Beatriz Parga Tradução Téo Lorent
Beatriz Parga São2021Paulo MárquezGabrielGarcíaAprofessoraeoNobel TéoTraduçãoLorent TRGD EDITORIAL
© Texto 2015 Beatriz Parga Edição original © 2015 Editorial La Oveja Negra Ltda. Título original: La maestra y el Nobel: Gabriel García Márquez y su descubrimiento del maravilloso mundo de las letras Tradução: Téo Lorent Capa, projeto gráfico e diagramação: Edna Batista Revisão: Abordagem Editorial Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Parga,P257p Beatriz A professora e o Nobel: Gabriel García Márquez/Beatriz Parga; tradução de Téo Lorent. –– 1. ed. São Paulo : TRGD, 2021. 224 ISBN:p.978-85-54179-04-5 Título original: La maestra y el Nobel: Gabriel García Márquez y su descubrimiento del maravilloso mundo de las letras 1. Literatura colombiana 2. García Márquez, Gabriel, - 1927-2014Infância e juventude 3. Fergusson, Rosa I. Título II. Lorent, Téo 18-0659 CDD Co863 1ª Edição - 2021 TRGD Avenida Antônio Louzada Antunes, 380 – sala 02 São Miguel Paulista / São Paulo - SP CEP: 08061-000
Rosa Fergusson
“Quando Gabito ler isso, se lembrará, quem sabe até com saudade, daquela fase feliz de sua vida, sua Montessori, onde sua professora o ensinou com tanta dedicação e onde ele aprendeu e se destacou como o melhor aluno.”
Gabriel García Márquez (O cheiro da goiaba, Conversas com Plinio Apuleyo Mendoza)
“Quem me ensinou a ler era uma professora muito bela, muito graciosa, muito inteligente, que me convenceu do prazer de ir à escola somente para vê-la.”
Obrigada por ter me ensinado que os sonhos não têm idade.
Ao Dave e Luis, e aos meus queridos netos William, Jackson e Joshua Barrows e Sofía e Mateo Fajardo.
À Rosa Fergusson, a inesquecível professora de Gabriel García Márquez.
Obrigada por iluminarem minha vida com o seu amor, sua sabedoria e seu sorriso.
À Beatriz Carrizosa de Parga, minha mãe e guia da minha juventude.
Agradecimentos
Obrigada por ter me ensinado a perder o medo e confiar emAosDeus.meus filhos Carolina e Sylvia Bayón e David Spiegel.
Ao Gabo, obrigada pela sua confiança.
Sumário I Um universo extraordinário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 II A professora é tudo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 III O reencontro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31 IV O primeiro amor do Nobel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41 V Entre realidades e mitos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57 VI Um povo de lenda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69 VII As espumas do rio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77 VIII Tanto dinheiro que o queimavam . . . . . . . . . . . . . . . . . 87 IX Entre ciganos e xamãs . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97
X O coronel perde uma batalha . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107 XI O coração da professora . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131 XII A classe: uma janela para o universo . . . . . . . . . . . . . . 141 XIII A professora se apaixona . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153 XIV O prêmio Nobel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169 XV Um amor impossível . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 175 XVI Reencontro na “Terra do Esquecimento” . . . . . . . . . . . . 179 XVII O grande segredo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185 EPÍLOGO Como nasceu este livro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191 SOBRE A PROFESSORA E O NOBEL - GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ . . 209 Quem foram Gabriel García Márquez e Rosa Fergusson? . . . 209 A autora e suas motivações para escrever a obra . . . . . . . 211 Literatura e gênero literário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 212
F3f I
— Papalelo, já está vindo... A terra está se mexendo! Olhe os meus pés! Consegue sentir também? — exclamou o menino.
Omundo parecia retumbar como se uma manada de elefantes se aproximasse fazendo a terra tremer debaixo das botinhas do menino e dos enormes sapatos lustrados do seu avô, um velho alto com uma boina xadrez e seu terno de linho branco.
— Sim, Gabito, estou sentindo... Mas vou sentir mais se desta vez não vier o que espero há tanto tempo — respon deu o ancião olhando ao longe, onde o gigante de metal já antecipava a sua aproximação em meio a uma fumarola es pessa e cinza. O menino, de cinco anos, saía diariamente com o avô para esperar o ruidoso gigante que sempre chegava carregado de surpresas, mas que nunca trazia o que tanto o venerável an cião esperava. Mas, no momento menos aguardado, chegaria pelo correio sua tão sonhada aposentadoria de veterano da Guerra dos Mil Dias. Um extraordináriouniverso
— Mais forasteiros... Ninguém os convidou, mas continuam chegando — queixou-se o idoso visivelmente incomodado. O menino, por outro lado, parecia fascinado observando a variedade de personagens que desciam dos vagões: executivos americanos com ternos de linho branco impecáveis, aventurei ros europeus em busca de fortuna, ciganos barulhentos vesti dos com roupas coloridas, além de uma permanente caravana de comerciantes turcos com sua preciosa carga de finíssimas sedas, tecidos de linho bordados e objetos exóticos.
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— Não reclame, minha filha. Aqui pelo menos tem trabalho e dinheiro. Em meio à crise econômica que se aproxima no mundo, antes de sair de Nova Iorque, soube do fechamento de outro banco — explicou o homem, um norte-americano robus to, de bigode grosso e chapéu panamá. Tinha uma presença imponente, com seu terno de abotoamento duplo e gravata.
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— Que viagem longa, papai. Pensei que nunca chegaríamos... Não sei porque escolheu vir para este lugar tão longe — protes tou uma jovem norte-americana de cabelo ruivo que vestia uma roupa demasiadamente pesada para o clima quente.
Por fim o trem apareceu, imenso, colossal, envolto em uma espessa cortina de fumaça. À medida que foi se aproximando, todos os espaços ficaram impregnados pelo penetrante cheiro de óleo queimado. Bufava como um touro furioso antes de fa zer sua presença ser notada com um potente apito. Minutos depois se deteve com um estridente chiado metálico antes de surgir pelas portas uma multidão colorida que parecia deso rientada e ansiosa para explorar o novo mundo.
— Logo se sentirão em casa — interveio um turco com cara de conhecedor da região. — Além do mais, essa distância se converteu no melhor aliado dos meus negócios. Aqui eu vendo desde louças inglesas até camisas das Filipinas e perfumes fran ceses. Não se preocupem, vão se sentir muito bem por aqui, e logo vocês também serão meus clientes — previu, com um sorriso de boas-vindas. O avô e seu neto permaneciam parados, de um lado da es tação, observando com curiosidade os passageiros do trem. De repente, o menino parece ter vislumbrado algo especial.
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O homem verificou a correspondência que levava nas mãos. Eram mais de cinquenta envelopes, de tamanhos e cores dife rentes. Algumas com aroma de rosas, outras escritas com le tras irregulares. O carteiro sabia que não era o que o idoso es perava, e sua resposta foi a de sempre. — Sinto muito, coronel. Não tenho nada para o senhor.
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No peito sobressaía a corrente do seu relógio de bolso e, sobre o olho direito, levava um monóculo com armação de ouro.
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O menino havia pressentido essa resposta a caminho da estação, quando pararam na frente da janela da mulher mais bonita que havia visto em sua vida. Ela se chamava Rosa, mo rava no quarteirão da frente da casa de seus avós e, na segun da-feira seguinte, seria a sua professora. Além de ser bela, a
— Papalelo, olhe. Ali vem o carteiro — disse com uma serie dade pouco comum para um menino da sua idade. — Tem algo para mim? — perguntou o velho.
Atrás do norte-americano desceram vários europeus com cara de cansaço.
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— Já estou vendo, Gabito. Mas fale mais baixo — disse o velho, olhando com desconfiança para um grupo de acrobatas, trapezistas, contorcionistas, bonequeiros e palhaços que des ciam do trem com grande fanfarra. Gabito sorria ao ver com curiosidade um idoso magrelo que puxava com uma corda um
12 | Beatriz Parga jovem vizinha visitava com frequência suas tias e, durante as tardes, parecia desafiar os fantasmas quando lhe contava con tos. Todo dia, a caminho da estação, Gabito, o neto mais adorado do coronel, olhava furtivamente à janela esperando ver a jovem que se parecia com as princesas dos contos que suas tias lhe contavam.
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O velho observava a curiosidade do menino, mas nunca dis se nada. Preferia se concentrar na narração das histórias sobre o seu glorioso passado na guerra, na qual lhe deram o posto de coronel por sua valentia. Em silêncio, o menino escutava atentamente enquanto desenhava em sua mente as imagens desse herói que era o seu avô. Todas as manhãs, antes do meio-dia, o velho e o menino saíam para caminhar juntos. Há muito tempo que cobriam suas cabeças com boinas xadrezes, que combina vam instantes antes de seu passeio matutino. Algumas pessoas no povoado se perguntavam aonde se dirigiam toda manhã. Somente o menino e o velho sabiam: a tão sonhada aposenta doria do velho chegaria um dia. O sol começava a se colocar a pino, quando, ao olhar para o trem, o menino viu algo que lhe deixou fascinado.
— Papalelo, olhe... Os ciganos! Os ciganos voltaram! — ex clamou com emoção.
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— Sim, Papalelo, vamos. Hoje é um dia muito importante! Está ficando tarde, vamos ver a minha professora! ***
— Que barbaridade! Continua chegando gente no trem. Logo não vai caber nem um alfinete neste povoado — disse Isa bel com voz de preocupada e apressando suas irmãs para sair e cumprir um grande compromisso na praça principal.
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Eram tempos de crise econômica mundial e, enquanto fal tava trabalho em todas as partes, em contrapartida, nessa po pulação perdida no mapa o dinheiro abundava com a bonança dos cultivos e exportação de banana da United Fruit Company,
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— Gabito, não vamos perder mais tempo... Lembre-se que havia me dito que hoje era um dia muito importante — disse o coronel, fazendo um ar de cumplicidade com o seu neto ao piscar o único olho que enxergava detrás das grossas lentes escuras que usava. Gabito parece ter voltado à realidade.
tigre velho e desdentado; outros homens exibiam dois maca cos e um bezerro com duas cabeças. — Veja, Papalelo, olhe aquilo!
Rosa Fergusson se debruçou na janela de sua casa, sobre a avenida principal de Aracataca. Instantes depois, suas duas ir mãs, Isabel e Altagracia, se uniram a ela para ver os recém-che gados passarem. De certa forma, as três jovens costumavam espantar a monotonia com o descobrimento de novos rostos entre os forasteiros que chegavam todos os dias de trem.
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Já haviam dito mil vezes à Rosa que ela era a mulher mais lin da do povoado. Aracataca era o nome real dessa população vi zinha ao mar do Caribe, com telhados de zinco que brilhavam debaixo de infinitos céus azuis e que soavam como tambores quando apareciam as chuvas descomunais. Esse era um lugar
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14 | Beatriz Parga empresa norte-americana que havia chegado à região no início do século XX, transformando o modesto povoado em uma população poderosa.
fantástico em que à noite os espíritos despertavam e sob a luz da lua desfilavam as sombras das bruxas e fantasmas que pareciam ganhar vida própria com o vaivém das cadeiras de balanço, onde os habitantes do povoado se sentavam para compartilhar com seus vizinhos histórias de aparições do além, duendes e seres arrepiantes. Mas enquanto a profes sora desfrutava das histórias extraordinárias que cobriam a noite com um manto de mistério, esses fantasmas impediam Gabito de conciliar o sono quando tentava se acomodar em sua velha cama de madeira rangente.
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Rosa tinha visto esse povoado crescer, e conhecia a maio ria dos seus habitantes. Bonita e popular em toda a região, transbordava felicidade; seu cabelo castanho caía em ondas
O povo ficava envolto em um manto de silêncio até a che gada do sol, quando todos despertavam com o canto dos galos e o aroma de café recém-coado. Aracataca voltava a ganhar vida e parecia regressar à normalidade até que, antes do meio -dia, começava a trepidar a terra e no meio de um estrondoso estampido, como em um passe de mágica, surgia a enorme locomotiva bufando sobre os trilhos do trem.
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sobre as costas e sua figura esbelta se realçava em um vesti do de seda branco que ela mesma havia confeccionado com a ajuda de sua mãe e suas duas irmãs. Todas estavam usando o melhor que tinham em seus armários e até estreando saltos -altos. Vestidas como para uma grande ocasião, a mãe e suas três filhas pareciam modelos de um cartão-postal parisiense quando, pouco após o meio-dia, saíram à rua acompanhadas pelo pai, Dom Pedro Fergusson Christoffel, e seu irmão Ma nuel, um adolescente sério e tranquilo trajando terno e grava ta, tal como exigia a importância do momento. Faltavam poucos minutos para o acontecimento que coloca ra todos os habitantes do povoado em alvoroço, movendo-se rapidamente para assistir à cerimônia de coroação da Rainha do Carnaval. Em questão de minutos a praça principal foi fican do repleta de homens, mulheres e crianças que iam rodeando o palanque onde já se encontrava o prefeito, um homem alto e delgado, de bigodes retos, cabelo engomado e sobrancelhas angulares, que saudava à direita e à esquerda com sua habili dade de político experiente. O suor escorria pelas testas dos presentes apesar da abundância de sombrinhas de várias cores nas mãos das damas, dando ao cenário um aspecto pitoresco. No meio de todo esse mar humano que celebrava a sua rai nha, várias crianças teimavam em se aproximar da “senhorita Rosa”, que muito em breve estrearia como sua professora. Não podiam faltar as figuras mais notáveis da localidade; entre eles se destacavam o coronel Nicolás Márquez e sua esposa, dona Tranquilina Iguarán, com as tias Elvira, Sara e Francisca, que segurava na mão do pequeno Gabito, um menino de postura
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— Boa tarde, senhoras e senhores. Todos vocês, habitan tes deste povoado progressista, me conhecem. Sou Florido Pérez, prefeito de Aracataca. O único prefeito que esse povo carrega ao longo das últimas duas décadas. Hoje estou com vocês para uma grande celebração: a coroação da Rainha do Carnaval. Nossa belíssima representante das mulheres mais belas desta região, Rosa Fergusson, é um orgulho para todos e hoje a coroamos pela segunda vez como soberana desta
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16 | Beatriz Parga tranquila e olhar inocente que extravasava de orgulho ao ver a Rosa atraindo a atenção de todo o povoado.
Rosa conhecera Gabito logo após o seu nascimento, em uma de suas férias, quando estudava na Escola Normal de Santa Marta.Emuma tarde de muito calor, a jovem havia saído à rua procurando a refrescante sombra da amendoeira que crescia em frente à sua casa e ficou sabendo do parto de Luisa, a fi lha mais velha do coronel. Feliz com o acontecimento, Rosa foi felicitar a jovem mãe. Sempre dizia que, desde o primeiro momento, o bebê havia lhe causado um impacto profundo. E com o passar dos anos o impacto seria mútuo.
A multidão aplaudiu com entusiasmo enquanto se ouviam vivas à “Rosa, Rosa, Rosa!”, antes de se desencadear um es trondoso concerto de acordeões, reco-recos e clarinetes, acompanhados pelo rufar dos tambores da banda local. O pre feito pegou a coroa que descansava sobre uma mesa coberta com uma toalha branquíssima, e com grande solenidade a co locou cerimoniosamente sobre a cabeça da bela jovem, que sorriu majestosa, transformada no centro de todos os olhares.
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grande ocasião que tanto disfrutamos. Viva Rosa Fergusson! Viva o Carnaval!
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O público celebrou a notícia com entusiasmo. Os aplausos pareciam não ter fim. Então a rainha fez um leve gesto com a mão.— Como representante da beleza da mulher desta região, agradeço esta coroa com um misto de humildade e orgulho. É uma enorme honra. Mas, além disso, quero aproveitar esta oportunidade para convidá-los a levar seus filhos ao colégio Montessori de Aracataca, que estará abrindo suas portas na próxima segunda-feira. Crianças, não faltem. Espero ver todos na sala de aula, já que vou ser sua professora — disse com—emoção.Alémde ser nossa rainha, Rosa é a professora mais lin da do mundo — interrompeu o prefeito. De novo eclodiram os aplausos e o público começou a cantar um tema musical da moda marcando o início da festa. A uma curta distância, muito próximo ao palanque, dona Rosa enxuga va o suor com um lenço enquanto, repleta de orgulho, observa va a cena. As irmãs da jovem debutante se aproximavam para abraçar a nova Rainha do Carnaval. A banda seguia tocando enquanto o céu começava a se co brir com um manto cinza, espesso como fumaça. “Vai chover”, previu o prefeito. Sem se desanimar, o povo começou a gritar em coro: “Deixa chover, deixa chover, que agora vamos dançar, que caia mais chuva para poder aproveitaaar”. Gotas grossas não esperaram, caindo travessamente sobre os presentes, que não se mexeram de onde estavam. Felizes e molhados, todos
18 | Beatriz Parga continuaram dançando por horas até que a roupa secou sobre os corpos festeiros, que somente interrompiam a festa para beber rum branco e limonada; ou para comer torresmos e are pas que algumas vendedoras traziam em bandejas e que os participantes devoraram até a madrugada.
De estatura mediana, postura reta e um sorriso capaz de fa zer brotar uma flor no deserto, a Rainha do Carnaval transmitia uma grande confiança em si mesma. Sabia que a coroa que le vava sobre sua cabeça significava uma grande responsabilida de como representante da beleza e das virtudes das mulheres da região. Por ser a segunda vez que a coroavam, conhecia os deveres da sua posse, então distribuiu sorrisos, foi carinhosa com as crianças e os idosos, manteve à distância o cortejo dos galãs que a pretendiam e de novo repetiu a proeza de dançar até gastar a sola dos sapatos.
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II F3f A professora é tudo R osa despertou com o primeiro canto dos galos. Havia desfrutado duas horas a mais de sono, mas antecipava uma dura jornada de trabalho. As penumbras da noite começaram a ceder, empurradas por uma fraca luz cintilan te quando avançou pelo corredor da sua casa até o pátio ao fundo. Entrou brevemente em uma pequena construção de madeira onde se encontrava o sanitário e depois passou a tomar banho no pequeno espaço contíguo. Ao entrar, tirou a bata de seda que vestia e a pendurou em um enorme gan cho na parte de dentro da estreita porta. Quase como seguindo um ritual, aproximou-se da bacia de água, despejando-a lentamente sobre sua pele. Como sempre, sentia-se fria e muito refrescante, e a esta hora da manhã até perdia por um instante a respiração. Depois pegou uma esponja e a esfregou pelo corpo. A branca espuma do sabonete começou a deslizar suavemente. Nada parecia interromper a intimidade desse refrescante momento, mas como ocorria com frequência, um pequeno zumbido fez com que voltasse à realidade. Pááá! Ressoou o tabefe com que
Meia hora mais tarde Rosa havia chegado à escola muni cipal. Com um lenço amarrado na cabeça e munida de uma escova feita de folhas de caruru que agitava vigorosamente, começou a eliminar as teias de aranha que cobriam o teto bai xo e as paredes da sala de aula. Depois se ocupou de varrer o piso. Por último, umedeceu os panos que havia trazido da sua casa e se pôs a limpar cada canto, além das carteiras escola res e das Empenhadacadeiras.na
— Menina, não vai sair sem antes tomar o seu café.
Rosa aceitou uma xícara pequena e depois de um par de goles saiu levando debaixo do braço uma cesta na qual ha via colocado vários panos para limpar o pó e um guardanapo com quatro pãezinhos recém-saídos do forno.
sua tarefa, nem se deu conta quando a mãe de um dos alunos entrou na sala, chamando-a.
20 | Beatriz Parga pretendia matar um mosquito. Contrariada com o minúsculo visitante que interrompeu sua rotina diária, secou o corpo apressadamente com uma toalha branquíssima que ficou im pregnada com seu suave aroma de lavanda e sabonete de camomila.Minutos
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— Avise à mamãe que voltarei tarde, tenho muito que fazer — disse, antes de cruzar a soleira da porta.
depois, a jovem professora saiu vestida com uma saia comprida azul e uma blusa branca. Da cozinha escapava um suave aroma de café, preparado por Domitila, uma mulher risonha e diligente que há vários anos trabalhava como cozinheira e era considerada parte da família.
— Você é uma mulher muito generosa. Obrigada — salien tou, dando uma volta pela sala. Logo se deteve para observar cuidadosamente uns quebra-cabeças de madeira que estavam sobre uma carteira escolar. — E isso, o que é? — perguntou com—estranheza.Sãoumas
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— Eu anotei neste papel — respondeu Alicia tirando da sua bolsa um desenho com a medida do pé, que entregou à pro fessora.—Não se preocupe, amanhã levo os sapatos até a sua casa
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tabuletas muito especiais, de muita utilidade para despertar os sentidos nas crianças Por exemplo, olhe esta figura incrustada neste painel. Tem a suavidade do veludo Agora a compare com a figura que tem ao seu lado, que é áspera porque é feita com papel de lixa
— Manolito. O mesmo nome do meu avô. É um rapazinho muito travesso, mas com muita vontade de aprender — disse a recém-chegada. — Vou trazê-lo às aulas assim que conseguir um par de sapatos. — Quanto ele calça? — perguntou.
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— Boa tarde, professora. Sou Alicia, a mãe de um dos seus no vosRosaalunos.interrompeu seu trabalho estendendo a mão para a recém-chegada.—Éumprazer
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A professora ficou tão fascinada descrevendo as tabuletas que tinha preparado que não conseguia parar.
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conhecê-la, bem-vinda. Como se chama o seu filho? — perguntou, enxugando com um lenço o suor da testa e limpando o rosto cheio de pó.
— Com que propósito? — perguntou. — Para colocar as crianças em contato com o mundo que as rodeia e que às vezes nem percebem porque não aprende ram a fazê-lo. Desenvolvem também os sentidos do ouvido e do gosto. Mas, o mais importante de tudo, elas devem apren der a soltar a imaginação. — A imaginação? Que coisa mais boba! Desculpe, mas é mais importante que se deem conta da realidade que os ro deia. Veja, professora, a realidade é que estas crianças preci sam somente aprender a ler e escrever. Nada mais. Que outra coisa poderão fazer neste lugar além de trabalhar com peões para uma grande empresa bananeira? Rosa ficou indignada. Mas fez um esforço para não demons trar. Por acaso uma criança de origem humilde estava destina da a viver sempre na pobreza? Como foi possível então que alguns que cresceram em situações extremas chegassem aon de nunca ninguém havia sonhado? Rosa estava segura de que conhecia a resposta. Ela atribuía essa mudança em grande parte à fortuna de uma boa educação. O gênio norte-americano Thomas Edison era uma criança que tinha dificuldade para ouvir, mas a sua mãe, que era também sua professora, acreditava nele. E o pioneiro das leis da física quântica, Albert Einstein, demorou muito
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— Aqui tem mais — disse, mostrando o painel de madei ra com alguns saquinhos pequenos. Aquele à esquerda tem café, aquele outro enchi com cascas de limão e tem outro com canela. Assim eles vão desenvolvendo o sentido do olfato — explicou.Amulher não parecia se sentir impressionada.
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para conseguir falar, e seus pais, preocupados, consultaram um médico; um de seus professores disse que nunca chega ria longe na vida, mas conseguiu porque ousou contrariar, já que era rebelde e tinha muito confiança em si mesmo. As crianças podem chegar até aonde quiserem se não lhes cor tamos as asas — explicou com entusiasmo. Os argumentos da professora não pareciam convencer à visitante que, de saída, com um sorriso estampado, ironizou: — Claro... e eu também posso chegar a ser a rainha da In glaterra!Noentanto, nada desanimava Rosa. Estava disposta a lutar contra a falta de fé daqueles que não conheciam o tema. Entre tida nesses pensamentos, continuou limpando até que a sala de aula ficou impecável. Organizou as carteiras com seus as sentos correspondentes e escreveu com sua caligrafia perfeita nos cadernos de cada um seus respectivos nomes. Finalmente, em um canto, colocou sua mesa de trabalho com um pequeno vaso de flores como único adorno. Pensou que se aproximava o melhor dia da sua vida: o povoado teria uma escola Montes sori e ela seria sua primeira professora. Cansada da longa jornada, mas satisfeita pela tarefa reali zada, Rosa caminhou até sua casa. Ao dobrar a esquina, viu que Alicia atravessava a rua. Seguia em passos rápidos, e com a cabeça coberta com um xale preto. Parecia que ten tava evitar ser reconhecida. Uma hora antes havia dito à Rosa que iria para casa, mas a viu surgir de um setor não muito frequentado pelas famílias honradas da cidade. Rosa se per guntou o que ela fazia por aquelas ruas proibidas.
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Finalmente chegou o tão aguardado primeiro dia de aula. Rosa se levantou mais cedo que de costume e, ao chegar à escola, esperou sorridente a chegada de seus alunos. Alguns vinham acompanhados de seus pais e irmãos, outros chega vam com seus avôs. Quase todas as crianças se mostravam tímidas e com certo receio diante do fato de se sentirem lon ge do seu entorno familiar; outros não conseguiam evitar o choro ao ver seus pais partirem. Atenta aos sentimentos de cada aluno, Rosa se aproximava e lhes inspirava a confiança e a segurança que necessitavam nesse momento tão transcendental − inclusive traumático em algumas ocasiões − no qual a criança se vê obrigada a se desprender do lar para passar o dia entreGabitoestranhos.havia crescido em um mundo de adultos, mais ve lhos, dado que poucos meses depois do seu nascimento seus pais foram para Sucre, deixando a criança aos cuidados de seus avós. No entanto, as tias e parentes que moravam na casa se esmeravam em dar à criança toda atenção necessária. Além disso, devido ao seu caráter reservado e sua formalidade, era o centro da atenção familiar e todos se esforçavam para con tribuir com sua criação. No primeiro dia de aula, Gabito chegou acompanhado por sua madrinha, Francisca Mejía. Seu cabelo havia sido penteado com linhaça, estava asseado e estreava sapatos novos. Vestia um conjuntinho verde que o fazia parecer muito formal, ves tido como para uma grande ocasião. Rosa não deixou escapar uma observação, contando em segredo para sua amiga, para que o menino não se sentisse envergonhado.
— Por favor, não coloque de novo essa calça no Gabito por que fica muito apertada e causa um mau hábito — disse ao notar que a calça agarrava no meio das pernas do menino. E acrescentou: — Ele já não cabe nessa roupa, isso é do tama nho do seu irmão caçula! A rotina diária de aulas começava minutos depois que a professora os ordenava a colocar as cabecinhas sobre os bra ços cruzados que repousavam sobre as mesas. Depois, com os olhos fechados, deviam prestar atenção em todos os ruídos que escutavam ao seu redor. Ao abrir os olhos, cada um ia des crevendo o que havia escutado: uma galinha, um pássaro, o choro de uma criança... Em outras ocasiões, o tema não era os ruídos, e a professora concentrava seus esforços em ajudar a descobrir o mundo através do olfato, reconhecendo os odores.
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— Agora vamos aprender algo novo. Mas antes, vamos res pirar bem fundo: um, dois, três... Agora, fechem os olhos e ten tem “ver” através do nariz. Sim, não é para rir... Respirem de novo e tentem reconhecer os odores que há ao redor.
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Ao perguntar ao Gabito que odor percebia, sua resposta foi imediata:—Cheiro de goiabas! — respondeu timidamente de monstrando que com seu aguçado olfato infantil havia de tectado as pequenas frutas amarelas de incitante aroma que a professora havia colocado em um canto da sua mesa para compartilhar com os alunos na hora da merenda.
— Eu sinto cheiro de flores — respondeu uma menina com olhar de travessa se referindo a uns jasmins que a professora tinha colocado em um pequeno vaso.
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Cada um dos pequenos alunos descrevia as fragrâncias cir cundantes enquanto a professora desfrutava de cada descobri mento e progresso de seus discípulos. Os exercícios eram uma adaptação do método da educadora italiana María Montessori, que Rosa estudou ao saber que, desenvolvendo primeiro os sentidos das crianças, podia-se conseguir que alunos incapacitados alcançassem melhores notas que as obtidas por crianças normais. Por último, viria a aula de caligrafia. — Notem bem, prestem muita atenção. Têm que segurar olápis corretamente. Isso é muito importante porque se não aprenderem a fazer isso bem agora, vão fazer errado pelo res to da vida — dizia Rosa enquanto caminhava pela sala vigiando a posição dos dedos de cada um de seus alunos ao escrever.
— É isso mesmo, continue assim, Gabito — expressou ao passar ao lado de seu pequeno vizinho, sentado bem no meio da sala da aula.
O menino hesitou quando a mão da jovem professora lhe ro çou levemente ao se inclinar sobre as suas costas. Depois Rosa pegou a pequena mão de seu aluno, colocando corretamente o lápis entre os dedos pequeninos, ao mesmo tempo em que, com a voz firme e muito doce, o guiava sobre a página em branco.
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— Gabito, está se saindo tão bem! Hoje vamos fazer paliti nhos, amanhã, umas bolinhas e mais tarde unir uma bolinha
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Muito bem — respondeu Rosa. — Mas vou lhe ensinar uma palavra muito linda para quando se referir ao cheiro das flores. Em vez de “o cheiro das flores” vamos dizer “o aroma das flores”, que é uma forma mais bonita e elegante. Agora repitam todos: “o aroma das flores”.
A professora com um palitinho e teremos o A. Vai ver como é fácil. Vamos com cuidado e bem devagar para que o palito fique retinho, começando sempre de cima para baixo. Preste atenção para que fique dentro da linha. Assim, muito bem, para que o traço fique lindo e sem borrões. Lembre-se que uma boa caligrafia e um papel limpo sempre dão uma boa apresentação da sua pessoa — dizia a jovem professora à medida que ajudava o seu aluno a desenhar as primeiras letras. Sem responder, Gabito se deixava guiar, sentindo-se feliz com a atenção que Rosa lhe dava. Em seus cinco anos não po dia entender essa sensação estranha que percorria seu corpo diante da presença de sua professora. Rosa havia se tornado sua grande motivação para ir à escola e um estímulo para que, nas tardes, se esforçasse ao chegar em casa e fazer suas tarefas, sempre impecáveis, tal como ela o havia ensinado. Ao se levantar para sair caminhando até a escola, se sentia feliz, antecipando que sua professora o aguardaria na entrada da sala de aula com seu sorriso caloroso e suas acolhedoras palavras de boas-vindas.
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Vamos lá, crianças, hoje vamos imaginar que somos aves, sim, somos pássaros e vamos voar. Todos em fila, vamos dar voltas ao redor da sala. Abram os bracinhos como se fossem asas, assim, balance-as suavemente. Imaginem que via jam para bem longe, por cima das árvores e dos rios. Veem como tudo é bonito lá embaixo? Acima estão as nuvens, pare cem tufos de algodão sobre o céu azul — observava em meio ao alvoroço das crianças.
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Instantes mais tarde, freava bruscamente como se tivesse sido atingida por um raio: — Todos quietos, vamos mudar a brincadeira. Vamos cami nhar sem fazer barulho, bem quietinhos. Muito suavemente peguem seus assentos e se sentem, sem que se escute nada.
Depois de alguns minutos, Rosa anunciava que o voo já ha via terminado, e voltavam a ser “crianças bem comportadas” na classe.—Agora são de novo meus alunos. Sorriam, sim, sorriam muito, ah, ah, ah. Agora marchem como soldadinhos, vejam bem como eu faço. Muito bem, vamos marchar todos se mo vendo ao mesmo tempo — dizia a professora, animando a tro pa alegre de crianças sorridentes.
E quando estiverem sentados, coloquem de novo suas cabe cinhas sobre os braços cruzados. Agora fechem os olhinhos; vamos descansar por cinco minutos. Gabito era um participante feliz dessas aventuras da professora através dos sentidos. Como não desfrutar as au las? Era como se despertassem para apreciar o canto das aves, as serenatas das cigarras, o coaxar dos sapos, a bri sa contagiante que precedia a chegada de um temporal. A sinfonia da natureza se complementava com a sua fragrân cia das frutas tropicais, o cheiro da terra ao cair da chuva. Não podia faltar o tato, esse mundo que aprendiam a conhecer com os dedos enquanto — com os olhos fechados — comparavam a diferença entre frutas de textura suave, como a manga e a goiaba, com a contrastante aspereza das cascas de coco ou de abacaxi.
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Em algumas ocasiões, a professora caminhava à escola com Gabito ao seu lado. Quase sempre Rosa falava e Gabito a escutava ou fazia perguntas. Outras vezes, a professora aconselhava: “Tem que ter uma boa caligrafia e esmerar-se na escrita, Gabi. Veja, se você escreve uma carta a alguém que não lhe conhece, pela sua letra pode formar uma boa ou má opinião sobre que tipo de edu cação tem a pessoa que escreveu e até calcular a sua idade”.
Às vezes, em seu percurso, a professora parava na casa de alguma vizinha que lhes oferecia leite morno ou encontrava com o carpinteiro a que ela havia encarregado umas tábuas de madeira sobre as quais havia desenhado figuras de animais, colocando-lhes penas, veludo e papéis muito variados, desde seda até lixa, para que seus alunos pudessem fazer comparações com o tato. Como não tinha fundos nesse momento, Rosa pagava a conta com seu salário. As crianças tinham também um exercício favorito. Era aquele que permitia explorar o universo do sabor, com sua extraordinária variedade de guloseimas de diferentes cores e sabores, além de recorrer às tonalidades disponíveis para o paladar, dos sabores salgados aos ácidos e os amargos. Não podia faltar o sem sabor característico de água fresca da chu va, tão distinta da água filtrada em um jarro de barro ou da que havia sido fervida sobre o fogão. Para a professora, cada pe queno detalhe significava uma vitória da inteligência através da imaginação e do conhecimento. Em ocasiões, quando Rosa trabalhava até tarde preparando o material didático, indispensavelmente encontrava o apoio so lidário de alguma mulher na vizinhança que batia na porta da sala de aula com um copo de limonada ou uma xícara de café.
“Eu sou como o vento e minhas crianças, uma pipa. Se o vento soprar com força, a pipa voará mais alto.”
Esses comentários soavam como uma chibatada para a pro fessora. Como era possível que as próprias mães de seus alu nos não depositassem fé no futuro de seus filhos? Indispensa velmente, essas palavras se convertiam em um desafio. Toda vez, a resposta de Rosa era sempre a mesma. — Meus alunos podem conseguir na vida o que eles preten derem ser. Da minha sala de aula poderão sair não somente doutores, senão o melhor, até um prêmio Nobel. Já de noite, antes de pegar no sono, Rosa acreditava ter o antídoto contra a pobreza e o subdesenvolvimento. “Como professora, posso significar uma diferença na vida dessas crianças. É uma realidade que este povo humilde esteja longe da civilização, e que os pais dos meus alunos não tenham edu cação universitária, mas eu me comprometo a trabalhar para que tenham uma educação igual à das crianças das melhores escolas dos países mais adiantados”, pensava, imaginando seus alunos como titãs do saber.
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30 | Beatriz Parga Mais de uma vez, no entanto, era surpreendida ao escutar de novo alguém que dizia: — Professora, não trabalhe tanto; você se esforça demais. Aqui as crianças quase nem precisam de estudo. Não há muita coisa que este lugar lhes pode oferecer. Lembre-se que essas crianças nunca serão doutores.
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Rosa desfrutava os contrastes entre a fresca primavera da metrópole no alto da cordilheira dos Andes e a paisagem de antigamente, essa tão inesquecível de Aracataca, calorenta,
O reencontro
“Ocoração não envelhece”, pensou Rosa, ao re cordar das antigas glórias de sua juventude que em sua mente se misturavam com a nostalgia dos acordeões e o palpitar dos tambores enquanto seus pés dançavam sem descanso o tema musical do momento. Já não caminhava tão leve como uma pluma pelas ruas de Aracata ca. Quase meio século depois, o seu andar era pausado nessa manhã e em um novo cenário: nada mais e nada menos que a capital do país. O sol brilhava timidamente sobre o altiplano de Bogotá, refletindo nas janelas dos novos edifícios e nas pe quenas gotas de orvalho que ainda cobriam timidamente as delicadas pétalas das roseiras simulando uma geada de cristais de quartzo sobre o tapete verde dos prados. De vez em quan do saltava uma rã travessa ou aparecia uma minhoca rosada se arrastando até um destino incerto ao cruzar a diminuta vala de terra úmida entre os jardins e o cimento frio da calçada.
F3f III
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Com uma vaidade feminina impermeável ao passar do tem po, observou o seu reflexo no vidro da janela de uma padaria. Não pode conter um suspiro. A mulher que sempre acreditou
Finalmente, por volta das cinco da tarde, encontrava-se diante da antiga fachada de pedra do teatro Colón, que se ves tia de gala para a estreia da adaptação teatral de Os funerais da Mamãe Grande, cujo autor era Gabriel García Márquez, um de seus primeiros alunos em Montessori, que agora havia se tornado em um grande escritor de fama internacional.
