TFG | Contribuições de Espinosa e da Ecologia à participação nas cidades | Caderno 1

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Contribuições de Espinosa e da Ecologia à participação nas cidades


Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Catalogação na Publicação Serviço Técnico de Biblioteca Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo Fentanes, Pedro de Assis Elementos urbanos afetivos: contribuições de Espinosa e da Ecologia à participação nas cidades / Pedro de Assis Fentanes; orientador Fábio Mariz Gonçalves. - São Paulo, 2021. 204 p. Trabalho Final de Graduação (Bacharelado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Catalogação na Publicação Universidade de São Paulo.

Serviço Técnico de Biblioteca Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo

1. Participação. 2. Espinosa. 3. Ecologia. I. Gonçalves, Fábio Mariz, orient. II. Título. Fentanes, Pedro de Assis Elementos urbanos afetivos: contribuições de Espinosa e da Ecologia à participação nas cidades / Pedro de Assis Fentanes; orientador Fábio Mariz Gonçalves. - São Paulo, 2021. 204 p. Elaborada eletronicamente através do formulário disponível em: <http://www.fau.usp.br/fichacatalografica/>

Trabalho Final de Graduação (Bacharelado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. 1. Participação. 2. Espinosa. 3. Ecologia. I. Gonçalves, Fábio Mariz, orient. II. Título.


Contribuições de Espinosa e da Ecologia à participação nas cidades

PEDRO DE ASSIS FENTANES Orientação: Fábio Mariz Gonçalves Trabalho Final de Graduação Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Universidade de São Paulo São Paulo 2020


AGRADECIMENTOS Agradeço à FAU por todas as relações afetivas proporcionadas ao longo da graduação. Ao meu orientador Fábio, por acreditar no que faz. Aos amigos queridos pelos momentos todos de alegria ao lado de vocês. Aos meus pais pelo apoio e empenho durante toda vida. À minha avó pela inspiração. À Camila, pela sua sensibilidade e parceria.


RESUMO Visando uma relação de proximidade maior entre a cidade e seus cidadãos e entendendo como legítima e possível suas ações nas transformações de espaços livres da cidade, esse trabalho propõe o guia de elementos urbanos afetivos. Por meio da identificação das partes integrantes da cidade que nos convidam a compor com elas, estabelecendo uma relação entre afetar e ser afetado, foi realizada a reunião desses elementos, na tentativa de torná-los mais acessíveis e trazê-los de volta à vida cotidiana. Para isso, aproxima-se de dois referenciais teóricos, por um lado a filosofia de Baruch de Espinosa e sua teoria dos afetos e, por outro, alguns dos conceitos da Ecologia. A partir dessa discussão teórica, chega-se, então, a três pontos convergentes entre as duas teorias: a cidade complexa, a ética ambiental e a cidade como bem comum, questões que suscitam a necessidade de reavaliação da relação que estabelecemos com o meio no qual vivemos. Esses pontos indicam para a noção da participação, entendida no sentido de valorizar a presença do corpo afetivo na cidade.



Ressuscita-me Para que a partir de hoje a família se transforme e o pai

seja pelo menos o Universo

e a mãe

seja no mínimo a Terra

Vladímir Maiakóvski, Amor



SUMÁRIO

10 Apresentação 12

Pontos de partida

DE ESPINOSA À CIDADE 20

Por que Espinosa hoje?

28

O racionalismo de Espinosa

35

O lugar do homem na cidade

42

O corpo de Espinosa na cidade

48

Por uma cidade afetiva

54

Por uma cidade alegre da ação

DA ECOLOGIA À CIDADE 62

Por que ecologia hoje?

67 Ecologia 72

O lugar da natureza nas cidades

ESPINOSA E ECOLOGIA: CONTRIBUIÇÕES 82

A cidade complexa

86

A ética ambiental

89

A cidade como bem comum

93

Elementos urbanos afetivos

100 Bibliografia


Apresentação

Esse trabalho parte de uma série de inquietações pessoais sobre a questão da participação cidadã nas cidades, a princípio um pouco difusas, mas que entretanto, ao longo do trabalho, foram tomando forma a partir de um olhar guiado pelo campo da filosofia de Espinosa e pela disciplina da Ecologia. No primeiro capítulo, pontos de partida, eu apresento quais foram os primeiros questionamentos que me motivaram a desenvolver esse trabalho. Explico sucintamente a abordagem conceitual realizada durante a pesquisa e o percurso que foi construído ao longo do processo, os quais levaram esses pontos de partida à estrutura final do trabalho. Ele organiza-se em duas grandes partes: uma primeira de pesquisa teórica, elaborada em três capítulos: De Espinosa à Cidade; Da Ecologia à Cidade; Espinosa e Ecologia: para uma participação cidadã mais efetiva. Já a segunda parte do trabalho, propositiva, corresponde à elaboração de um guia destinado à sociedade civil que articula as ideias discutidas na parte teórica visando criar uma ferramenta de projeto que potencialize ações diretas dos cidadãos nos espaços livres públicos. A parte teórica começa, portanto, com o capítulo De Espinosa à Cidade, no qual faço uma aproximação de alguns dos conceitos do pensamento filosófico de Espinosa para refletir sobre a relação homem-cidade. Em um primeiro momento, discuto a importância de resgatar o seu pensa-

10 • Apresentação •


mento filosófico na atualidade e faço uma breve introdução aos principais conceitos que serão utilizados ao longo do trabalho. Posteriormente, transponho os conceitos apresentados para se pensar a relação homem-cidade em quatro subcapítulos: O lugar do homem na cidade; O corpo de Espinosa na cidade; Por uma cidade afetiva; Por uma cidade alegre da ação. Durante o capítulo, procuro me ater às discussões sobre os problemas atuais nas grandes cidades e colocar em questão, através do conceito de afetividade de Espinosa, o tema da participação cidadã. Começo o próximo capítulo, Da Ecologia à Cidade, demonstro a atualidade do pensamento ecologista que tem se ramificado e participado de diversos campos do conhecimento, evidenciando a sua vocação transdisciplinar. Assim como o capítulo anterior, apresenta conceitos de seu campo e os transpõe para o pensar a cidade. Em seguida, há uma breve recapitulação sobre o lugar da natureza nas cidades em alguns dos modelos urbanísticos na história da cidade, chegando a uma abordagem mais recente que apresenta novas formas de se pensar modelos de desenvolvimento para as cidades que estabelecem relações com a própria disciplina da ecologia. O último capítulo da parte teórica, Espinosa e Ecologia: contribuições, apresenta princípios comuns presentes tanto no pensamento filosófico de Espinosa, quanto na Ecologia. Estão presentes nos subcapítulos seguintes: A Cidade Complexa, A Ética Ambiental, O Comum. O último subcapítulo, Elementos Urbanos Afetivos, é apresentado o termo e a proposta do guia, que busca ser mais uma ferramenta de projeto para qualquer grupo que queira transformar os espaços de uso comum da cidade. Em sequência está a bibliografia correspondente. Esse trabalho segue acompanhado do Guia de Elementos Urbanos Afetivos em um caderno à parte.

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Pontos de partida

Esse trabalho surgiu a partir de uma série de inquietações pessoais sobre alguns dos temas que mais me afetaram durante a graduação. Ainda não tinha, a princípio, um tema ou objeto de estudo claro para investigação. Isso significa que eu tinha apenas uma série de perguntas para as quais eu estava interessado em buscar respostas. Entretanto, fui percebendo, ainda no começo da pesquisa, que eu não deveria estar perseguindo respostas prontas para as minhas perguntas. Estava me chafurdando em livros e artigos científicos, passando o olho pelo texto a fim de ler aquilo que eu gostaria de ouvir, como aquele que espera ouvir uma resposta alentadora para resolver um problema pessoal. Ao longo do desenvolvimento do trabalho eu não só acabei não achando as respostas, como aumentei consideravelmente a quantidade de problemas em aberto. Portanto, ao invés de simplesmente buscar respostas para as minhas perguntas, fui entendendo que o mais interessante seria construir um diálogo com os autores do meu referencial teórico e estabelecer uma rede de inter-relações para que eu pudesse, enfim, definir o tema, objeto e objetivo da pesquisa. Os autores não me ofereciam respostas, mas caminhos possíveis para investigar mais a fundo aqueles problemas postos em questão. Havia, inicialmente, um incômodo, que percorreu minha graduação na FAU, sobre a ausência de uma formação mais robusta no que diz respeito ao desenho das cidades,

12 • Pontos de partida •


dos espaços livres públicos, em oposição a uma presença muito marcante do planejamento constituído enquanto legislação urbana. Isso muito se reflete na onipresença da escala macro quando lidamos com o planejamento urbano e da quase inexistência da escala micro, daquela escala que se enxerga a cidade enquanto se caminha por ela. Todavia, ao mesmo tempo, me chamava a atenção o surgimento de movimentos da sociedade civil organizada nas cidades que reivindicam o uso do espaço público e revertiam a lógica de produção desses espaços. Eram novos coletivos urbanos e novas formas de ação na cidade que se mobilizavam a partir de laços afetivos, nos trazendo pistas sobre novas maneiras de atuar nas cidades. De acordo com Laura Sobral, estamos em uma conjuntura na qual “o planejamento urbano tradicional, reconhecido comumente como um processo topdown, está cada vez mais dividindo seu espaço com as práticas ditas bottom-up”01. Essa nova situação solicita aos planejadores que repensem os modelos de atuação nas cidades. Também me sensibilizava a crise ambiental, que introduz um problema à nível global, comum, que nos exige uma transformação que responda à altura, colocando em equidade todas as pessoas para um modelo de desenvolvimento mais sustentável. Entendo que pensar a questão ambiental ultrapassa a capacidade técnica ou a viabilidade econômica, mas trata-se, antes de mais nada, de uma questão ética, de vontade de fazer.

01

SOBRAL, Laura. Isso não é um evento – uma análise sobre a dinâmica de uso dos espaços públicos contemporâneos: estudo de caso – o Largo da Batata. 2018. Dissertação (mestrado em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo), Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. p. 09

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Entretanto, os problemas socioambientais enfrentados pelas nossas cidades têm como respostas, em sua grande maioria, políticas públicas fragmentadas que tratam os aspectos desses problemas separadamente. Em muitos dos casos, mitigam sintomas ao invés de atingir as causas. Estamos sempre a correr atrás dos problemas, quando já nos encontramos em um cenário de crise profunda. Em época de crise, a emergência pelas soluções só alimenta a utilização de medidas paliativas que respondem, a curto prazo, ao grande problema que isso representa. Além disso, a questão ambiental nas cidades tem se tornado, cada vez mais, uma questão ideológica. Me motivava pensar nas possibilidades de reverter essa dinâmica exploratória de modelo de cidade sem um discurso exclusivamente preservacionista, como apresenta o ensaísta Antonio Risério, em “A cidade numa nova configuração Amazônica”02. Diante da impossibilidade da mudança urbana como nós a imaginamos nas nossas cidades e como nós nos colocamos diante dessa questão, acabei encontrando em Espinosa, especialmente em sua teoria dos afetos, um pensamento potente que abarcava no meu entendimento grande parte das minhas inquietações. Ao mesmo tempo enxerguei na Ecologia a possibilidade intrínseca à disciplina de pensar a relação entre as partes de forma integrada e complexa, como o pensar a cidade exige. Dessa maneira, passei a buscar, enquanto objetivo, demonstrar a importância do pensamento filosófico de Espinosa e do campo da Ecologia para pensar formas alternativas e colaborativas de atuar na produção da cidade. 02

Ver: RISÉRIO, Antônio. A Cidade no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2013. p. 333.

14 • Pontos de partida •


Espinosa nos convida à reflexão interna, ao entendimento da causa imanente das coisas. Alguns fatores das nossas cidades parecem impossibilitar um momento para tal modo de agir. A velocidade e a exigência pela produtividade das nossas rotinas e a ausência e a precariedade de espaços públicos nos priva de condições em que esse trabalho reflexivo venha a se desenvolver. Esse exercício cognitivo a que Espinosa nos convida não parece ter lugar nas nossas cidades. Requereria um lugar onde fosse possível a pausa. Porque a alegria para Espinosa não está vinculada a algum tipo de excitação ou euforia, mas sim ao conhecimento adequado. Outro ponto fundamental para a minha análise consiste no lugar que o homem ocupa na Natureza em Espinosa, conceito que pode ser transposto para uma análise do homem contemporâneo no seu meio ambiente mais comum, as cidades. E daí deriva a minha escolha pela discussão através da disciplina da Ecologia que nos abre tanto o ponto de vista da complexidade do sistema em que vivemos como nos alerta para a questão ambiental planetária. No momento em que as cidades são transformadas abruptamente a partir de uma política exterior à organização dos cidadãos enquanto sociedade, cerceando-os dos processos decisórios, os sujeitos podem perder uma relação de identidade com os espaços da cidade. O cidadão pode não reconhecer historicamente o espaço urbano, tornando-se alheio ao mesmo. Os espaços da cidade se tornam estranhos quando não correspondem à dinâmica histórica-política ou à dimensão afetiva das pessoas na vivência do espaço urbano ou na situação do “esquecimento” das políticas públicas dos espaços históricos (não cuidam, não preservam), devido a orientação adotada de uma lógica da

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racionalidade técnico-científica ou econômica, externa à realidade dos cidadãos. Essa discussão teórica culmina em um Guia de Elementos Urbanos Afetivos. A ideia é que ele possa servir como ferramenta de projeto para qualquer grupo que queira transformar os espaços de uso comum da cidade. Entretanto, não se trata de um amplo catálogo de referências projetuais para espaços públicos, uma vez que possui um enfoque específico. Os elementos urbanos apresentados nele formam um conjunto de ideias e desenhos que tem como intuito fortalecer o vínculo humano com a paisagem urbana. Através da teoria dos afetos de Espinosa, bem como da disciplina da Ecologia, pretende-se demonstrar a importância que a cidade material, física, tangível tem para a cidadania.

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“amar la trama más que el desenlace” Jorge Drexler

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DE ESPINOSA À CIDADE

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Por que Espinosa hoje?

Nossa sociedade passa por uma crise mundial que como sabemos é política, econômica, social, ambiental e sanitária. Entretanto, diante de todos os terríveis efeitos causais das diferentes dimensões da nossa crise atual, nós parecemos não reagir à altura dos fatos. Se tratarmos do nosso contexto mais próximo e nos recolhermos ao Brasil, encontraremos uma realidade ainda mais angustiante. Convivemos, todos os dias, com notícias que beiram a fantasia. Já são centenas de milhares de mortes pelo novo coronavírus, mas há ainda quem se recuse a cumprir as medidas de segurança mais banais. Também podemos observar uma série de manifestações bárbaras, antiéticas que partem tanto de uma minoria ruidosa que apregoa valores antidemocráticos e reivindica uma suposta liberdade individual que lhe foi arrancada, quanto dos próprios representantes do estado nacional. Diante de tudo isso, a maior parte da sociedade se porta inerte. Nós parecemos ter perdido nossa capacidade de nos afetar. É essa aparente impotência, uma das mais graves dimensões da nossa crise atual, que me motivou a desenvolver esse trabalho. Porque, para todas as outras crises, é possível enxergar, identificar, mais ou menos claramente, as suas causas. A crise ambiental tem a ver com o nosso modelo de desenvolvimento que explora os recursos naturais indistintamente; a crise econômica, para muitos,

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relaciona-se com o próprio funcionamento do capitalismo; a política, com fatores histórico-sociais, assim por diante. Entretanto, as causas para essa nossa inação não nos são facilmente identificáveis. Por que, diante de tantas manifestações antiéticas, nos portamos como se nada pudéssemos fazer? É como se houvesse uma força inacessível, intrínseca a nós, que nos impõe a letargia, ou, como nos apresenta Homero Santiago, a partir da leitura de Bento de Espinosa, filósofo holandês do século XVII, “por que lutamos por nossa servidão como se lutássemos por nossa liberdade?”01. Para o filósofo Antonio Negri, olhar para o pensamento de Espinosa é fundamental para o momento de crise em que estamos vivendo. As crises, diz Negri, são sempre uma “violação negativa do ser, interposta contra a sua potência de transformação”02. São em momentos de crise, portanto, que o poder transformador do homem é comprometido. Esse estado de impotência, de impossibilidade de transformação, se assemelha ao que Espinosa define por servidão. Em sua grande obra, Ética, o filósofo trata justamente do percurso desse estado de maior servidão para um estado de maior liberdade. Isso implica fundamentalmente no aumento do potencial transformador do homem, isto é, de colocar-se para além do devir. A liberdade relaciona-se, então, ao aumento da potência de agir e a servidão, à diminuição da potência de agir.

