KWØ | KWZero

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MANUEL VIEIRA - PEDRO PORTUGAL - PEDRO PROENÇA

D O C U M E N TA


GENEALOGIA DO KWØ K4 Quadrado Azul (Almada, Santa-Ritta, Amadeo) KWY (informalismo, neo-figurativismo, etc.) ALTERNATIVA ZERO (estruturalismo, fluxus, arte conceptual) KWZ KWØ KWØ(s) HOMEOSTÉTICA (Educação Espartana/Continentes, Pavão Zero, 6 = 0) EXPLICADISMO (Nartureza, Expliks e Artomos) TRETATERISMO (6 = 9 = 0) PANDEMOS (Pornoecologia, {z}Eros C’est la vie) ZUTURISMO (Almanaque Zuturista ou o Øturismo) ARTHOMEM (a performance como cinema Ø) Exposição KWØ


Filme PANDEMOS, 2014

Filme PANDEMOS II, 2015

Performance ZUTURISMO Teatro S. Luís, Lisboa, 2017

Performance e filme ARTHOMEM CIAJAG, Guimarães, 2018


Este livro é publicado por ocasião da exposição KWØ na Galeria Valbom, em Lisboa, em Outubro de 2020 A exposição foi tornada possível por Júlio Alves Nemo Suporte adicional dado pela Fundação Etno-Estética, Aka Van Lis Fund, Rosalina e Roberto Ravomar, Osvaldo I. Marrocos & Sandra Marrocos e Fundo Transmontano para as Artes

Título original: KWZerø Licenced by The University of Badmington Press, Badmington, Ohio, U.S.A. Tradução: John R. Pereira Revisão: Joel Estima Capa e Paginação: Violeta Romeu

A publicação teve o apoio da Samuel S. Novac Foundation e Critaplig Dormquist Inc. Revisão literária e entusiasmo: Rita Taborda Duarte Clarividência: Giuseppe von Lander Grafismos: John Rindpest

© Asa de Icarus, Editores S.S. Reservados todos os direitos. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida de nenhuma forma ou por qualquer meio, electrónico, mecânico, incluindo fotocópias, fotografia, ou qualquer outro sistema, sem a permissão por escrito do editor.

Entrevista: Renato Ornato Créditos fotográficos: Luís Ginja, Pedro Delgado, pp. 93, 98, 111 e 112 Pierre Guibert Assistência técnica: Teresa Neto Capa: Arthomem, com.M Tipografia: Berthold Akzidenz Grotesk Papel GardalPat Bianka, 130 gr. e Woodstock Grigio, 120 gr. Impresso e encadernado por Verona Libri, Verona, Itália

Depósito Legal 000000/20 ISBN 978-989-9006-55-3 1.ª Edição: Outubro de 2020 Tiragem: 1500 exemplares Asa de Icarus, Editores S.S. Praça Duque de Salsichor, 69 - 6.º S. 1234-567 Lisboa Tel.: 213 456 789 E-mail: sol@asadeicarus.pt


AGRADECIMENTOS Aca Van Lis, Fernando Brito, Adriana Alcântara, Artur Rebelo, Céu Espírito Santo, Diogo Gonçalves, Carlos Mota de Oliveira, Ramanefer, John-Kim Caettano, Cecil B. de Mille, Rupert Extetick, Laila Bocharelli, Yventor Chupaky, Bruno de Almeida

KWØ

ou KWZero começou por ser KWZ em tributo aos artistas do grupo KWY dos anos 50/60 do séc. XX e também à Alternativa Zero de Ernesto de Sousa (1977). Nesta exposição são apresentados um conjunto de obras inéditas dos artistas Manuel Vieira, Pedro Portugal e Pedro Proença. Motores criativos de marcos artísticos imateriais da cultura em Portugal como: Ena Pá 2000 (1985), Homeostética (1986), Ases da Paleta (1989), «Etno-Estética» (1994), Candidato Vieira (2001), Orgasmo Carlos (2006), Explicadismo (2010), Pandemos (2014), Zuturismo (2017) e Arthomem (2018). Esta longa parceria artística revela agora a sua variante mais xamânica, pós-neo-platónica e demiúrgica, onde o daimon da arte é revelado como um oráculo ao espectador. Atingindo-o no coração do mal-estar, onde é mais frágil, onde está disposto a rir, chorar ou a extasiar-se. KWØ apresenta centenas de objectos, esculturas, desenhos, fotografias, pinturas, videos e várias performances, durante a inauguração que fazem o corpus desta eucaristia artística: um apelo à dissolução conceptual, estrutural e não-verbal do que é produzido como arte contemporânea.


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CONTEÚDOS 10. A «ESPONTANEIDADE FORÇADA» DO GRUPO KWØ, Teresa Neto

68. Eduardo VII o Designer, Pedro Portugal 70. Contrariedades, Marão Rato

14. Fotonovela ARTHOMEM 24. A explicação do KWØ (KWZ; KWZero), Pedro Proença 25. KWZeroernesto-de-se-ousa — Z-Er(os) nesto, Pedro Proença 29. O Génio e a Loucura, Alberto Caniche 31. O CICLISTA MELÓMANO. Diálogo entre o Candidato Vieira e Orgasmo Carlos acerca da performance, Manuel Vieira 47. MANUEL VIEIRA, pintor de domingo entrevistado por ÓSCAR SANTOS, Director do Museu de Arte Moderna de Fátima 52. Aberrations Agrícoles au Portugal (III — Alentejo), Pedro Portugal

72. SER OU NÃO SER ARTISTA, Nakama Kontuza 74. CONCEPTIST ART. Coordenação de Pedro Proença. Contribuições de Fabiana Sorrento, Fernando Brito, Júlio Pontinha, Eric Harper, Francesco Manfano, Mario Gonzales, Oka Trika, Manuel Gomes, Yosuph Singer, Sandra Alexandra, John Rindpest, E. Christo, Nakama Kontusa, Mike Manolo, Luigi Bomarzo, Manuel Vieira, Gonçalo Lupi, Bonito Olivetti, Betina Crash, Luís Mendonça, Marge D. Niro, Marx E. Nest, Pedro Beiras, Lucas Sacul, Mikhail Vochenko, Miija Haky, Pierre deLalande, Pedro Portugal, Maria Tzara... 76. A ARTE CONCEPTISTA 77. MANIFESTO CONCEPTISTA

64. A extraordinária fantasia megalítica de Luis Gardete, Pedro Portugal 66. Em Busca do Surrealismo Perdido. As pinturas de M. David Cabra na Galeria Azeredo Sampaio

79. GLOSSÁRIO CONCEPTISTA 81. BIBLIOGRAFIA CONCEPTISTA 83. OEUVRE KWØ

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A «espontaneidade forçada» do grupo KWØ Teresa Neto

A exposição KWØ de Manuel João Vieira, Pedro Portugal e Pedro Proença teve lugar na Galeria Valbom, em Lisboa, de 10 de outubro a 12 de dezembro de 2020. A mostra, acompanhada pelo presente catálogo e por uma edição de doze números das Revistas KWø, constituem elementos essenciais de ligação entre as obras dos três artistas. A palavra escrita desdobra-se em diversos suportes, cujo ponto de partida são múltiplas personagens artísticas, as quais funcionam como pseudónimos, ou até mesmo heterónimos, dos artistas. Estes heterónimos concedem entrevistas, realizam as suas próprias obras, em formato digital ou em peças incluídas na exposição. Colectivamente, o grupo produz manifestos de filiação dadaísta, com fortes influências pop e um humor característico. Como os artistas anunciaram, o nome da exposição está radicado no grupo KWY e na Alternativa Zero — já a exposição «Continentes» (1986) do Grupo Homeostético tinha constituído uma homenagem ao «agitador cultural» Ernesto de Sousa. Tal como a importante revista dos anos 50/60, também as revistas de Pedro Proença são em número de doze. De modo a contextualizar a acção deste grupo, é importante recuar aos primórdios da criação do movimento Homeostético, revendo a sua evolução. De Homeostéticos a KWØ’s O grupo Homeostética foi criado em 1982, pelos alunos da Escola de Belas-Artes de Lisboa, Ivo Silva (n. 1959), Manuel João Vieira (n. 1962), Pedro Portugal (n. 1963), Pedro Proença (n. 1962) e Xana (n. 1959). A primeira exposição tem lugar no ano seguinte, com o lançamento de dois números da fanzine Filhos de Átila durante a exposição. Seguem-se «Um Labrego em Nova Iorque» (ESBAL) e «Se em Portimão Houvesse Baleias» (Galeria Quarto Crescente, Portimão) em 1984, ano em que Xana se fixa em Lagos. Fernando Brito (n. 1957) junta-se ao grupo, começando por trabalhar 10

no número três da Filhos de Átila, tendo esta ficado por terminar e publicar. O ano de 1986 marca um momento de intensa actividade do grupo, e o fim do primeiro capítulo da mesma. No Círculo de Artes Plásticas de Coimbra organiza-se «Educação Espartana» em Janeiro, logo seguida por «Lisboa» na Rietveld Academie de Amsterdão no mês seguinte, e em Outubro a Sociedade Nacional de Belas Artes recebe a mostra «Continentes». A exposição pretende ser uma resposta à «Arquipélago», no ano anterior, uma colectiva de Pedro Calapez, José Pedro Croft, Pedro Cabrita Reis, Rui Sanches, Rosa Carvalho e Ana Léon, um grupo da ESBAL anterior aos Homeostéticos, então num processo lento de afirmação. Alexandre Pomar atribui a ressonância da mostra dos Homeostéticos devido à visibilidade do «braço musical» do grupo, Ena Pá 2000. Nos anos 80, a produção artística procurava ultrapassar a imagética de raíz revolucionária, passando de uma agitação política para uma linguagem artística estabilizada, a qual se pretendia séria e intelectualmente ponderada. Aliado a este novo panorama, assistia-se também ao despontar de um mercado de arte nacional propriamente dito, também estimulado pela inauguração do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, em 1983. Na década seguinte, o pseudónimo colectivo dá lugar às carreiras individuais dos artistas, que até então haviam corrido em paralelo. Com a candidatura de Manuel João Vieira à Presidência da República em 2001, o grupo volta a mobilizar-se, e dois anos depois a Casa das Artes de Tavira acolhe a «Academia de Vanguarda». A Fundação de Serralves é o palco de uma exposição antológica do grupo em 2004, comissariada por Marta Moreira de Almeida, pontuada por um catálogo profuso e de decisões editoriais arejadas, assim como de diversas actividades complementares. Quatro anos depois, celebram-se os 25 anos do movimento com um filme, premiado com uma menção de Honra no DocLisboa. O trio Manuel João Vieira, Pedro Portugal e Pedro Proença recuperam o sentido de acção colectivo com os filmes Pandemos I (2014) e II (2015), e a performance Zuturismo (2017), como os próprios artistas bem documentam no presente catálogo.


A performance e filme ARTHOMEM, realizada no ano seguinte para o CIAJG em Guimarães, ecoa nesta exposição, com a inclusão de um excerto. KWØ — Percurso expositivo Os visitantes são acolhidos na exposição ao som de Underneath the Arches, a música de 1932 de Bud Flanagan e Chesney Allen, que acompanha o pequeno vídeo da performance ARTHOMEM, o qual passa num ecrã ao fundo da sala. A entrada é demarcada por impressões fotográficas de grandes dimensões nas paredes: retratos de Manuel João Vieira, onde se apresenta, irreconhecível na personagem de «a da Cruz», e como «Orgasmo Carlos» na série Orgasmo Carlos e os 12 trabalhos de Cristo. Ainda neste momento inicial do percurso, os visitantes deparam-se com o pictograma universalmente reconhecível de um poop emoji de Pedro Portugal, executado em tecido de burel castanho, colocado no chão sem qualquer dispositivo de apoio à escultura, como uma base ou limitação à circulação dos observadores. Uma outra fonte de inspiração da exibição é aludida nas telas de Pedro Proença, onde vai recuperar a raíz modernista do «filão da revista de Orpheu» onde múltiplos elementos simbólicos, como um cachimbo magrittiano e as letras K, W e Z, são dispostos em planos bidimensionais coloridos (Rapto de Europa, Pedro Proença, 2018). O leque de influências expande-se temporalmente nas restantes obras, desde a Tête de taureau, de Picasso (1942) ao Comedian, de Maurizio Cattelan, a banana colada com fita adesiva no stand da Galeria Perrotin na Art Basel Miami em 2019 (CABEÇA DE TOURO e BANANOJI, ambas de Pedro Portugal). O Panda de cores invertidas, pelas suas dimensões e factor insólito, tanto marca a exposição no seu eixo central como permite separar os vários momentos escultóricos. A obra em peluche (de Pedro Portugal) serve de contraponto às múltiplas peças de Manuel João Vieira e Pedro Portugal, pontuadas pelos apontamentos discretos de Pedro Proença. Sob o pseudónimo Rosa Davida, surge um saleiro identificado como Curadoria, e ainda um conjunto de etiquetas identificativas.

Através da mimetização de placas museográficas, elementos mundanos do espaço positivo — como a câmara de vigilância ou um corrimão — convertem-se em obras de arte. Manuel João retoma a sua linha de trabalho que incorpora figuras autoritárias, aludindo iconograficamente ao espectro do Estado Novo, com o Salazauro em fibra de vidro, ou metaforicamente (As Cinco Quinas, 2020). Segue-se um conjunto de múltiplas obras de Pedro Portugal, dispostas em plintos brancos, procurando aludir a métodos tradicionais de exposição de peças escultóricas. Replica-se a obra, em peluche, The Fountain duchampiana e a respectiva base expositiva; ou o Zé Povinho da Fábrica Bordallo Pinheiro, agora de face obliterada, Anónimo. No andar superior da galeria, as restantes obras são dispostas em torno do imponente Transiberiano, que integra o conjunto de peças do «escultor e assembleur Porfírio Puig», «escolhidas pelo Curador» Manuel Vieira. A obra é pontuada pelos bustos de Lenine em torno da grande mesa, tal como a obra surrealista de Dalí, Hallucination partielle. Six images de Lénine sur un piano (1931). Na parede de maiores dimensões dispõe-se a série Banho de Antígona, de Pedro Proença, um conjunto de mais de quatro dezenas de aguarelas, reportando-se ao universo onírico já característico do artista. As obras enquadram-se tanto no percurso individual de cada artista como no do grupo, sendo apreendidas no seu conjunto, especialmente quando suportadas «teoricamente» pela edição das revistas e do Catálogo. O circuito de obras descrito não pretende ser exaustivo, apenas destacar pontos-âncora fundamentais para o encadeamento da exibição no espaço da galeria. Já na primeira metade dos anos 80 os artistas procuravam «agitar» o meio artístico português e de certa forma contrariar a seriedade e a «melancolia» estabelecida. Resta concluir que a espontaneidade do grupo pode ser «forçada» por constrangimentos temporais, mas de renovação temática constante. 11


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Capas de Pedro Proença para os 12 números publicados pelo KWØ entre 1999 e 2020


Capa do CD DIE SPHARE DER ABWESENHEIT, Giuseppe von Linder, 2010

Der wahre Alentejo-Ochse, Miija Haki, performance, Dusseldorf, 2014


Reicher Künstler / armer Künstler, Orgasmo Carlos, 2012, performance, Roterdão. 23


A explicação do KWØ (KWZ; KWZero) Pedro Proença A ideia de que a proximidade e o empenhamento implicam uma certa non chalace (ou uma distância auto-paródica) está no coração da condição post-homeostética, que é anterior à homeostética e deriva de uma cultura em que a revolução era acompanhada de cartoons e banda-desenhada. O art world ficcionalizou-se e tornou-se inseparável do seu segundo e terceiro grau. O que interessa são as relações ficcionais com a presença (ou ausência) de certos artefactos. Aqui se cumpre uma ideia nietzscheana que vai mais longe que a hiperrealização, em que os simulacros ainda tinham um papel a cumprir. Os simulacros são fábulas. Fábulas de fábulas sobre fábulas variando-se. Mas ao constatarmos o carácter fabuloso que se substitui à verdade, ao ideal, à história, e até às implicações catastrofistas, verificamos que a fábula exige alguns requisitos, que é o haver sequências narrativas e personagens. Narremos e personifiquemos. As teorias podem ser personagens. Exigem protagonismo. Sabemos desde há muito que ideias são daimons. Quando se escreve art as idea as idea também se pode apresentar a sua variante xamânica, art as daimon as daimon. O lado do daimon que aparece em Heraclito, Parménides e Empédocles a arte reencontra a teoria na apetência pelo fragmento, pelo título. Esse deve seduzir o espectador, deve vará-lo como um oráculo, atingindo-lhe o coração do mal-estar, onde ele é mais frágil, onde está disposto a rir, a chorar, a extasiar-se. A origem da exposição é uma homenagem ao KWY. Começou por ser KWZ. Avançou um passo até KWØ, um tributo à Alternativa Zero, ao Ernesto de Sousa (ideias sobretudo do Manuel Vieira). As implicações desta passagem são as de uma arte que seria focada no material, na matéria, na 24

esteira dos tachistes, dos matéricos e dos corporais, e que passou para a noção neo-platónica de imaterial, do famoso grau zero (zerologia?) com que os estruturalistas se contentavam. A desmaterialização da arte que originou a arte conceptual é essa mesma passagem de uma arte em que o não-verbal, o aleatório, o corpo, o telúrico, o silêncio, o poético, dá lugar ao conceito, à estrutura, ao processo, à consciência, ao grisalho. Mas Ernesto de Sousa foi confusamente conceptual, e sempre esteve no campo lírico da gente do Fluxus. O mesmo Roland Barthes do Grau Zero e do estruturalismo rapidamente deslizou para o ethos algo burguês (com o seu lea e desconforto) do Discurso Amoroso. E é discurso amoroso que se trata quando pensamos no zero — o zero é a sua pluralidade, o zero é z-eros. Na lógica identitária de Ernesto de Sousa, em que o meu corpo é o teu corpo e o teu corpo é o meu corpo, muitas coisas se podem deduzir. Por exemplo, se só dissesse o meu corpo é o teu corpo, tratar-se-ia, como bem viu Ernesto de um acto performativo-sacrificial de Dádiva (ou, como diz, de Dar Vida). A sua inversão é uma espécie de canibalismo, ou a lógica da predação em que o predador se torna a presa (e René Thom fala disso nas extrapolações à teoria das catástrofes). A versão, sendo comutativa, faz com que a dádiva coincida com a predação. Por outro lado, a generalização desta operação permite que os nossos corpos sejam todos os corpos. Neste caso dá-se uma eucaristia generalizada em que o corpo do deus (da graça) é o corpo em Festa. É claro que há uma alusão implícita ao tat tvam asi dos hindus, ao tu és isso, lógica identitária, que faz coincidir a sensação reflexiva de um pronome com o Outro (o Absoluto?). Aqui em Ernesto essa coincidência é explícita. A coincidência do «meu» corpo narcísico, o corpo que me é e de que sou o «proprietário» através da apropriação pronominal (como em Stirner), é o corpo do Outro, o corpo identificando-se com todos os corpos, fremente, erótico, participativo, em transgressão, outrando-se. Narcisismo coincidindo com Dionisismo. Trabalho sobre si coincidindo com a Comunhão, a Participação.


