atenuou. Observa-se, portanto, que o acesso à internet sempre foi um problema enfrentado

do uso de inovações tecnológicas para a realização de audiências, de modo

pela população brasileira, ao contrário

a verificar se essas são benéficas ou

do que possa se pensar a pandemia não

não para o exercício da cidadania e a

inaugurou essa problemática.

materialização de direitos, em especial

E

é

partir

desse

recorte

que

aproveitamos para observar o Poder judiciário

dentro

dessa

dos grupos sociais mais vulneráveis. Pois em contra partida, se as

realidade

audiências de modo virtual não forem

pandêmica e de desigualdade ao acesso

assim realizadas, também teremos a

à internet, isto, pois, uma vez que o judiciário passa a realizar audiências de modo virtual (on-line), e temos dados que indicam não apensar sobre dificuldade da população brasileira em acessar a internet, mas também números sobre parte da população que não tem sequer acesso à internet, consequentemente estamos falando sobre dificuldade, ou até mesmo, o não acesso à justiça. 138

Federal de 1988, é que se questiona se as

dificuldade de acesso à justiça, uma vez que é inviável a espera pelo fim da pandemia para que atos processuais sejam realizados, tendo em vista não só o próprio processo legal como também, a matéria discutida, isto porque a demora pode acarretar em danos irreparáveis. Logo, já que é de responsabilidade do Estado garantir que todos os cidadãos

36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


brasileiros e estrangeiros residentes no

água tratada, a moradia digna, saúde e

país possam reivindicar seus direitos, isto

educação de qualidade. Isto é, o recorte

é tenham acesso à justiça, é de extrema

acaba sendo sempre o mesmo, com a

importância ações de políticas públicas

mesma parcela da população brasileira

para que esse acesso seja garantido.

que vive a margem da sociedade.

Frente a esse cenário, a hipótese

Vemos assim um problema que

a ser enfrentada pelo artigo, sem a

transcende

pretensão de esgotar o assunto, é a

justiça, e como é defendido na obra de

existência de uma relação paradoxal entre

CAPPELLETTI e GARTH (2002, p. 8) é

os avanços da tecnologia e a tutela de

fundamental, que o sistema, em seu todo

direitos, visto que eles podem otimizar e

seja “igualmente acessível a todos”.

melhorar a prestação jurisdicional, mas, por outro lado, seu uso desprovido de uma inclusão digital adequada é capaz de prejudicar principalmente as minorias sociais, cujas discriminações e privações se agravam quando há cumulação de interseccionalidades raciais, regionais e de gênero.

questões

de

acesso

à

Para que seja possível alcançar o conceito de uma justiça universal, integrativa, constituindo em sua definição o mais básico dos direitos humanos é de extrema importância reconhecer todas as vulnerabilidades em torno do acesso a justiça, não ao ponto de afastar o Poder judiciário da tecnologia, mas sim para que

Uma vez que, por um lado, temos

seja possível reconhecer mais de perto

o mundo que a cada dia acelera mais na

essas questões e, portanto, tornar possível

corrida tecnológica, proporcionando, por

sua melhora.

meio dessa, uma verdadeira revolução em grande parte da sociedade ao possibilitar uma melhora na qualidade de vida das pessoas. Também é notório, que essas melhorias não atingem a todos, uma vez que é grande a parcela da população sem acesso à internet. Na verdade, mais do que falar em

Já que segundo pesquisas recentes do Estudo da Imagem do Judiciário Brasileiro realizado pela FGV, apontou que 76% dos entrevistados acreditam que o uso da tecnologia pode facilitar o acesso à Justiça, principalmente com o manuseio de instrumentos acessíveis e disponibilizados pela internet.

falta de acesso à internet, é preciso

E, ao reconhecer que o atendimento

compreender que é essa mesma parcela

virtual permite sim uma maior celeridade e

da população que não tem acesso à

contribui na democratização dos serviços

Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

139


junto aos usuários, é dever do “judiciário desenvolver maneiras de se comunicar verdadeiramente

com

os

diversos

públicos, pelas mais variadas mídias” (WATANABE, 1988, p. 131). 3. VANTAGENS E DESVANTAGENS DAS AUDIÊNCIAS VIRTUAIS Neste passo, superada as questões referentes ao acesso à internet, já que compreendido o fato de que ser incompatível com um judiciário moderno, ágil e até mesmo acessível, a escolha pela não realização de audiências de modo online. Passamos a discutir referentes diretamente ao exercício da audiência online, apresentando desafios, desvantagens e vantagens das audiências virtuais, que não se restringem ao campo operacional e técnico, englobando também preocupações em relação aos aspectos legais. Relacionado aos aspectos legais temos a incomunicabilidade das testemunhas, expressa no artigo 456 do Código de Processo Civil e artigo 824 da Consolidação das Leis do Trabalho, bem como a vedação ao acompanhamento do depoimento pessoal por quem ainda não depôs, conforme vem disposto no artigo 386, § 2º do Código de Processo Civil, isto porque, na audiência online o juiz não tem controle para impedir esta situação da mesma forma que teria com as partes na audiência presencial. 140

E, ainda, mesmo que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) preveja que, “por dificuldades de intimação de partes e testemunhas, tais atos só devem ser feitos se for possível a participação, vedada a atribuição de responsabilidade aos advogados e procuradores em providenciarem o comparecimento de partes e testemunhas a qualquer localidade fora de prédios oficiais do Poder Judiciário para participação em atos virtuais”, na prática não é o que vem acontecendo, já os procuradores e advogados acabam por exercer essa função de garantir o comparecimento das partes e testemunhas na audiência. Mais um aspecto relacionado a questões legais é o direito de entrevista reservada e contato pessoal com o réu, o que representa uma garantia e prerrogativa dos membros da Defensoria Pública - ainda quando os réus se acharem presos ou detidos - uma vez que nos moldes propostos não se sabe sequer quem estará do outro lado com o réu, já que não é possível nesse momento que um defensor esteja no presídio. Outros pontos, já não relacionados às questões legais, são que muitas vezes as partes, testemunhas e informantes além de não possuem uma internet de qualidade, o que por si só dificulta a oitiva destes, também, muitas das vezes, não possuem um suporte adequado para o Tablete ou Celular o que as vezes pode dificultar na visão da imagem.

36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


Não obstante, infelizmente, ocorrem de forma corriqueira, problemas técnicos do próprio tribunal de justiça, como por exemplo, um grande problema, que poderia ser tema de um próximo trabalho de pesquisa, é o relacionado as gravações da audiência, que quando não são gravadas, é necessária sua redesignação. Contudo, mesmo que se observem algumas desvantagens, as vantagens acabam por se sobrepor, já que é através dessa tecnologia que se amplia não só o acesso à justiça, como também, se criam medidas que possibilitam o funcionamento do Poder Judiciário e a manutenção da prestação jurisdicional mesmo que em meio à pandemia da Covid-19, e isso tudo, torna possível a manutenção do isolamento social necessário para evitar a propagação do coronavírus. Não obstante, acaba por prestigiar, amplia e maximizar o Princípio da Oralidade, que é princípio específico do Direito Processual do Trabalho. Nesse caminho também se observa a redução de custos e a celeridade nos julgamentos principalmente relacionada à diminuição no deslocamento e diárias

“referentes à Transferência de presos no Estado de São Paulo, fornecidos pela Secretaria da Administração Judiciária, dão conta que, somente no 1º Semestre de 2005, teria sido gasto o valor aproximado a R$ 6.000.000,00 (seis milhões de reais), e apenas com despesas de viaturas. Ainda, teriam sido mobilizados aproximados 96.000 policiais, e utilizadas aproximadamente 34.000 viaturas, que teriam percorrido em torno de 3.300.000 Quilômetros”. São evidentes as vantagens ao se adotar a audiência por videoconferência, o que se observa, no entanto é que por ainda ser uma novidade dentro do Poder Judiciário existem obstáculos, tanto legais como técnicos a serem superados, mas que não devem ser vistos como barreiras. E, quando cessarem os efeitos do Covid-19, não necessariamente as audiências virtuais terão fim, muito pelo contrário, é uma ferramenta que veio para ficar, desde que utilizada de acordo com a realidade socioeconômica brasileira, a partir de uma inclusão digital adequada que seja capaz de mitigar as desigualdades interseccionais tão presentes em nosso país.

de agentes penitenciários, já que de acordo com Wagner Martins Moreira, em seu artigo publicado no site do Ministério Público do Amazonas/AM, intitulado “Audiências e Julgamentos por Videoconferência demonstra os valores de locomoção e despesas”:

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS É possível concluir, portanto, que a internet é uma tecnologia da comunicação - sendo essa a essência da atividade humana -, cuja influência de grande disseminação alcançou e modificou todos os domínios da vida social. 141


E, com o Poder Judiciário brasileiro

públicas de incentivo para efetivar o uso

não é diferente. Os avanços tecnológicos

dessas ferramentas digitais de acesso

provenientes dos novos meios informáticos

à

desempenham papel fundamental não

os grupos vulneráveis que cumulam

apenas na ampliação do acesso à justiça,

desigualdades diante dos recortes de

mas também na implementação de

interseccionalidades.

medidas que possibilitem o funcionamento do Judiciário e a manutenção da prestação jurisdicional

mesmo

em

tempo

de

pandemia da Covid-19, já que esta impõe a vedação de expediente presencial como forma de evitar a disseminação do contágio.

justiça

O

por

todos,

adequado

principalmente

uso

dos

recursos

digitais disponíveis atualmente é capaz de materializar direitos, garantindo não só o acesso à justiça e à razoável duração do processo, mas também o pleno exercício da cidadania como expressão genuína de emancipação, principalmente nesta era

A demonstração de que os benefícios

digital que vivemos.

trazidos pelas audiências virtuais, mesmo com suas dificuldades técnicas, são capazes de se sobrepor as desvantagens, sendo mais eficaz do que a paralização total dos processos judiciais, o que ocasionaria a suspensão de direitos, principalmente durante a pandemia.

Com o escopo de que, através dessa implantação e nova era do judiciário brasileiro, trazidas

as pelo

inovações cenário

tecnológicas globalizado

e

digital que estamos inseridos sejam uma ferramenta potencializadora para superarmos a exclusão digital do nosso

Desta feita, a realização das audiências

país e possibilitar uma ampliação efetiva

por videoconferência tem previsão legal

na tutela de direitos por todos, em especial

desde 2015 com o advento do Código de

dos mais vulneráveis.

Processo Civil e atende às necessidades de acesso à Justiça e continuidade da prestação jurisdicional, garantindo que a utilização de meios tecnológicos no processo judicial continue a ser utilizada de forma ágil, segura e prática. virtuais,

espera-se

na

forma

procedimental,

de

legislação

eficaz,

bem

através como

o

aparelhamento do Poder Judiciário, dandolhe condições de eficiência em recursos humanos e tecnológicos primordial para

Com a expansão da utilização das audiências

Portanto, urge um aperfeiçoamento

como

o futuro das audiências virtuais e o seu amplo acesso por todos.

resultado que, mesmo com os desafios apresentados, sejam fomentadas políticas

142

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Resolução nº 322 de 1º de julho de 2020. Estabelece, no âmbito do Poder Judiciário, medidas para retomada dos serviços presenciais, observadas as ações necessárias para prevenção de contágio pelo novo Coronavírus Covid-19, e dá outras providências. Diário Oficial, 1 de junho de 2020. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original155647202006025ed676bf4c0d5.pdf. Acesso em: 05 mai. 2021. DALLARI, Dalmo. Direitos Humanos e Cidadania. São Paulo, Moderna, 1998. Estudo Imagem do Judiciário Brasileiro. AMB, FGV e IPESPE, 2019. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 49º edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2010. HAN, Byung Chul; tradução de Lucas Machado. No enxame: perspectivas do digital. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018. SARLET, Ingo. Wolfgang. Dimensões da Dignidade: ensaios de filosofia do Direito e Direito Constitucional. 2ª. ed. Porto Alegre, Livro do Advogado, 2009. A eficácia dos direitos fundamentais. 2001. SMANIO, GianpaoloPoggio. As Dimensões da Cidadania. Revista da ESMP. Ano 2, p 13-23, janeiro/junho-2009. WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna. In: Grinover, A. P.; Dinamarco, C. R.; Watanabe, K. (Org.). Participação e Processo, São Paulo: Ed. Revista dos tribunais, 1988.

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A PANDEMIA DO COVID-19 E A EFETIVAÇÃO DAS GARANTIAS JURÍDICAS POR INTERMÉDIO DE AUDIÊNCIAS VIRTUAIS EM ÂMBITO CÍVEL E PENAL Adrielly Letícia Silva Oliveira86 Alessandra Pangoni Balbino Santos87 RESUMO Este artigo propõe uma análise da realização das audiências virtuais no âmbito cível e criminal face a pandemia do Covid-19. Sua aplicação como um postulado interpretativo da igualdade transcende a discussão sobre a necessidade de informatização do judiciário e sua aplicação como instrumento de celeridade processual. Primeiro porque deve-se assegurar a efetivação dos direitos e garantias constitucionais em âmbito judicial. Segundo porque expressa mudanças na compreensão do direito cível e penal, vez que os postulados interpretativos dos mesmos se baseiam na proteção das partes. Este ensaio examina a realização das audiências virtuais no âmbito cível e criminal face a pandemia do Covid-19, assim como examina a efetividade da prestação jurisdicional em tais casos, além dos entendimentos jurisprudenciais face a esses acontecimentos, a partir dos desenvolvimentos teóricos no campo do direito cível e penal, para demonstrar a relevância da construção de um judiciário informatizado que garanta a efetividade e respeito as garantias fundamentais dos indivíduos, na construção de uma sociedade genuinamente democrática e com respeito a dignidade da pessoa humana. PALAVRAS-CHAVE Covid-19. Audiência virtual. Penal. Civil. Direitos fundamentais. 86  Mestranda em Direito da Sociedade da Informação pelas Faculdades Metropolitanas Unidas. Pós-graduada em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Bacharela em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2019). 87  Mestranda em Direito da Sociedade da Informação pelas Faculdades Metropolitanas Unidas. Pós-graduada em Direito Penal e Processo penal pela Instituto Damásio Educacional. Bacharela em Direito pelas Faculdades Metropolitanas Unidas. 146

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1. INTRODUÇÃO No último dia do ano de 2019, foi relatado a Organização Mundial de Saúde – OMS, o surgimento de um novo vírus na cidade de Wuhan, na China, o Covid-19. Esse é um vírus transmitido de morcegos para o homem e possui uma capacidade de replicação extremamente rápido. Paulatinamente, a doença foi espalhando-se pelo mundo inteiro e, em 11 de março de 2020, a OMS classificou o surto da doença como pandemia, e, portanto, já havia atingido todos os países do mundo. Diante desta nova realidade, o mundo precisou-se adaptar as medidas de distanciamento social como forma de prevenir o avanço da doença. Empresas, comércios e órgãos públicos necessitaram fechar suas portas e transferir seus funcionários para o trabalho em casa, o chamado home-office. Não foi diferente, portanto, no âmbito do direito. É sabido que a prestação jurisdicional deve ser realizada de forma ininterrupta, conforme dispõe a Constituição Federal. É o disposto: XII: A atividade jurisdicional será ininterrupta, sendo vedado férias coletivas nos juízos e tribunais de segundo grau, funcionando, nos dias em que não houver expediente forense normal, juízes em plantão permanente.88 88  BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituicao.htm. Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

Deste modo, as audiências presencias que estavam marcadas para o período de isolamento foram canceladas e houve a necessidade de buscar meios alternativos para o andamento regular do processo. Antes do advento da pandemia, a realização de audiências por intermédio de meios virtuais eram poucos utilizadas pelo Poder Judiciário. No entanto, dada a necessidade de isolamento social, tais formas de audiências foram o único modo para garantir a continuidade da prestação jurisdicional. Em 20.04.2020, foi publicada a Resolução 314/2020, que trouxe a previsão da realização de audiências virtuais em seu artigo 6º, consoante disposto abaixo: § 2º Para realização de atos virtuais por meio de videoconferência está assegurada a utilização por todos juízos e tribunais da ferramenta Cisco Webex, disponibilizada pelo Conselho Nacional de Justiça por meio de seu sítio eletrônico na internet (www.cnj. jus.br/plataformavideoconfencianacional/), nos termos do Termo de Cooperação Técnica nº 007/2020, ou outra ferramenta equivalente, e cujos arquivos deverão ser imediatamente disponibilizados no andamento processual, com acesso às partes e procuradores habilitados.89 89  BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3283 Acesso em 05.05.2021 147


Desde os Juizados Especiais, até os Tribunais do Trabalho e os processos na seara penal passaram a se adaptar e realizar audiências virtuais.

A metodologia deste artigo elege a linha jurídico-dogmática, que entende o direito como autossuficiente e trabalha com os elementos da área jurídica.

Assim, o presente artigo traz uma análise sobre os resultados das audiências realizadas pelo meio virtual, bem como discussões acerca do cabimento deste formato. Durante o ano de 2020, o Conselho Nacional de justiça editou diversas normas para regulamentar o uso das audiências virtuais em todas as áreas, porém existem particularidades em cada processo que devem ser levadas em consideração.

Ainda, utiliza-se da linha Jurídico Sociológica, como forma de compreender o fenômeno jurídico dentro do contexto social. Assim, preocupa-se com relações do direito dentro de um contexto social, uma vez que a efetividade das audiências é o que garante uma efetiva tutela jurisdicional aos indivíduos.

A indisponibilidade do direito em discussão pode ser um fator para afastar a aplicação das audiências virtuais, pois é necessário maio proteção estatal. Já no Juizado Especial, ante a menor complexidade das causas que tramitam sob o rito da Lei 9.099/89, especialmente na realização da audiência para a conciliação.

No ano de 2019 o mundo viu-se

Porém, a audiência de custódia tem como principal objetivo a verificação de eventuais abusos na prisão de algum suspeito, assim, ao ser realizada sem a presença do acusado presencialmente não é possível atingir o objetivo para o qual ela foi criada. Portanto, ainda há diversos aspectos a serem discutidos neste momento primordial de implementação para que estas possam ser realizadas da melhor forma possível, sem causar prejuízo ao saneamento do processo e as partes litigantes. 148

2. DA PANDEMIA DO COVID-19 E AS AUDIÊNCIAS VIRTUAIS inserido em uma nova problemática: Uma pandemia viral causada pelo Covid-19, também conhecido como Coronavírus. A medida emergencial para conter o avanço do vírus foi fechar estabelecimentos e isolar a população, restringindo contatos físicos e aglomerações em um mesmo local para que as pessoas contaminadas não transmitissem o vírus entre as pessoas próximas. Inicialmente, havia a crença de que o isolamento social durasse cerca de 1 mês, porém mais de um ano depois, a situação continua a mesma, com fóruns fechados e atendimento ao público restrito. Diante dessa realidade, ocorreu a necessidade de todas as áreas da sociedade de adaptar-se as novas regras impostas como forma de diminuição da

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propagação do vírus e com o judiciário

No dia 07 de agosto de 2020, o

não foi diferente.

Conselho Nacional de Justiça apresentou

O Artigo 93, XII, da Constituição Federal nos informa que a prestação jurisdicional deverá ser ininterrupta, conforme disposto abaixo:

os números do trabalho remoto no

“XII: A atividade jurisdicional será ininterrupta, sendo vedado férias coletivas nos juízos e tribunais de segundo grau, funcionando, nos dias em que não houver expediente forense normal, juízes em plantão permanente.”90

judiciário durante o seminário online “Trabalho Remoto no Judiciário: Resultados do uso da Plataforma Webex” e informou a realização de 366.278 (trezentos e sessenta e seis mil, duzentas e setenta e oito) videoconferências entre o período de 1º de maio e 4 de agosto.91 O

que

“Plataforma

era

conhecido

Emergencial

para

como Atos

processuais” apresentou bons resultados e foi bem recepcionado pela maioria dos

Ocorrendo a necessidade, portanto, da continuidade da prestação jurisdicional no âmbito processual mesmo em um cenário pandêmico, o judiciário brasileiro decidiu instaurar as chamadas audiências virtuais.

usuários, o que impulsionou a utilização

Assim, houve a necessidade de adaptação à nova realidade. Desde 2015, todos os processos passaram a ser realizados de forma eletrônica, salvo a realização de audiências, que continuaram a ser realizadas de forma presencial. No entanto, eram poucos os juízos que adotavam os sistemas tele presenciais para a realização de suas sessões; no entanto, dado o advento da pandemia, e a impossibilidade de encontros presenciais, a realização de audiências virtuais foi o único meio encontrado para a prestação judiciária.

inteiro e ainda atormenta a sociedade no

90  BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituicao.htm. Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

dos meios virtuais na condução do processo. A adaptação do sistema jurídico teve que ser acelerada devido a situação de pandemia que vigorou o ano de 2020 ano de 2021. Diante disso, o Conselho Nacional de Justiça teve que trabalhar para ajustar as disposições das novas regras e publicou diversas resoluções. De

início,

houve

a

Resolução

313/2020 que suspendeu os prazos processuais de 19 de março até 30 de abril para que todos conseguissem se adaptar as mudanças do cenário fático. Já na data de 20 de abril de 2020, foi publicada a Resolução 314/2020, que prorroga o 91  Conjur. 366 mil videoconferências. Justiça eleva produtividade. Disponível em: < https://www.conjur.com. br/2020-ago-10/366-mil-videoconferencias-justica-elevaprodutividade-covid-19 > Acesso em 05.05.2021. 149


prazo de suspensão processual e traz a previsão da realização de audiências virtuais em seu artigo 6º, conforme segue: § 2º Para realização de atos virtuais por meio de videoconferência está assegurada a utilização por todos juízos e tribunais da ferramenta Cisco Webex, disponibilizada pelo Conselho Nacional de Justiça por meio de seu sítio eletrônico na internet (www.cnj. jus.br/plataformavideoconfencianacional/), nos termos do Termo de Cooperação Técnica nº 007/2020, ou outra ferramenta equivalente, e cujos arquivos deverão ser imediatamente disponibilizados no andamento processual, com acesso às partes e procuradores habilitados.92 O termo de Cooperação 007/2020 foi realizado entre o CNJ e a empresa Cisco Brasil Ltda para que esta fornecesse o sistema Cisco Webex e demais aplicativos utilizados na sua operacionalização o aporte tecnológico necessário à eficiência da comunicação, manutenção da segurança e do sigilo das informações.93 A parceria tornou possível a realização de milhares de videoconferências e teve sua vigência prolongada até 31 de janeiro de 2021. 92  BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3283 Acesso em 05.05.2021 93  BRSAIL Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/transparencia-cnj/acordos-termose-convenios/termo-de-cooperacao-tecnica-n-007-2020/ Acesso em 06.05.2021 150

Em 09 de outubro de 2020 o CNJ publicou a resolução 345/2020 dispondo sobre as regras de implementação do “Juízo 100% digital” e em seu artigo 5ª determina que os processos dentro deste modelo terão todas as audiências realizadas através de videoconferência. Por fim, na data de 19 de novembro de 2020 o CNJ publicou a resolução 354/2020 que detalha as regras para realização de sessões e audiências em meio digital. O texto inicia diferenciando as audiências de videoconferência e telepresenciais,

sendo

consideradas

videoconferência as com comunicação a distância realizada em ambientes de unidades

judiciárias

e

consideradas

telepresenciais as audiências e sessões realizadas a partir de ambiente físico externo às unidades judiciárias. No 3º artigo desta resolução temos o seguinte texto: “Art. 3º As audiências telepresenciais serão determinadas pelo juízo, a requerimento das partes, se conveniente e viável, ou, de ofício, nos casos de: I – Urgência; II – substituição ou designação de magistrado com sede funcional diversa; III – mutirão ou projeto específico; IV – conciliação ou mediação; e V – Indisponibilidade temporária do 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


foro, calamidade pública ou força maior.

distanciamento social permita o retorno

Parágrafo único. A oposição à realização de audiência telepresencial deve ser fundamentada, submetendose ao controle judicial.”

virtual não deixará de ser adotada, uma

Aqui há a primeira previsão das hipóteses de realização das audiências pelo meio virtual. O artigo prevê o deferimento da sessão nos casos em que estas forem “convenientes e viáveis”, assim o texto abre uma margem discricionária para a avaliação das situações de cabimento. Além de prever hipóteses para o deferimento de ofício, o artigo prevê a necessidade de oposição fundamentada, inserindo a audiência virtual cada vez mais no cotidiano processual e expandindo sua utilização. Por mais que as audiências pelo meio

virtual

tenham

sido

inseridas

no ordenamento jurídico através de uma situação de calamidade pública, seus e

benefícios

a

foram

necessidade

comprovados

urgente

de

sua

implementação acabou por expandi-las com uma rapidez nunca vista e serviu para estabilizar as videoconferências para uso no dia a dia processual. Mesmo

que

algumas

pessoas

ainda resistissem a essa modalidade de realização de audiência, por não haver outra alternativa, o modelo teve que ser imposto e agora, mesmo que o fim do

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das audiências presenciais, a realização vez que muitos entendem isso como um retrocesso. 3. DO JUÍZO 100% VIRTUAL Como forma de informatização do judiciário e a necessidade de sua adaptação as demandas da sociedade moderna, o Conselho Nacional de Justiça, em sua Resolução n.º 345/2020, trouxe uma inovação ao mundo jurídico: O Juízo 100% digital. Tal disposição possui por intuito trazer os processos 100% informatizados, tanto no âmbito de seus andamentos processuais

(andamentos

eletrônicos),

tanto quanto na realização da audiência. Assim sendo, os optantes por esse tipo de prestação jurisdicional realizariam seus atos processuais totalmente de forma informatizada, por intermédio da Rede Mundial de Computadores.94 Assim, as partes poderão optar por esse tipo de juízo, sendo facultada a sua desistência quanto a esse tipo de prestação jurisdicional até a prolação da sentença. Acompanhando

a

evolução

da

tecnologia, o Juízo digital era um avanço esperado e muito próximo da realidade. 94  BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução 345/2020. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/ detalhar/3512. 151


São poucas as comarcas que ainda mantêm o peticionamento inicial através de meio físico.

a serem analisadas no momento de

Por mais que possa haver certa

das audiências virtuais, uma vez que

resistência por parte das partes e dos servidores da justiça, o Juízo virtual é algo que veio para ficar e, em muitos aspectos, para facilitar e aprimorar o acesso à justiça.

Deste modo, existem considerações ponderar a conveniência e viabilidade deve ser analisado cada processo no caso em concreto, ponderando a matéria, a capacidade das partes e a especificidade do mérito.

Há, contudo, divergências acerca de sua utilização, bem como diferenças no uso de audiências virtuais nas esferas jurídicas. Isso porque elas têm um papel diferente nos juízos, até mesmo dentro de um mesmo processo pode haver mais de uma audiência, por exemplo, uma de conciliação e uma de instrução e julgamento. Deste modo, a utilização do Juízo 100% virtual não possui um entendimento consolidado acerca da viabilidade da sua aplicação. As audiências de conciliação, por exemplo, no âmbito do Juizado Especial Cível são de extrema importância na busca pela conciliação e pela transação, porém há um número bem menor de ações que tramitam pelo rito comum em que a conciliação é possível. Quando

adentramos

o

âmbito

penal, nos vemos diante de uma nova problemática:

A

impossibilidade

de

realização de audiências de custódia online. Isso porque tal audiência é repleta de peculiaridades e particularidades, e sua realização de forma online esvai todas as suas funcionalidades. 152

4. DIREITOS INDISPONÍVEIS

DISPONÍVEIS

E

No Direito, temos a divisão dos direitos entre direitos disponíveis e direitos indisponíveis. Direito disponível é aquele em que pode dispor o indivíduo, ou seja, pode abrir mão. Um exemplo disso são as férias. O indivíduo possui direito a férias, porém, caso deseje, poderá dispor dele. Já os direitos indisponíveis, são aqueles que ultrapassam as relações interpessoais de caráter monetário. São direitos dos quais o indivíduo não pode abrir mão, uma vez que totalmente vedado pela Constituição Federal. São direitos considerados inalienáveis, intransmissíveis, irrenunciáveis ou não transacionáveis. A doutrina majoritária defende que os direitos da personalidade, família e outras questões de ordem pública também são indisponíveis.95 Assim, é possível concluir que os direitos indisponíveis necessitam de uma 95  CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini.; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 35-36. 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


maior tutela do estado e o processo que versa sobre esses casos devem ter uma tramitação razoavelmente diferente dos demais. A Lei 13.140/2015, que dispõe sobre a mediação, prevê, em seu artigo 3º, que os direitos indisponíveis suscetíveis a transição deverá ser objeto de homologação em juízo, exigida a oitiva do Ministério Público. Já no artigo 345 do Código de processo civil, a legislação afasta a presunção de veracidade dos fatos, no caso de revelia do réu, conforme texto: “Art. 345. A revelia não produz o efeito mencionado no art. 344 se: I - havendo pluralidade de réus, algum deles contestar a ação; II - o litígio versar sobre direitos indisponíveis; III - a petição inicial não estiver acompanhada de instrumento que a lei considere indispensável à prova do ato; IV - as alegações de fato formuladas pelo autor forem inverossímeis ou estiverem em contradição com prova constante dos autos.” Portanto, podemos auferir que o direito discutido na lide é matéria essencial no momento de considerar a viabilidade da audiência realizada pelo meio virtual. A conciliação é um momento em que sequer é discutido o mérito processual, Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

porém a lei de mediação traz o conceito de “direitos indisponíveis suscetíveis a transição” e tal conceito gerou uma discussão na doutrina, sobre quais seriam esses direitos pois, à princípio, o conceito causaria uma contradição ao permitir a disposição e um direito indisponível. Porém, transacionar não significa automaticamente dispor, conforme trecho abaixo, temos: Nesse aspecto, podemos afirmar, por exemplo, que em uma transação sobre o direito a alimentos, a negociação num processo autocompositivo acerca do quantum, pode trazer mais efetividade na concretização desse direito, uma vez que a solução para o conflito foi construída pelas partes, com o seu consentimento, dentro de suas reais possibilidades. Diferente de uma ação judicial, processo heterocompositivo, onde a decisão do juiz é imposta em desfavor de uma das partes que deverá, contra a sua vontade, cumprir o que foi determinado na sentença. (COSTA, SANTOS, 2019) Assim,

a

conciliação

não

está

restrita apenas aos direitos disponíveis, principalmente, porque não discute o mérito da ação e a própria lei de mediação exige a oitiva do Ministério Público para que seja feita a homologação do acordo, impedindo vantagem desproporcional a qualquer uma das partes. 153


Já quando há a discussão do mérito, o saneamento do processo é indispensável e deve ser realizado da melhor forma possível, especialmente com direitos de maior complexidade envolvidos. O distanciamento das partes com o magistrado responsável pelo julgamento do processo pode causar prejuízo as partes quando é necessário que se realize um saneamento processual mais iminente. Ações que versam sobre matérias como direito de família, em que, na maioria dos casos, uma das partes é considerada incapaz, e ações no âmbito do processo penal, em que o direito ali discutido é a liberdade do réu, faz-se necessária a análise da viabilidade da audiência virtual, vez que a parte vulnerável dos autos pode acabar em desvantagem; desvantagem, essa, que deve ser coibida pelo Judiciário. A audiência virtual traz celeridade e, ao mesmo tempo, distancia as partes do judiciário, pois o contato pessoal e presencial é retirado e não há mecanismo virtual que o substitua propriamente. 5. A AUDIÊNCIA VIRTUAL NO ÂMBITO DO JUIZADO ESPECIAL A criação dos Juizados Especiais foi estipulada na Constituição Federal do Brasil em seu artigo 98, inciso I, conforme texto: “Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I - juizados especiais, providos por 154

juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau;” Assim, no ano de 1995 foi publicada a lei 9.099 que criava os juizados especiais estaduais em todo país, trazendo suas bases e princípios. Nestes Juizados, o processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação. Tais critérios estão estabelecidos no artigo segundo da lei 9.099/95 e o objetivo de criação de um juízo com tais bases foi facilitar o acesso a justiça, trazendo uma prestação jurisdicional a causas de menor complexidade e trazer uma maior rapidez ao trâmite processual. Quando os Juízos do país se depararam com a pandemia, a solução imediata foi a de fechar os tribunais e cancelar todas as audiências já designadas, porém o cenário de pandemia no país se estendeu por um período muito maior do que o esperado e a suspensão dos prazos processuais começou a preocupar o judiciário.

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Como seria possível ter um processo célere se as partes estivessem impossibilitadas de dar andamento ou de conciliar em juízo? Alguns juizados já usavam o aplicativo de mensagens “whatsapp” para se comunicar com os autores dos processos que compareciam em juízo sem o acompanhamento de um advogado. Assim, de início, o uso do aplicativo de mensagens instantâneas foi usado para tentativas de conciliação.96 Diversas ações judiciais em decorrência do isolamento social acabaram eclodindo no período, e o uso de novas formas de realização de sessões de conciliação foi se tornando necessária. Aplicativos como o Zoom, o Microsoft Teams e o Google Meet também eram utilizados antes do termo de cooperação com a empresa Cisco Webex e continuaram a ser utilizados após o fim da parceria. Este método possibilitou que os processos, antes estagnados, voltassem a avançar e de maneira mais rápida do que antes, pois há uma facilidade maior para a organização das sessões virtuais em comparação as sessões presenciais. Além disso, facilitou a participação das partes no certame, que podem acessar a sessão da sua própria residência. Os processos que tramitam sob o rito da lei 9.099 tem uma menor complexidade, 96  IMPRENSA TJSC. Disponível em: https://www.tjsc.jus. br/web/imprensa/-/whatsapp-impulsiona-conciliacoese - a u x i l i a - n a - r e a d e q u a c a o - d a s - p a u t a s - d u ra n t e pandemia?inheritRedirect=true Acesso em: 08.05.2021 Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

portanto, os direitos aqui discutidos são, majoritariamente, disponíveis. Deste modo, não se verifica algum prejuízo a qualquer uma das partes e as audiências realizadas vem se mostrando benéficas aos processos dos juizados. Além disso, a conciliação, que ocorre em um momento inicial do processo e sequer há a discussão sobre o mérito da causa, pode ser feita virtualmente sem qualquer prejuízo. Essa modalidade de audiência, quando designada para uma data muito à frente do momento de distribuição do processo pode acabar causando eventual estagnação da causa, ao designar a conciliação virtualmente e aumentar o número de audiências realizadas diariamente, além de aumentar o número de acordos judiciais realizados, acelera a tramitação processual nas varas do juizado. 6. O DIREITO PENAL E AS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA: O processo penal, considerado como a “última ratio”, possui o intuito de regular o poder do Estado de punir os cidadãos que se desviam das regras da sociedade. Por conta disso, é inevitável uma constitucionalização maior dele, uma vez que a discussão principal no âmbito penal é o cerceamento, ou não, da liberdade do indivíduo. Assim sendo, existem garantias mínimas e fundamentais, que possuem o intuito de reger as relações penais. 155


Dada essas particularidades, temos, no processo penal, determinados tipos de procedimentos processuais que não existem em outras áreas. Uma particularidade existente no processo penal é a denominada audiência de custódia. Antes de adentrarmos no mérito processual brasileiro da audiência de custódia, precisamos fazer um panorama histórico acerca da sua criação e existência. A audiência de custódia veio implementada como decorrência do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e da Convenção Interamericana de Direitos Humanos. A Convenção Interamericana de Direitos Humanos, em seu Artigo 7º, dispõe que:

2. Qualquer pessoa, ao ser presa, deverá ser informada das razões da prisão e notificada, sem demora, das acusações formuladas contra ela.98 Assim, em decorrência de tais determinações, tivemos a criação, no Brasil, da audiência de custódia. Acerca da audiência de custódia, dispõe o Artigo 310 do Código de Processo Penal: “Art. 310. Após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após

“4. Toda pessoa detida ou retida deve ser informada das razões da sua detenção e notificada, sem demora, da acusação ou acusações formuladas contra ela.

a realização da prisão, o juiz deverá

5. Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.”97

Ministério Público.”99

97  Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Disponível em: http://www.cidh.org/Basicos/Portugues/c. 156

Ainda, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, em seu Artigo 9º, dispõe que:

promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do

Essa audiência possui, por intuito principal, averiguar as condições da realização da prisão em flagrante do agente, analisando se foram respeitadas as garantias penais e constitucionais Convencao_Americana.htm. 98  BRASIL. Decreto n.º 592/1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm. 99  BRASIL. Decreto-Lei n.º 3689/1948. Código de Processo Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm. 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


do acusado. Ainda, caso seja auferida a ilegalidade da prisão, a mesma deverá ser relaxada, conforme disposto em Lei. A audiência de custódia é tão importante dentro do âmbito penal e a sua obrigatoriedade é incontestável que, no § 3º do Artigo 310, informa-se que caso a autoridade responsável não realize a audiência de custódia no prazo de 24 horas, imotivadamente, ela responderá administrativa, civil e penalmente pela omissão. Ainda, a não realização dela no prazo prescrito em lei ensejará a ilegalidade da prisão e, portanto, deverá ser relaxada. Deste modo, percebemos que o intuito principal do legislador é proteger as garantias constitucionais do acusado no processo penal.

videoconferência, informando que, no caso de réu preso, deverá ser realizada em sala reservada no estabelecimento prisional, assegurando-se canal privativo de comunicação entre o réu e a sua defesa. Como forma de proteção as garantias físicas do acusado e manter o intuito da audiência de custódia, que é o de verificar a legalidade das condições em que a prisão foi realizada, o Conselho Nacional de Justiça determinou também que, em casos de audiências virtuais, o preso deverá permanecer sozinho na sala durante sua oitiva, em ambiente com câmera em 360 graus para fiscalizar, além de ser determinada a realização de exame de corpo delito antes da realização da audiência.