01

SANTIAGO, Homero. As aproximações entre Spinoza, Nietzsche e Antonio Negri. [Entrevista concedida a] Márcia Junges. Revista IHU On-line, n. 397, 06 ago. 2012. 02

NEGRI, Antonio. Espinosa Subversivo: e outros escritos. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. p.15.

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Na parte IV da Ética, essa condição de impotência e sua relação com a servidão é descrita: Chamo de servidão a impotência humana para regular e refrear os afetos. Pois o homem submetido aos afetos não está sob seu próprio comando, mas sob o do acaso, a cujo poder está a tal ponto sujeitado que é, muitas vezes, forçado, ainda que perceba o que é melhor para si, a fazer, entretanto, o pior”03.

Aqui se coloca em pauta a questão dos afetos04, bastante significativa em seu pensamento e que, para alguns autores, será, inclusive, tratada como a teoria dos afetos em Espinosa, dada a especificidade científica com o qual ele trata o tema. Nesse sentido, a primeira ideia que deve ser compreendida é que o afeto abordado pelo autor não é aquele relacionado ao carinho, embora também o incorpore. Afeto, deve ser entendido no sentido do verbo afetar, isto é, aquilo que nos toca e que, de alguma maneira, nos move. Nas palavras do autor: “por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída”05. Diante das afecções, portanto, poderia-se pensar que o homem devesse agir de modo a controlar seus afetos, seus sentimentos, para que enfim pudesse encontrar a verdade sem os efeitos enganosos dos sentimentos. Essa 03

SPINOZA, Benedictus. ÉTICA. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007. p.155. 04

Afecção e afeto, embora sejam conceitos parecidos, são distintos. Afecção é aquilo que se passa no nosso corpo, está no campo do acontecimento instantâneo que nos atinge, aquilo que nos chega no momento, já o afeto está naquilo que ocorre logo após as afecções no corpo. Isto é, como essas afecções são experimentadas por nós. É a nossa capacidade de existir variando. Isto é, está relacionada ao processo, e esse processo ocorre com a variação da nossa potência de existir. 05

SPINOZA, op cit., 2007. p.98.

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é a ideia que vigorava no pensamento filosófico até então e a qual Espinosa vai se opor firmemente, inaugurando uma nova forma de se pensar os afetos. Afeto, visto como paixão, era considerado oposto à razão: aquilo que de certa forma trabalha como encobrimento do nosso eu racional, cabendo então a nós controlar nossos afetos de maneira que eles não nos desviem da ordem moral. Entretanto, há um aspecto central na filosofia de Espinosa que se opõe a essa ideia. Trata-se do que se chama de paralelismo na relação entre mente e corpo. Ele vai nos mostrar que não há qualquer possibilidade de domínio da razão sobre os afetos, na medida em que mente e corpo são dois atributos de uma única substância, sem existir uma relação hierárquica de comando entre eles. Dessa forma, Espinosa rompe com a tradição que vinha definindo a mente como superior ao corpo e que, assim, poderia exercer o comando sobre ele06. Nesse sentido, poderia-se pensar que, se não conseguimos controlar nossos afetos através da razão, poderíamos ao menos evitá-los. Entretanto, Espinosa defende que essa ideia também é ilusória. Na vida social, não há lugar para hermetismo, estamos sempre em contato e em troca incessante de afetos. Ou seja, nós, como parte do todo que somos, como parte da natureza, não conseguimos agir como se estivéssemos em uma ilha na vida social. Não somos um poder isolado da natureza, um império dentro de um império07, somos parte dela, podendo o corpo ser afetado, mas, também, afetar o meio.

06

Ver: CHAUÍ, Marilena. Espinosa: uma filosofia da liberdade. São Paulo: Editora Moderna, 2001. p.53 et. seq. 07

Ver: SPINOZA, op cit., 2007. p.97.

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A razão pela qual somos submetidos a servidão resulta de sermos uma parte finita da substância infinita08. Sendo assim, é impossível que não sejamos afetados pelo mundo à nossa volta. A realidade nos atravessa constantemente e é impossível que, dada sua infinita potência, ela não nos submeta de inúmeras formas. Sim, somos ínfimos, mas ainda somos uma parte da substância infinita. Estamos mergulhados na natureza, somos uma parte do todo. Entretanto, há um movimento atual de negação da cidade que age nesse sentido de rejeitar que somos parte do meio urbano e de um todo, esforçando-se em promover a privação dos afetos que intercambiamos em nossa relação com o meio. Priorizamos o transporte individual nos blindando em carros particulares, nos encastelamos em grandes muros de condomínios fechados e tentamos afastar os diferentes, segmentando, por classe social, os lugares de serviços e lazer. Entretanto, para o pensamento filosófico de Espinosa, todas essas são ações ilusórias. Nenhuma “bolha” é possível na medida em que somos parte do todo. Sendo a cidade lugar do qual formamos parte, lugar incessante de trocas de afetos, é impossível que não afetemos ou sejamos afetados em todos os momentos. Quando Espinosa nos apresenta a ideia de afetos ele não o faz de maneira a qualificá-los. Os afetos fazem parte da natureza humana, de modo que para entendermos devemos conhecê-los. Ao invés de avaliá-los positivamente ou negativamente, ele nos apresenta como afetos passivos e afetos ativos. Os passivos, também chamados de paixões, ocorrem quando somos dominados pela exterioridade, isto é, quando nosso corpo e mente são submetidos às forças externas. Isto é, o estado do corpo e da mente são uni08

Por substância infinita, Espinosa se refere à Deus.

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camente frutos das exterioridades. Ao contrário, os afetos ativos “advém da ação da mente e do corpo”09, portanto, nos tornamos causa dos nossos afetos. Nesse movimento de negação da cidade, não correspondemos ativamente perante os nossos afetos, somos dominados pelo meio e, assim, nossa capacidade de ação é diminuída. Quando somos afetados, sofremos uma alteração e, com isso, nossa potência de ação aumenta ou diminui. Aumentar nossa potência é expandir nosso território de ação no mundo e caminhar em direção a uma independência maior em relação ao ambiente – o que não significa diminuir as relações com a exterioridade, mas sim o contrário –, pois apenas quando somos a causa interna de nossos afetos aumentamos nossa potência de agir10.

Portanto, negando a cidade como lugar de trocas, estamos constantemente dominados por afetos passivos, diminuindo a possibilidade de nos colocarmos para além do devir que, por sua vez, ataca contra a nossa capacidade de sermos causa dos nossos afetos. Espinosa, em sua própria vida, tentou colocar-se além do devir, entendendo a filosofia mais pelos seus efeitos em relação ao que está fora dela que como um conteúdo ou teoria. Isto é, relacionando filosofia e vida. Nesse sentido, incidindo fortemente na religião, questionou os valores de seu tempo em uma época em que a Igreja não só permeava as discussões políticas e filosóficas, como regia toda a 09

BERTINI, Fátima. Afetos em Espinosa e a Cidade como Civitas, REVISTA CONATUS, Fortaleza, volume 9, número 18, p. 11-18, dez. 2015. p.13. 10

MARQUES, Mariana. Espinosa e Afetividade Humana. In: MARQUES, Mariana. Afeto e sensorialidade no pensamento de B. Espinosa, S. Freud e D. W. Winnicott. 2012. Dissertação (mestrado em Psicologia Clínica), Pontifícia Universidade Católica do Rio Janeiro, Rio de Janeiro, 2012. p. 16.

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vida social. Atacou a religião e, a partir dela, a superstição e o medo, características que, em seu entendimento, baseavam o pensamento religioso. Sendo filho judeu de portugueses que já haviam sido expulsos pela perseguição na península ibérica, foi, uma vez mais, condenado. Temendo o pior, viu-se obrigado a abandonar Amsterdã. Ainda assim, persistiu. Como nos mostra Marilena Chauí, Espinosa seguiu dedicando sua vida a localizar as causas da servidão em seu tempo e as causas dessas causas, encontrando-as em nós mesmos enquanto seres passionais. Investigou, a partir disso, o que poderíamos fazer para governar nossos afetos e desfazer esses lugares de servidão, “oferecendo sua própria filosofia como exemplo desse caminho libertador”11. Assim, todo o pensamento de Espinosa é a busca da liberdade através da ação, ou, como nos apresenta Chauí, um “convite a perder o medo de viver em ato”12. Entendendo isso, busco defender que, a exemplo de Espinosa, nós possamos subverter e ir para além do devir nesse momento de inflexão que estamos vivendo. Entendendo a atualidade do pensamento do filósofo, pensá-lo hoje consiste justamente nessa ideia de que não sejamos sujeitados a um devir do qual não detemos a verdade13. Espinosa, ao expor seus pensamentos, nos oferece ferramentas para pensar e é isso que o caracteriza enquanto um clássico. No modo como enfrenta as questões do seu tempo, nos ensina caminhos para interrogar o nosso próprio tempo em diversos recortes. Tudo cabe em Espinosa, em tese não há nada que não possa ser visto sob o ponto 11

CHAUÍ, op cit., 2001. p.82.

12

Ibidem, p.83.

13

NEGRI, op cit., 2017. p.15.

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de vista de seu pensamento, na medida em que constrói um pensamento integral, no qual trata o todo. Depois de muito tempo esquecido, Espinosa tem sido revisitado com uma forte conotação social e política, como acontece na trilogia de Antonio Negri e Michael Hardt14. Neste trabalho proponho que o seu pensamento, ao refletir em um agir coerente, se desdobre para as discussões sobre o viver hoje na cidade. Diversos autores contemporâneos nos atentam para a importância das cidades como objeto de estudo da vida social, tanto do ponto de vista de um sentido mais político e das relações de poder que lá se estabelecem, quanto, cada vez mais, naquilo que nos é mais tangível, que representa a configuração formal das cidades. Percebendo que a vida social está diretamente relacionada com as articulações físicas das nossas cidades. Nessa discussão sobre as cidades, Espinosa nos possibilita pensar e repensar a impotência de ação que marca nosso momento presente, dando-nos ferramentas para, através do entendimento de nossos afetos, aumentar nossa potência de agir. É a possibilidade de discutirmos novas maneiras de se pensar a participação cidadã na produção da cidade.

14

NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Império (2000); Multidão (2004); BemEstar Comum (2009).

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O racionalismo de Espinosa

O pensamento de Espinosa é em grande medida antagônico às ideias fortificadas por nossa formação social do ocidente das chamadas tradições judaico-cristãs. Razão pela qual, seu pensamento não faz parte de um senso comum. Em um primeiro momento suas ideias podem causar certo estranhamento, mas à medida que o contato vai se estreitando e os conceitos se inter-relacionando, sua filosofia vai nos envolvendo e apresentando sua lógica integral. Marilena Chauí classifica o pensamento de Espinosa como um racionalismo absoluto01, isso significa que para ele a realidade pode ser inteiramente inteligível pela razão humana, de modo que não há espaço para forças ocultas misteriosas. Decorre daí parte de um dos principais pontos de seu pensamento imanentista: a identificação de Deus à natureza. Se Deus é onipresente, não há como imaginá-lo fora do mundo. Ele não seria, portanto, uma força transcendente, mas sim imanente. Para Espinosa, Ele é o conjunto de todo o mundo natural, tudo o que se encontra nele, incluindo os homens, suas mentes e seus corpos. “A filosofia espinosana é a demolição do edifício filosófico-político erguido sobre o fundamento da transcendência de Deus, da Natureza e da Razão”02. 01

Ver: CHAUÍ, Marilena. Espinosa: uma filosofia da liberdade. São Paulo: Editora Moderna, 2001. p.34 et. seq. 02

Idem. Espinosa: uma subversão filosófica. Revista Cult, no109, março, 2010.

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Racionalismo absoluto significa, portanto, libertar-se das causas da ignorância para com isso libertar-se das causas do medo e da esperança e, ao fazê-lo, libertar-se de seus efeitos religiosos e políticos. Racionalismo absoluto é a confiança na capacidade libertadora da razão03.

Esse racionalismo é absoluto, portanto, na medida em que tem o propósito de explicar a totalidade, representada pela existência de Deus enquanto única substância, e eis a razão pela qual o caracterizam como monista. Isto é, Espinosa constrói um edifício do pensamento, tem a presunção de explicar o todo e assim o faz. É uma abordagem integral, que articula todos os conceitos dentro de um grande universo que se auto refere reiteradamente. “O método de escrita segue a ordem geométrica e tem sua última parte remetida à primeira como se formasse um círculo de pensamento, que se adere e se vincula às definições e proposições, sendo todas explicitamente demonstradas”04. Não tratarei de apresentar o seu pensamento enquanto essa totalidade, pelo menos não diretamente, dado que expondo as partes algo do todo poderá ser captado. Abordarei algumas ideias principais que fazem de sua obra algo fora do senso comum, algumas delas não possuem concepções facilmente dedutíveis, por isso é importante situar alguns desses conceitos para evitar confusões mais adiante. Justamente por esse motivo, tais conceitos foram muito mal recebidos à sua época, pois tensionavam tanto

03

CHAUÍ, op. cit. 2001. p.35.

04

OLIVEIRA, Nara. O conceito de natureza em Espinosa: contribuições para uma crítica ecológica mais efetiva. 2016. Dissertação (mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente), Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2016. p.56.

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os preceitos religiosos, quanto o processo de racionalização do mundo que começava a se articular na época. A filosofia de Espinosa se insere na formação do pensamento moderno, isto é, nesse processo de racionalização que mudou estruturalmente a vida social através do avanço das ciências, no qual as premissas não científicas foram paulatinamente sendo refreadas. Tal movimento é descrito por Max Weber como “desencantamento do mundo”. Espinosa, ao mesmo tempo que, de certa maneira, ajuda a construir esse edifício do pensamento moderno, como um dos precursores do racionalismo filosófico, traz importantes tensionamentos sobre as bases pelas quais os próprios ideais modernos se ampararam. Inclui, no seio da sua filosofia, conceitos aparentemente contrários entre si que conflituam com a construção desse processo chamado “desencantamento do mundo”. Propõe um diálogo incessante entre: pensamento e sentimento, objetividade e subjetividade e razão e paixão. Também por esse motivo, Espinosa foi um autor muito mal recebido em seu tempo, tendo sido pouco lido durante um longo período, até ser recuperado pela filosofia alemã e depois pela filosofia francesa já no século XX. Tamanha foi a perseguição sofrida por Espinosa, ao ponto de espinosismo haver sido convertido em insulto, que suas ideias foram, de certo modo, apagadas na construção do pensamento moderno. Ao longo desse processo de racionalização, iniciado ao redor do século XVI, prosperou uma visão de sociedade das máquinas perfeitas, da apoteose da técnica, das grandes invenções, da arte e das ciências, onde o homem, responsável por tantos avanços, foi elevado à condição de superhomem, que tudo pode, se aproximando ao papel de

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Deus. Isto é, um ser dotado de superpoderes, capaz de resolver todos os problemas da humanidade através da técnica. Nessa visão de sociedade não havia lugar para algumas das questões abordadas pela filosofia de Espinosa, tais como: a incorporação de um entendimento sistêmico do todo na relação de interdependência entre as partes; a forma que ele entende a relação mente-corpo e, a partir disso; a importância dos afetos para o conhecimento. Esses conceitos, de formas variadas, têm sido desvelados hoje em sua importância, aparecendo em teorias relevantes da atualidade. Entendo que recuperar Espinosa é recuperar esses conceitos e as ferramentas que eles nos trazem para pensar a nossa ação no mundo de hoje. O primeiro desses conceitos é o que poderíamos chamar de uma visão sistêmica na articulação do pensamento. O filósofo compreende a importância do todo nas partes e das partes no todo, isto é, conhecer a totalidade sem negligenciar as partes que a integram mutuamente. O racionalismo de Espinosa, ao contrário de como frequentemente essa linha do pensamento se desenvolveu, principalmente no campo científico, não é mecanicista, nem reducionista. Ao longo do processo de racionalização do mundo que comentávamos, o paradigma reducionista ou cartesiano, como gostam de nomear alguns autores, se expandiu, sendo entendido como a “tendência a admitir que qualquer corpo (ou fenômeno) poderá ser sempre dividido em unidades menores, as quais deverão ser examinadas isoladamente”05. Esse método não reconhece que algo se perde quando dissociamos o todo em partes e as estudamos isoladamente. Isso ocorre a despeito da filosofia 05

Ver: BRANCO, Samuel. M. Ecossistêmica: uma abordagem integrada dos problemas do meio ambiente. São Paulo: Edgard Blucher, 1989. p.17.