KWZeroernesto-de-se -ousa Z-Er(os)nesto Pedro Proença O que em Ernesto é dito expressamente (quantas vezes?) é que os textos, a teoria, são performances, e que toda a arte é body art — toda a enunciação conceptual é a de um corpo (se possível em festa). No meu ponto de vista a importância somática do pensamento entrou na década de 80 em confronto com as intuições desmaterializantes de Lyotard e de Braudillard quanto aos desígnios do mundo e da tecnologia, o que me deixou varado. Ora o carácter meramente combinatório da tecnologia é capaz, por pura combinatória, de produzir imagens, textos, pensamento, processos, vivências. É em John Cage, no uso serial-aleatório do I Ching, e em Soll Lewitt, ao insistir na serialidade como experiência «mística» que a imaterialidade se expande em experiências — o acaso que delas se solta está sempre articulado a regras de tipo oulipiano. Da democratização informática até ao uso generalizado desta nas nossas vidas, a arte recorre ao ready-made cada vez mais popisado, de Duchamp revisto por Warhol. A relação não-elitista dos homens com os computadores inicia-se na década de 80. Antes já havia a calculadora eletrónica. A sensação de desmaterialização expande-se praticamente sem resistência. Se as ferramentas são extensões dos nossos corpos, os nossos corpos são de alguma maneira extensões de ferramentas. Ernesto de Sousa, homem vindo do cinema, sempre valorizou a dimensão tecnológica, e em 83 escreveu (glosando Mauss) que a máquina mesmo informática é um prolongamento do corpo. A nossa consciência é feita com o audiovisual, o nosso corpo tornou-se, já depois da morte do Ernesto, um info-corpo (também o nosso corpo é, inversamente, um prolongamento das máquinas informáticas e outras). E esse corpo é viral, interactivo, através da internet, onde hoje ocorrem todo o tipo de

trocas. A actual diferença relativamente à Sociedade de Espectáculo, na forma em que esta se apresentou até à década de 90, é que esta se tornou interactiva, e que os nossos corpos se diluem (e resistem) nessa interacção espectacular. Através da internet o meu corpo que é o teu corpo tornou-se num enorme corpo info-comum, ao mesmo tempo colossal e insignificante, com a sensação de real alienação, mas também com a capacidade de produzir micro-acontecimentos que se podem tornar virais em pequena ou grande escala. O termo viral é sintomático, pois designa a doença errante, assim como o que nos desenvolve imunidades e competências. A revolução tecno-erótica e a info-escravidão co-existem e é difícil separá-las. As formas de servidão não se diluíram com a tecnologia. Os neo-fascismos surgem não apenas de uma incontida violência e do medo do outro, mas também da des-somatização, do mal-estar tecnológico, da saturação de informação e da poluição ondulatória, etc. Fala-se ainda em mudar hábitos, mas temos mudado radicalmente de hábitos nas últimas três décadas. Assistimos, à escala global, à passagem de hábitos muito rudes e localizados, a outros que implicam descorporalização, virtualização e acesso a uma quase infinita informação, assim como a novas ferramentas que nos podem re-corporizar e melhorar. Pode-se falar de glocalizar-mundializar — e nesse contexto a globalização hiper-capitalista leva a palma, possibilitando que os híbridos glocais se espalhem virais. A nossa sensação de desorientação deriva da velocidade de adaptação à necessidade de ser profundo, sensual e humano à medida que os corpos e as consciências não têm tempo ou capacidade para pensar no seio da conectividade por ora digital. A saga dos três quase velhos artistas do KWØ é uma saga juvenil que se vai atrapalhando com os percalços da idade. Há um outro artista que não está presente, Fernando Brito, que projecta a sua sombra feita de obra, vida e muita conversa. 25


Na meia dúzia de anos que precedem esta exposição fizemos a exposição e o filme Pandemos, a performance Zuturismo no teatro S. Luís e o ciclo de exposições-filmes Arthomem. Há aqui uma componente performativa que se tem vido a tornar ainda mais evidente, ou institucional. O lado teatral, de personagem tem já uma longa história. O texto de Manuel Vieira sobre as suas performances é um texto em que a autobiografia, a ficção desbragada e a meta-teoria se confundem para nos deixar desorientados, a saber coisas importantes. Só o poderia escrever deste modo desconcertante. Qualquer um destes artistas nos deixa desorientados, mas após quase 40 anos de cumplicidade continua a ser difícil perceber que este lado não é simplesmente maroto e des-construtivo — é também a estratégia de alcançar um inter-lirísmo intrínseco, acompanhado da doçura e da alegria. Não é um trabalho de grupo uniforme (um colectivo), não é um duo tipo Gilbert & George, não é uma formação conjuntural que surgiu apenas como fenómeno geracional e afinitário de promoção e expansão. Podíamos ver-nos como cada um para seu lado fazendo o seu percurso, percurso que se cruza muitas vezes, para além da antiga amizade. Há uma vontade de continuar a partilhar, manter vários registos e distribuir competências. Por outro lado surgem os alter-egos, partilhados, individuais, alguns desde há muito (1985) — Luís Mendonça, Augusto Barata, os Fréres Hitler, Orgasmo Carlos, Sandralexandra-Sóniantónia, o Candidato Vieira. Pedro Portugal pratica, como um actor, uma variedade de looks. Outrora fez os seus assistentes passarem por ele. As suas fotografias têm sempre uma componente performativa. Há um lado de direcção de actores muito pragmático que é ele mesmo performance. 26

Com os anos tornou-se um homem-cinema defensor da alta-definição e da imagem completamente focada — o hiper-realismo cinético. A sua estética fria-clínica contrasta com a estética dramática-a-ferver de Vieira que tem o sentido da cena e do cenário, do arcaico e do pitoresco, do espectacular e do embriagante. Vieira, por seu lado é um mestre zen-dionisíaco na técnica górgiana de responder a perguntas sérias com o irrisório e de desconstruir seriamente o cómico não só dos outros, mas também o seu. Os seus alter-egos multiplicam-se para lá dos grupos de música. Também as minhas personagens se têm vindo a multiplicar como se fosse uma inevitabilidade processual, uma forma de autenticidade secreta. A vida é uma alquimia e as nossas personagens sendo-nos ajudam-nos a aprofundar e a mudar de vida, a ser mais íntimos e profundos, a dizermos o que nunca pensaríamos dizer, ou o que queríamos mais intimamente dizer. Por vezes não nos reconhecemos nelas, e segui-las é um pouco como seguir até ao fim uma possibilidade combinatória. Como em Sol Lewitt, entregar-se à lógica da personagem, às suas tautologias-afectos fundadores, é o místico wittgensteiniano, a incursão no que ainda não se sabe dizer (quase uma teologia negativa). Seja em termos individuais, seja em heterónimos colectivos. Da ideia do artista enquanto personagens-heterónimos o trabalho desta exposição levou à outra ideia mais radical da pluralidade de art worlds, e quem diz de arte diz de outros domínios de criação artística. Toda a história da arte, assim como a actualidade desta, pode ser ficcionalizada e ter uma espécie de mundo paralelo, um segundo (e um terceiro, etc.) mundo de arte, com uma genealogia ficcionalizada. KWZ começou por ser a ideia de que existiu outro grupo de finais dos anos 50, parecido com o KWY, dotado de críticos, polé-


micas, narrativas, etc. Fiz 24 capas da revista, uma vasta produção de livros de Jorge Judas e de Bernardete Bettencourt, muitos dos quais disponíveis no ISSUU, assim como entrevistas, biografias (uma publicada na última página do Courrier Internacional), textos teóricos e algumas obras de arte.

instituições, os pequenos detalhes, museus, logotipos, galerias, correspondências, press-releases, curadores, livros, revistas, etc. O paradoxo de um mundo paralelo que procura responder ao Art World 1 é que este o devora sem que se dê conta, mesmo que o Art World 1 venha implicitamente já devorado no Art World 2, 3 ou 4.

João Goes, Fernando Ramos e Amâncio Pereira que aí aparecem nomeados não têm por enquanto obra.

É o paradoxo do mapa — qualquer mapa do mundo é suposto mapear-se e situar-se. Mas o outro paradoxo, que é o da internet, é o de saber onde estão as coisas — em vários écrans?

A prática tornou-se extensível como pseudo-movimento, o fakism. Estas ideias, porém, já estavam implícitas na série de notas e novelas ligadas ao ciclo Budonga, iniciado em 1985, desenvolvidas por estes artistas e Fernando Brito, que irá publicar em breve a novela Marmóreo Odeon. O fakism já então era teorizado — a «fraude de fraude», a «teoria das fraudes elementares», etc. Assim como obras aludindo a isso. A exposição Ases da Paleta, em que não estive presente, e que contou com a participação de Portugal, Brito e Vieira (mais João Paulo Feliciano) em 1988, foi uma exposição de heteronomismo avacalhador neo-conceptual, percursor do que hoje é muita arte. Nas obras de Vieira e Portugal há o falso pathos de quem chora — os artistas que choram, ou o menino com lágrima ao canto do olho, com um «Porra» — o crítico dirá que por baixo disso há um trabalho de luto, plenamente barroco. Não se chora pela arte, mas algo relacionado com a «arte morreu», e os artistas reagem ou com o seu corpo, ou com ironia quanto ao sentimentalismo. Na obra de Vieira não é o menino kitsch que é plenamente parodiado, mas o próprio PORRA em letring, como na altura se dizia, de computador (à maneira de Leonel Moura ou Barbara Kruger) — invasão do digital, do up-to-date, frio, sobre o «humano». Podia-se continuar a pintar, é certo, como persistindo num equívoco. Um equívoco belíssimo, diga-se de passagem. Interessa salientar que o fakism não se limita a duplicar a produção artística, mas também as

São armazenáveis, é certo, nos dispositivos, nas clouds, etc? A desmaterialização atinge o seu apogeu em obras que, como na arquitectura, são criadas digitalmente, projectadas, como imagens reais que as antecipam. Trata-se de produzir documentação do inexistente, isto é, de falsificar. O processo de demiurgia platónica baseia-se na prática da arquitectura — a ideia, o conceito, a maquete, antecede o projecto que antecede o edifício, vulgar simulacro. Quando uma falsa imagem fotográfica é impressa (o que é vulgar) torna-se concreta. Quando essa imagem passa a objecto num espaço semelhante, criando uma instalação, a ficção barata de produzir imagens torna-se uma ficção cara que rouba espaço. O que é interessante é fazer passar constantemente imagens destas por verdadeiras — convencer o espectador, seduzi-lo. Estamos no domínio da suspensão da descrença que já era o da arte (ilusionista) e da literatura (do conto, do mito, do romanesco). Voltamos à apaté da pintura helenística e à ekphrasis que a rodeia e a desenvolve. Recordemo-nos que Eurípedes era pintor, e que é em Eurípedes que a psicologização da tragédia a mata — eis a tragédia da tragédia. Sócrates, que começou por ser escultor, irá para a rua, tentar devolver a presença própria da escultura contra a ilusão da pintura, mas Platão acabará por traí-lo, com os seus paradoxos. O Diálogo filosófico é ao mesmo tempo um pastiche da tragédia e um esforço de «realismo». 27


Mais tarde um outro ex-escultor, Luciano de Samósata, tentará devolver a resistência do real à apropriação conceptual da filosofia através de múltiplos processos paródicos, seja pelo romance, seja pela narrativa. As roldanas dialógicas entre Eurípedes e Luciano operam quer o mascaramento quer o desmascaramento. Aqui surge também Filóstrato, como agora, por exemplo, Vila-Matas. Escreve um romance-biografia sobre Apolónio de Tyana. Escreve as Vidas dos Sofistas, e também uma descrição de pinturas. Há nestas obras um combate da retórica contra a filosofia, da arte de iludir contra as ilusões da arte de desiludir que é a filosofia. Do ponto de vista da sofística é a ilusão que cria a realidade, e devemos encarar a linguagem com desconfiança porque é dotada de uma plasticidade muito maleável. Daí que para a sofística a filosofia seja a mais fakista das actividades. Em termos de pura lógica o sofista, ou o retórico, sabem no seu íntimo que são honestos consigo, ao persuadirem com todas as ilusões e recursos. Pelo contrário, o filósofo usa esses recursos com ingenuidade e é vítima das ilusões da linguagem, produzindo desilusões, aproximações, etc. Aproveitando a deixa de Vila-Matas leio-lhe em nota de rodapé: Ao ver que entre nós começa a ser moda o engano, a fraude artística — uma tardia homenagem hispanica ao Fake de Orson Welles, por exemplo —, a poética já trilhada do heterónimo, o remake que atraiçoa o espírito do imitado, o cibernético como ilusória creditação da modernidade, todos os tópicos de uma pós-modernidade que nos chega tão tarde (castiços comentadores vernáculos registando agora a existência de «autoficção» quando desta já passou o seu melhor tempo há mais de duas décadas), acabamos por decidir que o melhor será permanecer no autêntico que tem todo um caminho próprio. Teria ficado derreado se o não subscrevesse, embora esta objecção paire sobre o que antes disse. Não nos movemos sequer por um desejo de moda ou desligados da autenticidade, da personagem tagarela que deambula filosofal com um coro trágico entre as pernas. 28

A heteronomia é sempre um dissimulacro em forma de crescimento. Crescer ficcionalmente para dentro, como o fazem os leitores identificando-se com autores de livros ou com personagens. Diremos, em nossa defesa, que a pluralidade do sujeito é de alguma maneira um dado, uma aptidão natural, e que a propensão para nos irmos shakespearizando é bom caminho, perdoem-me a comparação. Acrescento em termos de manifesto: é urgente shakespearizar-nos sem nos limitarmos ao modelo. Há que multiplicar em cada um as possibilidades de o humano se re-inventar e diversificar mais a sua «humanidade», a polilógica, os estilos, para lá da literatura. Manuel Vieira queixava-se de que a arte se está a tornar literatura, ou antes, um conjunto de objectos bizarros que se socorrem de explicações ardilosas, na maioria das vezes pretensiosas e em boa parte acéfalas. Muitos deles fazem supor que a revolução ou a salvação do planeta depende de textos onde impera a retórica burocrática. Temos uma versão mais modesta sobre a eficácia da criação artística. Muitas destas obras são, como sempre foi a dita cuja arte, uma forma de entertainement das elites culturais e económicas, e boa parte delas, de facto pensar, rir, chorar, e aceder a experiências interessantes. Outras são profundamente chatas. O que é claro é que, na dupla intervenção de uma literatura em conjunto com imagens e objetos, seja possível fazer uma literatura-arte superior de «vanguarda», mesmo que seja uma vanguarda academizada, mainstream e sustentada pelos poderes públicos. Não vale a pena lamentar o que quer que seja. Basta ler o Satyricon para ter uma ideia de déja vu. Também ficamos com a ideia de que os grandes romances, do Satyricon, ao Quixote, ao Tristram Shandy, ao Ulisses, etc., nasceram canalizando a aparente paródia para o mais humano.


O Génio e a Loucura Alberto Caniche A Arte contemporânea tem um problema: é demasiado óbvia, quase demasiado sã. Já não há malucos como o Van Gogh a fazer arte. Eu faço Arte Genital, arte Genial. Sou um génio. Algo escusado em Arte Contemporânea. Mas... Todos os grandes malucos foram homens geniais. Cavaco Silva III, por exemplo, depois de cair do cavalo ruço elaborou a teoria da irrelevância e Jorge Jesus só se tornou um amestrador de focas de génio depois de morrer na cruz. Mas nem todos os génios o são por força de algum acidente doméstico ou de viação. Kim Jong Ill, por exemplo, já nasceu possuidor de milhões de neurónios predispostos para a genialidade e é um homem perfeitamente normal que vai á sua mercearia no bairro alto onde é tratado por seu Kinjongue e leva uma vida modesta com as freiras da fraternidade amorosa na rua das gatas. O «Noivo», pintor de nocturnos lisboetas, que recebeu um choque apocalíptico no dia em que se ia casar, com a morte da noiva, proferia geniais impropérios aos transeuntes, aos quais ladrava mimos como «Súcia de parasitas», «canalhas», «não há direito» e coisas assim. Ainda o ouvi e recordo com saudade os insultos elegantes articulados com fera lucidez. Van Gogh terá sofrido de psicose e inaugurou uma nova estrada na arte Moderna, assim como uma nova disciplina, a orelhoctomia. Mas o génio nota-se também nas pequenas coisas: Toulouse-Lautrec não padecia de nenhum quadro clínico onde figurasse alguma perturbação mental, mas era particularmente baixo, o que também pode ter tido influência no génio de Napoleão I, imperador da Europa e de uma nova era que já era.

A verdade é que no fundo somos todos uns gandas malucos que fazem um esforço ciclópico para parecerem normais. Quando tiramos o casaco ao chegar a casa depois de um longo dia no escritório e de a nossa pretensa namorada nos ter deixado, isto depois ainda de termos deixado o automóvel cair da ponte sobre o Tejo, olhamo-nos ao espelho e vemos o Chewbacca como nosso reflexo a gaguejar onomatopeias. Centopeias tomam conta dos nossos cérebros e prontamente nos pomos a ruminar caruma. Para começar a escrever este textículo bati com a cabeça algumas vezes na parede, pois estava-me a sentir demasiado são. Demasiado São, já não vejo a São há alguns anos. As lágrimas escorrem grossas como óleo Fula nos canos, mas não por causa da São. São como são. Tenho a certeza de que alguma perturbação profunda me avassalou depois de um trauma tão intenso que não resta dele qualquer memória. O que terá sido? Tenho saído com êxito dos hospitais mentais. Anda, Bobi, já enganámos mais um, diz o maluquinho para a escova de dentes que arrasta por um cordel. Dizia-me o meu pai que certa vez ao tentar encontrar a saída do hospital Miguel Bombarda ou Júlio de Matos, onde iria fazer um projecto, perguntou a um homem pela saída. Respondeu o homem: Também gostava de saber onde é a saída, já estou há quinze anos à procura. Pode-se com certeza ser um génio e não ser perturbado, ser-se perturbado e não ser um génio, ser-se um génio perturbado. Mas não tem a mesma piada. Alexandre Graham Bell não inventou a penicilina e Alexandre Fleming não inventou o telefone. Dois falhados. Houve um ou mais génios a planear o incêndio do pinhal de Leiria. Eram perturbados? Não. Honestos empresários que apenas querem rentabilizar o seu negócio passando por cima 29


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dos malucos que somos todos nós, malucos que vêm um país a arder, a ser poluído à nossa custa, malucos que dão o seu dinheiro aos bancos falidos, aos hospitais privados, esmagados pelos grandes génios da finança. Que não são nenhuns malucos.