Assim sendo, desde o início da pandemia, entravou-se uma discussão: A realização de audiência de custódia de forma virtual é cabível? Isso porque o intuito dessa forma de audiência é justamente verificar as condições da realização da prisão, assim como auferir se o acusado sofreu agressão por parte dos agentes judiciários e, portanto, caso realizada de forma virtual, perderia seu intuito e essência.

O Tribunal de Justiça de São Paulo, por intermédio de seu Provimento n. 2564/2020, determinou, em seu Artigo 28, que as audiências de custódia no Estado de São Paulo fossem realizadas de forma virtual, conforme disposto:

Em 30/07/2020 o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução n.º 329, que possuía por intuito regulamentar e estabelecer critérios para a realização de audiências por videoconferência no processo penal.

de custódia serão realizadas por

Assim, tal realização permitiu a realização das audiências de custódia por

406-A do Tomo I das Normas de

Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

Art. 28. A partir do dia 03 de agosto de 2020 (inclusive), na comarca da Capital, durante os dias úteis e Plantões Ordinários, as audiências videoconferência, Comunicados

CG

na nº

forma

dos

284/2020

e 317/2020, mantida, no mais, a

sistemática

estabelecida

pela

Resolução OE nº 740/16 e pelo art.

157


Serviço da Corregedoria Geral.100 Por conta disso, e da eminente violação das garantias da audiência de custódia, a Defensoria Pública do Estado protocolou

reclamação

ao

Conselho

Nacional de Justiça requerendo liminar para a anulação do provimento. Em sua reclamação, a Defensoria Pública

arguiu,

em

resumo,

que

a

realização das audiências de custódia de forma virtual afronta a Convenção Americana de Direitos Humanos, o Código de Processo Penal e as garantias e direitos fundamentais do cidadão preso.

101

fere as garantias constitucionais do preso e viola, diretamente, a função da audiência de custódia, que é a apresentação imediata de um preso ao juiz como forma de verificação do respeito as suas garantias fundamentais. 7. CONCLUSÃO As audiências virtuais, antes do advento da pandemia do Covid-19, eram poucos utilizadas. Entretanto, após o

O Ministro Dias Toffoli, em análise a

contexto pandêmico, e a necessidade

Reclamação, proferiu voto informando que:

de distanciamento social como forma

Audiência

de

custódia

por

videoconferência não é audiência de custódia e não se equiparará ao padrão de apresentação imediata de

de conter o avanço do vírus, tivemos a aplicação das audiências virtuais de forma total no País. Desde

2015,

contamos

com

a

um preso a um juiz, em momento

utilização de processos eletrônicos. Estes

consecutivo a sua prisão, estandarte,

trouxeram diversos benefícios quando

por sinal, bem definido por esse

comparados com os antigos processos

próprio Conselho Nacional de Justiça

físicos, uma vez que tornou mais célere

quando fez aplicar em todo o país as disposições do Pacto de São José da Costa Rica.

102

100  BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Provimento nº 2564/2020. Disponível em: https://www. conjur.com.br/dl/provimento-2564.pdf. 101  DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Reclamação para garantia das decisões. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/reclamacao-defensoria-spprovimento.pdf. 102  BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Ato Normativo 0004117-63.2020.2.00.0000. Disponível em: https://www. conjur.com.br/dl/conselho-nacional-justica-proibe.pdf. 158

Deste modo, temos o entendimento consolidado de que a realização de audiência de custódia de forma virtual

a prestação jurisdicional. Isso não foi diferente, portanto, com as audiências virtuais. Mesmo com certa

resistência

de todos os autuantes dos processos, os resultados apresentados ao longo do ano de 2020 pelo Conselho Nacional de Justiça são positivos. É improvável que com o retorno das atividades presenciais a audiência virtual caia em desuso, pelo contrário, o seu uso 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


agora está extremamente presente e não

forma não presencial fere os direitos do

é mais uma medida emergencial.

réu preso. Isso porque o intuito de tal

Porém,

é

necessário

que

seja

analisado o direito discutido no processo em questão, de forma a ser analisada a viabilidade da audiência virtual. Os processos que versam sobre direitos

audiência é verificar eventuais excessos e ilegalidades que foram cometidas ao réu no momento de sua prisão, o que se torna impossível se realizado online. Primeiramente,

devemos

repisar

indisponíveis exigem, necessariamente,

a necessidade de análise prévia da

uma maior cautela no seu saneamento,

viabilidade da audiência virtual em cada

portanto as normas editadas acerca da

caso em concreto. Isso porque os casos

realização de audiências virtuais devem

jurisdicionados não são iguais, e, portanto,

ser cautelosas em relação a determinadas

nem sempre a utilização de audiência

ações de acordo com sua matéria.

virtual será uma forma de efetivação dos

Apesar de existirem normas editadas pelo Conselho Nacional de Justiça que versam sobre o assunto, não há Legislação Nacional que traga parâmetros para sua realização. Deste modo, as audiências virtuais são realizadas gradativamente

direitos humanos. A análise prévia do tipo de ação, assim como se o direito discutido na lide é disponível ou indisponível permite que se analise a efetividade da audiência virtual, como forma de garantir os direitos dos jurisdicionados.

nas diferentes esferas do direito e os seus

Ainda, percebemos uma falha do

resultados são percebidos com o passar do

Legislador ao não editar normas específicas

tempo e sendo avaliados pelos números

que versem sobre as audiências virtuais.

apresentados pelos órgãos do judiciário.

Apesar de existirem normas editadas pelo

No âmbito do Juizado especial Cível, as audiências virtuais trouxeram uma maior celeridade. Deste modo, a adoção dessas medidas veio para ficar e agora são constantes graças aos bons resultados observados. No entanto, quando analisamos a viabilidade das audiências virtuais no âmbito de audiência de custódia, verificamos que a sua realização de

Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

Conselho Nacional de Justiça acerca do tema, não temos uma Legislação específica que verse sobre o tema no País todo. Deste modo, percebemos que a inércia do legislador traz danos, muitas vezes, irreparáveis ao jurisdicionado, vez que cada juízo age de uma maneira diante das audiências virtuais, o que traz um cenário de incerteza jurídica sobre se o seu caso será, ou não, objeto de julgamento.

159


Faz-se

mister,

portanto,

que

o

Legislador edite uma norma que verse sobre o tema, uma vez que podemos analisar que as audiências virtuais vieram para ficar e sua retirada total após o término da pandemia poderia representar um retrocesso. Ainda, a audiência virtual não deve ser um óbice a aplicação dos direitos dos jurisdicionados. Isso porque, a depender da matéria discutida, ou a audiência de custódia no Direito Penal, a utilização deste método de audiência esvai qualquer direito que o jurisdicionado possua. Deste modo, podemos auferir que as audiências virtuais representam um avanço para o direito, no entanto, nem sempre o que é um avanço para uma área, é um avanço para todas as outras. Deste modo, a análise prévia do direito tutelado na demanda faz-se mister, de forma a garantir uma tutela de direitos efetiva e a construção de uma sociedade genuinamente democrática.

160

36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Ato Normativo 000411763.2020.2.00.0000. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/conselhonacional-justica-proibe.pdf BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução n.º 329. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3400#:~:text=previstas%20nesta%20 Resolu%C3%A7%C3%A3o.-,Art.,Resolu%C3%A7%C3% A3o%20CNJ%20n%C2%BA%20314%2F2020 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução 345/2020. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3512. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/ atos/detalhar/3283 Acesso em 05.05.2021 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://www.cnj.jus. br/transparencia-cnj/acordos-termos-e-convenios/termo-de-cooperacaotecnica-n-007-2020/ Acesso em 06.05.2021 BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: https://www.planalto. gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm BRASIL. Decreto n.º 592/1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm. BRASIL. Decreto-Lei n.º 3689/1948. Código de Processo Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Provimento nº 2564/2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/provimento-2564.pdf. CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini.; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2009 Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Disponível em: http://www. cidh.org/Basicos/Portugues/c.Convencao_Americana.htm. Conjur. 366 mil videoconferências. Justiça eleva produtividade. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2020-ago-10/366-mil-videoconferenciasjustica-eleva-produtividade-covid-19 > Acesso em 05.05.2021. COSTA, Nilton César Antunes da; SANTOS, Rebeca Barbosa dos. A TRANSAÇÃO DE DIREITOS INDISPONÍVEIS NA MEDIAÇÃO. Revista DIREITO UFMS. Campo Grande. 2019 DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Reclamação para garantia das decisões. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/ reclamacao-defensoria-sp-provimento.pdf.

Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

161


10

A LIBERDADE DE EXPRESSÃO VERSUS A LEI DE SEGURANÇA NACIONAL EM AMBIENTES VIRTUAIS Rodrigo da Silveira Barcellos103 Gustavo Silva Torres104 Pietro Ferreira Bello105

RESUMO Atualmente, a Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170/1983) vem sendo reiteradamente utilizada a fim de penalizar certas condutas que estariam indo contra a segurança nacional e a ordem política e social. Ocorre que essa busca pela penalização pode levar a uma restrição à liberdade de expressão e, diante das novas tecnologias de informação dos ambientes virtuais, esta regulação ganha novos contornos, os quais ainda são matéria de ampla discussão. Com isso em vista, o presente artigo traz dois casos (Daniel Silveira e Felipe Neto) que expressam este embate entre a liberdade de expressão e a Lei de Segurança Nacional (LSN) e busca discuti-los a fim de entender se a garantia fundamental da livre manifestação ou a proteção penal dada pela LSN deve prevalecer em cada caso, tendo como base a Constituição Federal e a legislação infraconstitucional. PALAVRAS-CHAVE Liberdade de Expressão, Lei de Segurança Nacional, Internet, Ambientes virtuais, Liberdade de Informação, Direitos de personalidade, Conflito. 103  Doutorando em Direito Civil pela Universidade de Coimbra – Portugal. Mestre em Direito da Sociedade da Informação no Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas; Especialista em Direito Civil pela Universidade de Coimbra. Professor Universitário. Assessor Jurídico do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 104  Discente do curso de Direito da Universidade de São Paulo. Aluno pesquisador da Escola de Formação Pública da Sociedade Brasileira de Direito Público. 105  Discente do curso de Direito da Universidade de São Paulo; estagiário do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 162

36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


1. INTRODUÇÃO Um dos direitos mais caros do ordenamento jurídico brasileiro é a liberdade de expressão, assegurada no artigo 5º, IX, e no artigo 220 da Carta de 1988. Não há como afirmar que um Estado é democrático sem que seus membros tenham a prerrogativa de se expressar livremente. No entanto, a realidade concreta, caracterizada pela complexidade das relações sociais, diversos direitos ao serem exercidos se chocam com outras faculdades protegidas por lei. Observa-se, portanto, que a liberdade de expressão dos cidadãos não é absoluta, ainda que tida como fundamental. No caso dela, uma via que limita este direito é a Lei 7.170/1983, a Lei de Segurança Nacional (LSN). Esta norma - que vem sendo amplamente utilizada - trata-se de um dispositivo penal que prevê crimes contra a segurança nacional, estipulando sanções àqueles que cometerem tais condutas tidas como lesivas à nação. Ocorre que esta lei apresenta resquícios ditatoriais que restringem a manifestação da sociedade civil na democracia instituída após 1988. Nesse sentido, diversos artigos da referida norma especificam tipos penais que já são previstos em demais legislações, por exemplo, o Código Penal, o que traz como corolário uma maior restrição de determinados direitos, ao invés da suposta maior segurança nacional. Diante desse conflito, uma questão central se apresenta: a atual Lei de Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

Segurança Nacional se mostra necessária e compatível com a democracia? Para elucidar como se estabelece este embate entre a Lei de Segurança Nacional e a liberdade de expressão, foram analisados dois casos recentes que obtiveram notória repercussão pública: o caso do deputado federal Daniel Silveira e o do influenciador digital Felipe Neto. Ainda que sejam casos com teor distinto, ambos trazem à luz cada um à sua maneira - este debate acerca dos limites da liberdade de expressão e sua importância para a democracia e, a partir deles, busca-se traçar respostas para as indagações que se estabelecem. 2. A LIBERDADE DE EXPRESSÃO Para melhor analisar os casos que motivaram a produção deste artigo, precisamos conceituar e estabelecer a diferença entre a liberdade de expressão, comunicação e informação, bem como a maneira pela qual essas três premissas, tão fundamentais para o desenvolvimento e evolução de um Estado Democrático de Direito, se manifestam na sociedade atual. Nas lições de Canotilho e Vital Moreira, “A liberdade de expressão implica o direito de expressar o pensamento, ou seja, ideias, opiniões, pontos de vista, juízos de valor, críticas, tomadas de posição sobre quaisquer assuntos, quaisquer que sejam as finalidades e os critérios de valoração, não pressupondo “sequer um dever de verdade perante os factos embora isso possa vir a ser relevante nos juízos de valoração em 163


caso de conflito com outros direitos ou fins constitucionalmente protegidos”106. Devemos iniciar com a liberdade de

expressão

manifestação

stricto sensu. A livre do

pensamento

é

expressão fundamental da personalidade e é garantida constitucionalmente e legalmente na ordem jurídica brasileira. A manifestação pode ser dirigida a uma ou mais pessoas não presentes, mesmo que de forma sigilosa, por correspondência,

através

de

carta,

telegrama, telefone ou rádio. Tal liberdade é assegurada pelo artigo 5º, XII, da Constituição Federal: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal. Mesmo a palavra correspondência sendo assumida muitas vezes como 106  GOMES, J.J. Canotilho e Vital Moreira. Fundamentos da Constituição. Coimbra Editora, 1991. p. 572. 164

sinônimo

de

carta,

vários

autores

interpretam esse conceito de maneira mais abrangente, já que a técnica deu à humanidade outros meios de se corresponder como os demais. Entende-se que essas novas formas de comunicação também estão asseguradas pelo artigo acima transcrito. A exceção fica por conta das comunicações telefônicas, já que podem sofrer restrição na sua inviolabilidade perante processual

investigação criminal.

ou Tal

instrução restrição

é

defendida pela doutrina e adotada em alguns sistemas jurídicos, principalmente em casos como sequestro e narcotráfico, sendo que muitas vezes a “escuta” telefônica é o único meio de solução de tais crimes. Mesmo com isso em mente, a “escuta” só será permitida perante ordem judicial e nas hipóteses e formas previstas em lei específica, que deverá o juízo observar. Mas

a

regra,

portanto,

é

a

inviolabilidade da comunicação. Inclusive o artigo 5º inciso LVI da Constituição proíbe a obtenção de provas por meios ilícitos: LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos. Outros importantes dispositivos constitucionais que asseguram a liberdade de expressão e comunicação são os seguintes:

36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


Art. 5º: (...) IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; A manifestação do pensamento é uma das principais de todas as liberdades humanas, já que a linguagem é expressão fundamental da humanidade. A linguagem diferencia os seres humanos

esta se preocupou em proscrever a censura. A Constituição brasileira (art. 5º, IX) veda a censura da palavra escrita. Declara independente de censura ou licença do Poder Público a ‘expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação’. Proíbem, todavia, o anonimato (não o pseudônimo).107 Ainda sobre a censura, assevera o especialista em liberdade de expressão, Edilsom Farias:

de outros animais, sendo o meio pelo

Convém

qual transmitimos e recebemos lições de

imprescindibilidade

civilização.

de

Outra forma de manifestação de pensamento é a palavra escrita destinada a pessoas indeterminadas, divulgadas através de livros, jornais, revistas ou outros tipos de publicação. Nesse sentido, assevera o jurista Manoel Gonçalves Ferreira Filhos, sobre censura: Durante longos séculos, todas as publicações dependeram de autorização governamental, cientes os poderosos do tempo da força da palavra escrita, o meio de comunicação de massa ao tempo existente. Essa autorização só era dada após a censura da obra, que, conforme o tempo se fazia com rigor maior ou menor. Por atingir talvez bem de perto os enciclopedistas e iluministas que inspiraram a Revolução de 1789, Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

expressão

enfatizar da

política

a liberdade para

o

funcionamento de um autêntico regime democrático. A ‘freedom of political speech’ é pré-requisito para a formação de uma opinião pública independente e pluralista ou para o estabelecimento de um debate público franco e vigoroso. Um regime político no qual os cidadãos estão impedidos de manifestarem publicamente

as

suas

opiniões

sobre os atos dos responsáveis pelo resguardo da coisa pública ou sobre o desempenho de instituições públicas não passa de um embuste ou arremedo de democracia.108

107  FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 33. Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2007. p. 301. 108  FARIAS, Edilsom. Liberdade de Expressão e Comunicação: Teoria e Proteção Constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 158. 165


Em nossa Constituição de 1988, portanto, é vedada a censura. A garantia da livre expressão em território brasileiro é reforçada, ainda, no capítulo V constitucional, chamado “Da comunicação social”. O artigo 220 reforça a proibição da censura em seu parágrafo 2º. Veja-se o artigo: Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. § 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV. § 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. (...) Com relação à imprensa, deve-se prestar atenção ao artigo 222, do mesmo capítulo, da Constituição, que dispõe que é vedado ao estrangeiro ser dono, orientador ou responsável por empresa jornalística ou de radiodifusão. Só cabe a brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos a orientação ou a responsabilidade por esses tipos de empresas. Importante salientar em relação ao direito de imprensa, o fato de que

166

em 2009 o Supremo Tribunal Federal, guardião de nossa Constituição, através do ministro relator Ayres Britto na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 130 (Distrito Federal), decidiu que a lei de imprensa não foi recepcionada pela Constituição de 1988. Tal lei foi promulgada no ano de 1967, ou seja, período que nosso país se encontrava em plena ditadura empresarial-militar, trazendo vários artigos considerados problemáticos e repressivos depois da redemocratização. Nesse sentido, em julgamento histórico, o Tribunal pode, assim, declarar a inconstitucionalidade da lei inteira, fazendo com que não seja mais aplicável. O principal argumento é o fato de que tal lei não seria compatível com a democracia prometida pela nossa atual Constituição Federal. Colaciona-se um trecho da ementa dessa decisão, para ilustrar como o Supremo Tribunal decidiu que seria tratado dali para frente os casos de relação de imprensa: (...) 11. EFEITOS JURÍDICOS DA DECISÃO. Aplicam-se as normas da legislação comum, notadamente o Código Civil, o Código Penal, o Código de Processo Civil e o Código

de

Processo

Penal

às

causas decorrentes das relações de imprensa. O direito de resposta, que se manifesta como ação de replicar ou de retificar matéria publicada é exercitável por parte daquele que se

36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


vê ofendido em sua honra objetiva, ou

então

subjetiva,

conforme

estampado no inciso V do art. 5º da Constituição Federal. Norma, essa, “de eficácia plena e de aplicabilidade imediata”,

conforme

classificação

de José Afonso da Silva. “Norma de pronta aplicação”, na linguagem de Celso Ribeiro Bastos e Carlos Ayres Britto, em obra doutrinária conjunta. 12. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO. Total procedência da ADPF, para o efeito de declarar como não recepcionado pela Constituição de 1988 todo o conjunto de dispositivos da Lei federal nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967.109 Nesse sentido, segundo o Supremo, a partir da data de publicação dessa decisão os juízes devem se basear em outras leis para julgar casos que envolvam a imprensa, como direito à imagem e à intimidade. As leis que devem ser consideradas são, por exemplo, os Códigos Penal, Civil e os de Processo Penal e Civil, além, é claro, da própria Constituição.

seu inciso V), não necessitando de uma lei ordinária para garanti-lo. Por fim, o que podemos interpretar de tal julgamento é que os ministros do Supremo Tribunal Federal se preocupam com a garantia, prevista em Constituição, de liberdade de expressão, não podendo uma lei retrógrada impedir o seu livre exercício, apesar, claramente, de este direito ser limitado por outras garantias também fundamentais como o direito à intimidade, à privacidade, à honra, à imagem etc. Com relação à legislação comum que passa a regular o direito de imprensa, segundo o julgado do Supremo Tribunal Federal, tem-se alguns exemplos de regulação. A Lei de Execução Penal traz em seu artigo 41, inciso VIII, o seguinte: Art. 41 - Constituem direitos do preso: (...) VIII - proteção contra qualquer forma de sensacionalismo. Fica

disposto,

portanto,

que

a

pessoa acusada em processo penal deve ser privada apenas de sua liberdade,

O principal debate, que os tribunais ainda não conseguiram chegar a um consenso, seria sobre o direito de resposta. Segundo os ministros, no julgamento da ADPF nº 130, tal direito já é previsto na Constituição (como já citado anteriormente, tal direito está previsto no artigo 5º da Constituição Federal, em

não perdendo todos os outros direitos

109  Supremo Tribunal Federal, Relator Ministro Ayres Britto, Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 130 – DF, DJE 12 de maio de 2009.

mais um cidadão.

Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

civis. Deve, portanto, ser protegida de sensacionalismo da imprensa, que muitas vezes tenta se aproveitar do momento de vulnerabilidade pela qual a pessoa está passando quando está detida e produz notícias não autorizadas, exibindo a imagem do preso como se este não fosse

167


Nesse sentido, é importante interpretar tal inciso da Lei de Execução Penal conjuntamente com alguns incisivos do artigo 5º, que estabelece os direitos e garantias fundamentais da pessoa humana. Como por exemplo, o direito à intimidade, que está estabelecido no inciso:

pena de indenização por danos materiais e morais, já que a exploração econômica de uma pessoa obtendo lucro com isso só pode ser feito caso a pessoa deseje isso.

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

(...) um conjunto de direitos, formas, processos e veículos, que possibilitam a coordenação desembaraçada da criação, expressão e difusão do pensamento e da informação. É o que se extrai dos incisos IV, V, IX, XII e XIV do art. 5º combinados com os arts. 220 a 224 da Constituição. Compreende ela as formas de criação, expressão e manifestação do pensamento e de informação, e a organização dos meios de comunicação, esta sujeita a regime jurídico especial (...).110

Outro exemplo de disposição em legislação ordinária ocorre no Código Civil, no artigo 20: Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Tal artigo trata de uma das limitações à liberdade de expressão, já que trata da invasão injusta na intimidade de uma pessoa. Além disso, ainda trata sobre a utilização comercial da imagem ou palavra de alguém, que, claro, sempre deve ter autorizado a exibição de sua imagem, sob 168

Passa-se, então, para a liberdade de comunicação. Segundo o constitucionalista José Afonso da Silva, a liberdade de comunicação consiste em:

Nesse sentido, para esse jurista, o direito de comunicação é um direito amplo, que engloba tanto a liberdade de expressão quanto a liberdade de informação, conceitos tratados no presente capítulo. A comunicação, portanto, pode ser feita, observado o disposto na Constituição, sem sofrer qualquer restrição não importando qual veículo de informação que possa ser utilizado; nenhuma lei poderá conter dispositivo 110  SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo 31. Edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2008. p. 243. 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


que constitua embaraço à liberdade de informação do jornalismo – a exemplo da decisão do Supremo Tribunal Federal tornando sem efeito a lei de imprensa por conter dispositivo antidemocráticos –; existe a vedação de censura a qualquer forma de expressão com natureza artística, ideológica ou política; a publicação de qualquer veículo informativo não depende de autorização; os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens dependem apenas de autorização, concessão ou permissão do Poder Executivo federal; por fim, o meios de comunicação não podem ser objeto de monopólio. Sobre os limites da liberdade de comunicação, Edilsom Farias, especialista em liberdade de comunicação, assevera que:

Ou seja, sempre importante lembrar que

o

direito

à

livre

comunicação

nunca pode ser pretexto para violação de direitos de outras pessoas. Não é permitido caluniar, macular a honra, violar a intimidade ou a imagem de pessoas, mesmo que públicas, etc., sob pena de uma sanção de natureza patrimonial ou reparatória, como uma indenização ou uma reparação pelo direito de resposta, regulamentado pela Lei 13.188/2015. Enfim, não se pode abusar desse direito. Sobre a liberdade de informação, necessário se fazer a distinção entre liberdade de informação e direito à informação. O direito à informação, é um direito coletivo ao acesso à informação.

Cumpre evocar que a liberdade

Diferentemente

genérica

informação que para o jurista José Afonso

de

expressão

do

pensamento, embora não concebida ao critério da verdade, deve ser exercida

com

continência

para

obter a proteção constitucional (ver supra, cap. 2 da 1.ª Parte, item 2.5). 17 Vale dizer, o âmbito normativo do citado inciso IV do art. 5.º não cobre a emissão do pensamento que revele animus para difamar, injuriar ou caluniar, ou contenha expressões

que

violem

outros

direitos personalíssimos (intimidade, vida privada e imagem).111 111  FARIAS, Edilsom. Liberdade de Expressão e Comunicação: Teoria e Proteção Constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 155. Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

da

liberdade

de

da Silva, seria o conjunto de modalidades de difusão para o público, sob forma, por exemplo, de notícias ou ideias. A liberdade de informação, nesse sentido, compreenderia a liberdade de informar e a liberdade de ser informado. A primeira liberdade coincide com a liberdade de manifestação das ideias e pensamentos através da palavra, por qualquer meio de difusão, não só escrito. Enquanto a segunda liberdade englobaria o interesse da coletividade de estar informada, podendo assim, exercer livremente suas liberdades públicas. Nas palavras do próprio autor: 169


Nesse

sentido,

a

liberdade

de

disseminação de conteúdo, como páginas

informação compreende a procura, o

na internet tanto de notícia como de

acesso, o recebimento e a difusão de

entretenimento.

informações ou ideias, por qualquer meio, e sem dependência de censura, respondendo cada qual pelos abusos que cometer. O acesso de todos à informação é um direito individual consignado na Constituição, que também resguarda o sigilo da fonte, quando

necessário

ao

exercício

profissional (art. 5º, XIV). Aqui se ressalva o direito do jornalista e do comunicador social de não declinar a fonte onde obteve a informação divulgada. Em tal situação, eles ou o meio de comunicação utilizado respondem pelos abusos e prejuízos ao bom nome, à reputação e à

ao jornalismo regime especial, para que possa cumprir sua função, garantindo sua atuação, mas, não menos importante, coibindo os abusos. A Constituição, em seu artigo 220, §º, não se resume, mas trata da liberdade de imprensa, pois está ligada apenas à publicação de veículo impresso de comunicação. Sabe-se que hoje a imprensa não é constituída apenas de veículos impressos, e sim dos mais diversos tipos, como radiodifusão e internet. A liberdade de informação não é apenas da liberdade do jornalista. A

imagem do ofendido (art. 5º, X).112

liberdade deste é reflexa, no sentido

Ou seja, a posteriori, aquele que

medida em que o direito dos cidadãos à

causou danos através de meios de difusão irá indenizar as pessoas prejudicadas. Isso garante que não haja censura, de fato, ou seja, intervir estatal anterior à manifestação por meio de difusão de informação como jornais ou programas de televisão. Nesse sentido, pode-se analisar a liberdade de informação jornalística, que é o desdobramento mais importante do direito de informação, principalmente modernamente com as novas formas de 112  SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 31. Edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2008. p. 248. 170

A ordem jurídica brasileira confere

de que esta só existe e é justificada na informação correta e imparcial também deve ser assegurada. Cada cidadão tem o direito de ser informado e ter acesso às fontes da informação, assumindo, dessa maneira, que o jornalista e o dono da empresa de jornalismo possuem o dever de informá-los corretamente. Sobre a liberdade/dever do jornalista, assevera o constitucionalista José Afonso da Silva: Reconhe-se-lhes o direito de informar ao público os acontecimentos e ideias, mas sobre ele incide o

36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


dever de informar à coletividade de tais acontecimentos e ideias, objetivamente, sem alterar-lhes a verdade ou esvarziar-lhes o sentido original, do contrário, se terá não informação, mas desinformação. Os jornalistas e empresas jornalísticas reclamam mais seu direito do que cumprem seus deveres.113

deixar a imprensa tendo uma liberdade

Tal advertência se justifica tendo

precise indenizar alguém.

absoluta, sem que haja punição pelos seus excessos e condicionamento de sua liberdade, limitando, por exemplo, a questão do anonimato. É vedado o anonimato.

Em

matéria

jornalística

não identificada, o diretor veículo que divulgou pode ser responsabilizado caso o jornalista tenha cometido excessos e

em conta que o jornalismo é importante

Samanta Ribeiro Meyer-Pflug define

instrumento de formação de opinião

liberdade de expressão como sendo a

pública, assumindo, portanto, importante

exteriorização do pensamento, ideias,

função social que não pode ser exercida

opinião,

irresponsavelmente

profissionais

sensações e sentimentos em suas mais

que tragam as notícias de maneira

variadas formas, quais sejam, as atividades

sensacionalista e até mesmo mentirosa,

intelectuais, artísticas, científicas e de

omissa, de maneira comprometedora etc.

comunicação.114

Mas

para

por

o

jornalismo

o

constitucionalista José Afonso da Silva não é só críticas. Tal jurista também admite que o jornalismo cumpre importantíssimo papel

social,

de

grande

relevância,

constituindo uma defesa contra o excesso de poder do Estado, por exemplo, já que tem a prerrogativa de noticiar aos cidadãos o que se passa na altas instâncias do poder governamental. É o jornalista

convicções,

bem

Continua

como

a

de

mesma

autora, afirmando que no direito de cada indivíduo pensar e abraçar as ideias que lhe aprouver sem sofrer qualquer restrição ou retaliação por parte do Estado. O homem é livre para pensar e manifestar seus pensamentos, e a liberdade de informação consiste no direito que o indivíduo possui de ter acesso a notícias e dados sem quaisquer restrições por parte do poder público ou da sociedade.115

que informa ao cidadão sobre decisões

A dignidade só é devidamente

governamentais importantes que farão

eficiente quando há a consideração do

parte de suas vidas.

“outro”, e a comunicação de massa é

E é exatamente por exercer função social tão importante que não se pode 113  SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 31. Edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2008. p. 247. Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

ou pode vir a ser veículo de corrosão continua desta dignidade. Ser digno, 114  MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo: RT, 2009. p. 27. 115  Idem. p. 42. 171


ter vida com dignidade, é respeitar-se

e manifestação de pensamento (inciso I),

a si mesmo, respeitar o outro e se fazer

a proteção da privacidade (inciso II) e a

respeitar. A comunicação atual e seus

proteção dos dados pessoais (inciso III) são

fenômenos como a mídia, impressa

princípios da disciplina do uso da internet.

ou eletrônica e ainda na atualidade,

Com efeito, tanto a liberdade de

mídia de convergência, surgiram com o uso aperfeiçoado da tecnologia, mas sua necessidade de comunicação algo inerente a ele, que diz respeito a essa sua natureza social. Para

finalizar,

expressão como direitos da personalidade foram dispostos como fundamento e princípio do Marco Civil da Internet, ou seja, nos termos da teoria de Robert Alexy, como mandamento de otimização que

a

liberdade

de

ordena que algo seja feito na maior medida

comunicação envolve também o conceito

possível, de acordo com as possibilidades

de meios de comunicação, já que cada

fáticas e jurídicas do caso concreto116.

meio terá um regime jurídico específico. Como por exemplo, os livros, jornais e outros periódicos.

E para disciplinar eventual conflito entre esses dois princípios, materializado em atos ilícitos que violem a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das

3. PONDERAÇÃO DE CONFLITOS ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS

pessoas, a nova lei trouxe um sistema

A liberdade de expressão e os direitos

minuciado numa série de regras, prescritas

da personalidade podem estar em rota de colisão, é propenso à difusão de ofensas, principalmente na internet, e a Lei nº 12.965/2.014 lista como fundamentos e como princípios da internet a liberdade de expressão e os direitos da personalidade. Veja, neste sentido, que o caput do artigo 2º da lei dispõe que a disciplina do uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão. No inciso II do mesmo artigo, consta também como fundamento o desenvolvimento da personalidade. O artigo 3º do diploma, de modo similar, dispõe que a garantia da liberdade de expressão, comunicação 172

de responsabilidades. Tal sistema foi a partir do artigo 7º da lei117, delineando 116  SILVA, Virgilio Afonso. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. Revista LatinoAmericana de Estudos Constitucionais. Vol. 1. 2003. p. 607-630. 117  Art. 7º O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos: I - inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; II - inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, salvo por ordem judicial, na forma da lei; III - inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial; IV - não suspensão da conexão à internet, salvo por débito diretamente decorrente de sua utilização; V - manutenção da qualidade contratada da conexão à internet; VI - informações claras e completas constantes dos contratos de prestação de serviços, com detalhamento sobre o regime de proteção aos registros de conexão e aos registros de acesso a aplicações de internet, bem como 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


de forma mais concreta os limites da

civil dispostas no Código Civil e pelas

liberdade de expressão, preenchendo

normas incriminadoras do Código Penal.

lacunas anteriormente encontradas no ordenamento jurídico.