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espinosana, que já apontava para questões que colocavam em xeque o paradigma reducionista e acenavam para um pensamento integral, sistêmico ou, até mesmo, complexo. Tal conceito será explorado no próximo subcapítulo, “O lugar do Homem na Cidade”, abordando a figura humana e sua relação com o meio do qual faz parte. Será discutida, então, a ideia do homem não mais como animal racional e dotado de livre-arbítrio, mas como mais um submetido às leis do todo, a Natureza. Resgatando, dessa maneira, o entendimento do homem em interação ininterrupta com o meio do qual faz parte, através de trocas incessantes de afetos. O segundo dos conceitos que é também um dos insights que fazem parte de teorias importantes da atualidade e que já se encontravam, de alguma maneira, presentes em Espinosa, diz respeito à relação mente-corpo. Para ele não é possível conceber qualquer separação entre corpo e alma, matéria e mente. “Nem o corpo pode determinar a mente a pensar, nem a mente determinar o corpo ao movimento ou ao repouso, ou a qualquer outro estado (se é que isso existe)”06. Espinosa reaviva o corpo, propondo um novo modelo que o considera objeto de análise. Até então, o corpo era visto, muitas vezes, como elemento impuro ou até mesmo incapaz de ser analisado. Em outras palavras, a mente não é melhor que o corpo, o espírito não é mais puro que o corpo e não há um domínio do corpo pela razão. Essa discussão estará presente no subcapítulo “O Corpo de Espinosa na cidade”, na qual buscaremos chegar na ideia de como as interações corpóreas e a materialidade urbana são importantes para o viver nas cidades.

06

SPINOZA, Benedictus. ÉTICA. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007. p.100.

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O terceiro e último dos conceitos é o afeto, um dos temas mais importantes da filosofia espinosana. Até sua época, os afetos, as paixões, eram consideradas empecilhos para o exercício da razão. Entretanto, para Espinosa, “é fundamental conhecer os efeitos dos afetos em nós”07. Somente entendendo o que nos afeta e como nos afeta é que podemos cultivar a nossa alegria, aumentando nossa potência de existir e agir no mundo. O exercício intelectual que Espinosa nos propõe, incorpora, de maneira substancial, a relação entre conhecimento e alegria. O conhecimento, para ele, é o mais potente dos afetos. Essas ideias serão desenvolvidas no subcapítulo “Por uma cidade afetiva”, explicitando a cidade enquanto lugar de trocas, onde a ausência de afetos é inconcebível. Espinosa tem sido recuperado em diversas áreas do conhecimento. É sabido, por exemplo, que algumas das intuições do autor sobre a atividade da mente humana foram de certa maneira ratificadas pelos estudos atuais no campo da Neurociência08. Autores contemporâneos também têm recuperado seus conceitos, como Morin, que, assim como Espinosa, propõe a compreensão da totalidade em relação com as partes que a formam e nos dá, com seus ensinamentos, ferramentas com as quais podemos lidar melhor com a complexidade do mundo09. Outros autores, como Antonio Negri e Michael Hardt, resgatam as ideias espinosanas, entendendo os afetos com um vigor substancialmente ético-político. Nesse sentido, as trocas afetivas são fundamentais para a construção de uma coletividade que 07

GIACOIA, Oswaldo. O poder dos afetos. Palestra proferida no programa Café Filosófico, Campinas, jul. 2018. 08

Ver: DAMÁSIO, António. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 09

Ver: MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: RS Sulina, 2015.

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parte para a ação. No último subcapítulo desta parte, “Por uma cidade alegre da ação”, aprofundarei a discussão recuperada por Negri e Hardt, olhando para a relação do conhecimento com a alegria e concebendo a terapia da mente de Espinosa como essencialmente política. Todos esses conceitos até aqui apresentados estão ligados à ideia de homem que Espinosa constrói e sua relação com o meio que o cerca, a natureza, ou a partir de uma releitura pessoal, de onde nos compete viver a maior parte dos homens: as cidades.

34 • De Espinosa à cidade • O racionalismo de Espinosa


O lugar do homem na cidade

Os que escreveram sobre os afetos e o modo de vida dos homens parecem, em sua maioria, ter tratado não de coisas naturais, que seguem as leis comuns da natureza, mas de coisas que estão fora dela. Ou melhor, parecem conceber o homem na natureza como um império num império. Pois acreditam que, em vez de seguir a ordem da natureza, o homem a perturba, que ele tem uma potência absoluta sobre suas próprias ações, e que não é determinado por nada mais além de si próprio01.

Espinosa começa a terceira parte de sua Ética colocando a questão do lugar do homem na natureza. Isto é, contesta se nós estamos fora de uma ordem natural, sendo capazes de perturbá-la ao invés de segui-la e, ainda, se temos sobre nossas ações um poder absoluto capaz de refrear os nossos desejos. Desde um ponto de vista da cultura ocidental, o homem sempre foi colocado em uma posição de domínio da natureza. Entretanto, a filosofia de Espinosa será contrária a esse pensamento predominante que enxerga o homem como um império dentro de um império. O pensamento espinosano, segundo o professor Claudio Ulpiano, ao romper com essas concepções tradicionais, o faz baseado em duas grandes vertentes estruturantes: a 01

SPINOZA, Benedictus. ÉTICA. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. p. 97.

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visão que apresenta de Deus e da natureza humana02. Em sua noção de Deus, ele ataca a teologia tradicional, contradizendo a idealização de um Deus transcendente, criador, que está além da natureza. A filosofia de Espinosa entende Deus enquanto imanente, produtor e o identifica à Natureza: “Deus sive Natura”03. Deus, portanto, é entendido como a própria natureza. Para Espinosa, tudo possui uma determinação causal e pode ser compreendido à luz da razão. Afastar as imagens antropomórficas e antropocêntricas da divindade, que aparecem, por exemplo, na clássica passagem bíblica “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança”04, é afirmar que Deus “não é um poder monárquico e legislativo, uma vontade soberana que comanda e julga as ações humanas”05. Mas, sim, causa imanente da existência, o todo. Por outro lado, ao tratar da natureza humana, a segunda vertente estruturante apontada por Ulpiano, demonstra que nós somos parte do todo, da natureza, e, ainda, uma parte menor dentro dela. Por essa razão, sabendo que o mundo é muito superior a nós06, é preciso aprender a lidar com nossa condição menor e com a complexidade do mundo que nos atinge. Algo em comum com o que nos aponta Edgar Morin ao tratar sobre o enfrentamento das 02

ULPIANO, Claudio. Pensamento e liberdade em Spinoza. Palestra proferida na Fundação Planetário da Cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1988. 03

Clássica expressão em latim escrita por Espinosa que significa: Deus, ou seja, a natureza. 04

Outra passagem bíblica que apresenta a superioridade humana em relação à natureza é aquela que diz “Domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu...”, colocando o homem em posição de domínio. 05

CHAUÍ, Marilena. Desejo, paixão e ação na ética de Espinosa. São Paulo: Cia das Letras, 2011. p. 69. 06

“A força pela qual o homem persevera no existir é limitada e é superada, infinitamente, pela potência das causas exteriores”. (E, IV, P3).

36 • De Espinosa à cidade • O lugar do homen na cidade


incertezas do mundo07. Com isso, entende-se que somos confrontados por forças externas, e, desta maneira, há de se aprender com o constrangimento que elas nos causam. Isso significa também dizer que não temos o poder de dominar a natureza ou nossos desejos. Todos os seres que existem são dotados de ação e paixão, sendo constrangidos pelos afetos. Isso rompe com a visão de um homem racional, dotado de livre-arbítrio. Contrariamente ao que imaginara, até então, a tradição do pensamento, Espinosa defende que o homem não é uma substância composta de duas outras (corpo e alma), no qual a razão controla as emoções, mas sim um modo singular finito da Substância única (Deus). Isto é, o homem seria efeito imanente da atividade dos atributos substanciais. Portanto, o homem não é perturbador da ordem natural, mas uma parte dela tanto nos seus acertos, quanto nos erros. É “uma potência natural capaz de tomar parte na atividade infinita da Natureza”08. Segundo Espinosa, é sábio, então, aquele que entende que há de tomar parte, entendendo que a presença de Deus está dentro de si. Dessa forma, Espinosa se aproxima de um dos princípios usados por Morin para pensar a complexidade: o hologramático09. Demonstrando que não apenas a parte está no todo, como o todo também está na parte. O todo para Espinosa, conforme apresentado, é a natureza, ou, pode-se entender, o meio no qual todas as coisas existem e acontecem. Assim, neste trabalho, propõe-se 07

Ver: MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: RS Sulina, 2015. 08

CHAUÍ, op. cit. 2001. p. 70.

09

Ver: MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: RS Sulina, 2015. p.74-75.

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uma transposição da relação do homem com a natureza, evidenciada por Espinosa, para a relação do homem com a cidade, entendendo a cidade como o meio no qual estamos, em nossa maioria, inseridos. Há uma questão de falta de reconhecimento do homem como parte do meio em que vive. Não nos entendemos como parte da natureza ou, pensando a possibilidade da transposição, que também conformamos a cidade. E, sendo o mundo cada vez mais urbano, como mostram as projeções, o nosso meio vem tornando-se, majoritariamente, a cidade. Nesse cenário, a natureza torna-se, em certa medida, urbana. Assim, embora pareçam antônimos, enxergamos a nossa relação com a natureza e com a cidade de maneira muito parecida. Temos enxergado e tratado ambas, natureza e cidade, como se estivessem meramente a nosso serviço e dispor. Na concepção das civilizações orientais, por exemplo, essa relação se dá de maneira bastante diferente10 e os homens enxergam-se enquanto semelhantes aos demais elementos da natureza11. A cultura ocidental, por outro lado, foi construindo, ao longo dos séculos, a ideia de que a natureza nos pertence, de que é nossa propriedade. Inicialmente, entendia-se a natureza como “coisa de ninguém”12, e, assim, era explorada de maneira ilimitada. Com a percepção da escassez dos recursos, revelada pelo processo industrial e a consolidação do capitalismo, passou10

Ver: BRANCO, Samuel. M. Ecossistêmica: uma abordagem integrada dos problemas do meio ambiente. São Paulo: Edgard Blucher, 1989. p. 170. 11

Exemplo disso são os quadros chineses milenares, nos quais se o homem está presente é em igualdade de condições, ou em segundo plano, com outros elementos, animais e vegetais que os compõem. 12

GERENT, Juliana. A relação Homem-Natureza e suas Interfaces. In: Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 11(20): 23-46, jan-jun. 2011.

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-se a entendê-los como propriedade de todos os homens e que, devido a uma necessidade de sobrevivência própria, deveriam ser preservados. Dessa forma, evidenciou-se ainda mais o caráter antropocêntrico da relação do homem com a natureza, na qual o primeiro se coloca enquanto prioridade em relação ao segundo, que passou a ser visto como primordial à existência humana. A proteção à natureza é dada como lei, como um pacto entre os homens, e em nada relaciona-se ao entendimento do homem enquanto parte deste meio. Estabelece-se, portanto, uma relação de dominação entre soberano e objeto. Nesse sentido, buscando a transposição dessas ideias ao meio urbano, nossa relação com a cidade aproxima-se muito de nossa relação com a natureza no sentido de enxergá-las enquanto espaços que estão a nosso serviço. Apenas usufruímos de seus recursos sem nos perceber enquanto parte delas. Entretanto, em minha leitura, em nossa relação com as cidades, estamos ainda mais atrasados: é comum o entendimento do espaço público como espaço de ninguém. Não fomos capazes, ainda, de entender a cidade enquanto espaço de todos, quanto mais nos aproximar da noção de que também conformamos a cidade e somos parte dela, podendo construí-la e reconstruí-la continuamente, entendendo nosso lugar nesse meio urbano que funciona de maneira integrada. Essa visão integrada também não aparece do ponto de vista das políticas públicas urbanas. Os problemas da cidade ainda são tratados de forma fragmentada, acirrando as disfunções socioambientais, que têm como respostas, em sua grande maioria, políticas públicas setoriais desarticuladas que tratam as partes desses problemas separada-

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mente. E, ainda, em muitos dos casos, atacam sintomas ao invés de atingir as causas. Nosso contexto é tão neurótico que nossas políticas setoriais não dão conta nem de si mesmas. Grande parte das políticas habitacionais criam anti-cidades; políticas de mobilidade causam congestionamento e as de segurança, insegurança. É fundamental que entendamos a cidade em sua complexidade, ou seja, que para os problemas complexos que ela nos apresenta, possamos dar as respostas complexas que eles exigem. Tanto a falta de percepção da complexidade da cidade quanto a relação de usufruto estabelecida com ela se dão por não sermos capazes de perceber que formamos parte dela. Portanto, voltando a crítica de Espinosa à relação homem-natureza, parece que ainda seguimos a lógica clássica de entender os homens enquanto um império num império. Para Espinosa a liberdade é alcançada na medida em que nos aproximamos da ordem da natureza, “a autodeterminação do agente em conformidade com sua essência”13. Desta maneira, nessa falsa posição de superioridade que nos designamos, não seríamos capazes de alcançar a liberdade. Liberdade para Espinosa nada tem a ver com o conceito de livre-arbítrio, para ele o homem é livre “pois é uma parte da Natureza, e tem em si a capacidade de ação própria”14. Isto é, não temos o poder absoluto de adaptar as coisas exteriores ao nosso uso, mas podemos conhecer a ordem da natureza e estar de acordo com ela. A liberdade, para Espinosa, é o conhecimento da ordem da natureza. A na13

CHAUÍ, op. cit, 2011. p. 69.

14

OLIVEIRA, Nara. O conceito de natureza em Espinosa: contribuições para uma crítica ecológica mais efetiva. 2016. Dissertação (mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente), Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2016. p. 54.

40 • De Espinosa à cidade • O lugar do homen na cidade


tureza, portanto, não é nem nossa subordinada nem nosso mestre, mas, sim, nossa aliada. Nós aprendemos com Espinosa que fazendo alianças com a Natureza a nossa vida vai se engrandecer. Ou seja, a filosofia se torna uma ética: uma ética do conhecimento que se contrapõe diretamente a uma moral da obediência.15 Podemos trazer essa concepção da ética do conhecimento espinosano ao campo da cidade. Os instrumentos urbanos tradicionais são, na maioria, concebidos enquanto figura jurídica negativa, que pregam a obediência. Para alcançar a ética do conhecimento, propõe-se aqui o surgimento de ferramentas urbanas propositivas, para além das tradicionais. Que consigamos colocar no planejamento da cidade elementos mais propositivos que normativos, entendendo que o cidadão não é aquele que obedece às leis, mas aquele que constrói e modifica a cidade. Assim como nos sugere Espinosa em relação à natureza, que nós também possamos entender a cidade como nossa aliada, promovendo, dessa forma, a ampliação do território afetivo das pessoas.

15

Para Espinosa, a moral seria uma soma de normas que se identificam com as noções de lei e de julgamento. Enquanto a ética seria uma indicação de conduta imanente, relativa a uma concepção qualitativa das formas de viver, intrinsecamente ligada à experiência pessoal.