«Nossa Senhora me dê a mão, cuide do meu coração, da minha vida, do meu Destino.» Não há pão para malucos. Acreditamos no Pai Natal, mas no fim não há nada no sapatinho. Mas se formos mesmo malucos a sério dão-nos uma cama num hospital e não pagamos mais impostos.

A experiências com drogas alucinogéneas, álcool e Sumol de ananás não são alucinogeniais para lá do momento fugaz em que lá estamos. Na realidade a verdadeira loucura é a sociedade organizada como máquina de comprimir a Natureza. Muito mais extravagante e alucinante. Como diz um génio da nossa civilização judaico-cristã, Marco Paulo:

Camões era maníaco-depressivo, Bocage neurótico, Fernando Pessoa bagaçómano, Camilo Pessanha opiómano e eu próprio não me sinto lá muito bem. Mas o génio que prefiro é o de não ter nada para dizer, pronunciar palavras incoerentes em tom militar, não fazer ideia do que estou aqui a fazer e passar um mês a olhar para as moscas a bater contra os vidros da minha janela.


celo dos Campos), verdadeiro inventor da anti-arte. É triste. Não tinha dinheiro para registar a patente... O Franciscanismo pelo cano... estava pois, por acaso, a passar, e não pude deixar de o ouvir e de sentir que este frágil personagem, que me parecia vagamente familiar, estava perdido, como um viajante pertencente a uma dimensão diferente da nossa. Ele próprio constituía, na sua pessoa, nos seus gestos, no íntimo mesmo do seu pensamento, uma Performance na galeria dos meus sonhos. Quando me viu, olhou para mim com os olhos muito abertos, apontou-me o indicador abruptamente e declarou:

O CICLISTA MELÓMANO Diálogo entre o Candidato Vieira e Orgasmo Carlos acerca da Performance À sombra das fachadas sinistras, desertas, na perspectiva acelerada dos estéreis labirintos de calcário do CCB (Centro Cultural Berardo) caminha um homenzinho peculiar, meia idade, de chapéu tipo tachinho, bigodinho à Cantinflas, fato às riscas amarelas e violetas, que mais parece tirado de um cortinado dos anos 70, e camisa de fantasia. É Orgasmo Carlos, artista plástico, ou, como ele prefere chamar-se, artista de plástico. De facto, de certa forma, é um artista de plástico. A sua existência é reduzida à de uma personagem de ficção, absurda, com contornos bidimensionais. Falta-lhe uma dimensão. Se olharmos de perfil, vemos que é tão fino como uma folha de papel. Detém-se perante uma escultura que parece a célebre garrafeira de Duchamp (Dos Campos), mas sem a aparência agressiva de aparelho de tortura que esta tinha, numa escala maior, com uma silhueta um tanto ou quanto mais feminina, cintura de vespa, onde crescem como frutos sem polpa as verdes garrafas do meu país (Budonga). Tchh... E ainda por cima ninguém quer saber que o original atribuído ao Marcel é na realidade obra de meu tretabisavô Theophilo Carlos (aliás Mar-

— Rapaz, eu sou Orgasmo Carlos, rei não coroado da Performance, não só sexual e orgásmica mas também dos limites da anti-arte e da anti-matéria: Para definições, meu rapaz, não há nada como espreitar o dicionário. Olha para a Wikipédia: a performance, art performance ou performance artística é uma modalidade de manifestação artística interdisciplinar que — assim como o happening — pode combinar teatro, música, poesia ou vídeo. É característica da segunda metade do século XX, mas as suas origens estão ligadas aos movimentos de vanguarda (dadaísmo, futurismo, Bauhaus, etc.) do início do século passado… «Mas suas origens» …Uma brasileirada. Sabes? Eu também sou brasileiro, mas respeito a língua indígena do rectângulo. E sou angolano, e timorense! Sou na verdade um artista cem por cento dos PALOP. Multiétnico. Multipistas. Multitudo, multimerda. Bem, mas onde é que eu ia? Ah!… Difere do happening por ser mais cuidadosamente elaborada e não envolver necessariamente a participação dos espectadores. — Não sei se concordo. As minhas performances não são mais elaboradas que um happening. Na verdade, não são mais elaboradas do que um pano encharcado nas trombas… Mas continuando… Isto sem espectadores é como um tipo masturbar-se sozinho com a prótese do Capitão Gancho… Em geral, segue um «roteiro», Ah Ah ou um traseiro — previamente 31


definido, podendo ser reproduzida em outros momentos ou locais. É realizada para uma plateia quase sempre restrita ou mesmo ausente e, assim, depende de registos — através de fotografias, vídeos e/ou memoriais descritivos — para se tornar conhecida do público. — Cá está. Precisa de registos para se tornar conhecida. Não houve nenhum Shakespeare a escrever para a Performance, é mais o que dá na gana de cada um… é porque é Arte, não é Teatro… Mas se houvesse, sem registos é como se nunca tivesse existido até alguém reinventar. A performance foi introduzida na década de 1960, pelo grupo Fluxus e, muito especialmente, através das obras de Joseph Beuys. Numa das suas performances, Beuys passou horas sozinho na Galeria Schmela, em Düsseldorf, com o rosto coberto de mel e folhas de ouro, carregando nos braços uma lebre morta, a quem comentava detalhes sobre as obras expostas… — Pois… Grande coisa… Tudo mentira… O meu Tretavô já tinha feito a mesma coisa, mas com o rosto coberto de merda, quer dizer, bosta. Foi em 1919, no núcleo Dada da Pampilhosa da Serra… Ou talvez no grupo de teatro amador dos Bombeiros Voluntários de Campo de Ourique? A minha memória é um diáfano casulo… Em alguns momentos, as performances de outros artistas tiveram ligação directa com as obras de body art, especialmente através dos Activistas de Viena, no final da década de 1960… — Estes activistas não conhecia. Viena do quê? Do Alentejo ou do Castelo? Caramba, falem português! Bom, esta é a definição patente na wikipedia em língua portuguesa. A estranhopédia, a estupidopédia. Curiosamente, se formos à wikipedia em inglês aparece o seguinte: Estás a ouvir ó como é que te chamas? — Vieira. Candidato Vieira. Candidato à Presidência da República por 6 vezes, campeão por KO ao 13.º assalto. O que também é uma performance. Realidade e Ficção num mil folhas de proposituras recheado com molho de Terylene. 32

— Não conheço. Não deves ser daqui. Pelo menos não és do meio. E se eu conheço o meio... E olha, ainda bem, nem sabes do que é que te safas… Mas ouve, está quase a acabar… A performance, in performing arts, generally comprises an event in which one group of people (the performer or performers) behave in a particular way for another group of people (the audience)... — Ora obrigadinho! É claro que temos que ser uns para os outros! Mas também podíamos fazer a performance para um espelho, Ou, como fez Jesus, para os peixes. Claro que alguém o estava a ver. No fundo é como a lebre do outro. Podemos ser performers e espectadores. Eu sou o meu próprio espectador muitas vezes quando não há mais público. Enfim… — Sometimes the dividing line between performer and the audience may become blurred, as in the example of “participatory theatre” where audience members might get involved in the production. Singing choral music, and performing in a ballet are examples. Usually the performers participate in rehearsals beforehand. Afterwards audience members often clap, indicating appreciation. However, sometimes this rule is reversed. In Japan, the greatest compliment is complete silence. — Se acham que no Japão é diferente haviam de ver na Papuásia-Nova Guiné... — Performances, for example in theatre, can take place daily, or at some other regular interval. Performances can take place at someone’s house, in a subway, or even at a dollar store. Talent, on the other hand, is subjective... — Ah, pois, o talento é subjectivo. Se calhar as definições não são! Granda novidade! Por isso é que há críticos, curators, conservadores de museus, filósofos, historiadores e outros teóricos! Para traduzir o intraduzível! Para que a Arte não seja perigosa. Uma obra, uma mensagem. Mas quem é que escreve estas coisas? Olha, rapaz:


Estes dois textículos tem algumas vantagens: Em primeiro lugar dão-me mais umas linhas de texto para encher o salpicão textual que agora enceto, em segundo lugar mostram a diferente abordagem nas duas definições, o inglês e o português-tipo-acordo-ortográphico, permitindo ainda um ponto de partida para este texto, que se revelará um pouco ziguezagueante. Estou a fazer um texto sobre a Performance, que conclui com a superioridade absoluta a nível planetário da minha pessoa nesta disciplina! Podes começar a escrever, e cuida da caligrafia. Eu dito: Até que ponto é que podemos dizer que qualquer coisa pode ser uma obra de Arte e, neste caso, uma performance? Em português a palavra «performance» pode ser situada aproximadamente recorrendo às palavras «desempenho», «prestação» e «acção». Eu, o grande Orgasmo Carlos, definirei lapalisseanamente (de vez em quando são necessárias palavras que não vêm no dicionário — Orgasmo Carlos inventa palavras maravilhosas em Palopês) a Performance como aquilo que é afirmado e aceite dentro do mundo da Arte como sendo uma Performance. Pode-se dizer que aquilo que transforma qualquer tipo de acção com as características formais de uma Performance numa verdadeira performance é o facto de se afirmar e de ser consensual (para quem interessa) que esse acto é uma verdadeira Performance. Isso aliás acontece com qualquer forma de arte contemporânea. E pronto, de resto, tudo é possível. o que equivale a dizer que nada é impossível é possível que tudo seja impossível é possível que nada seja possível No caso da definição que te li em Neo-Português insiste-se particularmente no papel do tal ex-piloto de caça, Joseph Beuys, como precursor deste género. Segundo alguns, as suas acções-bombardeamentos enquanto aviador do Reich não pertencem à sua obra artística. Este artista (colega meu nos maristas, conheci muito bem, hahaha) construiu um edifício de trabalho baseado na invenção de uma mitolo-

gia pessoal alicerçada em torno da projecção da sua figura como xamã, uma espécie de demiurgo, explorando uma ideologia do Ego. Natural na época do Charles Manson. É um caso paradigmático, que fez escola. Tudo copiado. Do meu trabalho. Mas falarei disso mais tarde. Elaborou, portanto, uma história baseada em factos reais da sua experiência pessoal, uma experiência de morte e de renascimento, etc. Vou contá-la, porque parece um conto de fadas, ou do vigário. Há também o vigário das fadas A vingança das fodas Zézé Bóbó patinando na gelatina tártara Começa assim: Era uma vez um piloto de caça do III Reich, o senhor Joseph Beuys, que passava a vida pacatamente no seu avião a bombardear e a metralhar populações indefesas, quando foi atingido, ou ficou sem combustível, já não me lembro, no meio da vastidão nevada da Mãe Rússia Soviética, ou do Cavaquistão. Talvez uma criança o tenha atingido com uma boneca. Não sei. Foi despenhar-se algures na Sibéria ou na Tartária onde, praticamente em estado de hipotermia absoluta, foi recolhido pelos indígenas locais. Os esquimós, ou os tártaros em questão untaram-lhe o corpo com banha e cobriram-no com feltro, além de outras coisas das quais não me lembro. Veio daí a ideia das energias potenciais acumuladas nessas matérias. A propósito, lembrem-se que o feltro vem dos coelhos e das lebres. Mas, portanto, isto para Beuys foi uma ressurreição. Tanto no sentido vital como profissional, porque não tinha jeitinho nenhum para o desenho. É a partir deste relato que é alicerçada a sua obra enquanto artista plástico e performer. O feltro e a banha permanecerão os seus materiais fetiche. As matérias energéticas, colocadas como símbolos do campo dionisíaco, passam ao mundo da forma, apolíneo. Tomou como modelo o meu trabalho. Fiz isso com bagaço e aguardente, mas conto depois. Aliás, Beuys, como eu, utiliza o próprio corpo como instrumento de trabalho, espécie de catalisador das energias psíquicas e essas coisas. Eu 33


também utilizo o meu corpo e bacalhau para expelir as más vibrações que me passam pela alma, faz muito impacto no público, até porque peso 110 quilos, mas o resultado é que estou gordo como um texugo. Noblesse oblige. Sou uma vítima da arte. Esta atitude, dizia, reescreve mais um regresso a místicas ligações da ordem da metafísica e simultaneamente à incorporação no trabalho de reflexos e sinais de ritos primitivos. Aliás, o regresso ao primitivo e a descoberta de outras transcendências estão na ordem do dia nos anos 60. Ninguém me ligou quando fiz isso nos anos 50. E continuamos com isso. O corpo de trabalho deste artista, mais ou menos paradigmático na sua persona de artista contemporâneo, vai desde a performance à instalação, passando por peças muito grandes, peças de pequena dimensão, estas últimas colocadas como reflexo e fragmento do todo do corpo da obra, relíquias de um santinho da arte contemporânea. Não quero aqui falar de outros performers que fazem coisas com os órgãos genitais, sangue ou matéria fecal, porque eu já fiz tudo isso em muito jovem e ninguém ligou nenhuma. Se ainda estão a ler isto é porque são uns completos idiotas. No caso do José Bois: uma dada performance ou uma performance Dada tem o lugar utilizando como cenário uma instalação, que depois pode ser considerada uma obra autónoma, mas que remete sempre, contextualmente, para os significados da acção ocorrida. Assim, quando se compra uma pequena aguarela de Beuys, ela é como uma pequena relíquia, fragmento do todo, e de certo modo reveste uma santidade comparável daquela que emana dos tubos de ensaio cheios do suor verdadeiro de Elvis Presley, das relíquias medievais ou dos verdadeiros tapetes de sela do general Custer, na medida em que fazem parte de um relato maior, de uma história, de uma construção narrativa e simbólica. Um pouco como Fátima. 34

Atenção: Não há lugar para o humor nestas obras, ao contrário das suas predecessoras dadaístas, surrealistas ou das magníficas festas frívolas nos jardins do Maneirismo e Barroco europeu. O ritual é uma coisa séria e este exemplo vai contagiar o modo de acção da maior parte dos performers contemporâneos. A própria falta de sentido de humor pode fazer correr o risco de que os não eleitos escarneçam e se riam dos projectos em questão. (Isto acontece com a transposição da Arte moderna para o mundo maravilhoso de Walt Disney. «Olha, um patasso! Vale biliões!» diz o Tio Patinhas.) Mas a própria ausência deste espírito é necessária para a imposição desta interdisciplinar disciplina como legítima. Entretanto esta forma de Arte tem feito o seu percurso, abordando novas formas e seguindo novas ideias no seu trajecto até aos nossos dias, assumindo, contudo, a partir da contemporaneidade, um certo novo academismo, como acontece a toda a vanguarda que se repete durante demasiado tempo. É, contudo, um campo que, pela sua própria definição contém sempre novas e múltiplas possibilidades. É aliás uma questão matemática. A interdisciplinaridade multiplica. Percebe o que eu estou a dizer? É que está a olhar para o espaço e não há pássaros… Enquanto o estranho personagem falava, ouvindo cada vez mais longe a sua verborreia anti-pedagógica, pensei em Alto de Cromerique, bairro horizontal, mas de ruas ortogonais, nas tardes e manhãs amenas, quando, de Inverno ou Verão, são obnubiladas por vezes pelo ruído obsceno de uma aparelhagem portátil (vulgo tijolo). Trata-se de um personagem de compleição débil, num desconcertante traje onde se misturam os estilos do ciclista amador e do ciclista-arrumador, que teve a original ideia de montar o diabólico aparelho sonoro sobre o guiador da sua


pasteleira. Estabelece um circuito rigoroso dentro do bairro e repete-o disciplinadamente, estabelecendo um pacto com os habitantes das esplanadas, que observam com bonomia e humor aquela espécie de maluquinho, ex-libris do bairro. Não estou familiarizado ainda com a história clínica do cidadão em questão. Existirá seguramente uma razão para este comportamento. Apesar do anacronismo nos meios, a sua sensibilidade moderna, na sua expressão futurista exprime-se nestas manifestações ambulatórias e ruidosas. Imita assim os adeptos do tuning, que interrompem o fio dos nossos pensamentos enquanto pastamos tranquilamente nos nossos lares com o vigoroso som dos ultragraves nos modificadíssimos automóveis. O bater das frequências ultragraves colide com os corpos, que as sentem como batimentos de um coração que vai explodir. Mas a aparelhagem modesta do nosso ciclista não chega a essas ambicionadas frequências. Porém, curiosamente, personifica um dos raros corações sonantes do bairro. Mas é esta manifestação passível de uma subconsequente reapropriação? Isto é, posso roubar as acções de alguém e transportá-las para o domínio da performance? No caso desta «transdisciplina», a apropriação duchampiana está ainda a dar os seus primeiros passos. É um domínio da exploração e da aventura. Tomei por isso a decisão unilateral (isto é trabalho) de qualificar este fenómeno, a que poderíamos chamar «a dança ritual do ciclista melómano», como uma minha performance. Poderia, para este efeito, ter escolhido outros rituais modernos, poderosos e caricaturais como as manifestações de virilidade motorizada dos tuners que o ciclista imita, por exemplo. Poderia, com uma certa distância histórica reinterpretar ou utilizar noutro contexto, represpectivando, por exemplo, performances ou happenings já realizados, por exemplo, pelo grupo DADA, pelo Fluxus, pela Alternativa 0 ou grupo KWØ. Porquê? Porque não? Por idiossincrasia artística. Isto é, por mania. A mania que a sociedade admite ser