Interessante notar que o caput do artigo 19 da citada lei apresenta uma

Apesar disso, o texto legal nada

justificativa à necessidade de prévia

dispõe a respeito da responsabilidade

ordem judicial para a exclusão de conteúdo

do ofensor, sendo a matéria disciplinada

ofensor gerado por terceiro. O texto da

pelas regras gerais de responsabilidade

lei diz que tal disposição tem “o intuito de assegurar a liberdade de expressão

sobre práticas de gerenciamento da rede que possam afetar sua qualidade; VII - não fornecimento a terceiros de seus dados pessoais, inclusive registros de conexão, e de acesso a aplicações de internet, salvo mediante consentimento livre, expresso e informado ou nas hipóteses previstas em lei; VIII - informações claras e completas sobre coleta, uso, armazenamento, tratamento e proteção de seus dados pessoais, que somente poderão ser utilizados para finalidades que: a) justifiquem sua coleta; b) não sejam vedadas pela legislação; e c) estejam especificadas nos contratos de prestação de serviços ou em termos de uso de aplicações de internet; IX - consentimento expresso sobre coleta, uso, armazenamento e tratamento de dados pessoais, que deverá ocorrer de forma destacada das demais cláusulas contratuais; X - exclusão definitiva dos dados pessoais que tiver fornecido a determinada aplicação de internet, a seu requerimento, ao término da relação entre as partes, ressalvadas as hipóteses de guarda obrigatória de registros previstas nesta Lei; XI - publicidade e clareza de eventuais políticas de uso dos provedores de conexão à internet e de aplicações de internet; XII - acessibilidade, consideradas as características físico-motoras, perceptivas, sensoriais, intelectuais e mentais do usuário, nos termos da lei; e XIII - aplicação das normas de proteção e defesa do consumidor nas relações de consumo realizadas na internet. Art. 8º A garantia do direito à privacidade e à liberdade de expressão nas comunicações é condição para o pleno exercício do direito de acesso à internet. Parágrafo único. São nulas de pleno direito as cláusulas contratuais que violem o disposto no caput, tais como aquelas que: I - impliquem ofensa à inviolabilidade e ao sigilo das comunicações privadas, pela internet; ou II - em contrato de adesão, não ofereçam como alternativa ao contratante a adoção do foro brasileiro para solução de controvérsias decorrentes de serviços prestados no Brasil. Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

e impedir a censura”. Portanto, o Marco Civil privilegiou a liberdade de expressão no ambiente cibernético e delegou ao Judiciário a análise de existência ou não de atos violadores da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem. Como bem observam André Zonaro Giacchetta e Pamela Gabrielle Meneguetti: Fica clara, nesse ponto, a opção do Marco Civil da Internet pela garantia da livre manifestação do pensamento e da expressão, que a Constituição Federal assegura em termos amplos. Evita-se, com isso, que o provedor de serviço de internet seja levado a, uma vez comunicado extrajudicialmente sobre

determinado

conteúdo

gerado por usuário, avaliar sua licitude

ou

ilicitude,

exercendo

prerrogativa do Poder Judiciário que, frequentemente, apresenta caráter subjetivo. Evidentemente, o Marco Civil da Internet, ao assim prever, não deixou 173


o direito à intimidade ou à vida

Moraes determinou a ordem de prisão

privada em segundo plano, mas,

em flagrante delito do deputado, por

antes, a fim de preservar o equilíbrio

crime inafiançável, que foi referendada

entre

constitucionais,

pelo plenário do STF no dia seguinte à

Judiciário

prisão, por unanimidade dos membros da

garantias

relegou

ao

Poder

a

apreciação, no caso concreto, da

Suprema Corte.

valoração e prevalência dos direitos constitucionalmente assegurados. 118

A decisão determinou que a apuração de fato que configure crime previsto pela Lei 7.170/83 é competência da Polícia

4. CASO DANIEL SILVEIRA Ganhou notoriedade na mídia e em discussões jurídicas o polêmico caso do Deputado Federal Daniel Silveira, que teve sua prisão determinada após divulgar um vídeo nas redes sociais defendendo o AI-5 e atacando diversos ministros do Supremo Tribunal Federal, com destaque para as ofensas proferidas contra o Ministro Edson Fachin. Em decisão de ofício119, em inquérito aberto sem requerimento da Polícia Federal ou do Ministério Público Federal (a apuração de fato que configure crime previsto pela Lei 7.170/83 é competência da Polícia Federal, como aponta o caput do artigo 31120), o Ministro Alexandre de 118  Idem, p. 383. 119  Decisão disponível para leitura em: https://static. poder360.com.br/2021/02/decisao-STF-prisaoDaniel-Silveira.pdf. 120  Art. 31 - Para apuração de fato que configure crime previsto nesta Lei, instaurar-se-á inquérito policial, pela Polícia Federal: I - de ofício; II - mediante requisição do Ministério Público; III - mediante requisição de autoridade militar responsável 174

Federal, como aponta o caput do artigo 31121 A Câmara dos Deputados, conforme determinação constitucional, votou para decidir se Daniel Silveira continuaria ou não preso, resolvendo pela manutenção de sua restrição de liberdade, com 364 votos a favor e 130 contra. Muitos pontos da decisão proferida pelo Ministro Alexandre de Moraes vêm sendo objeto de acaloradas discussões. Dentre elas, pode-se citar a que gira em torno da caracterização (ou ausência dela) pela segurança interna; IV - mediante requisição do Ministro da Justiça. Parágrafo único - Poderá a União delegar, mediante convênio, a Estado, ao Distrito Federal ou a Território, atribuições para a realização do inquérito referido neste artigo. 121  Art. 31 - Para apuração de fato que configure crime previsto nesta Lei, instaurar-se-á inquérito policial, pela Polícia Federal: I - de ofício; II - mediante requisição do Ministério Público; III - mediante requisição de autoridade militar responsável pela segurança interna; IV - mediante requisição do Ministro da Justiça. Parágrafo único - Poderá a União delegar, mediante convênio, a Estado, ao Distrito Federal ou a Território, atribuições para a realização do inquérito referido neste artigo. 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


da prisão em flagrante, justificada pelo

Datada de 1983 (e não de 1973, conforme

Ministro Relator como decorrente da

erroneamente informado na decisão do

perpetuação dos delitos cometidos pelo

Ministro Relator), em pleno governo de

deputado, tendo em vista a permanência

João Figueiredo, é definidora dos crimes

do vídeo publicado a todos os usuários

contra a segurança nacional e a ordem

da rede mundial de computadores, com

econômica e social, bem como contra os

visualização de dezenas de milhares de

chefes dos poderes executivo, legislativo

pessoas. Ainda, há extensa discussão

e judiciário, e contra o Estado de Direito

acerca da imunidade parlamentar do

em si. Ocorre que, como definido pelo

deputado (que, conforme determina o

próprio Ministro Ricardo Lewandowski

art. 52, §2°, da Constituição Federal, não

em participação em transmissão do

poderia ter sua prisão decretada, “salvo

Grupo Prerrogativas em homenagem

em flagrante de crime inafiançável”), ou

aos seus quinze anos de atuação no

mesmo sobre a ausência de requerimento

STF, a Lei de Segurança Nacional é um

por parte da Polícia Federal ou do

“fóssil normativo”122, e tem sido tratada

Ministério Público para instauração de

por diversos juristas como um “entulho

inquérito (que envolve também o debate

autoritário”123.

sobre a inegável seletividade política

à base legal utilizada pelo Ministro

De fato, a Lei de Segurança Nacional foi estabelecida com a perspectiva de exercício por um tribunal militar com a intenção de autuar e condenar indivíduos de maneira autoritária, visando o controle dos cidadãos em um regime antidemocrático. E, recentemente, o governo atual tem aumentado bruscamente a utilização dessa lei, recorrendo a ela visando justamente a opressão de seus adversários políticos,

Alexandre de Moraes para decretar a

cerceando sua liberdade de expressão.

dessas instituições em suas investigações). São questionamentos perfeitamente cabíveis e coerentes, cujo debate deve impreterivelmente ocorrer na comunidade jurídica. Contudo, pouco agregariam à discussão dos temas que o presente artigo visa abordar. Para tal finalidade, à parte dos tópicos supracitados, cabe destaque

prisão do deputado: a Lei de n° 7.170, de 1983, conhecida como Lei de Segurança Nacional. Trata-se de lei criada durante a vigência da ditadura empresarial-militar brasileira, que perdurou de 1964 a 1985. Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

122  Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ politica/ultimas-noticias/2021/03/20/lei-deseguranca-nacional-e-um-fossil-normativo-dizministro-lewandowski.htm. Acesso em: 11 de maio de 2021. 123  Disponível em: https://www.migalhas.com.br/ quentes/343783/entulho-autoritario--dizem-advogadossobre-lei-de-seguranca-nacional. Acesso em: 11 de maio de 2021. 175


A Lei de Segurança Nacional possui

Para decidir em prol da prisão do

base na Doutrina de Segurança Nacional

deputado, o Ministro Alexandre de Moraes

(DSN), cujas principais influências são

utilizou como base legislativa a Lei de

as ideias de um grupo de militares que

Segurança Nacional. Mais especificamente,

obtiveram destaque nas Forças Armadas,

imputou ao deputado a prática dos delitos

vindo a formar a Escola Superior de

previstos em seus artigos 17, 18, 22 e

Guerra (ESG), na década de 1940. Com

23, que definem como crime contra a

fundamento no conceito de guerra total, a

segurança nacional as seguintes práticas,

DSN parte do pressuposto da existência

respectivamente:

de uma guerra entre todos os setores da

emprego de violência ou grave ameaça, a

sociedade124.

ordem, o regime vigente ou o Estado de

Visando a defesa contra quem esses militares caracterizavam como inimigos externos, instituiu-se a lógica de defesa contra supostos inimigos internos, contra os quais se deveria praticar a censura a fim de punir o dissenso de qualquer um que se opusesse aos ideais que consideravam

mudar,

com

Direito”; “tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos estados”; “fazer, em público, propaganda de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social”; e “incitar à subversão da ordem política ou social”.

essenciais para o desenvolvimento e

É evidente que, neste caso, as

segurança do país, que, por sua vez,

declarações do deputado Daniel Silveira

deveriam ser a última razão do Estado

são

Nacional. Estava instituída, portanto,

lamentável que tenham sido proferidas

a lógica do inimigo, segundo a qual

por uma figura que ocupa tão importante

a perseguição e o silenciamento de

cargo do poder legislativo. É preciso,

opositores seria imprescindível à proteção

contudo,

do regime instituído. Inevitável a conclusão

que medida elas excedem a liberdade de

de qual tal lógica carrega fortes traços

expressão constitucionalmente protegida.

de incompatibilidade com o atual regime

Pelo teor de suas falas125, torna-se

democrático e os respectivos direitos e liberdades instituídos pela Constituição de 1988. 124  TIBOLA, A. A Escola Superior de Guerra e a Doutrina de Segurança Nacional (1949-1966). Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Passo Fundo. Passo Fundo, 2007. 176

“tentar

extremamente

entender

ultrajosas,

sendo

precisamente

em

inequívoco que o deputado em muito excedeu a sua faculdade de criticar a atuação dos ministros da Corte Federal, 125  A transcrição das falas do deputado está disponível para consulta em: https://www.poder360.com.br/justica/ leia-a-transcricao-do-que-disse-daniel-silveira-e-o-quelevou-o-stf-a-prende-lo/. 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


tendo realizado ataques pessoais e de

Assim como no caso de Trump, as

baixo calão a esses, traduzindo-se em

manifestações do deputado Daniel Silveira

pura manifestação de ódio e desacato às

produzem real implicação de motivar seus

suas autoridades.

simpatizantes a protestarem contra os

Ora, o chamado discurso de ódio não pode ser abarcado pela proteção constitucional à liberdade de expressão126. Quando o discurso deixa de expor a opinião de um indivíduo contrária à de outro e passa a constituir ação legalmente vedada, deve passar a ser qualificado como crime. A sua criminalização não seria, portanto, um desacato à liberdade de expressão constitucionalmente garantida, mas sim uma confirmação do Estado Democrático de Direito frente a ataques que visam incitar o caos, o pânico e a violência. A ilicitude no comportamento de Daniel Silveira, contudo, vai muito além: o deputado não apenas ofendeu, caluniou e injuriou os ministros da Suprema Corte, mas também praticou incitação ao crime, delito previsto no artigo 286, do Código Penal127. Para tal análise, cabe analogia do presente caso com o do ex-presidente estadunidense Donald Trump, que teve seu impeachment aprovado pela Câmara dos Representantes após incitar a invasão ao Capitólio que ocorreu em 6 de janeiro deste ano, que culminou na morte de seis pessoas. 126  MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo: RT, 2009. 127  Art. 286 - Incitar, publicamente, a prática de crime: Pena - detenção, de três a seis meses, ou multa.

Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

ministros do Supremo Tribunal Federal da forma como ele declarou que gostaria de fazer: “O que acontece, Fachin, é que todo mundo está cansado dessa sua cara de ***** da **** que tu tem… Essa cara de vagabundo… Várias e várias vezes já te imaginei levando uma surra, quantas vezes eu imaginei você e todos os integrantes dessa Corte … Quantas vezes eu imaginei você na rua levando uma surra... Que que você vai falar? Que eu to fomentando a violência? Não... Eu só imaginei... Ainda que eu premeditasse, não seria crime, você sabe que não seria crime... Você é um jurista pífio, mas sabe que esse mínimo é previsível.... Então qualquer cidadão que conjecturar uma surra bem dada com um gato morto até ele miar, de preferência após cada refeição, não é crime.” Embora o parlamentar não demande diretamente que seus seguidores o façam, é límpido que suas declarações possuem a capacidade de causar tais efeitos, ainda mais em um contexto político no qual tornaram-se frequentes manifestações inconstitucionais clamando pelo fechamento da Corte Federal e do Congresso, que costumam reunir justamente indivíduos vinculados à ala

177


política do atual Presidente da República, à qual Daniel Silveira abertamente pertence.

de covid-19, Felipe Neto foi intimado pela Polícia Civil do Rio de Janeiro para

a

prestar depoimento. Segundo a denúncia,

limitação da liberdade de expressão

solicitada pelo vereador Carlos Bolsonaro

torna-se imperiosa no caso em tela, posto

(PSC-RJ), filho do Presidente da República,

que, em ponderação de conflitos entre

o youtuber teria violado o artigo 26 da

direitos fundamentais, esta é ínfima em

LSN128, que trata de calúnia e difamação

comparação com o atentado à democracia

contra o Presidente da República e o

e ao Estado Democrático de Direito e suas

artigo 138 do Código Penal129, que tipifica

instituições republicanas que o deputado

a calúnia.

É

manifesto,

destarte,

que

promove não apenas em suas declarações, mas também em sua atuação política, que é objeto de investigação em inquérito policial no STF, a pedido da ProcuradoriaGeral

da

associações

República, definidas

por pelo

promover Ministro

Alexandre de Moraes em sua decisão previamente abordada como detentoras do “intuito de modificar o regime vigente e o Estado de Direito, através de estruturas e financiamentos destinados à mobilização e incitação da população à subversão da ordem política e social, bem como criando animosidades entre as Forças Armadas e as instituições”. 5. CASO FELIPE NETO Nesta mesma seara, apresenta-se o caso do influenciador digital e youtuber Felipe Neto. Após publicação na rede social Twitter, no dia 04/03/2021, em que chama o Presidente da República de

178

“genocida” pela condução da pandemia

A investigação contra Felipe Neto foi suspensa pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, após habeas corpus com pedido de liminar. A decisão determinou que, como já abordado, a apuração de fato que configure crime previsto pela Lei 7.170/83 é competência da Polícia Federal, como aponta o caput do artigo 31. Ademais, a requisição do vereador Carlos

Bolsonaro

não

poderia

ser

acatada, já que o mesmo artigo 31, incisos I a IV, lista as hipóteses para a instauração do inquérito policial, quais sejam de ofício; mediante requisição do 128  Art. 26 - Caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação. Pena: reclusão, de 1 a 4 anos. Parágrafo único - Na mesma pena incorre quem, conhecendo o caráter ilícito da imputação, a propala ou divulga. 129  Art. 138 - Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime: Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa. § 1º - Na mesma pena incorre quem, sabendo falsa a imputação, a propala ou divulga. § 2º - É punível a calúnia contra os mortos. 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


Ministério Público; mediante requisição

quando um indivíduo, ao saber que pode

de autoridade militar responsável pela

ser preso pelas palavras que disser, por

segurança interna; mediante requisição

diversas vezes, deixará de se manifestar,

do Ministro da Justiça. Destarte, o juízo

abdicando seu direito, já que teria medo de

deferiu a liminar até julgamento definitivo

uma eventual punição131. Este fenômeno

do habeas corpus.

seria replicado não só por um indivíduo,

Ainda que a investigação tenha sido suspensa, entende-se que houve uma clara e manifesta tentativa de obstaculizar a liberdade de expressão do influenciador digital, o que, em última análise, esfria o livre debate de ideias na sociedade como um todo. Para entender melhor esse esfriamento, pode ser utilizada a experiência americana acerca da restrição da livre manifestação de ideias. distinga da estadunidense, na medida em que a primeira emenda da Constituição Americana130 é muito mais protetiva à liberdade de expressão, a fundamentação teórica que baseia esta proteção mostrase útil para entender o caso de Felipe Neto. Uma das bases dessa proteção ao livre discurso é a defesa contra o chamado chilling effect, o qual seria consequência a

intimidação

à

liberdade

de

manifestação geraria. O chilling effect se manifestaria 130  Artigo 1º - O Congresso não fará lei relativa ao estabelecimento de religião ou proibindo o livre exercício desta, ou restringindo a liberdade de palavra ou de imprensa, ou o direito do povo de reunir-se pacificamente e dirigir petições ao governo para a reparação de seus agravos. Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

isso, o debate público e o exercício da crítica – tão caros em uma democracia ficam comprometidos. Essa abdicação é chave para entender como, ao buscar-se à responsabilização penal de Felipe Neto, gera-se um dano que potencialmente inibe mais pessoas de se expressarem e se manifestarem. Adentrando ao caso, é importante o

Por mais que a realidade brasileira se

que

mas na sociedade como um todo, com

entendimento do uso do termo genocida. Mesmo que não seja o cerne da questão que se levanta por meio deste artigo, genocídio apresenta diferentes acepções. Ainda que haja uma acepção adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro, baseada no Estatuto de Roma132, o vocábulo possui 131  MACEDO Jr, Ronaldo Porto. “Liberdade de expressão: que lições podemos aprender com a experiência americana”. 132  O artigo 6º do tratado citado aduz: Crime de Genocídio Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por “genocídio”, qualquer um dos atos que a seguir se enumeram, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal: a) Homicídio de membros do grupo; b) Ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo; c) Sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial; d) Imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; e) Transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo. 179


raízes históricas que extrapolam os limites

em questão de genocida seria crítica, seria

do Direito: No significado atual, o termo foi usado pela primeira vez em 1944 por R. Lemkin para indicar a destruição em massa de um grupo étnico, assim como todo projeto sistemático que

antes um juízo de valor de um cidadão contra a maneira pela qual foi feita a condução da pandemia global de covid-19 no Brasil pelo Presidente da República do que uma busca por incriminação de quem teria cometido o genocídio. Tal

tenha por objetivo eliminar um aspecto

constatação é fundamental para que se

fundamental da cultura de um povo.

entenda como a conduta de Felipe Neto

Assim definido, o Genocídio é tão

está protegida sob o escudo da liberdade

antigo quanto a história humana, mas

de expressão.

somente após a Segunda Guerra

À luz da ponderação entre estes

Mundial a comunidade internacional,

direitos fundamentais, entende-se que

estarrecida

Felipe Neto, ao receber a intimação

pelos

enormes

crimes

cometidos pela política racista do

da

nazismo, sentiu necessidade de fixar

o influenciador, teria sofrido lesão à

normas de direito internacional para

liberdade de expressão.

coibir tal delito. 133 Portanto, antes de um tipo penal que prevê penas a quem vier a cometêlo, o genocídio é um ato, ou melhor, um conjunto reiterado de atos. Desse modo, chamar alguém de genocida seria uma crítica, portanto, enquadra-se dentro do escopo estabelecido por Canotilho e Vital Moreira, para definir a liberdade de expressão: “ideias, opiniões, pontos de vista, juízos de valor, criticas, tomadas de posição sobre quaisquer assuntos, quaisquer que sejam as finalidades e os critérios de valoração (...)” 133  BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política I. Tradução de CARMEN C, Varriale. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1 ed., 1998. p. 543. 180

Nesse sentido, chamar a autoridade

notícia-crime

impetrada

contra

Como já apontado, o Marco Civil da Internet tem como princípio basilar a liberdade de expressão e, além disso, em seu artigo 19, caput, indica o intuito de assegurá-la e impedir a censura. E, como também indicado alhures, a responsabilidade por dano decorrente de conteúdo na internet foi reservada ao diploma civil e às normas penais. É nesse último campo que se insere a Lei de Segurança Nacional. O bem jurídico tutelado pelo artigo 26, caput, da LSN seria a honra do Presidente da República. Nos delitos de calúnia e difamação, o objeto jurídico seria a honra objetiva, isto é, o direito à reputação ou imagem da pessoa diante 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


de terceiros, como afirma NUCCI.134

proporcionalidade. Este instrumento é

Este

composto por três etapas: adequação,

direito

à

honra

é

protegido

constitucionalmente pelo artigo 5º, X,

necessidade

da Carta Maior135, o que leva ao conflito

sentido estrito. 137

entre a honra do Presidente da República e à liberdade de expressão de Felipe Neto. O raciocínio a ser utilizado para definição de qual desses dois direitos fundamentais

deve

prevalecer

deve

ser feito com base na teoria de Alexy, anteriormente mencionada.

e

proporcionalidade

em

Ao se questionar a adequação, busca-se entender se a medida adotada para proteger um direito é adequada. No caso em questão, a medida adotada seria aplicar uma pena para Felipe Neto em busca de proteger a honra objetiva do Presidente. Ainda que se possa questionar

Para o autor, em caso de colisão

o uso do aparato penal para o caso, visto

entre normas, como aqui ocorreu, deve-

que este deve ser aplicado como ultima

se fazer um sopesamento entre as regras

ratio, é possível afirmar que a medida seria

e estipular uma precedência condicional

adequada na medida em que a LSN segue

com base no caso concreto: “Duas normas

vigente em nosso ordenamento jurídico.

levam, se isoladamente consideradas, a resultados contraditórios entre si. Nenhuma delas é inválida, nenhuma tem precedência absoluta sobre a outra. O que vale depende da forma corno será decidida a precedência entre elas sob a luz do caso concreto”.136

Já a análise da necessidade questiona se não haveria outros meios de conseguir o mesmo fim almejado. Caso haja outra medida que também seja adequada, no mínimo, tão eficiente quanto a pensada no primeiro momento e que restrinja

Um instrumento para definir qual(is)

menos o direito fundamental, esta medida

direito(s) deve(m) prevalecer é o teste de

alternativa deve ser aplicada. No caso em questão, o uso do instrumento penal da

134  NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 10. ed. rev., atual. e ampl, 2014. p. 553-555. 135  Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; 136  ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: 2ª ed., 2011. p 101. Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

LSN não se mostra necessário, sendo que a honra objetiva já é protegida pelo Código Penal e também por meios não-penais. Com isso, já seria suficiente para afastar a demanda de aplicação da LSN no caso em concreto. Nesse sentido, 137  SILVA, Virgílio Afonso da. Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2021, p. 120.

181


medidas

de

responsabilidade

civil138

Felipe Neto é diminuta se comparada com

poderiam ser aplicadas caso se concluísse

a gravidade que o ferimento à liberdade

que Felipe Neto, de fato, teria cometido

de expressão gera.

um dano ao Presidente, ainda que existam muitas controvérsias a respeito. Porém, a terceira e última etapa do teste de proporcionalidade nos permite entender melhor o que está em cena nessa colisão de direitos fundamentais. configura-se

posição institucional que aquele que possivelmente teria a honra objetiva ferida ocupa: Presidente da República. Seus atos são públicos e seu poder deriva da vontade popular que o elegeu. Deste modo, afastar

A proporcionalidade em sentido estrito

Tal constatação se dá em razão da

como

a liberdade de expressão com base em

um

uma crítica a atos públicos feita por

sopesamento entre os direitos envolvidos.

integrante pertencente ao povo que o

Caso uma medida que busque restringir

escolheu soa como uma medida autoritária

um direito fundamental seja configurada

e incompatível com a democracia.

como adequada e necessária, deve-se questionar se a restrição é justificável. No caso em tela, a publicação de uma crítica ao Presidente da República levaria à uma restrição não somente da liberdade de expressão, mas a liberdade em sentido amplo, já que a pena de reclusão seria aplicada. Destarte,

mostra-se

nítida

a

desproporcionalidade entre o possível dano gerado advindo da publicação em face da restrição à liberdade de Felipe Neto e do esfriamento do debate público – o chilling effect.

A utilização do termo genocida para além da busca de potenciais efeitos criminais, como prevê o Estatuto de Roma - os quais não são o cerne da presente análise - estimula reflexões, fomenta debates, gera questionamentos e desenvolve a democracia. No caso em tela, com as condições postas, deve-se adotar a garantia da liberdade de expressão como prevalecido em relação ao direito fundamental à honra. Caso contrário, abre-se precedente a uma perpetuação de ameaças à ordem democrática.

Portanto, a compreensão que se chega é de que a potencial lesão à honra do Presidente da República em face da manifestação de pensamento por parte de 138  Código Civil: Art. 186 - Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. 182

5. REFLEXÕES ACERCA DA LEI DE SEGURANÇA NACIONAL Como anteriormente dito, a Lei de Segurança Nacional foi promulgada ainda durante a vigência da ditadura 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


empresarial-militar e buscou a proteção de certos bens jurídicos em prol da segurança nacional. Ocorre que a Lei de Segurança Nacional tem sido amplamente questionada pelo Poder Legislativo e pelo Poder Judiciário, com Projetos de Lei que buscam revogá-la e com ações que pleiteiam a inconstitucionalidade da As controvérsias com relação a este dispositivo aqui expostas levam ao entendimento de que para os casos de Daniel Silveira e de Felipe Neto poderiam ser utilizados outros aparatos legais para a proteção dos bens jurídicos protegidos. questão

acerca

do

uso

da

liberdade de expressão no caso de Daniel

Silveira,

conforme

abordado,

poderia ter sido tratada no âmbito jurídico previsto pelo Código Penal, sem necessidade de enquadramento na obsoleta Lei de Segurança Nacional. Isso porque as condutas por ele praticadas são

seu objetivo? Entende-se que não há necessidade

referida norma.139

A

criminosas (difamação e calúnia). Ocorre que esses crimes já estão previstos no Código Penal, nos artigos 138 e 139, o que leva à seguinte reflexão: a existência de uma tipificação exclusiva da calúnia e da difamação realizadas contra os governantes se mostra necessária? Qual o

devidamente

tipificadas

como

delitos (calúnia, injúria, difamação e, principalmente, incitação ao crime). Analogamente, no caso de Felipe Neto, há um debate acerca do uso da liberdade de expressão, sendo ela vista como garantia constitucional ou como justificativa para a realização de condutas 139  Para ilustrar este cenário de questionamento da Lei 7.170/1983, podem ser citados os Projetos de Lei 2.462/1991, 6.764/2002 e as Ações de Descumprimento de Preceito Fundamental 797 (autoria do PTB), 799 (autoria do PSB), 815 (autoria do PSDB) e 816 (autoria do PT, PSOL e PCdoB). Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

de tipificação exclusiva para estes delitos cometidos contra tais governantes por uma razão democrática. A Lei de Segurança Nacional pode ser utilizada, como foi no caso de Felipe Neto, como instrumento para perseguição de adversários políticos, de modo a lançar mão da lógica de inimigo derivada

da

doutrina

de

segurança

nacional. Tal lógica de inimigo interno mostra-se incompatível com a ordem democrática vigente no Brasil, de modo a limitar e cercear a liberdade de expressão de possíveis críticos que buscam somente exercer seu direito cívico de se manifestar contra algumas autoridades públicas. A imunidade conferida a essas autoridades soa desproporcional na medida em que, além de terem o dever de prestar contas e se sujeitarem ao escrutínio público devido a natureza de seus cargos, parecem se colocarem acima dos demais cidadãos, blindando-os de críticas e ferindo a liberdade de expressão. Logo, observa-se a incoerência de se manter em vigência tais dispositivos, haja vista também que, caso de fato se configure a existência de difamação e 183


calúnia contra as autoridades que o artigo

plausibilidade de que tal diploma jurídico

26 da Lei 7.170/83 protege, podem ser

seja aproveitado para fins arbitrários e

utilizados os dispositivos do Código Penal

seletivos, impõe-se a necessidade de que

para proteção delas.

seu texto seja atualizado, a fim de condizer com a nova realidade democrática que foi instaurada desde 1988 pela promulgação

6. CONCLUSÃO Ainda

que

os

acontecimentos

envolvendo o deputado federal Daniel Silveira e o youtuber Felipe Neto possam merecer discussão jurídica na seara penal, seu julgamento tendo como base a Lei de Segurança Nacional abre margem para a aplicação autoritária e arbitrária de alguns de seus dispositivos.

da atual Carta Magna que vigora no país, ou mesmo revogado, tendo em vista que, como demonstrado ao longo do presente artigo, o ordenamento jurídico nacional detém de suficiente legislação para abarcar casos que se insiram no âmbito de eventual transposição do direito constitucional à liberdade de expressão.

Tendo sido elaborado com base na DSN (Doutrina de Segurança Nacional), a Lei 7.170/1983 envolve axiomaticamente a ideologia de perseguição ao inimigo que vigorava entre os idealizadores do regime ditatorial militar que vigorou no país de 1964 a 1985, sendo, portanto, sintomático que a utilização de tal diploma legislativo volte a ser realizada em meio a um período no qual as principais instituições da democracia brasileira encontram-se fragilizadas e sob constante ataque do governo vigente e de seus apoiadores. A baixa densidade normativa que muitos de seus dispositivos manifestam possibilita que sejam feitas interpretações que se chocam com os princípios, direitos e liberdades previstos pela Constituição Federal. Em decorrência da extrema 184

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Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

187


11

A (IN) APLICABILIDADE DOS DANOS PUNITIVOS NO BRASIL

Rodrigo da Silveira Barcellos140 Calil Pellaes Mekanna141 Yasmin Fauze Mahmoud142

RESUMO Com o passar dos tempos a responsabilidade civil deixou de ter um papel acessório do direito contratual, tendo composição própria, estudos, doutrinadores, teses, cadeira própria nas faculdades de Direito, e, por conseguinte, uma gama de novidades e controvérsias. Essa polêmica muitas vezes decorre de uma visão dogmática do assunto, na medida em que os operadores do direito aplicam os mesmos conceitos das épocas remotas, ou partem para outros princípios para justificar velhas condutas. E o ponto escolhido para ser o foco do presente artigo é o instituto dos danos punitivos, com base nos direitos da personalidade, que em decorrência da influência do sistema da common law foi “importado” para ordenamentos jurídicos diferentes, como é o caso do Brasil. Desde já, cumpre deixar estabelecido que, dada a complexidade do assunto e as divergências existentes, buscaremos apenas iluminar alguns pontos, sem qualquer pretensão de esgotar o tema. PALAVRAS-CHAVE Danos punitivos, Lógica Americana, Lógica Econômica, Evolução, Direitos da Personalidade. 140  Doutorando em Direito Civil pela Universidade de Coimbra – Portugal. Mestre em Direito da Sociedade da Informação no Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas; Especialista em Direito Civil pela Universidade de Coimbra. Professor Universitário. Assessor Jurídico do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 141  Discente do curso de Direito da Universidade de São Paulo. Estagiário do Gabinete do Des. José Luiz Gavião de Almeida. 142  188

Discente do curso de Direito da Universidade de São Paulo. Estagiária do escritório de advocacia Machado Meyer. 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


1. INTRODUÇÃO No Brasil, embora não encontre previsão legal, a teoria dos punitive damages tem sido defendida como resultado da interpretação extensiva dos danos extrapatrimoniais, como concretização da suposta faceta punitiva destes danos. Transferindo o centro da discussão da conduta do ofensor e o grau de sua culpa para a existência e extensão dos danos injustamente sofridos, como consequência, o objetivo maior não é apontar o culpado pelo fato, mas sim garantir que a vítima seja devidamente indenizada. Isso porque o dano gerado pelo ato ilícito rompe o equilíbrio jurídicoeconômico anteriormente existente entre o agente e a vítima, revelando uma necessidade fundamental de se restabelecer esse equilíbrio, o que somente é alcançado recolocando o prejudicado no “status quo ante”143, princípio anunciado por PEREIRA COELHO ainda em 1951: “função da responsabilidade civil, com efeito, não é punir factos ilícitos; tão-pouco preveni-los; é só para reparar os danos que ela serve”144. Ainda sobre o dever de reparação, derivada da ideia de compensar o desequilíbrio causado pelo ato ilícito, vemos na lição de DÍEZ-PICAZO que: “a 143  CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 13. 144  COELHO, F. Pereira, Culpa do lesante e extensão da reparação, Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano VI, 1950-1951.p.68. Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

vida jurídica é uma luta constante em que enfrentam os direitos e interesses. Cometer uma falta delitual é ferir um direito sem poder justificar-se em um direito superior ou pelo menos equivalente. Este ato ilícito e compromete a responsabilidade do seu autor, porque envolve uma ruptura do equilíbrio jurídico que somente a condenação a uma compensação pode restabelecer145.” O objetivo desse artigo, pois, não é hastear a bandeira dos punitive damages na responsabilidade civil brasileira, ou mesmo somar o esforço catártico de punição que a sociedade vem demonstrando nesses últimos tempos, mas, ao contrário, ressaltar quais problemas o instituto enfrenta hoje nos ordenamentos que, inclusive, foram seu berço. Inicialmente, será analisado o histórico e a evolução da responsabilização civil, passando pelo nascimento dos punitive damages como categoria individualizada na Inglaterra do século XX, atentando-se para suas condições, elementos e principais críticas. O cotejo dos Estados Unidos da América, em seguida, fornecerá um respaldo econômico — até econométrico — dos danos punitivos, diante de um sistema cujas indenizações cinematográficas já não representam uma realidade tão cotidiana. 145  Do original: “La vida jurídica és una lucha constante em la cual derechos e intereses se enfrentam. Cometer uma falta relictual’es lesionar un derecho sin poder justificarse en un derecho superior o por ló menos equivalente. Esse acto deviene ilícito y compromete la responsabilidade de su autor, porque supone uma ruptura del equilíbrio jurídico que solo la condena a la indemnización puede restabelecer.” DÍEZ—PICAZO, Luis. Derecho de danos. Madrid: Civitas, 1999. p. 293. Tradução livre. 189


Esse estudo permitirá traçar as linhas mestras da cultura dos países do common law e contrapô-las à realidade brasileira, antes de encerrar o artigo demonstrando como esse descompasso cria uma enorme “colcha de retalhos” no direito pátrio, ao se preferir impor na realidade deste país, categorias estrangeiras a usar as próprias.

(necessária para reafirmação da própria comunidade que aquele contraria), era concretizada pela simples exposição do autor à represália (rectius, à vindicta) do ofendido ou da sua família. A principal manifestação

positiva

da

vingança

encontra-se na famosa lei de Talião147, também dita pena de Talião148, que se descobre em textos tão arcaicos como

2. A EVOLUÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL: PASSADO, DA PROGRESSIVA

reino da Babilônia, ou no direito hebraico

“(DES)PENALIZAÇÃO” ATÉ O CÓDIGO CIVIL ATUAL

constituído na Bíblia149.