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O corpo de Espinosa na cidade

A enorme rejeição que Espinosa sofreu ao longo da história se deve, entre outras coisas, à sua interpretação sobre o corpo. Diante tanto da tradição judaico-cristã, como do paradigma cartesiano, a inovação espinosana sobre a compreensão do corpo é admirável. Como nos apresenta Gilles Deleuze, Espinosa propõe um novo modelo que traz o corpo como objeto de análise01. Até então o corpo era visto, muitas vezes, como elemento impuro que deveria estar submetido ao domínio da mente ou, até mesmo, incapaz de ser analisado. “O fato é que ninguém determinou, até agora, o que pode o corpo, isto é, a experiência a ninguém ensinou, até agora, o que o corpo exclusivamente pelas leis da natureza enquanto considerada apenas corporalmente, sem que seja determinado pela mente - pode e o que não pode fazer”02. Ele entende que não é possível pensar mente e corpo nem de forma hierárquica, nem separadamente. Critica o dualismo cartesiano de seu contemporâneo Descartes03, segundo o qual corpo e mente são duas substâncias distintas, demonstrando, ao contrário, o paralelismo que existe entre mente e corpo, devido ao fato de serem dois modos de uma única subs01

DELEUZE, G. Espinosa - Filosofia Prática. 2002, p. 23.

02

SPINOZA, Benedictus. ÉTICA. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. p.101. 03

Ver: DAMÁSIO, António. O erro de Descartes. São Paulo: Cia das Letras. 2012.

42 • De Espinosa à cidade • O corpo de Espinosa na cidade


tância. O neurologista António Damásio, em seu livro, no qual demonstra as proximidades do pensamento de Espinosa com as teorias mais avançadas da neurociência, vai comentar a inovação do filósofo sobre a questão mente-corpo: Se a minha interpretação das afirmações de Espinosa estiver correta, julgo que Espinosa vislumbrou qualquer coisa de revolucionário para o seu tempo. Mas se assim foi, o vislumbre espinosiano não teve nenhum impacto na ciência. A árvore caiu silenciosamente na floresta, e ninguém a viu nem ouviu. Quer seja vista como vislumbre espinosiano ou como um fato independente, a implicação teórica dessas idéias está longe de ser digerida04.

A mente é a ideia do corpo, isto significa que uma mente passiva corresponde um corpo passivo, bem como, uma mente ativa corresponde um corpo ativo. “Pela primeira vez na história da filosofia, a mente humana deixa de ser concebida como uma substância anímica independente, uma alma meramente alojada no corpo para guiá-lo, dirigi-lo e dominá-lo”05. O corpo, na filosofia de Espinosa, não é alojamento da mente, nem subjugado a ela, mas modo singular autônomo e potente. Por essa razão assume lugar de destaque na interpretação da natureza humana de Espinosa. Toda sua filosofia advém da teoria dos afetos, os quais chegam através de afecções no corpo. “Um corpo afeta 04

Idem. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 230. 05

CHAUÍ, Marilena. Espinosa: poder e liberdade. In: Filosofia política moderna. De Hobbes a Marx Boron, Atilio A. CLACSO, Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais; DCP-FFLCH, Departamento de Ciências Políticas, Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, USP, Universidade de São Paulo. 2006. p. 121.

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outros corpos, ou é afetado por outros corpos: é este poder de afetar e de ser afetado que também define um corpo na sua individualidade”06. Nossos corpos se afetam a todo momento pelas coisas que nos cercam, mas também tem a capacidade de afetar o que está à sua volta. Ou seja, o corpo é o ponto de partida desse desencadeamento da rede de afetos. O corpo é uma entidade capaz de ser afetada de múltiplos modos; afetado por outros corpos, por ideias, por encontros entre ele próprio e os outros corpos e outras ideias. Além disso, enquanto o nosso corpo possui uma capacidade infinita de sofrer afecções, a nossa alma possui uma capacidade igualmente ilimitada de formar ideias das afecções do nosso corpo. Como o nosso corpo se define, portanto, como um poder de ser afetado, quanto maior é a sua capacidade de afecção, maior é a sua potência. A constituição do nosso conhecimento não somente não elimina o corpo e as afecções corporais como a exige e mais ainda, exige a mediação necessária do corpo para a formação do conhecimento. Espinosa é um pensador dos corpos07. Ele nos apresenta um corpo singular, mas também coletivo no sentido em que precisa de outros corpos, os quais precisam dele: são interdependentes. “Um corpo humano é tanto mais forte, mais potente, mais apto à conservação, à regeneração e à transformação, quanto mais ricas e complexas forem suas relações com outros corpos, isto é, quanto mais amplo e complexo for o sistema das afecções corporais”08. Deleuze 06

DELEUZE, op. cit., 2002, p. 128.

07

Ver: ULPIANO, Claudio. Pensamento e liberdade em Spinoza. Palestra proferida na Fundação Planetário da Cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1988. 08

CHAUÍ,op. cit., 2006, p. 120-121.

44 • De Espinosa à cidade • O corpo de Espinosa na cidade


nos mostra que o conceito de corpo é vasto e pode se configurar de variadas formas. “Um corpo pode ser qualquer coisa, pode ser um animal, pode ser um corpo sonoro, pode ser uma alma ou uma ideia, pode ser um corpus linguístico, pode ser um corpo social, uma coletividade”09. Para que o corpo coletivo nas cidades floresça, é preciso cultivar e fortalecer os laços dos cidadãos com a materialidade das cidades. Enxergamos, com a pandemia do novo coronavírus e o decorrente isolamento social, que o que mais nos fez falta foi o contato com os demais corpos, bem como com a cidade naquilo que ela tem de mais tangível, seus elementos que a formam, seus espaços e suas pessoas. Por mais que tenhamos diversas novas ferramentas que nos possibilitam, através de experiências virtuais, prosseguir com nossas atividades acadêmicas, profissionais ou até mesmo sociais, me parece clara a importância dos nossos locais de encontros físicos na cidade. São nesses espaços que a vida afetiva realmente acontece, espaços esses que se configuram como nossos territórios afetivos pessoais e nos possibilitam o aumento da nossa potência de agir. É útil ao homem aquilo que dispõe o seu corpo a poder ser afetado de muitas maneiras, ou que o torna capaz de afetar de muitas maneiras os corpos exteriores; e é tanto mais útil quanto mais torna o corpo humano capaz de ser afetado e de afetar os outros corpos de muitas maneiras. E, inversamente, é nocivo aquilo que torna o corpo menos capaz disso.10

09

DELEUZE, op. cit., 2002, p.132.

10

SPINOZA, op. cit., 2009. p.182.

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Então, a vida de cada um de nós se explica pelos encontros que cada um de nós fazemos, encontros que trazem composição e aumento de forças e encontros que decompõe. Isso seria a nossa existência. Ou seja, para Espinosa, toda a questão da vida se explica por encontros afetivos. Encontros afetivos implica em dizer que cada um de nós geraria para a sua própria vida os territórios afetivos. A nossa vida passaria, portanto, pelos territórios que nós construiríamos. A cidade é o lugar onde o corpo expressa sua condição dinâmica, onde sua prática temporal é exercida, e intercorpórea, manifestada na sua relação com todas as demais materialidades do meio que o cerca. Isto é, a cidade como estrutura temporal e espacial da experiência corpórea. Apesar disso, do ponto de vista do planejamento, a cidade enquanto materialidade tem sido em grande medida esquecida. O antropólogo Antônio Risério, na série documental “A cidade no Brasil”, baseada em seu livro homônimo, comenta sobre uma diferenciação elementar que os gregos faziam para designar a cidade. Além de pólis, que remete à cidade em sua concepção mais política, de relação poderes, existe também a ásty, que trata da cidade em seu aspecto físico, na sua materialidade urbanística e arquitetônica11. No campo do planejamento urbano, a ásty tem sido renegada em função de um foco excessivo na pólis. Como nos alerta Risério, “a discussão ambiental acontece na polis, mas é na ásty que pode acontecer a realização objetiva de um projeto de cidade que respeite as pessoas e a natureza”12. Nesse sentido, Milton Santos também ressalta a importância da materialidade urbana. A cidade é feita de espacialida11

A cidade no Brasil. Direção de Isa Grinspum Ferraz. São Paulo: SESC TV, 2018. 12

A cidade no Brasil. op cit., 2018.

46 • De Espinosa à cidade • O corpo de Espinosa na cidade


de, não só de leis13. Portanto, a pólis não basta como forma de entender a cidade. Por esse ponto de vista, segundo Ermínia Maricato14, mesmo que tenha havido, desde o final do século XX, grande avanço no que se refere aos instrumentos de políticas públicas urbanas, notamos agora que eles não foram capazes de assegurar a urbanização socializadora e democrática esperada, revelando dificuldade no âmbito das ideias e soluções. Isto é, os nossos instrumentos urbanos normatizados em leis, embora tragam propostas acertadas, ainda tem dificuldade de aplicabilidade na cidade. Nesse sentido, resgatar a particularidade da prática profissional da arquitetura e do urbanismo de permitir uma materialização formal, pode apresentar-se enquanto alternativa interessante de diálogo entre pólis e ásty. A arquitetura é uma disciplina que se realiza na sua concretude material. Diferentemente das outras ciências humanas, acontece realmente quando da sua formalização. Isso me faz pensar, ou pelo menos gostaria, que é possível acreditar em um potencial transformador do espaço na experiência corpórea no meio com o qual nos relacionamos. A filosofia de Espinosa, em conjunto com novas formas colaborativas da prática arquitetônica e urbanística, pode nos trazer pistas de como favorecer a melhoria da ásty em busca desse equilíbrio com a pólis. No lugar de insistir no incremento de uma obediência moral representada pela legislação urbana, seria interessante pensar no estabelecimento de uma rede vivencial de territórios afetivos de corpos e mentes ativas na cidade. E é na ásty que a realização formal desses territórios afetivos pode se efetivar. 13

Ver: SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987.

14

MARICATO, Erminia. Metrópoles desgovernadas. Estudos avançados, São Paulo, v. 25, n. 71, pág. 7-22, abril de 2011.

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Por uma cidade afetiva

A construção do pensamento de Espinosa possui um elemento central que o distingue consideravelmente em relação aos demais filósofos. Trata-se da noção de afeto. Para Espinosa os afetos são um ponto chave para a dinâmica da vida social e possuem uma condição de ambivalência: podem tanto nos induzir a servidão, quando estamos, a eles, submetidos, como também podem nos induzir a liberdade, possibilitando a transformação. “Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as idéias dessas afecções”01. Nas nossas vidas nas cidades, nossos corpos estão constantemente sendo afetados pelos outros corpos com os quais nos encontramos02. Entretanto, uma vez que a mente é ideia do corpo e também, ideia dessa ideia, ela concebe ideias desses afetos corporais. De tal modo que “a relação originária da mente com seu corpo e de ambos com o mundo é a relação afetiva”03.

01

ESPINOSA, Baruch. ÉTICA. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. p.98. 02

Uma ironia é que a ideia de afeto, em geral, quando aplicada às cidades é usada para descrever processos destrutivos. Como, por exemplo, em: as cidades mais afetadas pela pandemia, as chuvas que afetaram a cidade de São Paulo, a população afetada pelas enchentes etc. 03

CHAUÍ, Marilena. Desejo, paixão e ação na ética de Espinosa. São Paulo: Cia das Letras, 2011. p. 85).

48 • De Espinosa à cidade • Por uma cidade afetiva


A teoria dos afetos de Espinosa, como nos apresentam alguns autores, vai demonstrar que, além da evidente aproximação com a paixão, o afeto também tem potencial transformador que nos induz à ação. Não existe, em seu pensamento, a oposição clássica entre o que poderíamos chamar de razão e emoção. De modo que tampouco há julgamento: como a afetividade pertence à natureza humana, não se deve fazer dela nenhum juízo de valor moral. Não há oposição entre bem e mal em relação aos afetos. Isto é, os afetos não são necessariamente bons ou maus, mas sim, como vai nos mostrar Espinosa na terceira parte da Ética, ativos ou passivos. À vista disso e compreendendo a cidade como o lugar de encontros afetivos por excelência, nos resta saber que tipo de afetos, ativos ou passivos, nós estamos favorecendo em nossas cidades. Que tipo de encontros nós vivenciamos com os demais corpos da cidade, se são, como nos apresenta Deleuze, bons encontros que aumentam a nossa capacidade de agir e somos, portanto, ativos ou maus encontros que diminuem nossa capacidade de agir e somos, portanto, passivos04. O bom encontro é aquele em que nos conectamos ativamente a um corpo, em outras palavras, é aquele no qual um corpo se combina com o nosso, que tem atributos que se compõe com os nossos. Deparar-se ocasionalmente com um grande amigo, a sombra de uma árvore em um dia de calor ou ouvir na rua uma música da qual gosta muito, os bons encontros são momentos em que nos descobrimos mais próximos da cidade e de nós mesmos, onde nossa capacidade de afetar e ser afetado se amplia.

04

Ver: DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta. 2002.

49


Em contrapartida, o mau encontro é aquele que nos leva para um estado menor de potência. Estar preso em um congestionamento, não ter onde abrigar-se durante a chuva ou torcer o pé em um buraco na calçada, os maus encontros são momentos em que nos afastamos da cidade e de nós mesmos, nos limitam, constrangem e fecham as nossas possibilidades de interação com a cidade. Todas as metrópoles contemporâneas são ‘patológicas’ no sentido de que suas hierarquias e divisões corrompem o comum e bloqueiam os encontros benéficos através de racismos institucionalizados, segregações entre ricos e pobres e várias outras estruturas de exclusão e subordinação. (...) E a patologia é que ela não só impede encontros positivos como bombardeia encontros negativos05.

Os encontros que grandes cidades, como São Paulo, nos possibilitam hoje são, em sua maioria, maus encontros. Uma cidade de muros06 que desagrega e limita nossas possibilidades afetivas. Sua paisagem urbana nos constrange constantemente com barreiras físicas e simbólicas, estabelecendo ilhas sociais que são legitimadas, especialmente pelas classes mais altas, através do discurso da violência e do medo. Invariavelmente, vem acompanhado por, como nos mostra Caldeira, “preocupações raciais e étnicas, preconceitos de classe e referências negativas ao pobres e marginalizados”07. Já dizia Espinosa, “A que ponto o medo ensandece os homens! O medo é a causa que origina, conserva e alimenta a superstição”08. 05

NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Bem-estar Comum. Rio de Janeiro: Record, 2016. p.285. 06

Ver: CALDEIRA, Teresa. Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34/Edusp, 2000. 07

Ibidem, p.9.

08

ESPINOSA, Baruch. Tratado Teológico-Político. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 6.

50 • De Espinosa à cidade • Por uma cidade afetiva


Em decorrência do discurso da violência e do medo, nossas cidades têm conformado contextos de segregação cada vez mais intensos. Essa organização da cidade nos coloca em um lugar de constrangimento cotidiano. Como não possibilita interações de composição conosco, nossas ações acabam sendo, em sua maioria, reativas àquilo que a cidade nos impõe. Logo, uma cidade que não nos convida a compor com ela, mas nos limita e se reproduz a partir da lógica das restrições. Os espaços da cidade se tornam estranhos, quando não correspondem à dinâmica histórica-política ou à dimensão afetiva das pessoas na vivência do espaço urbano (...) devido a orientação adotada de uma lógica da racionalidade técnico-científica ou econômica, externa à realidade dos cidadãos09.

Os espaços da cidade, então, reduzem as possibilidades de atividades, permanências e encontros entre as pessoas, diminuindo o nosso campo afetivo com o qual nós interagimos com ela. As ações pelas quais a cidade se transforma, diante de uma tentativa de privação dos afetos, são realizadas por forças externas à população. Como a cidade se reproduz a partir de uma lógica que é externa aos cidadãos, não nos vemos como causa dos afetos gerados na interação com os demais corpos urbanos, de modo que geramos apenas afetos passivos, depositando em outrem as causas dos nossos afetos. Essa pode ser uma das razões pela qual espaços públicos recém inaugurados sejam, tantas vezes, mal recebidos pela população e acabem se deteriorando rapidamente ou simplesmente não sejam utilizados, transformando-se em grandes espaços vazios. “Agimos quando somos causa interna dos efeitos que produzimos dentro e 09

BERTINI, Fátima. Afetos em Espinosa e a Cidade como Civitas, Revista Conatus, Fortaleza, volume 9, número 18, p. 11-18, dez. 2015. p.14.