Um par de horas mais tarde, saiu do salão de beleza com o aspecto rejuvenescido pela cor da tintura de um castanho intenso, as unhas pintadas de vermelho da moda e se sentindo tão fresca como se por um passe de mágica houvessem evapo rado os longos anos transcorridos daquelas lembranças juvenis que guardava em seu coração.
Havia planejado vestir a sua melhor roupa de duas peças, estrearia sapatos e havia comprado um novo batom para os lábios, o vermelho vinho tinto que lhe favorecia muito. Esses preparativos eram justificados por um acontecimento especial que havia antecipado durante toda a semana com a mesma ansiedade de uma debutante que contava os dias para a data do seu primeiro baile.
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empoeirada e cheia de sons, com cigarras monumentais e aves de colorida plumagem no meio da natureza saturada de aro mas tropicais. Cheia de emoções, recriava em sua memória as lembranças enquanto caminhava até à cabeleireira do bairro onde esperava resgatar um vestígio de seu esplendor de outrora.
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ser invencível diante das barreiras dos convencionalismos de sua época começava a descobrir que o tempo não passa em vão. Seu cabelo já não caía sobre as costas como uma casca ta com brilho de estrelas, seus olhos careciam da explosão de vida de seus anos juvenis e seus contornos faciais haviam per dido a definição que tanto apreciava o cigano que todo ano chegava ao povoado com uma câmera nova, empenhado para que posasse para suas fotografias. No entanto, com seus sessenta e tantos anos, bem vividos e nunca confes sados, Rosa ainda era uma mulher atraente e em qualquer ambiente social dificilmente passava despercebida. Miúda, com seu metro e meio de altura, adivinhava-se algo especial em sua presença, em seu porte e em seus olhos cor de café que, além de muito expressivos, deixavam transparecer uma mescla de sabedoria e doçura. Olhou o relógio, comprovando que havia chegado com tem po de sobra; ainda faltava mais de dez minutos para o encontro com sua filha Álida, que havia decidido acompanhá-la nessa ocasião tão especial. Enquanto isso, desfrutava o prelúdio de uma grande noite que se antecipava, saboreando cada deta lhe, desde as saudações eufóricas daqueles que, como ela, ha viam chegado cedo nessa luxuosa recreação no cenário, até os cartazes que nas paredes anunciavam a obra, com o nome do escritor em letras grandes: Gabriel García Márquez. Entretida com o que passava ao seu redor, de repente viu que se aproximava em passos lentos um homem bigodudo trajando um paletó xadrez. Aproximou-se sem pressa, pas sou ao lado, observou-lhe por um instante e se afastou. Muito
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34 | Beatriz Parga próximo, um grupo de damas muito elegantes, com casacos em tons escuros e golas de pele, conversava. Com seus penteados de salão de beleza, usavam suas melhores joias e se cumprimentavam com grande alegria, celebrando a ocasião que as reunia. Achou que reconhecia uma delas, mas não estava segura, desviou sua atenção até a porta de entrada. Então, viu que outra vez veio até ela o cavalheiro bigodudo com paletó xadrez. Passou ao seu lado lhe examinando dos pés à cabeça e se afastou de novo. “Havia lhe detalhado com desmedido interesse esse homem misterioso?”, perguntou-se. Parecia que levava uma centelha de luz no seu olhar. Talvez quisesse dizer algo... Rosa tratou de esmiuçar todas as possibilidades que cruzavam sua mente. Depois se convenceu que possivelmente a havia confundido com outra pessoa. Voltou a pensar na peça de teatro que minutos mais tarde seria encenada, e com que tamanha ansie dade ela a esperava. Por sua memória desfilaram as imagens do menino que caminhava com passo rápido ao seu lado no povoado de sua juventude, um lugar de clima quente em sem pretensões de grandeza, em contraste com o ambiente seleto em que se en contrava agora. Bastava olhar ao seu redor para perceber o longo caminho que havia percorrido e os obstáculos vencidos. Olhou de novo o relógio. Os ponteiros indicam cinco e trin ta da tarde e o público continuava chegando, amontoando-se na entrada do teatro. Ainda era cedo, e graças ao seu hábito de pontualidade, sempre contava com tempo para desfrutar dos preâmbulos de qualquer evento que assistia, desde um
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Um vento frio a fez retornar ao presente e decidiu se apro ximar mais da porta, buscando se proteger para evitar um res friado. Muito menos queria que a brisa despenteasse o seu ca belo. “Espero que não chova”, disse a si mesma, olhando para o céu que começava se cobrir de nuvens negras. Pensou em cruzar a rua para se certificar se sua filha havia chegado, quan do, quase de surpresa, viu se aproximar de novo o homem mis terioso. Agora não tinha dúvida alguma; não era por mera ca sualidade que o misterioso personagem passava ao seu lado. No entanto, desta vez, não passou direto. Parou diante dela olhando-a com uma expressão muito confiante. — Você é Rosa Fergusson?
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casamento até um funeral. Assim podia sentir o ambiente, ver o que nunca veem aqueles que sempre chegam tarde a todas as ocasiões. Por isso, apesar de ainda não terem aberto as por tas do Colón, ela tinha o privilégio pouco comum de desfrutar cada momento e cada detalhe, sem pressa.
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Ela ficou perdida por um instante observando esses olhos escuros masculinos realçados por espessas sobrancelhas ne gras. Quando seus olhares se cruzaram, sentiu que seu cora ção parecia um cavalo em disparada. Com surpresa, acertou ao dizer: — Sim, sou eu, sua professora. Havia perdido a conta do tempo que passara esperando esse momento. Era o Gabito, como ela o chamava, embo ra lhe custasse muito reconhecê-lo. No final das contas, não via seu aluno desde que era um menino e somente voltaram a se encontrar depois de muitos anos quando foi visitá-lo, por uns
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— Você sabe que isso não é verdade e que por algum mo tivo triunfou como escritor — replicou Rosa, com voz muito segura.
36 | Beatriz Parga poucos minutos, na redação de El Espectador, onde começava a ganhar projeção como repórter. Naquela época era um jovem franzino de bigodes e cabelo alvoroçado, mas agora o tinha à sua frente transformado em um homem maduro e famoso no mundo das Letras. Surpreendida, deu-se conta de que mesmo olhando-o de perto, tornava-se quase impossível resgatar a última imagem que havia ficado gravada na sua memória.
O escritor a olhou interrogativamente, tratando de dissimular sua surpresa. Em meio a esse mar humano que esperava na entrada do teatro, essa mulher havia se encaixado de alguma maneira no arquivo de suas lembranças. Como jamais se esquecer da bela jovem que, além de ter lhe ensinado a escrever na sua infância, havia despertado em seu interior um comichão que anos depois identificaria como o mais próximo de uma paixão? Parecia incrível que tivessem passado cerca de quarenta anos desde aqueles dias inesquecíveis no colégio Montessori de Aracataca, mas quando viu sua figura de longe na entrada do teatro Colón, sentiu-se magnetizado pela sua presença. E não era que, indo mais além da pele, sobrevivia imperecível a imagem juvenil que levava impressa em seu co ração e em sua memória?
— Mas esta obra não serve... — brincou o escritor enquanto esboçava um sorriso debaixo de seu espesso bigode.
— O que a traz aqui? — ele perguntou, emocionado.
— Vim ver sua obra — respondeu ela.
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Rosa sentiu que esses braços eram tão imensos como o tempo transcorrido desde que era uma bela debutante na so ciedade de Aracataca decidida a ser a melhor professora, e ele apenas um menino de seis anos recém-cumpridos, empenhado em ser o melhor aluno da sua classe. Fixou os olhos em suas mãos e como por um passe de mágica sua memória transfor mou os dedos longos e peludos que tinha à sua frente na lem brança da mãozinha gordinha e delicada que reagia docilmen te à sua quando o ensinava a traçar as primeiras letras. Nesse instante mágico e poderoso, como o espelho da alma que ao longo dos anos repete as imagens aprendidas, Rosa soube que logo adiante evocaria em seus sonhos, adormecida e desperta, esses minutos extraordinários do reencontro do aluno com a professora, em um momento que parecia penetrar no longo trajeto percorrido ao longo de suas vidas.
O aluno e a professora se olharam como se através de suas pupilas quisessem ultrapassar o longo parêntese dos anos transcorridos. Não havia lágrimas, mas podia se observar um brilho especial em seus olhos. — Todos os meus triunfos são seus — enfatizou o escritor, dando-lhe um forte abraço.
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— Imagino que seja aquela porta — observou ela, indicando uma pequena entrada lateral pelo qual tinha visto passar algu mas pessoas que não estavam vestidas com a formalidade e ele gância do público presente.
Ao notar que sua presença estava causando um burburinho entre algumas pessoas mais próximas, o escritor perguntou à sua professora onde ficava a entrada dos artistas.
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Melhor ir antes que alguém me descubra — respondeu o escritor, e a abraçou de novo. Ela o viu se distanciar, ainda emocionada, minutos antes de abrirem as portas do teatro para o início da encenação da obra, em uma apresentação da Universidade Externado da Colômbia que incluía a participação do dramaturgo e poeta Raúl Gómez Jattín, um dos melhores atores do país. Sentada em seu cômodo assento de veludo vermelho, Rosa tentou descobrir onde havia se sentado o seu aluno. Percorreu com os olhos os camarotes e também focou seus binóculos no público que ocupava os assentos das primeiras fileiras, sem que seus esforços dessem resultado. Parecia que esse instante recentemente vivido era tão irreal como uma miragem que vai se esvaindo na medida que passam os minutos, mas no final da obra, alguém começou a gritar: — Que apareça o autor... o autor... o autor! A voz ressonou outra vez de um dos camarotes, seguida de imediato pelo clamor do público que em coro exigia a presença do reconhecido autor. O pedido foi aumentando de volume até se transformar em um mar de vozes e aplausos que finalmente conseguiu que o autor, que havia assistido a obra do camarote do embaixador do México, fosse até o palco. Rosa aplaudiu como nunca, até sentir suas mãos formiga rem. Ao ver o escritor coberto de glória, parecia que, tal como seu aluno lhe havia dito uns minutos antes, seus triunfos tam bém lhe pertenciam. De fato, desde muito tempo atrás havia começado a acompanhar com admiração sua meteórica carreira no mundo das Letras. Suspirou profundamente, pensando que
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Paradoxalmente, era o Éden que Rosa sempre quisera abandonar, e do qual sentia tanta saudade agora. Essa noite, antes de cair no sono, Rosa se lembrou que enrubescera ao cumprimentar seu aluno. Parecia quase uma ironia da vida que os papéis haviam se invertidos: antes o me nino ficava nervoso e suas bochechas coravam quando via sua professora passar. Seus últimos pensamentos foram para esse extraordinário reencontro, tão longe do ambiente em que vi veram e sonharam, em uma fase feliz em que os sonhos eram como um livro aberto ao infinito.
essa grandiosa noite havia sido a conclusão das viagens que haviam realizado juntos pelas ruas de Aracataca, o povoado a que, em suas lembranças, sempre regressava diariamente.
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F3f O primeiro amor do Nobel IV V ó, não sei o que está acontecendo comigo, mas quando vejo minha professora, sinto algo de... sinto como se quisesse beijá-la — confessou um dia Gabito. Achando o fato divertido, dona Tranquilina compartilhou o segredo do seu neto. Mas a professora não se sentiu lisonjeada. — Não diga isso ao menino, como foi fazer isso? Eu sou sua professora! — protestou Rosa, colocando um ponto-final no Aoscomentário.vinteedois anos, a professora do Montessori chamava atenção por onde passava. Como uma flor tropical, era feita de encanto, sorriso, sensualidade, mistério, doçura, firmeza, rit mo, cordialidade e sonhos. Orgulhosa de suas raízes, perten cia a uma das principais famílias de Aracataca, descendente por parte paterna de imigrantes de origem inglesa e, por he rança materna, de uma virtuosa estirpe, produto da mistura de espanhóis e crioulos caribenhos. —
Nenhuma das opções da época correspondia ao que Rosa buscava na vida. Ao menos, ela preferia esperar algum tempo.
Bonita e pronta para casar, recusava os galanteios dos homens da região e era dona de um espírito independente que muitos na cidade viam com uma mistura de admiração e receio.
— Rosa, a professora — diziam. — Tem algo com essa moça. Tanto pretendente, e ela recusa todos. Se continuar assim, logo vai acabar uma beata solteirona.
42 | Beatriz Parga Dona de uma elegância natural, costumava percorrer com seus passos ágeis as ruas empoeiradas e quentes do povoado, se protegendo sempre do inclemente sol debaixo de uma sombrinha colorida. Sem dúvidas, fazia parte de uma classe de mulheres que irradia graça, atraindo os olhares de todos. Além disso, ter sido coroada duas vezes como Rainha do Carnaval lhe conferia importância e notoriedade na região. Por sua beleza, inteligência e bons modos, Rosa era vista com respeito por aqueles que a conheciam dentre os oito mil habitantes dessa pequena população que nasceu em 1885 e depois cresceu igual às suas palmeiras e amendoeiras. Mas ao contrário da maioria dos moradores, Rosa não centrava suas ilusões em ficar toda sua vida dentro no pequeno mundo que a rodeava e que, de acordo com as tradições, impunha à mulher a obrigação de se casar em uma tenra idade. Existia uma segunda opção, que era entrar para o convento – algo que pensou em alguma ocasião – e, por último, tinha uma terceira alternativa: continuar toda a sua vida solteira, o que lhe impli cava que nunca desfrutaria dos prazeres do amor, já que uma mulher “decente” somente poderia sair de casa para se casar.
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De certa forma, nos primórdios do século XX a sua personali dade parecia um reflexo dos tempos vindouros, que antecipavam uma era de mudança.
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— Não vai ser fácil essa jovenzinha passar nos exames de admissão, já que requer que seja aprovada nas matérias dos anos anteriores — havia dito uma das professoras do corpo discente. No entanto, a veterana pedagoga intuía que a jovem aluna não a decepcionaria. Suas previsões se cumpriram. Não resta va dúvida de que Rosa havia aproveitado com muita eficácia os ensinos ministrados por sua mãe em matérias que iam desde matemática e geometria até história, geografia, ciências e lite ratura. No final, a jovenzinha que jamais havia pisado em uma escola superou vitoriosa a difícil prova. Eram épocas em que se podia estudar o bacharelado e o magistério ao mesmo tempo. Rosa, que era a mais jovem da sua classe, havia escolhido o caminho difícil de dedicar mais horas ao estudo com o propósito de obter dois diplomas: o de bacharela e o seu certificado como professora. Sua dedicação terminou por lhe render o respeito de suas companheiras de
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A ideia de ser professora não se tratava de um simples ca pricho. Era um desejo que cultivava desde antes de começar a estudar na Normal de Senhoritas de Santa Marta, onde se destacou como a melhor aluna do quadro docente. A dedica ção de Rosa, que ingressou no internato aos onze anos, teve a grande recompensa do apoio e estímulo da sua diretora, Car men González Jiménez, que a aceitou apesar de a nova es tudante jamais ter passado pela escola primária, já que havia aprendido tudo em casa.
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44 | Beatriz Parga classe, que a princípio olhavam com uma mistura de curiosidade e pena para a recém-chegada, uma menina ingênua e simples, apenas na soleira da puberdade, procedente de um povoado desconhecido que nenhuma de suas companheiras tinha a intenção de visitar algum dia.
Custou muito mesmo convencer seu pai que a deixasse pe gar o trem para ir em busca da sua educação em uma cidade longínqua, por isso que se dedicava muito aos estudos e em demonstrar suas habilidades para desempenhar no futuro.
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Todos os dias se levantava às cinco da manhã. Não gostava de madrugar, especialmente levando em conta que o dia começava com um banho de água fria no internato. No en tanto, graças à disciplina herdada de seus antepassados in gleses, sempre estava entre as primeiras a chegar ao corredor onde as alunas formavam fila ordenadamente para sair rumo à igreja. Vestiam uniforme azul, combinando com a saia de pregas que quase chegava aos tornozelos e uma blusa bran ca que Rosa mantinha impecável. O sol ainda não havia saí do quando, envolvida pela fragrância do sabonete do banho matutino, ainda sonolenta, caminhava pelas ruas desertas com passos rápidos, levando um missal e um rosário que, igual às suas companheiras de estudos, segurava firmemen te entre as mãos embainhadas em luvas brancas de algodão. Pareciam freirinhas de clausura, caminhando com passos rá pidos e em silêncio pelos dois quarteirões que as separavam da igreja. Sobre suas cabeças, o indispensável véu branco caía abaixo dos ombros, segundo o rigoroso costume. Minutos depois, sentadas sobre os duros bancos de madeira, lutavam
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tentando derrotar os episódios de sono durante o sermão. De fato, algumas alunas pareciam tomadas pela sonolência in finita quando começava a se espalhar pela igreja a fumaça do incensário de cobre agitado preguiçosamente por um monge que, além de ajudar na missa, ocupava-se de tocar os sinos da igreja e acender as velas do altar. Ela veio ao mundo em uma época caracterizada pela aus teridade nos costumes. Havia livros proibidos, amizades proi bidas, temas de conversa proibidos, vestimentas proibidas, lu gares proibidos e até pensamentos proibidos. As regras eram muito severas sobre a forma de se apresentar em público, e ainda mais na igreja: as mulheres não podiam entrar com vestidos sem mangas, nada de decotes e as saias tinham que chegar doze centímetros acima do tornozelo, o que já era um grande avanço levando em conta que em épocas anteriores um calcanhar descoberto era considerado atrevimento e podia despertar nos homens paixões proibidas. As calças largas em uma mulher eram motivo de escândalo porque esse vestuário era considerado masculino. Muitos se lembravam com pavor da cena que presenciaram em um domingo quando uma jovem norte-americana, alta e ruiva, entrou na igreja usando calça para montar a cavalo. Ha via chegado ao povoado a convite do seu irmão, um dos altos executivos da United Fruit Company. Mas o padre Angarita a olhou com severidade e, minutos depois, a bela mulher teve que lidar com a vergonha que o sacerdote lhe impôs ao passar diante dela, negando-lhe a comunhão.
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46 | Beatriz Parga Rosa não se sentia conformada com muitas das proibições no âmbito social e religioso, mas não há remédio a não ser aceitá-las. Naquela época, leu a biografia de Santa Teresinha do Menino Jesus e se sentiu inspirada pelo exemplo da jovem religiosa francesa da ordem das carmelitas, cuja relação com Deus abrira o caminho para uma espiritualidade simples, des provida de luxúria. A santa nasceu em 1873 e levou uma vida de oração até sua morte precoce, aos vinte e quatro anos, por causa da tuberculose, uma doença pulmonar responsável pela morte de milhões ao redor do mundo. Em 1926, a freirinha foi elevada aos altares pelo papa Pio XI, um acontecimento que representou em escala mundial uma ascensão meteórica de jovenzinhas que aspiravam vestir os trajes religiosos. Dedicadas ao estudo e à meditação, as estudantes ficavam sabendo com preocupação da perseguição religiosa que acontecia no México contra a igreja católica. Às tardes se congregavam para rezar o rosário pelos sacerdotes, dizima dos no país asteca durante a chamada Guerra dos Cristeros, quando muitos padres católicos foram assassinados. Mais tarde, as orações também incluíam a Espanha, onde a Igreja católica passava por tempos difíceis com a inesperada expul são dos jesuítas. Em meio a esses surtos de perseguição religiosa, começaram a chegar a Santa Marta e outras localidades da costa colombiana alguns supostos videntes vestidos com túnicas brancas que percorriam as ruas pregando com vozes apocalíp ticas a proximidade do fim do mundo. Esses vaticínios fatídicos
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convenciam tanto a juventude como os adultos, alarmados pela forma como os costumes iam se relaxando. Ninguém tinha dúvida durante essa época sobre a neces sidade de orar para conseguir piedade no céu; caso contrário, a civilização estaria prestes a desaparecer como um castigo divino. Aterrorizadas pelas calamidades que pairavam no ar, algumas jovens da escola acabavam aderindo aos hábitos re ligiosos com o propósito de salvar suas almas. Para Rosa, por outro lado, as imagens apocalípticas, além de assustadoras, significavam o fim de todas as suas ilusões. “E eu ainda sem conhecer o amor, nem ter passado umas férias em Cartage na”, pensava enquanto imaginava com fascínio as heroicas e cruéis batalhas contra o impiedoso cerco dos piratas ingle ses diante das muralhas da cidade. Os acontecimentos vividos na história de Cartagena nada tinham a ver com as aventuras de A Ilha do Tesouro que seu avô inglês narrava sobre os piratas, seus mapas e seus lingotes de ouro que enterravam nas populares narrativas do escritor Robert Louis Stevenson. Mas por uma razão misteriosa, Car tagena tinha um lugar especial em seus sonhos e quando uma amiga lhe disse que as imagens tinham um poder especial para fazer que os desejos se materializassem, Rosa decidiu apostar nessa possibilidade colocando em sua mesa de estudo alguns cartões-postais com fotos de Cartagena. A beleza da cidade a atraía, mas especialmente sua história: havia sobrevivido aos ataques dos piratas que sitiaram várias vezes os valentes que resistiam detrás das grossas muralhas levantadas pelos espa nhóis para proteger a cidade, a dor das torturas da Inquisição,
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48 | Beatriz Parga as lágrimas dos africanos vendidos por negreiros infames e a ganância dos compradores de escravos que chegavam de todo o continente em busca de braços fortes para as plantações de cana. Paradoxalmente, a fortaleza daqueles Atlas de madeira se transformaria em sua desgraça, ao representar o último re curso dos donos de canaviais quando fracassaram na tentati va de fazer com que os indígenas trabalhassem nessas tarefas árduas porque eram fisicamente mais débeis e ficavam doentes com facilidade ao contato com os vírus que traziam os que chegavam do Velho Continente. Apesar de as condições adversas e o sofrimento de se ve rem da noite para o dia subjugados por uma gente de outra raça que não falava o seu idioma, não passaria muito tempo para que os escravos africanos, desprovidos de sua liberda de, seu ambiente e suas famílias, terminassem por assimilar a nova cultura. Logo se refugiariam sob o manto piedoso da Igreja Católica que, sob a inspiração dos ensinamentos cristãos, converteu-se na porta-voz dos direitos dos escravos. Mais tar de, a mesma igreja que os protegia e investia na compaixão humana esmagaria as divindades pagãs com a Inquisição, cujo centro principal ficava localizado em Cartagena, e era onde se administravam os julgamentos e impiedosos castigos para os infiéis no vasto território assinado em 1610 no reinado de Felipe III da Espanha. No dia 11 de novembro de 1811, turbas rebeldes entraram no temido edifício, queimando e destruindo os instrumentos de tortura que eram usados para obrigar os acusados a confessarem
A professora e o Nobel - Gabriel García Márquez | 49 suas heresias. No entanto, foi somente em 1821 que esse amedrontador tribunal conseguiu ser erradicado de Cartagena. Rosa achava fascinante saber que existia uma cidade com uma herança tão variada em suas raízes, que incluía frades compassivos e escravos acorrentados, traficantes desalmados e cortesãos usurários, mulheres com crinolinas e leques, escravas de corpos eretos como palmeiras, todos descendentes de uma raça de homens e mulheres heroicos. Com admiração especial, a jovem aspirante à professora guardava uma crônica sobre o heroísmo de Blas de Lezo, um almirante espanhol da região basca que em diferentes batalhas havia perdido uma perna, um braço e um olho. No entanto, apesar de suas limitações físicas, conseguiu que Cartagena derrotasse o almirante inglês Edward Vernon, quando, com 186 barcos e 25.000 homens, cercou em 1741 a cidade fortificada. Era uma frota tão impressionante que historicamente se compara em tamanho somente com a que desembarcou na Normandia durante a Segunda Guerra Mundial. Em contraste, para defender Cartagena, Blas de Lezo contava apenas com 6 navios e 2.830 homens, incluindo 600 indígenas e os civis que voluntariamente se alistaram no que parecia ser uma resistên cia suicida contra o impiedoso invasor inglês. Famintos, comen do ratos, morcegos e até cozinhando as solas dos sapatos para poder sobreviver, os cartagenos suportaram o cerco à cidade e finalmente triunfaram, graças àquele homem que fisicamen te era incompleto, mas pelo seu valor era um titã.
Dando sua vitória por segura, Vernon havia mandado cunhar moedas de ouro que mostravam Blas de Lezo de joelhos e as
havia chegado a Aracataca como empregado da United Fruit Company, empresa onde trabalharia durante trin ta anos. Era um homem severo, muito simpático e de poucas palavras, que revelava em suas feições sua origem europeia. Rosa chegou a conhecer seu avô na infância, Jorge Fergusson, um inglês que passou por Riohacha em viagem de negócios, mas decidiu se radicar na Colômbia quando conheceu a bela Helena Christoffel, uma jovem de origem holandesa, por quem ele se apaixonou à primeira vista. Educada em Curaçao, falava cinco idiomas, uma rara habilidade nessa época, além de ser uma talentosa pianista. Seguro de que essa era a mulher da
50 | Beatriz Parga seguintes palavras: “O orgulho espanhol humilhado por Vernon”. As moedas chegaram a entrar em circulação, mas rapidamente foram recolhidas depois da derrota da grande armada inglesa e o rei George II da Grã-Bretanha proibiu que se escrevessem crônicas sobre o massacrante fracasso; sequer se podia tocar no tema na sua presença. Apaixonada por essa história, Rosa admirava a valentia do almirante espanhol. No entanto, havia aqueles que lembravam seu avô de origem inglesa lamentando que, devido a esse fracasso naval, o sul do continente não conseguiu falar inglês. Assim, entre leituras, estudos e sonhos, Rosa foi se adaptando à sua nova vida de internato, apesar de inicialmente ter sentido muita falta dos mimos e da proximidade de seus pais, Pedro Fergusson Christoffel e Rosa Gómez Celedón, ambos nascidos em Riohacha, uma próspera cidade localizada em uma das regiões mais pitorescas e remotas da costa co lombiana.Seupai
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sua vida, o comerciante inglês conseguiu trabalho como tra dutor da Armada e uns dois meses mais tarde se casou com a bela Helena, que sempre seria o centro de sua existência e com quem montou um lar onde jamais se escutou uma palavra materno, a felicidade não foi possível devido ao manto de dor com que a morte assolou sua família. Seu avô, Manuel Gómez Brito, nascido em Riohacha e educado em Medellín, tinha um grande tino para os negócios. Em pouco tempo se tornou um grande fazendeiro, chegando a acumular uma grande fortuna até que, durante a fratricida Guerra dos Mil Dias, a insegurança que se apoderou dos campos acabou lhe levando à ruína. Além disso, teve de sobreviver à tragédia do falecimento de sua adorada esposa, Mamerta Celedón, na tural da costa atlântica colombiana, uma mulher muito bela segundo os retratos, e a quem toda a família se referia quase que com devoção depois que sua vida terminou tragicamente ao dar à luz a quem viria a ser a mãe de Rosa. Uma tragédia marcada por uma promessa de vida. Quando a mãe morreu, suas tias saíram apressadas em busca de uma vaca leiteira para alimentar a pequena bebezinha que todos descreviam como um “botão de rosa”, motivo pelo qual a chamariam de Rosa. Em meio ao luto familiar, todos se esforçavam em preencher o grande vazio afetivo que representava para a menina ser órfã desde tão tenra idade. A pequenininha cresceu na casa de seus avós e foi mima da até o exagero por toda a família, que nela viam a ima gem da mãe falecida. Mal tinha saído da adolescência quando
indelicada.Dolado
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particular, Rosa costumava recordar as histórias familiares transmitidas oralmente por seus antepassados de ge ração em geração. Era uma estratégia para manter vivos esses rostos queridos que pareciam desvanecer com o tempo. Esse costume de reviver as histórias de seus ancestrais, como quem vira as páginas de um álbum de fotografias, permitia à Rosa con servar com grande nitidez a lembrança de seu avô paterno, que havia morrido quando Rosa tinha apenas cinco anos. Esse triste episódio de sua vida ficaria para sempre gravado em sua memória junto com o rigoroso luto que lhe impôs sua mãe, seguindo um costume muito arraigado na costa colombiana e que impunha a
52 | Beatriz Parga conheceu o “filho do inglês”, como alguns chamavam Pedro ou Peter Fergusson. Casaram-se em Riohacha em uma grande festa presenciada por parentes de várias cidades da costa e, tal como haviam prometido ao unir suas vidas, permaneceram juntos até à morte. Tiveram cinco filhos — três mulheres — e nunca con seguiram se recuperar da dor da perda de um de seus filhos, que morreu de pneumonia aos quatro anos. À que seria a inesquecível primeira professora de García Márquez, deram o nome de Rosa Helena para honrar a memória de sua mãe e de sua avó paterna, a bela Helena Christoffel. No entanto, sempre a chamaram de Rosa. Pouco depois do nascimento de Rosa em Riohacha, seus pais decidiram buscar novos horizontes e se mudaram para Aracata ca, onde viveram até o final. O trabalho na United Fruit Com pany permitiu que dom Pedro mantivesse a família confortavelmente.Comorgulho
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tradição de as mulheres adultas usarem roupas pretas e as crian ças vestirem branco com adornos pretos. “Eu estou de luto, luto, do papai Jorge, Jorge”, cantava a menina em sua inocência, evocando com alegria a lembrança de seu querido avô. Sua felicidade causou surpresa entre os adultos, especialmente levando em conta que ela sempre sen tia uma predileção especial pelo venerável idoso. Não podiam imaginar que a alegria de Rosa se devia ao fato de ver tanto familiar ao seu redor, além de celebrar o aconteci mento que havia permitido que ela e suas irmãs estreassem ves tidos brancos de linho e tafetá. Em meio aos cânticos que por nove dias entoaram os parentes e amizades mais próximas que se reuniram para lhes oferecer consolo, Rosa esperava o regres so de seu avô. Haviam dito a ela que ele havia partido para “o céu”, e como toda vez que dom Jorge saía de viagem regressava com algum presente para a neta, ela pensava que ao retornar “do céu” o bondoso idoso lhe traria brinquedos e chocolates.
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movimento
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Somente vários anos depois, durante uma de suas medita ções no dormitório do internato, que Rosa captou pela primeira vez a estranha situação que envolvia o luto de seu avô. A sau dade desse ser tão querido e tão especial na sua infância a fez pensar na fragilidade da vida e o quanto seria difícil regressar à sua casa e descobrir que seus familiares ou amigos já não existem mais. Teve que juntar toda a sua energia para continuar lidando com sua vida de estudante, longe de casa, trancada em um internato do qual sempre lembraria, com sua disciplina repressora, seus longos corredores que evocavam a presença de fantasmas à espreita, seus quartos silenciosos e ordenados
54 | Beatriz Parga e seus pisos frios impecavelmente limpos, de tal forma que a diretora da escola garantia que qualquer um podia comer no piso sem temer aos micróbios. No final, sempre evocaria com um misto de tristeza e alegria a lembrança dos longos anos em que se ausentou de sua casa. Os sentimentos de regozijo tinham a ver com os vínculos de camaradagem e irmandade que estabeleceu com algumas companheiras de estudo, além de ter podido realizar seu sonho de se tornar uma mulher capaz de prover seu próprio sustento como professora. As lembranças menos agradáveis se referiam a pequenos detalhes da vivência diária, como as madrugadas com o indispensável banho de água fria ou a dificuldade que teve para aprender como amarrar os sapatos do uniforme, tão diferentes das sapatilhas fechadas e sem salto que ela estava acostumada a usar em Aracataca. E sem falar da angústia que experimentava toda vez que tinha que colocar as meias longas e finas, que chegavam até acima dos joelhos e eram presas com umas ligas apertadas. Em mais de uma ocasião lhe escorreram lágrimas de impotência porque eram feitas com um material excessivamente frágil, de tal forma que quando, com dificuldade, Rosa conseguia levantá-las até onde deveriam ficar presas, já estavam cheias de furos. Sua falta de destreza nessa tarefa tão feminina, que para Rosa parecia uma arte extraordinária, atraiu a atenção de uma moça solidária chamada Magdalena, alguns anos mais velha que ela, que não apenas a ensinou o truque para colocar as meias sem rasgá-las, como também acabaria se tornando sua primeira amiga dentro do internato. Cheia de saudades, Magdalena
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Sem qualquer hesitação, convencida de que no âmbito pes soal cada qual deve pensar em buscar as metas mais altas de esforço e superação, Rosa não tinha vergonha em afirmar que sua ambição consistia em “ser a melhor professora do mundo”. No final, conseguiu seu objetivo graças ao diretor da Secretaria de Educação, um homem muito sério que visitou o povoado em uma tarde providencial. Vencendo seus temores de falar com estranhos, Rosa se aproximou para dizer a ele que Araca taca não tinha uma Montessori, mas, se houvesse uma nomea ção, ela estava disposta a organizá-la e se empenhar como dire tora e professora. O alto funcionário ficou tão impressionado pela determinação da jovem que, poucos dias depois, Rosa receberia uma carta com o selo do governo, anunciando a desejada nomeação. Era difícil descrever sua alegria ao ver seus esforços coroa dos com um posto no magistério, carreira que naquela época se encontrava entre as muito poucas profissões aceitáveis para uma “mulher decente”, como as pessoas daquele período cos tumavam dizer em tom severo. Cheia de entusiasmo e confiança, Rosa começou a organi zar a Montessori de Aracataca. Sua primeira tarefa consistiu em desenhar as carteiras e os assentos de acordo com a idade de seus alunos para que um carpinteiro local os fabricasse, em
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falava de um namorado que teve em seu povoado e que havia partido à capital para estudar engenharia. “Quando ele regres sar, até lá já terei terminado os meus estudos e poderemos nos casar”, dizia, entusiasmada com a ideia de ter uma casa grande, cinco filhos e pelo menos uma empregada e uma cozinheira.
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56 | Beatriz Parga três tamanhos distintos. O esforço em aparecer diariamente na carpintaria onde as tábuas iam tomando forma fez com que ficassem prontas dois dias antes do início das aulas. Mais tarde se dedicaria a limpar e embelezar a sala de aula com a vontade de quem consegue realizar o sonho da sua vida.
onde quer estudar sua filha e a ajudaremos — respondeu o alto funcionário, confirmando que as oportunida des na vida estão abertas àqueles que as buscam.
Da mesma maneira, indagando e pedindo ajuda, havia con seguido uma bolsa de estudos para estudar em uma escola secundária.—Diga-me
Acasa de Rosa ficava localizada na quadra da frente, em sentido diagonal, dos avós de Gabito, dona Tranquilina Iguarán e seu esposo, o coronel Nicolás Márquez, um homem com uma aparência severa forjada no tempo que passou lutando na Guerra dos Mil Dias. No povoado o conside ravam um herói e diziam que havia perdido o olho direito em uma dessas batalhas. Apesar de a amizade existente em alguma época entre o coronel Márquez e dom Pedro Fergusson, não costumavam se reunir. Rosa suspeitava que, por estarem em lados opostos sobre a presença da empresa norte-americana, e não com partilhar do mesmo ponto de vista quanto aos eventos que culminaram no conflito entre a United Fruit Company e os trabalhadores, optaram por manter uma relação cordial mas distanciada.Ocoronel era casado desde tempos imemoráveis com dona Tranquilina, essa avó cheia de imaginação que relatava con tos de bruxas e assombrações com a mesma seriedade de um
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Entre realidades e mitos V
Tranquilina começava a descrever uma mulher cujo rosto não tinha conseguido identificar na escuridão, mas usava sapatilhas pretas e uma vassoura, e sob a luz da lua pa recia um ser sobrenatural.
— Sabiam que ontem à noite uma bruxa pousou no teto da minha casa? — dizia dona Tranquilina, no meio da conversa.
Nem os mais céticos se atreviam a duvidar da seriedade de suas palavras. Então, começava uma dissertação sobre fantasmas e seres fantásticos que os adultos reforçavam en quanto os adolescentes e as crianças indagavam com receio da escuridão, sentindo medo inclusive de suas próprias sombras. Esses casos se prolongavam até altas horas da noite, mas colocavam as crianças para dormir mais cedo. Sem protestar, Gabito ia para o seu quarto enquanto na sonolência rondavam
— Ficou um bom tempo sem se mexer, flutuando sobre o teto e de um momento para o outro desapareceu — dizia com voz muito segura.
58 | Beatriz Parga professor de história. Sem se importar com a inverossimilhança, todos terminavam garantindo que eram verdadeiros.
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— Como é possível, comadre? — perguntava uma voz entre os atentos ouvintes.