A existência comunitária do indivíduo, enquanto ser (necessariamente) social, “só pode existir bem, isto é realizarse, quando harmoniza interioridade e vida social, bem próprio e bem comum, personalidade e comunidade”146. Porém, sendo certo que mesmo nas comunidades primitivas se divisavam normas reguladoras da convivência (e, assim, direito), não é menos certo que tal convivência nunca se fez sem confronto ou conflito entre os seus elementos. Neste particular, desde os primeiros tempos, no seio das comunidades humanas, existiu a noção ou ideia de delito, enquanto mal ilegitimamente causado por um elemento da comunidade a outro, no quadro e em resultado das relações de convivência (então, de conflito) entre os diversos membros.

retaliação)

Originalmente, a reação ao delito 146  CRUZ, Sebastião, Direito Romano (Ius Romanum), Volume 1 – Introdução. Fontes, Gráfica Coimbra, Coimbra, 1984.p.9. 190

o Código de Hamurabi de 1730 a.C., no

Em último termo, a reação (reactius, apenas

demarcava

pela

exigência de uma rigorosa reciprocidade ou correspondência entre o crime e a pena, refletida na asserção “olho por olho, dente por dente”150. A reação ao ilícito era, então, coisa privada, da iniciativa do ofendido 147“Talião, isto é, o direito pelo qual alguém sofre o mesmo mal que fez”, do latim lex talionis: lex: lei e talis: tal, parelha. 148  Definição de MELO FREIRE (em Instituições de Direito Criminal Português, Boletim do Ministério da Justiça, n. 155, 1966, tradução de Miguel PINTO MENESES), que, reportando-se ao talião plasmado em vários livros das Ordenações Filipinas (liv. 3, tit. 60, parágrafo 5, e liv. 5, tit. 85, entre outros), afirma que essa pena “não significa que se possa retribuir com um mesmo gênero, por exemplo, infligir um ferimento natural igual, e, se for tomado à letra, não pode realmente ter lugar em todos os delitos, quais os morais, mas tão somente que deve haver verdadeira medida e estimação do delito, e a justa reparação do dano”. 149  O direito à vingança é permitido e, de certo modo, imposto pela Bíblia, no Velho Testamento, nomeadamente no Livro do Êxodo, cap. 21, versículos, 22-25. 150  “A lei do talião (...) representa já um progresso perante a ilimitação da vingança primitiva” ARANGIORUIZ apud ANTÔNIO LA TORRE, Genesi e Metamorfosi della Responsabilitá Civile, in Revista do Direito da Integração e Unificação na América Latina, ano 1999, n.8.p.62. 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


ou dos seus familiares151, muito distante

extracontratual, ficaria famoso como a

de qualquer tipo de controle comunitário

Lex Aquilia de damno, e o lançamento

que não fosse o da fixação de um limite de

de um dos elementos fundamentais do

reciprocidade para a retaliação152.

ilícito civil, que até os dias atuais figura na

A Lei das XII Tábuas foi o primórdio da intervenção do Estado e os primeiros passos na direção da separação entre o ilícito de caráter civil e a infração de índole penal, efetivamente já no período da República153, que se caracterizava de um lado, por uma “notável extensão da

base do sistema de responsabilidade civil extracontratual, o damnum iniuria datum: damnum vislumbrava-se, no seu desvalor econômico, e portanto, “como diminuição do patrimônio consequente do fato lesivo que é datum, ou seja, produzido ao terceiro”155.

repressão pública, à qual são atraídos

A evolução da responsabilidade civil

muitos atos lesivos contra o interesse geral

ainda percorre caminho das reformas de

que antes não eram considerados como

Augusto, durante o Principado156, sendo

merecedores de sanção, e, de outro, pela

introduzida, na sistematização, pelos

forte tendência a submeter ao controle

juristas romanos, enquanto fato criador

estadual o arcaico regime da vingança

de

privada”154.

devida pelo dano, “como se se tratasse

O modelo aquiliano foi um dos passos

mais

decisivos

na

evolução

anunciada no plebiscito do século III a.C. , que, no domínio da responsabilidade 151  “Enquanto a vingança privada (...), que transforma a vítima ou seus parentes em ministros da expiação, foi o primeiro dominante na legislação, a distinção entre responsabilidade civil e a criminal não podia surgir”- conforme MANUEL DIAS DA SILVA, Estudo sobre a responsabilidade civil conexa com a criminal, Primeira parte, Imprensa da Universidade de Coimbra, 1886.p.2. 152  Num ulterior desenvolvimento, a vingança seria percebida como poder do lesado enquanto representante da coletividade – neste sentido ANTÔNIO LA TORRE, op. e loc. Cit. [nota 11]. 153  De 510 a.C. a 27 a.C. – Até à queda no império romano do Ocidente, Roma passou pelas seguintes formas de governo: monarquia (753 a.C. a 510 a.C.); república (510 a.C. a 27 a.C.); principado (27 a.C. a fins do século III – 284); dominado (284 a 476). 154  Cf. BERNARDO SANTALUCIA, Derecho Penal Romano, Editorial Centro de Estúdios Ramon Areces, S.A., 1990, Madrid, p.55. Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

obrigações,

a

responsabilização

de um contrato no qual o devedor há de satisfazer algo ao credor”157, surgindo, assim, a obligatio ex delicto, impedindo “o passo direto entre o direito do culpado ao seu resgate e o direito de crédito da vítima à obtenção de uma reparação pecuniária”158. Após o fim do Principado, o Império 155  ARANGIO-RUIZ apud ANTÔNIO LA TORRE, Genesi e Metamorfosi della Responsabilitá Civile, in Revista do Direito da Integração e Unificação na América Latina, ano 1999, n.8.p.76. 156  Vide nota 13. 157  Cf. Victor Manuel AMAYA GARCIA, Coautoria y Complicidad: Estudo histórico y Jurisprudencial, Editora Dykinson, 1993.p.09. 158  Cf. JUAN MANUEL BLANCH NOUGUES, Observationes Acerca de La <Poena Privada>, Revista de La Faculdad de Derecho, Universidad Complutense, Curso 19881989.p.143. 191


Romano, com a chegada de Justiniano ao poder, o qual “manifestou imediatamente a sua grande aspiração de restaurar, através das armas da política e da legislação, a unidade do Império, dando à nova Roma a glória da antiga, e, quanto possível, com todo o saber clássico”159, assim agarra à tradição. O receio de infrações fez com que se introduzisse, nesta época, a ação de dano depurada de quase todas as originais conotações penais, que se quedava evidenciada na sua função de ressarcimento, e portanto uma despenalização havia neste momento surgido,

culminando

numa

do Code Civil Francês ao estabelecer que: “Qualquer ação humana que cause a outrem prejuízo, obriga a reparação deste por parte daquele cuja culpa tal ação aconteceu”161). Ainda levando a ideia de que para qualquer dano que fosse perpetrado culposamente deveria haver o ressarcimento, como base, estariam as características que empiricamente se reconheciam como sendo a matriz do ser humano – a conservação da espécie, o instinto de preservação, uma maneira de controlar o egoísmo, e a afirmação do princípio do neminem laedere162.

figura

autônoma de ilícito civil. Com o advento do jusracionalismo “O direito natural racionalista teve uma

3. A RESPONSABILIDADE CIVIL NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

larga influência direta sobre a ciência jurídica positiva. Deve-se salientar-se que se

organizaram

minuciosas

exposições

sistemáticas do direito natural, conseguidas por

dedução

exaustiva

de

axiomas

básicos”160. Em consequência, surgiram as primeiras codificações civilistas no final do século XVIII, como o Código Prussiano de 1794, Código Francês de 1804 e o Código Austríaco de 1811, e foi mantida, nestes códigos, a ideia do núcleo fundamental do damnum iniuria datum, do modelo aquiliano (neste âmbito o artigo 1382º 159  CRUZ, Sebastião, Direito Romano (Ius Romanum), Volume 1 – Introdução. Fontes, Gráfica Coimbra, Coimbra, 1984.p.51. 160  Cf. ALMEIDA E COSTA, Mário Júlio, História do Direito Português, 3ª.Edição, Almedina, Coimbra, 1996.p.353 e ss. 192

3.1. RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA E OBJETIVA No Brasil, o instituto da responsabilidade civil perpassa vários estágios de desenvolvimento. Fernando Penafiel exemplifica que, antes do Código Civil de 1916, quando as relações privadas ainda eram reguladas pelas Ordenações Portuguesas, o próprio Código Criminal de 1830 já previa uma indenização ao ofendido.163 Com o tempo, a 161  Do original: <Tout fait quelconque de l ‘homme, qui cause à autrui um dommage, oblige cleui par la faute duque lis est arrivé, à le réparer> (Tradução Livre) 162  BARBOSA, Ana Mafalda Castanheira Neves de Miranda. Lições de Responsabilidade Civil. 1ª ed. Cascais: Princípia.2017.p.51. 163

PENAFIEL,

Fernando.

Evolução

histórica

e

36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


responsabilidade civil vai se diferenciando

não fosse exigida.165

da criminal, o que se consolida com o

Penafiel, citando Fernando Noronha (2007, p. 537-538), explica que essa tendência reflete uma preocupação maior pela reparação dos danos, que vem se afirmando desde a Revolução Industrial.166 O direito está, portanto, caminhando no sentido de proteger cada vez mais o prejudicado. A exigência de culpabilidade em todos os casos já não é compatível com a necessidade social de salvaguarda constante dos interesses do prejudicado e de reparação dos danos numa grande variedade de ocasiões.

surgimento do primeiro Código Civil. O Código de 1916 fez surgir uma figura mais clara e precisa de responsabilidade civil. Ainda com Penafiel, o Código elaborado por Clóvis Beviláqua alinhouse à teoria subjetiva da responsabilidade civil, “exigindo prova robusta da culpa do agente causador do dano, e, em determinados casos, presumindo-a”.164 Assim, preceituava o diploma civil de 1916 que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano. A verificação da culpa e a avaliação da responsabilidade regulam-se pelo disposto neste Código, arts. 1.518 a 1.532 e 1.537 a 1.553”. Essencialmente, o dispositivo celebra o damnum iniuria datum, colocando, de um lado, o dano, e de outro, a conduta lesiva. Quem sofre o dano tem direito ao ressarcimento, a quem é imputada a conduta lesiva tem o dever de reparação. No entanto, conforme salienta Venosa, muito embora o Código Beviláqua tenha consagrado a responsabilidade civil subjetiva, houve tendência da legislação civil e da jurisprudência em reconhecer cada vez mais hipóteses em que a culpa pressupostos da responsabilidade civil. Âmbito Jurídico, 2013. Disponíel em: <https://ambitojuridico.com.br/ cadernos/direito-civil/evolucao-historica-e-pressupostosda-responsabilidade-civil/>. Acesso em: 11 de maio de 2021. 164  Ibidem. Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

É assim que ganha força a teoria da responsabilidade objetiva, que independe de culpa. O Código Civil atual a prevê, no parágrafo único do art. 927. Não obstante, vale lembrar a lição de Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, sendo este também o posicionamento da maioria da doutrina, que no ordenamento jurídico brasileiro a responsabilidade subjetiva é o sistema geral, enquanto que a objetiva é o sistema subsidiário.167 De

qualquer

forma,

o

direito

165 VENOSA, Sílvio de Salvo. A responsabilidade objetiva no novo Código Civil. Migalhas, 2003. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/amp/depeso/916/aresponsabilidade-objetiva-no-novo-codigo-civil>. Acesso em: 10 de maio de 2021. 166  NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. Vol. I. p. 537/538. Apud PENAFIEL, Fernando. Evolução histórica e pressupostos da responsabilidade civil. Âmbito Jurídico, 2013. Disponíel em: <https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-civil/ evolucao-historica-e-pressupostos-da-responsabilidadecivil/>. Acesso em: 11 de maio de 2021. 167  NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 13. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 1282. 193


procura a reparação do prejuízo causado por ato ilícito (art. 186 do CC/2002). Haverá responsabilidade civil, independentemente de fato culposo do agente, se a sua conduta se enquadrar nos casos previstos em lei.

a outrem, comete ato ilícito (art. 186). No

Cuidou o Código de 2002, ainda, de estender as possibilidades da aplicação da responsabilidade objetiva. De acordo com o parágrafo único do art. 927, não haverá a exigência de culpa nos casos especificados em lei, ou quando a atividade habitual do agente implicar risco aos direitos de outrem. Trata-se da chamada teoria do risco, que vem refletir anseios e atender ao desejo por uma maior abrangência da responsabilidade objetiva, não mais circunscrita aos casos expressamente previstos em lei. Assim, Álvaro Villaça Azevedo fala em duas espécies de responsabilidade civil objetiva: “a responsabilidade objetiva pura, conforme o que estiver especificado em lei, e a responsabilidade objetiva pura em razão do risco criado pela atividade do agente”.168

ou os limites da boa-fé e bons costumes.

art. 187, porém, o Código inova, ao firmar a teoria do abuso de direito, que também enseja

responsabilidade

civil.

Ocorre

quando o titular de um direito viola o fim econômico ou social a que este se destina,

3.3. EXTENSÃO DO DANO Um último aspecto a ser ressaltado no tratamento da responsabilidade civil pelo Código Civil diz respeito à extensão do dano, logo de vital importância para o presente trabalho. Encontra-se no art. 944 do CC/2002 a concisa, clara e precisa redação: “A indenização mede-se pela extensão do dano”. Assim, não restam dúvidas de que o Código Civil não admite o instituto dos danos punitivos, por vedar indenização que ultrapasse a medida do dano sofrido pela vítima. Aparentemente, o presente trabalho, que procura arguir pela inaplicabilidade dos punitive damages no Brasil, poderia ser

3.2. CARACTERIZAÇÃO DO ATO ILÍCITO Na caracterização do ato ilícito, o Código de 2002 pouco difere do diploma anterior. Assim, todo aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou

do dispositivo legal citado. A questão, porém, é mais complexa, haja vista que doutrina e jurisprudência, ao depararemse com o instituto, não se prendem à

imprudência, violar direito e causar dano

interpretação

168  AZEVEDO, Álvaro Villaça. Curso de direito

dos punitive damages, como se verá.

civil: teoria geral das obrigações e responsabilidade civil. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 241.

194

aqui concluído, pela simples subsunção

puramente

normativa,

adotando diversas formas de tratamento

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3.4. A DOUTRINA NACIONAL NO TRATAMENTO DOS PUNITIVE DAMAGES A doutrina brasileira sobre responsabilidade civil é diversa. Alguns doutrinadores clássicos defendem a ideia de que os danos punitivos são integrantes dos danos morais, como é o caso de Caio Mário: Em termos assim genéricos, o conceito não assume nenhum compromisso com as duas correntes que disputam as preferências: a teoria subjetiva da culpa e a teoria objetiva da responsabilidade sem culpa. Uma noção abrangente não deve permanecer limitada. No desenvolvimento da matéria atinente à responsabilidade civil, não há motivo para que um conceito exclua qualquer delas. A rigor elas se completam e terão (ao menos durante algum tempo) de conviver uma ao lado da outra, visando ao mesmo objetivo que é a reparação do dano. De quantos tentam conceituar a responsabilidade civil, emerge a ideia dualista de um sentimento social e humano, a sujeitar o causador de um mal a reparar a lesão. A variedade de conceitos revela a insatisfação do jurista em plantar-se nos termos de uma definição formal. Como sentimento social, a ordem jurídica não se compadece com o fato de que uma pessoa possa

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causar mal a outra pessoa. Vendo no agente um fator de desequilíbrio, estende uma rede de punições com que procura atender às exigências do ordenamento jurídico. Esta satisfação social gera a responsabilidade criminal. Como sentimento humano, além de social, a mesma ordem jurídica repugna que o agente reste incólume em face do prejuízo individual. O lesado não se contenta com a punição social do ofensor. Nasce daí a ideia de reparação, como estrutura de princípios de favorecimento à vítima e de instrumentos montados para ressarcir o mal sofrido. Na responsabilidade civil estará presente uma finalidade punitiva ao infrator aliada a uma necessidade que eu designo como pedagógica, a que não é estranha a ideia de garantia para a vítima, e de solidariedade que a sociedade humana lhe deve prestar. Tendo em vista a reparação, a responsabilidade civil oferece um plus adicionado à reparação. Esta pressupõe a existência de um dano. Mas o dano permanece no plano abstrato se o direito positivo não identificar o sujeito a quem é atribuível. O sociólogo pode contentar-se com a configuração filosófica da responsabilidade. O jurista tem o dever de ir mais longe. Sente a necessidade de identificar o autor do dano, e oferecer ao ofendido

195


a satisfação que, além de afirmar a existência da lesão, impõe sanções ao causador dela. E concretiza essas sanções. A responsabilidade civil consiste na

efetivação

da

reparabilidade

abstrata do dano em relação a um sujeito passivo da relação jurídica que se forma. Reparação e sujeito passivo compõem o binômio da responsabilidade civil, que então se enuncia como o princípio que subordina a reparação à sua incidência na pessoa do causador do dano. Não importa se o fundamento é a culpa, ou se é independente desta. Em qualquer circunstância, onde houver a subordinação de um sujeito passivo à determinação de um dever de ressarcimento, aí estará a responsabilidade civil.169 Outros doutrinadores já defendem a responsabilidade civil com uma visão mais indenizatória, de defesa de direitos, sem um viés punitivo:

196

vítima de acidente de trânsito, de erro médico, de crimes etc.); quando objetiva, decorre de fato jurídico (fornecer bens ao mercado gera responsabilidade pelos acidentes de consumo, p. ex.).170 A responsabilidade civil decorre de uma conduta voluntária violadora de um dever jurídico, isto é, da prática de um ato jurídico, que pode ser lícito ou ilícito. Ato jurídico é espécie de fato jurídico. Fato jurídico, em sentido amplo, é todo acontecimento da vida que o ordenamento jurídico considera relevante no campo do direito. Os que não têm repercussão no mundo jurídico são apenas “fatos”, dos quais não se ocupa o direito, por não serem “fatos jurídicos”.171 A reparação deve ser completa, abrangendo todas as consequências do dano. Por outras palavras, a indenização há de ser total. Mas não pode ir além dos prejuízos efetivamente

sofridos

em

consequência do fato danoso. Exige-

A responsabilidade civil é, em suma, obrigação não negocial, mesmo que entre credor e devedor da indenização haja negócio jurídico. Ela pode ser subjetiva ou objetiva. Quando subjetiva, a responsabilidade civil tem por origem ato ilícito culposo ou doloso (obrigação de indenizar

170  COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil. 8. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. Vol. II. p. 125-135.

169  PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 13/14

171  GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Responsabilidade Civil. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. Vol. IV. p. 33.

se a adequação expressa dos efeitos à causa, delimitando-se, assim, a extensão do ressarcimento. (...) Não se admite, demais disso, que este consiga situação mais favorável do

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que teria se o acontecimento danoso não houvesse ocorrido.172 Indenizar significa tornar indene, isto é, reparar prejuízo porventura sofrido. De modo que, em regra, não deve o prejudicado experimentar lucro na indenização. Com o corolário dessa afirmação surge uma outra: é irrelevante a questão da existência de dolo, ou do grau da culpa (...), a indenização será sempre a mesma, pois trata-se de compor prejuízo, isto é, tornar indene o prejudicado.173 Nota-se, portanto, que a doutrina brasileira,

majoritariamente,

entende

a responsabilidade civil por um viés indenizatório e proporcional ao dano causado e, portanto, sem teor punitivo. Porém, é interessante destacar que existe uma corrente, mesmo que menos aceita, de doutrinadores como por exemplo Caio Mário, que defendem a teoria dos danos punitivos. 4. O EXPERIMENTO DOS PUNITIVES DAMAGES Embora as indenizações com caráter punitivo já tivessem se manifestado desde o século XIII na Inglaterra, para o que interessa a este estudo vale notar que até meados do século XIX “as funções 172  GOMES, Orlando. Obrigações. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 50. 173  RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil: Parte Geral das Obrigações. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 1984. Vol. II. p. 313. Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

compensatória e punitiva foram confundidas pelas Cortes inglesa e norte-americanas”174. Foi somente no decorrer do século XIX que os danos extrapatrimoniais foram progressivamente reconhecidos como indenização compensatória, e não punitiva. Os exemplary damages eram recorrentemente incluídos na categoria de compensatory damages, pela simples recusa de se atribuir um caráter compensatório às indenizações do dano extrapatrimonial. Dessa forma, os danos materiais decorrentes diretamente do ilícito, actual damages, passam a incluir também os danos extrapatrimoniais, denominados aggravated damages, isolando-se os danos punitivos, ou exemplares, em uma categoria autônoma de punitive ou exemplary damages. Assim, para todos os efeitos, o direito inglês consagrou as categorias de aggravated, exemplary e restitutionary damages, tanto que os diversos relatórios da Comissão de Direito da Inglaterra e de Wales destinados a tentar uniformizar a matéria foram assim denominados175. Em que pese a jurisprudência inglesa já ter consagrado os punitive damages como tradição histórica, a sua imputação ficou vaporosa e sem critérios delineados 174  MARTINS-COSTA, Judith; PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva. Revista da Ajuris. n. 100. ano XXXII. São Paulo: Ajuris, dez. 2005.p.240. 175  Law Commission for England and Wales Consultation Paper on Aggravated, Exemplary and Restitutionary Damages, relatório que foi publicado em 1993 e 1997. O relatório tinha objetivo de assentar as diversas categorias de dano com base na jurisprudência do país até então (disponível em: [www.lawcom.gov.uk/docs/lc247.pdf]. Acesso em 26/03/21. 197


de forma definitiva até 1964, quando o caso Rookes vs. Barnard traçou as balizas de aplicação do instituto. Aqui, a House of Lords, além de estremar os danos punitivos dos danos morais, determinou as três categorias nas quais seria possível aplicar os punitive damages: (a) atos opressivos, arbitrário ou inconstitucionais oriundos de servidores do governo; (b) condutas que, embora lesivas, sejam economicamente vantajosas para o réu de um ponto de vista econômico, considerando eventual indenização a ser paga em termos puramente compensatórios; e (c) nos casos expressos em lei176. Portanto, ao contrário do que um sistema de common law pudesse apresentar a primeira vista, vê-se que as hipóteses de indenização com caráter punitivo são bem delineadas naquele direito, criando-se o categories test, onde se impõe examinar em cada caso concreto se está presente uma das três condições permissivas de aplicação dos danos punitivos. A experiência europeia continental foi acompanhada, noutra latitude, pelo desenvolvimento de um modelo de responsabilidade civil de evolução em sentido diferente ao inicialmente apresentado. No universo anglo-saxônico,

no domínio do Tort Law, floriu a indenização punitiva, cujo montante se não queda no valor dos danos, ultrapassando-o com vista a alcançar outros objetivos que não apenas o de colocar o lesado na situação em que ele se encontraria, se não tivesse produzido o fato causador do dano. Posteriormente, já na década de 70, na Inglaterra, houve a inovação para a aplicação de danos punitivos para a tutela de direitos da personalidade. O caso ficou conhecido como Cassel & Co. vs. Broome, versando sobre a publicação de um livro onde se descrevia um desastre de um navio com destino à Rússia, atribuindo implicitamente a responsabilidade do mesmo a um antigo comandante da Marinha (mesmo após o comandante ter alertado o autor e a editora que esta referida descrição ofendia seu nome). Reconduzindo o caso vertente ao segundo tipo de situações aplicadas no caso Rookes vs. Barbard, o tribunal determinou a aplicação de punitive damages, considerando que a editora havia publicado o livro intencionalmente, visando alcançar lucros e sem consideração aos direitos do lesado177. O antigo comandante da Marinha recebeu 25.000 libras, a título de danos punitivos. Os punitive damages chegaram aos

176  Tradução livre. No original, o acórdão da House of Lords, ao descrever os requisitos que haviam sido afirmados pela Court of Appeal, assim se pronuncia: “(...) exemplar damages could be awarded in cases (i) of oppresive, arbitrary or unconstitutional acts by government servants; (ii) where the defendant’s conduct had been calculated by him to make a profit for himself which might well exceed the compensation payable to the plaintiff; (iii) where expressly authorised by statute (post, p.1226, 1227)”([1964] A.C. 1129, p.1131). 198

Estados Unidos no século XVIII, sendo que o primeiro caso registrado ocorreu no ano de 1784 - o caso Genay v. Norris -, no qual um 177  LOURENÇO, Paula Meira, Os danos punitivos. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vol. XLIII – n.2. Coimbra Editora. 2002,p.1033. 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


médico havia colocado, por gracejo, uma inofensiva droga no copo do seu doente, o que lhe ocasionou terríveis dores. Em outro famoso caso, Coryell vs. Colbaugh (1791), o noivo engravidou a noiva e quebrou a promessa de casamento, o que foi considerado uma ofensa e um insulto grave à honra tanto da vítima quanto do nascituro, estigmatizando-os, do ponto de vista social, irremediavelmente. Os tribunais americanos, a partir de meados do século XIX, passaram expressamente a enunciar que os punitive damages eram atribuídos para sancionar o lesante e prevenir idênticas condutas, pelo ofensor e pelos demais membros da sociedade. É interessante notar que, desde 1935, os punitive damages são perfilhados em todos os EUA, com exceção dos estados de Lousiana, Massachusetts, Nebraska e Washington, sendo fixados em casos de negligência grosseira (gross negligence), responsabilidade civil do produtor (products strict liability), responsabilidade objetiva do comitente (vicarious liability), curta duração do contrato (contractual bypass) e incumprimento contratual (breach of contract). Nas lições de Paolo Cendon e L. Gaudino, os danos punitivos corresponderiam a “soma que a mais e o respeito independente do dano econômico causado e realmente postar a medição, que tem precisamente a função da sanção

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mais grave no comportamento daqueles que causou ferimentos e assim tenha um propósito”. 178 Vale dizer, há situações prejudiciais que são tão intoleráveis que exigem do sistema jurídico uma atenção especial no sentido de se punir com maior gravidade econômica o agente lesante, excedendo a própria reparação do dano causado. Assim, se verifica a partir do momento em que são produzidos graves prejuízos, com sério menosprezo aos interesses fundamentais, máxime quando estamos diante de lesões cometidas à integridade física e espiritual das pessoas.179 Os exemplos clássicos em que se deve incidir a indenização punitiva representam situações em que o resultado do prejuízo perpetrado na esfera de direitos alheia é vantajoso ao sujeito lesivo, porquanto o seu lucro, com o dano causado, é maior que uma possível indenização que lhe seja imposta à vítima. 178  Aduzem Paolo Cendon e L. Gaudino que: “(...) una somma cioè ulteriore e indipendente rispetto alla misura del danno economico effetivamente arrecato, e che ha proprio la funzione di sanzionare in forma più severa il comportamento di chi abbia arrecato la lesione di proposito (...) E si sa poi come il rilievo per la dolosità della condotta non manchi di esercitare un’influenza dicisiva anche ai fini dell’ammontare del risarcimento, in particolare per quanto concerne la possibilita di unna condanna dell’agente alla corresponsione dei c.d. punitive o exemplary damages” (...).CENDON, Paolo e GAUDINO, L. Gli Illeciti di Dolo. In: In: La Responsabilità Civile. Saggi Critici e Rassegne di Giurisprudenza a cura di Paolo Cendon. Millano – Dott. A. Giuffrè Editore, 1988, p. 402. 179  GONZÁLEZ, Matilde Zavala e ZAVALA, Rodolfo Martín González. Indemnización Punitiva. In: Responsabilidad por Daños en el Tercer Milenio. Homenaje al Profesor Doctor Atilio Aníbal Alterini. Directores Alberto Jesús Bueres, Aída Kemelmajer de Carlucci. Abeledo – Perrot: Buenos Aires, 1997, p. 188. 199


Outro exemplo clássico de hipótese em que os punitive damages teriam uma eficácia maior dentro do sistema é o caso dos danos perpetrados por intermédio dos meios de comunicação em massa: o ressarcimento por difamação de uma pessoa famosa geralmente será inferior aos lucros obtidos com a atitude reprovável daquele que se insurge contra direitos da personalidade da pessoa.180 Nesse diapasão, a indenização punitiva satisfaz uma tríplice função: sancionar o autor do ato lesivo, porquanto determinadas condutas praticadas com total desprezo aos interesses mais relevantes da vida social devem ser punidas de maneira mais rigorosa pelo direito. O ressarcimento, em tese, restitui a vítima à situação ex ante, porém, se o causador do prejuízo obtém vantagens, as consequências prejudiciais para o corpo social advindas com a prática do ato ilícito não terão sido totalmente eliminadas.181 Outra função, justificadora da aplicação dos punitive damages, é a de evitar atos lesivos similares, uma vez que ao se punir com maior rigor as condutas consideradas mais perigosas para a sociedade, o sistema estará se valendo de um aspecto pedagógico eficaz no combate à disseminação de condutas 180  LOURENÇO, Paula Meira. A indemnização punitiva e os critérios para a sua determinação. In: http:// www.stj.pt/ficheiros/coloquios/responsabilidadecivil_ paulameiralourenco.pdf. Acesso em 13/03/2017, p. 8. 181  GONZÁLEZ, Matilde Zavala e ZAVALA, Rodolfo Martín González. Indemnización Punitiva. In: Responsabilidad por Daños en el Tercer Milenio. Homenaje al Profesor Doctor Atilio Aníbal Alterini. Directores Alberto Jesús Bueres, Aída Kemelmajer de Carlucci. Abeledo – Perrot: Buenos Aires, 1997, p. 189. 200

lesivas análogas. “No sistema preventivo é eficaz, se a pessoa pode segurar benefício que exceda o peso de compensação”.182 Assim, os punitive damages no tort law também podem resultar em um valor mais elevado a título de indenização a ser paga pelo autor do injusto, contudo, observando-se requisitos diferentes, como aquele representado pela hipótese do lucro obtido com a prática do ato ilícito, em que haveria uma elevação no valor a ser fixado a título de indenização, pela intensidade do elemento subjetivo que dirige a atuação do agente lesivo, na hipótese em que este visa obter uma vantagem com a eventual desgraça alheia, caso pratique lesão aos direitos da personalidade. Diante do exposto, pode-se chegar à ilação, em vista da necessidade de se implementar a função punitiva, que o sistema labora com a possibilidade de se impor um ressarcimento diferenciado a depender, outrossim, do elemento subjetivo. De um lado, o pagamento em pecúnia proporcionaria à vítima uma satisfação, um sentimento de compensação capaz de amenizar o sofrimento experimentado. Em contrapartida, a indenização terá o condão de servir como punição ao lesante, causador do prejuízo, incutindolhe um impacto tal que seja suficiente para dissuadi-lo de cometer novos atentados à esfera jurídica alheia, principalmente em sede de dano extrapatrimonial, no 182

Idem. p. 189. 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


sentido de que a reparação pecuniária não somente tem cunho de reparar o prejuízo, mas tem também caráter sancionatório ou punitivo, pedagógico, repressor e preventivo, com o escopo de evitar outros danos futuros.183 Explicita ainda, o Professor da Universidade de Siena, que do ponto de vista da análise econômica do direito, a finalidade preventiva do instituto foi positivamente apreciada, contudo, foi ainda colocado em evidência que os punitive damages, na medida em que ocasionem a obrigatoriedade de o agente lesivo pagar uma soma maior em dinheiro que o dano correspondente à sua conduta, causam enriquecimento sem causa.184 A Suprema Corte americana adotou o entendimento de que a condenação ao pagamento dos danos punitivos, se manifestamente excessivos (grossly excessive), e contraria a cláusula do devido processo (due process) estabelecida na XIV Emenda. Em particular, a Suprema Corte federal decidiu expressamente que os danos punitivos não podem ser empregados para sancionar a periculosidade ou a indesejabilidade dos comportamentos geralmente praticados 183  VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Responsabilidade Civil. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 27. Nesse sentido, também assinala Fernando Noronha em artigo escrito na RT. NORONHA, Fernando. Desenvolvimento contemporâneo da responsabilidade civil. Revista dos Tribunais, São Paulo: RT, ano 88, v. 761, p. 31-44, mar. 1999. 184  SIRENA, Pietro. Il Risarcimento dei C.D. Danni Punitivi e la Restituizione dell’Arrichimento Senza Causa. In: Rivista di Diritto Civile. Ano LII, N. 6, Novembre-Dicembre. Cedam – Casa Editrice Dott. Antonio Milani. Padova, 2006, p. 531/532. Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

pelo agente lesivo, bem como não podem estender-se ao potencial prejuízo ocasionado aos terceiros. Nesse sentido, os danos punitivos devem ser fixados levando-se em consideração três fatores: 1-) o grau de culpa ou de antijuridicidade do comportamento efetivado contra a vítima; 2-) o montante do dano ocasionado na vítima; 3-) a extensão de outras sanções civis cominadas por comportamentos semelhantes.185 Entretanto nos Estados Unidos os danos punitivos têm uma lógica econômica, funcionando como uma sanção para evitar novas lides sobre o mesmo assunto nas cortes americanas e procurando que o prejuízo causado com uma condenação, além do fator educativo, acarrete um valor punitivo ao lesante. 5. A EXPERIÊNCIA AMERICANA E A LÓGICA ECONÔMICA A expansão dos punitive damages, nos Estados Unidos, está diretamente ligada à expansão do consumo: é na responsabilidade decorrente do produto — product liability — que se desenvolverá a terceira geração do tort law americano. Até 1960, todavia, a dispensa da prova da negligência para a responsabilização do fornecedor pelo fato do produto parecia incompatível com a doutrina dos punitive damages, que sempre tiveram na análise da culpa do ofensor seu principal e mais 185  Idem, p. 533. 201


importante fator186. Nada obstante, a percepção progressiva da insuficiência das disciplinas sancionatórias no âmbito do campo específico da responsabilidade pelo fato do produto, bem como a noção cada vez mais comum de prevenção e precaução, acabaram por ampliar a interpretação da jurisprudência, possibilitando a condenação em punitive damages quando a conduta do réu fosse intencional ou irresponsável – no original, willful or reckless187. Aqui, é o interesse da sociedade que prima sobre o interesse individual, e é no intuito de defender a primeira contra atitudes faltosas que o Estado impõe os punitive damages, em uma visão estritamente socializante do dano e da indenização. 186  Nesse sentido, decisão no caso Roginsky vs. RichardsonMend, Inc. Corte dos Estados Unidos of Appeals Second Circuit. n. 266, Docket 30629. Argued _]an. 4, 1967. Decided April 4, 1967, Rehearing Denied May 8, 1967. West Law 378 E2d 832, especialmente: “Although multiple punitive awards running into the hundreds may not add up to a denial of due process, nevertheless if we were sitting as the highest court of New York we would wish to consider very seriously whether awarding punitive damages with respect to the negligent— even highly negligent— manufacture and sale of a drug govemed by, federal food and drug requirements, especially in the light of the strengthening of these by the 1962 amendments,,76 Stat. 780 (1962), and the present vigorous atitude toward enforcement, would not,-do more harm than good. A manufacturer distributing a drug to manythousands of users under government regulation scarcely requires this additional measure for manifesn’ng social disapproval and assuring deterrence. Criminal penalties and heavy compensatory damages, recoverable under some circumstances even without proof of negligence, shhould sufficiently meet these objectives”. 187  Suprema Corte de Minnesota. Lee Ann Gryc, by her mother and natural guardian Jacquelyn Gryc, Apellant n. 49334, 49525. May 23, 1980. Rehearing Denied July 10, 1980. Certiori Denied Oct. 20, 1980. Especialmente: “In this case, the state punitive damages remedy concerns the vital state interest of protecting persons agaisnt personal injury. It seeks to protect state citizens from the willful, wanton, and reckless manufacture of a dangerously flammable bacric for use in childre’s sleepwear. The 1953 Flammable Fabrics Act did not seek to protect persons from this particular risk. As stated earlier, the purpose underlyng the original Act was primarily to prohibit the sale of highly flammable synthect materials, not all unreasonably dangerous fabrics”. 202

Um clássico exemplo ocorreu com Stella Liebeck, de Albuquerque, no Novo México, a qual estava no banco do passageiro do carro de seu neto quando foi gravemente queimada pelo café do McDonalds, em fevereiro de 1992. A Sra. Liebeck, de 79 anos de idade na época, pediu café que era servido em um copo de isopor na janela do drivethrough de uma lanchonete local. A Sra. Liebeck colocou o copo entre os joelhos e tentou remover a tampa de plástico do copo. Ao retirar a tampa, todo o conteúdo do copo se derramou sobre seu colo. As calças de moletom que a Sra. Liebeck usava absorveram o café e o seguravam ao lado de sua pele. Um cirurgião vascular avaliou que a Sra. Liebeck sofreu queimaduras de espessura total (ou queimaduras de terceiro grau) em mais de 6% de seu corpo. A Sra. Liebeck procurou um acordo com a loja e sua reivindicação era de US$ 20.000, mas o McDonalds recusou. Durante o processo, o réu recebeu documentos que mostram mais de 700 reclamações por pessoas queimadas por seu café entre 1982 e 1992. A lanchonete também disse durante a descoberta que, com base em um conselho de consultores, manteve o seu café entre 180 e 190 graus Fahrenheit para preservar o melhor sabor. Ela admitiu que não tinha avaliado as ramificações de segurança a essa temperatura. Outros estabelecimentos vendem café a temperaturas substancialmente mais baixas, e o café servido em casa é geralmente de 135 a 140 graus.