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fora de nós, da mesma forma que padecemos quando a causa dos efeitos que produzimos nos é exterior”10. Precisamos reavivar o potencial catalisador da cidade de provocar o encontro, a troca e o convívio mútuo entre corpos. Através dos afetos ativos as pessoas tomam parte da cidade e se estabelecem de fato enquanto cidadania. É preciso criar novas configurações de cidade que incentivem o aparecimento de bons encontros. Criar espaços que os possibilitam, geraria o aumento da potência de agir individual, mas também, sobretudo, coletiva. “Com efeito, se, por exemplo, dois indivíduos de natureza inteiramente igual se juntam, eles compõem um indivíduo duas vezes mais potente do que cada um deles considerado separadamente. Portanto, nada é mais útil ao homem do que o próprio homem”11. A cidade, entendida como um coletivo formado pela associação de corpos individuais, pode tender a uma maior servidão ou a uma maior liberdade, a depender da sua potência de pensar comum. Ou seja, a capacidade de que as reflexões e discussões do coletivo se convertam em ações efetivas. Isso só se torna possível se a comunidade não delega a uma figura exterior à realidade local as decisões dos temas que acometem essa comunidade e toma para si, enquanto coletividade, o poder transformador de seus espaços. A criação de um ambiente construído sustentável depende das relações de afetividade entre as pessoas e entre as pessoas e o lugar em que elas habitam. Possibilitar um 10

MARQUES, Mariana. Espinosa e Afetividade Humana. In: MARQUES, Mariana. Afeto e sensorialidade no pensamento de B. Espinosa, S. Freud e D. W. Winnicott. 2012. Dissertação (mestrado em Psicologia Clínica), Pontifícia Universidade Católica do Rio Janeiro, Rio de Janeiro, 2012. p. 14. 11

ESPINOSA, Baruch. ÉTICA. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. p.169.

52 • De Espinosa à cidade • Por uma cidade afetiva


lugar que afete e permita ser afetado é essencial. “Sem conexão humana a um espaço ou a uma cidade, os melhores esforços para criar ambientes saudáveis não serão bem-sucedidos”12. A cidade pode possibilitar condições de bons afetos na medida em que fortalece meios para que o homem possa tomar parte dela. Espinosa, na sua contraposição dos afetos passivos e ativos, nos mostra a importância de nós mais do que entendermos que somos parte, tomarmos parte. Ou, para usar uma palavra em alta, apropriar-nos da cidade. Incorporar, portanto, dentro do planejamento, maneiras pelas quais as pessoas possam contribuir com esse processo de construção permanente de nossas cidades, seria um passo fundamental para a construção de uma cidadania ativa. Uma cidade afetiva é aquela que nos convida a compor com ela nas mais variadas formas de interações possíveis, é aquela que permite a ampliação das vivências afetivas entre todos os corpos que a formam. Onde nossa imaginação, nossas sensações e afecções são expandidas e, assim, ampliamos consideravelmente nossa capacidade de ação. Dessa maneira, sendo agentes ativos nessa trama afetiva que forma a cidade, é mais fácil que conheçamos os efeitos desses afetos em nós, o que nos afeta e como nos afeta. De modo que possamos minimizar os maus encontros e maximizar os encontros alegres na cidade. Ou ainda, segundo Negri e Hardt sobre o pensamento de Espinosa: “A alegria é na realidade resultado de encontros alegres com outros, encontros que aumentam nossos poderes, e da instituição desses encontros de tal maneira que perdurem e se repitam”13. 12

SCHWARTZ, Martha. In: MOSTAFAVI, M.; DOHERTY, G. (Org.). Urbanismo Ecológico. Barcelona: Gustavo Gilli, 2014. p.525. 13

NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Bem-estar Comum. Rio de Janeiro: Record, 2016. p.415.

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Por uma cidade alegre da ação

Outro ponto crucial do pensamento de Espinosa é o conatus. Para ele, “cada coisa esforça-se, tanto quanto está em si, por perseverar em seu ser”01. A esse esforço de perseverar em seu ser, ele dá o nome de conatus. Na mente, o conatus recebe o nome de desejo, enquanto no corpo, apetite. Assim como a noção de corpo e de afeto, e também em decorrência deles, esse conceito foi trabalhado por Espinosa em discordância a uma concepção tradicional. Sobretudo aquela ligada ao cristianismo que associa o desejo a uma carência de algo, isto é, uma sequela da imperfeição humana. De maneira oposta, para Espinosa, o conatus é a “própria essência do homem”02. Essa potência de agir que temos, conatus, pode variar positivamente, isto é, sair de um estado de menor perfeição para um estado de maior perfeição. Como também pode, por outro lado, sair de um estado de maior perfeição em direção a um estado de menor perfeição, variando negativamente. Essa variação vai depender do tipo de afeto que estabelecemos em nossos encontros, ou seja, se são ativos ou passivos. O conatus é a expressão dessa nossa capacidade de variar nos afetos.

01

ESPINOSA, Baruch. ÉTICA. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. p. 105. 02

Ibidem, p. 141.

54 • De Espinosa à cidade • Por uma cidade alegre da ação


Entretanto, por mais que tenhamos a possibilidade da diminuição da nossa potência, como já vimos, o homem, assim como os demais seres, quer perseverar na sua existência. Isso significa que, ao contrário da ideia de que temos um impulso destrutivo dentro de nós, defendida por muitos pensadores, Espinosa vai defender justamente o contrário. Vai defender que somos positividade, somos uma vontade que se afirma, através do conatus, pela força da vida. Todavia, já que somos essa positividade que luta por perseverar em si, por que seguimos com eventos contínuos de diminuição da potência de agir? Trata-se dos afetos passivos, das paixões tristes, que como já vimos são forças externas que acabam por nos constranger. Sendo o desejo uma potência, como aumentá-lo, como nos tornamos mais potentes? Como firmamos o nosso desejo? Só existe uma forma, alcançando aquilo que nos é útil. Aquilo que nos produz alegria.É uma concepção de homem que torna inconcebível a separação do eu e dos seus interesses.A essência do eu é o seu interesse. Se o interesse surge na relação com o mundo, o desinteresse é a negação da relação com o mundo. É isso que não se pode conceber, porque o homem sempre tende ao mundo, aquilo que lhe é útil.

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É útil ao homem aquilo que dispõe o seu corpo a poder ser afetado de muitas maneiras, ou que o torna capaz de afetar de muitas maneiras os corpos exteriores; e é tanto mais útil quanto mais torna o corpo humano capaz de ser afetado e de afetar os outros corpos de muitas maneiras. E, inversamente, é nocivo aquilo que torna o corpo menos capaz disso03.

Agir de forma desinteressada, embora seja uma atitude moralmente valorizada, é um atentado à natureza desejante do homem, desatrelando as ações de sua responsabilidade. Ao contrário do que pensa a maioria das pessoas, as ações movidas por interesses seriam mais úteis que as ações altruístas, convidando ao compromisso04. O útil, a realização do nosso desejo, aumenta a nossa potência. Negar o nosso útil é negar a nós mesmos. Construímos uma modificação da natureza do nosso próprio ser. Do ponto de vista do pensamento de Espinosa, um mundo de ações interessadas teria um salto qualitativo. Espinosa desmonta a ideia de que o homem é um ser isolado, para ele, a melhor coisa para o homem é o outro homem. Também se contrapõe à noção de que o que está fora de nós nos ameaça, ao passo que, normalmente, entendemos que as exterioridades ameaçam o que nos é útil. Relação essa que se reflete na cidade, que passa a ser o espaço do medo e da insegurança. Entretanto, as ideias de Espinosa apontam para o sentido oposto. Aquilo que está fora é a possibilidade de gerar encontros que provocam maior alegria e, portanto, ação. Estamos inseridos e fazemos parte da natureza, da mesma forma com a cidade, de 03

Ibidem, p. 182.

04

GIACOIA, Oswaldo. O poder dos afetos. Palestra proferida no programa Café Filosófico, Campinas, jul. 2018.

56 • De Espinosa à cidade • Por uma cidade alegre da ação


maneira que é preciso nos entender enquanto parte dela e conseguir, deste modo, estabelecer relações de composição, isto é, tomar parte da cidade05. Precisamos criar cidades que sejam mais interessantes para as pessoas, que nos convidem a compor com elas de modo que consigamos enxergar a utilidade que elas têm para nós, principalmente enquanto coletividade, e também construir um compromisso enfático com a cidade e com aquilo que interessa. É, para além de usar a cidade, a possibilidade de transformá-la transformando nós mesmos06. Segundo Chauí, o exercício da liberdade está relacionado à felicidade alcançada através do desejo por um bem imperecível, “sendo capaz de ‘comunicar-se igualmente a todos’ e de ser por todos compartilhado”07. Aproxima-se, então, da ideia de que o homem não é individual, mas coletivo. O sujeito para Espinosa não é um sujeito individual, monádico, encerrado sobre si mesmo, mas sim aquele que é capaz de perceber a sua inserção na ordem universal da natureza. É aquele que é capaz de detectar os seus encontros úteis, unir-se a objetos que aumentem a sua potência e de evitar o encontro com objetos que produzem afecções tristes e que por conseguinte, diminuem a sua potência08.

A cidade poderá ter momentos que apontam para um lugar da vida coletiva da alegria (autonomia), relacionada à ativi05

MARTINS, André. Os afetos em Espinosa e Winnicott. Palestra proferida no programa Café Filosófico, Campinas, 2005. 06

Ver: HARVEY, David. Cidades rebeldes. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

07

CHAUÍ, Marilena Espinosa: uma filosofia da liberdade. São Paulo: Editora Moderna, 2001. 08

GIACOIA, Oswaldo. O poder dos afetos. Palestra proferida no programa Café Filosófico, Campinas, jul. 2018.

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dade ou tristeza (servidão), relacionada à passividade09. De tal modo que podemos passar a buscar mais encontros ativos que nos causam alegria e, também, evitar aqueles que nos causam tristeza. A alegria é o sentimento de que nossa capacidade ou aptidão para existir aumentam, isto é, agimos. Ao contrário da tristeza que é o sentimento da diminuição de nossa aptidão para existir e agir, isto é, nos tornamos passivos. “O desejo que surge da alegria é, em igualdade de circunstâncias, mais forte que o desejo que surge da tristeza”10. Existem nas cidades as potências individuais de cada um, as quais vão, cotidianamente, consolidando um conatus coletivo transformador. Ou seja, conforme os afetos individuais passam a convergir para um afeto coletivo, constrói-se uma potência comum de ação. Assim sendo, para alcançar a alegria, é preciso entender-se enquanto parte da natureza, parte integrante de um todo, afastando pretensões de onipotência. Negri diz: “À verdade espinosana, que é verdade de uma revolução realizada nas consciências, busca do ser por si da ética através da multitudo e descoberta da efetividade desse processo”11. De tal maneira que a ação seja movida pelo conhecimento da vida coletiva. Fazer desse conhecimento o mais potente dos afetos pode nos ajudar a afastar o medo e abandonar a paralisia diante dos momentos de crise, aumentar a nossa potência de agir, pensar e ser com criatividade e alegria.

09

Bertini, Fátima. Afetos em Espinosa e a Cidade como Civitas, REVISTA CONATUS, Fortaleza, volume 9, número 18, p. 11-18, dez. 2015. 10

ESPINOSA, Baruch. ÉTICA. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. p.110. 11

NEGRI, Antonio. Espinosa Subversivo: e outros escritos. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. p.16.

58 • De Espinosa à cidade • Por uma cidade alegre da ação


Entendemos que recuperar o pensamento filosófico de Espinosa é recuperar um pensamento potente que pode nos indicar caminhos possíveis no sentido da superação das dicotomias edificadas pelo racionalismo moderno. Caminhos que percebam a complexidade das relações afetivas nas cidades e que possam entendê-las politicamente. Caminhos que vão além da relação de oposição entre objetividade e subjetividade; racionalidade e afetividade; ação e reflexão; individualidade e coletividade e público e privado. Espinosa constrói esses caminhos constituindo uma totalidade que valoriza o corpo,os afetos e o coletivo, fruto das relações entre o homem e o mundo.Convite para nos tornarmos parte ativa dos encontros e da vida, aumentando nossa potência de agir na cidade, de forma a transformar a ela e a nós mesmos.

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“a ecologia geral suscita o problema homem e natureza no seu conjunto, na sua amplitude, na sua atualidade” Edgar Morin

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DA ECOLOGIA À CIDADE

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Por que ecologia hoje?

As cidades estão hoje no centro da discussão internacional. Um discurso muito recorrente é a ideia de que, pela primeira vez na história da humanidade, a maior parte das pessoas vive em cidades. Entretanto, mais que isso, através principalmente de uma escalada enorme das megacidades nos países em desenvolvimento, nas próximas três décadas 70% da população mundial viverá em centros urbanos, como aponta o relatório de 2019 da ONU sobre as “Perspectivas da Urbanização Mundial”01. Mesmo que haja uma concordância entre os pesquisadores na defesa pelo modelo de cidades mais compactas, o relatório aponta para o seguimento do modelo de crescimento das chamadas cidades dispersas. As maiores cidades do mundo não estarão mais na Europa, nos Estados Unidos ou na China, mas cada vez mais em países do chamado Sul Global, na África e na Ásia Meridional, como Índia e Paquistão. Diferentemente dos processos históricos urbanos, em que as maiores cidades correspondiam também às maiores economias e à condição de hegemonia política, o crescimento populacional nas cidades no futuro não virão acompanhadas do crescimento econômico proporcional. Esse processo tende, na verdade, a condições extremas de desigualdade e condições de vida precárias para grande 01

United Nations, Department of Economic and Social Affairs, Population Division (2019). World Population Prospects 2019: Volume II: Demographic Profiles.

62 • Da Ecologia à cidade • Por ecologia hoje?


parte da população. É na cidade onde o desequilíbrio socioambiental se torna mais evidente. A questão ambiental traz, de fato, fenômenos variados que se expressam em diversas escalas. De modo que é necessária uma abordagem que compreenda todos os níveis em que os problemas socioambientais se manifestam. A questão ambiental é, portanto, ao mesmo tempo, global e local, tal qual as grandes questões atuais do nosso mundo globalizado. De modo que, por um lado, entender os problemas na escala local pode nos ajudar na precisão de modelos climáticos globais, por outro lado, identificar os impactos ambientais a nível global pode nos ajudar a propor transformações concretas que ocorrem localmente, ou como nos sugere a famosa frase, pensar global e agir local. Essas mudanças passam, indubitavelmente, por processos de transformação na cidade. A questão ambiental tem se desenvolvido com muita intensidade em diversas áreas do conhecimento e também tem tido, através do termo sustentabilidade, o seu conceito apropriado pelo ambiente corporativo que o observou como possibilidade de agregar valor aos seus produtos. Não é diferente no mercado imobiliário. Desde o princípio eu me deparei com a dificuldade de usar a terminologia do discurso sustentável que foi, de certa maneira, surrupiado pela lógica mercadológica. Os produtos verdes, ecologicamente corretos se configuraram em uma nova estratégia de mercado, estimulando a alta do preço desse tipo de produto que são destinados geralmente para a parte da população que pode pagar por ela, isto é, ironicamente para a fração da população que mais consome e mais gera resíduos. Tentei encontrar caminhos onde a questão da sustentabilidade caminhasse junto à justiça social, sendo

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de fato para todos e não para uma parcela privilegiada que pode pagar por isso. Os problemas ambientais advém da relação que estabelecemos com a natureza. Como já comentado neste trabalho, a cultura ocidental, de modo geral, possui em sua fundação a narrativa da tradição judaico-cristã. Narrativa essa que foi construída historicamente e nos coloca em uma condição de exterioridade à natureza. Como nos apresenta Nara Oliveira: “O ocidente mantém uma relação de domínio e exploração do ambiente como marca de perpetuação da soberania da espécie humana na Natureza, como forma de vivenciar seu mito de origem”02. Me parece que está ficando clara a necessidade da mudança dessa perspectiva que estabelece a relação de dominação sobre a natureza. Estamos sendo forçados a isso de algum modo. Gradualmente, percebemos que estamos inseridos em um campo universal comum, seja pela nossa mais completa impotência diante dos desastres naturais e dos, cada vez mais comuns, eventos extremos (estiagens e secas; inundações bruscas e alagamentos; vendavais e ciclones; tornados; incêndios florestais), ou, pela pandemia do novo coronavírus que nos submeteu à mudanças de hábitos a nível global. Repensar novas possibilidades de reverter essa dinâmica exploratória de modelo de cidade não é necessariamente a pretensão de voltar a algum estado anterior da natureza, tampouco a visão preservacionista por si só ou algum tipo de romantismo. Mas sim, propor modos de interação com 02

OLIVEIRA, Nara. O conceito de natureza em Espinosa: contribuições para uma crítica ecológica mais efetiva. 2016. Dissertação (mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente), Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2016. p.32.