— Conte-nos como era a bruxa — expressava Gabito, com curiosidade.Entãodona
Essas palavras lhe davam vida a uma nova história que co meçava analisando o motivo que havia levado o ser sobrena tural a voar sobre o povoado e a mensagem que queria trans mitir ao pousar desafiadora no teto da casa.
Logo já havia se tornado o ser mais repudiado da localida de. Os homens a olhavam com um misto de zombaria e medo,
A professora
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O que se falava em voz baixa era sobre os feitiços de uma bruxa que havia se mudado para Aracataca buscando novos clientes entre o crescente fluxo de gente. A princípio, ninguém conhecia a recém-chegada. Mas, em se tratando de um po voado pequeno, não demorou muito para que todos, embora jamais tivessem trocado uma palavra com ela, soubessem de suas supostas feitiçarias.
as imagens das conversas da avó e dos mortos em batalhas do coronel.Àsvezes,
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o nervosismo dos ouvintes chegava à sua expressão máxima quando de repente se escutava o barulho causado por um coco, que, ao se desprender do coqueiro, caía sobre algum te lhado de zinco nas proximidades. Então, todos se benziam apres sadamente esperando que o sinal da cruz sobre seus peitos lhes ajudasse a espantar os maus espíritos. A professora se lembrava de dona Tranquilina como sendo uma mulher com muito carisma e ingênua. Acreditava em to dos os tipos de superstições. Se uma borboleta cinza entrava na casa, era presságio de doença; se a borboleta era preta, iria ocorrer uma morte; se chegava um besouro, era sinal de uma visita inesperada; se um galo cantava várias vezes durante a noite, era agouro de más notícias. Por causa disso, na vizinhança todo mundo começava a sentir aversão por um galo deso rientado que cantava a qualquer hora da noite, até que para prevenir contra a má sorte seus donos acabavam colocando -no na panela para fazer uma canja.
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60 | Beatriz Parga as mulheres a evitavam e, quando a viam caminhando na mesma rua, passavam para a outra calçada para não toparem com ela. As crianças a olhavam aterrorizadas depois de ter ouvido em suas casas as ameaças de como essa mulher tenebrosa devorava crianças que não comiam sua sopa, ou os transformava em sapos se contassem mentiras. Por outro lado, outras crianças que se achavam valentes a atiravam pedras enquanto gritavam: “Bruxa, bruxa, bruxa!”.
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Tempos depois ficou sabendo. Casada e com quatro filhos, ocorreu à pobre mulher que a recém-chegada poderia lhe ajudar a resgatar seu marido dos braços de uma adolescente
Como a maioria dos habitantes do povoado, Rosa se sentia incomodada com a sua presença. De fato, em alguma ocasião em que a professora e Gabito caminhavam até a escola e a en contraram, a professora passou silenciosa ao seu lado. Depois disse ao menino que evitava sempre “brincar” com o desco nhecido. Gabito não respondeu, mas parecia ter entendido a que se referia. No final das contas, sua avó costumava falar de defuntos que flutuavam pelos quartos da casa e que, se ele se comportasse mal, viriam para castigá-lo.
— Gabi, de todas as formas, não há porque ter medo dos mortos. Deve-se ter medo dos vivos, esses sim podem causar danos — dizia Rosa enquanto caminhavam à escola.
Algumas vezes, quando Rosa ficava na escola até tarde, sur preendia-se ao ver que Alicia, a mãe de Manolito, caminhava furtivamente pelas ruas menos transitadas do povoado. Até que um dia não teve dúvida de que saíra da casa da bruxa. “O que ela foi buscar?”, perguntou-se Rosa.
Atormentada pelos ciúmes, um dia foi procurar a bruxa. Ba teu timidamente na porta quando já era noite, protegendo-se nas sombras para que ninguém a visse. A feiticeira a recebeu, uma mulher de tez amarelada, olhos de gato e cabelos muito negros, que, sem fazer pergunta alguma, fez com que a acom panhasse até um quartinho em que havia somente uma pe quena mesa de madeira sem tinta, um ventilador enferrujado e duas cadeiras forradas com pele de vaca, bastante desgasta das. As paredes estavam cobertas com imagens de santos e palavras escritas em um idioma estranho. Pegou uma pequena toalha de seda com figuras astrais e em cima colocou uns nai pes muito gastos. “Separe um monte”, disse-lhe. Hesitante, a mulher separou um grupo de cartas que a bruxa recolheu cui dadosamente para embaralhar.
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Depois foi colocando lentamente sobre a mesa. Ao fazê-lo, mostrava-se muito preocupada.
Alicia pareceu confirmar suas suspeitas de que havia algo fora do normal nesses amores. O coração batia apressadamen te, sentindo que a angústia ia subindo até a boca como uma bes ta assustadora que subia por sua garganta, decidida a asfixiá-la. Apavorada, sentia sua língua tão seca que grudava na boca. No entanto, a bruxa a tranquilizou.
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negra por quem estava perdidamente apaixonado e para quem comprava os melhores vestidos e bijuterias que os ciganos e os comerciantes turcos traziam ao povoado.
— Seu homem está enfeitiçado — disse-lhe. — Vejo outra mulher que o deixa louco porque tem bruxaria no meio.
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Nessa noite, ao voltar para casa, encontrou seu marido na porta. Estava de saída. — Por onde andava? — ele perguntou. Um pouco envergonhada, Alicia respondeu que havia ido por alguns minutos à igreja. Ele pareceu ter acreditado, e, sem pedir muitas explicações, seguiu seu caminho indicando que ia cobrar um dinheiro que lhe deviam. Enquanto a empregada lavava os pratos do jantar, Alicia foi colocar seus filhos para dormir. Mais tarde passou creme de amêndoas por todo o corpo para suavizar a pele, penteou-se fazendo uma longa trança e se perfumou com uma colônia francesa que havia comprado dos ciganos. Com a expectativa de uma noiva que espera o seu namorado, antecipava satisfa zer seu marido, que voltaria em pouco tempo. Entretanto, o jantar ficou sobre o fogão. Suado e sem se barbear, ele voltou
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Posso desfazer esse feitiço — disse-lhe acrescentando que para fazê-lo precisaria de uma mecha de cabelo e uma fotografia do marido. Alicia tinha ouvido falar que quando se consultam os bruxos e videntes, às vezes algumas coisas se cumprem, mas aquilo que se realmente busca acaba perdendo. No entanto, decidiu desafiar os conselhos de uma prima que se opunha à busca de ajuda por meios sobrenaturais e, empenhada a resgatar seu marido do perigoso caminho dos amores proibidos, dias de pois regressou à casa da bruxa com uma mecha que consegui ra cortar do seu infiel consorte, argumentando que tinha umas pontas desiguais de cabelo sobre a nuca. Levou também uma fotografia recente, tal como a feiticeira havia pedido.
— Meu marido não melhora. Agora se ausenta mais do que antes — disse-lhe.
No desespero de seguir com sua busca, Alicia parecia já não mais se importar que pudessem a ver entrando na casa da
— Acordou cedo esta manhã — disse Rosa.
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Alicia visitou a bruxa de novo, desta vez de dia, cruzando com Rosa em um sábado, bem cedo.
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Duas semanas depois, voltou a procurar a bruxa.
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— Ah, sim. Tenho que ir comprar farinha de milho para fazer as arepas do café da manhã — respondeu Alicia com uma ponti nha de insegurança na voz. Rosa, que havia cruzado na rua com Alicia em duas ocasiões anteriores, deu-se conta de que estava mentindo.
“Por onde andava? Que mistério é esse?”, Rosa se perguntava.
somente na manhã seguinte com a roupa exalando um perfu me penetrante de um patchouli barato com essência de jas mim que ela já reconhecia.
A bruxa pediu então que trouxesse algumas unhas, algo que não foi tão fácil de conseguir. Por fim, depois de bajular seu marido e lhe cortar as unhas fazendo-o acreditar que en quanto faziam amor ele a havia arranhado as costas, chegou até a feiticeira com seu troféu.
— Agora vai ver como seu homem vai mudar — disse-lhe a bruxa, enquanto a mulher lhe entregava um pequeno maço de Nodinheiro.entanto, as semanas foram passando e não se notava nenhuma mudança. Em vez disso, seu marido passava mais noites fora do que em casa.
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— Vida minha, espere um momento — disse, saindo para abrir a Eramporta.quase imperceptíveis os sussurros trocados entre a bruxa e a recém-chegada. Para passar o tempo, Alicia decidiu dar uma volta pelo quartinho. Curiosa, aproximou-se de um canto quase escondido por uma cortina; atrás havia várias foto grafias. Então, iluminada por uma vela, acreditou ver o rosto de seu marido. Aproximou-se, e, ao pegar a foto nas mãos, deu-se conta de que era ele, muito sorridente, no que parecia ser uma celebração, por estar vestindo sua roupa favorita. As margens do papel estavam recortadas, possivelmente para excluir outras pessoas que estavam ao seu lado.
64 | Beatriz Parga feiticeira ou que alguém contasse a fofoca ao padre Angarita. Pensando em conseguir que o feitiço fosse mais eficaz, levou em sua bolsa uma fotografia maior que a anterior.
— Minha vida, vamos ter que fazer algo mais forte. Mas não sei por que seu marido tem um rosto que me parece conhe cido — disse a bruxa, enquanto franzia a testa e forçava seus olhos míopes, tentando ver com clareza a imagem que Alicia a entregara. Sentaram no pequeno quartinho, a bruxa escutando e a cliente chorando. Estava contando das longas noites com o leito vazio e o travesseiro banhado em lágrimas quando escutou uma voz feminina chamando a feiticeira diante da porta.
— O que a foto do meu marido está fazendo aqui? — per guntou Alicia surpreendida ao mesmo tempo em que a feiti ceira voltava à pequena saleta.
Finalmente, o diagnóstico do médico foi como uma sentença de —morte:Está louco, irremediavelmente louco.
— Esse é o seu marido? Não pode ser! — disse a bruxa. E logo acrescentou: — Agora entendo porque seu rosto me pa reciaDefamiliar.ummomento
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Alheio ao que se passava ao seu redor, o homem parecia es pantar uns fantasmas imaginários enquanto gritava alterado: — Afastem-se de mim, não se aproximem de mim. Que ca ras tão horríveis! Vão embora, me deixem em paz — suplicava. A United Fruit Company, onde ele trabalhava, buscou os melhores doutores em problemas da mente. Dias mais tarde chegaram uns enfermeiros que o levaram amarrado para o manicômio de Bogotá. Desolada, Alicia agora teria que enfrentar o mundo sozinha, com seus quatro filhos pequenos. Não lhe restou outra opção
— Ele pertence mais a você, que é a esposa e a mãe de seus filhos — disse a bruxa. — Não se preocupe que eu vou consertar isso.
para o outro havia descoberto que o homem de óculos estava sob o mesmo feitiço da esposa e da concubina.
Uma semana depois, Alicia dormia com seu marido na cama de casal quando um grito a acordou assustada. Era seu mari do, que delirava desesperado enquanto dava voltas na cama. O lençol estava encharcado de suor e sua testa ardia em febre. O médico pensou que podia ser uma meningite. Mas a febre baixou e ele continuou delirando. Via fantasmas e monstros.
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66 | Beatriz Parga senão se mudar com seus filhos para Barranquilla, onde vivia suaDepoisfamília.de desocupar a casa, enquanto estava de saída para pegar o trem com sua família, sua prima a olhou com compaixão.
O tão falado incidente fez com que a bruxa fosse embora do povoado. Pelo menos, ninguém mais a viu. Alguns diziam que se tornou invisível quando foi descoberta, temendo que alguém decidisse queimar sua casa enquanto dormia. Mas ou tros garantiam que se encontrava em algum canto da região, voando de noite sobre os telhados para assustar as pessoas.
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— Zape! — dizia dona Tranquilina quando alguém queria saber sobre feitiçarias. Esse assunto era um tabu e não se to cava nele de forma algum devido a uma sentença bíblica que afirmava que aqueles que se consultam com videntes serão desenterrados do paraíso no dia da ressurreição dos mortos. Por isso, até tocar nesse tema era proibido.
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Dona Tranquilina garantia que depois da morte os espíritos continuavam rondando o mundo dos vivos. Por isso, quando alguém morria, oravam para que sua alma não voltasse para in comodar. Mais de uma vez, ao sentir um leve cheiro de enxofre, que certamente chegava trazido pelos ventos ao passar pelas águas termais nas proximidades do povoado, dava para escutá -la dizer alarmada: “Esse é o demônio se aproximando”. Então mandava trazer uma garrafa que tinha guardada e regava água
— Eu lhe disse, quando vai pedir aos videntes que mudem seu destino, há um castigo divino. Aquilo que tanto se deseja no final é o que perde. Está vendo, seu marido não pertence a mais ninguém — disse desolada.
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benta pela casa ao mesmo tempo em que todos faziam o sinal da cruz e ela ordenava ao espírito que fosse embora do povoado. Era assim como terminava a tertúlia e em meio a um ambien te de pavor e mistério, todos iam dormir. Ao se despedir e se dirigir aos seus aposentos, cada um olhava com um receio dis simulado pelos cantos escuros de suas casas, embora raras ve zes os adultos chegassem a admitir seus temores. Essas reuniões entretinham todos e contribuíam para es treitar os vínculos entre todos na vizinhança. O interesse que despertavam os fenômenos paranormais não conhecia bar reiras entre gerações e todos podiam participar sem diferen ça de idade; as crianças e os jovens fazendo todo o tipo de perguntas, e os adultos contando suas experiências e apari ções arrepiantes com uma firmeza de quem vivenciou muito e presenciou visões sobrenaturais. O certo é que até os céticos participavam com algum comentário que, ao invés de dissipar as dúvidas, parecia confirmar a existência de um mundo invisí vel e a necessidade da oração para não serem apanhados pelo tormento dos espíritos.
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Dom Nicolás e dona Tranquilina tiveram três filhos: Margarita, que era a mais velha e morreu muito jovem de tifo; Juanito Márquez, que era muito parecido com sua mãe tanto fisica mente quanto no modo de ser, e Luisa, a menina mimada da família — não apenas por ser a caçula, senão porque assim que morreu sua irmã mais velha seus pais a encheram de um carinho muito especial. Tanto seus pais como suas tias se esforçavam para agradá-la em tudo. Era um pouco mais velha que Rosa, mas desde sempre tiveram uma grande amizade,
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Um povo de lenda VI Meio
século depois de ter sido sua professora, Rosa se sentia surpresa ao pensar como o seu aluno, que deixou o povoado antes de completar oito anos, conseguiu captar em uma idade tão tenra e com tanta pre cisão o mundo que o rodeava. Maravilhada, ao mergulhar no realismo mágico de cada um de seus livros, não havia apenas redescoberto a identidade dos personagens que habitavam esse povoado de lenda, com também começou a resgatar em sua memória as imagens que já haviam se tornado retratos amarelados das pessoas mais queridas, sua própria família.
70 | Beatriz Parga que sofreu um pequeno parêntese quando Luisa se casou com o telegrafista que havia chegado recentemente ao povoado, Gabriel Eligio García, e o jovem casal foi embora de Aracataca.
Ao contrário do coronel, que nunca gostou do seu genro, Rosa achava que o marido de Luisa tinha muitas qualidades: era de bom caráter, refinado, estava sempre sorrindo e tocava violino com muita emoção, o que lhe acrescentava um toque a mais de refinamento. Ao chegar ao povoado, o jovem telegrafista se sentiu atraído por Rosa. No entanto, a professora não estava interessada nele. Alguns dias mais tarde o recém-chegado começou a cortejar Lui sa, ocasionando na residência dos Márquez uma hecatombe de dimensões colossais porque o coronel pensava que o preten dente não estava à altura de sua filha, para a qual ele queria um marido com uma profissão mais prestigiosa. No início o coronel simpatizou com o telegrafista, que não ocultou seu propósito de se estabelecer na cidade. No entan to, assim que ficou sabendo que estava interessado em sua filha, as coisas mudaram. Não o via à altura de Luisa, para quem buscava alguém com uma profissão universitária, como advocacia ou medicina. Diante da inutilidade de seus esfor ços para impedir que os namorados se vissem, mandou sua Luisa para uma viagem longa, que durou várias semanas. Mas quanto mais se opunha a esse amor, mais o jovem casal se empenhava em defender seus sentimentos.
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A jovem, herdeira do caráter dos Márquez e dos Iguarán, era dona de uma determinação admirável. Sonhava em ter um lar e se impunha com seu caráter firme e sem jamais
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O jovem casal decidiu não dar o braço a torcer e se mu dou para La Guajira, o mais distante possível da residência dos Márquez. O coronel somente abaixou a guarda quando ficou sabendo que sua filha lhe daria um neto. Foi então que de cidiu ampliar a casa para acomodar a nova família. Detrás da casa havia um pátio enorme, e aproveitando o espaço mandou construir ao lado da casa principal uma segunda casa de madei ra, com o teto de zinco, localizada diante do quarto de solteira de Luisa. Foi ali onde mais tarde nasceu Gabito, bem na frente de um pequeno jardim de rosas que a pequena Francisca plan tara com a ajuda dos índios guayú.
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Quando Luisa foi embora do povoado, cresceu a amizade entre Rosa e a menina Francisca Mejía, que cuidava com a pre cisão de um relojoeiro suíço da organização e do serviço da casa dos Márquez. Rosa a descrevia como uma das mulheres mais trabalhadoras e produtivas que havia conhecido.
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recuar. Com uma convicção inabalável cimentada na firmeza de seus sentimentos, acabaria por se casar com o homem que amava, conseguindo passar por cima da inclemente opo sição do coronel, para quem o telegrafista era e seria sempre “umComforasteiro”.muitarelutância, o coronel acabou aceitando assinar a ata oficial permitindo que os noivos se casassem, um requisito da época porque a noiva ainda não havia completado vinte e um anos, quando se atingia a maioridade. No entanto, firme em seus princípios, o venerável patriarca se negou a ir ao ca samento, por isso Luisa teve de passar pela dor de se casar em Santa Marta sem a presença de seus pais.
Outra das características da menina Francisca consistia em se tratar de uma mulher muito ativa; não conhecia a palavra ócio e, além de cuidar da casa, encarregava-se pessoalmente de lavar, passar e guardar as toalhas da igreja, além de lustrar todos os ornamentos. Ninguém podia fazer isso como ela; nos engomados de linhos irlandeses e suíços não se via sequer uma única parte amarrotada, e todos eram conservados sempre branquíssimos. No final de sua vida, antecipando a sua des pedida, teceu seu próprio sudário. Com isso se demonstrava a organização e integridade dessa mulher, que parecia estar presente em cada detalhe da vida familiar.
Apesar de Gabito estar acostumado a ir à escola com sua professora, outras vezes ia com a menina Francisca, que, além disso, às tardes, o levava à igreja na hora do rosário, onde em algumas ocasiões o padre Angarita lhe permitia exercer a função de coroinha com o roupão vermelho. Não passava despercebido para Gabito o porte que ela tinha ao caminhar, muito ereta, com uma suavidade peculiar que parecia que es tava flutuando. Era uma mulher delgada, de estatura media na, cabelos longos até a cintura quase sempre presos em uma trança. Vestia longas saias brancas que chegavam até os pés, e blusas fechadas no pescoço, com mangas até os cotovelos que engomava e passava no ferro com total perfeição.
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72 | Beatriz Parga
Com o transcorrer dos anos a professora conservaria sem pre fresca a lembrança da casa grande em que viviam os avós do escritor, com tetos de palmeiras e paredes de pau a pique, como quase todas as casas do povoado. Segundo Rosa, a casa dos Márquez era uma das melhores de Aracataca. Ali moravam também as filhas de dom Nicolás e
se vestiam com calças brancas de tecido de algodão cru, mas quando descansavam usavam túni cas de algodão e se entretinham tecendo redes. Não gostavam de conversas com as pessoas do povoado, nem com os habitan tes da mesma casa. Compreendiam quando alguém lhes falava em “cristiano”, como chamavam o castelhano, mas preferiam se comunicar entre si em seu próprio idioma. Nunca haviam ido à escola e não sabiam ler nem escrever, nem consideravam útil aprender algo alheio à sua cultura ancestral.
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Dom Nicolás Márquez era muito respeitado em Aracataca, onde seus habitantes o viam com um halo de mistério, já que nunca se gabava de suas arriscadas campanhas cruéis em épocas políticas difíceis e caracterizadas por ódios partidá rios, nem falava sobre o motivo que o fez escolher morar em um povoado tão remoto. O mistério havia sido confiado por dona Tranquilina à mãe de Rosa, uma tarde em que revelou que Cataca foi o refúgio perfeito para se esconder da vingan ça dos irmãos de um homem que o desafiou a um duelo em que dom Nicolás saiu vencedor.
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Entre os personagens dos livros Rosa também reconheceria Margot, a terceira filha na linhagem da família García Márquez, uma menina caladinha, pálida e magrinha que nasceu quando os pais do escritor já haviam se mudado à Sincé. Preocupada com a saúde de sua neta, dona Tranquilina a levou para morar
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dona Tranquilina, sua filha Luisa, a tia Elvira, a menina Francis ca e a prima Sara, além dos serviçais, que incluíam três índios guayú que chegaram com a família Márquez quando se esta beleceram em Cataca, nome com o qual muitos se referiam à populaçãoDurantecaribenha.odia,osguayú
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Prosseguindo, a preocupada avó descreveu como às vezes a pequena Margot se sentava para brincar no quintal, muito quietinha. Ao se aproximar, pegou Margot de surpresa comen do terra. Foi assim que descobriram que a causa da desnutri ção da menina se devia ao seu curioso gosto. A partir desse dia as mulheres da família viviam vigiando essa menina de uma saúde debilitada, consequência de seu raro gosto gastronômi co que a levava a desprezar a comida que colocavam na mesa por causa de sua predileção pela lama do quintal.
74 | Beatriz Parga em sua casa com a esperança de que seus cuidados ajudariam a menina a ganhar peso. — Não imaginam o que acabo de descobrir — um dia dona Tranquilina disse à Rosa.
De cabelos claros, olhar inocente e com um ar quase in fantil — com exceção de suas mãos enormes — havia um personagem singular na vida de Aracataca. Era Benítez, o eletricista e aprendiz de mecânico que se apaixonaria por Meme e que, por um truque maquiavélico, acabaria em uma cadeira de rodas, acusado injustamente de roubar galinhas. Na vida real Benítez se gabava da vida como eletricista, tro cando fusíveis e consertando todo tipo de danos enquanto que, por circunstâncias misteriosas, as borboletas o seguiam pelo povoado. Alguns o acusavam de divulgar os segredos de alcova que inexplicavelmente se transformavam no fala tório dos fofoqueiros. Então, inevitavelmente, culpavam o eletricista de olhos de sonhador e ouvidos sempre alertas. No final das contas, por estar sempre consertando fios em todas as casas, era fácil que ficasse sabendo dos segredos
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A professora e o Nobel - Gabriel García Márquez | 75 que alguns guardavam sob sete chaves, motivo pelo qual as comadres tagarelas encontravam no eletricista o bode expiatório de todos os enredos que haviam descoberto.
Esses personagens cotidianos na vida de Aracataca e suas extraordinárias transformações ao ingressarem nas obras do escritor faziam Rosa sorrir, admirando a genialidade daquele que havia sido o seu aluno. — Gabito, você é único, tem uns casos... — dizia entre ri sadas.
Anos mais tarde, Rosa se lembraria com saudades as vivên cias e anedotas do pequeno povoado da sua juventude, esse com telhados de zinco e palmeiras, paredes branqueadas e
— Então pode ser jornalista, escritor, advogado. Quando se tornar famoso, não se esqueça de mim.
Uma manhã em que caminhavam rumo à escola, pou co depois de terem parado para tomar leite morno na casa de dona Juana, a conversa entre Rosa e Gabito começou a tocar em temas mais sérios do que o gelo, a cor cunda do camelo do circo ou os espíritos que rondavam pelos quartos na casa do garoto.
F3f As espumas do rio VII
também me perguntou a mesma coisa — disse o menino.—Não se preocupe, é muito cedo para saber, mas a vida vai lhe indicando. Tem que fazer algo que goste.
— Não a esquecerei nunca — respondeu Gabito.
— Gabi, o que quer ser quando crescer? — perguntou a professora.—Meuavô
— Gosto muito de ler — disse o garoto.
Rosa e as mulheres do povoado viviam em uma luta perma nente contra o pó e o suor, que grudavam no cabelo tirando -lhe o brilho e o volume. Acostumaram a lavar o cabelo a cada três dias com sabonete e depois, para clareá-lo, passavam um pente molhado com chá de camomila ou um chá de linhaça
78 | Beatriz Parga rodapés e batentes de cores vivas que oscilavam entre o vermelho, o laranja e o verde. No entanto, não deixava de se admirar de que na sua juventude não costumava identificá-lo com o paraíso. Naqueles tempos, as imagens de uma jovem sonhadora não combinavam com as pinceladas do quadro perfeito executado por um pintor romântico. Com os pés na terra, Rosa se dava conta de que Aracataca, o povoado longínquo e empoeirado que seus pais tinham escolhido para morar, não oferecia oportunidades distintas que não fosse trabalhar na United Fruit Company. Por outro lado, talvez seus genes não fossem projetados para o calor tropical, e esse povoado que adorava com a alma, nas horas de mais calor se aproximava da sucursal do inferno. De fato, a temperatura subia quase que diariamente aos trinta e nove graus centígrados e caminhar pelas ruas ao meio-dia era uma tortura. Nem as amendoeiras pareciam dar sombra em meio desse torpor que grudava na pele sem dar trégua. Para aliviar um pouco esse excesso de calor, alguns recorriam a táticas lendárias nascidas do bom senso, como o costume de transitar sempre pelo lado sombreado da rua, proteger a cabeça com um chapéu de aba larga ou caminhar com uma sombrinha. Do mesmo modo, todos conheciam as refrescantes vantagens da roupa feita de algodão ou de linho, assim como a importância de usar a cor branca.
— Olha que cabelo mais lindo que tem a senhorita Rosa — disse-lhe a mãe de uma de suas alunas.
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Ter os cabelos brilhantes era a melhor carta de apresenta ção de uma mulher. Por esse motivo Rosa e suas irmãs cos tumavam escovar o cabelo por vários minutos antes de se deitarem para dormir. Nessa época havia uma escova muito cobiçada entre as mulheres da alta sociedade da Europa, ela borada com pelo de camelo. Foi trazida como uma novidade pelos comerciantes turcos que chegavam ao povoado com mercadorias e objetos exóticos da civilização, que incluíam louças de Limoges com bordas de ouro, talheres de prata, sedas da China, espartilhos finíssimos para delinear a figu ra feminina, unguentos que eliminavam as dores e excen tricidades que pareciam alheias a um povoado tão distante, mas que de todas as maneiras encontravam uma fiel clientela. Não há dúvida que esses comerciantes sabiam como vender; não existe ninguém como eles capazes de falar sobre as van tagens e propriedades dos produtos que ofereciam. Esse era o caso da cobiçada escova de camelo, que garantiam ter pro priedades especiais que proporcionavam fortaleza e brilho aos cabelos. Os eficazes comerciantes não deixavam de es clarecer que era importante escovar cem vezes todos os dias. Mas ninguém parecia duvidar da escova inovadora que tinha um preço escandaloso e que, no entanto, era vendida como pão quente na padaria.
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que alisava o cabelo ondulado e era o favorito das crianças e dos homens, que à moda da época usavam o cabelo duro e grudado como se tivessem colocado cola.
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— Ali vêm os burros! Vamos, corram que já estão chegando — ouvia-se as crianças gritando com alegria seguindo os man sos quadrúpedes em seu percurso pelas ruas levando sobre seus lombos umas pesadas vasilhas metálicas carregadas com água do rio.
Mais de uma vez Rosa viu uma lágrima furtiva escorrer pela pelúcia cinza dos nobres pôneis cujos lombos pareciam se en vergar com o peso que carregavam. As crianças saíam para lhes dar as boas-vindas com gritos e risadas, causando um grande alvoroço ao mesmo tempo em que lhes ofereciam pedacinhos de rapadura, que os pequenos animais recebiam felizes.
80 | Beatriz Parga Outro segredo era utilizar a água mais apropriada para lavar os cabelos. Aracataca não contava ainda com aqueduto e a água que se consumia nas casas vinha de três origens distintas: a que se extraía do poço, a que transportavam do rio e a que se recolhia quando chegavam as chuvas.
A casa do coronel, igual à de Rosa, tinha seu próprio poço com uma bomba manual. Uma tubulação transportava o cobi çado líquido até o corredor dos quartos, muito perto da sala de jantar, onde havia uma bacia e um jarro para lavar as mãos. Além disso, a uma distância moderada para que o sabão não contaminasse o poço, encontrava-se uma pia para lavar os pra tos e as panelas. No entanto, a água do poço não servia para beber nem para lavar os cabelos porque, por algum erro de cálculo, ao escavá -lo, a água ficou salobra pelas infiltrações marinhas do subsolo. Esse era o motivo pelo qual a água do rio era imprescindível em todos os lares.
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Costumavam ferver a água do rio para eliminar as amebas e os parasitas tropicais. Depois, deixavam para descansar em temperatura ambiente e a despejavam em filtros de pedra ou em potes de barro para eliminar o desagradável sabor que tem a águaMasfervida.aágua que se recebia como uma bênção dos céus e celebrada com alegria era a que as chuvas traziam.
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Alguns empreendedores donos dos burros haviam coloca do em prática seu espírito comercial ao criar miniempresas de distribuição de água do rio, quase sempre turva, mas que as ágeis donas de casa se ocupavam de clarear adicionando nos potes umas duas colheres de cristais de alumbre. Ao misturar o líquido com um pedaço de pau grande, como por um passe de mágica se tornava transparente diante do olhar surpreso dasEmcrianças.umlugar tão quente, era natural que todos tomassem banho duas vezes ao dia: de manhã pela higiene e a segunda vez, à tarde, para se refrescar. Era então quando se sentiam todos renovados que desfrutavam a melhor parte do dia: os homens se reuniam no café, as mulheres — liberando uma forte fragrância de colônia e pó de jasmim — se sentavam diante dos portões com seus leques e as crianças saíam para brincar na rua, limpas e penteadas, enquanto tomavam o lanche da tarde, que consistia em um copo de aveia com leite e baunilha e uma fatia de pão com manteiga.
— Vai chover! Corram, preparem as canecas! — já se ouvia alguém gritando antes que todos na casa começassem a se movimentar. A ocasião era como uma festa que começava
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Em um dia normal, Rosa se levantava às seis da manhã e, depois de cruzar o quintal, passava pelo quartinho sanitário antes de continuar até outra construção parecida que servia para tomar banho, cada uma de pouco menos de três metros quadrados. Por serem tão pequenos, eram muito quentes e a umidade atraía os mosquitos, assim o prazer de tomar banho incluía a tarefa de dar tapas a torto e a direito para repelir seus incômodos ferrões. Uma vez Rosa encontrou uma cobra atrás da bacia de água, daí a preocupação de revistar todos os can tos para evitar um encontro com os perigosos répteis ou com umTalvezescorpião.porque a água era tão importante na vida diária do local e por evocar uma sensação refrescante, que Rosa sempre
82 | Beatriz Parga com a brisa agitando as árvores, espalhando sobre os tetos e corredores folhas verdes e amarelas. Em um instante, a chuva chegava salpicando todos enquanto os pássaros faziam um grande alvoroço com seus cantos e bater de asas. Cada um se ocupava de ajudar na tarefa de aproveitar a água clara e cristalina que escorria pelos telhados de zinco até as canaletas que a transportavam para enormes canecas metálicas. Quando enchiam, eram cobertas com uma tampa com o duplo propósito de que as aves e os roedores não as utilizassem, e para que não caíssem impurezas dentro. A água de chuva era a favorita para beber e preparar os alimentos na cozinha. Isso consistia em parte da rotina de todas as casas que incluía se ocupar em certificar que as canaletas estavam sempre limpas e bem posicionadas para quando as chuvas chegassem. Na casa de Rosa essa tarefa cabia ao seu irmão Manuel.
A professora e o Nobel - Gabriel García Márquez | 83 conservaria de uma maneira muito especial em sua memória as imagens relacionadas com o tão apreciado líquido vital. Também desfrutava recordando a entusiasmada lavadeira que em ocasiões esfregava a roupa no tanque de sua casa, muito próximo de um pé de goiaba. Essa fragrância se transformava com os anos em uma lembrança refrescante, unida ao suave aroma do sabão com água sanitária de que tanto gostava.
No entanto, nada se comparava à brancura radiante da roupa que era lavada no rio. Algumas lavadeiras atribuíam os resultados a uma técnica nascida ao longo dos anos de muita prática, começando na adolescência, quando, acompanhadas de outras mulheres, iam juntas lavar a roupa. Cada mulher es colhia sua pedra e as demais a respeitavam. Algumas passa vam vários anos lavando sobre a mesma rocha e muitas viviam do que os norte-americanos pagavam na região. Chegavam cedo, acompanhadas de suas filhas adolescentes e dos filhos menores, e retornavam à tarde com sua límpida carga, com a brancura característica de roupa quando é lavada à mão e colocada para secar ao sol.
O processo para se chegar a essa condição de roupa branca como a neve e livre de branqueadores químicos parecia um ritual. Primeiro lavavam vigorosamente a roupa, depois a es premiam levemente e a colocavam sobre as pedras para pegar sol durante vários minutos. Tinham que ficar continuamente pulverizando as peças recém-lavadas porque se deixassem que o sabão secasse sobre o tecido, apareceriam umas manchas amareladas difíceis de eliminar.
Essa ameaça era suficiente para que voltasse para casa com toda a pressa. E as crianças e adultos costumavam vislumbrar o horizonte com medo de encontrar o suposto personagem
84 | Beatriz Parga As lavadeiras eram imprescindíveis em todos os lares. Contavam a roupa por peças. Quatro lenços equivaliam a uma peça. E como passavam bem o linho. Haviam aprendido essa profissão de suas mães e avós, e a ensinavam às suas filhas. Tratava-se de um ofício muito humilde, mas respeitável. Algumas tardes, e sempre acompanhada de uma das criadas que trabalhavam na sua casa porque seus pais não lhe permitiam fazer isso sozinha, Rosa saía para caminhar até a região onde moravam os norte-americanos e os altos executivos da United Fruit Company. Era um setor de casas bonitas, a uma curta distância do povoado, rodeado por uma cerca de arame e com empregados cuidando da segurança. Mais adiante, seguindo uma rota com imensas pedras brancas, ficava sua parte favorita: o rio. Nessa altura as lavadeiras já tinham voltado para suas casas. Costumavam chegar muito cedo carregando sobre as cabeças bacias e bateias carregadas de roupa suja, que esfregavam cui dadosamente com sabão sobre as pedras do rio. Suas vozes alegres e seus cânticos podiam ser ouvidos por cima de uma algazarra de pássaros e maritacas e as gargalhadas das crian ças, que se entretinham fazendo pedrinhas achatadas salta rem sobre o rio. Quando algum rapaz se aproximava do grupo sua mãe lhe advertia:—Cuidado que por lá anda o homem jacaré.
A professora e o Nobel - Gabriel García Márquez 85 que rondava os rios; segundo a lenda, é um personagem muito apaixonado que está sempre próximo de onde as mulheres la vam a roupa ou vão se banhar.
— Branca, mas cheia de furos — costumava responder sa biamente a mãe de Rosa àquelas que defendiam o método da pedra. Extasiada, a jovem professora ficava por um bom tempo olhando o trajeto das espumas deslizando sobre o rio. “Che gariam a povos remotos, ou talvez ao mar?”, perguntava-se.
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Com inveja, pretendia imitar a dança livre que as frágeis bo lhas pareciam executar, em sua cadenciosa viagem para terras longínquas. Assim permanecia um bom tempo, sentada sobre uma pedra à margem do rio, até que as últimas horas do dia a surpreendiam com o olhar perdido na distância, perguntando -se até onde chegariam.
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Às vezes Rosa via, dobrada sobre a pedra, alguma roupa que a lavadeira estava demorando em terminar de lavar. Tratando de se antecipar da escuridão da noite, corria para esfregar a roupa com força contra a pedra enquanto de longe dava para se ouvir os golpes com que castigava a roupa molhada sobre a superfície rochosa, deixando um rastro de espuma sobre a corrente do rio. Sua mãe sempre pedia às lavadeiras que não esfregassem a roupa contra as pedras, porque isso desgastava o tecido, mas elas sempre a ignoravam, convencidas de que esse método que tanto conheciam era o que deixava as pren das mais brancas.