um campo especial e privilegiado do artista (mais um ponto em comum deste com os maluquinhos). É imperativo seguir um caminho coerente ou incoerente, de acordo com as nossas orientações subjectivas, ou, pelo contrário, racionalmente, de acordo com um programa específico, ou ainda, de acordo com as nossas inclinações ou inscrições ideológicas ou racionais (que no fundo são sempre irracionais). — Boa, estás a aprender. A simples presença física do grande Orgasmo Carlos provoca esse tipo de reacção nas pessoas. Não me apercebi que estava a pensar em voz alta perante o olhar circunflexo de Orgasmo Carlos. — Como é evidente, para quem conhece o «ramo», compreende-se que este acontecimento só pode ser entendido como um objecto pertencendo ao campo da performance se alguém com poder para tal o situar no contexto da arte contemporânea e da história desta espécie de transdisciplinar, e que para isso alguém, por exemplo neste caso específico a minha pessoa, o deve transportar para esse plano como autor. Por isso, tomo como decisão operativa apropriar-me destas ciclísticas manifestações. Consequentemente, a partir de agora sou eu o autor da performance. O ciclista ele próprio não o pode fazer porque circula noutro plano, noutra dimensão, noutro discurso e neste caso específico noutro estado de consciência. A partir do momento em que reivindico uma apropriação do número do ciclista melómano, posso e devo, através de mecanismos ou esquemas mais ou menos lógicos ou teóricos que operam tradicionalmente no mundo Arte Contemporânea, passar a posicionar-me como autor conceptual da performance, pela mesma operação pela qual um artista se apropria de um «object-trouvé» e lhe dá ou não outra associação de ideias e/ou palavras. A partir daí tenho que passar ao espectador a noção de que, Eu sou o autor da performance. Tenho que lhe dar um título e assinar. Tenho de encenar um discurso que alicerce conceptualmente toda esta operação. Um palco, uma legenda, um comentário. Os processos pos35


tos aqui em prática são, basicamente, os do teatro. O ciclista não sabe, contudo, que está num palco. O sujeito torna-se objecto, a minha acção é reflectida através do outro a partir do momento em que escolho o outro para meu espelho. Existem nestes procedimentos lógicas que mimam o Mercado, do fetichismo do objecto à redução do valor do trabalho na sua despersonalização, ecos também de um certo tipo de esclavagismo, que sob diferentes disfarces continua na sombra como o motor do aparelho capitalista. — Sim. Como aquele grande gato persa branco nas mãos do génio do mal, nos filmes do Bond. Fui eu que inventei essa cena. — Eu posso instalar em redor do ciclista um palco conceptual, um enunciadozito fabricado por mim. Há anos que ele já desempenhava o papel de actor e personagem principal, sem o saber, ou sabendo-o só até certo ponto. Isto é o máximo da exploração. — Mas não estás a fazer mal a ninguém... — Quanto ao enunciado específico, a minha justificação e objectivo quanto ao meu trabalho, nem sequer é necessário que estejam construídos numa primeira abordagem, basta seguir a lógica de qualquer construção deste tipo. Segue o processo da elaboração do «object-trouvé» desde Marcel Duchamp e a sua arquetípica Fonte ou Urinol. Uma action trouvée. — Sim, já te disse quem é o verdadeiro autor. Tens um charuto? — Deixa só prosseguir: neste caso é o título e o contexto no qual o objecto é mostrado que o situa como objecto de arte ou exercício conceptual. É que isso faz com que ele seja olhado de outra forma e provoque no mínimo interrogações, ou que tenha existido uma época remota em que isso aconteceu, embora esses exercícios sejam hoje lugares comuns, vindo assim a existir como elementos gramaticais, 36

recursos gramaticais ou figuras de estilo da linguagem artística. — Uma coisa engraçada: Um dos fenómenos interessantes ao nível da apropriação é determinado tipo de apropriação das obras dos outros pelos curators das exposições. Acontece normalmente, por exemplo, que o curador de uma exposição pretenda atingir o estatuto de criador máximo dessa exposição, estatuto que por tradição estava reservado ao artista. — Odeio essa merda. O único bom curator é o curator morto ou o próprio Orgasmo Curator. — Aliás isto funciona um pouco como no caso da relação dos «DJs» que manipulam as canções dos outros ganhando um estatuto de criadores e também de pequenos deuses. Porquê pequenos deuses? Porque a arte é uma natureza no homem, e o seu criador adquire uma pequena aura divina (pensem em Walt Disney e no seu mundo maravilhoso). O curador pode utilizar as obras dos artistas, se estes se prestarem a isso (e muitas vezes prestam-se — os labirintos do poder nas artes são insondáveis), para montar com estas a sua própria obra de arte, como se os trabalhos artísticos fossem elementos de uma composição da qual é ele o autor, tijolos do projecto arquitectónico do pequeno deus. Segundo esta lógica qualquer artista pode fazer isso com qualquer outro artista, e por consequência, ad infinitum, outro qualquer curador de curadores pode utilizar as exposições de outros curadores para fazer uma obra de arte, etc. Voltando ao caso da apropriação da «dança do ciclista melómano», é conveniente no processo que haja um registo da obra, fotografado ou filmado, por exemplo, visionável pelos nossos pares e público em geral. — Detesto o público em geral. — Neste caso, sendo o sujeito o objecto resultante de uma acção executada por um indiví-


duo com um comportamento social «diferente», pode ser interessante ou não conhecer o caso em particular, cavar significados associados à sua realidade, enfim, conhecer as abordagens psiquiátricas, rapinar a pente fino a história do tipo. Modificá-la, elaborá-la, etc. É possível decidir fazer isso com quase qualquer episódio deste género. É possível ser-se um artista especializado em, por exemplo, indivíduos com distúrbios psiquiátricos (independentemente dos constrangimentos éticos e morais) e construir uma carreira e reputação através da apropriação destas acções, por exemplo. Esta é uma atitude completamente diferente da tomada na realização de um documentário sobre esses casos. Existe um canibalismo, mas este pretende-se acrítico, e na maior parte das vezes, bem-intencionado. Isto é, se eu for um realizador de documentários, estou a retratar (sempre de uma forma parcial) a realidade, mas se for um artista contemporâneo estou a exercer uma espécie de poder mágico e simbólico que me é permitido pelo sistema da Arte e que será aceite pelos seus agentes, se seguir determinados códigos de conduta e procedimentos ao nível do subtexto conceptual que fazem parte da sua legitimação (não sei se esta palavra existe, mas acho que não deveria existir). — Pera lá, ó rapaz: é canibalismo, sempre. Bem ou mal-intencionado, é um produto que se vende e que dá vantagens ao realizador. É um produto. O artista também pode ser bem-intencionado. E quanto melhor intencionado mais o admiram. O artista é um bom artista... — Pois. Uma outra forma de canibalizar esta acção é transportá-la para o domínio da representação em qualquer uma das Artes (numa peça de teatro, filme, narrativa escrita, ou, de outra forma, no domínio das artes plásticas ditas convencionais). — Olha: não estávamos a falar da Performance? Tás-te a desviar. É um comportamento des-viado! Ah! Ah! viste a minha exposição «Não sou

veado, não»? Muita boa. Agora sou eu a falar. Isso está a gravar? Vai: agora a sério. A Performance surge, em termos elementares e formais, a partir de práticas que derivam, nos seus aspectos estruturais, do Teatro, ou de qualquer Rito que reúna os elementos Palavra e Dança, num sentido alargado. Mesmo que não exista uma narrativa convencional, existe uma acção cronológica, em que o tempo precede espaço como elemento estruturante. O pensamento Mágico, simbólico, está presente nos primórdios das artes da representação e, provavelmente, nas artes em geral. Os jogos e acções simbólicas, danças, representações teatrais, começaram como actividades ligadas ao mundo sobrenatural, e aliás, continuam, nas várias manifestações religiosas organizadas pelo mundo, desde as procissões de Pamplona até às autoflagelações nas Filipinas. Existe também outro tipo muito antigo de ritual performativo que tem a ver com as marcas do Poder terreno (ou terrestre, não sei, extraterrestre é que não é). Se quisermos o chamado «dois em um» (termo futebolístico) observemos, por exemplo, a cerimónia de assumpção de um novo Papa e toda a encenação posta à volta deste acto, em que o tempo de espera desempenha um factor determinante e em que a investidura num contexto de chefia de uma hierarquia (neste caso simultaneamente política e religiosa) coincide com o ritual religioso. papa a papa come a papa papa formigas Aliás, mais uma vez, nos primeiros tempos da Humanidade o Poder deste Mundo era legitimado pelo Poder do Mundo dos Deuses. As coisas foram-se separando e pouco a pouco as vestes cerimoniais foram perdendo o seu peso simbólico. Não podemos dizer que, hoje em dia, a cerimónia da tomada de posse, por exemplo, do presidente da República Portuguesa seja um espectáculo profundo ou marcante para os cidadãos. Provavelmente a tomada de posse de um chefe lusitano ou do rei D. Afonso Henriques seria mais edificante, e a assumpção do 37


poder de um imperador Romano ou de Luís XIV seriam certamente acontecimentos caros, pomposos e espectaculares, onde eram gastos muitos recursos e muitas energias. Em certa medida, ecos folclóricos destes acontecimentos ainda resultam turísticos nos países onde há uma realeza. Isso é bom para as revistas. O desgaste relativamente recente, sobretudo após o século XVIII, das cerimónias da religião e do poder, acompanharam o desgaste da relação da Religião com a Arte, culminando logicamente na fraca qualidade das obras de arte das nossas modernas igrejas. Por outro lado, se voltarmos a Luís XIV, a Francisco I de França, à corte de Rodolfo II em Praga, verificamos que nas cortes europeias aquilo a que agora chamamos performance, nos seus meios básicos de expressão, na utilização da componente visual, sonora e narrativa em simultâneo para fabricar qualquer coisa que não é teatro nem ópera, foi praticado para o divertimento e espanto dos membros da nobreza e do povo, que espreitava estes esplendores de fora, durante séculos, e que chegavam a graus de subtileza, artifício e encenação dos quais apenas temos uma pálida ideia através de escassos documentos históricos. Essas acções não eram desenvolvidas com um fim religioso nem numa cerimónia política, embora fossem adornos do Poder. Estas coisas do poder é preciso ver que um tipo tem que o mostrar. Na guerra fria eram exércitos intermináveis em parada, mas nesses tempos mais singelos tinham componentes visuais, musicais e teatrais, que os aproximavam das várias manifestações performativas contemporâneas. As referências à cultura clássica eram um dos factores conceptuais presentes na elaboração dessas esporádicas construções. Todas as belas deusas da Antiguidade floresciam nesses ramalhetes rubros de papoilas. 38

No mundo contemporâneo, existem, todavia, rituais organizados, como são as cerimónias desportivas, que se podem considerar, desde os tempos do Coliseu de Roma, como performances em que se forjam dinâmicas de grupo semelhantes às dos concertos rock, etc. Aliás muito haveria a dizer acerca do Coliseu de Roma e batalhas marítimas encenadas nesse colosso. Para um Deus é a Arte, para alguns o deus é Elvis, para outros outra coisa qualquer, como o futebol. Em português, o termo Performance é mais ou menos recente, vocábulo inglês usado para falar de resultados e desempenhos de empresas, governos, indivíduos, em diversas matérias como a economia, a política e o sexo. Nesse aspecto, eu, Orgasmo Carlos, posso sentir-me á vontade. Mas há pessoas que ficam ansiosas. A nossa sociedade está obcecada com a maximização do desempenho. É também isso que lhe confere a sua carga de stress. E o tempo para o pequeno espectáculo interior que encenamos todos os dias para nós próprios é sempre pouco. Acerca dos elementos sexuais e orgíacos na performance, um franciú, Alain Badiou, define a performance como a «cerimónia cujo paradigma é, frequentemente, a celebração de carácter religioso. Podemos enunciá-los nos seus termos: a festa e o ritual». Na Modernidade, abordagens performativas em que se misturavam as Artes Plásticas, o Teatro, a acção de rua improvisada, a tentativa de misturar e indiferenciar o Público e o Artista, a utilização de técnicas públicas de confronto com a «sociedade burguesa», já tinham aparecido com o Dadaísmo, no fim da Guerra de 14-18, movimento, aliás, que, qual caixa de Pandora, determinou a contemporaneidade e originou a maior parte das tendências, novas formas e conceitos, assim como praticamente todos os movimentos artísticos posteriores, desde o Surrealismo á Arte Conceptual, desde o Expressionismo Abstracto à Arte Pop. Outra grande fábrica de grandes acontecimentos foi a Agit-Prop e a revolução russa nos momentos imediatamente precedentes e proce-


dentes à revolução. A última grande era das performances, onde esta foi praticada como uma disciplina em si, e onde o autor se definiu como tal, desenrolou-se nos anos 60-70. Foram desenvolvidas intensamente por um grande número de artistas. Eram desprovidas, na esmagadora maioria dos casos, do sentido de humor e do absurdo que impregnava as manifestações Dada. Movimentos como o Fluxus abordaram este tipo de procedimentos na procura e elaboração de novos rituais que pudessem acompanhar e ajudar a edificar um novo edifício metafísico, moral e/ ou político, de acordo com os movimentos que se formaram no Ocidente por altura da Guerra Fria, de recusa da ordem moral tradicional, de utopia e de transformação da Realidade, partindo muitas vezes de manifestações em que o corpo e a matéria eram personagens num discurso de libertação dos velhos valores religiosos e sociais. Se as formas adoptadas eram por um lado intencionalmente destinadas a chocar o burguês ou o crítico tradicionalista, eram por outro lado experiências que faziam parte de uma escrita utópica em que a distinção entre a Arte e a Vida, o Observador e o Artista, tenderia para o desaparecimento. Depois da II Guerra as sementes DADA germinaram, porém num corpo diferente. Se as suas manifestações artísticas eram plenas de ironia, sarcasmo inteligente e humor negro, numa reacção aos desastres de um Mundo Moderno que era capaz de calamidades como a da Primeira Guerra Mundial, as da geração do Baby Boom, entre 1946 e 1966, embora não descobrindo nada de axiomaticamente novo no plano conceptual, visavam territórios onde se vislumbrava alguma Fé. Não que não houvesse fé em DADA. O DADA é contemporâneo do milagre de Fátima. Foi a época de Kerouac, do LSD, de Woodstock, da Libertação Sexual, de Orgasmo Carlos, da crença, luta e empenho numa reforma social e de mentalidades, que, em alguns casos, mas muito limitadamente, foram levadas a cabo. Houve uma procura de alternativas

(algumas puramente escapistas) às formas religiosas convencionais do Ocidente no estudo e prática das filosofias e religiões orientais, assim como ao modelo social instituído, através de experiências de vida comunitária e no movimento dos direitos cívicos, dos quais o canto do cisne foi o Maio de 68. Ou o 25 de Abril de 74. Deu-se a quebra pela décima vez das regras académicas nas disciplinas e depois, a denúncia das velhas formas (pintura, escultura) como pertencentes a um mundo ultrapassado. A manifestação de liberdade total nas Artes, sem nenhuma imposição de uma condição prévia, e, portanto, totalmente livre, seria a forma do happening, o qual Sartre descreve como «o momento em que o teatro explode». Este tomaria a forma de um acontecimento completamente espontâneo, nascendo sem o recurso a «pais conceptuais». No entanto mesmo aí é impossível não haver o mínimo resíduo de uma construção conceptual. O que pode acontecer é que a simultaneidade, as experiências e o sincronismo ideológico entre os participantes os leve a convergir num caminho comum. Mas o simples enunciado «Vamos fazer uma performance» não deixa em si de ser um ponto de partida conceptual. Segundo Badiou, «a ideia-teatro passa por um agenciamento material que implica enunciados, mesmo invisíveis, mesmo inaudíveis». Assim, mesmo no caso do happening existe um enunciado a priori (Vamos fazer um happening) grau zero do guião». É como a noção homeostética de «Espontaneidade Forçada». Vamos ser espontâneos! Também faz lembrar aquelas mães que querem que os filhos peçam desculpa sinceramente senão vão para o castigo. Mas pronto, não há nada a fazer. Hoje a Performance perdeu quase completamente a possibilidade e a intenção ou veleidade de chocar, precisamente pelo desgaste das práticas e mudanças que essa geração levou a cabo. Agora que tudo é possível, nada pode chocar, e as «massas» que enchem os museus aos fins-de-semana aprenderam a ler aquilo que outrora foi explosão e 39


vanguarda como um inofensivo jogo, mais ou menos compreensível, mais ou menos decorativo. — Professor Orgasmo… Parece-me subitamente sério e triste. — O que é que queres? Estas coisas emocionam-me sempre. E tu, o que pensas disto? — Bem, se queres que te diga, desde a mais tenra infância eu, consciente dos caminhos esquisitos (isto é um termo técnico) da Arte Moderna e das suas várias manifestações, tive sempre um conflito com alguns dos seus aspectos. Provavelmente a minha abordagem às questões mais metafísicas da Arte nos mecanismos inconscientes e automáticos da criação ficam-se pela política. É uma atitude preguiçosa, eu sei. Quando tento ser mais consciente e meditar sobre aspectos e questões como a Religião, a Política, a Economia ou a Sociedade, só me apetece ser irónico e anti-pedagógico. A arte que se autoexplica ou que recorre a enunciados de fora do reino maravilhoso não me interessa em absoluto. Mas concordo que é possível criar um reino maravilhoso, senão xamanístico, outra coisa qualquer, como o Portugal dos Pequenitos ou a Disneylândia. Um certo país, uma certa Arte, uns certos artistas. A minha experiência nas Artes Performativas foi sendo feita aos encontrões: além das performances associadas a actividades musicais variadas, a par de um certo discurso pop-foleiro-obsceno-infantil (algumas canções com letras do grande artista expressionista Fernando Grito), que se foi instalando quase automaticamente, fui desenvolvendo com sucesso a práctica de me embriagar até ao ponto de os próprios músicos da minha banda se retirarem, permanecendo só no palco a balbuciar sílabas imperceptíveis até não haver um cão coxo na audiência. Existem explicações para o desenvolvimento desta Persona. Aquele discurso não podia ser simplesmente transportado por um tipo perfeitamente normal, perfeitamente autêntico, sincero, ou seja lá o que isso seja, ou 40