36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


A empresa admitiu que seus clientes não sabiam que podiam sofrer queimaduras de terceiro grau do café e que uma declaração no lado do copo não era um “aviso”, mas um “lembrete”, uma vez que a localização da escrita não avisaria os clientes sobre o perigo. O júri atribuiu à autora US$ 200.000 em indenização compensatória. Este montante foi reduzido para US$ 160.000 porque o júri encontrou 20% de líquido ainda no copo dela. O júri também adjudicou à autora US$ 2,7 milhões em danos punitivos, o que equivale a cerca de dois dias de vendas de café do McDonalds. O tribunal reduziu o prêmio punitivo para US$ 480.000 - ou três vezes compensatórios - mesmo que o juiz chamasse a conduta do réu imprudente, insensível e intencional. As partes finalmente entraram em um acordo que nunca foi divulgado, apesar de ser um caso público, litigado em público e sujeito a extensa reportagem da mídia. Este caso e outros estão no museu The American Museum of Tort Law188 criado em Winsted, Connecticut. Há ainda outras exposições como o estrelado por Erin Brockovich189, Ford Pinto190 e Big Tobacco191:

188  https://www.tortmuseum.org/ 189  No filme, “Erin Brockovich”, o personagem principal, Erin Brockovich, Ajudou mais de 600 pessoas a apresentar um processo civil contra uma empresa. O filme é baseado Em uma história real e foi lançado em 2000. Julia Roberts desempenhou o papel de Erin Brockovich. Erin Brockovich era mãe solteira de três filhos. Ela morava em uma pequena cidade no deserto no sul da Califórnia. Com o tempo, Brockovich descobriu que a Pacific Gas and Electric (PG & E) estava despejando produtos químicos venenosos na cidade. Os produtos químicos entraram no abastecimento de água da cidade e deixaram centenas de pessoas doentes. Brockovich recolheu mais de 600 pessoas para entrar com a ação contra a empresa PG&E. No caso de “Erin Brockovich”, realmente chamado de Anderson vs. Pacific Gas & Electric, um júri decidiu que a PG&E deve pagar US$ 333 milhões em indenizações compensatórias e punitivas para as pessoas que foram feridas. PG&E também teve que limpar todo o veneno e parar de usar o este veneno. Fonte: http://www.justiceteaching.org/resource_material/ESE%20damageswksht%20(2).pdf. Acessado em 24/03/2021. 190  Famoso julgado retratado pela jurisprudência americana é o “Pinto Case”, em que a empresa Ford colocou em circulação um automóvel com um design diferente, mas com um vício de fabricação que causou uma explosão matando e ferindo pessoas. Verificouse que era do conhecimento da pessoa coletiva o vício do produto causador da explosão. Não obstante, ela preferiu inserir o carro no mercado de consumo a perder todo investimento feito na elaboração do veículo, porquanto seria mais barato pagar eventuais indenizações. Em vista disso o Tribunal da Califórnia condenou a Ford a “pagar aos lesados 4.5 milhões de dólares, a título de indenização compensatória (compensatory damages) e 125 milhões de dólares a título de indenização sancionatória ou punitiva (punitive damages).” LOURENÇO, Paula Meira. “A indemnização punitiva e os critérios para a sua determinação”. In: http://www.stj.pt/ficheiros/coloquios/ responsabilidadecivil_paulameiralourenco.pdf. Acesso em 24/03/2021 p. 5. 191  Fonte: http://www.treehugger.com/corporate-responsibility/truth-behind-mcdonalds-hot-coffee-lawsuit.html. Acessado em 24/03/2021. Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

203


É contra uma lógica econômica que

EUA têm apontado que os “montantes

se insurge o sistema de punitive damages,

indenizatórios estão fora de controle”,194

ao impor indenizações que refletem não

e que as elevadas penas poderiam ser

apenas uma punição ou uma prevenção,

repassadas para os consumidores: “(...)

mas, sobretudo, que impeçam o ofensor

se não houver extremalidades a serem

de prevê-las, logo, de incorporá-las em

internalizadas pelas penas extras, a sanção

seus custos fixos, a fim de considerá-las

também aumentará os custos, onerando os

na consecução do ilícito e mesmo repassar

consumidores e diminuindo sua capacidade

tal custo para seus consumidores. Não por

econômica?”.195 Ora, é justamente ao

outra razão, bem pontuou Maria Celina

manter os danos punitivos como uma

Bodin de Moraes ao apontar a insuficiência

externalidade que o sistema impede a

do

imprevisibilidade:

internalização desse “custo” na cadeia

“Normalmente, porém, argumentos dessa

produtiva, com a impossibilidade de

natureza são neutralizados pela alegação, em

perpetrar o ilícito, ou proclamar uma

sentido contrário, de que a previsibilidade das

finalidade retributiva, alicerçada a da

indenizações fixadas por júri popular acabaria

figura dos danos punitivos196.

argumento

da

por prejudicar o efeito desestimulador dos punitive damages, desnaturando-os em sua principal função social”.

192

Anderson

Schreiber sugere que surjam mecanismos sancionatórios

administrativos

para

solução parcial do problema e não através de uma responsabilização civil punitiva.

193

A imprevisibilidade das indenizações e a eventual insegurança jurídica que isso pode gerar para as empresas têm sido apontadas como as grandes vilãs da responsabilidade civil norte-americana.

204

Aliás, em interessante estudo sobre os

efeitos

econômicos

dos

punitive

damages, chegou-se à conclusão de que o impacto das indenizações não é tão significativo em seus montantes, mas “em sua enorme variação e completa relatividade com o dano efetivamente sofrido”.197 Outro dado curioso coletado a partir do estudo estatístico de mais de mil casos 194  ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Indenização punitiva. Revista da Emerj 9-36/ 136, 2006.p. 140.

Os críticos dos punitive damages nos

195  KARPOFF, Jonathan M.; Lott Jr.; John R. On the determinants and importance of punitive damage awards. The journal of Law and Economics XLII (l)/533 (trad. livre).p.528

192  MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de janeiro: Renovar, 2003.p. 252.

196  BARBOSA, Ana Mafalda Castanheira Neves de Miranda. Lições de Responsabilidade Civil. 1ª ed. Cascais: Princípia.2017.p.82.

193  SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. São Paulo: Atlas, 2007. p. 202.

197  KARPOFF, Jonathan M.; Lott Jr.; John R. On the determinants and importance of punitive damage awards. The journal of Law and Economics XLII (l)/533 (trad. livre).p.528 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


nos EUA é o de que, para as grandes empresas, notícias sobre a situação lesiva, acordos desfavoráveis à imagem da empresa, decisões negativas de júri, são todos elementos que têm um impacto financeiro sobre o valor da companhia bem maior do que o valor nominal da sentença, já incluídos os danos punitivos

. Aqui,

198

portanto, aparece um fator bastante interessante, qual seja a repercussão que o sistema de punitive damages tem como meio de comunicação de condutas ilícitas. Para o Brasil, importa perceber a

5- A JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA NO TRATAMENTO DOS PUNITIVE DAMAGES Se,

na

realidade

brasileira,

os

punitive damages não foram acatados pela legislação, e tampouco comportam aceitação pacífica na doutrina, é no âmbito jurisprudencial que este instituto vem sendo acolhido. Trata-se de uma tendência de certos julgados, a contrario sensu do que defende este artigo, de se aplicar uma função punitiva ao mecanismo da responsabilidade civil.

dificuldade com que a jurisprudência

Assim já procedeu o Excelso Pretório,

americana se depara diante da falta de

em agravo de instrumento que atacava a

critérios, ainda quando esses estejam

procedência de uma ação de indenização

vagamente delineados, sendo necessário

por danos morais:

impor balizas bem mais nítidas. O pensamento do Law and Economics serve, talvez contra seu próprio objetivo, para perceber o quanto é importante que uma companhia não internalize os custos decorrentes da responsabilidade civil,

Responsabilidade civil objetiva do poder público. Elementos estruturais. Pressupostos

legitimadores

da

incidência do art. 37, § 6º, da Constituição da República. Teoria do risco administrativo. Fato danoso para

e que continue a perceber nos danos

o ofendido, resultante de atuação

punitivos verdadeira externalidade. Assim,

de servidor público no desempenho

não se buscam tanto as indenizações

de atividade médica. Procedimento

estratosféricas que fazem o folclore

executado

jurídico, mas a imprevisibilidade dessas compensações, sempre respeitando um mínimo de segurança jurídica.

em

hospital

público.

Dano moral. Ressarcibilidade. Dupla função da indenização civil por dano moral (reparação-sanção): (a) caráter punitivo ou inibitório (“exemplary or punitive damages”) e (b) natureza compensatória

198

Idem.p.564

Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

Doutrina.

ou

reparatória.

Jurisprudência.

Agravo 205


improvido.

(STF,

Agravo

de

por essa Corte Superior na fixação

Instrumento 455846 RJ, Rel. Min.

do valor da indenização por danos

Celso de Mello, j. 11/10/2004, DJ.

morais,

21/10/2004).

pessoais e econômicas das partes,

E, nesse mesmo sentido, também já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça: É certo que o magistrado, seguindo os critérios da razoabilidade e da proporcionalidade, deve, na fixação do valor da reparação do dano moral, levar em consideração o bem jurídico lesado e as condições econômicofinanceiras do ofensor e do ofendido, mas não pode perder de vista o grau de reprovabilidade da conduta do causador do dano no meio social e a gravidade do ato ilícito. Há casos em que a conduta do agente é dirigida ao fim ilícito de causar dano à vítima, atuando com dolo, o que torna seu comportamento particularmente reprovável. Nessa perspectiva, o arbitramento do dano moral deve alicerçar-se também no caráter punitivo e pedagógico da compensação. (STJ, 4ª T, REsp 839.923/MG, Rel. Min. Raul Araújo, j. 15/05/2012, DJ. 21/05/2012). Há,

como

bastante

sabido,

as

condições

devendo o arbitramento operarse com moderação e razoabilidade, atento à realidade da vida e às peculiaridades de cada caso, de forma a não haver o enriquecimento indevido do ofendido, bem como que sirva para desestimular o ofensor a repetir o ato ilícito. (STJ, 4ª T, REsp 210.101/PR, Rel. Min. Carlos Fernando Mathias, j. 20/11/2008, DJ. 09/12/2008). A

indenização

morais a

possui

por

danos

tríplice

função,

compensatória,

para

mitigar

os danos sofridos pela vítima; a punitiva, para condenar o autor da prática do ato ilícito lesivo, e a preventiva, para dissuadir o cometimento de novos atos ilícitos. Ainda, o valor da indenização deverá ser fixado de forma compatível com a gravidade e a lesividade do ato ilícito e as circunstâncias pessoais dos envolvidos. Indenização no valor de R$ 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil reais), a cargo

na

ressarcibilidade do dano moral, de um lado, uma expiação do culpado e, de outro, uma satisfação à vítima. O critério que vem sendo utilizado 206

considera

de cada recorrido, que, no caso, mostra-se adequada para mitigar os danos morais sofridos, cumprindo também com a função punitiva e a preventiva, sem ensejar a 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


configuração de enriquecimento ilícito. (STJ, 4ª T, REsp 1440721/ GO, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. 11/10/2016, DJ. 11/11/2016). O Tribunal Regional do Trabalho da 11ª Região também já reconheceu a existência do instituto dos punitive damages, porém negou sua aplicação ao caso concreto, por não haver ocorrido um “dano grave” (sem, entretanto, apresentar qualquer critério para classificá-lo como tal): Indenização

por

Inaplicabilidade danos de

punitivos

dano

da

dano

moral.

teoria por

extremamente

dos

ausência grave.

Pela extensão do dano, arbitro-o em R$ 2.000,00 (dois mil reais) razoável para compensar o dano. Adicional de insalubridade. Não havia risco biológico no exercício das funções de auxiliar de portaria e almoxarifado quer pela ausência de contato direto com o paciente quer pela falta de acesso às áreas de UTI, centro cirúrgico, apartamentos e enfermarias. (TRT - 11, 1ª T, RO

00012458820145110013,

Rel. Valdenyra Farias Thome, j. 11/04/2017, DJ. 18/04/2017). Por fim, nos tribunais estaduais, encontram-se alguns julgados seguindo essa tendência de se aplicar o escopo punitivo à responsabilidade civil: Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

Quanto ao valor arbitrado, tenho que merece guarida a irresignação do autor, uma vez que o valor de R$ 3000,00 é de fato baixo diante do poderio econômico do banco, instituição financeira de grande porte. A majoração do quantum indenizatório tem em mira o caráter punitivo e pedagógico da indenização, como forma de compelir o banco a ter mais atenção nas suas operações, evitando que incidentes dessa natureza voltem a se repetir. (TJRS, Apelação Cível 70031473531, 5ª Câmara Cível, Rel. Luiz Felipe Brasil Santos, j. 14/04/2010, DJ. 23/04/2010). Tendo em vista a necessidade de se compensar o sofrimento experimentado pela autora, bem como inibir a prática reiterada de ilícitos como o presente, o quantum pleiteado na petição inicial, de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), se apresenta adequado. (TJSP, Apelação Cível 0040552- 97.2012.8.26.0224, 10ª Câmara de Direito Privado, Rel. Elcio Trujillo, j. 27/01/2015, DJ. 02/02/2015). Deste modo, o repúdio à discriminação racial deve se refletir, também, na quantificação das indenizações em ações de ressarcimento por danos morais, desestimulando a prática perniciosa. (...) Posto isso, de se reformar a r. sentença para elevar a tal importância

207


o valor da indenização, com correção monetária a partir deste julgamento (Súmula 362 do STJ) e juros de mora a contar do evento danoso (art. 398 do Código Civil). (TJSP, Apelação Cível 0004276-32.2012.8.26.0268, 10ª Câmara de Direito Privado, Rel. Cesar Ciampolini, j. 11/08/2015, DJ. 05/11/2015). Assim, mesmo em se fazendo aplicar a doutrina dos Punitive Damages, é necessário se observem o Postulado da Razoabilidade e o Princípio da Proporcionalidade, que condicionam a quantificação a uma regra áurea, a impor o arbitramento em patamar que não gere enriquecimento sem causa (produto da desproporcionalidade entre os fatos e o quantitativo), para nenhuma das partes. A doutrina em foco estabelece que a reparação decorrente do dano moral deve alcançar duas finalidades: uma, de compensar a ofensa causada à vítima; outra, de punir o autor do ilícito civil, exprobando a reiteração de condutas lesivas e, ainda, pedagogicamente, servindo de exemplo à sociedade, a fim operar dissuasão geral. Assim, por meio de um acréscimo econômico no valor da reparação da compensação do dano moral, busca-se, além de, sempre aproximadamente, compensar o sofrimento, punir o ofensor, dando à reparação a mencionada natureza pedagógica e punitiva. Tudo isso sopesado,

208

insta majorar a compensação a ser paga (...) para R$ 100.000,00 (cem mil reais), cada. (TJRJ, Apelação Cível 0073799-69.2003.8.19.0001, 14ª Câmara Cível, Rel. Gilberto Campista Guarino, j. 11/03/2020, DJ. 12/03/2020). Cabem certas considerações a respeito dos julgados supramencionados. O que se pode antecipar é que a maneira como têm sido aplicados os punitive damages no Brasil: 1) não observa os requisitos de aplicação em seus países de origem, gerando insegurança e discricionariedade; 2) tenta transportar para a realidade nacional uma categoria que, como se verá, não é admitida pelo nosso ordenamento jurídico. 1) De início, é notável, pela análise dos julgados trazidos, bem como de outros que seguem a mesma tendência, que os danos punitivos, no Brasil, estão enquadrados dentro da ideia de danos morais. As decisões que reconhecem os punitive damages os compreendem de forma a elevar a indenização por danos morais. Nunca os dissociam dos danos morais, como se fossem algo inerente à indenização moral, o que difere do tratamento que recebem nos Estados Unidos, onde são tidos como um instituto autônomo, que pode vir a amplificar tanto a indenização por danos morais como aquela por danos materiais. Como se não bastasse prender os danos punitivos à indenização por danos morais,

36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


a jurisprudência nacional não cuida de fazer uma distinção entre qual seria o montante de indenização compensatória, e qual seria o montante de indenização punitiva. Como se nota dos julgados, as decisões se limitam a aumentar o quantum indenizatório, sem especificarem até que ponto vai a compensação, e a partir de qual ponto seria o excesso, destinado à punição. Essa situação, que novamente diverge da forma de aplicação dos punitive damages em seus países de origem, acaba por gerar insegurança e abrir as portas à discricionariedade. Ora, se não se sabe qual é o montante compensatório e o montante punitivo, não há como impor limites a cada um deles, porque não é dito quanto valem individualmente. Não há como o réu contestar o valor dado a cada um deles, apenas o montante final. Também não há como saber como o juiz se guiou para chegar a cada um dos montantes, visto que a sentença final só revela o valor somado. Não há como as partes saberem qual foi o valor atribuído ao dano moral sofrido, que se busca compensar, e qual o peso da punição que o juiz pretende aplicar, o que acaba por tornar ambos os escopos, compensatório e punitivo, um tanto quanto ineficazes, já que não se sabe qual é a sua dimensão, o seu vigor. Por fim, também não há como uma decisão futura, que pretenda aplicar a indenização punitiva a uma situação diferente, em que o dano moral sofrido pela vítima for diverso, se basear no quantum estabelecido na decisão anterior, posto que não se sabe o valor que foi Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

atribuído aos punitive damages. Tudo isso fomenta um cenário de insegurança jurídica e econômica, especialmente quando se considera que, no Brasil, não há qualquer parâmetro claro e obrigatório para a medição dos danos punitivos, divergindo mais uma vez do que ocorre nos Estados Unidos.199 2) A tendência evidenciada pelos julgados supracitados, de se transportar o instituto dos punitive damages para o Brasil, é, ainda, discreta, seja pela quantidade de decisões nesse sentido, seja pelo valor das indenizações atribuídas, no geral muito inferiores se comparadas à realidade estadunidense. Porém, desde já, suscita-se a discussão acerca da existência ou não, no contexto nacional, de um escopo punitivo e preventivo na lógica da indenização, compreendido ou pelo menos não defeso pelo ordenamento. Vale indagar, aqui, qual é a validade que se deva atribuir a essas decisões judiciais, ou mesmo se podem ser consideradas verdadeiramente jurídicas. Isto porque, conquanto se admita a jurisprudência como fonte do direito,200 199  Nos EUA, como já mencionado, há, ainda que um tanto quanto vagos, pelo menos três fatores para a fixação dos punitive damages: 1-) o grau de culpa ou de antijuridicidade do comportamento efetivado contra a vítima; 2-) o montante do dano ocasionado na vítima; 3-) a extensão de outras sanções civis cominadas por comportamentos semelhantes. 200  Reale já concluía: “Se uma regra é, no fundo, a sua interpretação, isto é, aquilo que se diz ser o seu significado, não há como negar à Jurisprudência a categoria de fonte do Direito, visto como ao juiz é dado armar de obrigatoriedade aquilo que declara ser de direito no caso concreto”. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1981. p. 169.

209


bem se sabe que, em nosso sistema

julgados mencionados, que estabelecem

romano-germânico, a lei é a fonte principal.

uma indenização acima do necessário à

Assim, a jurisprudência pode estender

compensação do dano, pode-se dizer que

suas interpretações da lei até o limite em

esse excesso tem uma causa, a punição do

que contrarie o próprio texto legal (contra

culpado. Ocorre que não se trata de causa

legem), e, a partir daí, não encontra mais

justa, legítima, fundada na lei, porque

abrigo no ordenamento jurídico.

a punição não é motivo lícito na esfera

E, deveras, os julgados supracitados colidem expressamente com a lei, razão pela qual não há que se lhes conferir juridicidade,

tampouco

considerá-los

como uma válida porta de entrada para o instituto dos punitive damages no Brasil, como se passa a explicar. Como já se observou, o Código Civil é claro ao delimitar a indenização à reparação do dano causado, pela literalidade do art. 944, caput.201 Fica aí circunscrita a responsabilidade civil ao escopo compensatório. E, se não bastasse, o Código proíbe a indenização que ultrapasse o valor do dano causado, pela vedação ao enriquecimento sem causa, expressa no art. 884, caput.202 Esclarece Orlando Gomes que “há enriquecimento ilícito quando alguém, a expensas de outrem, obtém vantagem patrimonial sem causa, isto é, sem que tal vantagem se funde em dispositivo de lei ou em negócio jurídico anterior”.203 Diante dos 201  Código Civil, art. 944, caput: “A indenização mede-se pela extensão do dano”. 202  Código Civil, art. 884, caput: “Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários”.

civil. O direito penal é encarregado da punição, enquanto à órbita civil compete a reparação. Não está compreendido, na legislação civil, o escopo punitivo diante de um ato ilícito e, por isso, o excesso de indenização, que se funda nesse propósito, não pode prevalecer, tratando-se de claro enriquecimento sem causa. Assim, por mais que os julgados que aplicam os danos punitivos no Brasil expressem sua preocupação em evitar o enriquecimento sem causa, fixando uma indenização que não ultrapasse os “limites da razoabilidade”, não há como escapar de que qualquer valor que ultrapasse a compensação do dano sofrido, já incorre em enriquecimento sem causa legítima, e por isso, enriquecimento ilícito. Daí, se evidencia, portanto, a incompatibilidade dos julgados citados, e por extensão, do próprio instituto dos danos punitivos, com o ordenamento jurídico nacional. Finaliza-se com Anderson Schreiber, que, a respeito dessa tendência de certos julgados brasileiros em aplicar o instituto dos punitive damages, sintetiza tudo que foi exposto, nas seguintes palavras: Forense, 2016. p. 258.

203  GOMES, Orlando. Obrigações. 18. ed. Rio de Janeiro: 210

36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


A orientação jurisprudencial, a rigor,

diante de inexistência de previsão legal.

contraria expressamente o Código Civil de 2002, que, em seu art. 944, declara: ‘a indenização mede-se pela extensão do dano’. Pior: ao combinar critérios

punitivos

e

critérios

compensatórios, chegando-se a um resultado único, a prática brasileira distancia-se

do

modelo

norte-

americano, que distingue claramente compensatory damages e punitive damages. Com isso, cria-se, no Brasil, uma espécie bizarra de indenização, em que ao responsável não é dado conhecer em que medida está sendo apenado, e em que medida está simplesmente compensando o dano, atenuando, exatamente, o efeito dissuasivo que consiste na principal vantagem do instituto.204

A aplicação dos danos punitivos destinada a reparo de bens e serviços incidiria em um maior valor agregado ao produto, uma vez que esta indenização, quando fixada, seria dissolvida entre os custos do produto, aumentando seu valor de venda, prejudicando o consumidor, ao invés de melhorar a qualidade da mercadoria. No

tocante

aos

direitos

da

personalidade, existe uma codificação robusta e uma tutela geral da pessoa humana,

que

dispensa

os

danos

autônomos. O direito deve ser uma ferramenta aplicada de modo seguro, mas também simples, aumentar e nomear todo tipo de dano causaria a discricionariedade e taxatividade da sua aplicação, e os direitos da personalidade, como tutela geral de proteção, não estão sujeitos, a

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS (PROVISÓRIO) O emprego dos danos punitivos como faceta dos danos morais decorre, em primeiro lugar, da ausência de conceituação do que seriam, efetivamente, danos morais, tendo como consequência permitir ao juiz ajustar e reajustar as soluções conforme entenda necessário, oportuno ou conveniente, inclusive de

priori, de uma cartilha de aplicação. Sem de

mencionar

contornos

necessidade

que

decorre

própria

desta

a

falta

de

uma

matéria,

pois a responsabilidade civil avança conforme progride a civilização, havendo necessidade de constante adaptação deste instituto às novas necessidades sociais. Bem por isso as leis sobre esta matéria devem ter caráter genérico.

forma distorcida do ordenamento legal,

Contudo, não obstante o caráter

204  SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 205.

genérico das normas atinentes ao assunto, o ordenamento jurídico brasileiro não está preparado para a inclusão da

Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

211


indenização punitiva como resultado de

de atentar não para microssistemas

um transplante legal que não observou os

isolados, mas para dar ao diálogo

requisitos para sua aplicação no seu país

das fontes maior importância, com a

de origem, nem tampouco, os contornos

superação das ilhas do direito. A partir

da

desta ideia, o Brasil não deve fazer uma

responsabilidade

civil

das

terras

mera transposição de culturas jurídicas,

tupiniquins. Tratando-se de uma pena, como expressamente reconhecida por vasta doutrina que acolhe sua aplicação, é necessária a existência de uma norma que lhe fundamente, por ser exigência de

pois não acolhidas pelo ordenamento normativo brasileiro, evitando conviver com a insegurança jurídica gerada pela dificuldade de implementação de uma punição não prevista.

um dos princípios fundantes do Estado Democrático de Direito, o princípio da legalidade. Não apenas não há norma fundamentando essa punição, como o Código Civil, muito pelo contrário, veda a sua aplicação, ao dispor que a indenização se medirá pela extensão do dano. Igualmente, permitir o pagamento de

danos

punitivos

é

chancelar

o

enriquecimento ilícito da vítima, visto que sua situação final não será igual a que ficaria se o dano não tivesse sido observado, além de tutelar que o sofrimento se transmude em excelente fonte de captação de ganho patrimonial, de outro modo pode-se possivelmente prever a fixação de uma indenização àqueles que receberam valores a custa de direitos alheios, pela mesma justificativa do enriquecimento sem causa, como visto nos exemplos de direito da personalidade. Por fim, percebe-se a importância

212

36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


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215


12

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA DURANTE A PANDEMIA: A FRAGILIDADE DA REDE DE ACOLHIMENTO NO ESTADO DE SÃO PAULO Jessica de Jesus Mota205 Luiza Santos Rodrigues206 Raissa Rayanne Gentil Medeiros207

216

205

Mestranda no Programa de Pós-graduação em Direito UFRGS, bolsista CAPES.

206

Advogada criminalista, bacharela em Direito pela UFPEL.

207

Mestranda no Programa de Pós-graduação em Direito UFRGS, bolsista CAPES. 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


RESUMO Diante da crise sanitária global e com o aumento de situações de violência doméstica nesse período, essa investigação tem como objetivo geral verificar de que maneira a pandemia, ocasionada pelo Novo Coronavírus, evidencia as fragilidades na rede acolhimento do estado de São Paulo. Para tanto, num primeiro momento, abordou-se sobre a inserção da perspectiva de gênero no Sistema de Justiça Criminal, demonstrando as contribuições do feminismo jurídico e da vitimologia na criação da Lei Maria da Penha. Posteriormente, desenvolvem-se os estudos sobre os dados referentes a violência doméstica no estado de São Paulo em tempos de pandemia. Foram analisados os dados da Secretaria de Segurança Pública e, subsidiariamente, a Nota Técnica elaborada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ambos nos períodos de março a abril de 2019 e de 2020. Percebeu-se que as mulheres vítimas de violência não estão chegando ao Estado. Ademais, a falta de dados sobre questões de raça e classe corroboram para o entendimento de que precariedade na utilização de uma abordagem interseccional é limitadora para o efetivo acolhimento dessas mulheres. Assim, deve-se ir além da perspectiva de gênero abordada pela Lei Maria da Penha, considerando as categorias sociais mencionadas. Por fim, atenta-se que, embora a pandemia tenha contribuído para tal cenário, ela apenas evidenciou fragilidades já pré-existentes. PALAVRAS-CHAVE Violência Doméstica; Lei Maria da Penha; Feminismo Jurídico; Rede de Acolhimento; Interseccionalidade.

1 INTRODUÇÃO A dramática situação da crise sanitária global, em razão do alto nível de contaminação do Novo Coronavírus, somou-se a outra pandemia que, há muito tempo se encontra presente em nossa sociedade, a violência doméstica. Com a imperativa do isolamento social e o consequente Decreto nº 64.881/2020 do estado de São Paulo, viu-se o aumento Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

de casos de feminicídio, bem como movimentações sociais pressionando os entes públicos a pensarem alternativas para atender e acolher as mulheres em situação de violência doméstica. A Lei Maria da Penha, que completou 14 anos em agosto, é resultado das lutas dos movimentos sociais feministas, vez que, em seu processo de criação, contou com a participação direta de ONGs 217


feministas, subsidiadas e amparadas pela efervescência dos estudos do feminismo jurídico, bem como os estudos vitimológicos que dispararam na época no Brasil. Embora a pauta da violência de gênero e a formas que o gênero perpassa o Sistema de Justiça Criminal tenha sido contemplada no referido diploma legal, deve-se atentar a uma necessária abordagem interseccional, a fim de compreender quem são aquelas mais vulneráveis e atingidas pela “pandemia da violência doméstica” e pensar em políticas de acolhimento efetivas nesse sentido. Isso posto, esta investigação propõe-se levantar a discussão sobre as fragilidades da rede de acolhimento a mulheres vítimas de violência doméstica em tempos de pandemia no estado de São Paulo. Para tanto, por meio da técnica de revisão bibliográfica, visa-se responder o seguinte questionamento: De que maneira a pandemia ocasionada pelo Novo Coronavírus evidencia as fragilidades da rede de acolhimento de mulheres vítimas de violência doméstica no Estado de São Paulo? A partir do método de abordagem indutivo, apresentado por Ventura (2002) como “processo mental pelo qual, partindo de dados particulares, inferese uma verdade geral ou universal, não contida nas partes examinadas”, buscarse-á responder ao questionamento central desta pesquisa. Para tanto, a partir dos dados analisados, se procurará expor quais são as fragilidades da rede

218

de acolhimento às mulheres em situação de violência doméstica. Oportunamente, explicamos aqui o conceito de rede de acolhimento. Dividida em quatro setores principais (saúde, justiça, segurança pública e assistência social), a rede de acolhimento está restrita aos serviços de assistência e atendimento que, de forma articulada, procuram prevenir e reprimir a violência doméstica (BRASIL, 2011). Os órgãos governamentais que compõem a rede variam de acordo com a estrutura de cada município. Para elaboração da pesquisa, em um primeiro momento, é desenvolvida uma análise da inserção da perspectiva de gênero no Sistema de Justiça Criminal, demonstrando as contribuições do feminismo jurídico e da vitimologia na criação da Lei Maria da Penha. Posteriormente, desenvolve-se os estudos sobre os dados referentes a violência doméstica no estado de São Paulo em tempos de pandemia, com a utilização de uma abordagem interseccional para além da perspectiva de gênero na análise da rede de acolhimento. Analisa-se, aqui, os dados da Secretaria de Segurança Pública e, subsidiariamente, a Nota Técnica elaborada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ambos nos períodos de março a abril de 2019 e de 2020. Para que assim se compreendam, em sua totalidade, as imbricações da pandemia na violência doméstica, em especial em sua rede acolhimento, a fim de evidenciar possíveis fragilidades.

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2. A PERSPECTIVA DE GÊNERO NO DIREITO: CONTRIBUIÇÕES DO FEMINISMO JURÍDICO E DA VITIMOLOGIA NA CRIAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA Com a imperativa do isolamento social, devido à pandemia ocasionada pelo novo Coronavírus, muito se tem falado sobre o aumento da violência doméstica e familiar nesse período. Assim, a Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) foi colocada em pauta nos noticiários; ademais, os movimentos de proteção às mulheres têm se manifestado sobre alternativas para garantir a aplicação de tal diploma legal. Contudo, não se pode compreender a conjuntura atual, sem aprofundar-se em como a perspectiva de gênero perpassa o Sistema de Justiça Criminal, bem como analisar e reconhecer os atores presentes no processo criação da lei em estudo. Indo além, busca-se nesta seção a percepção das contribuições do feminismo jurídico e da vitimologia nesse processo . 2.1. O FEMINISMO JURÍDICO E A VITIMOLOGIA COMO PANO DE FUNDO DA CONSTRUÇÃO DA LEI 11.340/06 Inicialmente, vale ressaltar que a inserção do movimento feminista na construção das ciências como um todo tornou viável a análise e o estudo do Direito, desde a perspectiva de gênero. Nessa senda, já em seu surgimento, o

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movimento feminista foi responsável por questionar o status de neutralidade atribuído ao Direito e, consequentemente, ao Sistema de Justiça Criminal. As estudiosas do Feminismo Jurídico208 da década de 80, apesar das divergentes opiniões sobre a função e utilidade do Direito, foram pioneiras em importantes debates no mundo jurídico (SILVA, 2018). Carol Smart209, por exemplo, classifica as compreensões de cada uma das ondas do feminismo sobre o Direito de três formas; sintetizadas pela autora nas seguintes sentenças: “o Direito é sexista”; “o Direito é masculino” e “o Direito tem gênero”210 (SILVA, 2018). Catherine Mackinnon, por sua vez, é enfática sobre a falta de neutralidade do Direito que se apresenta como um conhecimento universalizante e inquestionável (MACKINNON, 1995). Além disso, a autora afirma que “A lei trata as mulheres como os homens veem 208  Segundo Salete Maria da Silva, não há uma definição precisa do que seja o feminismo jurídico, contudo existe um consenso geral sobre a materialização que se concretiza na produção teórica do ensino jurídico, da militância política e da atuação profissional no sistema de justiça que entende o feminismo jurídico como um conjunto de críticas e o teorizações que tem como ponto de partida a compreensão do caráter androcêntrico do direito (produto da sociedade patriarcal) . Algumas autoras preferem chamar de Teoria Crítica do Direito (SILVA, 2018, p. 07-08). 209  Socióloga e ativista feminista britânica, formada pela Universidade de Sheffield, que dedicou seus estudos às questões de gênero também no campo da Criminologia. 210  Cada uma dessas expressões correspondem a uma onda do feminismos, a primeira (feminismo da igualdade), segunda (que fez duras críticas ao direito como instrumento de dominação patriarcal) e terceira (entende o direito como algo que tanto constrói o gênero como é construído por ele, incluindo os diversos marcadores sociais) respectivamente. (SILVA, 2018, p. 88). 219


e tratam as mulheres”211 (MACKINNON, 1995, p. 07), isto é, a lei se apresenta de modo a atribuir a mulher seu papel social e punir condutas desviantes desse papel, de acordo com os estereótipos de gênero construídos pela sociedade patriarcal . A grosso modo, debateu-se nesse período a necessidade da centralidade de gênero na construção do conhecimento jurídico, sob o entendimento do Direito como um instrumento de opressão da mulher, evidenciado em diversos diplomas legais sexistas, bem como em decisões do sistema de justiça que reproduzem estereótipos – vez que é construído por homens e para homens (SMART, 1994).

adultério - extinto apenas em 2005 pela Lei 11.106/05, entre outros exemplos já explicitados por diversas estudiosas e teóricas nacionais. Outrossim, essas autoras brasileiras pioneiras nos estudos do feminismo sociojurídico debruçaramse sobre as análises da violência doméstica – objeto de debates que crescem exponencialmente desde a década de 70 – demonstrando os “contornos da crítica feminista brasileira às instituições jurídicas e políticas” (CAMPOS; SEVERI, 2019, p.02).