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nquanto as sombras começavam a cobrir o horizonte e as aves voavam em busca de refúgio na frondosa folhagem, Rosa apressava o passo para regressar ao lar. Era então que por sua mente começam a galopar os acontecimentos pre sentes e passados, em uma sucessão de imagens e visões que rompiam o silêncio. Avançava contente, sonhando acordada, apesar de os mosquitos se fazerem presentes, empenhados em se apoderar do caminho.
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Ela gostava de dar uma volta para passar de novo perto das casas dos executivos da United Fruit Company, empresa pela qual sentia uma grande estima, comparando-a com um irmão rico que havia trazido trabalho e prosperidade à loca lidade. Por toda sua vida Rosa seria fiel à grande companhia produtora e exportadora de banana, à qual atribuía o rápi do crescimento de Aracataca e a riqueza que trouxe consigo. Sua chegada à região representou uma era de abundância. De fato, em um determinado momento corria tanto dinheiro que nos finais de semana os forasteiros organizavam bacanais e
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Tanto dinheiro que o queimavam VIII
O fato de ter crescido em um setor onde a presença norte -americana era palpável fez com que Rosa se sentisse muito próxima dos Estados Unidos, igual aos membros de sua famí lia. Jamais compartilhava as denúncias da imprensa sobre uma
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recordava que na sua infância as casas eram iluminadas nas noites com candeeiros, velas ou com lam parinas de gasolina, que os encarregados de manter acesos bombeavam vigorosamente até que o combustível ganhasse força e queimasse com luz azulada uma telinha de gaze que iluminava até os cantos mais distantes com uma potente luz esbranquiçada. No entanto, Rosa tinha em torno de três anos quando a usina elétrica da grande empresa bananeira come çou a fazer a extensão de suas redes e o povoado passou a ficar iluminado até as dez, quando se apagava e tudo desapa recia na escuridão.
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nas noites faziam fogueiras queimando rolos de dinheiro que inclusive utilizavam como velas quando saíam para dançar.
Eram folias proibidas em que o rum e o uísque importados rolavam soltos, com a indispensável participação das “mulhe res de vida alegre”, nome que para Rosa parecia muito ade quado àquelas que se dedicavam a esse ofício porque sempre estavam em festa nessas bebedeiras que se prolongavam até as primeiras horas da madrugada. Nem precisa dizer que es sas festas eram um tabu e estavam vetadas para todas as mu lheres honradas da região. Eram também uma dor de cabeça para o pároco de Aracataca, o padre Angarita, que censurava energicamente esses bacanais qualificando-os de indecentes e pecaminosos.Aprofessora
— Não veio? — perguntava dona Tranquilina, mas so mente por protocolo.
— Amanhã vamos almoçar na casa do coronel, que estará dando as boas-vindas em sua casa a uma delegação de Guajira — dizia a mãe de Rosa esperando uma resposta do esposo.
Ambas as famílias estavam a par desse distanciamento, mas as mulheres mantinham uma relação muito próxima.
suposta matança de empregados da bananeira durante uma reivindicação trabalhista, um tema sobre o qual o chefe da família Fergusson e o coronel Márquez nunca conseguiram chegar a um acordo, de tal forma que desde então suas con versas se limitavam a um cumprimento cordial.
— Não, comadre. Tinha que colocar umas contas em dia e teve que ficar em casa como o Manuel, que o está ajudando — respondia a mãe de Rosa. A professora e sua família defendiam com eloquência a empresa que as permitiu levar uma vida sem angústias eco nômicas e até com comodidade. Como muitos, sabiam que da presença da empresa norte-americana dependia seu tra balho e sobrevivência. No final das contas, toda a publicidade em torno do tão falado conflito trabalhista se transformou na pedra angular da mudança que passou Aracataca quando a empresa se retirou em busca de destinos mais hospitaleiros, deixando para trás as construções que haviam erguido. Como consequência, os habitantes da região ficaram sem empregos,
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— Vai você com as meninas — respondia Pedro, que quase sempre encontrava uma desculpa para ficar em casa.
A professora
90 | Beatriz Parga sem seus sonhos de progresso e sem a possibilidade de desfrutar de uma aposentadoria tranquila. Ao término de suas tarefas diárias, os homens tinham muitas maneiras de passar o tempo: jogavam xadrez, dominó, pôquer e vinte e um, ou se entretinham fazendo chinchorros, como se chamavam as redes para pescar, em que colocavam pequenos pesos de chumbo na parte inferior, um trabalho que levava longos meses. Outros matavam as horas de tédio na zona alegre. As mulheres, em contrapartida, sem importar sua condição social, eram experts nas artes das agulhas; faziam crochê e macramê, bordavam toalhas em ponto-cruz, ou os jogos de lençóis que as jovenzinhas usariam para quando chegasse o seu Príncipe Encantado, o que quase sempre demorava mais tempo do que esperavam. O motivo era que os romances delongavam em se concretizar devido ao excesso de zelo familiar.
Desde muito jovens, os rapazes saíam para estudar em Bar ranquilla ou Santa Marta, e regressavam somente para passar os finais de semana com suas famílias. Era então que com olhos de águia fixavam alguma jovem que oferecia as condições que buscavam em sua futura esposa, e assim começava o namoro. Seguindo a tradição, as moças se sentavam nas cadeiras de balanço em frente à porta de suas casas, conversando com suas amigas. Os rapazes as observavam e quando gostavam de alguma garota se arriscavam a passar diante dela e respeitosa mente diziam “com licença” enquanto caminhavam. Somente se aproximavam para cumprimentar depois de um primeiro encontro e de ter certeza — por um olhar ou sorriso — que seu interesse seria correspondido. Com frequência surgia então
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Rosa gostava da ideia de encontrar o homem de seus so nhos em frente à porta de sua casa. No entanto, sua mãe fazia de tudo para evitar que isso ocorresse logo. Com o argumento de que sua filha precisava se distrair e para que não pensasse em “asneiras”, como se dizia naquela época, a mãe de Rosa decidiu mandá-la durante as noites dos fins de semana para jogar loteria na casa de dona Tranquilina. Esse é um programa que não falhava aos sábados ou domin gos, quando os rapazes voltavam ao povoado. Depois de banhada, perfumada e embelezada, Rosa se sen tava com suas irmãs na frente da porta de sua casa. Sabia que logo, pela rua principal, começariam a passar os rapazes com intenções românticas. Mas isso durava apenas uns minutos porque logo passava Wenefrida, convidando-as para jogar lo teria na casa do coronel, um convite que nunca conseguiam evitar, roubando a esperança dos sonhos românticos das jo vensCommoças.afalta de ação, a imaginação era muito importante nesses romances, que eram repletos de expectativa e receio. Uma carta, uma flor ou um olhar eram capazes de iluminar noites inteiras. Os galãs decoravam os melhores poemas da época e recitavam às suas namoradas. Rosa adorava ler o po eta modernista colombiano José Asunción Silva e recitava de
um romance que se expressava por intermédio das cartas que o namorado deixava dissimuladamente ao passar, ou que fazia chegar por meio de terceiros, já que os pais sempre montavam uma muralha para os que os galanteadores não se aproximas sem de suas filhas.
A professora
92 | Beatriz Parga memória seu “Nocturno III” sobre a lembrança de uma mulher amada em uma noite enluarada em que o seu reflexo se projeta no caminho como uma solitária e longa sombra. Estava também entre seus escritores favoritos o escritor irlandês Oscar Wilde, que Rosa recitava de memória. Quanto aos contos infantis se destacavam “O príncipe feliz”, “O gigante egoísta” e “O rouxinol e a rosa”, que faziam parte do cardápio editorial para apresentar o amor e a literatura aos seus alunos, acrescentando um ensinamento moral. E quanto à obra-prima de Miguel de Cervantes, Dom Quixote, não apenas havia desfrutado as lendárias aventuras do magro personagem, como também desafiando aqueles que achavam que essa era uma obra difícil de ensinar aos jovens. Rosa sabia como fazer seus alunos entenderem as aventuras do grande cavaleiro errante, acompanhado em um pangaré por Sancho Pança, seu fiel escudeiro.
Segura de que boas leituras estimulariam a imaginação das crianças, Rosa sempre aparecia com uma nova história para compartilhar com seus alunos. Conduzidas por esses contos, viajavam em tapetes voadores, sonhavam com princesas en cantadas ou se surpreendiam com os personagens extraordi nários de As mil e uma noites, livro fascinante que gozava de grande popularidade entre as crianças e os adultos, apesar de alguns dos contos da coleção mais importante do mundo ára be serem proibidos para menores.
A vida dos habitantes de Aracataca era uma mistura de mo notonia e entretenimento, entre leituras, sonhos por realizar e problemas da vida diária. Ninguém passava fome porque todos os homens tinham trabalho, e o que ganhavam dava de sobra
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A professora para sustentar suas mulheres e seus filhos. As mulheres se ocu pavam dos afazeres domésticos e contavam com a ajuda de empregadas que geralmente terminavam por se sentir parte da família para quem trabalhavam. Com os anos, Rosa chega ria à conclusão de que nesse povoado realmente não existiam verdadeiras preocupações. Apesar de a distância que se encon trava Cataca da chamada “civilização”, sempre acontecia algo: desde um bazar ou um concurso de beleza, até aniversários ou um batizado. Ali não se conhecia o fantasma da solidão que com frequência atormenta os habitantes das grandes cidades. A jovem professora desfrutava de todos os afazeres e deta lhes cotidianos que envolviam o ritmo desse lugar em que cres ceu em meio ao alvoroço de seus pais e irmãos. No entanto, seus progenitores sempre guardavam no coração a dor do filho que era sua adoração e que morreu aos quatro anos. Dom Pe dro, como o povo chamava seu pai, era um homem respeitado por todos, muito trabalhador, honesto e de hábitos saudáveis. Jamais chegou em casa embriagado e jamais se envolveu em alguma aventura com outra mulher. Seus filhos o temiam e o adoravam, em uma época em que não se questionava a autori dade dos pais. Rosa teve uma infância feliz em Aracataca, ao lado de seus irmãos Manuel, Isabel e Altagracia, uma família que cresceu sem preocupações com o futuro. Apesar de seu caráter aberto, Rosa era cautelosa ao falar de suas intenções de explorar o mundo que existia além de Aracataca, porque sua família sonhava em morar ali por toda a vida. Anos mais tarde, seu irmão Manuel se mudou para Se villa, setor habitado pelos empregados de alto escalão da Zona
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Como quase todas as pessoas do povoado, no final da tarde Rosa costumava pegar sua espreguiçadeira para se sentar de baixo de uma frondosa amendoeira, antecipando a tertúlia da
94 | Beatriz Parga Bananeira. Ali comprou uma bela casa construída pela com panhia durante o apogeu de sua permanência na Colômbia. Rosa o descreveria como um homem que aproveitava sempre o presente e era feliz recriando o passado em sua memória. Mais de uma vez ouviu dizer que se tivesse oportunidade, não mudaria nada em sua vida, desde que não perdesse nem um só momento vivido em Aracataca. Assim pensavam também suas irmãs, que desfrutaram cada acontecimento, incluindo nascimentos, casamentos e primeiras comunhões. E, embora todos se ressentissem do calor e da poeira, sabiam tirar proveito das coisas positivas que encontravam no povoado, incluindo o atrativo de suas lendas, a alegria do seu povo, as tardes frescas debaixo da sombra das amendoeiras e acácias, e em especial das lembranças de seus avós, que, ao partirem deste mundo, deixaram suas histórias vivas para serem contadas re petidamente a seus filhos e netos, que sempre as escutavam com grande fascínio.
Ainda não conheciam o telefone, nem a televisão, e nem se sabia que a lua era um território desolado e árido. Mas Rosa diria mais tarde que ter nascido na primeira década do sécu lo XX a permitiu desfrutar de um momento de encantamento infinito diante de todos os grandes descobrimentos que surgi ram: as geladeiras elétricas, o telefone, o fogão a gás, os filmes coloridos, o rádio, as ruas pavimentadas, os automóveis, o arcondicionado, a televisão, o avião e os voos espaciais.
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vizinhança, que sem uma convocação especial coincidia com a descida do sol no poente cobrindo o horizonte com tonalidades vermelhas e alaranjadas. Era o melhor momento do dia para o descanso e uma conversa gostosa. Quase sempre chegava acompanhado de uma leve brisa e as ruas pareciam se converter em uma grande sala de visitas enquanto as crianças brincavam. Rosa então se libertava do cansaço dos afazeres diários. En quanto balançava na espreguiçadeira, sonhava acordada.
Os malabaristas atiravam seus pinos de boliche ao ar, os sal timbancos faziam piruetas que desafiavam a lei da gravidade, as mulheres dançavam com suas saias coloridas tocando uns pequenos tamborins ou sininhos metálicos entre o dedo po legar e o médio de cada mão enquanto outras tocavam casta nholas espanholas com muita animação. Não podia faltar “o homem mais alto do mundo”, que do alto de suas pernas de pau se elevava a uma altura de dez metros. Ainda assim, com cada visita dos ciganos aumentava sua quantidade de animais exóticos que incluía um velho leão, um camelo, uma onça, vários macacos, um abutre e cinco cães adestrados para fazer piruetas.
— Professora, eu sempre me comporto bem, e como nunca vi um camelo antes, meu avô me disse que me levaria para vê-lo e tocá-lo — respondeu o menino entusiasmado.
Entre ciganos e xamãs IX
odos os anos os ciganos chegavam ao povoado com suas roupas coloridas e muita algazarra em meio à curiosidade das crianças e à desconfiança dos adultos.
— Gabito, se você se comportar bem eu o levarei ao circo no sábado — disse Rosa, caminhando com seu aluno até a escola.
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Todos os anos os habitantes de Aracataca iam admirar os artefatos que esses magos possuíam e que incluíam espelhos que distorciam o reflexo, fazendo com que os que se pusessem em sua frente se vissem pateticamente ampliados, cabeçudos e magrelos ou rechonchudos e encolhidos, causando surpresa entre os curiosos. Os ciganos foram os primeiros a surpreen der as crianças com uma enorme barra de cor preta que eles chamavam de imã, e que tinha o poder de atrair todos os ob jetos metálicos. Transportavam também uma grande lente e, por um centavo, podia-se observar à noite, por três minutos, a lua e as estrelas. Tudo isso sem contar o grande espetáculo que ofereciam com os animais treinados, malabaristas, palhaços e trapezistas dispostos a arriscar a vida sobre uma corda atraves sada na parte mais alta da lona do circo. Uma lona velha que estava tão furada que dos pequenos orifícios era possível ver as estrelas.Achegada dos ciganos às vezes coincidia com a de outros personagens não menos extraordinários, incluindo comercian tes turcos com bordados e sedas finíssimas, definhados profe tas do fim do mundo, ermitãos sem rumo que convidavam para uma conversa e intercâmbio espiritual, forasteiros com passa dos misteriosos em busca de uma nova oportunidade e loucos que haviam perdido a razão há muito tempo e perambulavam famintos pelo povoado até que as autoridades os presenteas sem com uma passagem de trem para que fossem embora para outrasAindalocalidades.assim,durante o seu apogeu econômico Cataca era frequentada por golpistas, que se diziam xamãs e costumavam
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Gabito os observava fascinado e, embora não entendesse o significado das doenças que diziam curar, ficava encantado as sistindo ao espetáculo.
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carregar cobras penduradas no pescoço para chamar atenção do público enquanto vendiam fórmulas mirabolantes que su postamente curavam todos os males humanos e divinos.
“Ah, e se tiver dúvidas, observe esse frasco cheio de vermes e lombrigas que nesta manhã uma senhora tirou de seu filho, um menino com um barrigão que depois de tomar duas colhe res desse remédio ficou completamente curado. Nem precisa pensar mais, faça o teste se quiser que seu filho fique livre dos parasitas com este poderoso vermífugo. Tenho também esse frasquinho azul para curar anemia, o mal-estar e o cansaço, um remédio que faz com que em três dias um doente consiga le vantar de sua cama. Sofre de amor não correspondido? Não se preocupe, tenho aqui a solução do seu problema. Tem que
“Fique um minuto, senhor, senhora ou senhorita, e escute o que tenho para dizer por que seguramente trago o remédio que você precisa. Sofre com suores, calores e temores? Não se preocupe, que o índio Damián sabe como curá-los e nesta pe quena garrafa que tenho na minha mão, vai encontrar a solu ção para o seu problema. Tenho aqui também um incenso que trouxe da Índia que servirá de ajuda em qualquer tarefa que se proponha a fazer. Compre, você, cavalheiro, compre a senhora ou a senhorita, que já verá como serve para combater a enxa queca, o escorbuto, as dores menstruais, a micose, a lepra, o vitiligo, a dor de dente, a acidez, a prisão de ventre, os sudore ses, a asma, a depressão, a anemia, os parasitas intestinais...”
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O audacioso homem começava então a circular um chapéu entre as pessoas que haviam se reunido ao seu redor, enquanto continuava dizendo: “Cinco pesos, cinco pesos e além do elixir para a saúde inte gral, dou esta milagrosa pomada para você esfregar nos braços todas as noites e dormirá como um recém-nascido. Aproxime -se, chegue mais perto, não tenha medo que aqui está o índio que vai curá-lo de todos os males. Não vá embora que esta oferta é por tempo limitado, não vai perder, não vai perder Lembre-se, são apenas cinco pesos e você poderá ter qualquer um desses remédios tão importantes para a sua família, e por oito pesos incluo ainda outra pomada e não terá mais que voltar ao médico. Pode comprar as quatro garrafinhas por quinze pesos, exatamente isso que estou dizendo, quinze pe sos e poderá cuidar da saúde de uma velhinha, de sua mãe que talvez se sente impedida depois de ter tido uma vida ativa e agora sofre de artrite. Sim, senhor, você pode lhe dar espe rança e uma nova vida levando este remédio. Não perde nada testando este novo produto que, ao mesmo tempo, senhorita,
“Se tem vômitos, tonturas, dor de cabeça, prisão de ventre, malária ou febres reumáticas, aproxime-se, senhor, senhorita ou garoto, que aqui tenho este pequeno frasco, que é o último que me sobrou para combater com eficácia todos esses males. Ah, além disso, incluo a oração correspondente para que o Altís simo lhe dê proteção e não volte mais a sofrer dessas doenças.”
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100 | Beatriz Parga comprar apenas esse frasquinho que trouxe dos montes do Himalaia, onde esta misteriosa erva milagrosa é feita. Não garan te apenas que seu amor não seja infiel, como também ajudará a encontrar a felicidade que está buscando.”
Seu encontro com esses homens chegados da Antióquia, uma região montanhosa a várias milhas de distância ao oeste do país, ocorria geralmente durante os finais de semana, que era quando todas essas pessoas saíam de suas casas para fazer o mercado e o vendedor de lábia fácil e divertida tinha maiores possibilidades de êxito. Terminada a venda, botavam o pé na estrada o mais rápido possível antes que os ingênuos compra dores descobrissem que foram enganados.
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você mesma, de blusa rosada, verá que é especial porque te nho uma grande surpresa, este produto suaviza a pele e faz crescer os cílios”, continuava dizendo o golpista enquanto as notas de dinheiro iam caindo em seu chapéu à medida que distribuía entre os presentes os frascos e pomadas com seus milagrosos elixires e ervas que curam tudo.
— Professora, veja... Que quantidade de dinheiro! — disse Gabito surpreendido ao ver passar o chapéu transbordando de Rosanotas.não ficava assombrada com a credulidade das pessoas, e da forma como esses audaciosos comerciantes montavam o seu teatro. As serpentes eram o anzol para fisgar as pessoas fazendo com que se detivessem ao seu redor observando os ofídios, ocasião que o hábil vendedor aproveitava para fazer a apresentação dos seus produtos. Um de seus assistentes se colocava no meio do grupo de espectadores e fingia ser um cliente, sendo o primeiro a sacar uma nota para a compra do produto. Esse interesse do suposto cliente gerava uma reação em cadeia entre essa aglomeração de pessoas curiosas e ingênuas, ansiosas por testar essas panaceias universais.
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Em mais de uma ocasião, do púlpito, o padre Angarita pre venia seus fiéis da fraude dos homens da cobra que extorquiam as pessoas e para que se cuidassem dos ciganos quando chega vam ao povoado com suas descobertas e suas habilidades de ler o futuro e uma bola de cristal, tarô ou a mão. Em seguida, muito sério, abria a Bíblia e os advertia que aqueles que os consultavam não poderiam entrar no reino dos céus, tal como podiam seguir à risca em um versículo. “Entristece o coração de Deus aqueles que consultam os magos e adivinhos”, ele leu. Depois acrescentou com tom de voz grave: “Eu não estou in ventando. Está escrito na Bíblia”. Rosa não precisava consultar um mago para saber que sua vida seria uma aventura maravilhosa na qual seria protago nista de seu próprio destino. No final das contas, o privilégio de ter sido eleita Rainha do Carnaval lhe conferia um acesso fácil com as pessoas permitindo-a estar a par de quase tudo o que ocorria no povoado. Desde um velório até um festejo, nada lhe escapava; com a mesma destreza que dançava, ti nha uma grande, uma enorme capacidade de se lembrar dos rostos e nomes das pessoas. Esperta e atenta, sua conversa divertida captava a atenção dos homens, mulheres e crian ças. Da mesma forma, era muito organizada e se caracterizava por sua impecável apresentação pessoal; desde os cabelos até sua roupa, Rosa estava sempre limpa e perfumada e era um exemplo para as jovens do local. Além disso, diziam que todos os homens jovens da região sonhavam em tê-la como sua esposa.
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Rosa sofria com sua educação, que a fazia se sentir envergonhada de dizer não ao irrecusável convi te para ir à casa de seus vizinhos. Em vez de permitir que suas filhas tivessem a oportunida de de conhecer o galã de seus sonhos, compensavam esse va zio com uma vida familiar muito ativa. Todas as novidades que ocorriam nas casas dos parentes e amigos eram recebidas como
Apesar de sua dedicação ao magistério, Rosa esperava al gum dia encontrar seu Príncipe Encantado. Daí a sua vontade de ficar aos sábados e domingos em casa com o propósito de ver os rapazes passar na frente da sua porta.
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Os pretendentes de Rosa passavam impacientes esperando vê-la diante de sua casa, mas ela se encontrava longe da vista de todos, jogando loteria. Nessas ocasiões quem aproveitava era Gabito, que frequentemente se sentava muito próximo de Rosa que lhe pedia que pintasse algum desenho em seu caderno ou que corrigisse as tarefas da semana. “Parece uma ironia da vida; nós éramos jovens cheias de ilusões e ansiosas para encontrar o amor, e perdemos essa eta pa linda e importante da vida porque de uma forma egoísta os adultos nos mandavam jogar loteria com Wenefrida Márquez, irmã do coronel, e seu marido Rafael Quintero, um senhor educado no interior do país. O programa de jogar loteria tinha um pretexto muito bem dissimulado. De certa forma, nós nos dávamos conta de que faziam isso para evitar que tivéssemos pretendentes. Só nos resta dizer que enquanto nós, entusias madas, sonhávamos com o amor, nossas famílias nos negavam a possibilidade.”Àsvezesinternamente
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104 | Beatriz Parga próprias. De fato, desde enterros e primeiras comunhões até aniversários, batizados, casamentos e nascimentos, cada evento se convertia em um acontecimento social em que se reuniam mais de cinquenta pessoas, entre homens, mulheres e crianças.
A casa do coronel Márquez era uma das mais frequentadas pelos visitantes de Aracataca. Os Márquez conheciam a arte da hospitalidade como ninguém. Ali todo mundo era bem re cebido, de maneira que o fato de que jogassem diariamente em sua casa não era um inconveniente para a intimidade fa miliar, e sim algo muito natural. Em vez disso se mostravam encantados de ter a casa cheia de gente e faziam de tudo para que a legião de jogadores desfrutasse da reunião de amigos.
A melhor parte, dizia Rosa, era no final da tarde quando dona Tranquilina surpreendia seus convidados com figurinhas de ca ramelo e pãezinhos recém-saídos do forno. Para Rosa, não era segredo que esses convites faziam parte de um pacto secreto entre as comadres e amigas da vizinhança, empenhadas para que suas filhas não perdessem tempo com rapazes que, ainda muito jovens, não haviam sido coroados com uma carreira universitária e, portanto, não podiam lhes oferecer um nível melhor de vida . A pedra no sapato do coronel Márquez era o pretendente de sua fi lha, que não parava de se lamentar por ter aberto a porta da sua casa para o tal telegrafista do povoado, um homem que ganhava pouco, carecia de uma formação universitária e, aci ma de tudo, havia pertencido, no passado, ao partido político contra o qual o coronel havia lutado e colocado sua vida em jogo. Jamais se perdoaria por não ter estado alerta o suficiente
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para evitar que o forasteiro lhe arrancasse as esperanças de um bom futuro à menina dos seus olhos, Luisa, o único tesouro que lhe havia restado depois da morte de sua filha Margarita.
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amor de Luisa e Gabriel Eligio foi um sinal de alerta para os pais de Rosa e uma preocupação para os Már quez. Na tentativa de exorcizar sua filha do romance com o telegrafista, o coronel fez de tudo o que estava à sua altura: falou sobre as dificuldades da vida, explicou que quan do em uma casa começa a faltar o dinheiro o amor se extingue da mesma forma que uma flor fica murcha por falta de água e, por último, quando viu que nada funcionava em seu teimoso coração, decidiu que a distância seria o melhor antídoto contra esses amores e enviou Luisa a uma chácara localizada a vários dias de distância do povoado. Tinha que tirar o telegrafista da cabeça dela se quisesse vê-la casada com um médico, um advogado ou um engenheiro e nada melhor do que a distância para esfriar os corações. “O que os olhos não veem o coração não sente”, pensou, seguro de ter tomado uma boa decisão ao separar os jovens apaixonados. Não imaginava que lutar con tra o sentimento que os unia era como desconhecer a imensi dão do mar que se estendia a quatro horas do povoado.
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O coronel perde uma batalha
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— Se continuarmos dizendo não, é possível que vá falar até com o Papa — dona Tranquilina comentou com a mãe de Rosa em uma tarde.
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O coronel resistia em se dar por vencido, mas, enfurecido, via que o poderoso amor de sua filha era mais difícil de vencer do que os inimigos contra os quais combateu com sangue e fogo na Guerra dos Mil Dias. “Ganhou um novo filho”, a mãe de Rosa disse um dia ao bravo guerreiro. Não muito convencido dos benefícios que poderia agregar esse “filho” que o destino queria lhe impor, o coronel limpou a garganta e depois de uma breve pigarreada, expressou que tinha algo para resolver, colo cou seu chapéu e saiu à rua.
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Toda a vizinhança acompanhava essa batalha desigual en tre o poderoso coronel com a jovenzinha apaixonada. Mas Luisa estava decidida a conseguir o apoio de personalidades de respeito que demonstravam ao coronel o quanto estava equivocado ao se opor ao amor do jovem casal. De fato, até conseguiu a mediação das altas hierarquias eclesiásticas por intermédio do monsenhor Pedro Espejo, que havia chegado a exercer o sacerdócio em Roma, com o cargo de secretário particular do papa.
O sonho de um grande casamento nunca se concretizou nem para o coronel e dona Tranquilina, e muito menos para suas amizades que esperavam a ocasião como um evento me morável no povoado. Devido à oposição familiar, Luisa e Ga briel Eligio acabaram se casando em Santa Marta sem a pre sença de seus pais e se mudaram para Riohacha. Pouco tempo depois Rosa ficou sabendo por dona Tranquilina que Luisa
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estava esperando seu primogênito. Além da dor de não tê-la ao seu lado, agora ficariam preocupados com sua saúde, e acabaram lhe escrevendo pedindo que retornasse à casa para acompanhá-la no parto e ajudá-la com os primeiros cuidados daquele que seria seu primeiro neto.
Antecipando o retorno de sua filha, o coronel decidiu ampliar sua casa para acomodar a jovem família. Com esse propósito encarregou dessa tarefa um pedreiro que se or gulhava de seus bons serviços com o título de “mestre de obras”. O homem apareceu com um ajudante e depois de tomar as medidas do quintal se dedicou a traçar um retân gulo marcando-o com uma corda presa por quatro estacas fincadas em cada canto. Era primo distante de Mauricio Babilônia e no dia seguinte voltou com seu ajudante, um homem com uma fisionomia inesquecível. Forte, apesar de magricela, usava sempre calça jeans e camiseta, chapéu de aba larga e um sorriso de denta dura incompleta iluminada por um dente de ouro. Empurrava um carrinho de mão com muito entusiasmo enquanto enchia o quintal com areia, tábuas de madeira e telhas de zinco. Logo todos na casa já sentiam sua presença pelo seu hábito de cami nhar com sua pesada carga assobiando alegremente um tema musical irreconhecível. À medida que os dias se passavam, cada membro da família parecia se sentir exasperado pelo ritmo lento que avançava a construção, apesar de a contínua vigilância da menina Francisca, que não escondia ao empreiteiro sua preocupação com a de mora. “No ritmo que vão, a criança estará caminhando quando
110 | Beatriz Parga vocês terminarem o trabalho”, dizia. Nos dias de chuva não apareciam na obra, argumentando que era impossível trabalhar com o mal tempo devido ao perigo de que poderia cair um raio sobre eles. Nos dias de sol, o problema era que havia pegado um resfriado e o calor iria aumentar ainda mais a febre. Ausentou-se por uns dois dias por causa da ressaca, depois de ter bebido grande parte do dinheiro que lhe haviam antecipado pela obra. Finalmente, apesar de os contratempos, as chuvas e as interrupções, a tão aguardada ampliação ficou pronta com o último acabamento no quarto de Luisa, consertando umas goteiras no telhado e com as paredes pintadas de branco, dando uma aparência de frescor.
O retorno de Luisa foi um grande acontecimento na família Toda a vizinhança, que acompanhara o processo de construção, passou a inspecionar a nova edícula da casa e o jardim de rosas que a menina Francisca plantara com a ajuda dos índios guayú, justamente diante da janela onde nasceria o tão esperado herdeiro.
Havia rosas brancas, rosadas e amarelas, que depois se tor nariam as preferidas do escritor, mas definitivamente o clima de Aracataca não prestava para o cultivo dessas flores, cujo plantio é mais apropriado nas regiões frias.
Márquez.
A menina Francisca regava diariamente os talos espinhosos do roseiral. Mas as flores somente começaram a brotar como por passe de mágica depois de uma das barulhentas chegadas dos ciganos ao povoado. “Coloque uma destas pastilhas a cin co centímetros de cada planta que queira ver florescer”, dizia o homem com um lenço amarrado na cabeça, que falava com
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uma solenidade de quem havia descoberto a varinha mágica para dar cor e fragrância à murcha paisagem. De maneira incrí vel, suas palavras se cumpriram.
Alguns anos mais tarde alguém conseguiu que o cigano revelasse o grande segredo: o caro comprimido proveniente de terras longínquas era na realidade aspirina, que na época se tratava de uma das mais recentes descobertas da medici na para aliviar a dor, mas que também fazia maravilhas como florescer algumas plantas como roseirais, jasmins, azaleias e buganvílias.Noentanto, apesar de o empenho da menina Francisca em demonstrar que seus cuidados no jardim seriam capazes de desafiar as leis da natureza, estava travando uma batalha desi gual entre seu otimismo e a esmagadora realidade de cultivar rosas nesse canto quente tropical. Cada botão que brotava e cada flor eram motivos de uma celebração entusiasmada por parte de todo o núcleo familiar. Eram admiráveis a determina ção e as horas de trabalho investidas para conseguir esses fra grantes milagres. Até que pareceu se dar conta da difícil batalha que era manter seu jardim e a inutilidade de seus esforços com as roseiras, que uma tarde regressou com ar triunfante trazendo nas mãos um pequeno jasmim. O novo arbusto demorou a crescer, mas à medida que se passavam os dias se mostrava forte e saudável ao mesmo tem po em que de seus ramos iam brotando umas folhinhas brilhan tes de um verde profundo e sem a languidez que mostravam as roseiras nas horas próximas ao meio-dia. Não demorou muito e a fragrância do jasmim coroou os esforços de Francisca e as
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perfumadas flores brancas substituíram as delicadas rosas que em ocasiões especiais adornavam o centro da mesa da sala de jantar. Antes do retorno de Luisa, o coronel havia prometido que trataria bem seu genro; no entanto, ele somente regressaria vários meses depois do nascimento da criança. Com sua che gada, as coisas pareciam funcionar bem entre o pai e o avô do novo herdeiro, em meio a uma cortesia que destoava muito de uma calorosa relação familiar. Na realidade, à medida que pas sava o tempo, tornava-se mais evidente a decidida resistência do sogro. O jovem telegrafista pretendia não se deixar levar pela relutância que o coronel demonstrava. Gabriel Eligio era um homem supremamente educado, e ninguém jamais escutou uma reação sua com a forma que seu sogro o tratava, que com frequência parecia ignorar sua presença. Sogro e genro conviviam na mesma casa, sob um clima que mais se assemelhava a uma guerra fria por parte do coronel. Sentindo-se culpado de não poder oferecer à sua esposa os tí tulos profissionais que seus pais desejavam, Gabriel Eligio tratava de manter uma distância cautelosa do grande patriarca da famí lia Márquez. Esse comportamento, mais que uma represália, era motivado pelo respeito que tinha para com o patriarca. Com uma paciência infinita, o recém-chegado tratava de ignorar os maus disfarçados descasos que ocasionalmente recebia de seu sogro. Qualquer um diria que o coronel estava empenhado em pôr à prova a resistência do homem que havia roubado seus sonhos de um futuro melhor para sua filha.
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Vale destacar que em um clima tão quente como o de Ara cataca, Rosa nunca viu o coronel sair à rua sem o seu paletó.
Todos os dias, antes que o menino chegasse à idade escolar, a bela jovem via passar o avô com seu neto muito cedo. Pergun tava-se quem iam visitar tão cedo. Pela tarde os via passar de novo. O avô falava devagar e o menino escutava atentamente as histórias que o coronel contava. — Lá vai dom Nicolás com seu presente — dizia dom Pedro ao ver o coronel passar com Gabito. Era nítido o orgulho que sentia o velho guerreiro ao caminhar ao lado de seu neto.
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Nunca, no entanto, o coronel conseguiu que seu genro des se uma única amostra de inconformidade ou ressentimento. A paciência de Gabriel Eligio parecia quase infinita, não so mente por causa de seu caráter nobre como também porque estava convencido de que o tempo cura tudo, além de ao lon go da vida ter podido se dar conta de que todo homem muda com o passar dos anos e com a chegada dos netos. Não estava totalmente equivocado. Desde o seu nascimento, o pequeno Gabriel se tornou o centro da atenção de toda a fa mília e da vizinhança. Tal como havia antecipado Gabriel Eligio, o coronel ficou vidrado em seu neto. No entanto, seu ressenti mento com o genro não parecia dar trégua. Gabito era apenas um bebê quando seus pais decidiram deixá-lo com seus avós, que estavam muito entregues a ele e, por sua vez, o neto esta va muito apegado a eles. Por parte do avô, o menino aprendeu a dar os primeiros passos. Saíam pela rua caminhando; o idoso lentamente e o menino com seus passinhos curtos, esforçando para se manter de pé.
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Pegavam o caminho de volta à casa ao meio-dia para um recesso sagrado, o do horário do almoço no povoado, de duas horas e meia e divididas entre uma hora de almoço e um breve cochilo ou a possibilidade de um banho curto para se refrescar.
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Às vezes a professora ia visitar suas vizinhas levando como desculpa algum doce preparado em sua casa. A menina Fran cisca, de forma recíproca, convidava Rosa para que a acompa nhasse até o quintal pegar goiabas doces e ácidas com a ajuda de uma vara comprida que sempre fica apoiada em uma árvo re ou em um canto da casa. Rosa recordava que esse quintal era muito grande e tinha um aroma característico de frutas tropicais, que incluíam mangas e graviolas. Inclusive houve uma época em que até tinham várias cabras, das quais saíam o prato principal quando chegavam muitos visitantes na casa do Acoronel.menina Francisca e Rosa se divertiam colhendo goiabas no quintal, que na época era muito bem cuidado. Algumas fru tas eram consumidas ali mesmo, e guardavam o resto para fa zer sucos depois de passar a polpa em uma peneira. As ruas estavam sempre cobertas de poeira, como todos os móveis e o que havia dentro das casas. Por isso, apesar do calor, ninguém saía às ruas de sandálias, porque os pés aca bavam ficando cheios de poeira. As mulheres usavam calçados fechados sem meias, enquanto os homens usavam sapatos de cadarço com meias, mais por costume do que por comodida de. No entanto, não havia maneira de convencer um homem a usar sandálias na rua.