64 • Da Ecologia à cidade • Por ecologia hoje?


a cidade que ultrapasse nosso antropocentrismo e aproxime o meio ambiente do homem, partindo da ideia de se estabelecer relações de composição entre eles. É colocar em xeque o paradigma moderno mecanicista que vem moldando as formas de se pensar e construir as cidades. É acenar para uma lógica mais integral, que enxergue para além das partes e possibilite uma noção complexa de cidade. Nesse sentido, o pensamento ecologista tem se ramificado e participado de diversos campos do conhecimento, evidenciando a sua vocação transdisciplinar. Sendo a essência de seu pensamento o estudo de ecossistemas, parece clara a ênfase que apresenta no estudo da interrelação entre os elementos que os compõem, opondo-se ao pensamento reducionista. Nessa lógica de pensamento mecanicista, parece que algo se perdeu, desaprendemos a pensar de modo inter-relacional. A Ecologia nos traz uma outra perspectiva. Sendo uma ciência que estuda relações complexas entre seres e a relação desses seres com o ambiente, nos oferece muitas ferramentas para se pensar inter-relacionalmente. Capacidade essa tão necessária e carente nos dias atuais. Através da ecologia podemos aprender a como lidar melhor com a complexidade do nosso mundo globalizado, entendendo maneiras de trabalhar com informações e dados de diferentes disciplinas. Ou de um ponto de vista mais prático, ela pode nos contribuir na articulação de políticas públicas integradas que envolvam diferentes secretarias de um município, por exemplo. A ecologia também pode contribuir para a elaboração da noção de bem comum vinculada à natureza. Curioso notar que tal noção também foi partilhada dentro da instituição que mais representa a nossa tradição cristã, sendo tema

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da encíclica Laudato si do Papa Francisco, no qual aborda a necessidade do cuidado com a natureza, a nossa casa comum. Para Negri e Hardt, o comum refere-se “em primeiro lugar, à riqueza comum do mundo material - o ar, a água, os frutos da terra e todas as dádivas da natureza”03. Essa definição reforça a ideia de que o homem não está separado da natureza, mas “ centra-se, antes, nas práticas de interação, cuidado e coabitação num mundo comum”04. Sendo a natureza um bem comum, a questão ambiental é, também, um problema comum. Embora ainda haja quem defenda o contrário, é incontestável a realidade da nossa crise ecológica. Entendo que pensar essa questão ultrapassa a capacidade técnica ou a viabilidade econômica, mas trata-se, antes de mais nada, de uma questão ética, de vontade de fazer.

03

NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Bem-estar Comum. Rio de Janeiro: Record, 2016. p.8. 04

Idem.

66 • Da Ecologia à cidade • Por ecologia hoje?


Ecologia

Embora o pensamento sobre a relação entre o indivíduo e o meio em que vive seja um tema largamente abordado na história da humanidade, não havia uma palavra que definisse essa relação. A origem da palavra ecologia é relativamente recente, foi em 1869 que o biólogo Ernst Haeckel propôs o termo pela primeira vez. No começo do século XX, a ecologia começou a se estabelecer enquanto um campo reconhecido da ciência e passou, então, a formar parte do vocabulário geral. A princípio era direcionada a estudos de áreas restritas, que a classificavam em subáreas como ecologia vegetal e ecologia animal. Entretanto, ao longo do século, a ecologia conseguiu se formar enquanto uma disciplina unificada com uma abordagem sistêmica. A ecologia se aproxima de sua definição atual apenas na segunda metade do século XX, sendo entendida como “o estudo da ‘vida em casa’, dando ênfase nas relações dos seres vivos entre si e com seu entorno”01. Relações essas que convidam a um pensamento sistêmico que explica e olha para a vida, como cita Odum, a partir de uma perspectiva holística, buscando a síntese, não a separação. No sentido de pensar a complexidade, Ludwing von Bertalanfyy, que desenvolveu a Teoria Geral dos Sistemas, alerta que é fundamental que lidemos com totalidades ou sistemas independente do campo com o qual estamos lidando. 01

ODUM, Eugene; BARRET, Gary. Fundamentos de Ecología. México D.F.: Cengage Learning, 2008. p.4.

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A necessidade de pensar uma abrangência para diferentes áreas do conhecimento implica na formulação das ideias da ecologia de maneira integrada, o que ocorreu nos anos 50 e 60, encabeçada pelos irmãos Odum, visando melhor explicar a relação do meio com os diferentes sistemas vivos. Foi a partir dessa estruturação que conseguimos melhor entender qualitativa e quantitativamente os problemas ambientais aos quais estamos sujeitos. A ecologia tem sua origem dentro do campo das ciências biológicas, mas a partir dos anos 70 tem se expandido e, segundo Odum e Barret, tornou-se “uma disciplina à parte que integra os organismos, o entorno físico e os humanos, mantendo-se fiel a raiz grega da palavra ecologia, oikos, que significa casa e logos, que significa estudo”02. Segundo os mesmos autores, a melhor maneira de definir a ecologia moderna é através do conceito de níveis de organização. Esses níveis ecológicos partem desde a ecosfera, passando pela paisagem e pelo ecossistema, chegando a população e organismo até a célula. Entretanto, é o ecossistema a unidade fundamental de estudo da ecologia, definido como “qualquer unidade que inclua todos os organismos de uma área dada que interage com seu ambiente físico de maneira que um fluxo de energias conduz a estruturas bióticas definidas com clareza e reciclagem de materiais entre componentes vivos e sem vida”03. Apesar de ser a unidade de estudo dos ecólogos, o ecossistema é um ponto de divergência quando seu conceito é transposto para os ambientes construídos pela ação antrópica. Para Salvador Rueda, por exemplo, ex-diretor 02

Ibidem, p.2.

03

Ibidem, p. 18.

68 • Da Ecologia à cidade • Ecologia


da Agência de Ecologia de Barcelona, um sistema é um conjunto de elementos físico-químicos que interagem. Se entre os elementos existem organismos vivos, esse sistema é chamado ecossistema. Uma concepção abrangente, entendendo a capacidade escalável do termo. Isto é, um ecossistema pode ser configurado em diversas escalas e a cidade, então, poderia ser entendida como tal. De um outro ponto de vista, para Samuel Branco, o ecossistema é uma unidade que basta-se por si só, e, assim, a cidade não pode ser concebida como um ecossistema, na medida em que é uma unidade que depende de recursos exteriores à ela e o homem um “elemento perturbador do equilíbrio natural do ecossistemas”04. A cidade, para ele, nunca será um ecossistema porque nunca será autossuficiente. Porém, Odum defende que ecossistemas são sistemas abertos, recebendo influência do sol, da chuva, dos ventos, etc, refutando, então, as ideias expostas por Branco. Seria impossível dizer que o ecossistema basta por si só. Mas Odum, no sentido do que propõe Branco, faz uma ressalva, chamando as cidades de tecnoecossistemas, organizações que competem com ecossistemas naturais e os parasitam. Ou seja, há de fato um custo ambiental e é preciso estabelecer uma relação que aponte para uma troca menos prejudicial aos sistemas naturais para que possamos viver no mundo finito. Como diz Branco, “a questão essencial gira em torno da relação homem/natureza e da forma como ela se estabelece, sendo uma relação de integração, de simples complementaridade, de estreita dependência ou de domínio absoluto”05. 04

BRANCO, Samuel Murgel. Conflitos conceituais nos estudos sobre meio ambiente. Revista estudos avançados. 1995, vol.9, n.23, pp.217-233. p. 231. 05

Ibidem. p.217.

69


Mas, para além da discordância sobre o uso do termo ecossistema, o conceito mais disputado na realidade foi o da própria ecologia. A partir dos anos 70, com a pauta da questão ambiental em voga, a disputa do termo referenciava-se a uma disputa sobre o combate da questão ambiental, propondo uma “visão ecologizada” do mundo. Surgem então grupos que disputam o termo e acabam por criar uma pluralidade de ecologias que se distanciam mais ou menos da disciplina científica. Uma das primeiras abordagens modernas é o movimento de ecologia radical, que entende ser inconcebível aliar desenvolvimento econômico à preservação e conservação da natureza. Ao contrário do ambientalismo moderado, que, como diz o nome, busca conciliar essas duas esferas, por meio da defesa de um desenvolvimento sustentável. Uma terceira visão é a da ecologia política, também conhecida por ecologia dos pobres. Ela entende a questão ambiental considerando o contexto social e político. No primeiro caso, da ecologia radical, a disciplina ainda se presta a pensar questões do próprio campo, ao passo que, com o passar do tempo, no ambientalismo moderado, a ecologia se compõe à economia, por meio da figura do desenvolvimento sustentável. Por último, na ecologia política, a disciplina se integra com os campos das ciências sociais e políticas. A ecologia começou, portanto, a se ramificar e contribuir com a criação de pontes entre disciplinas diferentes que tratavam do mesmo tema sob óticas distintas, evidenciando seu potencial transdisciplinar. Hoje, temos uma grande dificuldade de processar informações desconexas de diferentes disciplinas e pontos de vista. A Ecologia, enquanto ciência que organiza-se de maneira sistêmica pode, não ser utilizada em sua totalidade como método, mas possibilitar o oferecimento de uma

70 • Da Ecologia à cidade • Ecologia


visão relacional, que estabelece ligações ao invés de separações e síntese no lugar de análise. Ela pode, através de seu viés sistêmico, fortalecer as trocas de conhecimento, o trabalho de equipes transdisciplinares e a organização de conceitos que nos proporcionariam a aproximação da realidade em sua complexidade. Como escreve Morin, “a ecologia geral suscita o problema (...) homem/natureza no seu conjunto, na sua amplitude, na sua atualidade”06. Um dos maiores desafios postos à nossa sociedade na atualidade é a chamada questão ambiental. Pensar essa questão apoiando-se nos conceitos teóricos da Ecologia nos parece fundamental, uma vez que é a ciência que lida diretamente com os seres bióticos e abióticos, em seu viés inter-relacional. Pensar as diversas relações existentes em um ecossistema implica em uma busca por um equilíbrio constante entre todas as partes. O equilíbrio ecológico se dá pela constante relação entre as diversas partes e a desestruturação desse equilíbrio ameaça a vida das espécies. Dessa forma, a Ecologia nos oferece ferramentas para reverter as situações de desequilíbrio ecológico induzidas pelo homem. Observamos na Ecologia uma rica fonte teórica que nos indica novas possibilidades de olhar para a complexidade da relação sociedade-natureza trazendo elementos para a elaboração de uma ética ambiental que conjuga a cooperação entre as partes e contribua para a formulação da noção de bem-comum vinculada à natureza.

06

MORIN, E. O Método I: A Natureza da Natureza. Portugal: Europa-América. 1977. p.45.

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O lugar da natureza nas cidades

Analisando diversos períodos do planejamento urbano, é possível perceber que ocorreram mudanças quanto à forma de compreender e pensar a relação da cidade com a natureza. Os paradigmas criados ao longo da história sobre a relação do homem com a natureza são diversos e tem variado segundo seu contexto histórico. Olhando para a Antiguidade, as cidades ainda eram incipientes, tendo sua representação materializada nas cidades gregas. Para a construção dessas cidades, a fonte de inspiração era a própria natureza e estabelecia-se com ela uma relação de contemplação. As cidades medievais europeias eram protegidas por grandes muralhas, que separavam fisicamente natureza e cidade, iniciando a construção do pensamento dicotômico entre as duas. Ao mesmo tempo, nas cidades feudais, os habitantes sentiam falta do contato com a natureza, o que levava as classes altas a deixar a cidade em direção ao campo nos dias de lazer. Entretanto, o entendimento da natureza ainda era bastante marcado pela interpretação da Bíblia, impondo características teológicas à natureza. Foi o momento no qual teve início a dominação do homem sobre a natureza, com técnicas agrícolas, por exemplo. Em seguida, com o advento das cidades comerciais, concretiza-se a superação dos obstáculos físicos e intelectuais no entendimento da natureza, dissecando-a e entendendo

72 • Da Ecologia à cidade • O lugar da natureza nas cidades


suas partes, junto à construção de uma noção mecanicista da natureza. Quanto às cidades, a retirada das muralhas permite um maior contato entre o urbano e o natural. Porém, a relação entre eles manteve-se na ordem estética, limitando-se às classes altas por meio de grandes e decorados jardins. Chegando às cidades industriais, a natureza passa a ser entendida como recurso. Isto é, já existe a dominação técnica do homem sobre a natureza, e, em decorrência disso e do modelo capitalista de exploração, a característica da relação homem-natureza passa a ser de usufruto. A condição urbana do momento são cidades densas e insalubres, com falta de infraestrutura urbana. Dessa forma, no final do século XX, são feitas grandes reformas nas cidades europeias visando a função higienista dos espaços livres. A solução para a insalubridade das cidades é a criação de grandes parques paisagísticos. A natureza, portanto, passa a representar possibilidade sanitária de qualidade para a cidade. Entretanto, de acordo com Mumford01, “o parque era entendido não como uma parte integrante do meio urbano, mas como um local de refúgio cujo valor essencial vinha do contraste com a ruidosa e empoeirada colmeia urbana”. Evidenciando que esses parques não davam conta das necessidades da população, teve início um movimento para os subúrbios que, uma vez mais, afastou o campo da cidade. Em resposta a essas mudanças geradas na cidade, no final do século XIX e início do século XX, foram produzidas algumas teorias que revelam, cada uma a sua forma, buscas para solucionar a sempre presente questão da relação cidade-natureza, apontando para as contradições perma01

MUMFORD, Lewis. Paisagem natural e paisagem urbana.Revista Landscape, 1960. p. 286.

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nentes entre as necessidades de ocupação e os processos naturais. Frederick Olmsted, por exemplo, defendia que, para além de olhar para a natureza como uma entidade viva em constante diálogo com as pessoas, ela deveria ser pensada e analisada sob a perspectiva estética e ecológica. A partir dessas ideias, em 1864, propôs uma plano para o desenvolvimento da paisagem de Yosemite Valley na Califórnia. Foi o primeiro sistema metropolitano de parques, sendo possível devido ao desenvolvimento de uma estratégia de gestão que sustentasse as ideias teóricas. Suas propostas enfatizam constantemente a harmonia com as leis da natureza, atingida “pelo entendimento, revelação e preservação das formas e cenários da paisagem refletindo as características locais e regionais”02. Quase concomitantemente, entre 1880 e 1890, Ebenezer Howard fez sua proposta de cidade-jardim sob a perspectiva de uma síntese sadia entre cidade e campo. A defesa de Howard é que não existem apenas duas possibilidades: a vida no campo ou a vida na cidade. É possível também o equilíbrio entre as duas, por meio da junção das maiores potências de cada forma de vida, urbana e rural. Assim, sua teoria propõe pequenas cidades autônomas rodeadas de terrenos agrícolas, todas conectadas entre si através do transporte ferroviário. O interior de cada cidade é marcado pela grande quantidade de áreas verdes, equilibrando a urbanização com a natureza.