Posteriormente, é possível pensar em alguns exemplos dentro do contexto legislativo brasileiro que desvelam a misoginia enraizada na sociedade e reproduzida pelo Direito: os crimes considerados de paixão e defesa da honra, presentes no Código Penal - figura afastada apenas em 1991 pelo STF212; o crime de

jurídico no país assume a proposta de

211  Tradução nossa: “La ley ve y trata a las mujeres como los hombres ven y tratan a las mujeres”(MACKINNON, 1985, p. 07). 212  RECURSO ESPECIAL. TRIBUNAL DO JÚRI. DUPLO HOMICÍDIO PRATICADO PELO MARIDO QUE SURPREENDE SUA ESPOSA EM FLAGRANTE ADULTÉRIO. Hipótese em que não se configura legítima defesa da honra. Decisão que se anula por manifesta contrariedade à prova dos autos (art. 593, parágrafo 3., do cpp). Não há ofensa à honra do marido pelo adultério da esposa, desde que não existe essa honra conjugal. Ela e pessoal, própria de cada um dos cônjuges. O marido, que mata sua mulher para conservar um falso crédito, na verdade, age em momento de transtorno mental transitório, de acordo com a lição de himenez de asua (el criminalista, ed. Zavalia, b. Aires, 1960, t.iv, p.34), desde que não se comprove ato de deliberada vingança. O adultério não coloca o marido ofendido em estado de legítima defesa, pela sua incompatibilidade com os requisitos do art. 25, do código penal. A prova dos autos conduz a autoria e a materialidade do duplo homicídio (mulher e 220

Impulsionadas

por

mecanismos

internacionais de proteção às mulheres que surgiram nesse período, “o feminismo reforma legal em todos os campos”, concentrando suas principais críticas ao sistema penal (CAMPOS; SEVERI, 2019, p.04). Neste ínterim, os debates e estudos vitimológicos crescem no Brasil, seguindo os contornos de uma pauta feminista sobre violência de gênero e mais especificamente sobre violência contra a mulher. amante), não a pretendida legitimidade da ação delituosa do marido. A lei civil aponta os caminhos da separação e do divórcio. Nada justifica matar a mulher que, ao adulterar, não preservou a sua própria honra. Nesta fase do processo, não se há de falar em ofensa à soberania do júri, desde que os seus veredictos só se tornam invioláveis, quando não há mais possibilidade de apelação. Não e o caso dos autos, submetidos, ainda, a regra do artigo 593, parágrafo 3., do cpp. Recurso provido para cassar a decisão do júri e o acordão recorrido, para sujeitar o réu a novo julgamento. (STJ - REsp: 1517 PR 1989/0012160-0, Relator: Ministro JOSE CANDIDO DE CARVALHO FILHO, Data de Julgamento: 11/03/1991, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJ 15.04.1991 p. 4309 JTS vol. 24 p. 64 RJM vol. 114 p. 192 RSTJ vol. 20 p. 175)

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Voltando-se a análise dos estudos vitimológicos, sabe-se que surgiu no pós primeira guerra mundial, cuja a defesa das vítimas se dava de uma forma mais ampla, buscando a proteção de grupos específicos (macrovitimologia), retirando das sombras a figura da vítima. O olhar voltado ao indivíduo (microvitimologia) começou apenas na década de 70, no entanto “as vítimas mais esquecidas foram justamente as mulheres, especialmente, em relação aos maus-tratos suportados no âmbito familiar” (GONÇALVES, 2016, p. 41). Isso ocorre, pois a violência contra mulher no âmbito domiciliar tinha a característica de não ser considerada uma violência que deveria ser tutelada pelo Direito, devido a própria objetificação dos corpos femininos na sociedade patriarcal. O que contribui para a cifra oculta da violência doméstica até os dias atuais. Ademais, do ponto de vista dos processos de vitimização, a mulher vítima de agressão (vitimização primária), está sujeita também a uma vitimização secundária que é produzida pelas próprias instâncias de controle social responsáveis pela proteção dessas mulheres. Por fim, a vitimização terciária dessa mulher se dá pela ausência de políticas públicas, deixando essas mulheres totalmente desamparadas após um episódio de agressão (GONÇALVES, 2016). Inicialmente, a vitimologia, em seus estudos, classificava os tipos de vítimas. No entanto, tais classificações, como vítima em inocente, provocadora,

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colaboradora, são utilizadas “meramente pela doutrina ou por advogados de defesa que procuram na vítima uma justificativa para o consentimento dos atos bárbaros dos seus clientes” (BARROS; OLIVEIRA, 2012, p. 08). Na contemporaneidade, a preocupação centra-se em estimular a criação de programas de assistência às vítimas, garantindo sua proteção e reparando os danos causados (BARROS; OLIVEIRA, 2012). Logo, a perspectiva de gênero tem função importante dentro dos estudos vitimológicos modernos, o que corrobora para o entendimento de que há a possibilidade de uma vitimologia pautada nas questões de gênero ou quem sabe até mesmo de uma vitimologia feminista. Nessa esteira, Soraia Mendes (2017, p. 155) busca a possibilidade de “construção de um referencial epistemológico, sem abrir mão da crítica ao Direito Penal, que trabalhe os processos de criminalização e vitimização das mulheres sob a perspectiva de gênero”, visto que o poder punitivo se consolida em relação às mulheres a partir de um conjunto de sujeições tanto no campo da criminologia como da vitimologia. A partir das contribuições do feminismo sociojurídico e da vitimologia no Brasil, ambos impulsionados pelos movimentos feministas, sob uma ótica de gênero dentro do Sistema de Justiça Criminal, é que se forma o contexto jurídico e político da criação da Lei Maria da Penha.

221


2.2. A IMPORTÂNCIA DA PERSPECTIVA DE GÊNERO NO ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA Diversos mecanismos internacionais surgiram em resposta ao calor dos movimentos sociais feministas de todo mundo. Neste período, as juristas feministas brasileiras acompanharam a pauta de gênero na luta pelos direitos humanos internacionalmente reconhecidos.213 A partir desses diálogos que se fez presente os primeiros conceitos de gênero e violência de gênero empregados em dispositivos jurídicos (CAMPOS; SEVERI, 2019). Dentre esses instrumentos, cabe destacar a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher214 – aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 1979 – assinada pelo Brasil, com reservas, em 1974 215(CAMPOS; CASTILHO, p. 2018). Outro importante diploma externo surgiu no final da década de 80, em que a Comissão Interamericana de Mulheres (CIM) iniciou a redação de uma convenção dedicada à violência contra a mulher. O que resultou na Declaração sobre a Erradicação da Violência contra a Mulher (1990). Por fim, foi aprovada em 213  “As obras que exemplificam essa abordagem são: “Cladem: Mulher e Direitos Humanos na América Latina”, organizado por Silvia Pimentel (1992) e “As mulheres e os Direitos Humanos”, organizado por Leila Linhares Barsted e Jacqueline Herman (1999)”. (CAMPOS; SEVERI, p. 05). 214  Convention on the Elimination of all Forms of Discrimination against Women – CEDAW 215  O Brasil só foi retirar as reservas sobre a Convenção em 1994, pós Constituição de 1988. 222

1994 a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará (CAMPOS; CASTILHO, 2018). Dispondo que: “Artigo 1º: Para os efeitos desta Convenção deve-se entender por violência contra a mulher qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado” (CONVENÇÃO DE BELÉM DO PARÁ, p. 02). Observa-se, aqui, que a utilização dos termos violência contra mulher difere da chamada violência de gênero, ainda que se trate de uma violência baseada no gênero216. Em contrapartida, a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica (Istambul, 2011) traz a definição explícita de gênero e violência de gênero (CAMPOS; CASTILHO, 2018). Nessa perspectiva, a violência contra mulher é parte integrante da violência de gênero, sendo a última um conceito mais amplo, abrangendo vítimas mulheres, crianças e adolescentes de ambos os sexos (SAFFIOTTI, 2001). A opressão de gênero é estruturante da sociedade, bem como as opressões de raça e de classe que interagem e relacionam-se entre si de modo a naturalizar comportamentos. Ao mesmo tempo que o gênero é constitutivo 216  Importante ressaltar diferenciação entre sexo (biológico) e gênero como construção social. Foram as teóricas Kate Millet e Gail Rubin as primeiras a oferecer um conteúdo ao conceito de gênero (MENDES, 2017, p. 86). 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


das relações sociais, a violência constitui a ordem falocrática. Imbricando-se a sua formação com própria questão da violência. Assim: O gênero constitui uma verdadeira gramática sexual, normatizando condutas masculinas e femininas. Concretamente, na vida cotidiana, são os homens, nesta ordem social androcêntrica, os que fixam os limites da atuação das mulheres e determinam as regras dos jogo pela sua disputa. Até mesmo as relações mulher-mulher são normatizadas pela falocracia. E a violência faz parte integrante da normatização, pois constitui importante componente de controle social. Nestes termos a violência masculina contra a mulher inscreve-se nas vísceras da sociedade com supremacia masculina (SAFFIOTI; ALMEIDA, 1995, P. 30). Intra e extramuros o debate de gênero foi se inserindo de maneira determinante no mundo jurídico, especialmente no que tange às questões sobre o reconhecimento do Direitos Humanos às mulheres. No Brasil, a efervescência desse debate se deu no processo de criação da Lei Maria da Penha. A lei possui esse nome em homenagem a bioquímica cearense Maria da Penha Fernandes que ficou paraplégica, devido a tentativa de assassinato cometido por seu marido (NASCIMENTO, 2012) A história de Maria é como de tantas outras mulheres brasileiras vítimas

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de violência doméstica, mas ganhou notoriedade devido a morosidade do Sistema de Justiça brasileiro que demorou 15 anos para dar uma sentença judicial definitiva ao caso. Tal situação foi denunciada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e o Estado brasileiro foi considerado negligente, sendo obrigado a criar mecanismos para o combate à violência doméstica, fazendo valer o determinado na Convenção de Belém do Pará (NASCIMENTO, 2012) O processo de criação da Lei Maria da Penha foi um fenômeno muito interessante e que destoa da tradicional forma que o direito se coloca, historicamente, na vida das mulheres. Pois, teve um amplo diálogo com a comunidade e foi resultado das lutas feministas em inserir a perspectiva de gênero no campo jurídico e vitimológico, como já tratado neste artigo. Assim, no ano de 2003, foi criado um consórcio de 6 (seis) Organizações Não Governamentais feministas217 que se uniram para elaboração da lei e de políticas de enfrentamento à violência doméstica (NASCIMENTO, 2012). Nesse período, o mundo jurídico caminhava no sentido de buscar alternativas despenalizadoras, a fim de 217  Formado pelas organizações CFEMEA – Centro Feminista de Estudos e Assessoria; ADVOCACI – Advocacia Cidadã pelos Direitos Humanos; AGENDE – Ações em Gênero Cidadania e Desenvolvimento; CEPIA – Cidadania, Estudos, Pesquisa, Informação, Ação; CLADEM/BR – Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher; e THEMIS – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero. Disponível em:https://www.cnj.jus.br/programase-acoes/violencia-contra-a-mulher/sobre-a-lei-maria-dapenha/ 223


diminuir o número de processos e a própria criminalização de pessoas marginalizadas no Brasil. Foi neste contexto que se criou a Lei 9099/95 (Lei do Juizados Especiais). Contudo, a aplicação de tal dispositivo legal teve consequências devastadoras às mulheres vítimas de violência doméstica, visto que: “Os Juizados Especiais Criminais não foram pensados a partir das relações de gênero, o que tornou cogente uma reflexão sobre a Lei 9099/95 quando utilizada para deliberação sobre casos violência doméstica” (NASCIMENTO, 2012, p. 43).

posto, torna-se evidente que a ausência das lentes de gênero para tal análise dificulta compreensão da lei, parecendo, realmente, com mais uma forma de criminalização de condutas. Contudo, ao utilizar a perspectiva de gênero, nota-se que a lei visa a atender às peculiaridades das mulheres; a compreender como a violência de gênero se insere no ambiente doméstico e a levantar debates sobre a importância das medidas educativas (e não só punitivas) para os agressores.218

Dessa maneira, grande parte das lesões corporais leves cometidas contra mulheres em situação de violência doméstica eram consideradas como crimes de menor potencial ofensivo, fazendo com que o agressor apenas pagasse uma cesta básica ou multa. Não havia o entendimento sobre as peculiaridades da violência doméstica, considerando-a uma forma de violência de gênero que ocorria rotineiramente dentro do ambiente familiar. Após intensos debates levantados pelo movimento de mulheres e por juristas feministas, os crimes de violência doméstica foram retirados da abrangência da Lei 9099/95. Com a aprovação do projeto de lei 4559/2002 nas instâncias legislativas adequadas, a Lei 11.340 foi sancionada em agosto do ano de 2006 (NASCIMENTO, 2012).

estabelecer, por meio do feminismo

Diversas críticas ainda são feitas a Lei Maria da Penha, em especial ao seu suposto caráter punitivista. Isto

224

A lei é fruto da luta dos movimentos de

mulheres,

responsáveis

por

jurídico, novos marcos para a temática de gênero na área penal (SABADELL; PAIVA, 2019, p.07). Apesar das conquistas dos movimentos feministas, 14 anos após a promulgação da Lei Maria da Penha, a violência doméstica segue sendo um grave problema nacional, com números assustadores. A pandemia ocasionada pelo Novo Coronavírus evidenciou o que muitas mulheres já sabiam, por viverem na pele: a rede de acolhimento possui fragilidades. E muitas dessas fragilidades revelam a necessidade de debates, para além da perspectiva de gênero, e sim uma abordagem interseccional - mostrando as interações de raça, classe e gênero que contribui para a intensificação da violência nesse contexto. 218  O caráter educativo da lei está presente no artigo 22, inciso VI e VII (acrescentado pela Lei nº 13.984, de 2020) que prevê o comparecimento do agressor em programas de recuperação e reeducação, bem como acompanhamento psicossocial. 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


3. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E COVID-19: UMA ABORDAGEM INTERSECCIONAL O objetivo desta seção é analisar os dados referentes aos casos de violência doméstica no estado de São Paulo durante o período de quarentena a partir da perspectiva de gênero com abordagem interseccional, com o intuito de descobrir se existem fragilidades na rede de acolhimento às mulheres em situação de violência doméstica. Para tanto, diante da precariedade de demais pesquisas empíricas acerca da violência doméstica durante a quarentena, debruçou-se sobre a análise dos dados levantados pela Secretaria de Segurança Pública do estado de São Paulo que, mês a mês, registra estatisticamente as ocorrências referentes à violência contra a mulher em todo estado. Em adição, também foram utilizados os dados da Nota Técnica “Violência doméstica durante a pandemia de Covid-19” elaborada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Por fim, a dificuldade informacional foi acentuada quando se procurou por dados que foram produzidos levando em conta os marcadores sociais de raça e classe, de forma que nenhum órgão governamental disponibilizou informações sobre as características dessas mulheres. Crenshaw (2004), ao explicar o conceito de interseccionalidade, pontua que “as mulheres negras são afetadas, de maneira específica, pela combinação dessas duas formas diferentes de Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

discriminação”. Nesse mesmo sentido, Butler (2013) desenvolve que é impossível dissociar a questão de gênero das demais interseções, como raça e classe. Portanto, esta lacuna informativa leva a crer que mulheres negras e pobres foram invisibilizadas nestas pesquisas, posto que a complexidade das suas realidades próprias não foi abordada. A importância dos dados empíricos reside na contextualização do debate público e, posteriormente, no subsídio das mudanças legislativas e administrativas. Ao excluir tais marcadores sociais da discussão sobre a violência doméstica durante a pandemia, uma das possíveis conclusões seria que as medidas adotadas não contemplam a demanda específica destas mulheres, tampouco poderiam propor soluções efetivas. 3.1 AS FRAGILIDADES DA REDE DE ENFRENTAMENTO EM TEMPOS DE PANDEMIA. A preocupação com as mulheres em situação de violência doméstica durante o período de distanciamento social, muito antes de ser genuinamente brasileira, é uma angústia internacional. Em abril, o Secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Antonío Guterres219, alertou que, apesar do perigo 219  ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Chefe da ONU alerta para aumento da violência doméstica em meio à pandemia do coronavírus. 2020. Disponível em: < https:// nacoesunidas.org/chefe-da-onu-alerta-para-aumentoda-violencia-domestica-em-meio-a-pandemia-docoronavirus/ >. Acesso em: 27 ago. 2020. 225


causado pelo Novo Coronavírus, para

estado

de

São

Paulo,

a

muitas mulheres, a ameaça maior está

quarentena foi instituída pelo Decreto nº

dentro de casa.

64.881/2020 e passou a viger a partir de

A Itália, um dos países mais atingidos pela pandemia do novo Coronavírus, desde

o

começo

das

medidas

de

segurança adotadas pelas autoridades, investiu em providências para mitigar as

mazelas

sofridas

pelas

mulheres

em situação de violência doméstica. A ampla divulgação do número “1522” e do aplicativo homônimo resultaram em um aumento de 161,20% das denúncias de violência doméstica, em comparação ao mesmo período em 2019220 Portugal, por sua vez, além da compra de espaço de publicitário em órgãos de comunicação social, disponibilizou canal de SMS221 para apoiar vítimas de violência doméstica e alugou, de entes privados, quartos isolados com o fim de aumentar as vagas para abrigos às mulheres em situação de violência doméstica222. 220  ITÁLIA. PRESIDENZA DEL CONSIGLIO DEI MINISTRI DIPARTIMENTO PARI OPPORTUNITÀ. . Aprile: picco delle telefonate al 1522. 2020. Disponível em: < https:// www.1522.eu/aprile-picco-delle-telefonate-al-1522/> . Acesso em: 20 ago. 2020.

226

No

24 de março de 2020. Foram suspensos, em um primeiro momento, o atendimento ao público em academias, restaurantes, Shopping Centers, dentre outros, com exceção dos serviços essenciais para a manutenção da sociedade. Cumpre ressaltar que algumas instituições de ensino já haviam suspendido as aulas presenciais na semana que antecedeu ao decreto. Portanto, na presente análise, serão

usados

os

dados

estatísticos

referentes aos meses de março e abril de 2020, com intuito de fazer comparação entre o período em que houve pouca adesão à quarentena no estado de São Paulo, qual seja, o mês de março e àquele em que já havia a consolidação desta, no mês de abril. Conforme explicado anteriormente, os dados utilizados, em sua maioria, foram retirados do sítio eletrônico da Secretaria de Segurança Pública do estado e correspondem aos registros de Boletim de Ocorrência que envolvem casos de

221  PORTUGAL. República Portuguesa. Nova linha de SMS para apoiar as vítimas de violência doméstica. 2020. Disponível em: <https://www.portugal.gov.pt/pt/gc22/ comunicacao/comunicado?i=nova-linha-de-sms-paraapoiar-as-vitimas-de-violencia-domestica >. Acesso em: 21 ago. 2020.

violência doméstica. Subsidiariamente,

222  PORTUGAL. Secretaria de Estado Para A Cidadania e A Igualdade. COVID-19: segurança em isolamento medidas adotadas para apoio às vítimas de violência doméstica. 2020. Disponível em: <https://www.portugal.gov.pt/ download-ficheiros/ficheiro.aspx?v=21007bbb-45e7-40f2a5ca-36c11670eb57 >. Acesso em: 21 ago. 2020.

números foram considerados até a segunda

utilizou-se também da Nota Técnica elaborada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Para a análise, os casa decimal, sem arredondamento.

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TABELA 1 – DADOS MPU CONCEDIDAS E CRIMES DE LESÃO CORPORAL, AMEAÇA E FEMINICÍDIO NOS MESES DE MARÇO E ABRIL DOS ANOS DE 2019 E 2020 MARÇO

ABRIL

VARIAÇÃO

2019

3221

3972

+18,91

2020

4221

2712

-35,75%

2019

4.753

4.937

+3,73%

2020

4.329

3.244

-25,07%

2019

5.553

5.922

+6,24%

2020

4.642

3.019

-34,97%

2019

13

16

+18,75%

2020

20

21

+4,76%

MPU CONCEDIDAS

LESÃO CORPORAL

AMEAÇA

FEMINICÍDIO

Fonte: elaboração própria, a partir dos dados da Secretaria de Segurança Pública do estado. Subsidiariamente, utilizou-se também da Nota Técnica elaborada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Inicialmente, chama a atenção a queda das ocorrências registradas e das Medidas Protetivas de Urgência concedidas após a decretação da quarentena, com exceção dos casos de feminicídio que apresentaram leve acréscimo. Ora, levando em conta os fatores de vulnerabilidade a que estão expostos a mulher em situação de violência doméstica durante a pandemia, o decréscimo de tais número somente poderia levar à conclusão de que tais mulheres estão com dificuldades de acessar o aparato estatal. Explicamos: o distanciamento social está “aumentando o isolamento das mulheres com parceiros violentos,

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separando-as das pessoas e dos recursos que podem melhor ajudá-las. É uma tempestade perfeita para controlar o comportamentoviolento a portas fechadas” (ONU BRASIL, 2020). Desta forma, a suspensão do serviço de atendimento ao público de diversos estabelecimentos, a adoção do teletrabalho pelas empresas e a diminuição de circulação das pessoas aumenta a vulnerabilidade das mulheres em situação de violência doméstica. Quando estas mulheres se veem obrigadas a passarem mais tempo com seus agressores, elas se distanciam da sua rede de apoio, como amigos, familiares e colegas de trabalho. Além disso, o núcleo familiar pode ter sido afetado pelo

227


aumento da taxa de desemprego223 ou, até

pesquisa, ainda que os números totais de

mesmo, estarem expostas a um aumento

ocorrências tenham caído, as violências

do consumo de álcool e drogas. Todos

mais graves, como lesão causada por arma

esses fatores apontam como improvável

de fogo e homicídio, cresceram.

o fato de um homem violento se tornar pacífico ou menos agressivo durante a quarentena. Ademais, considerando que 66% das agressões fatais ocorreram dentro de casa (MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2017) e, em sua maioria, foram praticadas pelo cônjuge ou convivente da vítima, por razões óbvias, é mais dificultoso para essas mulheres telefonarem para os números oficiais de denúncia ou sair da residência para ir até a delegacia, sem que os companheiros percebam.

Podemos falar, portanto, em aumento da cifra oculta, definida por SÉVERIN (1980) como a parcela das infrações que não é conhecida oficialmente e, portanto, não é perseguida criminalmente pelo Estado. Ao passo que houve expressiva diminuição das mulheres que procuraram a tutela estatal, através do registro de boletim de ocorrência ou da solicitação de Medidas Protetivas de Urgência, e intensificação dos fatores de vulnerabilidade, a realidade destas mulheres pode ser ignorada pela rede de acolhimento, em especial, durante

Por fim, outro dado que corrobora

a pandemia. Se a polícia está tomando

para a hipótese de dificuldade de acesso à

ciência de menos casos de violência

rede de enfrentamento é o aumento, ainda

doméstica, porém os que chegam são

que sensível, dos registros de feminicídio.

mais

Se

afunilamento da demanda.

os

casos

envolvendo

violência

doméstica durante a pandemia estivessem de fato diminuindo, o mesmo deveria acontecer com os índices de homicídios de mulheres em razão do gênero. Neste mesmo sentido, uma pesquisa publicada pela The Marshall Project (LI, Weihua; SCHWARTZAPFEL, Beth, 2020) analisou as ocorrências de violência doméstica de três cidades norte-americanas. Segundo a 223  Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2020, online), no mês de julho do corrente ano, “taxa de desocupação entre as mulheres foi de 15,4%, maior que a dos homens”. Ainda, “no Brasil e em todas as Grandes Regiões a taxa era maior entre as pessoas de cor preta ou parda (14,7%) do que para brancos (11,1%)”.

228

graves, Apesar

está

acontecendo

dos

internacionais

um

compromissos

mencionados

neste

artigo, o combate à violência doméstica não

pareceu

ser

a

prioridade

do

Estado brasileiro. A Lei Federal, que trata de medidas de enfrentamento e estabelece como essenciais os serviços de atendimento à mulher em situação de violência doméstica somente foi editada em julho de 2020 (BRASIL, 2020), cinco meses após a publicação da Lei 13.979 de 2020, a primeira a dispor sobre as medidas emergenciais em relação à

36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


pandemia. É possível apontar, portanto,

quarentena, nos primeiros meses. Tal fato

que o Estado falha ao não colocar a pauta

aponta para a terceira e principal fragilidade

da violência doméstica como prioridade,

trabalhada nesta pesquisa: a falta da

sendo esta uma fragilidade embrionária

abordagem interseccional faz com que

da rede de acolhimento. Para a Comissão

desconheçamos quem são as mulheres em

Interamericana de Direitos Humanos, no

situação de violência doméstica durante a

que tange à violência doméstica, “o dever

pandemia. O silêncio informacional, até

de devida diligência (dos Estados) é mais do

então, tem tornado as medidas adotadas

que a obrigação de processar e condenar

ineficazes, pois o Estado não sabe quais

os responsáveis e inclui a obrigação de

são as necessidades destas mulheres. Por

prevenir

outro lado, de acordo com Barbosa et

estas

práticas

degradantes”

(CASTILHO e CAMPOS, 2018, online). De iniciativa do Tribunal de Justiça do estado de São Paulo, o projeto “Carta de Mulheres” tem como objetivo a orientação das vítimas de violência doméstica. Após o preenchimento virtual de formulário, uma equipe especializada orienta a mulher sobre quais serviços procurar dentro de sua região geográfica. Apesar do intuito de fornecer à vítima informações

al (2020) é necessário asseverar que “o isolamento social por si só não ocasiona a violência, mas tem a potência de colocar em evidência as vivências dessas mulheres em situação de violência doméstica”. Neste entendimento, é possível questionar se as dificuldades de acesso e de prioridade da pauta da violência doméstica já não existiriam antes mesmo de ser decretada a quarentena.

qualificadas e precisas, em quatro meses de existência, o projeto atendeu somente 1.181 demandas

, o que indica a

224

provável segunda fragilidade da rede de acolhimento: o acesso à informação. A partir dos dados apresentados, foi possível perceber que a rede de

3.2. PARA ALÉM DA PERSPECTIVA GÊNERO: A INTERSECCIONALIDADE COMO INSTRUMENTO DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. As

contribuições

do

feminismo

acolhimento à mulher em situação de

jurídico, bem como da vitimologia na

violência

conseguiu

construção da Lei Maria da Penha foram

adaptar-se às mudanças exigidas pela

de suma importância e demonstram a

doméstica

não

força dos movimentos sociais; capazes 224  SÃO PAULO. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Carta de Mulheres: canal on-line para prestar informações a vítimas de violência doméstica. Disponível em: <http://www.tjsp.jus.br/Noticias/ Noticia?codigoNoticia=61979&pagina=1>. Acesso em: 27 ago. 2020. Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

de transformar políticas e estabelecer novos marcos normativos. Contudo, bem como ocorreu com o próprio movimento

229


feminista, os marcadores de raça e classe

para mulheres brancas diminuiu - de 2003

muitas vezes permanecem marginalizados.

a 2013- , para as mulheres negras esse

A intelectualidade de mulheres negras

número aumentou.

travam debates em relação a necessidade

Destaca-se, aqui, que os estudos envolvendo marcadores raciais nas políticas públicas ainda são escassos, conforme já mencionado neste artigo, o que dificulta a própria construção de políticas efetivas para todas as mulheres. No que tange a violência doméstica, o escrutínio dos dados que envolvem os marcadores sociais torna-se condição sine qua non para a construção de uma rede de enfrentamento robusta e efetiva. Em estudo proposto pelo instituto Geledes, realizado no estado de São Paulo, “Mulheres Negras e Violência Doméstica: decodificando os números” (2017), afirmase que:

de uma abordagem interseccional nas políticas públicas há muito tempo. Desde de Kimberlé Crenshaw - responsável por cunhar o termo interseccionalidade -, Angela Davis ao tratar de gênero, raça e classe até autoras mais contemporâneas buscam compreender as interações entre esses marcadores da diferença. Voltando-se

para

realidade

brasileira, desde a década de 70, Lélia Gonzales analisa o racismo e o sexismo no Brasil, assim como Sueli Carneiro e muitas outras intelectuais que desvelam os atravessamentos dessas questões no âmbito da violência doméstica. Dito isso, inicialmente, vale conceituar o termo

interseccionalidade

que

para

Carla Akotirene (2019, p.14) trata-se de: “uma sensibilidade analítica, pensada por feministas negras cujas experiências e

reivindicações

intelectuais

eram

inobservadas tanto pelo feminismo branco quanto pelo movimento antirracista, a rigor, focado nos homens negros”. Tal sensibilidade analítica se dá pela percepção das relações e interações das opressões de classe, raça e gênero que atravessam os corpos das mulheres negras, sendo elas as mais atingidas pela violência doméstica e feminicídio. Segundo dados do Mapa da Violência (2015), enquanto o número de homicídios 230

Sabemos que muitas foram as ações de mulheres negras que buscaram trazer outros cenários e perspectivas nas discussões sobre as violências e a violência doméstica, contudo a inexistência de dados desagregados por cor, além da dificuldade de inserção do tema contribuíram para o ocultamento do problema. (CARNEIRO, 2017, p. 25) A importância de dados estatísticos que façam a distinção de raça e classe, como apontado anteriormente no presente estudo, reside no prejuízo que causamos ao construirmos uma narrativa hegemônica. Adichie (2019) alerta para os perigos causados pela história única.

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Segundo a autora, as histórias podem ser usadas para expropriar e apagar, mas também podem capacitar e humanizar. É neste contexto de retomada da narrativa por mulheres negras e pobres que está a Rede de Enfrentamento à Violência Doméstica, definida como a articulação de instituições governamentais e não-governamentais e entidades da sociedade civil, que tem por objetivo o “desenvolvimento de estratégias efetivas de prevenção e de políticas que garantam o empoderamento e construção da autonomia das mulheres” (BRASIL, 2011, p. 14). Quais são as mulheres que, durante a pandemia, tiveram seu trabalho precarizado? Elas estão em uma relação de dependência financeira com seu agressor? Em se tratando famílias monoparentais e das mulheres que sequer tiveram direito ao autocuidado, pois não existe a possibilidade de parar de trabalhar, quais são as formas de atendimento disponíveis a elas? Essas pautas precisam ser levantadas pela Rede de Enfrentamento a fim de aproximar-se, cada vez mais, da complexidade que é o fenômeno da violência doméstica. Quando Barbosa et al (2020) nos lembra que a violência doméstica não surgiu com a pandemia do novo coronavírus, isso significa que tampouco as lacunas do debate público de enfrentamento são um problema recente: Tomando a pandemia como dispositivo analítico, a interseccionalidade deve focalizar as mulheres que assumem Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

as posições nessas interseções, recuperando-as como sujeitos dos múltiplos emaranhados de sua contextualização social, incluindo o isolamento social como uma das categorias de intersecção A ausência de debates e estudos interseccionais em contexto de pandemia traz consequências no trabalho desenvolvido pela rede de enfrentamento e, em especial, na rede de acolhimento. Essa, por sua vez, demonstra suas fragilidades no contexto atual ao não dar conta das especificidades dessas mulheres e tampouco soluções efetivas de suas demandas. Por fim, como destaca Carla Akotirene, para combater as discriminações os instrumentos protetivos do nosso país “(...) precisam averiguar as performances sexistas e racistas de seus expedientes usando a abordagem interseccional. (AKOTIRENE, 2019,p. 39)” Sendo assim, se faz urgente uma abordagem interseccional quando se trata de casos de violência doméstica, especialmente diante da grave crise sanitária global que evidencia ainda mais as fragilidades da rede de enfrentamento à violência doméstica. 4. CONCLUSÃO O caráter androcêntrico do Direito é suscitado pelos estudos do feminismo sociojurídico e impulsionados pelo movimento de mulheres de todo mundo. No que tange as movimentações no Brasil, 231


tais estudos foram contemporâneos aos debates vitimológicos, em que a vítima ganhou destaque no Sistema de Justiça Criminal brasileiro, assim como pauta de gênero. Foi nesse contexto, em que a Lei Maria da Penha foi criada; abordar tal contexto é importante para que se enxergue a capacidade dos movimentos sociais de mulheres em ensejar mudanças paradigmáticas. Portanto, a consolidação da pauta de gênero é nítida na Lei Maria da Penha, contudo, 14 anos após a promulgação da Lei Maria da Penha, a pandemia ocasionada pelo Novo Coronavírus evidenciou as fragilidades da rede de acolhimento das vítimas de violência doméstica. Ao analisar os dados da Secretaria de Segurança Pública e, subsidiariamente, Nota Técnica elaborada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública do estado de São Paulo percebe-se que, o decréscimo do número de medidas protetivas de urgência e boletim de ocorrência nos períodos analisado (março e abril de 2019 e 2020). Os dados revelam uma possível dificuldade dessas mulheres em acessar o aparato estatal, vez que o número de feminicídios subiu. O mesmo foi apontado em estudos de outros países.

debate considerando que são as mulheres negras e pobres as mais vulnerabilizadas em tempos de pandemia. A ausência de políticas em que se dediquem a entender a necessidade dessas mulheres revelam as fragilidades nas redes de acolhimento que acabam por não pensar soluções voltadas às suas singularidades. Tais fragilidades não são culpa exclusivamente da crise sanitária global. Ao menos, na realidade brasileira e, em específico, no estado de São Paulo, elas são possivelmente as consequências de anos de uma política que necessita se aprofundar mais nos debates interseccionais e assim atender da melhor forma as especificidades das mulheres. Superando a questão de gênero apontada pelo feminismo sociojurídico e presente na Lei Maria da Penha, para o aprofundamento dos estudos interseccionais que contribua para uma rede de acolhimento que consiga, de fato, acolher todas as vítimas de violência doméstica.

Entretanto, as análises de tais dados sempre será incompleta, uma vez que nos estudos encontrados não haviam sido realizados uma abordagem interseccional, na qual os marcadores de raça e classe fossem evidenciados. Parece razoável pensar na imprescindibilidade desse

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ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS EM RAZÃO DA PANDEMIA NOS CONTRATOS DE LOCAÇÃO Rodrigo da Silveira Barcellos225 Beatrice Ferrari226 Lucas Antonio Schoba Almeida227 RESUMO O presente artigo é resultado de um estudo jurídico acerca da ocorrência de alterações, em tempos de pandemia, das circunstâncias que perfilham o cenário de formação de termos contratuais, buscando verificar as respostas do ordenamento jurídico às novas necessidades e os princípios que norteiam estas soluções. Para isso, o artigo parte de um exame histórico e principiológico da formação dos contratos e analisa essa base teórica sob a perspectiva dos dias atuais, considerando os fatos desencadeadores da alteração das circunstâncias. A evolução pela qual tem passado o direito contratual nas últimas décadas, com a incorporação de fenômenos inesperados e bruscos da economia, torna o ambiente jurídico muito propício à utilização da revisão contratual. Notadamente, o dispositivo em debate possibilita uma maior intromissão do Estado na relação jurídica negocial, com o escopo de se conferir maior justiça quando, pela alteração das circunstâncias da obrigação, mostra-se necessário realizar resolução ou modificação do contrato.