Nos arredores se escutava o som da campainha para anunciar
a saída dos estudantes e as ruas começavam a encher de vozes infantis e alegria das crianças seguindo o caminho de casa para o almoço.Àsduas da tarde a professora saía de novo de sua casa até a escola. Os pequenos estudantes de Rosa chegavam cheios de entusiasmo antecipando com alegria as leituras que a profes sora preparara para as últimas aulas do dia. Com frequência os contos ficavam inconclusos e a trama se prolongava por vários dias, aumentando a expectativa dos pequenos estudantes, fascinados com as narrativas e até antecipando na imaginação o que ocorreria na leitura do dia seguinte. Como uma Sherazade que se entrega à vida ao contar suas histórias, a professora se empenhava tanto em suas leituras que era natural que as crianças ficassem sentadas quietinhas ouvindo-a, encantadas. Aos sábados, como em todos os colégios e escolas do país naquela época, havia aulas pela manhã. E, seguindo o modelo dos países europeus mais avançados, não davam lição de casa para o final de semana. No final das contas, como os adultos, os estudantes também necessitavam ter um descanso para re frescar a mente e o espírito. Rosa nunca entendia a mentalida de dos professores que sobrecarregavam seus alunos com ta refas para os dias que supostamente deveriam ser de repouso e lazer familiar. As pessoas do povoado tinham vários costumes, quase tão sagrados como ir à igreja aos domingos. Um desses há bitos tinha a ver com o preparo das reuniões noturnas. Na realidade, pouco antes do início desses bate-papos amigáveis,
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116 | Beatriz Parga na vizinhança já começavam a regar a rua com água. Quase sempre essa tarefa correspondia aos empregados, mas era frequente que qualquer membro da família o fizesse. A estratégia era eficaz para combater a poeira, essa nuvem quase invisível que estava presente em todas as partes, cobria as mesas, as panelas nas cozinhas, os livros nas estantes, os espelhos, as fotografias familiares, as escovas de dente e até as folhas das plantas do jardim. Com a poeira assentada, um dos primeiros a sair para se refrescar debaixo das amendoeiras diante de sua casa era dom Nicolás. Quando Rosa saía, sempre o encontrava sentado em sua cadeira de balanço, onde parecia absorto nos seus pensamentos, com o olhar perdido no horizonte. Outras vezes conversava com seu neto, que parecia escutá-lo com devoção. Dona Tranquilina quase sempre era a última a sair de casa, depois que terminava de assar os biscoitos e as guloseimas que preparava com grande maestria. Depois de um tempo, o coronel saía de novo para caminhar, quase sempre acompanhado de seu neto. Era então quando dona Tranquilina passava a ser o foco de toda a atenção com suas histórias de bruxas e seus casos. A audiência continuava crescendo com Wenefrida, irmã do coronel; a menina Francisca e outros ocupantes da casa dos Márquez, incluindo a tia Sara e a prima Elvira, além de alguns visitantes que chegavam para pas sar a noite e tinham suas redes penduradas no corredor. Essas reuniões eram quase uma tradição inesquecível em que parti cipavam outras amizades e parentes da vizinhança, incluindo Rosa, sua mãe e suas irmãs. Em qualquer dia da semana era fácil contar entre dez e doze pessoas diante do portão de dona
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Tranquilina. Ali permaneciam até a hora de ir dormir, com ex ceção dos finais de semana, que era quando jogavam loteria. As noites eram frescas e uma suave brisa refrescava as paredes das casas ainda quentes. Ninguém ia dormir muito cedo devido ao esfriamento das estruturas que levava algum tempo. Depois todo mundo se recolhia em seus quartos para descansar, até que algum ruído sobre o telhado despertava a vizinhança sem que aparentemente ninguém desse importân cia. Sempre alguém gritava: “Quem está aí?”. Então, uma voz ao longe do outro lado do quintal respondia “Eeeu”, revelando incômodo pela intrusão. Além dos insaciáveis pernilongos que apareciam na temporada de chuvas, ninguém ousava inter romper o sono a menos que se tratasse de um motivo sério, como se levantar de noite para usar o penico ou tentar calar com um grito um ocasional latido de um cachorro ou o miado romântico dos gatos. Às cinco da manhã começa o canto dos galos. Canta um galo aqui e outro ali contesta. Era muito lindo escutá-los e esse som que ocorre somente no campo servia de despertador para a maioria das pessoas do povoado. A madrugada se inundava com o cheiro do café. Já cedo assim havia muita gente a cami nho do trabalho na United Fruit Company. Aqueles que ficavam em casa começavam a varrer os portões e limpar as teias de ara nha dos tetos com grandes escovas feitas de folhas de caruru. No meio de Aracataca passava um pequeno riacho. Era fun do e todos iam lá se refrescar. As crianças eram as melhores nadadoras, e se atiravam de cabeça, ou tapando o nariz, pro vocando risos entre seus amigos e irmãos. Para as mulheres
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Aos domingos, assistir à missa era obrigatório e se ausentar dessa celebração religiosa era motivo de comentários na vizinhança e de um contundente convite ao confessionário do padre Angarita. Rosa pensava que o mais lógico seria ir à missa às seis da manhã porque fazia menos calor. Nessa hora, não tinha muita conversa porque a missa era mais cur ta. Em contrapartida, a missa das oito da manhã — a que ela costumava ir – era muito longa. No entanto, essa era a missa a que todo o povoado assistia. As mulheres chegavam com suas melhores roupas e leques nas mãos. Os homens usavam terno e gravata, colocando o melhor que tinham para causar uma boa impressão. Tanto o coronel quanto dom Pe dro estavam sempre presentes, cada qual sentado ao lado de sua respectiva família. Os rapazes iam olhar as garotas, e as garotas os seus galãs. De certa forma, além de rogar a Deus, as pessoas iam à igreja para se socializar e conhecer os visi tantes que chegavam para ver seus parentes e amigos. Em algumas ocasiões, Gabito servia de coroinha e precisava ver o orgulho que despertava em dona Tranquilina e na menina
não havia trajes de banho; o que usavam na época era uma espécie de maiô, parecido com um vestido de algodão que co bria o corpo todo até um pouco acima dos tornozelos. Des sa forma, nadar era muito difícil para as mulheres totalmente embrulhadas nessa pesada roupagem molhada que dificultava qualquer movimento. Além disso, o protocolo local incluía que as mulheres solteiras tivessem sempre de ir acompanhadas por algum familiar ou de uma das empregadas da casa.
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Francisca, que não tiravam os olhos dele durante toda a mis sa. Qualquer um dizia que entravam até em transe. Nessa época as missas eram realizadas em sua totalidade em latim, como era de costume em todas as igrejas, e as pessoas respondiam automaticamente na língua eclesiástica, sem com preender o seu significado. Rosa não era exceção e somente entendia as partes da liturgia que eram ditas em espanhol, que eram a epístola, o evangelho e o sermão, que para o horário das oito horas da manhã se prolongava por demasiado tempo e que culminava com as repreensões do padre Angarita. Ali era onde se reencontrava com os amigos, parentes e vizinhos. Os homens frequentavam a igreja e o coronel era muito generoso com suas contribuições para as celebrações de algumas festas religiosas.Oveterano
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combatente não costumava falar de suas bata lhas. Pelo contrário, costumava se sentar para ouvir com muito interesse os casos de dona Tranquilina e as histórias dos visi tantes sobre as lendas de seres extraordinários. Uma das lendas mais populares era a de “La Mojana”, uma personagem real que viveu séculos atrás. Ninguém se lembra va do verdadeiro nome daquela que supostamente foi uma bela mulher de origem nobre e cabelos ondulados de cor co bre que viveu em Cartagena nos tempos de vice-reis, escravos trazidos de Angola, indígenas libertos e nobres espanhóis radi cados no Novo Mundo. Havia se casado com um homem cruel e tirano, que, durante um ataque de ciúmes ao ver que ela dedicava demasiado tempo cuidando de seu filho, matou-a. Ao ouvir o grito da mãe ao morrer, o menino, que estava
Durante anos as pessoas se lembravam do sepultamento no qual o caixão da mãe foi velado ao lado de seu filho em meio ao choro e à consternação dos vizinhos e desconhecidos que sentiram a tragédia como se fosse própria. Depois do enterro duplo muitos começaram a vê-la, convertida em um fantasma, com seu vestido branco e os olhos vermelhos de tanto chorar. Sempre trazia na mão um pente para arrumar seus cabelos, encaracolados e brilhantes como os raios solares de um entardecer. Logo se converteria no terror das mães de toda a costa colombiana, onde sua lenda se espalhou devido a sempre estar procurando crianças para que fossem acompanhar a alma de seu filho. Com esse propósito, diziam que rondava os poços causando a morte de muitas crianças que escorregavam ao ver sua beleza refletida nas águas na profundidade. Gabito havia escutado muitas vezes a advertência, quando se aproximava do poço de água que havia na sua casa.
120 | Beatriz Parga sentado à beira do poço de água, caiu no fundo e se afogou.
A empregada de Rosa garantia que tinha visto “La Mojana” quando era pequena, recordando que no momento do encon tro com a bela mulher sentiu uma tontura, e com muita sorte caiu na parte exterior do poço. Tirando o susto, apenas machu cou os joelhos.
— Não se aproxime do poço, que “La Mojana” vai apare cer para você — diziam a ele. Eram as mesmas palavras que repetiam as mães e os pa rentes em todos os lares, como uma advertência para que as crianças deixassem de rondar os poços que, naqueles tempos, existiam em muitas casas.
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Entre os seres fantásticos, todos davam como certo a exis tência da “Alma Solitária”, o espírito de uma mulher que ne gou água a Jesus Cristo a caminho do calvário e foi condenada a vagar pelo mundo até o fim dos tempos. Na mesma linha, não havia pescador que saísse com seus anzóis sem levar um pouco de tabaco e de sal como oferenda ao “Mohán” ou muán, um ser bem peludo e com um cabelo muito longo, que supos tamente se apaixonava pelas mulheres quando se banhavam no rio e costumava enroscar as redes dos pescadores que não traziam sua porção de tabaco e sal. Alguns forasteiros eram bem-recebidos nas reuniões na casa de dona Luisa. O visitante contava suas próprias histórias sobre seres extraordinários de outras regiões colombianas, incluindo “A mulher de uma perna só”, “A chorona”, “A luminosa” e outras mais. Em um ambiente saturado de mistério, os novos interlocutores encontravam um auditório ansioso para escutar seus testemunhos de eventos sobrenaturais que diziam ter presenciado em algum momento de suas vidas e com frequência aterrorizavam todos com a suposta história da aparição de alguma vítima desses pavorosos encontros. Aracataca, por sua vez, contava com suas próprias lendas. Uma das mais populares tinha a ver com a casa vizinha à do coronel e dona Tranquilina, a do padre Angarita, onde supos tamente costumava aparecer um homem sem cabeça. O hor ripilante espetáculo era suficiente para que os aterrorizados habitantes do povoado evitassem se aproximar da casa do clérigo com a crença muito fundamentada de que a casa era mal-assombrada. No entanto, quase em segredo e somente
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Entre suas histórias tinha uma que sua avó lhe havia conta do, de uma costureira que desperdiçava as linhas ao costurar, e ao morrer teve como penitência recolher todas as linhas que havia gastado ao longo de sua vida. De noite ela podia ser vista percorrendo o povoado com uma vela na mão para iluminar todos os cantos onde poderiam estar os fios. Uma tarefa difícil e longa, porque enquanto não recolhesse cada uma das fibras que havia desperdiçado, não poderia passar para a melhor vida.
Apesar de não acreditar no mito do decapitado na casa de seu vizinho, a menina Francisca Mejía estava entre os assíduos ouvintes dos contos de espanto, e às vezes contribuía com algu ma história de seu próprio repertório. Contava como em alguns quartos da casa dos Márquez habitavam os espíritos dos an tepassados da família e estava segura de ter sentido o aroma da colônia de um deles, o cheiro de tabaco de outro, e até os via caminhando de noite, como almas penadas sem poder al cançar o esperado sonho eterno na outra vida.
122 | Beatriz Parga a algumas pessoas mais próximas, dona Tranquilina explicava a realidade por trás dessas versões, chegando à conclusão de que o cura de Aracataca, o padre Angarita, era quem supostamente havia inventado e disseminado entre a população o conto da horrível aparição porque, como humano que era, podia ter suas próprias fraquezas e por isso não queria que ninguém se aproximasse de sua casa. Além disso, o temor de se deparar com o assustador fantasma decapitado era suficiente para que ninguém o vigiasse e assim ele poderia desfrutar de certa privacidade para se despir de suas incômodas batinas.
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A menina Francisca era a madrinha de batismo de Gabito e era a que se encarregava da casa. Era dona de uma grande au toridade na residência dos Márquez e decidia a que hora iriam comer e a que hora que se fazia qualquer coisa. Além disso, tinha um ar de importância, talvez porque na casa de dona Tranquilina, que era muito religiosa, guardavam-se também algumas velas e objetos religiosos, além das toalhas branquís simas e bordadas à mão que eram usadas no altar da igreja.
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Os Márquez eram muito devotos e no dia 2 de fevereiro celebravam com grande pompa a festa da Virgem dos Remé dios, padroeira de Riohacha, a cidade que viveram antes de se mudarem para Aracataca. Por sua vez, os habitantes de Riohacha se sentiam muito orgulhosos em contar com a presença, entre seus filhos famosos, do monsenhor Pedro Espejo, que teve o privilégio de ocupar o alto cargo de secretário do papa. A res peitabilidade e sabedoria do sacerdote foram determinantes para que o coronel e dona Tranquilina acabassem aceitando o amor de Gabriel Eligio e Luisa Santiaga (sempre a chamaram de Luisa), depois que o venerado dignitário da igreja enviou-lhes uma carta de Santa Marta, persuadindo para que aceitassem a união entre sua filha e o telegrafista. Em agradecimento aos esforços com sua filha, dois anos de pois, os Márquez foram os responsáveis por uma campanha para dar o nome do alto prelado a uma rua principal de Araca taca, que era precisamente onde ficavam localizadas as casas dos Márquez e dos Fergusson. A consagração oficial da rua com o nome do monsenhor Espejo ocorreu precisamente em uma das festas da padroeira
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124 | Beatriz Parga da Virgem dos Remédios, na presença do alto prelado, que viajou de Santa Marta para a celebração. Um ano antes havia nascido o primogênito de Luisa e Gabriel Eligio a quem deram o nome de Gabriel José de la Concordia. Foi um parto difícil e o banharam com água benta para que, segundo as crenças da época, não fosse parar no limbo, o lugar onde chegavam as almas das crianças que morriam sem ser batizadas.
— O sacerdote se eleva do piso? — perguntou o cético pai de NoRosa.entanto, no povoado todos afirmavam que o milagre ocorria com frequência e jamais ninguém se atreveu a por em dúvida esse curioso dom do sacerdote. Uma grande aglomeração se juntou na ocasião desse ato tão importante, e mais ainda levando em conta a lendária hospitalidade do coronel, anfitrião fixo nos eventos mais trans cendentais da localidade. Os Márquez não pouparam nada: mataram dois cabritos e colocaram no quintal umas estacas
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Os Márquez haviam pensado em aproveitar a visita do monsenhor Espejo para formalizar o batizado de Gabito, mas não foi possível porque Gabriel Eligio e Luisa estavam de viagem. Foi assim que a ênfase se concentrou então na consagração da rua. A ocasião foi um grande acontecimento em Aracata ca, com a presença de cinquenta visitantes de Riohacha que haviam viajado para acompanhar o sacerdote que era um or gulho regional, além da fama de santo, já que muitos fiéis já o haviam visto se elevar sobre o piso atrás do altar durante a missa. Por esse motivo os paroquianos faziam romaria à igreja, esperando ver o milagre de levitação do sacerdote.
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Com uma maioria católica, Aracataca, como em toda a cos ta do país, orgulhava-se de seu pluralismo religioso. Qualquer um podia ter a religião que quisesse, era o lema quando se tocava no tema espiritual com pessoas provenientes de outros lugares. Ali ninguém tinha que defender sua posição religiosa diante de ninguém, já que no povoado todo mundo professava as mesmas crenças. Rosa havia nascido dentro da religião ca tólica apostólica romana, a mesma a que havia se convertido o seu avô Fergusson, anglicano de nascimento, pouco tempo após ter se estabelecido na Colômbia. Era natural que o padre Angarita fosse um dos personagens mais respeitados, venerados e temidos da região. Suas pala vras e opiniões eram consideradas muito importantes e todos sabiam que, se não fosse pela sua autoridade, muitos teriam perdido o temor a Deus em suas vidas. A criação do mundo, o dilúvio, a fé de Abraão e a valentia do rei Davi faziam parte de seus sermões, as parábolas que Jesus havia pregado também faziam parte do seu repertório. O experiente sacerdote, além de liderar seu rebanho, propunha-se a zelar para que os bons
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sobre brasas para assar as paletas do pequeno animal Todo esse banquete vinha acompanhado com arroz e rodelas de plátano Além disso, dona Tranquilina cozinhou um enorme ensopado de bode, que deu para todos os que quiseram repetir Seguindo um arraigado costume familiar, a menina Francisca havia colhido goiabas do quintal para preparar o cobiçado doce que sabia preparar como ninguém e que serviu acompanhado de bolachas de sal e queijo costeño, típico da costa do Caribe.
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costumes fossem mantidos em Aracataca, uma tarefa que exe cutava com todo o seu empenho de todas as formas. Rosa se lembrava do sacerdote sentado de costas para a rua, olhando um pequeno espelho que segurava na mão. Assim, dis simulando, vigiava as jovens do povoado e as via saírem do ci nema depois de assistirem um filme proibido, ou se observasse uma transgressão ao pudor na forma de se vestir, rapidamente tocava um sininho que sempre tinha em mãos. Toda vez que se escutava esse som metálico, os curiosos saíam para ver quem teria sido o alvo da sonora repreensão. De fato, era habitual que o severo sacerdote fizesse uma alusão do alto do púlpito às “mulheres que sem compostura e sem vergonha alguma que tal dia a tal hora caminhavam por tal rua”. E arrematava seu discur so dizendo: “Não perguntem seus nomes, vocês as conhecem e elas mesmas entendem”. Esse zelo do padre Angarita em defender o pudor era sentido com uma severidade especial quando uma mulher se aproxima va para receber a eucaristia. Nessas ocasiões, o sacerdote pa rava por uns segundos que pareciam intermináveis diante da mulher que, de joelhos, segundo os rituais da época, esperava para receber a hóstia. Nos pequenos olhos do cura brilhava então uma maliciosa mistura de repreensão, ironia e desprezo, e depois passavam de baixo para cima deixando envergonhada a magoada “pecadora” segundo os rigorosos códigos do sacer dote. Talvez por esse motivo muitos garantiam que sobre o púl pito pareciam sair raios e faíscas de fogo quando o sacerdote atacava aqueles que violavam as normas da decência.
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Além de vigiar as mulheres que entravam no cinema com vestidos pouco decentes, o padre Angarita estava sempre che cando se alguém entrou para ver um dos filmes que estavam na sua lista negra, sob pena de excomunhão a qualquer mo mento. Talvez por isso não era de se estranhar que, quando na missa dominical chegava o momento da eucaristia, muitos pou cos se aproximavam para recebê-la; afinal de contas todos se sentiam culpados por algum pecadinho, desde um pensamen to inapropriado até ter assistido, um dos filmes proibidos pelo cura, entre eles se encontravam alguns clássicos do cinema mudo de Charlie Chaplin, como Carlitos se diverte e Senhorita Carlitos, já que assistir no cinema um casal se beijando na boca era motivo de escândalo. Segundo Rosa, o padre Angarita era um sacerdote muito ri goroso e severo. É possível que como forma de vingança à sua intransigência e seus longos sermões dona Tranquilina tenha dito que a lenda do decapitado fosse invenção do sacerdote “porque talvez não fosse tão santo assim”. O certo é que al guns se perguntavam como era possível que, existindo esse fantasma no seu quintal, o padre Angarita continuava compar tilhando sua casa com a estranha aparição.
“Não deve apenas ser senhora, como também parecê-la”, dizia o sacerdote se referindo à necessidade de manter as apa rências em cada aspecto da vida. Esse era o motivo pelo qual as mulheres jamais caminhavam sozinhas ou com seus filhos pelo setor dedicado aos prazeres da carne, ou “o antro do pe cado e da perdição”, segundo a descrição do padre Angarita em seus sermões.
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128 | Beatriz Parga De qualquer forma, sua tática dava bom resultado. Ninguém, incluindo Rosa, jamais tentou verificar a versão que quase todo o povo dava como verdadeira.
Era proibido que os jovens e as crianças entrassem no cemi tério, mas de todas as maneiras e com a cumplicidade de suas empregadas inventavam alguma forma de ir lá matar a curio sidade, pelo simples gosto ao proibido. Os adultos achavam que era melhor manter as crianças e os jovens longe do cam po-santo, a menos que se tratasse do enterro de um familiar próximo. Rosa não compreendia o motivo dessa proibição, que atribuía mais a uma preocupação para evitar que a baderna das crianças interrompesse a paz dos defuntos na sua última morada. Por outro lado, nas noites, não havia quem se atre vesse a chegar perto do cemitério. Em um lugar onde desde a infância todos seus habitantes estavam acostumados a ouvir histórias sobre almas e assombrações, era natural que todos tivessem um temor reverencial pelas vinganças que aqueles seres do além-túmulo pudessem fazer contra os vivos. — Nunca se ouviu dizer que um morto pode matar um vivo, nem sequer de susto — dizia Rosa. Os mitos, o imaginário, o mistério e a ficção pareciam se reunir em uma extraordinária antologia oral de lendas. O pas sado era adornado com acontecimentos e detalhes extraordi nários que cada um aumentava à sua maneira. Segundo Rosa, um dos eventos fora de proporção foi a tão falada greve na zona bananeira, em que várias matérias jornalísticas poste riores atribuíram o trágico saldo de três mil mortos, mas que,
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segundo vários trabalhadores da empresa, a contagem não chegou nem a trinta.
— Cada um ia contando a história à sua maneira e, a cada nova versão, acrescentavam mais mortos, até que a contagem das vítimas chegou a vários milhares sem que jamais houvesse uma cifra oficial digna de crédito — garantia a professora.
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Como consequência desse escândalo, a United Fruit Com pany içou suas velas e partiu.
Desde pequena, Rosa se sobressaía por sua espontanei dade, seu caráter aberto, sua disposição para ajudar os outros e seu grande senso de responsabilidade. Ocu pou o primeiro lugar na aula de religião, uma disciplina obri gatória que incluía a memorização, palavra por palavra, do catecismo Astete, um manual que continha a doutrina e cujo conhecimento era imprescindível para todos os católicos. Rosa atribuía sua boa retentiva ao estímulo que sua memória re cebeu em uma tenra idade ao decorar o livro do princípio ao fim. E de fato, como quase todos os meninos e meninas de sua época, Rosa repetia ao pé da letra cada linha do livreto que continha todos os dogmas da fé cristã e era matéria de apren dizagem em todas as escolas da Espanha e dos países coloni zados pela Coroa espanhola. O autor desse doutrinário era o padre Gaspar Astete, sacerdote jesuíta nascido na Espanha em 1537. Certamente nunca se imaginaria que seu simples manual chegaria a bater um recorde de mais de mil edições. Foi impresso pela primeira vez na Espanha em 1599. Mais de duzentos anos depois, 1836, seria editado na Colômbia.
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Rosa chegou a ter um dos primeiros exemplares, herdado de uma de suas avós, Celedón. Com as páginas amareladas e car comidas pela traça e a umidade, o raro exemplar foi perdido depois de sua primeira comunhão, que recebeu aos nove anos.
Sua vocação de professora já se manifestava em uma idade muito nova, quando aos dez anos quis ensinar a ler um índio guayú, originário de Riohacha, que trabalhava limpando sua casa. Temendo que o contato de sua filha com um estranho
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Dias antes, com muita seriedade, Rosa se aproximou do con fessionário para dizer seus pecados, ficando envergonhada ao contar ao sacerdote que uma vez havia mentido à sua mãe di zendo que estava doente para não ir à missa e que outra vez, ao invés de ir ao rio com sua empregada, foram explorar o cemité rio. Quando o sacerdote a perguntou qual havia sido o motivo de sua desobediência, ela explicou que fazia tempo que tinha o desejo de procurar a tumba de seu avô Jorge, mas que os adul tos não a levavam ao cemitério. No final, não encontraram a se pultura, mas regressaram com a sensação incômoda espiritual de ter feito algo mal. Como penitência, o sacerdote lhe impôs rezar um rosário e não comer doces durante uma semana.
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Com um vestido branco de finíssimo opalino suíço costurado finamente por uma costureira do povoado, Rosa era uma meni na de bochechas rosadas e longos cílios nessa inesquecível data, quando entrou na igreja com um rosário na mão esquerda e um belíssimo lírio feito de papel na direita. Naquela época era im possível conseguir na região essa flor branca das regiões frias devido às dificuldades para transportar algo tão frágil e perecí vel como esse fragrante lírio, símbolo da pureza da alma.
pudesse ter outras consequências, sua mãe a proibiu de con versar com os empregados e começou a pensar uma forma de acelerar sua viagem para o internato em Santa Marta. De qualquer forma, em duas aulas Rosa conseguiu ensinar o índio a desenhar o seu nome.
— Não reclame do calor, que pelo menos sempre refresca nas tardes. Outra coisa é o frio, que lhe congela o sangue, faz que fique doente e nas noites sente que mói os ossos — cos tumava dizer Pedro Fergusson recordando as histórias sobre os invernos rigorosos que lhe contava seu pai, Jorge, o inglês.
Desde a adolescência sonhava em conhecer outros países e cidades, abrir as asas como as águias e saber como era o mun do além das planícies e pântanos que conhecia. Sem dúvida, uma paisagem muito diferente daquela de seus antepassados ingleses que habitaram vales e montanhas cobertas de neve, com temperaturas tão baixas que seu avô costumava contar a seus descendentes que, antes de emigrar da Grã-Bretanha, milhares haviam morrido na Europa por causa de um inverno muito rigoroso.
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Um dia, enquanto caminhavam à escola no meio de um calor asfixiante, Rosa contou para Gabito sobre as neves que cobria de branco os países do Norte. Dispunham de tempo. Com um entusiasmo pouco comum, o menino falou do ma ravilhoso descobrimento que seu avô havia lhe mostrado dias antes quando o levou para conhecer o gelo em uma peixaria. Nas tardes calorentas em que a umidade e o calor faziam com que a roupa grudasse no corpo, Rosa se perguntava se no
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Essas invenções se tornariam algo natural com o passar dos anos, mas Rosa nunca se esqueceria daqueles tempos quando os romances brotavam alimentados pelo fogo das palavras de amor e cartas perfumadas; os negócios que eram feitos no café do povoado; as dívidas eram pagas como se fossem sagradas, a palavra de honra valia mais do que um documento escrito; os banqueiros eram respeitáveis; os médicos não cobravam dos pobres; as mulheres tinham que trabalhar somente em casa, e não na casa e na rua; as pessoas tinham tempo para se sentar às tardes debaixo das amendoeiras, as crianças eram felizes brincando com bolinhas de gude ou tampinhas de garrafa, os avós impunham carinho e respeito, os homens cediam a parte
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Noscomputadores.primeirosanos
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134 | Beatriz Parga futuro alguém inventaria uma casa com paredes de gelo que, de alguma forma, não derretessem e permitissem que as casas fossem mais frescas. Rosa queria deixar o testemunho de como era a vida no início do século XX para saciar a curiosidade das próximas gerações que cresceram na era do avião a jato, com ar-condicionado e
do século XX, muitas populações pe quenas da América Latina não tinham eletricidade. No entan to, Aracataca teve eletricidade graças à United Fruit Company. Os fogões eram de carvão ou à lenha, os ferros de passar roupa eram de carvão, com o defeito de que de vez em quando sol tavam umas pontas de fuligem que queimavam a roupa delica da. Mais tarde chegariam os ferros a gasolina, que eram muito caros, mas garantiam uma passada de roupa perfeita, e não sujavam as roupas com fuligem.
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de dentro da calçada para as damas e lhes abriam e fechavam as portas, os adolescentes obedeciam seus pais e avós e as amizades eram para toda a vida.
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Um motivo para não praticar esporte eram as altas tempe raturas de até trinta e nove graus centígrados na sombra. No entanto, apesar do calor, o futebol era um esporte muito po pular entre os jovens e crianças. Ficavam jogando em um cam po próximo até quando começava a escurecer e os mosquitos castigavam os entusiasmados esportistas com todo o rigor de seusOsferrões.habitantes de Aracataca cultivavam a amizade com gran de esmero. Ter bons amigos era uma vantagem para entreter as horas em um povoado onde a conversa era como o sal que dá sabor à comida. Rosa não era uma exceção e, igual a todos, esperava com alegria a chegada diária do crepúsculo. Com o calor ficando para trás, a vida parecia se transformar em uma história sim ples, e o futuro parecia livre de preocupações. Esses momen tos ficariam gravados para sempre em sua memória, com o sabor amargo de que talvez não o tivesse valorizado o suficiente, e que jamais se imaginou em sua juventude que seriam irrepetíveis. Na sua juventude, Rosa sempre teve o desejo de viajar para Guajira. Não tinha lembrança do lugar onde nasceu, e de que sempre se sentiu orgulhosa. Seus pais, Pedro Fergusson Chris toffel e Rosa Gómez, vieram de lá. Ele era um homem atraente e de porte elegante, um gênio com os números, que detestava
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Parece incrível, mas apesar de morar próximo ao mar, como muitas mulheres de sua época, Rosa nunca aprendeu a nadar.
136 | Beatriz Parga a bebida e a vulgaridade, vivia impecavelmente vestido e era muito familiar; sua esposa era uma mulher muito refinada, de grande beleza, que em toda ocasião estava vestida com distinção. Gostava de blusas rendadas e se eram brancas, melhores. Sempre bem passadas, engomadas, apesar de que com frequência o tecido endurecido lhe picava a pele e lhe deixava com o pescoço vermelho. Com ela suas filhas aprenderam que uma mulher nunca deve sair à rua sem estar penteada e arrumada, com pó de arroz no rosto, o carmim nas bochechas e os lábios vermelhos. Na sua infância Rosa desfrutara das histórias que lhe contava Barbarita, uma empregada da casa cujo país de origem se perdera sob um denso manto no decorrer dos anos. Era uma mulher de raça negra com um sorriso branquíssimo, trato afável, alta e delgada. Contava que seus antepassados haviam chegado a Cartagena em um barco carregado de escravos afri canos provenientes de umas planícies de cor ocre tão imensas como o mar, salpicadas de prados verdes onde corriam como as gazelas e eram livres até que uma tribo rival os atacou na noite para depois vendê-los como escravos aos portugueses. Ela sempre chegava à casa dos Fergusson nas primeiras horas do dia para recolher o pesado fardo de roupa e seguir sua jor nada até o rio. Curiosamente, contra todas as previsões, não se sentiu nada satisfeita quando colocaram na casa de Rosa uma cisterna de cimento que era enchida duas vezes por semana com água que chegava no lombo de burro. Ela reclamava que a roupa não ficava tão branca como quando se lavava no rio, um argumento que com frequência alegava para evitar o tédio de
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Com uma voz grave e cheia de nuances, Barbarita se encarre gava de lavar e passar a roupa enquanto narrava para Rosa his tórias fascinantes de países distantes com tapetes mágicos que podiam voar sobre as nuvens, aves com penas de ouro, ursos que falavam o idioma dos humanos, baleias brincalhonas que moravam em um castelo no fundo do mar, fadas tão pequenas que dormiam no cálice de uma flor, selvas com cascatas que jorravam luzes coloridas e árvores cujas folhas eram feitas de esmeraldas e diamantes. As horas passavam muito rápido en quanto a pequena Rosa desenhava em sua imaginação esses lugares maravilhosos. Anos mais tarde chegaria a televisão que, segundo Rosa, transformaria o vínculo humano em uma comunicação com um aparelho mecânico, diminuindo a capa cidade das crianças de se expressar em público, desenvolver a imaginação, formar frases e avaliar a realidade que as rodeia.
Com os anos, Rosa começou a ter um interesse reno vado pelo povoado que havia deixado para trás quando se viu diante da necessidade de se mudar para a capital. Mui tos haviam ido quase que ao mesmo tempo de sua partida, mas outros ficaram em Aracataca com os fantasmas de uma
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ter de passar o dia detrás de uma cisterna. Rosa pensava que Barbarita sentia saudade era do entorno do rio, com o sussur ro do vento entre as árvores, a alvoroço alegre das maritacas, o murmúrio da água e da vegetação exuberante em cores e aromas.Nasua infância, Rosa se sentava para brincar com suas panelinhas de alumínio e barro cozido enquanto a lavadeira contava histórias que a transportavam para terras longínquas.
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Na realidade, no decorrer dos anos ficou sem saber da res posta para uma pergunta que sempre havia ficado no ar: O que aconteceu com a vida de Benítez, esse ser fantástico e atordoado que era perseguido por borboletas amarelas e acabou sendo vítima de seus engenhosos truques que usava para se reunir com seu amor? “Isso não era uma invenção de Gabito, era verdade”, garantia a professora com admiração sobre a retentiva de seu então peque no aluno ao recordar do inesquecível eletricista perseguido por umaTodospanapanã.essespersonagens
prosperidade perdida, as imagens dos que se foram em busca de melhores oportunidades e as lembranças de dias melhores que sempre compartilhavam em suas conversas debaixo das amen doeiras. Rosa nunca se esqueceria desse povoado e quando a saudade daqueles tempos se filtrava pelos resquícios de sua memória como uma chicotada do passado, uma ligação para sua amiga Luisa, a mãe do escritor, bastava para colocá-la em dia sobre as pessoas que fizeram parte desse grande filme de sua vida. Outras vezes, ligava para suas irmãs, mas elas pareciam mais interessadas no presente do que no passado.
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que pareciam viver somente em um pequeno canto de sua memória pareceram ressuscitar em 1967, quando aos quarenta anos o escritor imortalizaria Aracataca com seu grande romance Cem anos de solidão. O povoado foi identificado como Macondo, o nome de uma fazenda próxima aos trilhos do trem, sendo que muitos acreditaram inicialmente que essa realidade tropical que o autor contava não era outra coisa senão uma invenção. Ninguém suspeitava quão imensa
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seria essa obra publicada pela primeira vez na Argentina pela Editorial Sudamericana, com uma tiragem inicial de 8 mil cópias que cresceu até superar a venda de 30 milhões de livros, tendo sido traduzida em 35 idiomas. Rosa lia as obras de seu aluno, tratando ao mesmo tempo inutilmente de se descobrir em alguma das personagens do autor. Por fim, um dia se sentiu agradavelmente surpreendida ao ler A revoada: o enterro do diabo, e lhe pareceu identificar suas duas irmãs, mas nunca conseguiu se reunir com o autor tempo suficiente para verificar suas suspeitas. A cada leitura, Rosa se sentia surpreendia pela extraordi nária capacidade de seu aluno para assimilar o mundo que o rodeava em uma idade tão tenra. A professora dos sonhos do menino, além de sua beleza, era uma jovem atenta e com gran des desejos de superação; igual a uma ave que se esforça para romper a casca, estava sempre lutando por suas metas e um futuro melhor. Nunca imaginou que seu grande orgulho, e o que a tornaria um exemplo a seguir, seria seu trabalho como pro fessora nesse povoado perdido no mapa. Curiosamente, nesse lugar tão remoto sua vida ficaria ligada a um prêmio Nobel de literatura, a quem embalou entre seus braços algumas horas depois do seu nascimento. Ambos teriam em comum, além do distante parentesco, as vivências desse povo mágico que às vezes era difícil de en tender. Ali passou seus melhores anos, ali viveram seus pais a maior parte de suas vidas, e estavam enterrados os avôs do escritor e os pais da professora
140 | Beatriz Parga Anos depois, quando Rosa regressou ao povoado para visitar suas irmãs, ainda parecia ver debaixo das amendoeiras as figuras dessas tardes povoadas de fantasmas e personagens fascinantes saídos das histórias de dona Tranquilina. Então se dava conta de que, sem sequer ter suspeitado, havia morado no paraíso.
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Ou talvez fossem as histórias de seus avós que despertaram as musas nessa cabecinha? Podia ser também o resultado de uma combinação dos ensinamentos de sua professora com os contos que o menino escutou em sua casa? Indubitavelmente todos contribuíram na formação do escritor em uma idade precoce.
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Afinal, Rosa Fergusson e seus primeiros ensinamentos tiveram um papel importante para estimular a ima ginação e o amor aos estudos de seu famoso aluno?
A classe: uma janela para o universo XII
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No entanto, o que não deixa dúvida é a convicção de Rosa sobre a importância de a pequena chama do conhecimento ter sido acesa em uma tenra idade.