02

MENEGUETTI, Karin Schwabe. De cidade-jardim à cidade sustentável: potencialidades para uma estruutura ecológica urbana em Maringá. Tese (doutorado - Área de concentração: paisagem e ambiente). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2007. p. 24.

74 • Da Ecologia à cidade • O lugar da natureza nas cidades


As ideias de cidade-jardim materializaram-se em Letchworth, com o projeto de Raymond Unwin e Barry Parker. Unwin acreditava que era necessário dar limites ao crescimento das cidades, sem necessariamente cercá-las com muralhas. Para ele, seria interessante criar largas faixas de separação, “formadas de parques, áreas de jogo ou até terrenos de cultivo. Em todo caso, precisaríamos estabelecer uma linha que separasse a cidade e o campo”03. Quem também exerceu grande influência quando foram realizadas as primeiras cidades jardins foi Patrick Geddes, constituindo o que viria a ser chamado de planejamento regional, em 1915. Defendia a ideia de que é impossível pensar a cidade sem sua paisagem natural, olhando para a articulação do território a partir do entendimento de que as complexidades entre ação humana e ambiente devem ser percebidas em termos dos atributos “povo-trabalho-lugar”. Muitas vezes, comparava os padrões de crescimento urbano ao de um recife de coral, sendo, assim, o primeiro a apresentar um entendimento fundamentalmente orgânico das cidades. Geddes foi o mestre de Lewis Mumford, que explorou como os processos humanos eram entrelaçados com os processos naturais na cidade e seu entorno, propondo uma abordagem específica para entender e analisar paisagens regionais. “Para ele, o planejamento genuíno era uma tentativa de clarificar e agarrar firmemente todos os elementos necessários para trazer os fatos geográficos e econômicos em harmonia com os propósitos humanos”04, sendo a harmonia uma estabilidade nos sistemas ecológicos que transforma as regiões em sistemas de inter-relações. 03

CHOAY, Françoise. O urbanismo. São Paulo: editora perspectiva, 1965. p. 230. 04

MENEGUETTI, op. cit. 2007. p. 29.

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Ainda no sentido da relação cidade-natureza, vale destacar as teorias criadas nos CIAM, nas quais, entre seus princípios, estava a relação do homem com os espaços livres e a natureza existente neles, que, nesse caso, era bastante vinculada ao lazer. Defendia-se a necessidade de espaços livres para poder exercer uma vida saudável e, então, buscava garantir o verde no cotidiano (edifícios rodeados por vegetação), nos finais de semana (grandes parques urbanos) e nas férias (montanhas ou praias). Nesse sentido, os preceitos criados pelo urbanismo moderno contribuíram para o desenvolvimento de diferentes teorias, como a de Le Corbusier, que pensa a cidade em abundância de espaços verdes, como um grande parque, com blocos pré-fabricados sobre ele. Entretanto, por volta dos anos 60, há uma mudança na forma como vinha sendo entendida a relação da cidade com a natureza. Com a exacerbação da crise ambiental, diversas questões passam a ser percebidas e discutidas e, com isso, novas e diversas teorias passam a estudar o fenômeno urbano, algumas delas com uma lente ecológica. Portanto, diante da questão ambiental, a temática do meio ambiente e da sustentabilidade também atingiram o pensamento sobre as cidades, de modo que o modelo de desenvolvimento urbano tem sido debatido também sobre a ótica ambiental. Mais recentemente, tem-se reivindicado o uso da palavra ecologia para o tratamento das questões relacionadas ao meio ambiente urbano. Passando da ecologia “na” cidade, que considerava os elementos da cidade similares aos naturais, como parques, ruas arborizadas e terrenos vazios, para a ecologia “da” cidade, que leva em conta todo o ambiente urbano integralmente. A abordagem ecológica, também avançou como um tipo de prática urbana ambientalmente mais responsável e tem se difundi-

76 • Da Ecologia à cidade • O lugar da natureza nas cidades


do, inclusive, nas estruturas organizacionais de municípios, que passaram a ter secretarias de ecologia urbana, por exemplo. Também encontramos a terminologia do urbanismo ecológico, sugerindo que essas práticas se estabelecem enquanto um conceito próprio e que se articulam em torno de pensamentos comuns. Não estamos sugerindo que o Urbanismo Ecológico seja um modo totalmente novo e singular de prática arquitetônica - ao contrário, ele utiliza uma multiplicidade de ferramentas, técnicas e métodos antigos e novos, em uma abordagem multidisciplinar e colaborativa em relação ao urbanismo visto através das lentes da ecologia. Essas práticas devem se voltar para o aperfeiçoamento das condições urbanas existentes assim como para nossos planos de cidades do futuro05.

Esse trecho de Mostafavi nos mostra que, para ele, as práticas do urbanismo ecológico se constituem mais na articulação de processos e ferramentas do que na criação de novas tecnologias. Vai de maneira oposta ao viés, talvez encabeçado pelas Smart Cities, que também disputa a temática ambiental, mas o aborda através da técnica e da produção de novas tecnologias. Isto é, para ele, a prática do urbanismo ecológico deve ser entendida como algo processual e não como um fim em si mesma. É um novo modo de entender a relação entre cidade e natureza, pensando-as de maneira mais integrada. Propõe-se uma abordagem ecológica no planejamento urbano, que tem início com um entendimento da cidade como parte da natureza, implicando no avanço sobre a percepção dualista de homem e natureza a partir de uma abordagem complexa. 05

MOSTAFAVI, Mohsen.; DOHERTY, Gareth. (Org.). Urbanismo Ecológico. Barcelona: Gustavo Gilli, 2014. p.26.

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É justamente esse pensamento sistêmico que une a temática da Ecologia e das cidades, tendo como finalidade a investigação sobre as necessidades para sobrevivência dos ecossistemas e das populações humanas. É pensar portanto, dentro desse sistema integrado que corresponde a cidade, os fluxos de energia, de água e de resíduos que aqui se deslocam. De modo oposto, as grandes cidades, como São Paulo, não incorporam as leis da natureza em seu planejamento. Nós perdemos as referências naturais e geográficas da paisagem do lugar. São Paulo foi sendo construída e reconstruída através de uma relação de negação com sua própria geografia. É uma cidade pouco inteligível, com uma sucessão de construções homogêneas, variação excessiva de gabaritos, o que nos faz perder a sensibilidade para as formas geográficas da cidade. Para Odum e Barret, as cidades criadas pela sociedade urbana-industrial, nomeada por eles de tecnoecossistemas, se converteram em parasitas dos sistemas naturais. Ele nos alerta para a necessidade de formar uma conexão com os ecossistemas naturais de sustentação da vida na cidade de modo mais positivo ou mutualista do que temos hoje. “Os parasitas e os hospedeiros tendem a coevoluir para sua coexistência na natureza; do contrário, se o parasita retira muito de seu hospedeiro ou anfitrião, ambos morrem”06. Hoje estamos vivenciando indícios desse grande desequilíbrio, com eventos extremos cada vez mais constantes, as enchentes rotineiras, os desabamentos, dia virando noite em decorrência de queimadas amazônicas e a pandemia do novo coronavírus. 06

ODUM, Eugene; BARRET, Gary. Fundamentos de Ecología. México D.F.: Cengage Learning, 2008. p.71.; tradução do autor.

78 • Da Ecologia à cidade • O lugar da natureza nas cidades


Dadas as condições de incapacidade dos instrumentos de gestão pública, podemos fazer uso das soluções que a Ecologia nos oferece, transpondo-as para as questões urbanas de forma a auxiliar na instrumentalização para atuação em situações críticas. Um bom exemplo é a infraestrutura verde, que incorpora as leis da natureza para pensar drenagem urbana, favorecendo processos biológico-naturais. (...) precisamos encarar a fragilidade do planeta e de seus recursos como uma oportunidade para investigar novas possibilidades arquitetônicas, e não como uma forma de legitimação técnica para promover soluções convencionais. (...) Imaginar um urbanismo que foge ao status quo exige uma nova sensibilidade – capaz de incorporar e acomodar as condições conflitantes inerentes à ecologia e ao urbanismo. Esse é o território do urbanismo ecológico07.

07

MOSTAFAVI, Mohsen.; DOHERTY, Gareth. (Org.). Urbanismo Ecológico. Barcelona: Gustavo Gilli, 2014. p. 17.

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“Como a maioria das pessoas pensam em termos materialistas, não podem entender a minha obra. Esta é a razão pela qual não considero necessário apresentar meros objetos, para fazer com que as pessoas comecem a entender que o homem não é um mero ser racional” Joseph Beuys

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ESPINOSA E ECOLOGIA

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A cidade complexa

Termino, então, essa apresentação teórica levantando os principais pontos comuns entre a teoria de Espinosa e o pensamento da Ecologia que nos ajudam a compreender o caminho proposto neste trabalho para a participação cidadã nas cidades. Foram levantados três conceitos fundamentais e importantes nessa relação: a ideia de uma cidade complexa, o desenvolvimento de uma nova ética ambiental e o entendimento da cidade como um bem comum. Esses três conceitos são apresentados neste capítulo final, cada um em um subcapítulo, e apresentam-se como uma síntese das ideias apresentadas anteriormente. Conforme exposto, nosso modelo de desenvolvimento modernizador foi moldado pelo paradigma cartesiano, naturalizado e estimulado até hoje como se fosse a única alternativa. Entretanto, percebemos, a partir de Espinosa e da Ecologia, em constante diálogo com Morin, que o pensamento reducionista simplifica as questões e não é capaz de exprimir a totalidade e as relações da realidade ou dos fenômenos. Há uma tentativa de querer organizar o complexo, fragmentar a realidade em pequenas partes desconexas que acaba por gerar cegueira, ao invés de elucidar o entendimento, como se pretendia. O paradigma simplificador vê o uno e vê o múltiplo, mas não vê que o uno pode ser múltiplo ao mesmo tempo01. 01

Ver: MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: RS Sulina, 2015.

82 • Espinosa e Ecologia • A cidade complexa


“A dificuldade do pensamento complexo é que ele deve enfrentar o emaranhado (o jogo infinito das inter-retroações), a solidariedade dos problemas entre eles, a bruma, a incerteza, a contradição”02. E é justamente neste ponto que as teorias de Espinosa e da Ecologia nos ajudam com ferramentas para entender que existe uma constante relação do todo com as partes. Isto é, não só o todo contém as partes como as partes também contém o todo. Nesse sentido, Morin apresenta o princípio hologramático do pensamento complexo, que diz da ideia de que todas as partes também possuem a informação do todo, e essa concepção estaria presente no mundo biológico assim como no mundo sociológico, e, portanto, nas cidades. A ideia do hologramismo consegue ir além do reducionismo que só vê as partes e do holismo que só vê o todo. Na relação constante de uno e múltiplo, é impossível nos enxergarmos enquanto externos à natureza e ao meio no qual vivemos. O que quero dizer é que tanto Espinosa quanto a Ecologia nos conduzem a entendermo-nos como parte de um todo maior e, portanto, que não somos superiores aos outros elementos da natureza. Portanto, se estamos inseridos nesse todo, seja para a Ecologia, seja para Espinosa, a nossa relação com o mundo importa. Entretanto, é preciso saber olhar para essa realidade de maneira complexa. Estamos submetidos às afecções e às nossas relação com os outros corpos do mundo. Assim, Espinosa e a Ecologia convergem no paradigma complexo no que tange os acasos e as incertezas do nosso encontro com o meio.

02

Ibidem. p. 14.

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A um primeiro olhar, a complexidade é um tecido (complexus: o que é tecido junto) de constituintes heterogêneos, inseparavelmente associadas: ela coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. Em um segundo momento, a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimento, ações, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem nosso mundo fenomênico. Mas, então, a complexidade se apresenta com os traços inquietantes do emaranhado do inextricável, da desordem, da ambiguidade, da incerteza…03

As duas teorias, assim como Morin, nos ensinam que, dentro dessa rede de complexidade não temos poder sobre as coisas como imaginamos, não podemos estabelecer uma relação de domínio com a natureza. Dessa maneira, não se trata de controlar e dominar o real, mas de exercer um pensamento capaz de lidar com ele04, negociando e dialogando. Na tentativa incessante de dominar o mundo, que exercemos a partir da noção de superioridade do homem e da uma visão reducionista da realidade, colocamos a razão como hierarquicamente superior. Isto é, buscamos encerrar o mundo em partes, dividir as questões em caixas e conceitos isolados, que não consideram a passionalidade das relações humanas. Em contraposição a isso, Espinosa nos convida a olhar para os afetos e essa camada do mundo que vai além da razão, desmistificando a hierarquização da mente sobre o corpo. Reconhecer a complexidade nas cidades é também reconhecer esse viés afetivo proposto pelo filósofo, dando ênfase para as relações. Assim, sendo a cidade um ecos03

Ibidem. p.13.

04

Ibidem. p.14.

84 • Espinosa e Ecologia • A cidade complexa


sistema complexo, é preciso que pensemos soluções complexas para ela. Não podemos pensar em soluções isoladas e fragmentadas que atacam os sintomas ao invés das causas, como propostas habitacionais que não levem em conta as questões de mobilidade, por exemplo. É fundamental que para os problemas complexos que a cidade apresenta, possamos dar as respostas complexas que eles exigem. Um exemplo de grande valor nesse sentido e próximo do nosso contexto é o programa Ligue os Pontos, da prefeitura de São Paulo, um programa que apresenta uma visão poucas vezes empregadas nas nossas políticas públicas, por possuir uma abordagem sistêmica do problema, abrangendo diversas secretarias, diversos atores da cidade em diversas escalas da metrópole. Portanto, olhar para o paradoxo do uno e do múltiplo, no campo da cidade, é também pensar sobre a escala micro, de ação pontual, em relação com a escala macro de políticas urbanas integradas. O que quero dizer é que uma ação pontual não é apenas uma ação pontual, pois ela deve considerar o todo e conter em si uma parte dele; da mesma forma que uma política pública deve considerar suas diferentes partes e possibilidades de atuação, materializando-se em projetos locais, mantendo um diálogo constante entre as escalas. Pensar a cidade complexa nos ajuda a agir localmente, na micro escala, e também no macro, estruturalmente. Olhar para a relação entre as diferentes escalas, entre as partes e o todo é perceber que a relação entre as diferentes escalas do planejamento não é unidimensional, mas sim uma conjunção da unidade/micro e do múltiplo/macro. É, portanto, extrapolar a ideia linear de causa e efeito, dialogando com a ideia de que não se pode conceber o todo sem as partes, nem as partes sem o todo.