mesmo perfeitamente sóbrio. Fui por isso construindo uma máscara compatível com o discurso (o método não Stalisnavsky mas sim o método Estaline ou Está Lindo), sem a qual me sentiria desadequado no desempenho dessas acções. Na realidade, na música dita popular, há sempre o fantasma da «estrela», chamemos-lhe «O Fantasma do Elvis» (que era até, provavelmente «autêntico»), e, pelo menos o «Front Man» tem que acabar por desenvolver determinadas atitudes características. Isso faz parte da sua «Aura». Antes de enveredar pelo tipo de música dos Fosga-se 69 participei noutras formações musicais ditas normais. Uma era uma banda da esquerda revolucionária chamada Banda Rissol, onde já se pressentia algum humor (nem que seja pelo nome), e onde participava como cantor e trombonista. O registo «sincero» parecia funcionar. A mesma coisa se passava com a minha participação num grupo instrumental (chamado Tuna Luna), isto é, não sentia a necessidade de um esforço suplementar para sustentar a minha personagem em palco, que, nesse caso, não era propriamente pensada. Limitava-me a fazer o que toda a gente fazia e a acreditar naquilo em que toda a gente acreditava. — Eu também toquei numa banda: o Orgasmo Ensemble, um grupo de gaitas de foles, flautas de Pã e mulheres nuas que bochecham com a boca aberta de forma a produzir gargarejos que induzem no público um estado de catatonia... — Ora o repertório dos Fosga-se 69 exigia uma abordagem diferente e para me transformar no cantor daquele reportório descobri uma importante ajuda e inspiração no amigo Álcool. — Pois. Como dizia o meu amigo e falecidíssimo Adolfo Coelho, «ópio, cocaína e escravatura branca». — Obviamente que a procura de estupefacientes pela parte dos artistas de variedades é comum e que isso se pode explicar parcialmente pelo peso de ter que arrastar com eles a sua Persona e en-


carná-la em palco para uma data de gente que nunca viram antes (a que é costume chamar-se «fãs»). Também é verdade que a geração de artistas dos anos 60-70 se interessou pelas drogas, nomeadamente as alucinogénicas. É ainda verdade que o caso dos actores profissionais é bastante distinto. Estes têm que mudar constantemente de personagem, de maneira que a sua ligação com uma determinada máscara é mais ténue, momentânea, e mais, digamos, «profissional». Mas isso não os impede muitas vezes de adoptarem determinados tiques e aspectos de uma Persona na qual caiem em vertigens magnéticas, transversal aos vários trabalhos, que acaba por nunca os largar, afectando a sua versatilidade. O extremo caricatural desta situação é o actor que já é escolhido sempre para um determinado tipo de papel, no qual se especializou. Voltando ao meu caso, a minha máscara exige em muitas situações estados psíquicos extraordinários, normalmente mais fáceis de atingir com o precioso auxílio dionisíaco. Esse é um feito que julgo notável (e acrobático), uma vez que o método implica começar o espectáculo sóbrio e acabá-lo o mais perto possível do estado de coma, passando assim por todas as nuances do discurso do deus Baco e do deus Bácoro. Sem dúvida que o meu personagem em palco não será exactamente a pessoa do dia a dia, aquele que vai beber um cafezinho de manhã e que acaricia com volúpia o papagaio do barbeiro. Tem também os seus inconvenientes, aos quais o vulgo chama «ressaca». No entanto, não posso chamar estritamente Performance a estas acções, pois para o fazer terei de envolver outros factores que não puramente o discurso musical. Terei de associar essas acções, numa manobra transversal, a outros discursos, de anunciar essas experiências como sendo relevantes no domínio das artes plásticas, de o comunicar aos críticos, curadores, artistas e público, possivelmente de elaborar videoarte e outros objectos a partir delas, enfim, de fazer um pacote e de embrulhar esses objectos com o papel de natal da Arte Contemporânea. Preciso, é claro, de testemunhas credenciadas (ou credíveis, pagas ou não) para testemunhar, comentar, elaborar e aprovar o processo. Não é complicado de fazer.

— Não estás já um bocadinho farto dessa estória da performance? Não queres antes sair deste lugar amaldiçoado pelos deuses e ir ao «Elefante Branco»? — Sabes o que é, Orgasmo? Em criança e adolescente familiarizei-me com a Arte Moderna e com as Performances ou «acções-espectáculo» que faziam os mais velhos. O meu tio Revez fez parte do grupo KWØ, da geração Nexus, amigo de longa data do Wolfgang Kostov, colega do Boiss no Fluxus e pioneiro da videoarte, que tinha inaugurado um museu ao ar livre em Sernancelhe. Lembro-me da sua performance Zigurate III. Um zigurate dourado de 50 metros de altura foi atirado à água do lago e mais tarde, com a tempestade, foi feito em pedaços. Essas performances tinham entre si como ponto comum a importância do gesto e dos corpos, assim como a plasticidade e importância visual dos adereços utilizados, muitas vezes marcando um campo próprio, o de um cenário sem palco, onde decorria a acção, acção essa que assumia, em muitos casos, uma aparência solene e ritual, seguindo narrativas, símbolos e sinais que cruzavam elementos mitológicos clássicos ou populares com a linguagem, os recursos e as novas mitologias da era tecnológica. O que é curioso é que sempre separei religiosamente a minha prática da política e dos meus empreendimentos musicais. A minha relação com a política foi sempre completamente ascética, por um lado, em oposição à prática, digamos, musical, que sempre foi abertamente disparatada. Curiosamente, a primeira vez que participei numa performance política foi no Algarve, com a peça performance Portugal is for Lovers, contando com a preciosa colaboração do artista Expressionista Armando Grito e tendo como centro polar magnético uma peça de parede do mesmo nome em que se misturavam posters fotográficos gigantes do mar, palmeiras, uma tela a óleo de dois por dois metros figurando uma marinha (a tela até não era má), variados objectos, partes seleccionadas de bonecas de borracha, cartas de jogar pornográficas, um pratinho para pedir es41


molas, um papel de pedinte a dizer «uma esmolinha por favor» e outras coisas das quais já não me lembro. A seguir segue-se uma interminável performance onde o público está posicionado em círculo à nossa volta e os artistas vão caminhando ritmicamente em círculos, bebendo um garrafão de bagaço (já não havia LSD), vestidos com aquilo a que se pode chamar a caricatura do traje de um artista do século passado, com a bata azul e a boina basca, o Armando cantando uma ladainha imitando um acordeão e eu pedindo às pessoas para tirarem cartas do chapéu e devolverem uma moedinha. A razão pela qual me deu na cabeça fazer uma performance tão alegre e ao mesmo tempo tão amarga e, como foi moda dizer-se, irrisória, foi possivelmente a mesma atitude que me levou a formar um personagem que inventei mais tarde, o Pato Conald. A dúvida intermitente de que faça sentido produzir coisas belas num mundo marcado pela corrupção mais completa, pelo demolir das utopias, precisamente as utopias que ainda eram vividas pela geração dos nossos pais e que eu ainda vivi na minha adolescência. A posição do artista posta em causa, a interrogação sobre o próprio sentido da performance em questão e de todas as outras, a irrisão, a ironia feroz, o humor, a desconstrução do autor como Xamã e a sua substituição por um sacerdote báquico, ou mesmo por um qualquer pobre bêbado atrasado mental, a repetição ad nauseam, de sons, movimentos, gestos e atitudes, e a esmolinha de igreja de província misturam-se num caldo que, na verdade, não se queria belo, sagrado ou sério. Justamente, foi a primeira performance anti-séria proposta por aquilo que viria a ser mais tarde o grupo Sarcasmo Carlos (mal nós sabíamos). Esta atitude de troça, desdém, e ao mesmo tempo de atracção pelo lado mais pantanoso e discutível do mundo da Arte Contemporânea já tinha sido ostentada na exposição Ases da Punheta, em que as peças expostas partem justamente da caricatura de estilos e formas deste universo, coisa que não acontecia nas pinturas do movimento homeostérico, onde as atitudes de escárnio se praticavam em notas de rodapé das publicações associadas. Mas aquilo a que no grupo Homeostérico 42

chamávamos profeticamente de Academia de Vanguarda veio a revelar-se, passados alguns anos, como uma tendência de mercado e uma estratégia comum a muitos artistas emergentes. A velha academia foi relegada para uma nota de rodapé da história e desapareceu como legado na formação dos novos artistas. Os novos vocabulários formais estendem-se até ao infinito de possibilidades. Performances com Artistas que mancham o branco dos lençóis de uma cama com o próprio sangue menstrual (há várias manifestações originais neste tema executadas por várias artistas), por exemplo, são legitimadas como uma abordagem intensa e feminista do papel da mulher nesta falocrática sociedade, ou associadas à fertilidade, etc. Já não é preciso, como quando eu era pequeno, ter «jeitinho para o desenho», mas sim ter jeito para vender uma ideia, seja ela qual for. Isto dá obviamente origem à explosão de obras de arte de valor equívoco, o que por sua vez tem o efeito paradoxal de obrigar o mercado da arte a garantir uma aparência de seriedade a toda a prova, porque existe dinheiro em jogo e o dinheiro é a seriedade burguesa absoluta. E portanto, de obrigar o artista a fabricar uma arte que pedagogicamente se explica a si própria. Se do ponto de vista plástico determinada obra de arte parece insignificante, o seu verdadeiro valor e dimensão são postos em campo com a ajuda da maquinaria conceptual. Obviamente, trata-se aqui de repetir os processos e mecanismos da antiga vanguarda de uma forma blasée, conseguindo aqui e ali um «Oh!» e um «Ah!», aqui e ali uma contemplação interrogativa e aqui e ali um «Ah! Já percebi!». — Pois, meu caro Candidato… posso tratar-te por Candidato, não? O caminho seguido por mim na aproximação à Performance assume contornos sérios, mas que alguns pretendem paródicos. Eu chamo-lhe Arte não-séria. É dos miasmas pantanosos das contradições nas práticas artistas contemporâneas que se alimentam as performances «caninistas» de Orgasmo Carlos, artista masculinista, onde o caninismo orgasmiano é o seu equivalente ar-


tístico ao «Kunismo» de Diógenes, do qual fala Peter Sloterpiça. Este é o reverso da medalha do cinismo contemporâneo e, na práctica artística, o grito de «O rei vai nu», de Andersen. A diferença é que, como no cinismo, Orgasmo aponta os meios de que se serve o Poder, mas para melhor o denunciar e pôr em causa os seus objectivos. Não te importas que fale de mim na terceira pessoa? Numa das minhas Performances, na galeria Arqué em 2007, intitulada Anima e o Animal servi um banquete onde a comida ornamentava o corpo nu de uma mulher, tornando indistintos o que é mulher e o que é comida. A partir do momento em que a mulher é «despida» da comida que a vestia, é levada por um monstruoso urso de peluche para o tapete «mulher-capacho», parte da feérica instalação composta por monstros em fibra de vidro, um tapete e miniaturas de parede. Enquanto é executada uma acção de simulação de uma relação sexual entre uma jovem e um urso, Orgasmo Carlos aparece para cantar uma canção com a sua guitarra, mas verifica que o tapete está borrado de comida e começa a gritar com os performers e com o público que emoldura o tapete, tornado palco, acabando por ir buscar uma vassoura para limpar e arrumar a peça. Portanto, temos o exemplo de uma performance clássica como executada por Benny Hill. — Pois bem Orgasmo, essa não é má, mas olha só para o que te vou contar a seguir. Uma outra dimensão da Performance (esta experiência tinha, a certo ponto, sido já ensaiada pelo actor e académico belga Poluche) foi a conseguida com o processo «Candidato Vieira». Este exigiu uma pluralidade de momentos, espaços e media, imitando os processos dos acontecimentos políticos e abordando a questão da falsidade ou verdade nesse mundo assim como aquilo que é virtual ou real neste Mundo. Trabalhou ainda o contacto no mesmo plano da Ficção com a Realidade e abordou as possibilidades de ilusão e engano no universo da

comunicação. O Candidato Vieira é um personagem inventado como sendo um político que prega o Absurdo e o Impossível num contexto (o meio político e as eleições) em que normalmente a consciência do Absurdo ou do Engano só surge a posteriori. O Candidato Vieira, ao contrário, anuncia radicalmente a priori o seu programa como tal, utilizando para isso um discurso exagerado, rabelaisiano, gargantuesco, que tem como referência ao mesmo tempo as promessas impossíveis dos políticos e as extravagâncias da imaginação popular, utilizando, ao mesmo tempo, acções reminiscentes da Agit-prop. O processo foi realizado durante o tempo da campanha real, sendo público na Internet, Televisão, Rádio, espectáculos ao vivo, sessões de esclarecimento em universidades, aparições em mercados, conferências de imprensa, marketing, cartazes, autocolantes, Vídeo, Fotografia e Pintura. O que se conseguiu com isto foi também a criação de um personagem que navega entre a realidade e a ficção. Estes dois campos estão cada vez mais difíceis de distinguir e a maneira alucinante como funciona a televisão clássica contribui para isso. Vivemos num mundo carregado de informação, polvilhado de estímulos sensoriais com os quais somos confrontados sem a possibilidade de os digerir. Temos a sensação de ter o Mundo à nossa disposição nessa caixa mágica, que Hitler considerou fundamental para a propaganda no novo Reich (ver o filme Television Under The Swastica), quando no fundo ela é que nos tem na mão. A internet é, nesse sentido, falsamente mais independente, porque por enquanto ainda é um meio relativamente livre e, sobretudo, depende da força de vontade de cada um chegar onde quiser. O cruzamento de informações díspares, publicidade, guerra, desporto, a morte de alguém famoso, uma exposição canina, o apocalipse nuclear, a crise na bolsa, desenhos animados, um terramoto no Haiti, um artesão de 90 anos que é o último a fabricar um artefacto, a Moda, etc., faz alinhar tudo ao mesmo nível e portanto perder o contacto 43


com a realidade da maneira como esta existia há quarenta anos. Além de familiares, amigos e vizinhos, os nossos conhecidos são normalmente limitados, embora possamos arranjar centenas de «amigos» no Facebook. Se me limitasse a fazer o meu honrado trabalho de político não me aconteceriam o tipo de encontros com fãs, ou seja, público, que começaram com a divulgação dos Fosga-se 69. Comecei a ouvir pessoas que nunca tinha visto na rua a gritarem «69», ou «fosga-se!». Mais tarde, depois de fazer um anúncio publicitário, começou a ser muitíssimo frequente, em qualquer estabelecimento da especialidade ou mesmo no meio da rua alguém gritar o slogan «gostam de beber xixi?» Mas o mais incrível é, depois da tentativa falhada de conseguir assinaturas para formalizar uma candidatura à Presidência da República, ouvir muito frequentemente pessoas a dizer «Votei em ti!» É bastante difícil que tenham votado em alguém que não chegou a figurar nos boletins de voto. O que é que isto quer dizer? Qual o resultado desta experiência? Terão estas pessoas mergulhado parcialmente no domínio onde o real e o ficcional se encontram ou estarão apenas a participar no jogo a que a experiência do Candidato Vieira deu início? De qualquer maneira, os personagens que inventamos parecem às vezes ser mais reais que nós próprios. — Compreendo. Às vezes, em tardes como esta, eu próprio me sinto um sonho.

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MANUEL VIEIRA (MV), pintor de domingo entrevistado por ÓSCAR SANTOS (OS), Director do Museu de Arte Moderna de Fátima OS As suas pinturas compõem um universo muito particular. MV Bem, eu... OS Muito. Cada pintura um universo particular. E o inverso do articular. Talvez demasiado particular. Sempre o mesmo universo público. Em termos de estilo, ou de referência, para balizar o campo podemos falar do surrealismo? No surrealismo mais kitsch, aquele dos anos 60, feito nas páginas de um caderno escolar com uma caneta Bic? Ou crê-se mais inscrito numa espécie de Chirico à la Walt Disney? Talvez se possa falar de procedimento surrealista na operação do desenho automático. MV Faço cadáveres esquis a solo. Contra mim próprio. OS Tipo cinco contra um? É um encadeamento sequencial de formas em que a associação de ideias vai inscrevendo um repertório de figuras bastante interminável. Masturbação retórica. Figuras vagamente conhecidas, mas sempre envoltas na treva. Mas o seu estilo não será um pouco monótono? E no fundo, não são sempre as mesmas formas e figuras? MV Claro. OS As árvores, as paisagens, as rochas, todo um paisagismo antropomórfico, velhos truques do repertó-

rio surrealista e maneirista, o corpo feminino que se desenvolve com um entusiasmo vegetal, etc. O tratamento das figuras, por sua vez, situa-se entre um academismo não apreendido à antiga portuguesa e o território gráfico e borrado da banda desenhada. No fundo, como a Vénus de Milo copiada pelo merceeiro de aldeia, a tosca coluna jónica de rude granito. MV Provavelmente não... OS Podia responder que o repertório de formas que vai formando é sempre diferente. Que é raro repetir exactamente a mesma figura da mesma maneira. Que talvez existam alguns elementos repetitivos, como no caso do peregrino, do pinheiro manso, da árvore antropomórfica, mas enfim, os elementos da paisagem são a paisagem dos elementos... Tudo está em tudo. O detalhe faz o todo. Isso seria uma inverdade, mas também poderia constituir uma inmentira, visto que o todo só se compreende pela dialéctica entre os opostos. Daí o preto e branco. Vê o mundo a preto e branco? MV Não o estou a seguir... OS (interrompendo) As composições, mesmo nos desenhos que diz serem improvisados, acabam — sempre por forçar uma composição académica, quando não completamente simétrica, no sentido em que as linhas de força, o rebatimento do quadrado no rectângulo de oiro, enfim, todos esses recursos são visivelmente utilizados de uma forma deliberada. Por vezes adivinha-se que a intenção seria na direcção de uma não composição, de um ordenamento caótico, muito mais interessante, mas acaba por cair na segurança do recurso às normas tradicionais, assim como no caso da utilização da perspectiva que acaba por amarrar figuras por vezes interessantes a um patamar rígido e convencional. Tudo isso é fatalmente datado, ultrapassado, atropelado, tornado obsoleto, desde a própria técnica, 47


matéria e suportes até ao desenvolvimento de uma tentativa de pôr em cena uma diversidade de possibilidades narrativas em torno de pseudo-formas simbólicas. MV Aquilo que eu faço... OS Sim, podia responder que a perspectiva dá obviamente mais uma dimensão ao bidimensional, embora esteja subentendido que o bidimensional o é. Não sei por que haveria de prescindir de um recurso que se lhe apresenta como presente. É precisamente no convite para a entrada no mundo do quadro que este instrumento é útil. Torna as relações entre as formas desenhadas num todo equivalente ao mundo real, dá direcções ao olhar e ao pensamento. Sabe que a tradição europeia está um pouco cansada, mas a si dá-lhe jeito, e acaba por ser o caldo de cultura podre de onde ainda lhe vêm as suas magras referências. MV Eu penso que... OS Aí está, não pensa. Vive no mundo dos pintores que, como os macaquinhos da mente, vivem em sótãos gotejantes e atiram a tinta para a tela a perguntarem-se a si próprios: «o que será que isto quer dizer?», convencidos de que o seu inconsciente fabrica arte, como os intestinos processam a matéria fecal. É esse, portanto o ouro espiritual que pretendem minerar. A total falta de responsabilidade para uma coerência lógica apreensível ao funcionamento de um dispositivo intelectual de utilidade pública tornou esse tipo de atitude sem qualquer sentido numa época em que somos obrigados a explicar as imagens com as muletas da dialéctica. Os poços de petróleo do romantismo, as minas de ouro do simbolismo, os castelos de vento do surrealismo, fazem parte da estrada dos contos de carochinha da arte moderna. Assim como a arte do inconsciente, ou a mão de Deus a guiar o artista. No máximo, seria ainda tolerável, 48

no domínio da assinatura de um suposto génio, o artista Xamã que caricaturiza até à náusea essa atitude, tomando ao mesmo tempo do seu lado um discurso verbal coerente e panfletário, realizando trabalhos nas áreas não tradicionais, tornando a sua vida em guião de telenovela em que todos os actores, todos os elementos do cenário que é a vida são talismãs de um culto inculto. MV O que quer dizer com áreas não tradicionais? OS As técnicas e os procedimentos que são associados às vanguardas do século XX, como as instalações, a vídeo arte, a multimédia, a interdisciplinaridade, a obra aberta... MV Aquilo é tudo feito à mão. OS O que quero dizer é que o que se ensina há algum tempo e o que se mostra desde há um tempo nos museus são precisamente as técnicas e procedimentos que encarnavam uma atitude de quebra com a arte de museu e que se dirigiam a um outro tipo de participação na ruptura do jogo cultural. Agora, claro, um pobre pintor de sótão volta a ser um pobre pintor de sótão, porque não lhe é permitido participar no que se tornou hoje o jogo académico e no que se tornou hoje a arte de museu. Ao recusar entrar no jogo de toda a gente, recusa entrar no mundo da Arte, tornando-se uma curiosidade de rodapé. E como é mais conhecido como um cantor obsceno e beberrão, o seu destino é a campa rasa da cultura. Não vai para os Prazeres ou para o Pierre Lachaise. MV Os Prazeres são mais perto de casa. OS É verdade que tentou mudar o rumo com o Orgasmo Carlos. O Orgasmo Carlos é um xamã, mas um xamã saloio.