A professora esperava que esse estímulo precoce nas ten ras mentes infantis fosse seu testamento para a posteridade, de tal forma que outras professoras aplicaram o bem-sucedido método de María Montessori, que foi a primeira mulher a se formar em medicina na Itália. Passaria para a história como uma pedagoga incrível quando, ao observar um grupo de crianças consideradas retardadas e com dificuldades de apren dizado, colocou em prática um método de ensino que tornou
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Rosa, que desde muito pequena sentia uma grande vocação para o ensino, havia lido um dia no jornal da capital El Tiempo uma crônica sobre a médica e pedagoga italiana e suas inova doras técnicas para abrir a cabecinha das crianças ao mundo do conhecimento.
Fascinada pelos resultados reportados na
142 | Beatriz Parga possível que essas crianças não apenas aprendessem a ler em uma idade precoce, como também, nos exames de final de ano, obtivessem melhores notas em leitura e escrita do que as próprias médias estaduais das crianças consideradas “normais”.
A notícia dos progressos alcançados com crianças com difi culdades de aprendizagem fez com que se tornasse uma cele bridade mundial. Em 1914 viaja aos Estados Unidos a convite do cientista Thomas Edison, e seu método é adotado em várias escolas dos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, com o apoio de Alexander Graham Bell, o inventor do telefone. Havia começado na Itália, com o apoio do governo, até que se rebelou contra o doutrinamento político das crianças im posto pelo regime de Mussolini. A pedagoga decidiu se exilar na Espanha, onde abriu vários institutos para capacitação de professoras no método que levava o seu nome. Logo sua técnica se espalhou por toda a Espanha. No entanto, ao estourar a Guerra Civil Espanhola, ela vai para a Holanda, onde se radica por um bom tempo. Em 1939 embarca para a Índia com seu único filho, Mario, e funda dezesseis escolas de treinamento para professoras em vários centros de ensino Montessori. Des de então seu método já havia se espalhado por quase todo o mundo. Foi nomeada três vezes ao prêmio Nobel da paz, mas, sem nunca recebê-lo, morreu em 1952, na Holanda.
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Montessori
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matéria jornalística e com as experiências compartilhadas com a professora Pujol, que havia estudado com María Montessori, em uma conferência em Santa Marta, Rosa se propôs a tirar proveito desses ensinamentos. Ao se formar, Rosa sentiu uma grande satisfação pessoal e familiar. Com orgulho e alegria, seu pais receberam sua gra duação; e devido às suas boas notas ela recebeu uma bolsa de estudo do governo nacional para a Espanha, como prêmio especial por sua consagração e êxitos alcançados ao longo de seus estudos. Sem levar em conta a grande oportunidade que isso representava, sua mãe não a deixou ir. Os pais do passado não achavam adequado que uma filha viajasse sozinha para o estrangeiro. Rosa se sentiu como se estivessem cortando suas asas, uma oportunidade que nunca poderia recuperar. Depois recebeu uma nova bolsa para estudar enferma gem em Bogotá, a capital colombiana, localizada no interior do país, mas novamente não teve a aprovação de seus pais. No entanto, como ocasião da guerra com o Peru, quando os vi zinhos do sul tentaram se apoderar de Leticia, um porto colombiano sobre o rio Amazonas, as escolas tiveram que en trar em um intervalo sabático que Rosa aproveitou para fazer um curso oferecido pela Cruz Vermelha em Bogotá, sem que seus pais se opusessem. Muitas vezes se perguntou se o destino se encarregou de que as coisas ocorressem assim, porque tinha uma mis são mais importante. E sempre dizia que o grande desafio de sua juventude e sua maior satisfação foi ter sido a diretora do de Aracataca.
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144 | Beatriz Parga Foi muita a satisfação que a professora sentiu quando abriu essa Montessori; em cada carteira deveriam sentar duas crian ças da mesma idade e estatura. A classe logo ficou cheia de crianças e dava para ver a alegria dos pais ao entregar seus filhos a alguém que tinha tanta dedicação para cuidar deles. Assim como o padeiro que prepara a massa para em seguida trabalhá-la, do mesmo modo a professora primeiro disciplina va seus pequenos alunos para depois ensinar-lhes as primeiras letras.Todo dia, a professora recebia seus alunos na entrada desse laboratório extraordinário da vida, um livro aberto às aventu ras do conhecimento. Entrar por essa porta era como chegar a um reino mágico, com uma explosão de cores, aromas, sons e sabores indescritíveis que as crianças desfrutavam com um fascínio de aprendizes em um universo incrível. As crianças sabiam que ao se sentar em suas carteiras, a professora pare cia tirar uma varinha mágica com o poder de levá-los a mundos nunca imaginados. Ela lia para eles contos sobre gatos valentes que andavam com botas, ursos mansos que falavam, tapetes que voavam e príncipes transformados em sapos; ali mesmo, em sua própria sala de aula e em seu povoado, havia um mundo único em que os adultos pareciam não se dar conta, ocupa dos como estavam com seus afazeres e preocupações da vida diária. Por isso que, em vez de buscar desculpas para ficar em casa, os alunos de Rosa não queriam perder nem um minuto de aula, que Gabo descrevia como “brincar de estar vivo”. A rotina diária começava com uma revista simples da higiene pessoal. Nenhuma criança podia chegar sem banho tomado;
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as orelhas e os dentes deviam estar limpos e as unhas, além de impecáveis, cortadas. A roupa podia ser pobre, mas assea da, e as roupas íntimas deviam ser trocadas diariamente, do mesmo modo que as meias. Os sapatos eram também revis tados e podiam ser os mesmos todos os dias, mas limpos.
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Essa inspeção era feita de maneira rápida e carinhosa, felici tando o aluno pela boa apresentação para lhe dar estímulo, nunca o humilhando. E se o aluno precisasse de atenção com seu asseio pessoal, ela avisava aos pais de maneira delica da. “Deve cortar as unhas da criança, ela tem que estar mais curta para não arranhar”, era sua forma de dizer as coisas. Do mesmo modo, a professora era enfática ao afirmar que nun ca deveria criticar a criança na presença de terceiros porque isso afetava a autoestima e os tornaria inseguros. Depois de fazer a inspeção do asseio, os alunos ocupavam seus assentos e começava então o que ela chamava de “exercí cio do silêncio”, uma das rotinas favoritas que consistia em se manterem sentados colocando as mãos sobre as carteiras e a cabeça sobre as mãos com os olhos fechados. Então, deveriam ficar absolutamente em silêncio, sem fazer ruído nem com as mãos, nem com os pés, nem com a boca. Nesses escassos mi nutos a criança se reencontrava consigo mesma. Esse exercí cio, que parecia um jogo e que as crianças se encantavam, aju dava a atingir não apenas a disciplina do corpo como também da mente. Rosa colocava as duas mãos em forma de buzina na boca e, como em segredo, ia chamando em voz baixa cada aluno pelo seu nome e, em meio desse absoluto silêncio, cada criança respondia “Presente” levantando a mão e voltando à posição original de imediato. Tinham que estar muito alertas
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146 | Beatriz Parga porque a professora os chamava quase sussurrando e se não estivessem atentas ao som de sua voz, não poderiam escutá-la. Em seguida, ela os fazia dar uma volta em torno da classe, caminhando muito direitinhos e sobre a ponta dos pés. Depois, pedia-lhes para imaginar que eram aves, e moviam os braços, batendo as asas. Outras vezes avançavam, dando pulinhos e depois, sem fazer o menor ruído, começava outro exercício que consistia em lhes ensinar a correr até a carteira sem fazer barulho, e a se levantar da mesma forma de novo no mais absoluto silêncio. Esse exercício que parecia uma brincadeira combinava a aprendizagem de bons modos com disciplina. Depois mandava um a um abrir e fechar a porta, tudo em silêncio.
Com os olhos fechados, tinham que adivinhar que fruta a professora havia escondido dentro de um pano. Ela apro ximava a fruta nos pequenos narizinhos. E a criança, com os olhos fechados, discernia entre duas frutas: — Manga! — dizia um, feliz com sua descoberta. — Goiaba! — afirmava outra triunfante ao perceber o chei ro característico dessa fruta tropical. Assim iam desfilando o lulo, a maçã, o limão, o abacaxi, o mamão, o coco, a lima, o tamarindo, além de fragrâncias mais sofisticadas para os pequenos olfatos infantis, como o café, a canela, a noz-moscada e a pimenta. Examinavam as diferen ças com o tato entre uma pedra lisa de rio e outra arenosa proveniente da montanha, a suavidade das penas de uma ave ou a pele felpuda de um coelho, em contraste com o duro cas co do tatu ou da tartaruga, passando pela sensação do veludo e da seda. Não podia faltar a grande aventura pelos sabores,
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que descobriam com os olhos fechados enquanto a profes sora lhe fazia provar o mel de abelha, açúcar, chocolate, sal, canela em pó, reconhecendo pouco a pouco toda uma gama de gostos que faziam com que a matéria de estudo se tor nasse ilimitada nas descobertas e possibilidades. Às vezes se dava ao incômodo de levar até a classe uma pequena vitrola que pedia emprestada na vizinhança e que ganhava vida ao girar uma manivela enchendo a sala de sons que incluíam Mozart, Beethoven e Strauss
— MA, professora — respondeu Gabito, descobrindo por fim o mistério da leitura que tanto o havia atormentado quan do lhe diziam EME com A e ele lia EME-A. Não se dizia “eme” e “a”, porque para as crianças era difícil assimilar a leitura dessa forma. Mostrava o M pronunciando-o
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— Gabito, como se lê o “M” e o “A”? — perguntou Rosa.
. Em outras ocasiões o concerto se centrava no pátio, onde as crianças aprendiam a distinguir o canto dos melros, sabiás, periquitos, faisões ou um turpial Desfrutavam também do som do rio em ocasiões de passeios que eram recompensas pelo bom comportamento. Com emoção, todos os dias os alunos celebravam a descoberta desse universo que antes se encontrava escondido por um véu e que a professora os ajudava a desvendar com o entu siasmo e fascínio, como uma extraordinária explosão de cores, sabores e sons. Uma das principais inovações para o ensino com o método Montessori consistia em as crianças aprenderem a ler e escre ver escutando primeiro os sons, repetindo-os até depois de co nhecê-los bem, para que só então pudessem escrevê-los.
148 | Beatriz Parga MMM como corresponde ao seu som e depois o A: se diz MA. Rosa também enfatizava a importância de lhes ensinar a se gurar o lápis para escrever, porque, caso contrário, jamais o fariam corretamente. Depois, podiam trabalhar no que quisessem; umas olhavam livros com imagens, outras contavam em um ábaco, desenhavam com cores, ou faziam figuras de animais com massinha, que era uma das atividades favoritas. Enfim, cada criança trabalhava no que mais gostava e assim a professora podia avaliar quais eram as preferências de cada uma.A professora passeava pela sala de aula, observando deta lhadamente cada criança para ver as aptidões individuais e se dirigia àquela que poderia precisar de ajuda. Cada aluno tra balhava em seus próprios interesses todo o tempo que quises se até que decidia fazer outra coisa, guardava em sua carteira esse material e tirava outro; assim cobria as distintas áreas de aprendizagem. A professora apenas observava e corrigia, mas sem dizer à criança “isso está mal”, porque segundo suas pró prias palavras “nessa idade precoce a crítica é catastrófica e o estímulo funciona melhor”.
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Manter os alunos entretidos fazia parte do segredo para que não começassem a conversar em aula ou a discutir por besteiras. Do mesmo modo, todos sabiam que existiam regras que não podiam violar. Dessa maneira, começavam a se fami liarizar com a disciplina. Uma das regras mais simples tinha a ver com a forma de se expressar. Os palavrões eram proibidos, considerando que não eram bons para a cultura em geral, nem para o espírito. Rosa lhes dizia: “Se falar palavrão, eu lavo a boca com sabão e se
Na realidade, tinha certeza de que Gabito foi um menino feliz em sua aula e que soube tirar o melhor proveito de tudo o que aprendeu nessa etapa da sua infância, da mes ma forma que ela havia desfrutado sua experiência de ser a
os pais deviam enviar à escola um relatório sobre o comportamento da criança em casa, acerca de sua obe diência, ordem e responsabilidade, e com esses dados a profes sora completava o seu relatório mensal sobre cada aluno.
reclamar, vai comer parede”, que significava que a colocaria de castigo, de pé virado para o muro. Quando ocorria uma briga entre dois meninos ela os chamava com voz firme, essa amea ça de fazê-los comer parede os detinha. Gabito nunca comeu parede e nem Rosa teve necessidade de lavar a boca de quase nenhum de seus alunos. No entanto, sustentava que, embora seus alunos fossem muito respeitosos, não havia espaço para a advertência.Semanalmente
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Para Rosa, seu trabalho não era apenas uma forma de ga nhar a vida. De fato, com o passar dos anos sempre recordaria de cada uma das crianças que passaram por sua classe, onde se sentavam, quais eram suas principais virtudes e, muito es pecialmente, seus rostos. Sempre recordaria de Gabito quietinho e muito atento ao que ela dizia, sentado no início em uma das carteiras da pri meira fila, e depois na terceira, justamente no centro da sala de aula. Rosa não precisava que alguém lhe contasse que seu estu dante conservava um lugar muito especial nas lembranças de Montessori de Aracataca e os ensinamentos de sua primeira professora.
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O testemunho desse vínculo tão extraordinário entre a professora e o aluno está presente nas entrevistas e obras do escritor, que sempre a lembraria e descreveria as aulas na Montessori como uma incrível aventura da vida. Rosa es perava que seu aluno famoso a ajudasse a disseminar o méto do Montessori. Com esse propósito, aos seus setenta e quatro anos viajaria 1.300 quilômetros para entregar ao escritor umas anotações em mãos explicando o processo de ensino que podia beneficiar milhões de crianças. De fato, até com esta autora ela deixou para o escritor quatro páginas para que fossem entre gues “quando eu já tenha partido”. “Quando Gabito ler isso, se lembrará, quem sabe até com saudade, daquela etapa feliz de sua vida, sua Montessori, onde sua professora o ensinou com tanta dedicação e onde ele aprendeu e se destacou como o melhor aluno”, dizia a mensagem com sua bela letra dirigida ao escritor.
“O método Montessori me deu resultados magníficos, especial mente com o aluno que iniciei, esse menino chamado Gabriel García Márquez. Não é meu desejo diminuir o valor da educação
fagulha que acendeu a chama do conhecimento em Gabito e de todas as crianças que passaram por sua sala de aula.
Rosa sabia que suas palavras teriam o impacto que ela sentiu ao receber um bilhete do escritor escrito à mão dirigido a “Minha queridaConvencidaprofessora”.deque o êxito de uma professora deve ser medido pelas realizações alcançadas por seus alunos, acredi tava que é a capacidade do professor para ensinar e não ape nas o conhecimento ministrado que se consegue bons frutos.
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povoado perdido na geografia terrestre, que a professora viu seu propósito cumprido para conseguir um futuro melhor para seus estudantes. Contra todas as probabi lidades, desse povoado empoeirado e dessa escola humilde saíram homens célebres que a professora recordaria sempre, com seus nomes e sobrenomes. Rosa se empenhou para que seu famoso aluno a ajudasse a disseminar a importância do método Montessori e o Nobel re alizou o desejo de sua professora em sua autobiografia Viver para contar, onde pondera o método Montessori e recria a experiência do universo que descobriu na aula de Rosa Fergus son, na escola rural de Aracataca. Modesta em suas realizações e discreta em sua vida pes soal, a professora somente concedeu entrevistas em sua vida para dois “Tenhojornalistas.resistido em conversar com a imprensa, porque se o faço, não volto a ter mais paz. Agora, se tenho que fa lar do Gabito quando pequeno, sinto um prazer enorme em fazê-lo! Recordar aquele tempo de sua infância, e eu mais jovem, quando dediquei tudo o que aprendi para organizar aquela mente e procurar tirar o melhor proveito desses en sinamentos. Hoje, Gabriel García Márquez, aquele menino tão cumpridor do seu dever, tão são em seus costumes, tornou-se um grande escritor mundial. Como me sinto orgulhosa de ter pego nas minhas mãos esse prodígio de hoje, mas o meu maior
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que ele recebera em seu lar, que, como já havia dito, foi e tem sido um lar exemplar, tanto o de seus avós como o de seus pais”,Foiafirmava.assim,naquele
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orgulho sempre foi conservar somente para mim esse segre
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O cheiro da goiaba que seu desejo de ver sua professora o fez amar o colégio. Eu diria que não era ape nas esse desejo, senão o de aprender. Nunca deixou de fazer uma lição de casa e sempre apresentava todas ordenadas e limpas. Se gostava muito da sua professora, é assim que tinha de ser, a criança dá o que recebe. De minha parte sempre re cebeu carinho, atenção e estímulo. Quando uma criança grita com os pais, podem ter certeza de que é assim que é tratado por eles. Quando os pais se queixam que seu filho é muito tra vesso e insuportável, esses pais não souberam se aproximar de seu filho, não o compreenderam, não aproveitaram o seu dinamismo, sua inteligência e pode ser que os pais tampouco os compreenderam, nem os ajudaram. Que Gabito seja hoje o resultado desses primeiros ensina mentos, daquela disciplina, possivelmente. Mas não podemos deixar de lado os ensinamentos que recebeu em sua casa, Ga briel García Márquez, o do ontem, hoje se tornou o melhor escritor.”
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do: Rosa Helena Fergusson, a primeira professora de Gabriel GarcíaGabitoMárquez!disseem
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F3f 153 XIII A professora se apaixona
As mulheres de sua raça e da sua geração nasciam com um destino: formar um lar, casar e ter filhos. No final das contas, assim estava escrito desde sempre. Por muitos anos Rosa pensou que podia lutar contra esse mandato do destino. Mas no final descobriria que não existe força maior que a do coração. Esse pressentimento coincidiu com a chegada de Pablo Acuña à Aracataca, um advogado de boa aparência e inteli gente, que pouco tempo após chegar ao povoado começou a cortejar a jovem professora com a permissão de seus pais. Ele a tratava como uma rainha, era romântico e conversador − como ela −, fazia-lhe rir e quando dançavam parecia que seus corpos estavam sincronizados em cada movimento, da cintura até os pés. "É uma joia”, disse sua mãe alertando -a sobre a importância de ir pensando em seu futuro. Pablo, além de ser um homem de família, era um profissional de bom caráter e responsável, tal como sua família esperava. Ela tinha feito até o impossível para fechar as portas ao amor em sua vida. Mas não podia esquecer que era uma
154 | Beatriz Parga mulher jovem e, às vezes, quando fechava os olhos imaginava que no final das contas um dia teria que renunciar a todos os seus sonhos para se dedicar à criação de uma família. Quando conheceu o jovem advogado, deu-se conta de que era o homem de sua vida. Suas irmãs quase não conseguiam acreditar quando sua irmã disse que se sentia apaixonada assim tão rápido. Vestida de branco, virgem e coroada com lírios, tornou-se a “senhora de Acuña”. O casamento foi realizado com a bênção de sua família e a admiração de seus parentes, amigos e vizinhos que, no princípio, haviam criticado seu empenho em estudar para professora, e agora ponderavam suas conquistas. É que olhando de qualquer ângulo, Rosa havia sido uma filha exemplar: foi uma boa estudante, ganhava seu próprio sustento com uma profissão respeitável e se casou com um profissional, tal como esperavam seus pais. No entanto, havia mais; havia casado apaixonada e esperava viver ao lado de seu marido até que a morte os separasse. Várias vezes Rosa havia dito ao seu esposo que não enten dia como outras mulheres aceitavam as “sem-vergonhices” de seus parceiros. Com um sorriso condescendente, Pablo repli cava: “Os homens são diferentes das mulheres”. Mas ele sabia que sua mulher não estava disposta a permitir amores clan destinos, nem a compartilhá-lo com outra. De fato, antes de se casar já parecia existir um pacto subentendido entre ambos; seu marido não andaria com outras mulheres, como a maioria dos homens casados do povoado. No entanto, alguns meses depois de seu casamento, Rosa começou a notar que Pablo
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saía às tardes, e demorava em voltar para casa mais do que o esperado. Pressentiu que havia um sinal de alerta e depois de pensar bastante, deu-se conta de que havia chegado o mo mento de colocar em andamento sua bem bolada estratégia contra a infidelidade.
— E como vai o trabalho? — insistiu Rosa, colocando sobre a toalha branca as duas xícaras de café e um prato com ovos mexidos com tomate e cebola.
— Acordou bem? — perguntou Rosa, com voz ironicamente carinhosa.—Bem — disse ele, ocupado na leitura dos papéis.
— Em contrapartida, eu estou preocupada... Ai, Pablo, não sabe o susto que levei ontem! É que agora os homens não respeitam nem as mulheres casadas — disse, demonstrando
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— Está tudo indo bem — respondeu o advogado enquanto tomava um gole de café.
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A manhã havia começado com esse cintilante resplandecer dos amanheceres dos trópicos, cuja luz se assemelha a uma vela agitada pela brisa. Rosa se levantou como de costume, penteou o cabelo, pintou os lábios e foi à cozinha fazer café. Minutos depois seu marido saiu do quarto e se deteve um mo mento diante do quintal, como era seu costume, para admirar por alguns instantes a refrescante paisagem matutina do or valho sobre as plantas e os sons das aves matinais. Depois se encontrava remexendo papéis no quarto que utilizava como escritório. Parecia absorto na leitura de um documento legal quando Rosa entrou na sala de jantar com uma bandeja com o café da manhã que consistia em café, pãezinhos e ovos.
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— Ai, Pablo, agora não resta dúvida de que as pessoas da qui perderam os bons costumes...
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— Quem foi esse atrevido? — expressou irritado. — Por acaso não lhe disse que era casada?
— Onde ocorreu isso? — insistiu o marido enfurecido.
— De agora em diante terá que prestar atenção enquanto caminha pela rua, e se o encontrar me avise. Espere que eu vou acertar contas com esse descarado — ameaçou o jovem marido antes de sair para o trabalho. Dois dias depois, Rosa se queixou de novo.
— Nem me perguntou. Mas quando lhe disse que deveria respeitar as mulheres casadas, ele sorriu e continuou cami nhando. Definitivamente, as pessoas hoje em dia não têm mo ral — enfatizou Rosa enquanto, com aparente calma, tomava um gole de café com leite.
— Como? — perguntou alarmado. — O que aconteceu?
— Mas me diga, você nunca tinha visto esse rapaz antes?
— Não, jamais o vi, mas era um rapaz bem jovem... A ver dade é que levei um grande susto — expressou Rosa com ex trema preocupação.
aborrecimento, enquanto se sentava para tomar café ao lado de seu Surpreso,esposo.Pablo deixou o que estava lendo.
— Imagine só, tinha saído para comprar carne, quando um rapaz se aproximou de mim, e sem dizer nada veio e me deu um beijo — disse ela.
— Na rua principal — disse ela.
— Imagine que ontem, quando saí para comprar carne, um homem me perguntou se eu queria passar o próximo fim de semana com ele em viagem a Santa Marta.
— Já queria saber quem é! Com a quantidade de gente que está chegando todos os dias neste povoado. Parece que é um forasteiro. Mas hoje quando sair para fazer minhas coisas, se eu o vir pela rua pergunto o nome dele — disse Rosa. — Não, não, não. Hoje eu lhe acompanho para fazer as com pras para que ninguém lhe incomode. E se vir o homem me mostra para saber quem é e lhe dar uma lição. Esse descara do nem imagina o que lhe espera! — E já totalmente irritado: — Incrível. Não podem ver uma mulher bonita e sozinha pela rua que já querem faltar com o respeito e mexer com ela. A partir desse dia o advogado a acompanhou para fazer compras no mercado. Além disso, não voltou mais a sair de casa sem avisar para sua mulher onde se encontrava, caso ela precisasse de sua ajuda contra os tipos estranhos que ronda vam a Pararegião.Rosa, a mudança foi imediata. Já seu marido não teve mais tempo para se entreter pela rua. Agora vivia preocupado com sua esposa, cuidando dela, temeroso de que alguém es tivesse tentando seduzi-la, ou tentando lhe faltar ao respeito. Essa foi uma vitória da psicologia feminina sobre o que poderia resultar em fazer reclamações ao seu esposo.
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— Como? Tem que me dizer quem é esse descarado! — ex clamou furioso de raiva.
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— Mas o que está me dizendo? — perguntou alarmado o advogado.
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sua profissão de professora e se des pedindo de sua família com um adeus que não sabia que se ria por muitos anos, Rosa deixou Aracataca. Desejava sair do povoado, mas alimentava a esperança de poder regressar no o primeiro momento a professora se sentiu cativa da por essa grande urbe onde as rosas e gerânios adornavam os jardins, as pessoas falavam baixinho, não se escutavam
futuro.Desde
158 | Beatriz Parga — Meu marido não tinha mais tempo de se entreter pela rua, por estar cuidando de mim. Então, os papéis foram invertidos. Ele vivia pendente a mim, temendo que alguém se metesse comigo. Por isso digo que muitas vezes falta psicologia às mulheres. Brigar com um homem não se consegue nada — diria com orgulho anos mais tarde. A vida matrimonial parecia uma bênção dos céus, mas os presságios pairavam como uma ave agourenta sobre Aracataca. Com a falta de trabalho, as pessoas começaram a emigrar. Rosa não foi uma exceção. A saída da United Fruit Company fez com que uma grande parte da população tivesse que ir embora de Aracataca em busca de trabalho; acabou obrigando também o jovem casal a se mudar para a capital do país. “Quando uma porta se fecha, abre-se uma janela”, diz o ditado. Dessa forma o problema com a falta de trabalho em Cataca permitiu que Rosa viajasse em busca de uma nova vida e se radicasse em Bogotá, essa cidade grande no altiplano sobre a qual os norte-americanos costumavam dizer que tinha o clima parecido com a primavera nos Estados DeixandoUnidos.paratrás
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que o calcanhar de Aquiles de Pablo eram os ciúmes, motivados em grande parte pelos contos que ela havia inventa do em Aracataca. Depois de pensar uma semana, o advogado lhe disse que preferia que ela fosse trabalhar no seu escritório.
Rosa não era do tipo de recorrer a truques para conseguir o que buscava, mas essa era a maneira de cuidar de seu marido e do pão para seus filhos.
palavrões e a paisagem das montanhas azuis de Guadalupe e Monserrate dominava o panorama de um altiplano verde sal picado de fragrantes eucaliptos e verdes ciprestes. Além disso, com sua romaria de pessoas, automóveis, edifícios, ônibus e ruídos, Bogotá era uma cidade vibrante. A mudança para a capital colombiana representava a realiza ção de um sonho há muito tempo esperado. Rosa não ocultava seu entusiasmo. Podia caminhar pela rua todo o tempo que quisesse sem sentir sobre a pele os ferrões do sol e sem suar. Na realidade, o ambiente era tão distinto de Cataca, que pare cia que havia se mudado para o estrangeiro. Além disso, deu -se conta de que era frequente que as mulheres trabalhassem, algo que chamava muita a sua atenção. No entanto, ela estava segura para quem queria trabalhar. “O melhor chefe que posso ter é o meu esposo”, disse. Mas Rosa não tocou no assunto com seu marido de maneira direta.
Recorrendo de novo à sua “psicologia”, em vez de dizer a seu esposo que queria trabalhar ao seu lado, pediu que a ajudasse a buscar um emprego entre seu grupo de amigos e
advogados.Elasabia
Pablo Acuña abriu seu próprio escritório de advocacia colo cando Rosa para cuidar do escritório, que se tornou seu braço direito e uma companheira indispensável. Havia sido sempre uma mulher organizada, esperta e detalhista, qualidades que foram suas aliadas para ajudar a impulsionar a carreira do jo vem advogado. Além disso, à medida que os filhos foram che gando, a professora se propôs a dar a educação de qualidade que ela podia lhes oferecer. Nunca conheceu o cansaço quando se tratava de abrir-lhes um novo mundo com o ensino. Gostaria de ter seguido o exemplo de sua mãe, com quem aprendeu todas as matérias da escola fundamental. No entanto, aqueles eram outros tempos; Rosa se sentia satisfeita quando conseguia lhes ensinar as primeiras letras, e o método que deviam pôr em prática para chegar a ser bons estudantes. Era a mãe e a esposa perfeita. Estava decidida de que seu matrimônio durasse até a eternidade, mas o destino lhe impôs uma dura prova com a súbita morte de seu esposo como consequência de um infarto cardíaco.
Parecia que com a morte de seu marido lhe arrancaram a alma. De fato, teria dado o que fosse para tê-lo sempre ao seu lado. Em meio à dor, Rosa encontrou refúgio no trabalho.
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160 | Beatriz Parga Para Rosa, existia sempre o perigo de que a secretária ou qualquer outra mulher decidisse ficar com seu marido, um homem de boa presença, inteligente, com um título de advogado e muito decente. Estava segura de que não queria deixá-lo sozinho em um escritório para que uma mulher sem escrúpulos se deixasse levar pela tentação, e logo acabasse com sua família.
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A necessidade fez com que essa paixão que sentira em sua juventude pelo ensino entrasse de novo no corpo como uma ferramenta que a impulsionava a seguir adiante com seus sete filhos e, sem saber de onde tirar recursos, coroar seu propósito de custear a carreira de todos. Essa foi uma etapa muito difícil de sua vida, sentindo-se muitas vezes incapaz de enfrentar sozinha o desafio de susten tar sua família. Não demorou muito tempo para se dar conta de que o produto de uma Montessori que abriu em sua casa não era suficiente para cobrir os gastos familiares, assim in ventou uma forma de captar novas entradas. Nessa época não existiam fotocópias, então Rosa decidiu oferecer seus servi ços de datilógrafa para advogados que necessitavam ter seus processos judiciais impecáveis e a estudantes que esperavam apresentar suas teses de graduação. Além disso, começou a fazer costuras por encomenda, serviço que desempenhava até altas horas da noite, sacrificando inclusive seu descanso dos finais de semana. Da máquina de escrever à máquina de costura, Rosa trabalhava dia e noite para pagar as contas Não havia tempo para se sentir cansada em meio a essa responsabilidade de conseguir o dinheiro para colocar na mesa o pão familiar, além de se ocupar dos problemas e necessidades de seus sete fi lhos. As tarefas eram intermináveis: compras no mercado e roupas, pagar os serviços de água, luz e telefone no balcão do banco, vigiar os estudos e a disciplina de cada um de seus filhos, remendar a roupa, pregar botões e organizar a casa e a cozinha. Em meio a tanta necessidade, sentia que faltavam
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No entanto, à medida que seus filhos iam crescendo, come çavam a buscar seu espaço. Sempre foram dependentes dela, mas era natural que com o passar dos anos focassem mais em seus estudos e em suas novas amizades. Foi então quando Rosa teve o seu primeiro encontro com a solidão e começou a se refu giar na leitura, um passatempo que a distanciava de seus proble mas e angústias cotidianas, além de fazer com que se sentisse acompanhada.
162 | Beatriz Parga mãos e energia para completar suas múltiplas tarefas. Qualquer momento de lazer, se é que havia, era para compartilhar com seus filhos que tanto necessitavam dela.
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Foi assim no mundo dos livros que reencontrou seu aluno que, sem sequer ter se dado conta, no outono de sua vida, passou a se tornar seu grande companheiro e consolo na solidão.Deuma maneira simbólica, por meio da leitura das obras de Gabito, ela se remetia ao passado, um processo mental que desfrutava, especialmente quando se tratava de identificar os personagens dos contos e dos romances do escritor para con ciliar com aqueles que ela havia conhecido na vida real; ficou sabendo dos sonhos dos avós do escritor, o coronal Nicolás Márquez e dona Tranquilina Iguarán; recordou o dia em que dona Tranquilina contou sua preocupação com Margot, irmã do laureado romancista, e seu vício de comer terra, e até iden tificou suas próprias irmãs que pareciam ter dado um salto à imortalidade dentro da trama A revoada: o enterro do diabo.
Rosa se mantinha informada sobre os principais aconteci mentos por intermédio de suas irmãs, Altagracia e Isabel, que resistiram a sair do povoado, enraizadas em suas lembranças.
Rosa estava convencida de que sua irmã chegou a ser uma santa, porque, além de rezar, era boa e não tinha pecados em suaEnquantovida.
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“Altagracia ficou viúva e Isabel nunca se casou. Dizia que to mara essa decisão devido a uma desilusão amorosa que sofreu com um noivo de quem ela gostava muito, mas que a deixou para se casar com outra. Sinto muita compaixão pela minha irmã, que se entregou à tristeza e vivia chorando. Houve ou tros pretendentes, mas ela não amou ninguém mais. No final, nem se casou e nem teve um filho. Apenas rezava. Todos os dias ia à missa e não perdia o rosário.”
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lia, seu mundo interno foi se expandindo até se tornar uma mistura do real, que era o presente, e a magia que rodeava o povoado onde ela aprendeu a abrir as asas. Pouco a pouco a dor da morte de seu esposo ia cedendo graças a essas leituras, que começaram a encher os espaços de sua solidão, fazendo que suas dificuldades se tornassem mais suportáveis. Rosa não se deixou vencer facilmente pelos pro blemas; não apenas levou sua família adiante, como conseguiu que seus filhos obtivessem excelentes notas e se tornassem bolsistas em seus estudos, todos com uma profissão. Assim estavam as coisas em sua vida quando voltou a ver o seu querido Gabito nessa inesquecível tarde no teatro Colón.
A partir desse reencontro, Rosa começou a desfrutar com maior alegria o retorno cotidiano da leitura dessas páginas que a transportavam ao passado, a se deliciar com os triunfos de seu aluno, a se sentir mais unida espiritualmente ao escritor e a reviver a felicidade indescritível de tê-lo visto de novo.
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Até que um dia, depois de vários anos lendo e relendo seus livros, decidiu lhe escrever uma carta. Dizia que havia desfru tado muito desse reencontro que tiveram no teatro, e que gos taria de vê-lo de novo para falar das memórias que ainda con servava de Aracataca. Primeiro viu passar os dias e as semanas, e depois foi acumulando meses checando o correio com a es perança de encontrar uma carta de seu lembrado pupilo. Mas o tempo foi passando sem a sonhada resposta. Ela tinha certe za de que se sua carta tivesse chegado às mãos de seu aluno, ele teria respondido com algumas linhas. Ou talvez, começou a pensar, a carta que escreveu nunca chegou ao seu destino.
Quando chegou em casa, treinou vários traços sobre um pa pel de carta comum e, em seguida, cuidadosamente escreveu sobre o fino papel dizendo que ficaria encantada se pudes sem se reunir de novo. Contou também que havia decidido se mudar aos Estados Unidos com o propósito de realizar seu
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Havia sido extraviada no correio? Havia anotado o endereço de forma incorreta? Ou quem sabe a pessoa encarregada de ler a correspondência do escritor não havia dado importância e a jogado no lixo? Todas essas interrogações desfilavam em sua memória, até que depois de muitos meses, que jamais conseguiu calcular porque pareciam infinitos, deu-se conta de que a espera era infrutífera e decidiu lhe escrever de novo. Saiu para comprar um papel de boa qualidade, de acordo com a importância que para ela tinha o destinatário de sua mensagem. “Melhor comprar dois, caso eu cometa algum erro ou tenha a necessidade de repetir alguma palavra”, disse.
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Uma tarde, ao retornar da aula, Carola lhe entregou um en velope. Com o coração batendo forte, e quase tremendo, Rosa o abriu com muito cuidado para evitar que rasgasse. No seu interior havia uma pequena folha de papel escrita com tinta preta, em letra manuscrita, muito alinhada e organizada. Esta va endereçada “A minha querida professora” e nela o escritor a convidava para passar uns dias com ele e sua esposa Mercedes em sua casa no México, em Pedregal de San Ángel. A data es tava agendada para “setembro”, palavra que estava escrita ao estilo do castelhano antigo.
sonho de aprender inglês. Claro que lhe custou muito revelar sua idade. Iria completar setenta e dois anos. Desta vez, a resposta não demorou em chegar. O correio le vou ao seu endereço no bairro Paulo VI de Bogotá poucos dias depois de ter partido para os Estados Unidos. Rosa já estava inscrita em uma escola de inglês e hospedada no apartamento de suas amigas Carola Aycardi e sua filha Rosie, naturais de Barranquilla e residentes há muitos anos em Miami Beach.