225  Doutorando em Direito Civil pela Universidade de Coimbra – Portugal. Mestre em Direito da Sociedade da Informação no Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas; Especialista em Direito Civil pela Universidade de Coimbra. Professor Universitário. Assessor Jurídico do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo; 226  Discente do curso de Direito da Universidade de São Paulo, 7º semestre. Estagiária na área de contencioso cível e arbitragem; 227  Discente do curso de Direito da Universidade Mackenzie de São Paulo. 240

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Dito de outra forma, a partir do momento em que é diagnosticada a alteração das circunstâncias, inseridas na base subjetiva do contrato, abre-se margem para que as partes resolvam o instrumento ou, eventualmente, para que o juiz analise a conduta do lesado, propondo uma modificação do contrato segundo juízos de equidade – intromissão essa que apenas se justifica se a exigência das obrigações assumidas afetar gravemente o princípio da boa-fé e se esta situação não estiver coberta pelos riscos próprios do contrato. PALAVRAS-CHAVE Contratos, Revisão, Alteração das Circunstâncias, Pandemia, Pacta Sunt Servanda, Rebus Sic Stantibus

1. INTRODUÇÃO Em tempos pandêmicos, a realidade em que se desenvolve o cumprimento de um contrato demonstra-se passível de modificações, o que pode alterar a estrutura econômica em que está assentada a relação jurídica em causa. Quando se está diante de uma severa perturbação do conteúdo ajustado, tornase necessária a verificação do quantum do desequilíbrio contratual e se este afeta a concepção de justiça, do início do pacto e da força estabelecida pelo acordo. É esse ideal que surge como elemento propulsor de novas digressões e aplicações teóricas. A influência da pandemia sobre o conteúdo contratual firmado entre as partes é elemento de análise essencial para que se possa cogitar o cabimento de uma alteração na base do negócio.

das conjunturas ocorre, na maioria das vezes, entre o momento da formação do negócio jurídico e o momento da sua execução, e, por isso, trata-se de matéria importantíssima a ser trabalhada dentro da disciplina dos contratos duradouros. A alteração de circunstâncias, assim, é o instituto que procura regular problemas suscitados com relação ao futuro. Nessa situação, a conjuntura em que a vontade das partes foi colocada revela-se alterada no decurso do tempo. Dessa forma, entre a formação e a execução do contrato, ocorre uma ruptura que requer, por consequência, a revisão ou resolução do termo. É com essa ideia preliminar que iniciaremos um singelo estudo acerca da origem e formação do direito contratual. Senão vejamos.

Nesse ponto, notável que a modificação Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

241


2. ORIGEM CONTRATOS Um

dos

E

FORMAÇÃO

DOS

pluriumve in idem placitum consensus”, o que pode ser traduzido como o “mútuo

mais

tradicionais

e

importantes institutos do direito privado,

consenso de duas ou mais pessoas sobre o mesmo objeto”231.

que é considerado uma das fontes das

A semente da concepção moderna do

obrigações228 e que sofreu evolução e

contrato encontra-se nos fenômenos da

modificação229 muito grande em sua

convenção (conventio), do pacto (pacta) e

estrutura principiológica (principalmente

o contrato (contracto), que eram institutos

após a falência social advinda da Revolução

diversos perante os romanos. Compete

Industrial) é o contrato230.

destacar que o formalismo mais ou menos

O Código Civil italiano, no seu artigo 1.321, conceituou o contrato como sendo “o acordo de duas ou mais partes para constituir, regular ou extinguir, entre

exacerbado era o que diferenciava as referidas expressões da manifestação da vontade232, mas esta classificação só prevaleceu no início.

si, uma relação jurídica patrimonial”. A

Em Roma, inicialmente, o acordo

conceituação romana, estabelecida por

de vontades não tinha o condão de, por

Ulpiano, não obstante a sua simplicidade,

si só, gerar obrigações, uma vez que

era assaz correta: “est pactio duorum

era a observância de formalidades que criava este vínculo obrigacional. Essa

242

228  O artigo 1173 do Código Civil italiano dispõe que: “Le obbligazioni derivano da contratto, da fatto illecito, o da ogni altro atto, o fatto idoneo a produrle in conformità dell’ordinamento”.

rigidez, contudo, começou a perder força

229  Nas palavras de Roberto Senise Lisboa: “Um dos institutos jurídicos civis que mais se submeteu às transformações sociais e econômicas foi, sem dúvidas, o contrato. E as alterações foram tantas, desde o direito antigo até o direito pós-moderno, a ponto de atualmente se admitir sem maiores polêmicas uma teoria geral dos contratos, apartada da teoria obrigacional clássica. ” LISBOA, Roberto Senise. Manual de Direito Civil. Vol. 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.p. 61.

jurídico233. Adicionalmente, nos últimos

230  Para Sílvio Rodrigues: “Dentro da teoria dos negócios jurídicos, é tradicional a distinção entre os atos unilaterais e os bilaterais. Aqueles se aperfeiçoam pela manifestação da vontade de uma das partes, enquanto estes dependem da coincidência de dois ou mais consentimentos. Os negócios bilaterais, isto é, os que decorrem de acordo de mais de uma vontade, são os contratos. Portanto, o contrato representa uma espécie do gênero negócio jurídico. E a diferença específica, entre ambos consiste na circunstância de o aperfeiçoamento do contrato depender da conjunção da vontade de duas ou mais partes. ” RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Contratos, v. 3. 25ª Ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 9.

231  MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. 5º Vol. 28ª ed. Direito das Obrigações – 2ª parte. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 4.

ainda no período clássico, em razão da dinamicidade do comércio e do tráfico tempos da legislação romana, os pactos legítimos, pretorianos e adjetos passaram a assumir uma conformação diversa, possuindo, inclusive, sanção legal234, mas

232  LISBOA, Roberto Senise. Manual de Direito Civil. Vol. 3. 3ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 46. 233 NETTO, Humberto Theodoro. Efeitos Externos do Contrato. Direitos e Obrigações na Relação entre Contratantes e Terceiros. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 18. 234  BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. IV. São Paulo: Livraria Francisco Alves, 1917. 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


uma vez descaracterizando a diferenciação inicialmente proposta. Pois bem, considerando a classificação inicial, a convenção era gênero, enquanto o pacto e o contrato eram espécies. No que tange ao pacto, é forçoso convir que lhe faltava a força coercitiva que dispunha o contrato, uma vez que não era sancionado civilmente. O contrato, por outro lado, constituía-se em uma convenção sancionada pelo sistema jurídico. Para o eminente Professor Doutor FRANCISCO BRITO PEREIRA COELHO, citando as noções de BONFANTE, definese a figura do pacta235 como “acordos ou convenções destinados a regular uma determinada situação de interesse comum, despidos de forma e não integrados em qualquer dos tipos contratuais ou negociais estabelecidos”. Para SENISE LISBOA a convenção, em realidade, era um acordo de vontades em que as partes assumiam deveres relativos a uma prestação de dare, facere ou non facere, sem que houvesse grandes

solenidades. O denominado pacta representava a assunção de deveres, sem que ocorresse o esperado formalismo236. Como relembra PAIS DE VASCONCELOS237 “os atos jurídicos pelos quais, no antigo Direito Romano as pessoas se obrigavam, transferia bens ou regiam entre si os seus interesses, eram taxativamente típicos e rigorosamente formais”. O pacto e a convenção, para SENISE LISBOA, não conferiam ao prejudicado o direito à ação judicial, mas lhe outorgava para a tutela de um bem seu a exceptio. A obrigação de dar, fazer ou não fazer era denominada de pacta vestita ou contracto se esta fosse estipulada na presença do oficial romano e se fosse concedida ao credor a possibilidade de exigir em juízo o adimplemento da obrigação.

Aos poucos, o formalismo

do contrato foi desvanecendo, sendo apenas exigido quando expressamente previsto em lei, circunstância que o aproximou da convenção. O contrato evoluiu sobremaneira em razão dos

p. 240. Neste sentido, temos o escólio de R. Limongi França para quem: “Numa determinada fase do Direito Romano, distinguiam-se, sobre a matéria, três categorias: a convenção, o pacto e o contrato. Convenção é palavra genérica (Digesto, 2, 14, 1, 3, Ulpiano). Por sua vez pacto vem de pacção. E pacção é o consentimento de duas ou mais pessoas sobre o mesmo objeto. Ao seu turno, o contrato é a convenção a que o jus civile atribui forma e reconhece uma ação sancionadora – conventio nomen habens a jure civile vel causam”. FRANÇA, R. Limongi. Instituições de Direito Civil. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 713.

estudos efetivados pelo jusnaturalismo e

235  COELHO, Francisco Manuel de Brito Pereira Coelho. Contrato – Evolução do Conceito do Direito Português, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1990. p.17. Citando BONFANTE, Su <Contractus> e su <Pacta>, in Scritti Giuridici Varii, III (Obligazioni), Turim, 1921, pp. 137 e ss.

237  VASCONCELOS, Pedro Pais. Teoria Geral do Direito Civil. 8ªed. Coimbra: Almedina. 2015.p.464.

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pelo direito canônico que, simplificando a realização dos contratos, consagraram o princípio da fé jurada, fortalecendo, por conseguinte, a palavra238. 236  LISBOA, Roberto Senise. Manual de Direito Civil. Vol. 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.p. 46.

238  LISBOA, Roberto Senise. Manual de Direito Civil. Vol. 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.p. 48. 243


Atualmente, todavia, não há razão

BRITO

PEREIRA

para diferenciação entre pacto e contrato.

COELHO didaticamente define como

Ambos estariam abarcados pela ideia de

primeira condição contratual o elemento

uma convenção em que duas partes ou

declarativo: “para haver contrato tem

apenas uma delas com a concordância da

de haver desde logo duas ou mais

outra submete-se a realizar uma prestação

declarações de vontade (...) ajustando-se

de dar, fazer ou não fazer. 239

no seu comum intuito de prossecução de

Por isso que ORLANDO GOMES, citando

BONFANTE,

asseverou

um mesmo resultado” .

que

Assim, resumidissimamente, hoje em

“não é no direito romano que se deve

dia, pode-se conceituar este fenômeno

buscar a origem histórica da categoria

jurídico como o acordo de duas ou mais

que hoje se denomina contrato”. O liberalismo econômico e a ideia de que o mercado de trabalho e de capitais devem funcionar

livremente

impulsionou

o

contrato, erigindo-o à condição de peça fundamental para o desenvolvimento da economia240. Com o contrato, assevera PIETRO TRIMARCHI, cada uma das partes pode assegurar-se com relação ao empenho da outra, no sentido de que haja o desenvolvimento de um ato ou atividade, para que ocorra a obtenção de um bem ou serviço. Além disso, os contratantes podem distribuir entre eles os riscos das dificuldades e dos imprevistos não culpáveis que eventualmente venham a perturbar a atuação do programa contratual241. 239  FRANÇA, R. Limongi. Instituições de Direito Civil. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 713. 240  GOMES, Orlando. Contratos. 18ª ed. Atualização e notas de Humberto Theodoro Junior. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 6. BONFANTE, Su <Contractus> e su <Pacta>, in Scritti Giuridici Varii, III (Obligazioni), Turim, 1921, pp. 137 e ss. 241 TRIMARCHI, Pietro. Incentivi e Rischio nella 244

FRANCISCO

vontades, na conformidade da ordem jurídica, destinado a produzir efeitos entre as partes, com a finalidade de criar, modificar ou extinguir relações jurídicas de conteúdo patrimonial242. É denominado, outrossim, como negócio jurídico bilateral, uma das espécies de ato jurídico em sentido amplo243, porquanto exige, para a sua formação, a manifestação de vontade de duas ou mais pessoas.

Responsabilità Contrattuale. In: Rivista di Diritto Civile. Ano LIV, n. 3 Maggio-Giugno. Cedam – Casa editrice Dott. Antonio Milani. Padova, 2008, p. 342. 242  DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 11ªed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 410. Para R. Limongi França “contrato é o ato jurídico por força do qual duas ou mais pessoas convencionam entre si a constituição, modificação, ou extinção de um vínculo jurídico, de natureza patrimonial”. FRANÇA, R. Limongi. Instituições de Direito Civil. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 714. 243  Cumpre destacar que o ato jurídico é um fato jurídico humano voluntário, conquanto necessite da manifestação de vontade do sujeito de direito. Fatos jurídico, na lição de Emilio Betti, “são, portanto, aqueles factos a que o direito atribui relevância jurídica, no sentido de mudar as situações, a que correspondem novas qualificações jurídicas”. BETTI, Emilio. Teoria Geral do Negócio Jurídico. Tomo I, Coimbra, 1969. p. 20. 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


3. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

CONTRATUAIS

Os princípios constituem a base do sistema jurídico moderno e são abstraídos das normas, costumes, doutrina e jurisprudência, bem como de aspectos relacionados indiretamente ao direito, como a política, a economia e a sociedade. São verdadeiras diretrizes jurídicas, pairando sobre a legislação e conferindolhe validade e significado legitimador244, de forma que atuam como força motriz do direito. O estudo destes princípios, assim, é imprescindível para a compreensão do regime jurídico que pretende visualizar e lidar com a alteração das circunstâncias contratuais de locação em razão da pandemia. No âmbito dos contratos, ressaltamse os princípios tradicionais da autonomia da vontade, do consensualismo, da relatividade dos efeitos e da força obrigatória, além dos princípios modernos da boa-fé objetiva, do equilíbrio econômico-financeiro e da função social do contrato.

3.1. PRINCÍPIOS TRADICIONAIS O princípio da autonomia da vontade se particulariza no âmbito dos contratos como liberdade de contratar245, determinando que os pactos devem surgir 244  GAGLIANO e FILHO, Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona. Novo Curso de Direito Civil: Contratos: Teoria Geral, v.4, t.1, ed. 13, versão digital. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 84. 245  GOMES, Orlando. Contratos, ed. 26. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2007, p. 25. Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

da vontade livre246 - isto é, da vontade sem vícios (erro, dolo, coação, estado de perigo ou lesão). Abrange, portanto, a liberdade de contratar, a liberdade de estipular o contrato e a liberdade de determinar o conteúdo do contrato.247 Não é, contudo, um princípio absoluto. Como explica ORLANDO GOMES, desde sempre houveram duas limitações de caráter geral e de difícil definição - a ordem pública e os bons costumes - e outras têm surgido com a desigualdade econômica propiciada pelo desenvolvimento do capitalismo, sob a qual a noção tradicional de liberdade passou a representar um potencial abuso.248 É um princípio, assim, cuja concepção tem se adequado ao longo tempo, mas que permanece fundamental à formação de contratos. O princípio da relatividade, conforme PABLO STOLZE GAGLIANO E RODOLFO PAMPLONA FILHO249, funda-se no preposto de que os efeitos do contrato apenas dizem respeito às partes, razão pela qual sua oponibilidade é relativa, e não “erga omnes”. As disposições do contrato, preliminarmente, não interessam a terceiros, justamente por não haver manifestação expressa, e, consequentemente, não haver negócio 246  MÁRIO, Caio da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil: Contratos, v.3, ed.17. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 20. 247  248

Ibid. p. 26. Ibid. p. 27, 29 e 30.

249  GAGLIANO e FILHO, Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona. Novo Curso de Direito Civil: Contratos: Teoria Geral, v.4, t.1, ed. 13, versão digital. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 100, 101 e 102. 245


jurídico; sob esta ótica, entende-se que o referido princípio tem como origem a autonomia da vontade. Existem, entretanto, exceções à regra, aptas a envolver terceiros na relação contratual em razão da flexibilização de interesses. No que se refere ao princípio do consensualismo, tem-se, como regra geral, que os contratos necessitam apenas e unicamente do acordo de vontades, contrapondo-se, assim, ao formalismo e simbolismo típicos da antiguidade.250 Dessa forma, o princípio é corolário natural da liberdade, ou seja, as pessoas gozam da faculdade de vincular-se ao título pelo simples consenso, sem demais solenidades, formas ou fórmulas qualificadoras do acordo, convergindo ao princípio ético do respeito à palavra dada e na confiança recíproca (“solo consensu”251). Contudo, alguns poucos contratos necessitam do formalismo, a citar os classificados como reais. No intuito de conferir maior segurança e seriedade ao negócio, o legislador atribuiu maior rigor ao título, exigindo a forma escrita, pública ou particular, em casos específicos determinados pela lei, bem como expresso no art. 107 do Código Civil. Como exceções ao princípio do consensualismo, citam-se a imposição do registro na alienação fiduciária em 250  GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: contratos e atos unilaterais, v.3, ed. 14, versão digital. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 42 e 43. 251  MÁRIO, Caio da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil: Contratos, v.3, ed.17. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 16; 246

garantia e a obrigatoriedade de inscrição no registro imobiliário (arts. 1.361, §1º e 1.417 do CC, respectivamente). O princípio da força obrigatória, por sua vez, tal como explica ORLANDO GOMES, atribui aos contratos a condição de lei entre as partes, garantindo que não haja a revogação unilateral. Trata-se de um princípio imprescindível à segurança dos acordos firmados252. Proveniente da expressão em latim “pacta sunt servanda” (“os pactos devem ser cumpridos”), apresenta-se como corolário lógico da liberdade de contratar e da autonomia privada253, pois, pela perspectiva voluntarista, verificado o livre exercício da vontade, não haveria razões para o descumprimento do acordo.254 Em sua origem, representava uma linha dogmática e absoluta, que impedia a modificação ou extinção unilateral, seja pelas partes, seja pelo Estado.255 Essa realidade se modificou ao longo dos anos e, no cenário brasileiro, culminou no Código Civil de 2002, mais permissivo a flexibilização da obrigatoriedade e com maior inclinação à socialidade e ao reconhecimento da pessoa humana.256 Intitulados princípios individuais, a 252  GOMES, Orlando. Contratos, ed. 26. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2017, p. 38. 253  NALIN, Paulo. A Força Obrigatória dos Contratos no Brasil: Uma Visão Contemporânea e Aplica à Luz da Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em vista dos Princípios Sociais dos Contratos, Revista Brasileira de Direito Civil, v.1, jul/set/2014, p. 113. 254

Ibid. p. 116.

255

Ibid. p. 116.

256

Ibid. p. 115. 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


autonomia da vontade, o consensualismo, a relatividade dos efeitos e a força obrigatória provém da consolidação do Estado liberal e traduzem, em sua conotação original, os princípios ideológicos da época. Estão relacionados com a correta formação dos contratos e figuram alicerce da era de direitos instaurada pela Revolução Francesa de 1789. Note-se, neste ponto, que apesar de conectar-se com o adimplemento, o pacta sunt servanda também visa a correta constituição das relações contratuais, pois é a garantia de cumprimento de contratos que justifica e motiva a sua criação. 3.2. OS NOVOS OBJETIVOS PRINCIPIOLOGIA CONTRATUAL

DA

Diferentemente dos princípios tradicionais elencados, a principiologia contratual contemporânea conecta-se com a necessidade de manutenção das relações contratuais em face de direitos sociais, considerando que as relações no mundo atual são, em sua maioria, prolongadas no tempo. A principiologia baseia-se, assim, em um viés intervencionista, atuando de maneira a conter a ampla e total liberdade dos contratantes para disporem de seus interesses, porque o exercício ilimitado acabaria por impactar negativamente a parte social ou economicamente mais fraca, além de promover, em alguns casos, a sobreposição do interesse privado ao público. Tornou-se necessário, portanto, coibir abusos da parte economicamente superior e garantir a aplicação de Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

fundamentos éticos e funcionais que regem a ordem normativa, alicerce que se conecta com os preceitos da Constituição de 1988. Neste ponto, retoma-se o impacto que o mencionado viés normativo ocasionou na noção de obrigatoriedade dos contratos. Apesar de ainda vigente e central às relações contratuais, a concepção do pacta sunt servanda passou a ser limitada pelos princípios contemporâneos, que expressam valores e princípios sociais. As discussões de revisão contratual frente à pandemia, aliás, só são uma realidade em vista da referida flexibilização, incorporada no Código Civil de 2002, que garante ao direito contratual a noção de cooperatividade.257 Dessa forma, os novos princípios introduziram uma diferente perspectiva às relações contratuais, adicionando deveres laterais e bilaterais decorrentes da boa-fé objetiva - como o equilíbrio econômico-financeiro e a função social do contrato. Deveres, estes, decorrentes da superação promovida pela Constituição de 1988 (e, em seguida, pelo Código Civil de 2002) da dicotomia entre Direito Público e Privado258; os novos deveres, por consequência, divergem da ideia da liberdade máxima (séc. XIX) e se aproximam da isonomia, mostrando-se essenciais em períodos de excepcionalidade.

257  Ibid.. p. 117. 258  Ibid.. p. 120. 247


3.3. PRINCÍPIOS MODERNOS A boa-fé é utilizada pelos juristas de modo multifacetado.259 Trata-se de um princípio antigo, que remonta ao Direito Romano, tendo sofrido influências do Direito Canônico, do Jusnaturalismo, do Código Civil Francês e do Código Civil Alemão.260 Hoje, como explica JUDITH MARTINS-COSTA, entende-se a boa-fé objetiva, na seara dos contratos, como uma estrutura normativa que prescreve um standart comportamental, constituindo um cânone de interpretação.261 Em outras palavras, a boa-fé objetiva, positivada no art. 422 do Código Civil de 2002, engloba parâmetros de conduta que devem ser seguidos e que auxiliam na interpretação das cláusulas contratuais, a fim de evitar comportamentos que prejudiquem a concretização dos objetivos do contrato tanto no âmbito do adimplemento, quanto no âmbito da função social. O conteúdo do princípio da boa-fé objetiva, neste cenário, é alcançado através da análise de casos concretos, nos quais juristas, de acordo com JUDITH MARTINSCOSTA, “encontram a razão de decidir (ou uma delas) na violação a esse standart comportamental”.262

Não é um conceito fechado e com recorte preciso, de modo que o padrão de comportamento será definido de forma relacional, considerando o contexto dos negócios firmados.263 Neste ponto, ressalta ANTÔNIO MANUEL DA ROCHA E MENEZES CORDEIRO que a boa-fé objetiva não comporta uma interpretação-aplicação clássica.264 Tanto é verdade que o Código Civil Português fornece sete definições distintas de boa-fé em seus institutos.265 A obra de JUDITH MARTINS-COSTA, aliás, busca, nas palavras da autora, entender a boafé de forma funcional, sistematizando e propondo critérios para a sua aplicação.266 Vale

ressaltar

discordâncias

que

existem

doutrinárias

quanto

à caracterização da boa-fé objetiva como princípio contemporâneo, pois como supramencionado, o princípio é reconhecido desde o Direito Romano. Nota-se, contudo, que este tem adquirido maior relevância e amplitude com a incorporação dos direitos e valores sociais que hoje regem o sistema contratual brasileiro. PAULO NALIN, neste sentido, entende que o Código Civil de 2002 promoveu a “consagração do princípio

259  MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado: Critérios para a sua aplicação, ed. 2, versão digital. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 34. 260  Sobre o tema, MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado: Critérios para a sua aplicação, ed. 2, versão digital. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, mais especificamente o capítulo “As Raízes”, pp. 39-81. 261  Ibid. p. 34 262  Ibid. p. 34. 248

263  Ibid. p. 35. 264  CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e Menezes. Da Boa Fé no Direito Civil. Dissertação de doutorado, Almedina, 2ª reimpressão, 2001, p. 42. 265  Ibid. p. 23. 266  MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado: Critérios para a sua aplicação, ed. 2, versão digital. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 24. 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


da boa-fé como princípio concreto e geral dos negócios jurídicos e, logo, dos contratos”267. Outro ponto a ser debatido é o equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Este princípio atrela-se ao da autonomia da vontade, pois, nas palavras de FÁBIO ULHOA COELHO268, a ordem jurídica somente deve reconhecer validade e eficácia à composição dos interesses pelos próprios titulares, mediante acordo de vontades, se eles possuírem iguais meios para defendêlos na mesa de negociação. O contrato deve manter, portanto, um equilíbrio econômico durante toda a sua execução; caso contrário, torna-se possível pedir a rescisão ou a revisão judicial - como nos casos em que resta evidente o instituto da onerosidade excessiva nos contratos de execução diferida e de trato sucessivo. Nessa toada, o princípio da função social do contrato, a que se refere os arts. 421 e 608 do Código Civil, dispõe sobre o dever de limitar a autonomia contratual no intuito de evitar abusos (consequência direta da ampliação do conceito tradicional de obrigações), de modo a garantir o equilíbrio entre os contratantes e fazer com que o contrato atinja os interesses sociais através da própria eticidade. Por 267  NALIN, Paulo. A Força Obrigatória dos Contratos no Brasil: Uma Visão Contemporânea e Aplica à Luz da Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em vista dos Princípios Sociais dos Contratos, Revista Brasileira de Direito Civil, v.1, jul/set/2014, Instituto Brasileiro de Direito Civil, p. 123-124. 268  COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil: Contratos. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 42. Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

essa razão tem-se que valores éticos são fundamentais na interpretação, vez que unificam parâmetros como a boa-fé e o interesse coletivo, não prejudicando terceiros e cumprindo com o exposto no título (“pacta sunt servanda”). Enquanto os princípios tradicionais funcionam como alicerce da criação de contratos, os princípios contemporâneos prestam-se a garantir a interpretação dos acordos frente à realidade social e econômica das partes e às alterações das circunstâncias por fatores imprevisíveis e supervenientes. Nessa seara, os impactos da pandemia, enquanto crise sanitária, econômica e social, ocasionaram a mudança de regras de ordem pública e de interesse social, trazendo à tona as questões de redução dos aluguéis e sanções pelo descumprimento do título. Estes temas conectam-se profundamente com os princípios tradicionais do direito contratual ao mesmo tempo que exigem uma análise frente aos princípios modernos, e, em última análise, frente ao macroprincípio da dignidade da pessoa humana.

4. ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS Após a explanação dos princípios que regem o direito contratual, passa-se a abordar a questão da modificação de uma situação de fato ou de direito posterior à celebração do negócio jurídico. Trata-se este de um dos assuntos mais controversos 249


dentro dos contratos de locação, em razão da pandemia, mudança ou perda de empregos, diminuição de salários, entre outros, surgindo um conflito aparente entre princípios basilares.

suficientes para equilibrar financeiramente as famílias e empresas vulneráveis brasileiras, bem como pensar que estas alterações fáticas, sociais e econômicas não promoveriam alterações jurídicas.

Em 2020, com as medidas de isolamento para conter a disseminação da Covid-19, os principais setores da economia sofreram bruscas reduções. A indústria, em um primeiro momento, sofreu a maior queda, mas a área de serviços, atualmente, é a mais prejudicada com as oscilações das medidas restritivas.269 O auxílio emergencial e a permissão do saque do FGTS emergencial, neste cenário, foram essenciais para reduzir os retrocessos.270 De acordo com

A situação econômica anteriormente

o IBGE, o PIB sofreu uma redução de 4,1% e o desemprego alcançou 13,9% no quarto trimestre de 2020271, dados que demonstram a grave recessão, mas que só se mantiveram nesse patamar devido aos auxílios governamentais. Mas essas medidas de incentivo ao consumo, inicialmente pensadas para poucos meses, não se sustentam a longo prazo, tendo sofrido reduções ao longo da pandemia, que hoje já ultrapassa um ano de duração. É ilusório pensar que esses incentivos governamentais seriam

observada no país, via de regra, permitia o equilíbrio econômico e financeiro entre os direitos e obrigações contratuais avençadas. A drástica redução nas relações consumeristas exigiu de toda a sociedade uma postura proativa para a redução dos impactos econômicos, postura esta pautada pela solidariedade e repartição de prejuízos.272 4.1. A TEORIA DA BASE DO NEGÓCIO FRENTE ÀS ALTERAÇÕES CONTRATUAIS A teoria da base do negócio, conquanto tenha sido desenvolvida por outros autores alemães, pouso se alterou ou se incrementou em relação à obra pioneira de OERTMANN, que traz interessantes exemplos de figuras legalmente consagradas que poderiam ter sua fundamentação no desaparecimento ou inexistência da base negocial273. Entretanto,

dessas

contribuições,

o passo mais importante foi dado por 269  Como a pandemia ‘bagunçou’ a economia brasileira em 2020 | Economia | G1 (globo.com). Acessado em 02-052021.

250

270  Como a pandemia ‘bagunçou’ a economia brasileira em 2020 | Economia | G1 (globo.com). Acessado em 02-052021.

272  TJSP, 28ª Câmara de Direito Privado, Apelação cível n. 1013485-18.2020.8.26.0562, Relatora Berenice Marcondes Cesar, j. 30/04/2021;

271  IBGE | Portal do IBGE | IBGE. Acessado em 02-052021.

273  CORDEIRO, António Menezes. Da Boa-fé do direito civil. Coimbra: Almedina. 1997.p. 1033. 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


KARL LARENZ274, que diferenciou a base objetiva do negócio da base subjetiva, fazendo

seus

estudos

apoiando-se

diretamente em casos jurisprudenciais. O autor, ao analisar a base objetiva do negócio jurídico, definiu-a como “o conjunto de circunstâncias e estado geral das coisas cuja existência ou subsistência é objetivamente necessária para que o contrato, segundo o significado das intenções de ambos os contratantes, possa subsistir como regulação dotada de sentido. A base objetiva terá desaparecido quando a relação de equivalência entre prestação e contraprestação pressuposta no contrato tenha sido destruída de tal maneira que não se possa falar racionalmente de uma prestação, e quando (...) haja frustração da finalidade”275. Nas palavras de MENEZES CORDEIRO276, “perante uma modificação ambiental de vulto, todas as situações singulares são, em princípio, tocadas por igual. Uma decisão isolada que provoque determinada adaptação pode,

perante outras, ter consequências distorcidas (…) a solução pontual solicita que todos os problemas análogos, uma vez colocados judicialmente, terão saída similar: a revisão de um contrato deixa esperar revisões de todos os pactos semelhantes e assim por diante. Entra-se num domínio de grandes proporções, onde a regulação terá de ser genérica: de novo se solicita a intervenção do legislador. ” Por sua vez, o Professor OLIVEIRA ASCENSÃO compreende que este fenômeno faz referência ao respeito “aos contratos de execução continuada ou diferida e baseia-se essencialmente em três fatores: os termos contratuais sofrerem uma alteração anormal, em virtude de factos supervenientes, extraordinários e graves”277. Esta alteração das circunstâncias afetaria o princípio do pacta sunt servanda e estaria relacionada à cláusula rebus sic stantibus, caracterizando-se por poder ser uma alteração tanto de fato, como de Direito - pode, por exemplo, ser

274  É importante frisar que os contributos de Larenz são de extrema importância para o estudo do desenvolvimento da teoria da base do negócio, mesmo que não tenha tido tempo de influenciar o Código Civil de 1966, citado por CORDEIRO, António Menezes. Da Boa-fé do direito civil. Coimbra: Almedina. 1997.p.1047.

uma alteração legislativa (alteração das

275 LARENZ, Karl. Base del negocio jurídico y cumplimiento de los contratos. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1956. p.225.

caracteriza-se como

276  Como refere o Professor Menezes Cordeiro, in Da alteração das Circunstâncias – A concretização do art. 437º do Código Civil à luz da Jurisprudência posterior a 1974, “Separata dos Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha”, Lisboa, 1987. p. 71 a 75. Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

condições de segurança nos estaleiros de obras públicas, modificações ao nível do regime fiscal , entre outros).; ainda, uma decorrência

direta do princípio da boa-fé, na vertente 277  Cf. José Oliveira Ascensão, In Alteração das Circunstâncias e Justiça Contratual no Novo Código Civil, o artigo 437.º do Código Civil. Revista do Centro de Estudos Judiciários, Brasília, n. 25, p. 59-69, abr./jun. 2004. 251


da proteção da confiança legítima278; por fim, também é uma forma de proteção a quem confiou num determinado conjunto de circunstâncias – que formam a base do negócio279 – e fez um investimento, não sendo exigível que se mantenham as mesmas obrigações se a base do negócio se alterou. Finalmente, num plano mais amplo, a cláusula rebus sic stantibus constitui uma garantia da própria atividade econômica, visto que nenhum operador aceitaria celebrar um contrato sabendo que seria obrigado a cumprilo na íntegra, sem alterações nem compensações, independentemente das alterações supervenientes. Este aspecto é particularmente relevante nos contratos públicos, uma vez que, nestes, a Administração precisa da colaboração dos particulares para perseguir o interesse público. Assim, a alteração das circunstâncias pode determinar a modificação do contrato se restar verificada uma alteração anormal e imprevisível que cause prejuízos elevados, além da exigência do cumprimento das obrigações assumidas afetar gravemente o princípio da boa-fé e 278 Como refere MENEZES CORDEIRO. Contratos Públicos. Subsídios para a Dogmática Administrativa, com exemplo no Princípio do Equilíbrio Financeiro, in Cadernos O Direito, n.º 2, 2007. pág. 106, “a confiança não se limita à não ocorrência de graves prejuízos: ela antes assenta em todo um programa contratual, a desenrolar no tempo, e que irá proporcionar o lucro mobilizador em toda a operação”. 279  Este acaba por ser, segundo MENEZES CORDEIRO, op. cit., pág. 62, um conceito vazio, referindo-se os preceitos às “circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar”, expressão que é muito mais explicativa e clara. 252

a alteração não estar coberta pelos riscos próprios do contrato. Deve considerar-se que a exigência do cumprimento das obrigações assumidas afeta gravemente os princípios da boa-fé quando ficar definitivamente prejudicada a equivalência das prestações, que é um pressuposto de qualquer contrato. HENRIQUE ANTUNES assevera que “a alteração das circunstâncias relevante tem de ser anormal. Na doutrina, distinguese a anormalidade da imprevisibilidade, acolhendo à resolução ou modificação do contrato alterações que, embora previsíveis, sejam excepcionais, anómalas. É o caso dos cortejos reais […] Mas pode não se justificar em outros casos, nos quais a boa fé obrigaria a outra parte a aceitar que o contrato ficasse dependente de determinada circunstância […] É imprevisível a verificação de um evento, ou do seu alcance, quando, embora pudesse ser representado, em abstrato, pelas partes, a prevenção dos seus efeitos não lhes é imputável, em razão das circunstâncias contemporâneas da vinculação negocial, explicando, assim, que o bom pai de família acordasse, nos mesmos termos, o contrato”280. O risco contratual recorta negativamente a cláusula rebus sic stantibus, o que se justifica, visto que, em princípio, decorre do pacta sunt servanda 280  No recente Estudo publicado nos “Cadernos de Direito Privado”, nº47 Julho/Setembro 2014, da autoria do Professor Doutor Henrique ANTUNES In A alteração das Circunstâncias no Direito Europeu dos Contratos, sobre a anormalidade ou excepcionalidade da alteração. p.13. 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


que cada parte suporta os agravamentos resultantes de ocorrências supervenientes que afetem a sua esfera jurídica. O risco pode definir-se como um evento incerto, mas previsível (senão subsumir-se-ia na figura da alteração das circunstâncias) e que pode ser positivo ou negativo. Tratase de uma figura que, existindo em todos os contratos, é mais relevante também nos contratos de longa duração, exatamente porque, sendo a relação contratual mais duradoura, há mais hipóteses de eventos incertos que podem afetar as condições contratuais inicialmente acordadas. Há alterações que não ultrapassam o risco contratual normal que as partes assumem, a álea do negócio jurídico. Nestes casos, não se verifica a cláusula rebus sic stantibus, pela simples razão que as superveniências estão cobertas pelos riscos contratuais, não tendo uma parte de arcar com os prejuízos que essa situação acarrete para a outra.

de turbação da equivalência a ponto de o contrato não mais manifestar elementos que perfilham uma relação de troca282.