MV Não. É um saloio, mas um saloio xamã. OS O problema é que o elemento cómico de baixo nível reduz essa invenção a mais um fantasma indecente. Não interessa agora a tradição obscena galaico-portuguesa, o Bocage e outros, podia ter utilizado o alter ego para, com praticamente a mesma atitude, ter um discurso mais consentâneo com o admissível (é escusado insistir nas gigantescas vaginas peludas), isto é, o sério, isto é, aquilo que é considerado sério e importante, isto é, aquilo que nos chega dos centros culturais mundiais como aquilo que é mais sério e importante. Não é o caso de um discurso obsceno, quase paralelo ao discurso das canções dos Ena Pá 2000. Isto é, podia ter quebrado o discurso mágico visual infantil dos seus desenhos e pinturas com um discurso adulto, mas foi cair no erro simétrico, caiu numa obscenidade também infantil, na caricatura do Adulto, na recusa de comprar um bilhete para a lotaria do mundo da Arte. Depois de tudo isso, pelo contrário, o personagem mantém-se fiel à sua própria miséria moral. MV Como assim, o personagem? OS Exactamente. A sua espessura é a espessura dos seus personagens. Mudando de assunto, sabe o que eu acho? Assim como na metáfora dos extraterrestres do filme do Carpenter Eles vivem, existe uma equipa alienígena, no sentido simbólico, a tomar conta da economia mundial. E, paralelamente, uma equipa alienígena a tomar conta do jogo cultural, e mais concretamente na Arte contemporânea. Também decidem o que se vai fazer, quem vai fazer, e tudo isso tem a ver com o dinheiro e poder. Aquilo que um artista periférico pode fazer ainda se está para ver. MV Faz-se o que se pode, na periferia.

OS Sem dúvida que a complexidade da civilização não pode ter contemplações para pueris cavaleiros com elmos da Skip e távolas redondas desenhadas à mão levantada. Pretende-se que um artista penetre nas fibras musculares da sociedade e que ofereça um paraíso passageiro. E caro. A perfeição da construção da verdade eterna do momento em que se está. Um ídolo ao qual se paga para que se possa acreditar. Que todos possamos fazer com que acreditem. A relíquia de um santo pesada em ouro. Que importa a província? Tens que falar na linguagem universal. Ora a verdade universal é a que é mais transmitida e que é mais conhecida. E é a última, é sempre a última. E estão sempre a acontecer coisas novas, há sempre um novo artista, há sempre um novo filão, um novo nicho. Talvez tenhas sorte e um dia se virem para o teu artista saloio. Mas terias que ser um peso pesado das relações públicas e não és. A arte tem que ter títulos em inglês porque o mundo cultural fala inglês. Na Idade Média era o latim. Se queres pensar em arte pensa nas línguas daqueles que detém hoje a hegemonia cultural. MV Não sei se concordo... OS Claro, tens razão! Isso é completamente saloio. O fugir da periferia através da mimese do centro. Chimpanzés, papagaios. Apetece-me dizer qualquer coisa foleira acerca da Verdade e das nossas raízes e de como só na nossa autenticidade (que é uma palavra de publicidade) podemos desenvolver um trabalho artístico sério. E a verdade, tem razão, é que a nossa base é o nosso país, a nossa língua, seja lá qual for. E o cheiro a cozido aos domingos e a matança do porco que nos fez vomitar e as pernas grossas das varinas nos eléctricos. Os mergulhos no rio no Verão. MV Como o professor Marcelo?...

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OS Enfim, a praia, a nossa memória e a de todos os navegadores e santos e padeiras de Aljubarrota, vinte e cincos de abris, todo o nosso típico país à beira mar plantado que é um reservatório insondável de monstruosidades úteis e pulposas. Mas, e pergunta bem, e os valores morais e metafísicos? E a verdade imanente? Porque é que a arte boa não come a arte má? Como no mundo dos peixinhos... O que é que disse? MV Eu não disse nada... O que é que isto tem a ver com peixes? Há peixes na arte? OS Não há peixes na arte. O que há é donos de aquários. Que negoceiam com outros donos de aquários. MV Mas Jesus expulsou os vendilhões do templo. OS A arte não é um templo. A Arte pode ser um deus e os objectos de arte são como ex-votos. De qualquer maneira a arte não é mais a pintura de igreja maneirista ou barroca. Essas pinturas são, aliás pagãs, na sua multiplicidade de figuras e na sua complexidade. Se queres uma arte onde vejas o absoluto, experimenta um enorme Rothko monocromático, por exemplo. Deus é abstracção. MV Uma abstracção para pôr em cima do sofá. OS Um enorme sofá. MV E uma pequena abstracção. OS De qualquer maneira o senhor pensa que a sua arte diz qualquer coisa às pessoas comuns, mesmo que essa coisa não seja propriamente o que lhe diz a si. 50

MV Uma senhora que trabalhou lá em casa gostava bastante das minhas pinturas. De uma em especial. Gostava, pronto. OS Não interessa o que a arte parece dizer seja a quem for, do ponto de vista da ressonância íntima. Pode tilintar ou não tilintar no clítoris da alma, o que interessa é aquilo que se deve dizer que se pensa, aquilo que se deve pensar. Mais ainda, a forma de não dizer aquilo que não se está a pensar. MV Podia repetir? OS Eu sei o que o Vieira está a pensar. O Vieira está a pensar: eu construo um mundo onde gosto de caminhar. Sou um peregrino que pinta o seu caminho de Santiago. E sou surpreendido por aquilo que deveras pinto. Transforma-se o pintador na coisa pintada. A Árvore no centro do mundo, o Lago, as árvores-molduras, as mulheres-castelo, os barcos de garrafas, as ilhas. As tocadoras de cavaquinho sem face, mais árvores de maternos seios, o cavalo-loba com uma marreca que é uma Nossa Senhora, apresentam-se como personagens dentro de paisagens como palcos com o infinito como linha do horizonte. E por que não pianos loucos perseguindo pauliteiros de Miranda sobre um autêntico e gigantesco tapete de sela do general Custer? Por que não enxames de abelhas formando a efígie da mulher do Presidente da República dentro de um sabonete, penetrando nas cavernas horizontais do monte Vesúvio? Por que não um navio-zigurate num mar de abacates assaltado por freiras-pinguim armadas com mocas de Rio Maior magenta? MV Porque não! OS Exactamente! O Vieira diz: Eu não faço esse tipo de arte! Isso jamais me passaria pela ca-


beça. Não é qualquer coisa que serve. Ainda acredito na alucinação como prelúdio da iluminação e na salvação pela Arte. E no redemoinho encantatório, na esfinge e no êxtase como experiências para-estéticas. Talvez por uma nova Pataestética onde o Arthomem (ver o primeiro episódio) possa afirmar o primado da embriaguez da alma, da intoxicação pela pintura, da vida pela Arte, etc. e antes pelo contrário. MV A Pataestética? A patetoestética? OS É um pouco o contrário do que preconizam as revistas de saúde. A arte contemporânea só faz verdadeiramente sentido num mundo onde o inconsciente é atirado para debaixo do tapete. Deve haver uma explicação harmoniosa, hipnótica e apreensível de todos os elementos que constituem uma obra de Arte, sem ironias e sem devaneios de LSD, olhos a chorar, sóis verdejantes e corpos humanos em xadrez, ou seja lá o que for de monstruosidades hiperfigurativas e redundantes, porque toda essa panóplia nauseante nunca fez qualquer sentido. É verdade que é demasiado fácil fazer mau surrealismo. Mais difícil é fazer bom surrealismo. Mas isso é aplicável a toda a arte e sobretudo à contemporânea. Quando não distinguimos uma obra de arte da esfregona deixada pela senhora da limpeza, não quer dizer que somos atrasados mentais... MV Quer dizer que não se devem deixar esfregonas em salas de museu. OS O que quer dizer é que se o contexto pode produzir uma transformação de leitura num objecto, onde é que poderá começar e acabar o contexto? Não vivemos todos numa instalação? E a que escala? A determinada altura os nossos cansados e treinados nervos poderão contextualizar absolutamente qualquer coisa

como obra de arte e quando todos estivermos treinados nesse exercício seremos, na realidade, todos artistas contemporâneos. Tudo é arte, todos somos artistas, logo a arte já não é necessária (nunca foi) nem os artistas. A própria textura da realidade é permeável à arte, como um queijo suíço. As suas pinturas são a instalação de pigmentos, óleos e vernizes sobre uma superfície de tela esticada numa grade de madeira que por sua vez está instalada num espaço que será expositivo, por sua vez, porque a tela está lá. Assim, a tela é que dá o carácter expositivo ao espaço e não é o espaço expositivo que dá o carácter de objecto de arte ao quadro. Ou tanto faz e nada faz. Tudo isto parte da textura da realidade. Que saudades do modernismo, que saudades do neoclássico, do barroco, do renascentista, e que bom é o contemporanismo, o contemporaneonanismo. MV O Contemporaneonanismo? OS No fundo, dá para tudo. Dá para os Santos e mártires, para os vendilhões, vendedores de banha da cobra, para os defensores do sagrado, para os sofistas, para os matraquilhos gigantes, para o galo de Barcelos, e até para o Orgasmo Carlos. Mudando de assunto, esta exposição mostra desenhos a preto e branco de dimensões generosas. Porquê o preto e branco... MV Estou a ver que já não há muita coisa a dizer. OS Ficamos por aqui.

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Pintura sobre ovelhas, OVIBEJA, Pedro Portugal, 2014

ABERRATIONS AGRICOLES AU PORTUGAL é um falso documentário sobre uma investigação interna de um inexistente cadeia alimentar; competitividade dos produtos agrícolas europeus nos mercados mundiais; relações comerciais equitativas; inovação e transformação de produtos alimentares. O mundo agrícola em Portugal é hoje o reflexo visível da implementação da PAC e é observável a tensão entre o cultural e a artificialidade das directivas comunitárias. O sistema de quotas, os incentivos ao abate e subsidiação de culturas conduziram ao desaparecimento nos últimos 20 anos de 300.000 explorações agrícolas e ao abatimento de 40% da frota de pesca nacional.

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Se os efeitos produzidos pela PAC na paisagem construída são notórios também a forma como os agricultores portugueses passaram a lidar com as imposições comunitárias se foram adaptando ao uso da terra, ganhando competências, reconfigurando recursos e manipulando resultados. Todo este contexto proporcionou naturalmente o aparecimento de más práticas relacionadas com falta de formação, impreparação técnica, lassidão fiscal, erros de interpretação e condutas fraudulentas. Estes fenómenos e outros compuseram uma emergência de caraterísticas visuais e etno-estéticas de muito interesse para registo documental — em particular no território Alentejano.


Exemplo disso foi a instalação de uma escultura em mármore Água de Alqueva (1997), de minha autoria, na cidade de Moura e que causou uma rebelião local com efeitos nacionais, envolvendo o Supremo Tribunal de Justiça até à devolução da obra ao artista. Mais recentemente, uma imagem das pinturas que realizei sobre ovelhas para apresentação na OVIBEJA de 2014, criou uma onda da indignação que registou o record de interações (250.000) no Facebook do Diário do Sul, tendo a direcção da OVIBEJA cancelado a apresentação pública dos animais. Nestes acontecimentos observa-se uma dimensão de confronto sobre o que deve ser a visualidade do mundo do ponto de vista do gosto público, que se manifesta na relação humana-humana com animais ou animismo em relação à natureza e ao artístico.

ABERRATIONS AGRICOLES AU PORTUGAL (III Alentejo) é referencial de F FOR FAKE (1973) de Orson Wells, um documentário falso sobre um falsificador de arte; ZELIG (1983) de Woody Allen, um falso documentário sobre um homem que mimetiza quem está próximo dele; BOB ROBERTS (1992) de Tim Robbins numa falsa campanha eleitoral de um cantor folk corrupto de direita; BEST IN SHOW (2000) uma comédia de Christopher Guest em que os personagens participam com os seus cães num concurso canino e DARK SIDE OF THE MOON (2002), um mockumentary sobre como Stanley Kubrick falsificou a aterragem na lua em 1969.

Com as ABERRATIONS AGRICOLES AU PORTUGAL (III Alentejo) dramatiza-se de uma forma ficcionada e encenada a representação dos desvios e conflitos que a aplicação da PAC produziu neste território do sudoeste da UE. Construído e filmado como um mockumentary os personagens, são confrontados com situações anómalas e bizarras em explorações agrícolas. Os actores que representam os técnicos da UE são filmados por uma equipa de filmagem e de som no trabalho de recolha de depoimentos de agricultores (reais e actores); testemunhando as suas realizações; métodos produtivos; novos e estranhos rituais.

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Aberrations Agricoles au Portugal (III - Alentejo) Curta metragem (mockumentary) 30 min 2.35 : 1 Pedro Portugal 2015

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Aberrations Agricoles au Portugal (III - Alentejo) SINOPSE (PT) Uma equipa de especialistas do Comissariado Europeu para a Agricultura e Desenvolvimento Rural (FEADER) desloca-se a Portugal para investigar ocorrências anómalas do mundo agrícola neste território. Os agricultores são questionados sobre as técnicas usadas e os métodos desenvolvidos desde a introdução da PAC. Numa abordagem técnica ficcionada, os peritos detectam aberrações em diversos pontos da região III — Alentejo. O registo revela desajustamento, incompreensão e extravagantes irregularidades na aplicação das políticas europeias para o sector agrícola nesta zona do sudoeste da Europa. SINOPSE (FR) Une équipe d’experts du Commissaire de l’Agriculture et Développement Rural (FEADER) se déplace au Portugal pour enquêter sur des événements aberrantes dans le monde agricole en ce territoire. Les agriculteurs sont interrogés sur les techniques utilisées et les méthodes développées depuis l’introduction de la PAC. Dans une approche technique romancée les experts détectent aberrations en divers points de la région III - Alentejo. L’enregistrement révèle la décalage, incompréhension et irrégularités extravagantes dans la application des politiques communes pour le secteur agricole dans cette région du sud-ouest de l’Europe. Aberrations Agrícoles au Portugal (III - Alentejo) GUIÃO Narração em francês. Entrevistas com intérprete português. Legendagem em inglês. 0. Genérico Aberrations Agrícoles au Portugal (III Alentejo) Information du departement des Affaires Agricoles de la Union Europeénne”

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1. EXT. DIA - Aeroporto de Beja Pequeno avião que transporta os técnicos da Comissão Europeia aterra. São recebidos na pista por ANA (24), uma rapariga atraente vestida de cowgirl com mini saia e chapéu. Entram para um dumpster GMC que arranca a grande velocidade e avança pela pista de aviação deserta até desaparecer. (há algumas vacas e ovelhas na pista) 2. EXT. DIA (Campo de trigo) REPRODUÇÃO DE TRATORES AGRÍCOLAS Grande trator cobridor é ajudado por uma grua a colocar-se em cima de pequeno trator fêmea durante o suposto período de fertilidade para a acoplagem. Agricultor e engenheiros realizam a tarefa de uma forma ritualista com fatos especiais. O trator está enfeitado com fitas coloridas e outros adereços. Depois de efectuada a operação 10 tratoristas surgem com pequenos tratores que dispõem radialmente ao lado dos outros dois tratores. Ambiente de festa. Abrem-se garrafas de espumante e são servidos enchidos fritos e pão. 3. EXT. DIA (Montado de sobro e azinheira) ALIMENTAÇÃO SOBRE-ELEVADA DE SUÍNOS Agricultor montou um conjunto de estruturas metálicas com rampas e plataformas que permite aos porcos subir e alimentarem-se ao nível da copa das árvores. Técnicos conversam com o agricultor que explica o grande rendimento que obtém com este dispositivo. 4. EXT. DIA (Montado de sobro) VISTORIA DISFUNCIONAL DE FLORESTA Grupo de lenhadores fardados com comportamento e acção de praças do exército passa revista lenta às árvores (como se fossem soldados aquartelados). Entoam cantares alentejanos. Fazem um intervalo para almoçar debaixo de um chaparro e conversam com os técnicos da Comissão Europeia.