O escritor indicava que em retorno esperava encontrar em sua caixa postal “um papelzinho seu com o número do tele fone, para lhe chamar e combinar a sua viagem ao México. Abraços, Gabriel”. Ela acariciou o envelope com data de 20 de julho de 1982. Com uma alegria indescritível, Rosa começou a sonhar com esse convite tão especial do romancista. Começou até a organizar mentalmente sua mala com os vestidos que levaria e consultou sua amiga Beatriz, uma jornalista que conhecia Gabo, se a roupa que tinha em Miami era apropriada para o México. Emocionada,
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166 | Beatriz Parga dizia que finalmente teria a oportunidade de compartilhar com seu querido aluno suas experiências e sua própria visão desse povoado diminuto e longínquo que foi tão definitivo na vida de ambos. Rosa sentiu que por fim havia chegado o momento de lhe contar sobre suas vivências. Ela as tinha tão frescas em sua memória como quando percorria as ruas de Aracataca a caminho da escola; algumas vezes sozinha e outras ao lado de seu aluno, levando-o ou retornando para sua casa. O que ia passando por essa cabecinha para chegar um dia e transformar a vida cotidiana de um povoado em uma grande epopeia? E quem melhor para lhe refrescar as imagens que ele viu com olhos de menino e ela conheceu em três etapas, como criança, adolescente e mulher? Havia tantas coisas que queria contar ao laureado escritor... Mas agora que recebera o tão desejado convite não podia fazer as malas e sair para o México no primeiro avião. Antes teria que esperar que as aulas nas quais havia se inscrito em Miami terminassem.“Primeirotenho que aprender inglês. Desde que vivia em Aracataca sonhava entender o que os americanos falavam. Além disso, se não o faço, o que o Gabito vai pensar?”, pergun tou-se, confusa, lutando internamente com o desejo de deixar tudo e sair correndo para se reunir com seu aluno. Então, um dia, no ponto de ônibus que a levava à escola, viu em uma caixa de venda de jornais o rosto do seu aluno na manchete do “jornal. Pro Castro novelista wins Nobel” (Romancista pró-Castro ganha o Nobel), dizia a manchete em inglês, que por um
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lado a enchia de orgulho pelo prêmio e, por outro, de in dignação pela forma depreciativa como estava escrito. Era na época em que a palavra “colombian” (colombiano), em inglês, estava sempre relacionada nas páginas dos jornais ao escânda lo de notícias sobre o narcotráfico. Mas em um acontecimen to tão importante como um prêmio Nobel, o país de origem do escritor não aparecia indicado na primeira página do jornal The Miami Herald. Simplesmente destacava que um roman cista pró-Castro havia ganhado o prêmio Nobel, sem sequer indicar a Colômbia como sua nacionalidade. Rosa ficou indig nada, como muitos de seus compatriotas. “Todos os meus triunfos são seus”, seu aluno lhe havia dito. Assim se sentia Rosa. E da mesma forma, gostava de estar a par de qualquer notícia favorável ou adversa. No fi nal das contas, tinham vivido em comum um tempo único na vida de ambos, além desse povoado longínquo e repleto de boas lembranças, algo que estava acima de tudo, apesar das diferenças políticas. Seu aluno, um prêmio Nobel! Parecia uma colegial que se prepara para uma grande festa e ela sabia que esse momento era histórico. Não havia na terra uma professora mais orgu lhosa. De Miami, a notícia se espalhou pelas manchetes dos jornais do mundo todo, que eram vendidos em um mercado local, e pelos recortes de jornais que seus companheiros de aula de inglês a levavam carinhosamente. Como em um sonho, lia as crônicas da imprensa colombiana sobre a forma como a Academia Sueca escolhia os ganhadores, e depois seguiria cada movimento de seu aluno em Estocolmo. Ficou sabendo
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168 | Beatriz Parga que o escritor havia chegado ao aeroporto vestido com um liquiliqui (traje típico) branco e segurando uma flor amarela na mão e conservava como uma grande relíquia um anúncio de página inteira que a imprensa colombiana publicou todo colorido, com o rosto de seu aluno exibindo um sorriso caribenho, seu abundante cabelo e uma camisa vermelha. Sobre sua ca beça esvoaçavam borboletas formando uma coroa de louros. “Esta noite, a partir das oito, Inravisión e RTI transmitirão para todo o país a entrega do prêmio Nobel de literatura de 1982 ao colombiano Gabriel García Márquez”, dizia a manchete do anúncio publicitário que terminava convidando os telespecta dores a acompanhar “o momento mais importante da história cultural colombiana”.
F3f 169 XIV O prêmio Nobel No dia 10 de dezembro de 1982, a Colômbia vivia uma grande festa. O país inteiro celebrava. Um de seus filhos colocava um belo sorriso no rosto de sua gente com o maior prêmio jamais alcançado em toda a sua história: o prêmio Nobel de literatura. Devido às diferenças de fuso horário, várias horas antes, às quatro da tarde e sob um céu acinzentado, as portas do luxuoso Palácio dos Concertos de Estocolmo foram abertas para dar início à pomposa cerimônia presidida pelo rei Carlos Gustavo XVI para a entrega do reconhecimento mais prestigiado do planeta ao escritor colombiano e outros seis ganha dores em outras áreas do conhecimento. O fundador desses prêmios, o cientista Alfred Nobel, inventor da dinamite, deixou ao morrer um capital milionário que destinou quase em sua totalidade a esses recompensados com a esperança de esti mular a humanidade a trabalhar pelos mais elevados desígnios do saber e do bem-estar de todo mundo. Desde 1900, cientis tas, economistas, políticos, filantropos e literatos competem por essa honrosa distinção, a mais importante do mundo. Por
170 | Beatriz Parga disposição do rei, o único prêmio que não é entregue em Estocolmo é o da Paz, concedido conjuntamente entre Suécia e Noruega, e conferido no mesmo dia em Oslo. Nesse ano os ganhadores haviam sido os ativistas antinucleares Alva Myrdal, da Suécia, e o diplomata Alfonso García Robles, do México, que receberam a recompensa das mãos do rei Olavo da Noruega em uma imponente cerimônia.
Gabito se sentou em um lado do salão, formando com os ganhadores de outras disciplinas do saber um semicírculo diante do monarca e na presença de um auditório de 1750 pessoas, entre membros da família real, diplomatas e des tacadas figuras mundiais que haviam chegado ao rigoroso protocolo black tie para os homens e vestido longo para as damas –, todos os convidados vestidos de preto com exceção do Nobel colombiano. Minutos depois, o auditório, prove niente de toda a parte do mundo, ficaria de pé para escutar os acordes da Filarmônica de Estocolmo interpretan do o hino nacional sueco abrindo a cerimônia. Em seguida, um membro da academia sueca começou a ler os motivos que os levaram a escolher o ganhador de cada prê mio, que consistia em uma medalha de ouro, um diploma de reconhecimento e uma autorização para retirar no dia seguin te o montante do prêmio, que naquela época era de 1.150.000 coroas. Gabriel García Márquez foi o último a receber o prê mio, de pé sobre um círculo no qual se destacava a letra N, de cor amarelo dourado.
Nesse momento Rosa se deu conta do quanto significava na vida de seu aluno, que com uma solenidade incomum para o
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seu temperamento caribenho, aproximava-se do pódio com o pergaminho com o seu nome e uma pequena caixa forrada em veludo mostarda na qual se destacava a medalha de ouro com a imagem de Alfred Nobel. “Dedico este prêmio à minha primeira professora do colé gio Montessori de Aracataca, que aos cinco anos me ensinou a amar a literatura”, haviam sido as palavras emocionadas do escritor minutos antes, diante da imprensa. Palavras que ecoaram treze mil quilômetros de distância e que Rosa Fer gusson escutaria com seus olhos banhados em lágrimas. Era como se uma daquelas chuvas torrenciais de Aracata ca caísse como uma enxurrada sobre suas bochechas. Alheia à gritaria que se aglomerava em torno de um clube noturno de Miami, onde acompanhava a cerimônia com a devoção de um milagre, ela não desgrudava os olhos da tela da televisão. Depois de um recesso de quarenta e cinco minutos, a im ponente cerimônia foi transferida ao majestoso edifício da Prefeitura, em um evento que seguia um protocolo rigoroso acompanhado por oitocentas e cinquenta pessoas. O suntuo so banquete é uma tradição gastronômica que começou com uns aperitivos, com todos os convidados sentados. O cardápio incluía filé de rena marinada com molho Dijon. E como sobre mesa, o refinado Parfait Glace Nobel, que consiste de sorvete com cobertura e umas frutas pequenas, que foi entregue pe los garçons muito cerimoniosamente depois que apagaram as luzes por uns instantes e um rufar de tambores anunciava a entrada de cento e cinquenta garçons uniformizados seguran do as bandejas fulgurantes com as chamas do flambê, em um
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“Rosa, Rosa”, sentiu que diziam suas companheiras em fes tejo quando se viu a imagem de Gabito recebendo o prêmio e
Enquanto em Estocolmo era uma grande noite solene de celebração, na Colômbia o relógio apenas marcava dez da ma nhã, e nesse momento o país latino celebrava o extraordinário acontecimento. Nessa noite os noticiários do continente des tacaram a notícia da premiação que na Colômbia foi transmiti da em sua totalidade e sem comerciais. Em Miami, esse grande momento foi anunciado com o pra to principal da noite em um centro noturno colombiano, onde foi instalada uma enorme tela de projeção. Rosa se juntou a algumas amigas da classe de inglês que esperavam as imagens entre ritmos tropicais e vallenatos colombianos. Logo, o salão ficou em silêncio e a tela foi ligada para dar início à entrega do Nobel, precedida pelos acordes clássicos da Orquestra Filar mônica da Suécia. Rosa não perdeu um detalhe; podia-se dizer que era tanta a sua felicidade que até seus olhos refletiam luz.
espetáculo digno de conto de fadas. Uma noite que o escritor não imaginava nem em sonhos e que compartilhou com sua aliada em tempos difíceis, sua esposa Mercedes Barcha, e seus filhos Rodrigo e Gonzalo. Ao terminar a sobremesa, e seguindo a tradição, era a vez do prêmio Nobel de literatura falar. O autor colombiano pro nunciou em espanhol um memorável discurso que depois se ria impresso em todos os jornais do mundo.
“Prêmio Nobel de literatura: Gabriel García Márquez”, anunciou uma voz.
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Rosa ficou sem palavras. As lágrimas rolavam pelas suas bochechas. Era muita emoção para uma noite.
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Minutos depois se deu conta de que esse grande momento que havia presenciado significava também o fim do reencontro que haviam preparado. — Agora vai ser muito mais difícil vê-lo — disse muito séria, pensando no convite que o escritor havia feito. — Gabito vai estar muito ocupado viajando pelo mundo.
as palavras que minutos antes havia pronunciado na coletiva de imprensa prévia ao grande momento. “Dedico este prêmio à minha primeira professora, que me ensinou a escrever e a amar a literatura.”
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Primeiro era o menino apaixonado por sua professora. Ao passar dos anos, os papéis se inverteram, e era a pro fessora que ficava com as bochechas coradas quando pensava em seu aluno. Ver uma notícia de Gabito na imprensa iluminava o seu dia; ele era o seu grande orgulho. Mas a pro fessora sabia que a fama traz junto a perda da privacidade, que ela valorizava como um grande tesouro. Poder passear, ir às compras, entrar em um ônibus ou ir jantar em um restaurante sem que haja o assédio das pessoas, são privilégios reserva dos unicamente àqueles que não saborearam o mel da fama. E ela estava decidida a desfrutar dessa privacidade que, por contraste, seu aluno havia perdido, mesmo antes de ganhar o prêmio Nobel de literatura. Essa Aracataca distante na memória que o escritor mostrou ao mundo como Macondo, no que dali para frente se chama ria “realismo mágico”, era sua também. Mas isso não era algo que revelava aos quatro ventos; mas se tratava de um tesou ro muito valioso, que ela guardava em seu coração com essa impossível
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XV Um amor
Conhecedora de todos os livros de seu aluno, que leu em várias oportunidades, era sua admiradora incondicional. Quando alguém lhe perguntava qual dos seus livros era o favorito, sua resposta era sempre: “Todos”. Mas no seu círculo mais íntimo daqueles que a rodeavam, não restava dúvida de que Cem anos de solidão foi o que mais desfrutou, e possivelmente o que mais vezes releu. Sobre seus sentimentos, o importante era que Gabo havia sido feliz com Mercedes, e ela com seu esposo Pablo Acuña, que além de ter sido sua melhor amiga, foi sua companheira, sua mão direita, e até sua conselheira legal em muitas ocasiões.
Com ele teve sete filhos: Rocío, Feliz, Maritza, Pablo, Alida, Claudia Marcela e Edith, todos com diploma universitário, com exceção de uma filha com limitações físicas. Seguia o ano de 1982; até esse momento, Rosa sentia que havia alcançado tudo em sua vida. Conseguira sair de Araca taca, residia em um bom bairro de Bogotá, uma cidade onde se consegue vencer, especialmente se vem do interior, é como triunfar em Nova Iorque. Seus pais lhe haviam dito que ao se casar com um profissional havia garantido o seu futuro e de seus filhos. A morte de seu esposo mudou tudo.
176 | Beatriz Parga discrição que marcaria sua vida e suas extraordinárias realizações ao longo de sua vida, como estudante, mãe e professora. Com frequência Rosa se sentava para ler alguma obra de Gabo, rindo muito. Parecia envolvida por uma luz mágica que a fazia regressar a essa juventude distante que encontrava re criada nas páginas de um livro.
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Ao ficar viúva, a professora sentiu uma dor tão grande que pensou que o mundo ia acabar. Além disso, ficou sozinha e com sete filhos! Teve que juntar todas as forças para trabalhar muito duro. Largava da máquina de costura e pegava na de escrever. Graças a esse esforço todos seus filhos conseguiram uma profissão. No entanto, o dia da morte de seu esposo não foi o dia mais doloroso de sua vida. Sua maior tristeza ocorreu quando sua filha Rocío, que era médica, morreu de leucemia aos trinta e seis anos deixando duas filhas pequenas. Uma de suas filhas tinha síndrome de Down e requeria atenção especial. Parecia uma missão impossível seguir adian te com seus filhos, mas o esforço de Rosa surtiu em recom pensa. Seis de seus sete filhos estudaram uma profissão e ela se orgulhava de ter na família dois advogados e dois médicos. Quando lhe perguntavam por que preferia ser chamada de Rosa Fergusson e não Rosa Fergusson de Acuña, como a maioria das mulheres casadas de sua geração, ela tinha uma resposta de acordo com suas ideias progressistas: “Porque sou e sempre fui Rosa Fergusson. Este é o meu nome desde que nasci. Nenhum ser humano deve pertencer a ninguém, porque isso vai contra a liberdade da pessoa, contra o indivíduo. Uma mulher ou um homem nasce com um nome e em uma família e, ao se casar, tudo isso que tinha atrás não de saparece para mudar o seu sobrenome por outro. Os homens, por exemplo, não o fazem. Além disso, ao ser ‘de’ e, se pensa como eu, quando perdi meu esposo, isso significaria que ao perder o seu parceiro já não pertence a ninguém”, dizia.
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178 | Beatriz Parga Rosa havia esquecido da grande fascinação que exercia em seu aluno apesar de em uma ocasião dona Tranquilina ter co mentado que Gabito lhe havia dito que quando se aproxima va de sua professora, sentia desejos de beijá-la. Mas um dia a revelação surgiu de forma surpreendente quando seu genro Eduardo Castro leu umas linhas de O cheiro da goiaba, o livro de conversas de García Márquez com o escritor Plinio Apu leyoLogoMendoza.noinício, suspendendo a leitura, lhe disse: — Rosa, veja este livro sobre Gabo e o que diz de você. Em seguida, seu genro continuou lendo em voz alta o que o escritor havia expressado sobre sua professora.
Quem me ensinou a ler era uma professora muito bela, muito graciosa, muito inteligente, que me convenceu do prazer de ir à escola somente para vê-la. E mais adiante, quando Plinio Apuleyo Mendoza perguntou a Gabo sobre a primeira vez que se sentiu perplexo por uma mulher, a resposta foi imediata: — A primeira que me fascinou, como já lhe disse, foi a pro fessora que me ensinou a escrever aos cinco anos. Ao ler essa ingênua declaração de amor, a professora ficou envergonhada, como se o próprio autor estivesse ao seu lado. Emocionada, somente disse: — Ai, isso é muito, é muito, Gabito.
XVI
Menos ainda se levando em conta que o ambiente estaria
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Um ano depois de sua viagem para estudar inglês em Miami, Rosa havia retornado a Bogotá. No entanto, não havia perdido a esperança de se reunir de novo com seu aluno e se propôs a surpreendê-lo durante o Festival de la Leyenda Vallenata, em Valledupar, em meio a um ambiente alegremente tropical entre canções e histórias transformadas em lendas, noites de inspira ção, aguardente e rum sob a luz das estrelas e o clamor popular no que é por muitos considerada a melhor festa do mundo. Rosa estava decidida a não deixar passar a oportunidade.
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Entre música de acordeões e vallenatos o reencontro se realizaria. Havia se passado dezesseis anos desde a últi ma vez em que se viram no teatro Colón, e quase vinte e cinco daquela ocasião em que foi cumprimentar Gabito na redação do El Espectador por poucos minutos, que pareceram segundos. Mas como diz o refrão, “à terceira, é de vez”.
Reencontro na “Terra Esquecimento”do
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impregnado dessa música de acordeões e gaitas que tanto desfrutava na sua juventude distante no passado de carnavais e festas de padroeiros. A viagem havia sido longa e difícil pela estrada desigual e poeirenta que ela aguentou com a estoica decisão de chegar até onde se encontrava seu ex-aluno. Nesse momento se sen tia dona do grande segredo que somente se atreveu a revelar uma vez em sua vida e que havia prometido manter escondido a sete chaves. Não gostava de segredos, mas nesse caso pare cia que o silêncio era justificável. Além disso, dizer não faria di ferença, já que havia proposto que ninguém, nem sequer Gabito, ficasse sabendo de seus sentimentos. Por outro lado, já havia sido muito direta ao expressar seu interesse em que o escritor a ajudasse a disseminar a importância do método Montessori. Com esse propósito, Luisa, a mãe de Gabo, decidiu ajudá -la convidando-a a Cartagena, onde o escritor estaria de pas sagem. No entanto, ao chegar à Cartagena, conhecida como Cidade Heroica, Rosa constatou que seu aluno havia saído de viagem no dia anterior. — Vamos, não fique desanimada. Gabo veio do México para assistir o Festival de la Leyenda Vallenata de Valledupar. Anime-se, Gabo me disse que quer muito conversar contigo para uns detalhes sobre sua biografia — disse Luisa a Rosa, que já contava com setenta e cinco anos, mas com energia de sobra para a longa viagem até a cidade colombiana: trezentos e ses senta e cinco quilômetros em quase sete horas de viagem, em algumas partes por estradas de terra.
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Não havia espadas nesse duelo entre os guerreiros do ritmo, que se celebrava sobre o cenário, em homenagem a Francisco Moscote, um personagem lendário que foi o mensageiro e pre cursor do ritmo. Durante anos tão longos como séculos percor reu sobre um burro a rota dos povoados da costa levando men sagens, encomendas e seu acordeão, que era seu companheiro fiel e indispensável para transformar as notícias cotidianas em uma grandiosa epopeia musical. O sol era intenso em seu cami nho, e o trajeto difícil até cada povoado, onde o recebiam como um profeta que ao invés de prever calamidades cantava, acom panhado de seu acordeão, as últimas notícias enquanto envol via todos com a magia de sua retórica e sua música. Até que um dia se encontrou com o diabo, que o desafiou a um duelo. O artista ficou com medo; tratava-se de uma luta desigual, mas se armou de coragem e aceitou a difícil peleja. Enfrentando-se musicalmente, um cantava e outro respondia, e a batalha entre o mensageiro cantor e o temido desafiante dos infernos parecia cada vez mais difícil de ganhar, ainda mais levando-se em conta que o proibiu de usar nomes de santos que tanto abundavam em suas coloridas lendas.
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Enquanto viajava ao destino que havia sido proposto para o reencontro com o Nobel, a professora sentia que parecia es tar sonhando. Reunir-se com seu aluno em meio a tanta folia e alegria! Sem dúvida uma grande celebração em que a música se apoderava de Valledupar enquanto lendas de amores e sofri mentos se enfrentavam em um duelo musical diante de um júri, que nesse ano era presidido pelo escritor, o rei do gênero musi cal, Rafael Escalona e o ex-presidente Alfonso López Michelsen.
182 | Beatriz Parga Não sobravam mais recursos ao eficiente menestrel, quando ocorreu a Francisco Moscote cantar recitando o credo de trás para frente. Ao escutá-lo, o diabo soltou um estridente uivo de derrota e, com o rabo entre as pernas, saiu em disparada. Como evidência de sua envergonhada derrota diante de um simples mortal, sobrou apenas para a lenda uma palmeira chamuscada debaixo do local onde Francisco Moscote o venceu. Desde então, em memória ao mítico personagem, os veteranos do ritmo e os novos artistas do estilo vallenato competem todo ano, acompanhados de seus acordeões; uma luta inflamada pelo entusiasmo do público e marcada pelos aromas etílicos de uísque, aguardente e rum branco em meio a uma multidão feliz que canta e bebe, bebe e canta, até que a música deixa de soar ou a bebida os coloca para dormir. No final da jornada, sobre o palco que rende homenagem a Francisco, “O Cara”, o ganhador ostenta o título de “Rei do Vallenato” por umAano.ocasião para se reencontrar com seu aluno não podia ser mais apropriada. Emocionada, dizia a si mesma que por fim iria poder felicitá-lo pessoalmente e talvez lhe mostrar uma bela página que conservava com o texto de seu discurso do El Heraldo de Barranquilla, jornal que havia comprado durante sua estadia em Miami. A poucas horas de chegar a Valledupar, ficou sabendo que Gabo estaria em uma festa na casa de Consuelo Araujo No guera, uma das principais organizadoras do festival. Rosa havia chegado muito cedo à reunião e não se surpreendeu ao vê-lo entrar no salão em meio a uma revoada de pessoas. Era difícil
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Havia sonhado com esse reencontro com seu aluno, mas o seu desejo era de ter uma longa conversa com ele. Feliz por tê-lo visto, mas um pouco desiludida por não ter podido com partilhar mais tempo com seu aluno, pensava que o veria mais. Mas no último dia do festival, saía do banho quando sentiu que um carro preto parou diante da porta da casa onde estava hospedada. Escutou um homem descendo do carro e pergun tando por ela.
Felicíssima, arrumou-se em poucos segundos e entrou no automóvel que algumas quadras mais adiante parou na frente da casa onde estava hospedado o escritor. Havia passado de zesseis anos desde que se viram no Colón, e depois de esperar uma resposta das cartas que possivelmente jamais chegaram às mãos dele, finalmente ocorria o reencontro com o laureado autor e esse passado ligado com fios invisíveis.
Rosa reclamou em seu ouvido, e o escritor lhe disse que ainda há pouco a procurava. Mas um minuto mais tarde um bando de admiradores o arrancou de seu lado.
Aproximando-se da porta, Rosa se identificou: — Eu sou a pessoa que está procurando.
A professora
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se aproximar do escritor, mas como uma menina travessa, fi cou de pé, esforçando-se para surpreendê-lo por trás. Tapando-o os olhos com suas mãos, lhe disse: — Adivinha quem é... — Minha professora, Rosa Helena Fergusson — respondeu o escritor, se levantando da cadeira e lhe dando um abraço.
O motorista a olhou com ironia e, com um sorriso, lhe disse: — Entre neste carro que Gabo mandou lhe sequestrar.
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Além disso, Rosa queria dizer a seu aluno que o momento em que lhe dedicou o Nobel, sentiu que estava vivendo o mo mento mais importante da sua vida.
O
Seu segredo havia ficado na Miami das praias brancas, palmeiras, restaurantes cubanos com seus feijões pre tos, arroz branco, plátanos e carne frita. Esse paraíso de um mar azulíssimo e uma mistura de raças e culturas, onde no verão faz tanto calor como em Aracataca, mas o ar-condi cionado dos negócios e escritórios é habitualmente tão mal calibrado, que as pessoas praticamente se congelam de frio e têm que colocar casaco para trabalhar, comer ou estudar. Sem dúvida, um costume que Rosa nunca entenderia.
— Então, se ficar sabendo de algum norte-americano da minha idade que queira se casar, poderia me apresentar? Há grande segredo
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— Não. No espírito é mais jovem que muita gente que co nheço incluindo eu mesma — respondeu.
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De conversa fácil, educada e alegre, Rosa não tinha difi culdade em fazer novas amizades. Foi assim que conheceu a correspondente do jornal El Tiempo, em Miami, uma jornalista que chegou a sua vida por sugestão de Gabo.
A jornalista parou um instante para avaliar sua entrevista da. Olhou em seus olhos e então não restou dúvida.
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muitos anos que estou viúva, criei todos os meus filhos e em bora minhas filhas ainda dependam de mim, sinto muita falta de um companheiro — disse, demonstrando que na sua idade ainda se pode sonhar com o amor.
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—candidato.Ohomem
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Mas os poucos homens norte-americanos que conhecia eram jovens colegas de aula na Universidade Internacional da Flóri da, e certamente não iam querer sair com uma mulher idosa.
Por outro lado, na comunidade de cubanos exilados, contava com a amizade de vários homens mais velhos e solteiros. Se gura de que havia feito uma boa escolha, falou das vantagens do que eu quero lhe apresentar não é norte-ame ricano porque me parece que não lhe entenderia ao conver sar com você. Quero que conheça um cubano muito inteligen te, intelectual e, além disso, bilíngue. Com ele poderá falar em
Vale ressaltar que nessa época Rosa garantia que ainda con tava com sessenta. Não podia ser de outra maneira para uma mulher sem idade, sem temor aos obstáculos, nem soltar as asas e viajar para outras terras com o propósito de aprender um novo idioma ou encontrar um amor. Uma semana mais tarde a jornalista a telefonou: — Rosa, acho que lhe encontrei um companheiro — dis se-lhe.Avoz do outro lado da linha não pôde dissimular seu entu siasmo:—Vai me apresentar um homem americano? — perguntou emocionada.Arealidade
é que a jornalista fez o que fez para agradá-la.
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Além disso, Rosa era muito pró-americana, disposta a fincar raízes nos Estados Unidos e inimiga do comunismo. Sem dú vida, considerando a idade que ambos tinham e sua afinidade em tantas coisas, parecia que cada um encontraria no outro o complemento perfeito.
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espanhol. Se não gostar, pode se tornar um bom amigo e ao mesmo tempo seu professor de inglês. Não restava dúvida de que era o candidato perfeito. Trata va-se do escritor que dias antes havia expressado à jornalista seu interesse para que lhe apresentasse uma amiga. Ela achou que a professora e o escritor poderiam formar um belo casal: ambos eram bons conversadores, tinham um trato amável, um grande senso de humor e se identificavam em seus pon tos de vista sobre política, algo que era muito importante para o candidato, um lutador das ideias do exílio em Miami.
O encontro foi marcado para uma sexta-feira à tarde e a jornalista ficou de buscá-la na portaria do edifício, onde estava hospedada, para levá-la de carro. Rosa estava radiante; usava um bom perfume, tinha as unhas recém-pintadas e um vestido elegante e discreto de seda azul-escuro com pequenos desenhos coloridos.
O encontro seria no La Tranquera, um centro noturno co lombiano que esteve na moda na década dos anos 1980, loca lizado nas proximidades da Pequena Havana. Era o local perfei to dos músicos colombianos que tocavam rumba.
Quando a professora chegou, o seu pretendente já estava esperando na porta, o que já contava um ponto ao seu favor.
— Beatriz, sua amiga é encantadora, mas por favor não me apresente mulheres velhas. Quando lhe disse que queria conhecer uma amiga sua, me referia a alguém da sua idade — disse sem se dar conta do abismo geracional .
Assim, o romance da professora estava morto e, o que po deria ter sido uma linda união de companheiros no outono da vida, não zarpou do porto das ilusões.
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— Possivelmente não lhe pediu porque sabe que eu o te nho. Espere e verá que vai ligar para me pedir seu telefone — respondeu sua amiga. Na manhã seguinte do memorável encontro, a jornalista re cebeu uma ligação de Mario.
Tinham reservada uma mesinha distante, para evitar a agita ção dos alto-falantes com a música a todo volume. Tudo parecia correr bem. O escritor cubano e a professo ra conversaram com entusiasmo até a meia-noite; falaram de Cuba e Aracataca, do céu azulíssimo de seus respectivos luga res, confessaram que em nenhuma parte tinham visto uma cor igual; das lembranças de Gabito, dos melhores remédios para o catarro e a necessidade de se manterem ativos como antídoto contra a Depoisvelhice.deumas
duas taças de vinho e uma porção de car nes dentro de um ambiente muito alegre, parecia que dava para ouvir os sinos de casamento desse casal outonal. No en tanto, quando já estava em torno da meia-noite, Rosa disse que parecia estranho que seu suposto pretendente não havia pedido seu número de telefone.
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— Ai, minha filha, não diga algo assim. Não vê que, embora eu seja viúva, ele está muito feliz casado com Mercedes? Além disso, isso nunca aconteceria. No início, eu era uma mulher e naquela época nunca pensei em Gabito senão como sua pro fessora; era meu aluno querido, apenas um menino cheio de fantasias. Depois eu me casei, e ele também montou seu lar.
— Por que diz isso? — perguntou a jornalista.
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Rosa nunca ficou sabendo do ocorrido. Quando perguntou por que seu suposto pretendente havia desaparecido, a res posta foi que havia saído de viagem à Costa Rica, e demoraria seis meses para voltar. Assim são as ironias de vida. Uma mu lher tão bela e cheia de qualidades não era uma parceira ideal para um homem que rondava os oitenta anos, e que havia en contrado na professora a companheira perfeita.
— Os homens perdoam tudo em uma mulher, menos o pas sar dos anos — disse com certa tristeza.
Rosa parecia ter acreditado na história da viagem do supos to pretendente à Costa Rica. Mas um domingo, no restaurante Versailles da Pequena Havana, depois de pedir arroz com fran go, refletiu em voz alta:
Então, olhando-a firmemente nos olhos, a jornalista se atre veu a fazer uma pergunta que remoía sua mente há vários dias.
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— Porque é uma realidade da vida — respondeu.
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— Conta-me algo, Rosa. Gabo disse que quando menino era apaixonado por você... Mas para mim acho que o papel se inverteu. Seja franca comigo. Por acaso agora é você que está apaixonada por ele?
— É uma bandida... Você se dá conta disso tudo — disse sorridente.Depoisficou
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pensativa. E continuou finalmente revelando o seu segredo, esse que desde muitos anos tratava de ocultar, mas que lhe dava sentido ao seu passado e enchia de ilusão o outono de sua vida.
— Se o que sinto hoje por Gabito é amor? É verdade, tem um pouco disso... Afinal descobri. Mas as coisas são assim. Es tava marcado no destino que nossas vidas nunca coincidissem. De todas as maneiras, eu me sinto agradecida. Prefiro viver nas suas lembranças com o frescor da juventude, como sua professora.
Ambos fomos felizes... Digamos que eu fui um sonho impossível, e ele também o meu.
Quatro semanas antes de sair a notícia do prêmio No bel para García Márquez e alheia ao grande aconteci mento que estava em gestação, liguei para o famoso escritor. Na sua casa do México, respondeu uma empregada. Ao fundo, dava para ouvir a voz de sua esposa, dona Mercedes Barcha, falando com alguém sobre umas cortinas para as jane las. Minutos depois o escritor atendeu ao telefone. Nós havíamos nos conhecido em 1978 em Havana, quan do viajei à ilha com o propósito de conseguir uma entrevista com Huber Matos, ex-comandante da revolução, que estava há mais de vinte anos encarcerado como prisioneiro político. Na época, Cuba estava celebrando o Festival da Juventude e dos Estudantes, e no marco da reunião hemisférica em que participaram algumas figuras controversas, incluindo o coro nel líbio Omar Kadafi, pensei que talvez pudesse entrevistar o famoso dissidente cubano ou pelo menos descobrir se estava vivo. Finalmente conseguiria entrevistar Matos uns dois anos mais tarde, em Miami.
Como nasceu este livro
Epílogo
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sabe — afirmou o guia. — Por que quer saber?—Porque
— Aqui ninguém pode saber por que temos inimigos da re volução a cento e quarenta e cinco quilômetros de distância — respondeu o guia.
192 | Beatriz Parga Lembro-me da reação do guia e de outras pessoas do comitê de recepção quando pouco depois de chegar a Havana, enquanto nos iam mostrando os principais edifícios, perguntei no —ônibus:Onde mora Fidel Castro?
— Então, se eu fosse uma mulher cubana e quisesse dizer para quem manda lá em cima que eu tenho um problema, com quem poderei reclamar se nem sei onde mora o governante do meu país? — insisti. Ele me explicou que para isso tinham os encarregados das distintas organizações do governo. Eu continuei nessa noite minha busca pelas ruas de Havana, conseguindo apenas que dois funcionários misteriosos começassem a me seguir junto com uma jovem de Cali que havia se oferecido para me acom panhar nas minhas pesquisas. Ficamos incomodadas ao ver esse
se vou ao Panamá, sei onde mora Torrijos; se vou à Venezuela, sei onde mora Carlos Andrés Pérez e se estou na Colômbia sei também onde mora o nosso presidente — insisti com a ingenuidade e ousadia dos meus vinte e poucos anos.
Como resposta recebi um silêncio absoluto. Insisti de novo e o guia parecia não escutar a pergunta. Até que final mente, diante da minha persistência e dos outros passagei ros,—respondeu:Issoninguém
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carro preto com vidros escuros atrás de nós por vários quartei rões. Finalmente, perguntamos a eles por que nos seguiam. Acabaram nos convidando para beber algo em um local que servia como bar, em um sótão de Havana. Não preciso dizer que estávamos temerosas em aceitar a bebida dos estranhos até que depois de dez quadras tentando se esquivar não nos res tou dúvida de que a minha curiosidade havia me motivado a dar continuação. Finalmente, acabamos aceitando o convite e decidimos tomar suco de goiaba enquanto tratavam de averiguar o motivo das minhas perguntas. Decepcionados por não termos aceitado o convite para beber e se dando conta de que eu não representava nenhum perigo, nos despedimos diante do hotel. Eles nos aconselharam que não continuássemos per guntando onde ficava a residência do comandante e que não pedisse Coca-Cola nos hotéis porque, definitivamente, não a encontraria.Nodiaseguinte, depois de ir escutar um discurso de Fidel Castro na Praça da Revolução, dois jovens me confirmaram que Matos ainda estava vivo. Continuei meu percurso por Havana com um grupo de estudantes e jornalistas venezuelanos, e a garota de Cali, que era minha companheira de quarto. No tra jeto, decidimos fazer uma parada em La Bodeguita del Medio, um famoso restaurante e bar cubano que em outra época teve Ernest Hemingway entre seus clientes. Um empregado estava me preparando um mojito quando logo escutei alguém me chamando na parte detrás do restau rante. Era Antonio, um rapaz venezuelano de origem italiana
— Foi sim. De fato, é a única entrevista que deu antes de tomar posse como presidente — disse com orgulho, já que passando por cima de muitos veteranos com mais capacidade, havia consegui do a estreia jornalística.
Não acreditei no Antonio e continuei esperando o meu mojito.—Gabo disse que se não vem aqui, ele vai ter que ir aí — continuou dizendo Antonio. Ao me aproximar descobri que se tratava nada mais e nada menos de Gabriel García Márquez, que já naquela época era o escritor mais importante da Colômbia.
194 | Beatriz Parga que estava com um grupo e ao ver que eu não me mexia do balcão, insistiu: — Veja quem está aqui. E disse que quer falar com você — gritou. — Olhe, é o Gabriel García Márquez, e disse para vir aqui — insistiu várias vezes.
— O que ele lhe disse na entrevista? — perguntou o es critor, dando a me entender que em Cuba não havia acesso à imprensa colombiana.
— Bem, tudo o que ele me disse saiu publicado hoje no El Tiem po — respondi, sem ter sabido ainda que na Colômbia o arti go havia causado uma revolta quando um editor o intitulou: “Governarei sem mulheres”, uma frase que havia sido tirada da entrevista. A manchete na primeira página do jornal des pertou protestos por parte de grupos feministas que, durante o governo anterior, do presidente Alfonso López Michelsen,
— Me contaram que entrevistou Turbay Ayala — comentou Gabo como forma de cumprimento.
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haviam vivido sua época de ouro porque o mandatário tinha dado às mulheres cargos tão importantes como Ministério do Trabalho e várias agências governamentais.