A boa-fé, extravasando até mesmo a teoria apresentada por LEHMANN281, justifica outras situações em que não necessariamente estaria presente o condicionamento do negócio. É o que se verifica, por exemplo, em uma hipótese

que os princípios contratuais modernos

281  De acordo com Antunes Varela, “pela fórmula de Lehmann, a alteração da base negocial só é invocável pela parte lesada quando a essencialidade das circunstâncias factuais que a integram se tornou, no momento da conclusão do contrato, conhecida ou cognoscível pela outra parte e quando esta, caso lhe houvesse sido proposto condicionar a eficácia do negócio à perduração de tais circunstâncias, tivesse presuntivamente aceitado tal proposta ou, segundo os princípios de boa fé, devesse têlo feito”. VARELA, João de Matos Antunes. Resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias”, in Colectânea de Jurisprudência, ano VII, tomo II, 1982. p.10.

garantir a manutenção do interesse

Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

Conforme ALMEIDA COSTA, com quem concordamos, a forma como a matéria relativa à alteração das circunstâncias foi tratada pela codificação portuguesa não se encaixa adequadamente, utilizando-se de cláusulas gerais, com recurso, ainda, ao princípio da boa-fé. Esse modelo legislativo transfere à jurisprudência e à doutrina a incumbência de delimitar contornos de aplicação da norma, da maneira mais razoável e de acordo com as vicissitudes da casuística283. 4.2. JURISPRUDÊNCIA SOBRE A ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS EM CONTRATOS DE LOCAÇÃO RESIDENCIAIS E NÃO RESIDENCIAIS No que tange os entendimentos jurisprudenciais, é interessante perceber também são invocados para a resolução de conflitos envolvendo locação não residencial. Os enunciados decorrem da necessidade de coibir eventuais abusos da parte economicamente superior e público,

situações

perfeitamente

compatíveis com questões de locação não residencial. Neste ponto, afirma PAULO 282  Cf. PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria Geral do Direito Civil. 4ªed., por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra: Coimbra Editora, 2005. p.611. 283  Cf. COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das Obrigações. 10ª ed., Coimbra: Almedina, 2006. p. 334. 253


NALIN que o Código Civil de 2002 inovou metodologicamente

ao

incorporar

o

Direito de Empresas e, por consequência, os contratos empresariais284 - o que, ao nosso ver, gera maior aproximação desses negócios jurídicos aos princípios contratuais gerais. A partir destas considerações, destacam-se trechos do recente julgado do Superior Tribunal de Justiça, que, conquanto não tenha conhecido do Recurso Especial por questões processuais285, demonstra, em seus trechos, a análise de mérito que tem sido desenvolvida nos casos de locação não residencial. Cuida-se de agravo apresentado por BLUEFIT ACADEMIAS DE GINÁSTICA E PARTICIPAÇÕES S.A contra a decisão que não admitiu seu recurso especial. O apelo nobre, fundamentado no artigo 105, inciso III, alínea “a”, da CF/88, visa reformar acórdão proferido pelo TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO, assim resumido: AGRAVO DE INSTRUMENTO 284  NALIN, Paulo. A Força Obrigatória dos Contratos no Brasil: Uma Visão Contemporânea e Aplica à Luz da Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em vista dos Princípios Sociais dos Contratos, Revista Brasileira de Direito Civil, v.1, jul/set/2014, Instituto Brasileiro de Direito Civil, p. 115-116. 285  O art. 21-E, V, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, o qual fundamentou a decisão, preceitua: “Art. 21-E. São atribuições do Presidente antes da distribuição:” V - não conhecer de recurso inadmissível, prejudicado ou que não tiver impugnado especificamente todos os fundamentos da decisão recorrida;”. 254

Interposição contra decisão que indeferiu o pedido de redução do valor locatício e liberação do imóvel dado em garantia no contrato. Impossibilidade de se conceder a tutela cautelar antecedente, relativamente à liberação do imóvel dado em garantia, diante da ausência de elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo. Redução do valor locatício. Atividades comerciais interrompidas por força da quarentena decorrente da pandemia de COVID-19, fundadas na Lei Federal nº 13.979/2020 e no Decreto Estadual nº 64.881/2020. Teoria da imprevisão. Inteligência do artigo 317, do Código Civil. Evidente impacto econômico direto na atividade exercida pela locatária em decorrência da pandemia e de seus meios de enfrentamento da emergência de saúde pública. Determinação de suspensão do pagamento de metade do aluguel, a partir do mês de abril de 2020 (vencimento dia 10.05.2020), por quatro meses, ou enquanto perdurar o fechamento compulsório das academias, sendo certo que, em caso de reabertura, o pagamento do locatício que vença no mês subsequente, será realizado de forma proporcional aos dias em que o estabelecimento for aberto, podendo, eventualmente, o Juízo de 1º grau estender a suspensão, 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


conforme as circunstâncias. Suspensão apenas em relação aos valores locatícios, não abrangidos, portanto, quaisquer outros encargos, despesas ou tributos. A suspensão de 50% do aluguel não importa na inexigibilidade da diferença, devendo o pagamento da diferença ser realizado de forma parcelada, em dez vezes, sem juros, a partir restabelecimento do Estado de normalidade (reabertura das academias), autorizada a revisão em caso de disciplina diversa pelo Legislativo (Projeto de Lei nº 936/2020 e Projeto de Lei nº 1179/2020). Decisão modificada. Agravo de instrumento parcialmente provido. (fls. 453-454) O recorrente, pela alínea “a” do permissivo constitucional, alega violação dos arts. 317, 421 e 422 do CC, no que concerne à revisão contratual (redução do valor locatício), diante dos princípios da função social e boa-fé contratuais, em sede de tutela de urgência, trazendo os seguintes argumentos: Isto porque, muito embora tenham os contratantes a liberdade de contratar, referida liberdade, necessariamente, é limitada pela função da avença entabulada pelas partes, tanto no âmbito econômico, o que primordialmente se destaca, quanto relativamente a sua função social. [...] Desta feita, na medida em que a função social é cláusula geral, Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

e, frise-se, de ordem pública, é possível a intervenção do Estado, na figura do Poder Judiciário, a fim de afastar as causas que permeiam a inobservância de referido princípio. Evidentemente, que ao tratar de função social do contrato há que se falar, necessariamente, no princípio da boa-fé dos contratantes no âmbito da relação que por eles fora criada. [...] A pretensão da Recorrente, tem amparo, portanto, em cláusulas gerais perfeitamente aplicáveis ao contexto fático em que está inserido o contrato firmado com a Recorrida. Mas não somente. Conforme expressamente mencionado pelo v. Acórdão recorrido, os contornos fáticos do caso trazido aos autos também se encaixam de forma perfeita ao quanto preconizado pela norma do artigo 317 do Código Civil, que estabelece: [...] Ou seja, à luz da melhor aplicação da Lei, não há justificativa que sustente a manutenção integral da obrigação de pagamento do aluguel de um imóvel que não vem sendo comercialmente utilizado em decorrência da pandemia de COVID-19, a qual que não tem origem, por óbvio, em qualquer ação ou omissão da Recorrente. E, tal qual como inaugura a sua fundamentação, o v. Acórdão recorrido, inicialmente, caminhou no sentido de prestigiar referidos comandos legais trazidos pelos 255


artigos 421, 422 e 317 do Código Civil. (fls. 475-478) É, no essencial, o relatório. Decido.(...) Ante o exposto, com base no art. 21-E, V, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, conheço do agravo para não conhecer do recurso especial.286 Adiante, após a concessão de uma série de liminares em primeira instância, relacionadas tanto à locação residencial quanto à comercial, tem-se visto um movimento de reforma das decisões nos órgãos colegiados, vide entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: AGRAVO DE INSTRUMENTO AÇÃO REVISIONAL DE ALUGUEL - LOCAÇÃO RESIDENCIAL REDUÇÃO TEMPORÁRIA DE ALUGUEL EM RAZÃO DAS RESTRIÇÕES ECONÔMICOFINANCEIRAS CAUSADAS PELA PANDEMIA MUNDIAL - TUTELA PROVISÓRIA DEFERIDA EM PARTE PARA SUSPENDER EM 50% O VALOR DO ALUGUEL ESTIPULADO EM CONTRATO, NO PERÍODO COMPREENDIDO ENTRE ABRIL A OUTUBRO DE 2020 - INSURGÊNCIA DO AUTOR PRETENSÃO DE REDUÇÃO DO ALUGUEL PARA R$ 200,00 ATÉ O PERÍODO POSTERIOR À VACINAÇÃO DA POPULAÇÃO CONTRA O COVID-19 286  STJ, AREsp n. 1801201, Rel. Min. Humberto Martins, j.17.02.2021. 256

– DESCABIMENTO DECISÃO MANTIDA RECURSO DESPROVIDO. O contrato de locação residencial é relação jurídica de direito privado essencialmente consensual e as consequências econômicas causadas pelo coronavírus no presente caso dependem de maiores elementos de convicção para aplicação da teoria da imprevisão expressa nos artigos 478 a 480 do Código Civil. Muito embora a tutela provisória tenha sido deferida em parte na origem, verifica-se que o contrato de locação é anterior à admissão do locatário no último emprego formal do qual foi demitido no início da pandemia e cuja remuneração alega que compunha a maior parte de sua renda mensal, o que fragiliza a alegação de desequilíbrio substancial da relação locatícia. Ademais, não há demonstração concreta de que, em razão da crise sanitária, o aluguel do imóvel em discussão sofreu desvalorização na mesma proporção da redução pretendida pelo agravante. Inexiste também prova do perigo de dano, pois não há notícia sobre qualquer notificação de mora ou de despejo por parte do locador que, vale ressaltar, é também pessoas física e certamente está passando pelos mesmos percalços econômico-financeiros. Ausentes os requisitos da tutela provisória pleiteada, a decisão deve ser mantida por força do princípio 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


“non reformatio in pejus”.287 AGRAVO DE INSTRUMENTO AÇÃO REVISIONAL - LOCAÇÃO COMERCIAL REDUÇÃO TEMPORÁRIA DE ALUGUEL E ENCARGOS CONTRATUAIS EM RAZÃO DAS RESTRIÇÕES ECONÔMICO-FINANCEIRAS CAUSADAS PELA PANDEMIA MUNDIAL - LIMINAR DEFERIDA NA ORIGEM PARA SUSPENDER AS OBRIGAÇÕES DA LOCATÁRIA INSURGÊNCIA DA LOCADORA ENCARGOS REDUZIDOS PARA 50% APENAS NO PERÍODO DE FECHAMENTO DAS ATIVIDADES COMERCIAIS RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. O contrato de locação comercial é relação jurídica de direito privado essencialmente consensual e as consequências econômicas causadas pelo coronavírus no presente caso dependem de maiores elementos de convicção para aplicação da teoria da imprevisão expressa nos artigos 478 a 480 do Código Civil. Conquanto o governo tenha adotado medidas destinadas a suspender o comércio e obrigando o fechamento dos estabelecimentos, bem como a posterior restrição de horários de funcionamento, gerando prejuízos aos locatários, é certo que a suspensão total dos valores 287  TJSP, 29ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento n. 2189324-77.2020.8.26.0000, Relator Francisco Carlos Inouye Shintate, j. 01/02/2021. Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

dos locativos e encargos também prejudica os locadores, que têm despesas com a manutenção do local, com funcionários, segurança, limpeza. Diante da necessidade de se repartir os efeitos econômicos nocivos decorrentes da pandemia, entendo prudente reduzir o aluguel e demais encargos contratuais em 50% apenas no período de fechamento das atividades comerciais determinado pelo Governo do Estado de São Paulo, devendo as demais questões envolvendo eventuais débitos e demais períodos serem discutidas no curso do processo. Recurso parcialmente provido. 288 CIVIL. LOCAÇÃO RESIDENCIAL. PRETENSÃO DE REVISÃO CONTRATUAL PARA REDUÇÃO DO ALUGUEL EM RAZÃO DA PANDEMIA DA COVID-19. INADMISSIBILIDADE. PERDA DE FONTE DE RENDAPELO LOCATÁRIO EM FUNÇÃO DAS RESTRIÇÕES POLÍTICO-ADMINISTRATIVAS EM DECORRÊNCIA DA PANDEMIA QUE NÃO ENSEJA A APLICAÇÃO DOS ARTS. 317 E 478 DO CÓDIGO CIVIL. AUSÊNCIA DE DESPROPORÇÃO ENTRE O VALOR DA PRESTAÇÃO DEVIDA PELO LOCATÁRIO E O DO MOMENTO DA SUA EXECUÇÃO. INOCORRÊNCIA DE QUALQUER VANTAGEM AO LOCADOR. 288  TJSP, 29ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento n. 2029091-72.2021.8.26.0000, Relator Francisco Carlos Inouye Shintate, j. 28/04/2021. 257


ONEROSIDADE EXCESSIVA INEXISTENTE. INAPLICÁVEL A TEORIA DA IMPREVISÃO. SENTENÇA MANTIDA. 1. A situação vivenciada pelas sociedades em todo o mundo, em razão da pandemia da Covid-19, não cuida de força maior ou caso fortuito, pois o fundamento do pedido do ora apelante no bojo da presente ação de revisão de contrato de aluguel não é a disseminação do novo Coronavírus, mas sim o conjunto de decisões político-administrativas de governantes, que, em maior ou menor extensão, adotaram medidas restritivas das atividades econômicas. Tanto é que, nas últimas pandemias enfrentadas pelo país, não foram adotadas medidas semelhantes de “quarentena”, de “lockdown”, de “isolamento horizontal”, dentre outras. 2. Não se verifica a aplicabilidade dos arts. 317, 478 e 479 à situação dos autos, em que o autor pleiteia a revisão do contrato de locação residencial por ter perdido sua fonte de renda em função da pandemia da Covid-19, uma vez que a perda da fonte de renda não é evento extraordinário e imprevisível, e, ademais, não se verifica a existência de desproporção entre o valor da prestação devida pelo locatário e o do momento da sua execução, e muito menos se verifica a ocorrência de qualquer vantagem ao locador, o que afasta a existência de onerosidade excessiva 258

ou a aplicabilidade da teoria da imprevisão. 3. Recurso improvido.289 Estas decisões parecem demonstrar uma resistência dos tribunais quanto à aplicação da Teoria da Imprevisão nos eventos causados pela pandemia. Note-se que, como a excessiva onerosidade requer o enriquecimento sem causa de uma das partes em detrimento da outra (como explicado anteriormente), não restou deferida a revisão tal como pleiteada pelos inquilinos em situações em que o locador também se encontra em prejuízo com os fatos imprevisíveis supervenientes. Esta posição, por um lado, está em consonância com o ideal de cooperatividade, anteriormente mencionado. Por outro, a simples manutenção dos contratos como anteriormente acordados, sem qualquer tipo de ajuste das obrigações pactuadas, pode contribuir para o agravamento da situação econômica dos locatários. Em relação ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, também se observa uma análise cautelosa das circunstâncias para justificar a intervenção excepcional estatal: Agravo de instrumento. Ação de revisão de aluguéis. Locação de imóvel comercial. Alegada onerosidade excessiva. Restrições impostas pelo poder público. Redução dos alugueres para 50% do valor contratado, por acordo 289  TJSP, 35ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível n. 1005033-24.2020.8.26.0625, Relator Artur Marques, j. 02.03.2021. 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


entre as partes, pelo período de 6 meses. Decisão agravada que fixou aluguéis provisórios de 80% do valor contratado. Pretensão de majoração do desconto para 50% enquanto durar a pandemia e restrições impostas pelo poder público. Impossibilidade. Ausência de prova acerca da duração das medidas de restrição sofridas, bem como do seu impacto no fluxo financeiro da agravante após a cessação dos descontos concedidos pelo locador. Necessidade de dilação probatória. Existência de saldo em conta corrente capaz de fazer frente aos pagamentos nos prazos pactuados. Negado provimento ao recurso.290 Agravos de instrumento. Julgamento conjunto. Ação de rescisão contratual c/c entrega das chaves e revisão de contrato de locação comercial em razão dos efeitos da pandemia da Covid-19. Restaurante que ocupa duas lojas em bairro da zona sul do Rio de Janeiro. Decisão que deferiu a tutela provisória de urgência pleiteada para reduzir o valor do aluguel bruto mensal em 50% a contar da data de 19/03/2020, data de fechamento do comércio, até a data de distribuição da ação, 03/07/2020, e autorizar a entrega das chaves da Loja A, objeto do contrato. É certo que a pandemia, como evento externo, irresistível e 290  TJRJ, Agravo de Instrumento n. 001359192.2021.8.19.0000, Rel. Des. Marcos Alcino de Azevedo Torres j. 30.4.2021. Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

imprevisível, não deve ser tomada em abstrato para a partir daí irradiar seus efeitos para os contratos em geral, sem as considerações peculiares de cada situação concreta. O seu enquadramento como força maior depende da verificação da objetiva possibilidade de adimplemento da prestação. A adoção de medidas governamentais para evitar aglomerações impôs aos bares e restaurantes a autorização de funcionamento apenas regime de entrega em domicílio ou sistema “drive thru”. Tal situação se colocou de forma passageira, mas alterou, aparentemente, no período, a base objetiva do negócio surtindo efeitos para ambas as partes, a atrair, à primeira vista, o disposto nos arts. 317 e 421-A do Código Civil. É razoável, neste estágio processual, a redução em 50% do valor do aluguel bruto para repartir o prejuízo e equilibrar as partes contratantes, vez que só a instrução probatória possibilitará aferir o valor justo para o aluguel no período de restrição das atividades da locatária. É faculdade do locatário propor a ação consignatória com a finalidade de devolver o imóvel, representada pela entrega das chaves, sendo dever seu devolvê-lo no estado em que o recebeu, a teor do art. 23, III, da Lei nº 8.245/91. Possibilidade de o locador perquirir as perdas e danos e/ou multa rescisória em ação 259


própria. Restaurante que continua explorando o fundo de comércio do local, o que, aparentemente, neste caso concreto, afasta a alegada força maior que tornaria inexigível a multa. Aplicação da Súmula nº 59 do TJRJ. RECURSOS DESPROVIDOS.291 AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXAME DA INSURGÊNCIA CONTRA DECISÃO QUE, EM AÇÃO ORDINÁRIA COM PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA DE URGÊNCIA REQUERIDA EM CARÁTER ANTECEDENTE, PROPOSTA PELA PARTE AGRAVANTE EM FACE DO AGRAVADO, NEGOU A TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA, CONSISTENTE NA DETERMINAÇÃO DA REDUÇÃO DE 90% (NOVENTA POR CENTO) SOBRE O PAGAMENTO DO ALUGUEL FIRMADO NO CONTRATO DE LOCAÇÃO, ATÉ QUE SE CESSEM OS PRINCIPAIS IMPACTOS ECONÔMICOS OCASIONADOS PELO COVID-19. ASSISTE RAZÃO AO AGRAVANTE. Da análise dos autos de origem, estão presentes os pressupostos que autorizam a medida antecipatória pleiteada, porquanto ficou demonstrada a verossimilhança das alegações autorais e o perigo da demora. É notório que a enfermidade 291  TJRJ, Agravo de Instrumento n. 004568445.2020.8.19.0000, Rel. Des. Maria Luiza de Freitas Carvalho, j. 27.1.2021. 260

epidêmica que atinge o Município do Rio de Janeiro é de espectro mundial e impõe reflexos indesejados e mesmo

imprevistos

às

relações

sociais e, em especial, ao ambiente empresarial/econômico como um todo, cujos desfechos requerem especial atenção para que sejam minimizados os resultados de trágico cenário. A locação vista nestes autos é comercial, ou seja, está diretamente vinculada à atividade desempenhada no

endereço

do

imóvel.

Pois

bem, por meio do Decreto Rio nº 47.282 de 21 de março de 2020, o Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro determinou a adoção de medidas para enfrentamento da pandemia do novo Corona vírus - COVID - 19, dentre as quais, a suspensão dos estabelecimentos que pratiquem o comércio de bens, o que é o caso da Agravante, a qual comercializa a revelação de fotos e venda de equipamentos de som e imagem. Do exame da questão posta, observase com facilidade que a paridade e o equilíbrio do contrato não se mostram mais presentes. Em outras palavras, ocorreu fato imprevisível e que não há como as partes controlarem. Tal

cenário

impõe

reconhecer

que, sem faturamento de um lado, não há a garantia de recebimento

36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


do aluguel pela outra parte. Não

contrato, durante a pandemia e até

há interesse social, tampouco às

um mês após a data de 02/07/2020,

partes

reabertura do comércio, ficando

contratantes,

locador

e

locatário, em ver o estabelecimento

mantidos

comercial fechado e a extinção do

locatícios.292

contrato de locação submeter a loja a um período indeterminado sem qualquer atividade comercial de fomento econômico e de convívio comunitário ou até ficar exposta a longo período sem qualquer aluguel a ser recebido. De acordo com levantamento da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), publicado pelo Jornal do Comércio, 75 mil estabelecimentos comerciais com vínculos empregatícios fecharam as portas no Brasil em 2020, primeiro ano da pandemia da Covid-19, ademais,

as

micro

e

pequenas

empresas responderam por 98,8% dos pontos comerciais fechados. Por outro lado, em livre consulta à Rede Mundial de Computadores, vê-se que a Agravante/Locatária retornou ao

empreendimento

comercial

e mantém em funcionamento as atividades desenvolvidas no imóvel locado. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO, para confirmar e deferir a tutela antecipada recursal requerida, para fixar o aluguel do imóvel locado em 10% do valor que consta no

Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

Destoante elencadas, em

os

demais

das

observa-se

primeiro

grau,

encargos

decisões decisão buscou

acima que, ajustar

desequilíbrios econômico-financeiros pela alteração da base de cálculo do aluguel em caráter liminar. Essa decisão não foi alterada no julgamento do agravo interno: “Cuida-se de agravo interno interposto com base no art. 1.021 do Código de Processo Civil, contra a r. decisão de fls. 34/35 que deferiu a tutela recursal de urgência, determinando que o 13º aluguel seja calculado com base na média dos locativos pagos durante o ano de 2020, Estabeleceu ainda a substituição do índice de correção monetária, alterando de IGP-M pelo IPCA. (...) NEGO PROVIMENTO ao agravo interno.”293 4.3. LEIS EDITADAS EM FACE DA PANDEMIA Diante disso, nota-se que ambas as partes (locador e locatário) sofreram 292  TJRJ, Agravo de Instrumento n. 002566263.2020.8.19.0000, Min. Rel. José Acir Lessa Giordani, j. 22.4.2021. 293  TJSP, 31ª Câmara de Direito Privado, Agravo Interno Cível 2298701-80.2020.8.26.0000, Relatora Rosangela Telles, j. 09.03.2021. 261


com as medidas adotadas pelos Poderes Públicos no combate ao Covid-19, este pela redução na procura por imóveis resultante da diminuição do poder aquisitivo populacional, e aquele pelo fechamento ou restrição impostos à sua prática comercial. Isso pois o estado de calamidade pública forçou o governo federal e os governos estaduais e municipais a restringirem aglomerações em espaços públicos, causando impacto nas relações econômicas.294 Desse cenário surge a Lei nº 14.010/2020, que instituiu normas de caráter transitório e emergencial para a regulação de relações jurídicas de Direito Privado em virtude da pandemia do coronavírus. Assim, a referida lei foi editada no intuito de reequilibrar as relações impactadas pela alteração inicial da condição econômica das partes contratantes295, tal qual dispõe o princípio do equilíbrio econômico-financeiro, sendo perceptível a predominância da alteridade negocial e do valor da pessoa humana, perspectivas trazidas pelo Código Civil de 2002 e que hoje fundamentam o ordenamento jurídico.296 A Lei, em seu artigo 9º, estabelece: “Art. 9º Não se concederá liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações 294  https://www.politize.com.br/alugueis-e-covid-19/. Acessado em 02-05-21. 295  https://www.politize.com.br/alugueis-e-covid-19/. Acessado em 02-05-21. 296  NALIN, Paulo. A Força Obrigatória dos Contratos no Brasil: Uma Visão Contemporânea e Aplica à Luz da Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em vista dos Princípios Sociais dos Contratos, Revista Brasileira de Direito Civil, v.1, jul/set/2014, p. 113. 262

de despejo, a que se refere o art. 59, § 1º, incisos I, II, V, VII, VIII e IX, da Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, até 30 de outubro de 2020” 297. Embora seu efeito esteja restrito até 30/10/2020, fato é que a medida buscou ao máximo correlacionar os princípios contratuais ao chamado mínimo existencial, garantido, nas palavras de ALDO ARANHA DE CASTRO e YNES DA SILVA FÉLIX298 preservar a integridade de cada indivíduo. No que se refere às mudanças de circunstâncias necessárias para a alteração do título, ficou estabelecido pela Lei que as consequências imprevisíveis da pandemia da Covid-19 nas execuções dos contratos não terão efeitos jurídicos retroativos (art. 6º da lei) - ou seja, em período anterior à 20/03/2020. Além da delimitação temporal para a alegação de imprevisibilidade, o artigo 7º da Lei nº 14.010/2020 afirmou que, para fins de finalização ou revisão contratual, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou a substituição do padrão monetário não são considerados fatos imprevisíveis, e, sendo assim, à luz dos arts. 317, 478, 479 e 480, não podem ser invocados para a obtenção de vantagens frente ao credor. Estes institutos relacionam-se com a Teoria da Imprevisão (arts. 478 a 480 do 297  Lei nº 14.010, de 10 de junho de 2020. 298  CASTRO e FÉLIX, Aldo Aranha e Ynes da Silva. Justiça e equidade como elementos basilares para o desenvolvimento de meios adequados à concretização do acesso à justiça, Revista Cidadania e Acesso à Justiça, p. 12, Disponível em indexlaw.org/index.php/acessoajustica/ article/view/5999. 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


Código Civil de 2002), profundamente conectada com o princípio da boa-fé objetiva e aplicável quando se pretende a flexibilização do pacta sunt servanda, buscando reequilíbrio econômicofinanceiro e cumprimento da função social do contrato. Por essa teoria, como explica PABLO STOLZE GAGLIANO E RODOLFO PAMPLONA FILHO, temse o reconhecimento de que alguns acontecimentos novos e imprevisíveis que alteram as condições de execução do contrato não podem ser imputáveis às partes, justificando resolução ou revisão.299 Esses acontecimentos se configuram quando há excessiva onerosidade, caracterizada pelo enriquecimento sem causa de uma das partes em detrimento da outra.300 A Lei ressalva o aumento da inflação, a variação cambial e a desvalorização ou a substituição do padrão monetário, nesse sentido, pois estas situações não cumprem o requisito de excessiva onerosidade, posto que, se consideradas por si só, atingem a todos de forma uniforme. Há, ainda, o Projeto de Lei 34/21, que, de forma complementar à Lei supracitada, visa estabelecer uma espécie de “ônus de renegociação” para locações não residenciais. Se aprovado, o Projeto

renegociação

dos

aluguéis

atrasados

antes de recorrer à Justiça. Para que essa obrigação se configure, o contrato deve ter sido assinado até 20 de março de

2020,

quando

reconheceu-se

o

estado de calamidade pública, e deve o inadimplemento decorrer das medidas de combate à pandemia301 - critérios que, assim como na Lei de 2020, relacionam-se com a Teoria da Imprevisão. A renegociação ocorreria a partir da apresentação de uma proposta por parte do inquilino e a apreciação do locador no prazo de 15 dias. Diante o silêncio do locador após 15 dias ou o vencimento do prazo de 30 dias para a renegociação, ficaria reservado ao inquilino o direito de pagar aluguel provisório equivalente a 80% do valor original e, dentro de dois meses, instaurar a ação revisional. 302 Interessante perceber como o Projeto de Lei, para além de gerar a obrigação de renegociar, prevê também uma proteção extra ao inquilino, que, diante o silêncio do locador, adquire direito de redução no valor do aluguel. Protege-se, assim, a parte mais vulnerável da relação, medida que se conecta com os princípios modernos de boa-fé objetiva, equilíbrio econômico-

obrigará os proprietários e inquilinos de imóveis não residenciais a realizar uma 299  GAGLIANO e FILHO, Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona. Novo Curso de Direito Civil: Contratos: Teoria Geral, v.4, t.1, ed. 13, versão digital. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 363. 300  Ibid. p. 370. Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

301  Agência Câmara de Notícias: Projeto define regras para negociação de aluguéis não residenciais atrasados durante pandemia - Notícias - Portal da Câmara dos Deputados (camara.leg.br). Acessado em 08-05-2021. 302  Agência Câmara de Notícias: Projeto define regras para negociação de aluguéis não residenciais atrasados durante pandemia - Notícias - Portal da Câmara dos Deputados (camara.leg.br). Acessado em 08-05-2021. 263


financeiro, função social do contrato e, em última instância, dignidade humana. O Projeto de Lei 34/21 está sendo analisado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.303

5. A CLÁUSULA REBUS SIC STANDIBUS – UMA RESSALVA Todavia, concordamos que não é qualquer acréscimo de onerosidade, provocado por fatos supervenientes extraordinários, que implica a intervenção deste instituto. É incorreta uma leitura literal da “cláusula” rebus sic stantibus sob a qual sustente-se que qualquer modificação da base do negócio ou qualquer onerosidade daí derivada confere a faculdade de resolver ou modificar o negócio; afinal, parte-se da premissa que nenhum princípio jurídico é absoluto. Não o é mesmo um princípio com uma justificação material tão sólida como o princípio rebus sic stantibus. Terá pelo menos de sofrer a concorrência de outros princípios, igualmente indispensáveis para a ordem social e que exigem uma conciliação304. 303  PL 34/2021 — Portal da Câmara dos Deputados Portal da Câmara dos Deputados (camara.leg.br). Acessado em 26-06-2021. 304  Cf. José de Oliveira Ascensão in: Alteração das Circunstâncias e Justiça Contratual no novo Código Civil. Que brilhantemente conclui: “A ordem jurídica traduz exuberantemente esta constrição: só admite intervenções fundadas na desproporção ou injustiça do conteúdo em casos em que o desequilíbrio seja manifesto. Embora as fórmulas sejam diversas, consoante os institutos em causa, o núcleo está claramente definido: – art. 157 (lesão): manifestamente excessiva – art. 187 (“abuso do direito”): excede manifestamente – art. 317 (prestação reduzida pela inflação): desproporção manifesta – art. 413 (cláusula 264

OLIVEIRA ASCENSÃO305, neste tópico, faz ressalva interessante, apontando que, mesmo em uma eventual alteração desencadeada por uma guerra, atingindo as matérias-primas necessárias cotações exorbitantes, quem estivesse em mora não poderia prevalecer-se da alteração das circunstâncias; se mesmo neste drástico exemplo não caberia, sequer podemos imaginar no caso de uma crise econômica.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS A ordem jurídica brasileira, ao salvaguardar as conjunturas de quebra da base subjetiva, coloca a imprevisibilidade como elemento inafastável para a penal): manifestamente excessiva, perante o art. 478, que é aquele que nos interessa? A lei fala em prestação “excessivamente onerosa, com extrema vantagem” para a outra parte. Diretamente, não se diz que a desproporção deve ser manifesta. A onerosidade excessiva não equivale necessariamente a onerosidade manifesta”. Retirado da p.24 do artigo Alteração das Circunstâncias e Justiça Contratual no Novo Código Civil. Fonte: http://www. fd.ulisboa.pt/wp-content/uploads/2014/12/AscensaoJose-Oliveira-ALTERACAO-DAS-CIRCUNSTANCIAS-EJUSTICA-CONTRATUAL-NO-NOVO-CODIGO-CIVIL.pdf. Acessado em 24/03/2021. 305  Cf. José de Oliveira Ascensão in: Alteração das Circunstâncias e Justiça Contratual no novo Código Civil. Que assevera “De outra maneira, a exclusão do efeito da alteração das circunstâncias só por haver mora seria injusta, por ser desproporcionada. Mas a questão complica-se se a relacionarmos com outra, em que não vamos entrar: a do possível caráter retroativo das consequências da alteração das circunstâncias. Apenas observamos que a prestação ou mora deve estar sujeita ao mesmo regime das prestações anteriormente satisfeitas e que talvez esse deva ser mais um aspecto que fica dependente da apreciação equitativa das circunstâncias contratuais”. Conferência proferida na “II Jornada de Direito Civil”, realizada pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, de 17 a 25 de novembro de 2003, nos auditórios do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, Superior Tribunal de Justiça e Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Anais do evento p. 66. 36ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


configuração do instituto e recorre à boa-fé como elemento auxiliador na configuração das situações objetivas que devem ser merecedoras de proteção. Diante do atual contexto em que se insere o Direito, importa repensar o tema da alteração de circunstâncias. A busca por mecanismos que privilegiem o revisionismo e a manutenção do contrato deve prevalecer sobre juízos que propugnem, preambularmente, pela resolução. Essa prática deve ser sempre concretizada, tanto no âmbito do direito positivo, como no campo das disposições contratuais. Em paralelo, não deveriam sobrelevar os juízos que se pautem no dogma da intangibilidade contratual. As avenças, hoje, carecem ser compreendidas como instrumentos dotados de caráter dinâmico, imprescindindo de serem adaptadas às novas vicissitudes que são originadas por esta fase. Trabalhando com o instituto da alteração das circunstâncias, despois de decorrer pelo capítulo dedicado aos princípios contratuais fundamentais, é surpreendente como estamos já longe do absolutismo do pacta sunt servanda, recolocando a ideia de “justo” no centro das atenções das cláusulas contratuais dos contratos duradouros. Isto ocorre pois, durante a execução, estes podem sofrer um dano a sua base, e, se isto acontecer, bem como se o devedor não estiver em mora, pode haver uma modificação ou resolução contratual para manter o poder auto vinculativo da vontade e da autonomia privada, tal como no momento de formalização inicial de um contrato. Revista Científica Virtual - 36ª EDIÇÃO 2021

Isto, contudo, não abrangerá os riscos que podem estar previstos no contrato. O que se procura manter, em realidade, é a proporção de equilíbrio que as partes estabeleceram entre si, e isso deve ser determinando, inclusive, para preservar o que foi estipulado, acordado e executado entre contratantes e contraentes. Até mesmo onde há uma liberalidade ou desequilíbrio livre e conscientemente aceito, continua a ser essa proporção a base da vinculação entre as partes. Nesse cenário, se houver alteração das circunstâncias essenciais à preservação do negócio, será necessária deferência ao princípio tradicional rebus sic stantibus. Havendo alteração das circunstâncias que afetaram a base negocial, deverá haver a recomposição do equilíbrio substancial que as partes pretenderam, não sendo cabível insistir em cláusulas que se modificaram com o tempo, durante a execução do contrato, e que não são mais aquelas do momento inicial da sua vontade. Este perseguido equilíbrio consiste, portanto, em preservar a manifestação concreta da vontade, a autonomia consentida, durante a formalização contratual, e não impor o cumprimento quase cego e absoluto das partes ao contrato, que foi modificado pelas alterações de tempo e espaço e que comprometeram a sua estrutura. Nos casos em que este realinhamento se tornar-se impossível, fática ou legalmente, 265


ter-se-ão as partes que aceitar a resolução do contrato. Note-se, contudo, que os tribunais ainda não traçaram um entendimento claro sobre a questão dos contratos de locação na pandemia, sendo perceptível um movimento pendular entre liminares deferidas em primeira instância e posteriores revogações, aplicações da Teoria da Imprevisão e seu afastamento, entre outros embates. Nesse sentido, a legislação específica sobre o assunto, que tem se desenvolvido em 2020 e 2021, pode auxiliar na fixação de teses mais concretas, fornecendo soluções jurídicas direcionadas especificamente ao cenário aqui analisado.

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SÃO PAULO

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