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5. EXT. DIA (Floresta de eucaliptos) CABOS ELÉCTRICOS EM ÁRVORES Eucaliptos vivos são usados para transporte de energia. Os peritos da Comissão observam um grupo de funcionários da eléctrica que esticam um cabo numa linha de árvores. Conversa com o responsável da operação de colocação dos cabos. À distância está um carro avariado que fumega do motor, acabando por explodir. 6. INT. DIA (Armazém em herdade) CRIADOR DE JIPES LAND ROVER 11 Land-Rover brancos de várias configurações são cuidados com o procedimento mimético do acondicionamento de bovinos numa exploração pecuária. Estão todos guardados paralelamente num estábulo. De manhã são lavados, feita manutenção e abastecimento de combustível. Em seguida um grupo de pastores-motoristas leva os veículos a passear lentamente pelos campos. No fim do dia os veículos voltam para o estábulo/garagem. 7. EXT. DIA (Campo aberto em herdade) CAÇADORES DE OVELHAS Aberta a caça à ovelha grupos de caçadores deslocam-se para reservas e disparam sobre rebanhos. São observados alguns rituais e regras. No final de um dia de caça os participantes celebram e fotografam-se junto às ovelhas mortas empilhadas em pirâmide. O prémio vai para o caçador que fez a pirâmide de ovelhas maior. Os técnicos da Comissão Europeia dialogam com alguns caçadores. 8. EXT. NOITE (Campo aberto próximo de albufeira) CHURRASCO DE ÁRVORE Esta tradição, também conhecida como Ignia Silvia, é celebrada todas as estações. Um grupo de homens faz um churrasco em que é assado um grande tronco de árvore com aspecto antropomórfico. Comem lascas da árvore acompanhado de migas e vinho. O ambiente é solene e os homens cantam à vez num transe lento frente ao fogo. 58


9. EXT. DIA (Campo aberto) LIMPEZA DE CAMINHOS COM OLIVEIRAS Agricultor faz limpeza de caminhos atrelando à traseira do trator (ou jipe) uma grande oliveira abatida para o efeito. Mostra aos técnicos da Comissão 10 oliveiras alinhadas no chão prontas para o trabalho de limpeza e explica como é um método eficaz e económico. 10. EXT. DIA (Monte alentejano) TELHADOS DE CORTIÇA Técnicos aproximam-se no dumpster GMC de uma casa em construção num monte alentejano. Há sinais de abandono de obra e observam que uma parte da cobertura é feita com pranchas de cortiça aplicadas como nos telhados tradicionais de telha portuguesa. O encarregado do monte comenta a obra. 11. EXT. DIA (Pasto regado por pivot) CANGURU PASTOR Pastor típico possui um canguru Na entrevista o pastor defende as um eficiente guardador de rebanhos. estão a adoptar estes animais

como substituto do cão. qualidades do canguru como Refere que outros pastores para lidar com o gado.

12. EXT. DIA (Campo aberto) DECORAÇÃO RITUAL DE OVELHAS Cerimónia ritual de encontro de rebanhos. Um decorado com pompons de lã colorida e outro com tosquia igual ao corte tradicional do cão de água português. Num terceiro rebanho observam-se pinturas geométricas coloridas. 3 pastores e 3 grupos corais entoam cânticos simultâneos.

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13. EXT. DIA (Margem de albufeira) PESCA DISRUPTIVA Família miserável de pescadores vive numa barraca de madeira instalada numa marina abandonada. Esperam todos pelo marido pescador. O pescador regressa de um dia de trabalho num Jet-Boat com uma grande quantidade de peixes de alto mar. Técnicos da Comissão Europeia sobem ao barco e analisam o pescado. Pescador mostra o novo iPad com um software próprio para pesca. 14. EXT. DIA (Margem de albufeira) AERO-REGA Pequeno agricultor rega uma exploração de oliveiras utilizando um helicóptero de combate a incêndios. Justifica economicamente a opção e a obsolescência da rega gota a gota. Demonstra a tecnologia carregando num botão do iPhone e encaminhando os peritos e a guia Ana para um local mais elevado. Ouve-se um helicóptero que ao longe recolhe água numa barragem. Pouco tempo depois larga a água no centro do olival. 15. EXT. DIA (Campo lavrado numa herdade) TERRA RANDOM Peritos da Comissão chegam a uma herdade e observam o terreno. Os campos estão lavrados não uniformemente como se um trator tivesse sido largado sem condutor. Falam com o tratorista que abastece o trator e mostra num tablet o desenho que o trator fez no campo. Demonstra de novo para as filmagem o processo. Trator arranca sem condutor e a 20 metros baixa a grade de discos e lavra o terreno. 16. EXT. DIA (Montado de azinho com vacas) CAÇADOR DE PORCOS Debaixo de uma azinheira está uma imagem de Nossa Senhora de Fátima com 1.80m. Tem marcas de ser usada para as vacas se coçarem. Num movimento a câmara mostra uma equipa do serviço de recolha de animais mortos da Associação de Criadores de Ovinos do Sul. No chão estão 5 porcos mortos. Os técnicos e peritos da UE aproximam-se e verificam que foram mortos com setas lançadas por uma potente besta. 60


Um carro com uma grua aproxima-se. A alguma distância está o dono da herdade em cima de uma pick-up. Diálogo entre os vários técnicos em que se esclarece o facto deste agricultor matar todos os animais que ultrapassam os limites da sua propriedade. 17. EXT. DIA TRANSPORTE DE BURRO Transporte de um burro por helicóptero. Técnicos e veterinários preparam o animal para ser içado por um cabo. A câmara afasta-se e revela a equipa que trata do animal e equipa de filmagens.

Grande plano do focinho de um burro que é preparado com arreios especiais para ser içado por um helicóptero da Força Aérea ou INEM. Câmara afasta-se até revelar a configuração do animal. Helicóptero aproxima-se e levanta pó.

O animal é engatado pelos técnicos e levado pelo meio aéreo.

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Câmara afasta-se até mostrar todos os intervenientes na operação. Técnicos participantes e primeira equipa de filmagem.

Uma GoPro instalada na cabeça do animal regista a perspectiva no chão. Plano geral de toda a operação feita por um drone. (texto técnico de conclusão) FIM

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A extraordinária fantasia megalítica de Luís Gardete Pedro Portugal

mento de carne de porco às tropas opositoras a Franco na Guerra Civil Espanhola (1936/39). Do pai, alcoólico, guarda memórias menos boas. Um homem de 50 kg que ninguém conseguia deter e que batia na mulher todos os dias.

Depois de várias tentativas e através de um amigo comum consegui falar com o Dr. Luís Gardete. O Dr. Sucata, como é conhecido em Castelo Branco, construiu sozinho, 5 km a nordeste desta cidade, o maior monumento megalítico do mundo. Os dois alinhamentos paralelos de pedras têm 200 metros de comprimento, 30 de largura e termina com uma formação rectangular mais elevada com 50 por 30 metros. As pedras movimentadas têm entre 20 a 130 toneladas, 4 a 5 m de altura e a preços actuais um empreendimento como este, entre aluguer, operadores de máquinas e movimentação de terras custaria mais de 2 milhões de euros. Os locais dizem que ele «não sabe o que está a fazer» ou «não sabe onde gastar o dinheiro»... Mas o que fez Luís Gardete, 62, erigir um gigantesco parque pós-neolítico durante os últimos 20 anos? Combinámos um encontro num café do centro de Castelo Branco ao fim da tarde. Estava acompanhado de dois amigos e bebiam águas. Luís estava todo vestido de preto, barba descuidada, elegante, 1,75m, pequenos óculos elípticos — podia ser um revolucionário bolchevique. Diz que não fuma nem bebe desde os 20 anos. É comunista e anarca, nunca votou, não tem filhos e recusa ser fotografado. É médico de formação e fala várias línguas entre as quais o russo. Herdou do avô e do pai os negócios e fortuna da sucata e construção. A motivação para a construção deste neo-recinto arqueológico de escala faraónica não é no entanto religiosa ou artística. É desarmantemente prosaica: uma homenagem ao avô. A orientação dos megalitos corresponde à direcção em que o avô fugiu para Espanha. A sua admiração pelo avô é notória. O avô de Luís, lia, escrevia e falava em russo. Esteve envolvido na Guerra dos Montes em Malpica do Tejo (1923) contra os grandes latifundiários da Beira Baixa e mais tarde no forneci64

Mostrou-me no telemóvel uma fotografia da mãe quando era nova porque prefere lembrar-se dela quando era bonita. Mas os detalhes da construção do supernovo Cromeleque de Castelo Branco são impressionantes. Primeiro, Luís Gardete terraplanou 20 hectares para que o seu monumento pudesse ser visto da N233. Depois começou a retirar da terra as pedras e a dispô-las ordenadamente. Uma máquina levanta o seu peso em carga e para retirar da lama sob o efeito de sucção uma pedra de 100 toneladas são necessárias duas giratórias de 50 t. a operar no máximo da potência. Para arrastar uma pedra com 130 t. é preciso usar duas giratórias de 50 t. e uma máquina de arrasto de 50 t. a trabalhar ao mesmo tempo. As giratórias recuando à frente da pedra e a máquina de arrasto atrás. Para empilhar as pedras foram construídas rampas de acesso às máquinas com milhares de toneladas de terra que foi depois cuidadosamente removida. Este devaneio construtivo é hoje irrealizável porque as


máquinas alugadas pela Volvo, Caterpiller ou Komatsu têm ligação GPS e quando uma máquina está mais de 30 minutos ao ralenti ou ultrapassa o esforço máximo são desligadas. Neste delírio construtivo e sem objectivo aparente, anexo à megalitolândia, foi pavimentada com pedra uma área de 16 hectares. O Luís entretanto pede à empregada do café, Clea, para mudar o canal da televisão para o Mezzo porque não suportava mais o futebol. Não conseguiu atinar com o número do canal e pediu 4 bagettes mistas sem manteiga «bem aviadas» para todos e mais uma rodada de águas. Nunca deixa ninguém pagar. Na conversa sobre o neo-cromeleque percebi que sabia vagamente do alinhamento de Carnac na Bretanha (manifestou indiferença), desconhecia a Spiral Jetty de Robert Smithson ou as colunas de pedras coloridas de Ugo Rondinone no deserto perto de Las Vegas. Ignora a Earth Art e todas a realizações de Michael Heizer ou Nancy Holt.

Procura residualmente reconhecimento mas é totalmente alheio ao mundo da arte ou da arqueologia. Como definir esta intervenção histórica sem enquadramento artístico, académico ou o que quer que seja? Como é que será estudada dentro de 1.000 anos esta megalitomania? Luís Gardete é estranho a contextos. Considera quase concluídos os trabalhos e planeia montar uma tenda de circo (200.000€), com amarrações às pedras no rectângulo de 50 por 30 metros que preparou para o efeito, dispor radialmente 12 camiões pintados de preto, plantar um bouquet feito com asnas de betão com 12 metros de altura e ainda construir uma espiral de 100 metros com pedras de demolições... Tudo feito da sua cabeça, sem informação especializada ou pretensiosismo. Uma maneira poética de dispersar os fantasmas e ocupar o tempo.

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É verdade que certo surrealismo se tornou penoso em pouco tempo, que as perspectivas aceleradas e miasmas fundentes foram fazendo parte de um vocabulário cansativo, que muitos colegas meus mudaram de linguagem, alguns até chegaram a fazer repousantes lobotomias minimais e vogaram num eterno Om em direção ao total repouso, o Não-Ser ideal, a Não-Vida pacífica da Não-Totalmente-Morte.

Em busca do surrealismo perdido As Pinturas de M. David Cabra na Galeria Azeredo Sampaio

A Psicanálise não derrotou o Surrealismo. A lobotomia que foi o antisurrealismo e o novo racionalismo apenas me leva a penetrar mais profundamente nas paisagens interiores. A descoberta de que regiões do cérebro têm determinada actividade e de que as ligações sinápticas explicam algumas viagens de impulsos neurotransmissores ou de que uma zona dos miolos processa determinado mecanismo é-me perfeitamente indiferente quando viajo pelos infernos e paraísos ilimitados possíveis. Podia ser no joelho. No TEU Joelho? Queres um tiro no joelho? Toma lá com uma pintura no meio dos olhos! O surrealismo foi tomado como refém para instalações contemporâneas sem já se fazer referência a este mortificado movimento. O Surrealismo é também ele realismo, tanto literal como transfigurado. O Surrealismo não foi perdido, ele está por toda a parte: na política, no Ballet, nas artes aplicadas, nas casas de emigrantes, nos sorrisos dos banqueiros... 66

Eu nunca navegarei para mares de especulações axiológicas nem em determinismos bochechudos! Seja bem vindo quem vier por bem ou por mal, desde que venha do mais completo desconhecido, da maior distância possível, de outros Mundos, Outros Mares, Deuses, diabos, risottos de cerebelos belos e tudo o que vier à mente do demiurgo. Mas é esse material que é importante, não as antenas-bigode do artista impressas em folhas de sala acompanhadas por um texto vomitado pelos seres bem pensantes, infernais parasitas de uma sociedade Com-Licença-Desculpe-Mas-Não-Deve-Ter Visto-O-Anúncio-«É Proibido Fumar». As minhas pinturas fumam os espectadores, os espectadores são fantasmas nebulosos pensados pelas figuras das minhas pinturas. Portugal colónia Interna e Externa (Galeria Nefertiti, Cuba). Um povo sem passado é um povo sem presente. Esta exposição de Walter Campaniça redescobre todo um imaginário imbecil e erudito, desde a caricatura até ao Horror em supremo grau dos terríveis boçetos de Chapada Fernandes até à abstração de um Lopo Carmo (Sinphonia Maubere em G Maj.) Desde o estilo Manuelino até aos cromos de raças do Mundo da editora Verme Juvenil, passando pelas exposições do Mundo Português e do Museu de Etnologia, colónias no Barroso e casas de emigrantes, perguntamo-nos porque é que esta exposição ainda nunca tinha sido feita. A evidência de uma profunda falta de curiosidade por si próprio é no entanto uma característica endémica do português, o único povo no mundo com um índice de DNA Neanderthal acima dos 3%.


Este país é uma enorme Sala de Espera, terá dito a certa altura Walter Campaniça. Mas é também uma enorme sala de esperma, terá afirmado horas mais tarde depois de um silêncio pesado e infinito. Já não estávamos à espera desta inacreditável exposição, tanto mais inacreditável como toda ela feita de pura especulação mística. O Autor não acredita na Arte conceptual como uma resposta válida para o trilema contemporâneo. Acredita antes, com Teofrasco (inventor do DDT) no antimónio da alma e no perdurar genético das dívidas fiscais. A saga cantada por Camões é aqui redimida por um espírito do nosso Presente. Um presente para todos os que têm fome de Pátria. Esta é uma Arte do Presente por oposição à Arte contemporânea ou mesmo transcontemporânea. Aqui condensados estão os nossos impulsos de con-

quista e descoberta, explicados os nossos profundos receios a uma ligação permanente com a nossa própria terra. Angústia paralítica, a ânsia de fuga pela cultura do Outro, que olhamos com um olhar de criança, tentando continuamente apagar as nossas pisadas imortais. Quanto à Helade... Portugal é que é a antiga Grécia e a Atlântida. É também a origem do primeiro alfabeto (gravuras do Alvão, 6000 a.C). As tragédias gregas são piadas de urinol comparadas com as piadas de urinol portuguesas. As verdadeiras ruínas gregas foram utilizadas em Portugal para a edificação de casas modestas e rurais, pelo que pouco delas sobra mas tudo na matéria dos nossos velhos edifícios se agita em urros de uma nobreza arrepiante.

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EDUARDO VII, O DESIGNER

Fumava por dia 20 cigarros Egípcios e entre 11 a 30 gargantuescos charutos Havanas, com nomes como Cornia y Corona, Henry Clay’s, Tsar ou Upmann’s.

Alfred Edward, Princípe de Gales (1841-1910), Bertie, como era chamado em família o futuro rei Eduardo VII, teve de esperar 59 anos para ser rei — um record agora superado pelo Príncipe Carlos. A rainha Victoria dizia do filho o que a rainha Isabel podia dizer do filho hoje: «O pobre país com um sucessor terrivelmente inadequado e totalmente irrefletido! Oh! Isso é horrível! Ele não faz nada!»

Bertie cheirava sempre a Eau de Portugal e tinha forte pronúncia alemã, acentuando os rrrrs. Diariamente, era deixada uma galinha assada na mesa ao lado da cama antes de HRH se deitar. De manhã só restavam os ossos...

Pedro Portugal

Bertie teve uma vida aventurosa, complexa, escandalosa mas desenhou e mandou construir um dos dispositivos sexuais mais insanos e desconhecidos da história da humanidade: a Chaise-d’amour. Os vários biógrafos estimam que Bertie tenha tido ao longo da vida cerca de 20.000 amantes. 55 consentidas pela mulher, Alexandra da Dinamarca (Alix). O príncipe aparentemente nunca fez qualquer esforço para esconder as novas amantes ou manter os affairs secretos. O príncipe playboy era apaixonado por sexo, uniformes, roupa, comida, álcool e tabaco. 68

Bertie inventou o chamado Sandringham shoot, a dobra nas calças e o último botão do colete desapertado. O alfaiate da moda Henry Poole, em Savile Row, anota o progressivo aumento das medidas do peito e abdómen do príncipe ao longo dos anos. Almoça a janta sempre nos melhores restaurantes de toda a Europa. Nas suas várias residências as opulentas refeições são compostas por 12 a 18 pratos. Os custos humanos do prazer de Bertie são vastos. Incontáveis os casos de abortos, chantagem relacionada com gravidez e escândalos com divórcios — abafados sempre que possível pelos secretários da coroa para proteger a monarquia. Havia inúmeros rumores de que as aldeias à volta de Sandrigham e Balmoral seriam densamente povoadas com netos da rainha.