— Estou no aeroporto de viagem ao Brasil. Se quiser, pode vir e lhe falo da minha demanda a uma companhia brasileira
— Trato feito — disse-lhe enquanto ele se dirigia à porta acompanhado por seu grupo de amigos. Enquanto o automóvel que os transportava se perdia na noi te, o jovem venezuelano que com alguns de seus colegas de viagem havia escutado a conversa, soltou uma certeira obser vação: — É a única jornalista que se encontra com García Márquez e, ao invés de entrevistá-lo, se deixa ser entrevistada por ele — disse-me soltando uma gargalhada. Dois meses depois, estava na redação do jornal em Bogotá quando recebi uma ligação. Era García Márquez.
Tudo que ia narrando sobre o que Turbay Ayala havia dito, o escritor, que nessa época morava no México, escutava aten tamente, e me fazia perguntas. Mas cerca de meia hora mais tarde o grupo de pessoas que o acompanhava, e que estava em outra mesa, começou a sair.
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Então lhe pedi que me ajudasse no meu propósito de en trevistar Huber Matos, se é que ainda estava vivo em uma pri são—cubana.Claroque está vivo — ele me disse. — Mas ajudo a vê-lo se conseguir que o governo permita que uns jornalistas norte-ameri canos entrevistem os presos políticos nas prisões da Colômbia.
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Meses depois, apresentei o artigo sobre Cuba a um con curso da Inter American Press Association junto com uma crô nica sobre uns pijamas para crianças elaborados a partir de um tipo de fibra que repelia o fogo, mas, ao se descobrir que produziam mutações nas células e possivelmente câncer, foi retirado do mercado nos Estados Unidos. Seu fabricante os guardou em grandes caixas, mas uns meses depois estavam sendo vendidos na América Latina. “O que é nocivo para as crianças dos Estados Unidos, é também nocivo para as crian ças do mundo”, refletia em minha crônica. Acabei ganhando uma bolsa de estudos na Inter American Press Association com a John S. Knight Foundation e The Miami Herald , que pertencia naquela época à família Knight. O prêmio me dava a opção de escolher uma universidade dos Estados Unidos ou do Canadá e optei pela Universidade Internacional da Flórida, em Miami.
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196 | Beatriz Parga que anuncia que escrevi meu livro em uma máquina de escrever de sua Quandomarca.cheguei, estava acompanhado por dona Mercedes e seu filho Rodrigo, que saía em outro voo com rumo diferente.
Gabo me cumprimentou em tom de brincadeira: — Por que quer matar Fidel? — me perguntou. Sem dúvida, fazia uma alusão ao artigo de uma página que escrevi dias atrás para o El Tiempo e que havia intitulado “A nova Cuba: entre a revolução e o exílio”, no qual, além das várias obser vações sobre o que havia presenciado, fazia uma alusão à minha busca infrutífera à casa de Fidel Castro, e às interrogações que existiam sobre Matos estar vivo ou não.
— Vamos ver se ele aceita — respondi ao Barry. No dia seguinte liguei ao escritor em sua casa no México. Quatro anos já haviam se passado, mas quando disseram meu nome, ele atendeu. — Não, não e não. Diga-lhe que aceito que coloque todas as pessoas que tem e me deixe sozinho — foi a resposta de García Márquez, soltando em seguida uma gargalhada. E logo acrescentou: — Não estava falando sério Na realidade estou no México e não tenho tempo para me vincular a uma revista, em Miami, e em inglês
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Barry não deu o braço a torcer, e por vários anos seguiu com seu propósito de tentar convencê-lo, dentro de um simpá tico intercâmbio entre o acadêmico e o escritor similar ao que vinte anos mais tarde realizaria o produtor de cinema Scott Steindorff até sair com sua parte ao conseguir os direitos de O amor nos tempos da cólera
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Enquanto adiantava meus estudos, um dos professores da faculdade de jornalismo me vinculou com a revista Caribbean Review, que havia sido fundada por Barry Levine, um renoma do professor de sociologia com muito interesse em assuntos hemisféricos. Sua revista focava em temas políticos da América Latina, e o conselho editorial tinha figuras como o dirigente panamenho Ricardo Arias Calderón, o ex-presidente da Costa Rica, Daniel Oduber e os escritores do exílio cubano, Carlos Alberto Montaner e Reinaldo Arenas. Buscando equilíbrio na chamada política de “Espadas cruzadas” da publicação, Barry queria uma figura de esquerda como García Márquez.
— É claro. Mas não posso viajar à Aracataca — disse-lhe mentalmente pensava que a oferta era um fardo jor nalístico, já que, levando em conta a amizade de García Már quez com o governo de Havana, possivelmente não encontraria nenhum editor em Miami interessado nessa entrevista.
Quase perdi o fôlego. Sabia que era uma pessoa graciosa, generosa.Levando em conta que Aycardi não é um sobrenome muito comum, algo me dizia que podia chegar até ela. De fato, tinha uma amizade com a jornalista Rosie Aycardi, na época direto ra da revista Coqueta, uma extinta publicação juvenil do grupo
— Insista, talvez ele acabe aceitando — me dizia Barry en quanto eu estava segura de que Gabo não tinha interesse em se vincular com a revista. No entanto, um dia recebi uma ligação de Gabo. Pensei que havia mudado de ideia sobre a revista. Mas em seguida me dei conta de que tinha outro motivo.
— Acho que posso localizá-la — respondi. Antes de desligar, perguntei-lhe: — Gabo, desculpe... Você escreve para o El Espectador e eu no El Tiempo. Por que está passando esta entrevista para mim, e não para alguém do seu jornal?
— Ela está aí em Miami. Acho que está hospedada com umas colombianas de sobrenome Ayacardi — explicou.
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Houve um minuto de silêncio, e depois umas palavras que ainda guardo e agradeço: — Porque ninguém escreve como você — me disse.
enquanto
— Não teria interesse em entrevistar a professora que me ensinou a escrever? — me perguntou.
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De Armas (hoje Editorial Televisa). Eu trabalhava com Cristina Saralegui, da revista Cosmopolitan em espanhol, mas havia colaborado com a revista juvenil entrevistando Júlio Iglesias, Timothy Hutton e Tom Cruise.
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Seguramente, pensei, Rosie pode me dar uma pista de como encontrá-la. Ela é uma Aycardi de Barranquilla e talvez Rosa estivesse hospedada com algum parente seu. O resulta do da minha pesquisa foi uma mistura de sorte e casualidades da vida. Quando liguei para minha amiga para perguntar se conhecia Rosa Fergusson, ela me disse que estava hospedada na sua casa. — Ligue mais tarde porque de manhã ela tem aula de in glês — explicou Rosie, que nem imaginaria naquela época que um pouco mais de um ano depois se casaria com Barry Levine, editor do Caribbean Review, a revista política em que eu traba lhava como gerente editorial. Quando algumas horas depois falei com Rosa pelo telefone, ela se mostrou reticente. “Não falo com a imprensa”, me disse. Mas ao escutar que Gabo me pediu que a entrevistasse, acei tou se encontrar comigo.
Convidei a professora para almoçar, em um domingo, no hotel Fontainbleau Hilton de Miami Beach, onde minhas fi lhas pequenas podiam desfrutar da piscina enquanto eu fazia a entrevista. Foi assim, em um ambiente tropical de praia e mar, que essa mulher excepcional foi me abrindo seu coração enquanto recriava as histórias de sua vida em Aracataca, esse povoado tão intimamente seu como também havia sido para o famoso escritor.
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Gosto muito dos Estados Unidos — me disse quando per guntei pelo seu empenho, na sua idade, em aprender inglês. — Gosto da maneira de vida e do modo de ser dos americanos porque me criei entre eles. Em Aracataca eu sempre assistia as festas da United Fruit Company. Agora que Gabito realizou o sonho de sua vida, eu também fui coroada com um grande desejo: sempre quis falar inglês e agora estou aprendendo. Assim nasceu a entrevista que inicialmente enviei ao El Tiempo de Bogotá, jornal que trabalhava como correspondente em Miami. Esperava ver o artigo publicado com grande êxito, como ocorria com a maior parte das correspondências que eu envia va ao jornal. No entanto, para minha surpresa, duas semanas depois, a entrevista não havia sido publicada ou, como me dis seram em Colômbia, na gíria jornalística, eles a “penduraram”. Decidi tentar a sorte por outro lado e enviei a entrevista para Carlos Lareau, diretor do escritório da agência EFE da Espanha, em Miami, para quem já havia feito algumas colaborações. Ter minou como um furo jornalístico porque poucos dias depois foi anunciada a notícia do Nobel de Gabo e a agência informativa espanhola distribuiu a entrevista para o mundo todo. Na Colôm bia, o artigo foi publicado pelo El Espectador, mas não apareceu com meu nome e sim com a manchete de um jornal mexicano que o publicou com grande sucesso. A omissão do meu nome no jornal colombiano era compreensível, devido ao meu vínculo na época com o El Tiempo, seu maior rival. Com a divulgação da entrevista pela EFE, como por passe de mágica começaram a chover as ofertas internacionais inte ressadas em receber matérias sobre a professora, incluindo a
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revista Vanidades, editada em Miami, e Semana da Espanha, além da mídia europeia e latino-americana que reproduziram a entrevista. Rosa e eu começamos a nos reunir nos finais de semana, e até aceitou uma sessão de fotos para a Vanidades E ela gostava de contar histórias, e fazia como ninguém; tal vez por esse motivo um dia me ocorreu que, considerando sua idade avançada, o testemunho da professora sobre o mundo em que viveu o grande escritor poderia ser de muito interesse no futuro. No final das contas, ela havia estado imersa nessa realidade que havia dado a volta ao mundo na literatura sob o nome de Macondo. Disse-lhe que essa realidade que guarda va em sua memória não interessaria apenas para muitos, mas também para o próprio Gabito, que seguramente desejaria co nhecer essa realidade mais além do que pôde captar com seus olhos de criança. No início teve dúvidas.
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— Gabito certamente gostaria de conhecer suas relembranças — insisti. Mas sem me dar conta, já havia aberto a porta para essa possibilidade. “Gabito” foi a palavra mágica.
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— Desde que me descobriu, fico me escondendo, porque como todos os jornalistas, não me deixa em paz.
— Faço, mas não publique antes que eu tenha partido. Se não for assim, a imprensa não vai me deixar tranquila — respondeu, acrescentando que sempre preferia o anonimato e que seguramente teria conseguido passar sua vida desper cebida se não fosse por um jornalista que foi a Aracataca e conseguiu que suas irmãs Isabel e Altagracia revelassem seu papel como professora na vida do escritor, e também o nú mero do seu telefone.
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Foi assim que em nossas reuniões o tema de Aracataca co meçou a ser uma constante. E toda vez que falava do seu pas sado, seus olhos brilhavam e sua alegria se tornava contagiosa. Era como se a juventude voltasse à sua alma. No entanto, apesar de seu empenho em manter sua vida longe do holofote público, uma tarde, quando fui buscá-la para jantar, entregou-me três páginas escritas de próprio punho e letra sobre seu método de ensino com o sistema Montessori e instruções para que um dia, quando ela já tivesse partido desta vida, que entregasse a Gabito. Queria que, no que fosse concernente ao ensino, essa parte tão importante da vida, seu método, chegasse de forma fiel a outras professoras e, dessa forma, beneficiar outros alunos.
Depois, Rosa regressaria a Bogotá. Vários meses mais tarde tentei procurá-la no apartamento no bairro Pablo VI, onde me havia dito que morava, mas ninguém atendeu o telefone. Com a intenção de vê-la em uma viagem à capital colombiana, vol tei a ligar no número que tinha, mas me explicaram que não morava mais ali e não sabiam nada sobre ela. Eu também me mudei de apartamento em Miami e de número de telefone algumas vezes, então se Rosa tentou me ligar alguma vez, não
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— Acho que é importante que tenha isso porque, caso con trário, no futuro ninguém vai acreditar que lhe contei minha his tória. Assim ninguém poderá duvidar. Mas não se esqueça; que ro que, graças a você, meus netos e bisnetos saibam da minha vida; que em seu sangue corre a vocação da professora, que aju dou a estimular a imaginação de um prêmio Nobel — disse-me, dando ênfase à importância de ajudá-la a divulgar seu método.
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pôde fazê-lo, embora realmente pudesse ter me encontrado por intermédio de nossas amigas em comum, as Aycardi, que também não souberam mais de Rosa. No final, nunca nos vi mos de novo. O tempo pareceu cobrir com um manto de esquecimento sua história até a mais recente de minhas mudanças, em agos to de 2008, propiciada pela crise financeira dos bens imobi liários nos Estados Unidos. Durante anos, havia empacotado meus arquivos sem revisá-los. Simplesmente mudavam de lu gar, mas à medida que o tempo passava, aumentavam em pro porções extraordinárias. Pensei que havia chegado o momen to de selecionar o que era importante e jogar fora o que não era necessário. Apesar de que fazia tempo que não guardava meus artigos jornalísticos, que sem exagerar chegam a milhares, e que ia “expurgando”, descobri várias notas sobre entrevistas que escrevi no passado e sem transcendência alguma, fotos de amizades em festas já perdidas no tempo, minutas da primeira reunião de indígenas e ambientalistas no Amazonas peruano, cartas de recomendação de meus antigos patrões e folhas de vida obsoletas. Também uma série de documentos sobre fi guras da história que me interessavam, incluindo entrevistas para um livro que queria escrever algum dia sobre o médico panamenho Hugo Spadafora, assassinado pela ordem do ge neral Manuel Antonio Noriega; outro livro que tenho engave tado do ex-líder nicaraguense Edén Pastora, mais conhecido como o “Comandante Zero”, e várias cópias em microfilme do The New York Times com notícias sobre o herói filipino Emilio
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204 | Beatriz Parga Aguinaldo, um nacionalista que amava apaixonadamente seu país e lutou contra a Espanha e os Estados Unidos. De alguma forma, um mundo de personagens e interesses compartilhando espaço nos meus arquivos: o ambientalista Robert F. Kennedy com o ex-governador da Flórida Jeb Bush; alguns cartões postais que recebi de Celia Cruz durante sua turnê pelo mundo; reminiscências dos meus três anos como assesso ra de imprensa de José Luis Rodríguez “El Puma”, e uma série de anotações sobre o genial escritor brasileiro Paulo Coelho, que entrevistei no Rio de Janeiro. Ao olhar a fotografia que tirei, não pude evitar o sorriso. “Quando vi sua câmera pensei que vi nha para cima de mim uma fanática”, havia me dito em tom de brincadeira antes de me convidar para jantar em um restaurante na Avenida Copacabana com sua esposa Christina em uma noite inesquecível e fascinante com o grande autor brasileiro.
Foi então que me dei conta de que, em vez de estar me desfazendo das coisas, na realidade estava desfrutando das lembranças que esses papéis, já amarelados pelo tempo, me traziam. Em um arquivo com algumas colunas velhas e recor tes de Gabriel García Márquez surgiram as transcrições das entrevistas que havia feito com Rosa Fergusson e um par de páginas em que se lia uma mensagem escrita a lápis para o seu famoso aluno
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Lembrei-me que, pensando que talvez já não viveria muitos anos, Rosa havia me advertido que somente o fizesse chegar ao seu destinatário “depois de eu ter partido”, significando sua partida definitiva deste mundo. “O que será que aconteceu com Rosa?”, pensei, imaginan do que estaria rondando em torno dos oitenta e tantos anos
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já que, prodigiosa em suas lembranças, falhava-lhe a memória quando perguntavam sua idade e eu jamais havia tentado des vendar esse mistério.
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Algumas vezes no passado havia tentado descobrir seu para deiro no Google, sempre com resultados negativos. Decidi vol tar a tentar. Desta vez, eu a encontrei. Mas foi uma notícia tris te. Dizia que havia falecido em 2005, aos noventa e seis anos, em Medellín, a cidade onde havia vivido com uma de suas filhas durante os últimos anos. A nota acrescentava que a professo ra gozava de uma saúde muito boa e que havia partido com a mesma discrição com que havia vivido, enquanto dormia. Era o final de sua vida, mas não o final de sua história, que me inspirou a escrever. Descanse em paz, Rosa. Outros professores agora poderão aprender seus métodos de ensino e outras crianças serão mais felizes ao descobrir o mundo através de seus sentidos; os ro mânticos se identificarão em alguma etapa de suas vidas com sua maravilhosa história de um amor impossível, seus filhos recordarão seus esforços, seus netos poderão contar que sua avó foi a melhor professora e seu querido aluno dirá que esta va certa quando, antecipando sua partida, lhe deixou um ra malhete de lembranças: Quando Gabito ler isso se lembrará, quem sabe até com saudade, daquela etapa feliz de sua vida, sua Montessori, onde sua professora o ensinou com tanta dedicação e onde ele aprendeu e se destacou como o melhor aluno
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GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ Minha querida professora: Uma pena não ter mandado o seu telefone de Miami. Estamos saindo do México esta semana mas estaremos de volta na primeira semana de setembro. Espero encontrar aqui na minha caixa postal 20736, México 20, D.F., uma notinha sua com o número do telefone para ligar para você e combinar sua viagem ao México. Abraços,20.Gabrieljul.82
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Gabriel García Márquez foi um escritor, jornalista e ativista político, cujos romances figuram na lista de mais influentes do século XX. García Márquez nasceu na Colômbia em 1927, na cidade de Aracataca, e faleceu em 2014, no México.
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SobreGabrielAprofessoraeoNobel-GarcíaMárquez
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Teve seu primeiro romance publicado em 1955 e daí não parou mais. Ao longo dos anos, conforme os títulos lançados aumen taram, seus livros alcançaram repercussão extracontinental,
sta seção tem por finalidade contextualizar o autor, a obra e seu gênero literário. Para isso, apresentaremos uma breve contextualização das figuras históricas retra tadas neste livro, seguida da biografia da autora e suas mo tivações para escrever a obra. Em seguida, abordaremos o gênero literário deste livro, bem como as características que o definem, exemplificando-as para melhor compreensão e aprofundamento. Quem foram Gabriel García Márquez e Rosa Fergusson?
210 | conquistando sucesso na Europa. Mas foi em 1967 que o autor publicou o mais famoso de seus romances, Cem anos de solidão, que é considerado sua obra-prima. García Márquez é um dos maiores expoentes do realismo fantástico, gênero que também consagrou Machado de Assis (Memórias póstumas de Brás Cubas) e Franz Kafka (A metamorfose). Em 1982, Gabriel García Márquez recebeu o prêmio Nobel de literatura em homenagem ao conjunto de sua produção literária. Em uma conversa com a imprensa, momentos antes da premiação, o autor dedicou o prêmio à sua primeira professora, com quem teve aulas no colégio Montessori de Aracataca. A professora Rosa Fergusson ensinou o menino Gabo – apelido pelo qual o escritor era conhecido desde a infância em seu círculo de amigos –, então com cinco anos, a amar a literatura. É ela a figura central desta obra. Filha de um britânico e de uma colombiana, a professora se orgulhava da profissão e da escola que fundara na peque na cidade colombiana, a qual teve importância fundamental na vida do vencedor do prêmio Nobel. Anos mais tarde, ela deixou sua profissão para trás e se mudou para a cidade de Bogotá com seu esposo. Lá foi braço direito do marido em seu escritório de advocacia. O casal teve sete filhos e Rosa preci sou de muita força para cuidar deles quando o marido faleceu. Nessa época exercia simultaneamente as funções de datilógra fa e costureira, e trabalhava dia e noite para fornecer o me lhor sustento a seus filhos. À medida que a prole foi crescendo, Rosa se refugiou na leitura em busca de combater a solidão, e foi assim que reencontrou seu aluno, reconhecendo nos
personagens do escritor algumas figuras de sua convivência, de sua família e posteriormente citações a ela própria. Nos úl timos anos de sua vida, passou a sublinhar os parágrafos a ela dedicados. Depois que Gabo cresceu, a professora e seu aluno se reencontraram pessoalmente poucas vezes, mas em todas as ocasiões ficou evidente a admiração mútua. Rosa faleceu em 2005, aos 96 anos. A autora e suas motivações para escrever a obra Beatriz Parga é uma jornalista colombiana com inúmeros artigos e colunas nos mais influentes jornais e revistas latino-americanos, locais e internacionais. Conheceu o vencedor do prêmio Nobel de literatura em 1978, quando estava em Cuba, tentando entrevistar presos políticos. O escritor era grande amigo de Fidel Castro, sendo a ilha cubana um de seus portos da vida; lá ele viveu, trabalhou e podia ser encontrado dando aulas de roteiro cinematográfico ou percorrendo plantações de Atabaco.partir do momento em que se conheceram, a jornalista Beatriz Parga e o romancista Gabriel García Márquez mantiveram contato. Em certa ocasião, García Márquez sugeriu à jornalista que entrevistasse a professora Rosa Fergusson, res ponsável por ensiná-lo a escrever, e ela acabou por aceitar a sugestão.Aoreceber o convite de Beatriz, a professora se mostrou reticente, mas por fim concordou em conceder a entrevista quando a jornalista mencionou o nome de Gabo. A matéria resultante dessa entrevista rodou o mundo após a declaração
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212 | do então recente vencedor do prêmio Nobel, dando uma ideia a Beatriz: por que não registrar as memórias da professora so bre o mundo que formou o grande escritor e demonstrou sua vocação para o fazer literário? A professora concordou, sob a condição de que os relatos fossem publicados somente após a suaAsmorte.duas mulheres passaram então a marcar encontros re gulares. A professora contava as experiências, a jornalista as registrava. Mas não avançou com a história. Anos depois, me xendo em seus arquivos, encontrou as transcrições desses en contros e foi pesquisar sobre Rosa. Ao descobrir que ela havia falecido, decidiu honrar sua memória com a publicação dos relatos, demonstrando que o final de sua vida não precisaria significar o final de sua história. Assim nasceu esta obra que, ao romancear a história de Rosa Fergusson, visa trazer ao leitor uma narrativa agradável sobre uma personagem que existiu de verdade, mostrando também o mundo em que Gabriel García Márquez cresceu e que certamente o inspirou na criação de suas obras, já que as famílias da professora e do aluno eram vizinhas na pacata cidade de Aracataca.
Literatura e gênero literário Uma das manifestações artísticas do ser humano, a literatu ra é chamada de arte das palavras, pois representa comunica ção, linguagem e criatividade em prosa e verso. Por intermédio da literatura, a realidade é recriada de modo artístico com o
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Assim, justifica-se a classificação de A professora e o Nobel: Gabriel García Márquez como obra literária, já que recria uma realidade, com lirismo e subjetividade, como é possível notar logo no início da obra, na página 14: Já haviam dito mil vezes à Rosa que ela era a mulher mais linda do povoado. Aracataca era o nome real dessa popu lação vizinha ao mar do Caribe, com telhados de zinco que 1 São Paulo: Ática, 2007. pp. 7-8.
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2 Porto Alegre: UFRGS Editora, 2003, p. 15.
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objetivo de proporcionar maior expressividade, subjetividade e sentimentos ao texto. “O texto repercute em nós na medida em que revele emo ções profundas, coincidentes com as que em nós se abriguem como seres sociais”, conceitua Domício Proença Filho, em seu livro A linguagem literária.1 Mas nem todo texto possui linguagem literária. Uma repor tagem, por exemplo, pode contar uma história que provoca reações e reflexões no público. Ela usa, porém, linguagem jor nalística e seu conteúdo se limita aos fatos apurados pelo re pórter. Ou seja, a função do texto é informativa e não literária. “O que faz de um texto literatura é o tratamento que a ele se dá”, explicam Cinara Ferreira Pavani e Maria Luíza Bonorino Machado, em seu livro Criatividade, atividades de criação literária.2 “Uma mesma frase pode expressar o que suas palavras indicam, literalmente, ou ir além, sugerindo significados que exigem um ato interpretativo por parte do leitor.”
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Como existem vários tipos de produções literárias, os es pecialistas decidiram agrupá-las de acordo com suas caracte rísticas em comum. São os chamados gêneros literários. Entre eles estão biografia, autobiografia, poema, romance, novela, história em quadrinhos, entre outros. Ou seja, um fato pode ser contado de formas diferentes, dependendo do gênero que se utiliza para contá-lo. No livro Viver para contar, Gabriel García Márquez relem bra seus anos de infância e juventude. O autor escolheu o gê nero autobiografia para mostrar o período em que se funda o imaginário residente nas narrativas e nos romances que ele já havia publicado. Mas aqui entra um ponto interessante: nos sas lembranças de infância nem sempre são precisas; elas po dem ser vagas, confusas ou mesmo ingenuamente inventadas. Segundo pesquisadores, cerca de quatro em cada dez pessoas inventam suas primeiras lembranças e isso ocorre porque nos so cérebro não desenvolve a capacidade de armazenar memó rias autobiográficas, pelo menos não até completarmos dois anos de idade.3 É claro que é saboroso saber as lembranças de um autor magistral e que com certeza influenciaram na cria ção de suas histórias, mas obter uma outra descrição de tais recordações por meio dos relatos de outra pessoa trazem uma
214 | brilhavam debaixo de infinitos céus azuis e que soavam como tambores quando apareciam as chuvas descomunais.
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3 GRIFFITHS, S. “Podemos confiar nas primeiras recordações da infância?”, BBC News Brasil. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/vertfut-48701541>. Acesso em: 30 nov. 2020.
Analisando mais detidamente o gênero biografia, diz-se que ela:éum ramo da literatura que se dedica à descrição ou nar ração da vida de alguém que se notabilizou de alguma for ma. Em sentido restrito, reporta-se a toda a extensão da vida do biografado, pretendendo não somente recontar os eventos que a compõem, mas também recriar a imagem dele como é/era/foi. Inclui necessariamente o nome do biografado, a data do seu nascimento, a sua naturalidade, filiação, habilitações literárias, profissões desempenhadas, circunstâncias em que escreveu as suas obras e respectivo enquadramento literário, apreciação crítica dos seus escri tos e prêmios recebidos. O biógrafo faz uso praticamente de todo tipo de materiais que tenha ao seu dispor para rea lizar a biografia de alguém: as próprias obras do biografado (especialmente cartas e diários), documentos oficiais, me mórias de contemporâneos, recordações de testemunhas 4 LITTRÉ, E. apud PRIORE, M. “Biografia: quando o indivíduo encontra a história”. Topoi, v. 10, n. 19, p. 7.
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Nesta obra, optou-se por utilizar o formato de uma biogra fia, gênero que surgiu no período renascentista como resul tado do crescimento da valorização individual em detrimento do papel das pessoas no âmbito coletivo, e que foi ganhando maior projeção ao longo dos séculos. No século XIX, foi defini do pelo lexicógrafo Émile Littré como “uma espécie de história que tem por objeto a vida de uma única pessoa”.4
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nova luz a tais questões, apresentando um interesse renovado em seu conteúdo. Pois é justamente isso que acontece em A professora e o Nobel: Gabriel García Márquez
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Durante a obra, a autora nos informa detalhes sobre a personalidade da biografada, além de informações sobre sua formação profissional, suas reflexões e sentimentos, como fre quentemente é feito em relatos biográficos e autobiográficos.
6 BURKE, P. “A invenção da biografia e o individualismo renascentista”, Estudos históricos, v. 10, n. 19, pp. 83-98. Disponível em: Acessobibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2038/1177>.<http://em:22dez.2020.
O professor e historiador inglês Peter Burke, da Universi dade de Cambridge, explana mais sobre as características que acompanham a biografia desde a sua gênese: Existem paralelos entre o estilo da biografia renascentista e o estilo da ficção do período. […] Como nos livros de chistes e nas novelas, há uma abundância de anedotas nas biogra fias escritas nessa época, e seu objetivo era revelar dados sobre a personalidade dos biografados. […] Essas anedotas são frequentemente dramáticas na forma e incluem muitos diálogos em discurso direto.
216 | vivas, conhecimento pessoal, outros livros sobre o biogra fado, fotografias e pinturas.
5 No caso de A professora e o Nobel: Gabriel García Márquez, os substratos usados por Beatriz Parga foram a primeira en trevista que Rosa Fergusson lhe concedeu, e depois a série de conversas que ambas tiveram. Uma vez transcritas, essas con versas deram origem a este livro.
5 ROSADO, S. “Biografia”, E-dicionário de termos literários. Disponível em: <https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/biografia/>. Acesso em: 19 nov. 2020.
A historiadora e antropóloga brasileira Lilia Moritz Schwarcz, por sua vez, diz sobre a biografia: Valeria quem sabe trocar a noção de biografia pelo concei to de trajetória: trajetória de relações — do indivíduo em
Mostraremos a seguir alguns exemplos que justificam a classificação do livro neste gênero. Nas páginas 29 e 30, por exemplo, a narrativa recria a natureza apaixonada e determi nada daEmprofessora:ocasiões,quando
— Meus alunos podem conseguir na vida o que eles pretenderem ser. Da minha sala de aula poderão sair não somente doutores, senão o melhor, até um prêmio Nobel.
Indispensavelmente, essas palavras se convertiam em um desafio.Toda vez, a resposta de Rosa era sempre a mesma.
Rosa trabalhava até tarde preparando o material didático, indispensavelmente encontrava o apoio solidário de alguma mulher da vizinhança que batia na porta da sala de aula com um copo de limonada ou uma xícara de café. Mais de uma vez, no entanto, era surpreendida ao escu tar de novo alguém que dizia: — Professora, não trabalhe tanto; você se esforça de mais. Aqui as crianças quase nem precisam de estudo. Não há muita coisa que este lugar lhes pode oferecer. Lembre -se que essas crianças nunca serão doutores.
Esses comentários soavam como uma chibatada para a professora. Como era possível que as próprias mães de seus alunos não depositassem fé no futuro de seus filhos?
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218 | relação ao grupo em seus diversos campos sociais, como pretende [o sociólogo francês Pierre] Bourdieu —, mas também trajetória de geração, como mostra Schorske em seu trabalho sobre Viena no final do século7.
[…]Rosa não tinha vergonha em afirmar que sua ambição consistia em “ser a melhor professora do mundo”. No fi nal, conseguiu seu objetivo graças ao diretor da Secretaria de Educação, um homem muito sério que visitou o povo ado em uma tarde providencial. Vencendo seus temores de falar com estranhos, Rosa se aproximou para dizer a ele que Aracataca não tinha uma Montessori, mas, se houves se uma nomeação, ela estava disposta a organizá-la e se 7 SCHWARCZ, L. M. Biografia como gênero e problema. Disponível em: <https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/rhs/article/view/ 1577/1083> Acesso em: 17 nov. 2020.
[…]Eram épocas em que se podia estudar o bacharelado e o magistério ao mesmo tempo. Rosa, que era a mais jovem da sua classe, havia escolhido o caminho difícil de dedicar mais horas ao estudo com o propósito de obter dois diplo mas: o de bacharela e o seu certificado como professora.
Nas páginas 43 e 55, ficamos sabendo como ela se torna professora e monta a escola Montessori da cidade, que tanto influenciou seu aluno mais famoso: A ideia de ser professora não se tratava de um simples capricho. Era um desejo que cultivava desde antes de co meçar a estudar na Normal de Senhoritas de Santa Marta, onde se destacou como a melhor aluna do quadro discente.
Essa foi uma etapa muito difícil de sua vida, sentindo-se muitas vezes incapaz de enfrentar sozinha o desafio de sus tentar sua família. […] Da máquina de escrever à máquina de costura, Rosa tra balhava dia e noite para pagar as contas. Não havia tempo para se sentir cansada em meio a essa responsabilidade de conseguir o dinheiro para colocar na mesa o pão familiar,
E mais adiante, nas páginas 158, 160 e 161, nos conta so bre a mudança de cidade e profissão, além de comentar sobre seus filhos e a perda do esposo: Deixando para trás sua profissão de professora e se despe dindo de sua família com um adeus que não sabia que seria por muitos anos, Rosa deixou Aracataca. […] Pablo Acuña abriu seu próprio escritório de advocacia, colocando Rosa para cuidar do escritório, que se tornou sua mão direita e uma companheira indispensável. Havia sido sempre uma mulher organizada, esperta e detalhista, qualidades que foram suas aliadas para ajudar a impulsio nar a carreira do jovem advogado. Além disso, à medida que os filhos foram chegando, a professora se propôs a dar a educação de qualidade que ela podia lhes oferecer.
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[…] Era a mãe e a esposa perfeita. Estava decidida de que seu matrimônio durasse até a eternidade, mas o des tino lhe impôs uma dura prova com a súbita morte de seu esposo como consequência de um infarto cardíaco. […]
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empenhar como diretora e professora. O alto funcionário ficou tão impressionado pela determinação da jovem que, poucos dias depois, Rosa receberia uma carta com o selo do governo, anunciando a desejada nomeação.
sua alegria ao ver seus esforços co roados com um posto no magistério, carreira que naque la época se encontrava entre as muito poucas profissões aceitáveis para uma “mulher decente”, como as pessoas daquele período costumavam dizer em tom severo.
além de se ocupar dos problemas e necessidades de seus sete Pode-sefilhos.perceber
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também que a autora aplicou uma ca racterística essencial da biografia moderna — analisar não so mente a vida do biografado, mas seu contexto histórico e suas relações com a sociedade em que vive. Nas páginas 45 e 55, descreve-se a mentalidade da época: Ela veio ao mundo em uma época caracterizada pela aus teridade nos costumes. Havia livros proibidos, amizades proibidas, temas de conversa proibidos, vestimentas proi bidas, lugares proibidos e até pensamentos proibidos. As regras eram muito severas sobre a forma de se apresentar em público, e ainda mais na igreja: as mulheres não po diam entrar com vestidos sem mangas, nada de decotes e as saias tinham que chegar doze centímetros acima do tornozelo, o que já era um grande avanço levando em con ta que em épocas anteriores um calcanhar descoberto era considerado atrevimento e podia despertar nos homens paixões proibidas. As calças largas em uma mulher eram motivo de escândalo porque esse vestuário era considera do […]masculino.Eradifícildescrever
por que preferia ser chamada de Rosa Fergusson e não Rosa Fergusson de Acuña, como a maioria das mulheres casadas de sua geração, ela tinha uma resposta de acordo com suas ideias progressistas: “Porque sou e sempre fui Rosa Fergusson. Este é o meu nome desde que nasci. Nenhum ser humano deve perten cer a ninguém, porque isso vai contra a liberdade da pes soa, contra o indivíduo. Uma mulher ou um homem nasce com um nome e em uma família e, ao se casar, tudo isso que tinha atrás não desaparece para mudar o seu sobreno me por outro. Os homens, por exemplo, não o fazem. Além disso, ao ser ‘de’ e, se pensa como eu, quando perdi meu esposo, isso significaria que ao perder o seu parceiro já não pertence a ninguém”, dizia.
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A trajetória de Rosa Fergusson é relatada em minúcias ao longo de toda a obra, que aborda os caminhos que ela per correu desde a sua infância, passando pela juventude como professora, o amadurecimento ao se casar, tornar-se viúva e se perceber na condição em que precisaria criar sete filhos sozi nha. A obra também expressa o desejo sincero da professora, ao final de sua vida, de encontrar um segundo companheiro, assim como sua decepção após um encontro frustrado, como se vê nas páginas 185-186 e 189: — Então, se ficar sabendo de algum norte-americano da minha idade que queira se casar, poderia me apresentar? Há muitos anos que estou viúva, criei todos os meus filhos
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E na página 177, conhecemos a mentalidade à frente de seu tempo da Quandobiografada:lheperguntavam
222 | e, embora minhas filhas ainda dependam de mim, sinto muita falta de um companheiro — disse, demonstrando que na sua idade ainda se pode sonhar com o amor. […]—
Os homens perdoam tudo em uma mulher, menos o passar dos anos — disse com certa tristeza.
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Portanto, ao contar a história de Rosa Fergusson, a jornalis ta Beatriz Parga brinda o leitor não só com a biografia de uma mulher fascinante, mas também com o mundo que inspirou o gênio da literatura mundial Gabriel García Márquez. Com isso, ela traz ao conhecimento do leitor não apenas os desdobra mentos dessa bela e frutífera relação acadêmica, mas também nos convida à reflexão sobre as trajetórias com que nos depa ramos cotidianamente — na vida e na literatura.
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Ela o conhecia desde o berço, uma vez que suas famílias eram vizinhas e conhecidas a longo prazo. Por várias vezes o ganhador do Nobel de Literatura afirmou que quem lhe ensinara a ler era uma professora muito graciosa e inteligente, que lhe ensinou o prazer de frequentar uma escola.
9 788554 179045 ISBN
Este livro é uma longa entrevista romanceada feita por Beatriz Parga com Rosa Fergusson, a professora de Gabriel García Márquez, a pedido do próprio escritor. A história de ambos se inicia no pequeno povoado de Aracataca, quando a professora recebe em sua escola o menino Gabriel para iniciar seu processo de alfabetização.
Quando García Márquez recebeu o Nobel de Literatura de 1982, em Estocolmo, suas primeiras palavras foram: “Dedico este prêmio à minha primeira professora, que me ensinou a escrever e a amar a literatura”. 978-85-54179-04-5