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Ética ambiental

Considerando a situação que se encontra o nosso planeta e suas riquezas naturais, bem como a incerteza sobre o futuro, é fundamental o deslocamento para um caminho mais consciente, nos tornando mais responsáveis por nossas atitudes e possíveis riscos. Defendemos essa escolha não para a volta a um estado natural e intocado da natureza, o que parece ser a proposta de alguns movimentos ecologistas, mas para a escolha de prioridades que possibilitem a vida para gerações futuras e uma relação harmoniosa enquanto parte da natureza. Pensar esse novo caminho implica repensar nossa visão relacional com o meio no qual vivemos, as cidades. Tanto o ponto de vista da filosofia de Espinosa, que supera o antropocentrismo, quanto o da ecologia, que nos enxerga como parte de um ecossistema, indicam para uma nova configuração dessa relação. Seguimos atrelados à antiga concepção que coloca o homem em relação de dominação com a natureza. Não conseguimos entender a cidade enquanto espaço de todos, nem nos aproximar da noção de que também conformamos a cidade e somos parte dela, podendo construí-la e reconstruí-la continuamente, entendendo nosso lugar nesse meio. A pretensão de um domínio absoluto sobre a natureza através do desenvolvimento tecnológico mostra-se cada vez mais uma ilusão. Não podemos mais pensar que os nossos

86 • Espinosa e Ecologia • Ética ambiental


infindáveis problemas contemporâneos são mal necessários. Poluição do ar, da água e sonora, agrotóxicos, acidentes de trânsito, mortes por arma de fogo, pobreza, desigualdade etc são vistas como problemas que serão resolvidos através da técnica, com a criação de alguma tecnologia, por exemplo, que nos livrará desses males. Entretanto, de acordo com as ideias aqui expostas, não se trata de uma questão puramente técnica ou econômica, mas de uma questão ética de vontade de fazer. Portanto, reforçamos, é preciso escolher um caminho que compreenda nossa inserção na natureza, deixando de lado a lógica de dominação para um entendimento que nos percebe enquanto semelhantes aos demais elementos da natureza. É a aposta na transformação socioambiental das cidades nos colocando como parte integrante dela. Não basta ultrapassar o antropocentrismo, o qual Espinosa critica, e passar a colocar a natureza em um lugar de exaltação, pois isso perduraria a dualidade homem-natureza. Da mesma forma, não é possível seguir dentro da mesma lógica de exploração. É preciso entender, como analisa a Ecologia, que estamos inseridos em um ecossistema e todas suas relações são importantes para um equilíbrio ecológico. A lógica relacional dos ecossistemas nos remete à ideia de Espinosa acerca da importância de outros corpos para um corpo. Isto é, que os corpos se fortalecem na presença de outros corpos devido, justamente, à possibilidade de trocar, compondo um sistema, ou ainda, um ecossistema de afecções corporais. Ainda nesse sentido, Espinosa destaca que o interesse surge na relação com o mundo e que, portanto, o homem sempre tende ao mundo, para aquilo que lhe é útil. Assim, reforça a importância de identificarmos aquilo que nos é necessário, caminhando no sentido de maior

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potência e, assim, aumentando nossa positividade que se afirma pela força da vida. Essa visão oporia-se àquele utilitarista da natureza como provedora infinita de recursos à disposição do homem. Pensando nessa questão da necessidade em Espinosa relacionada com a questão ecológica se faz necessário, hoje, rever o nosso modelo de desenvolvimento e pensar em alternativas mais sustentáveis para que possamos não só evitar o fim maior, mas reparar os problemas socioambientais já existentes e muito danosos para uma parcela da população. Para isso, precisamos construir um outro olhar para a relação do homem com a natureza. Em Espinosa enxergamos uma rica fonte teórica para pensar o porquê se faz necessário uma ética ambiental, no sentido que conjuga a cooperação entre as partes como peça indispensável para a continuidade da vida ativa que se integra ao ecossistema. Na Ecologia, por sua vez, reside a possibilidade de pensar o como essa nova ética se dá, transpondo os conceitos ecológicos para as relações na cidade. Diante da enorme incerteza sobre o futuro, é preciso fazer uso do pensamento espinosano e ecológico como ferramentas transformadoras de nossas vidas na cidade. Criando espaços que respondam às nossas novas necessidades e aspirações enquanto coletividade. Da mesma maneira que Risério propõe uma nova configuração de cidade partindo paradoxalmente da Amazônia01, que possamos pensar em uma ética ambiental urbana que parta das grandes cidades, como São Paulo, especificamente das regiões de maior vulnerabilidade sócio-ambiental. 01

Ver: RISÉRIO, Antonio. A cidade numa nova configuração amazônica. In: RISÉRIO, Antonio. A Cidade no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2013.

88 • Espinosa e Ecologia • Ética ambiental


A cidade como bem comum

Uma ideia que tem se difundido é que a pandemia do novo coronavírus tem amplificado as nossas disfunções enquanto sociedade. Escancarando nossas desigualdades, dando visibilidade a nossa crise urbana. Entretanto, ficou clara a percepção de que a humanidade não está sozinha no mundo. Sabemos que as condições de resposta ao coronavírus são absurdamente desiguais. Sabemos que, na pandemia, mas não só nela, na violência urbana e nos desastres ambientais, a desigualdade é sempre mais letal aos mais pobres. Mas se não for possível conceber, nessa situação de vulnerabilidade global, a implicação de todo o grupo social nas suas relações de desigualdade e a consequência implacável dessa situação para todos, provavelmente sairemos com uma situação sócio-ambiental muito pior quando da divulgação da primeira morte pelo coronavírus. Há uma necessidade de transformação que leva em conta esse entendimento, e essa transformação passa pela concepção de bem comum. O comum é um conceito estudado por muitos atores, como Antonio Negri e Michael Hardt, David Harvey, Bruno Latour, Isabelle Stengers, Christian Laval. Sua concepção dissolve a tradicional polarização do público e do privado enquanto duas categorias que, desde a Grécia Antiga, estruturam as bases dos pensamentos ocidentais.

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Atualmente, as pautas de inovação e novas tecnologias, muitas vezes, são vistas como pautas ligadas ao campo da direita, por aqueles que se dizem de esquerda. Por outro lado, pautas relacionados ao meio ambiente são vistas sob a ótica da ideologia de esquerda, por aqueles que se dizem de direita. São dicotomias como essas que, buscando resolver as questões postas em debate, colocam as respostas a partir da defesa do público ou do privado, quando na verdade esvaziam o verdadeiro problema por ignorância ou preconceito. O comum extrapola uma noção de política governamental do estado nação soberana, implicando em uma consciência global, planetária. Isso significa dizer que “uma democracia da multidão só é imaginável e possível porque todos compartilhamos do comum e dele participamos”01. Hardt e Negri afirmam que o comum é primeiramente a riqueza do mundo material natural e, além disso, resultado da produção social. Isto é, um conceito que “não coloca a humanidade separada da natureza, seja como sua exploradora ou sua guardiã; centra-se, antes, nas práticas de interação, cuidado e coabitação num mundo comum, promovendo as formas benéficas do comum e limitando as prejudiciais”02. Aqui, destacamos um ponto chave da relação desse conceito com a Ecologia: a ideia de pensar o homem e a natureza de maneira não hierarquizada, entendendo o primeiro inserido dentro do segundo e, assim, pensar as questões socioambientais a partir do entendimento da natureza como bem comum. A cidade poderia ser também o espaço 01

NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Bem-estar Comum. Rio de Janeiro: Record, 2016. p. 8. 02

Ibidem. p. 8.

90 • Espinosa e Ecologia • A cidade como bem comum


onde as estruturas do pensamento ecológico desenvolvem-se, intermediando a relação do homem com o meio. É poder fazer uso das relações propostas por esse campo do conhecimento para pensar outras formas organizacionais para a cidade no sentido do comum. “uma ecologia centrada igualmente na natureza e na sociedade, nos seres humanos e no mundo não humano, numa dinâmica de interdependência, cuidado e transformação mútua”03. Assim, como defendem Negri e Hardt, o comum está nos mais diferentes campos da vida, não se trata apenas das riquezas materiais da natureza, mas também dos elementos que formam a vida social. Eles defendem que o ambiente para a realização do comum são as cidades, “das pessoas vivendo juntas, compartilhando recursos, comunicando-se, trocando bens e ideias”04. E, a partir dessa lógica, para esse trabalho faz muito sentido olhar para a produção dos espaços comuns da cidade, possibilitando espaços de encontros entre os corpos. A vivência do comum deixa de ser sentida quando subtraímos dos espaços urbanos as possibilidades de permanência e encontro. Aqui, é possível estabelecer um diálogo com a teoria de Espinosa, que defende os encontros como potências afetivas necessárias para o aumento do estímulo à ação. Reforçamos, então, que as três noções apresentadas: a visão mais sistêmica ou, até mesmo, complexa, a ética ambiental e a constituição do comum ressoam para o entendimento de uma cidade dos encontros, onde as pessoas se articulam politicamente e podem transformar a cidade transformando a si mesmos.

03

Ibidem. p. 196.

04

Ibidem, p. 278.

91


Que a privação da sociabilidade nesse momento tão difícil que estamos passando nos mostre o quanto esses momentos de contato entre pessoas nos são vitais e que consigamos realizar a importância dos espaços livres e da constituição do bem comum para o movimento de participação cidadã.

92 • Espinosa e Ecologia • A cidade como bem comum


Elementos urbano afetivos

Levantamos, a partir de Espinosa e da Ecologia, elementos que dizem sobre nossa relação com a cidade, sendo possível perceber nela algumas questões, para as quais buscamos apontar formas possíveis de pensar essa relação. A partir da discussão teórica, chegamos, então, a três questões que suscitam a necessidade de reavaliação da relação que estabelecemos com o meio no qual vivemos. Percebemos uma visão de cidade ainda muito fragmentária, que não possibilita que nos enxerguemos enquanto parte dela e, inclusive, muitas vezes, faz com que tentemos evitá-la. Assim, é necessário pensar soluções que considerem a cidade de forma mais complexa, aumentando as possibilidades de interação social. Que a rua deixe de ser um espaço apenas de mobilidade urbana, mas seja um lugar de apropriação cidadã por meio de usos múltiplos e complexos. Que o espaço público seja mais diverso, resgatando os espaços que hoje estão destinados à mobilidade particular, motorizada, possibilitando que o pedestre se converta em cidadão. Isto é, possa realizar todas as funções que hoje não podem ser efetivadas porque as ruas, a maior parcela de espaço público de uma cidade, estão pensadas para uma única função: deslocamento. Entende-se que tanto mais o espaço se permita ser afetado pelo cidadão, maior será a potência coletiva em promover transformações necessárias nas nossas cidades. Uma oportu-

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nidade para desenvolver a potência coletiva e iniciativas ecológicas. Além disso, identificamos que a visão que temos de nossa relação com a natureza também se aplica a nossa relação com a cidade, uma relação de uso e exploração, apontando para a necessidade de uma ética ambiental que nos permita identificar a responsabilidade individual sobre assuntos comuns, como a gestão de resíduos ou como os problemas relacionados à drenagem. E, por fim, o terceiro ponto que apresentamos como deficiente é a mobilização social, que veio sendo marcada por uma inércia e marasmo social diante de uma série de manifestações antidemocráticas que ameaçam a coletividade. Essa questão aponta para a necessidade de uma organização popular comum e colaborativa, entendendo que o comum vai além do público e do privado e pode, assim, compor espaços ativos na cidade. Todos esses pontos apontam para a noção da participação, a qual tem se tornado um tema muito discutido e acabou por significar diversas coisas ao mesmo tempo. Tal conceito, a exemplo de outros, como sustentabilidade, autonomia e empoderamento, na medida em que vão sendo utilizados com frequência, acabam sendo incorporados a discursos que subvertem seu sentido primário e escondem dentro de si ambiguidades latentes. Neste trabalho, a participação é entendida no sentido de valorizar a presença do corpo afetivo na cidade. Para tal, ela precisa ter elementos que convidem as pessoas para constituições de relações de composição. É a ideia de que cada um compõe a cidade, é parte dela e, mais ainda, pode tomar parte dela. Nesse sentido, acreditamos que seria importante uma articulação governamental de criação de

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instrumentos pensados em figuras jurídicas como a gestão compartilhada, mas, mais que isso, que na nossa sociedade da informação as pessoas conseguissem, através do comum, se instrumentalizar para agir nas cidades por meio do compartilhamento de conhecimentos, imagens, códigos, dados, informações, afetos. Visando a aproximação entre todos os corpos da vizinhança, incluindo seus moradores, o comércio local, os espaços comuns, ao mesmo tempo, que tende a apontar para a preocupação ecológica nas nossas cidades, propus o Guia de Elementos Urbanos Afetivos que procura mostrar que é possível a atuação de qualquer cidadão na busca pelo fortalecimento de espaços comuns na cidade. O intuito do guia é deixar os corpos mais expostos, mais suscetíveis à trocas de afetos com os demais corpos da cidade. A ideia de propor um guia de elementos urbanos afetivos vem da vontade de organizar um repertório de desenhos, projetos, experiências, ideias que possuam em si um potencial comum de apreensão sensível do meio ambiente urbano em oposição ao automatismo das cidades apressadas. Utilizando como chave de leitura a teoria dos afetos de Espinosa bem como ao pensamento da Ecologia, temos a vontade de olhar para esses elementos em sua dicotomia intrínseca inter-relacional com o cidadão entre afetar e ser afetado, ser parte e tomar parte. Os elementos urbanos propostos não são intervenções urbanas no sentido de algo que vem de fora, uma operação exterior à lógica local. Mas são um reconhecimento de ações que já estão em curso na sociedade. Não é um projeto taxativo, apresenta-se como uma proposta de composição com os atores locais, de ação compartilhada,

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fornecendo um agrupamento de elementos, todos eles existentes e latentes de expansão. A escolha por elementos táticos, em sua maioria, está relacionada com a inversão de perspectiva sobre como os espaços públicos são construídos e reconstruídos nas nossas cidades. Com a utilização de elementos efêmeros, torna-se possível, ao mesmo tempo, ativar as discussões sobre os lugares comuns da cidade e melhorar a qualidade ambiental desses espaços. De certa maneira, volta às origens do planejamento urbano pelo fato de permitir colocar em debate quais são as necessidades do espaço público a partir da perspectiva dos seus cidadãos antes da efetivação definitiva do projeto urbano. Dessa maneira, quando ocorre a posterior intervenção sobre esses espaços, a vizinhança já pôde estruturar uma rede de vivências afetivas que não permitirá transformações alheias à sua realidade, e, assim, seguramente serão realizadas a partir de um outro ponto de vista mais diverso, complexo e ecologicamente mais coerente. A despeito de toda a legislação que abarca o urbano, as nossas cidades parecem ter crescido ainda na desordem, na ausência de normas. Parecem aceitar que em certos espaços se faça necessário o cumprimento legal das normas urbanísticas enquanto outras, aquelas historicamente esquecidas, sejam completamente desconsideradas. Esse trabalho entende como completamente importante os nossos avanços relativos às normativas urbanísticas, entretanto, entende também que elas não foram suficientes. Isto é, hoje vemos que não alcançamos a cidade que esperávamos. Nós, durante muito tempo, visitamos e insistimos unicamente na polis, está na hora de “fazermos as pazes com a

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asty”01 e atuarmos por meio de um desenho urbano que se coloca aberto para receber relações de composição com os demais corpos da cidade, bióticos e abióticos. Esse trabalho procura incentivar esse tipo de prática, promovendo espaços produzidos pelos seus cidadãos, que sejam próprios a outros usos que não o da mobilidade apenas, que sejam mais simpáticos à formas mais diversas de uso do espaço comum. É uma maneira de planejar a partir da experiência, da prática, que se concretiza na escala local do desenho urbano. O guia se enquadra em uma visão do planejamento urbano que reconhece a importância da escala micro e que incorpora um ponto de vista pró-ativo e não puramente normativo como se caracterizam majoritariamente as políticas urbanas. Nada mais é do que a apresentação de elementos que, ao meu ver, geram condições que favorecem encontros ativos e nos convidam a compor com eles, de modo que nos identifiquemos com o espaço urbano. São elementos que diversificam as nossas formas de interação com a cidade, entendendo-a como lugar de encontros e de vivências afetivas. Elementos que nos afetam, mas que também podem ser por nós afetados. Tais elementos foram pensados em três princípios estruturantes do guia: naturalização, pacificação e pausa. Por naturalização entendemos aqueles elementos que nos possibilitam uma proximidade maior com as estruturas naturais, nos sensibilizando para a nossa responsabilidade enquanto parte constituinte da cidade. Busca-se desenvolver mecanismos de recuperação que tragam visibilidade a esses elementos naturais e da paisagem, propondo uma cidade que ofereça a nós possibilidades de composição 01

A CIDADE. Série A Cidade no Brasil. São Paulo, Sesc Tv, 2019. Programa de TV.

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com ela. De tal maneira que podemos nos relacionar ativamente com esses elementos, pois passamos a conhecer, pela causa, sua constituição natural. A pacificação passa, antes de tudo, pela necessidade de se repensar os espaços em direção à uma maior segurança, garantindo meios básicos para a permanência na cidade. Propõe-se reconquistar os lugares atualmente destinados aos meios de transporte motorizados, liberando-os para as mais diversas atividades que a população possa desejar. Por sua vez, os elementos urbanos de pausa refletem a necessidade de parar e permitir ser afetado. Nossas vidas cotidianas aceleradas passam pela cidade e não nos damos o direito de parar para olhar, escutar, sentir e pensar. Esses elementos nos convidam, a partir da interação mútua, momentos de maior reflexão sobre a nossa relação com a cidade.

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