Pesquisa genealógica, confrontação com os bem documentados movimentos do príncipe e ligações sociais revelam que os alegados filhos ilegítimos eram míticos. O que levou à conclusão de que as técnicas sexuais preferidas de Bertie excluíam a penetração. No fim do séc. XIX os ingleses praticamente não usavam contraceptivos, mas era um assunto sobre que se escrevia muito. Pelo contrário, os franceses não escreviam sobre contraceptivos, mas a indústria do sexo na capital francesa não poderia ter prosperado sem eles. Nos frequentes safaris sexuais a Paris, Bertie usava todo o tipo de dispositivos para se proteger. Em 1875 HRH faz uma visita de estado à Índia. Está registada uma caça ao elefante organizada como uma campanha militar: 15.000 homens trabalharam durante duas semanas na selva do Ceilão para preparar barreiras e redes para a royal party. Os batedores provocaram um fogo florestal e os elefantes aterrorizados fugiram pela selva. Bertie fere um e mata outro. O acampamento é estabelecido agora na base dos Himalaias e a caça ao tigre nunca foi tão luxuosa: 2.500 homens, 119 elefantes e 500 camelos. As refeições eram preparadas por chefs franceses e servidas por mordomos alemães. À noite eram feitas fogueiras com troncos de 80 cm de diâmetro e a banda militar de Gurkha tocava Mozart e Offenbach. O príncipe matou 28 tigres.

brasão do Príncipe de Gales. No interior uma banheira de cobre em forma de cisne servia para o príncipe se banhar com as amigas exclusivamente em Champagne Mumm Cordon Rouge aquecido. Mas a peça central era a célebre Chaise d’amour, desenhada e encomendada por Bertie a Louis Soubrier, o melhor fabricante de móveis de Paris. Sem livro de instruções, o bizarro objeto assemelha-se a uma cadeira pensada por um perverso ginecologista rococó. Na realidade, permitia ao corpulento Bertie assegurar sem grande esforço a prática de inúmeras posições com várias (até 3) demoiselles com toda a comodidade. O trône d’amour ou fauteuil de voluptés, possuía ainda um sistema de molas na base que permitia a impulsão na vertical do excessivo príncipe. Já coroado, Bertie visita o primo Carlos I, em 1903, e um parque de 26 hectares recebe o seu nome em Lisboa. No seu diário anota que a aristocracia portuguesa se veste como os empregados de um restaurante de segunda classe...

Em 1905 tem uma frota de dois Mercedes, um Daimler e um Renault Landaulet para uso em Londres. Todos sem matrícula que tornavam imediatamente reconhecíveis os carros do rei. A dirigir os veículos motorizados e vestidos a rigor, estavam sempre o engenheiro Charles Stamper no lado direito do chauffeur e Bertie no banco de trás. Cada deslocação era meticulosamente preparada e todas as estradas eram bloqueadas pela polícia para o rei fazer as viagens a uma média de 100 km por hora. A grande performance artística de Bertie foi manter durante a década de 90 do séc. XIX uma suite no mais luxuoso bordel de Paris, o Le Chabanais, da famosa Madame Kelly. A suite hindu ostentava na porta o 69


CONTRARIEDADES Marão Rato

Goebbels dizia: «Quando ouço falar em cultura puxo da minha pistola». Coisa ameaçadora, a Cultura, os artistas modernos, degenerados, incompreensíveis para os defensores do monstro Kitsch-académico nazi. Hoje a Arte contemporânea não aquece nem arrefece ninguém — a cultura popular é outra coisa, talvez mais arte contemporânea do que a própria. É um divertimento para um exíguo mundo fechado em si próprio, com canais, é certo, para o exterior, mas que só servem para o legitimar, palco migratório da especulação financeira e vaidade intelectual. O Cubo Branco serve um jet set que se pavoneia pelas feiras de arte e que ele próprio é fatiado entre aqueles que percebem mais e aqueles que ainda não percebem grande coisa, paralelamente aos que têm muitíssimo dinheiro e os que só têm muito dinheiro, como um bolo com mais ou menos creme. Da mesma forma que existe o Claro-Escuro, o ruído e o silêncio, também existe o paganismo e o cristianismo, euforia e depressão, o limitado e o não limitado. Assim, quando o Limite deixa de existir em arte, esta sai do seu âmbito para outros domínios da vida, começa a invadir outros meios em que o impulso libertário (vindo paradoxalmente do velho Humanismo e da Velha ideia de Progresso da Humanidade), já superado em todas as formas de arte, se possa colocar. Da velha dualidade arte-vida, esboroada teoricamente mas nunca com total sucesso (um actor precisa sempre de voltar a ser um não-personagem, um pintor tem às vezes de deixar de pensar em pintura, às vezes a arte é Arte e a vida é Vida), chega-se a um plano de confrontação com outros limites noutras áreas da actividade humana: legais, físicos, mentais, morais ou éticos, empurrando assim com a barriga a questão da arte ter, de facto, superado os limites contra os quais lutou desde o fim da Academia, muro há muito pulverizado mas sempre presente como fantasma de uma ópera há muito tempo fechada e entretanto transformada num centro 70

comercial ou num circo tipo Cirque du Soleil, onde são proibidos os animais. Há na arte contemporânea um paralelismo com o ar condicionado: as Iniciais. Outro: condiciona o ar cultural, desde cima, que alguns tentam respirar. Ainda outro: Forma um meio totalmente artificial que só comunica com a plebe (existe uma plebe cultural, com sucessivos níveis de acesso às decifrações) através dos discursos paralelos explicadistas, sem os quais a maior parte destes objectos deixam de fazer sentido, tal computadores sem energia eléctrica. É como se um Veronese fosse completamente inexplicável sem a passagem da bíblia ou da história pagã que tomou por tema, como se os negros de Goya fossem qualquer coisa de completamente neutral e indiferente ao público a partir do momento em que este não tivesse informação verbal sobre o tema que o autor aborda. Curiosamente, algumas obras do passado são ainda mais interessantes quando não conhecemos o tema. Mas a Arte Contemporânea hoje precisa das massas nos museus. Democraticamente, dá jeito. Esta consegue ser mais popular que a Arte Moderna, que punha o povo a ironizar («isto também eu fazia»), pois só o facto de existir público, afluência e estar num museu já é uma legitimação, e nesta matéria a Arte Contemporânea consegue rivalizar no plano da aridez emocional com a religião católica e em abundância de emoções com a Igreja do Reino de Deus. O grupo Homeostético (que pessoalmente detesto — chumbei aliás alguns participantes quando professor na ESBAL) foi responsável em Portugal por esse impulso piqueniquista de grandes festas nocturnas no museu de Serralves e que se expandiu para outros locais. A Arte Contemporânea usa temas do discurso político e social, mais ou menos batidos, mais ou menos politicamente correctos, mais ou menos pedagógicos. Mas usa também outros, étnicos, científicos, pessoais, etc. Ao contrário de Goebbels, eu gosto de Arte Contemporânea.


Quando ouço falar de Arte Contemporânea puxo do meu charuto. Um sítio onde há pequenos peixes que só podem produzir pequenos papéis, e grandes tubarões da arte que fazem não só aquários com tubarões mas ainda caralhos das caldas de cem metros de altura, se tiverem cotação para isso (cotação igual a compradores influentes mais críticos mais curadores afamados mais museus mais galerias de prestígio, reconhecidas pelos precedentes). Gosto desta pescadinha de rabo na boca porque é como a mercearia da anedota que diz «temos sandes de tudo». Não se trata contudo de uma anarquia mas sim de um sistema de castas cuidadosamente mantido à custa do dinheiro dos privados e das instituições, como a arte antiga, aliás, mas que se distanciou bastante mais do gosto e do entendimento do público não-iniciado. Essa distância é a base da sua existência e da tensão necessária para que exista o sistema.

mais claro do que na obra e a obra torna-se clara. Volta a suspeitar-se da linguagem pré-verbal, selvática e irresponsável. Como dizia não sei quem, no princípio era o verbo. É às crianças da terceira classe que se dirige a nova Arte Contemporânea.

Enfim, como disse a comissária Dária da Fossa: «ainda não tínhamos educado o público para a arte moderna e zás, lá vem a arte contemporânea». Bom, então vamos brincar e explicar, introduzir um elemento lúdico e mandar vir camionetas com excursões. A analogia com a arte religiosa é mais simples com a arte contemporânea do que, por exemplo, com um artista tipo Picasso. Os objectos feitos pelos novos artistas (ou por quem lhes faz os objectos) têm mais vezes ressonâncias com o mundo das relíquias religiosas do que com o abstracionismo geométrico, e os artistas muitas vezes manifestam-se como xamãs, padres ou professores. E ainda como membro de uma etnia ou minoria sexual, simplesmente, transformando-se assim num exemplo que acaba por roçar a santidade por mais escabroso que seja. Um professor que fala uma linguagem que ninguém na realidade compreende. Um alfabeto irrequieto. Mas quem compreende a Bíblia? Quem compreende a Matemática? Quem compreende os desígnios do Senhor? Simultaneamente e antes pelo contrário acontece o mesmo com o tripé verbal deste monstro conceptual: os enunciados explicadistas falam claramente dos temas prementes, preocupantes e actuais. Aí tudo é 71


SER OU NÃO SER... ARTISTA (no Brasil: Tupi or no’Tupi...)

Nakama Kontuza

(tradução de Artur Duarte e Aka Van Lis) O mundo está dividido entre as pessoas que são artistas e as pessoas que não são artistas. As pessoas que são artistas são consideradas artistas pelos outros artistas e pelas pessoas que não são artistas. As pessoas que não são artistas não são consideradas artistas. Não fazem arte e são chamadas espectadores, público, coleccionadores, clientes, mecenas, amantes de arte, investidores, comissários, patrocinadores, curadores, críticos e pessoas normais (público) que vão ver arte a sítios onde há arte como galerias e museus.

de essencial das coisas — W.V. Quine) que é ser artista e fazer arte.

A perplexidade que assiste a todas as pessoas que não são artistas é: como é que um artista é artista? A pergunta é fácil mas a resposta não.

A partir de uma certa altura ficou decidido que quem fazia arte eram os artistas e que essa elaborada retórica era uma singularidade operativa com uma estrutura informal de funcionamento «masterizada» pelos artistas. Os artistas fazem arte e as pessoas que olham e compram arte aceitam que os artistas estão a fazer uma coisa que é

Há na história da arte e na história dos artistas inúmeras histórias que falam dessa quididade (qualida72

Os artistas já não vivem em sótãos onde pintam prostitutas envoltas em lençóis sujos, em Schwabing, Montmartre, West Village ou no Chiado. Também já não são descobertos por nobres enquanto pobres pastores talentosos que fazem desenhos na areia, rochas ou no pêlo das ovelhas. (Kris & Kurz)


Ao artista é atribuído o poder e a responsabilidade de produzir a arte que vai satisfazer uma necessidade não objectiva das pessoas que não fazem arte.

E quando um artista é artista, pode deixar de ser artista? Há artistas que estão mais do lado do ser e outros que estão do lado do não ser. A maioria dos artistas que estão do lado do ser fazem a arte que tem de ser. Os que estão do lado do não ser fazem a arte que não pode ou não devia ser — não há nada a fazer.

Os artistas produzem assim, coisas subjectivas que saciam, em maior ou menor grau, o gosto, flacidez moral, sadismo, bestialidade, infelicidade, perversão, criminalidade, sonho e ambição das pessoas que não são artistas.

«O artista é o humano que não responde por nada. É impune e privilegiado. É favorecido por vanguardas de extrema esquerda e direita e é insubordinado às políticas públicas embora amplamente subsidiado pelas mesmas.» (Jean Clair)

Na realidade um artista é só uma pessoa normal, mas que é artista. Não foi atingido por um raio de inspiração divina nem tem uma predisposição genética ou uma arrumação neurológica especial. É só uma pessoa que não é artistac mas que quis ser artista e conseguiu ser artista.

E os artistas que querem deixar de ser artistas? Como é que uma pessoa normal que adquiriu a condição de artista pode querer deixar de ser artista? Não é como abdicar de um reinado ou recusar um Nobel! É uma afronta insuportável para todos os que não conseguem ser artistas.

A primeira coisa que uma pessoa normal que quer ser artista deve fazer é dizer que é artista aos outros artistas e participar amorosamente e militantemente nos acontecimentos que são encenados no mundo da arte.

Não querer ser artista é inumano porque todos querem ser artistas e fazer parte do maravilhoso mundo da arte — essa grande conquista do homem sobre a natureza que foi inventar uma segunda natureza: a Nartureza (a natureza da arte) que designamos também por cultura.

arte e que as pessoas que não fazem arte não fazem arte porque não são artistas.

Depois de ser aceite condicionalmente no mundo da arte, deve usar tácticas clitoriais de simpatia, reconhecimento, lapsos afectivos e comportamentos nugatórios. Mas também explorar intrigas, analidades, rivalidades e conflitos até que o seu nome artístico atinja a qualidade mecânica para entrar na engrenagem do mundo da arte. Há algumas pessoas que não querem ser artistas porque temem essa possibilidade esquisita e inútil de poder, essa espécie de jogo palerma com o Nada. Ser artista tem alguma coisa de prostituinte e pode levar a estados extremos de indolência, interesses bizarros, arruinar negócios de família, ou levar a abominar qualquer tipo de emprego — se bem que ser artista, em casos raros, pode ser um óptimo negócio.

Ser artista é uma espécie de crime, ou melhor, um anti-crime, porque o que o artista se propõe pretensiosamente, é desviar o curso normal das coisas e uma vez reconhecido o acto não pode voltar atrás nessa culpa. Atingir a condição de artista é irrevogável. Depois de se ser artista não se pode deixar de ser artista. Pode-se nunca mais fazer um desenho na vida e fazer outras coisas, como jogar xadrez ou ir viver para um sítio exótico, mas nunca se deixa de ser o artista. Para os outros artistas e para as pessoas que não são artistas ou que não conseguiram ser artistas.

Mas porque é que não podemos ser todos artistas? Porque é que não podemos todos participar nessa grande manipulação que é fabricar objectos profundamente inúteis que passam a significar o sublime ou a expressão máxima de humanidade? 73




Podemos encontrar literatura na arte conceptista. Hamlet é a peça superior do conceptismo, deslocada numa língua bárbara. Preferimos o Hamlet em italiano ou em dinamarquês: Essere o non essere? Ecco il quesito. È piu da coraggiosi seppellire nel profondo dell’anima le frecce e i sassi che la vita scaglia contro, o piantare la spada, e a viso aperto a un oceano di orrori opporsi e dire: no, finiamola? Morire, dormire — niente di piu, e dormendo dire: basta a ciò che stringe il cuore, basta a questi imbrogli della carne, a tutta questa eredità di male. Non è pio sperare che la vita abbia una fine? Morire. Dormire. Sognare forse.

A A rte Conceptista A etimologia de conceito ou conceptus é cōncipiō (agarrar, receber) de capiō, capturar. Predação como conceito — ansiedade oral, devoração do mundo pela boca, apropriacionismo como sacrifício ao altar da Arte. O que pode ser a arte conceptista hoje? — um arte de emblemas e de paradoxos, uma arte sumamente retórica, feita de agudezas e coisas engenhosas. Os emblemas-emoticons de Pedro Portugal, por exemplo. Ou as paisagens-enigma de Vieira. Um estilo barroco, clínico e despojado. Tecnicamente é a interface entre diversas capturas. Por exemplo: Duchamp é mais conceptista que conceptual, e mesmo nos ready-mades é o emblemático e engenhoso da coisa que conta. O humor é muito típico da arte conceptista. O escritor Robaud falou de Duchamp como um autor chá-de-tília. O seu lado maroto, desliza com dedos libidinosos para zonas de erosão erótica — emblema, vanitas, trocadilhos complexos, ilusionismo, perspectivas depravadas — eis elementos que assustariam qualquer típico artista conceptual focado na sua Aufklarung, na sua revolução pela arte, na sua documentalidade para a posteridade, no seu horror ao antigo, na sua simplicidade de enunciados, onde tudo se quer processual e evidente. 76

Aliás, como arte, preferimos as traduções aos originais. As obras de Manganelli, os artigos de Herberto Helder, o gosto guloso pelo ornamento. Um dos modos fáceis de criar arte conceptista é utilizar textos directamente em objectos (por exemplo brinquedos) — sejam curtos ou longos, em grafitti tosco, caligrafia galante ou severo lettring. As portadas de livros barrocos transpostas para objectos, as genealogias confusas, o tipo de poesia visual que Ana Hatherly colheu, os logotipos delirantes, a grande culinária, os edifícios confusos, a miscigenação inesperada, etc. Renato Ornato (teórico da dissimulação), dá como exemplo de arte contemporânea as obras de Sandralexandra e Sóniantónia, a poesia visual de Rindpest (e o resto), os títulos exuberantes de Rosa Davida, toda a obra de Pportugal, as teorias do acrescento e expurgo de Fabiana Sorrento, o lado barroco de Llansol (a figura, a sobreposição, a doçura, o «espinosismo»), os videos religiosos de Bárbara Fonte, as paisagens libidinais de Vieira, o neo-pré-socratismo de Giuseppe Von Lander.


MANIFESTO CONCEPTISTA Nihil videt per speculum et in aenigmate, sed facie ad faciem omnia intuetur (Abelardo) Somos artistas Conceptuis-Conceptistas. Há que entender o conceito, e o uso das metáforas num âmbito mais vasto. O conceito etimologicamente implica predação e manducação. O conceito, seguindo Nietszche, é um caso de catacrése, de metáfora morta, ou seca, um pouco como o presunto e os chouriços (faz parte das palavras sujeitas aos fumos que as secam e conservam). Os conceitos são as redes de metáforas mortas que constituem o pensamento abstracto. Esse pensamento é desritmado (é uma forma de prosa) e em boa parte descorporalizado (ou se preferirem, sublima o corpóreo na isca teorética). No conceptismo o conceito é a chama dos encontros verbais. É não só analogia essencialista, como na filosofia, como relação entre metáforas e metáforas, conceitos e conceitos, e metáforas e conceitos. Queremos explorar o filão da estética barroca em relação com a estética serial-conceptual americana. O que é interessante no conceptismo é a fulguração das pontas e das agudezas, o que supõe quer o in-génio (ou engenho) como carácter inato e astuto, cassim como a exercitação retórica. O witt. Coexistem em nós contrários: a elipse-hipérbole, o Barroco-Primitivo, (ou o Natural-Artifícial), Duchamp-Picasso. Estamos interessado nos aspectos literários de Duchamp e Picasso. Algo os une. A arte como pulsão + proceesso + Ideia Lapidar + Florido — pedras que se fazem flores que se fazem pedras que se fazem flores. Somos conceptualistas de cama — é de manhã, ao acordar nos surjem a maior parte das ideias enquanto não nos levantamos. O pensamento deitado. O pensamento como devaneio. O pensamento quando se caminha. O pensamento quando se anota. O pensamento quando se parodia e quando se refuta.

Aceitamos o filão dos dicionários e enciclopédias como paródia do trabalho pretencioso de Kosuth. Kosuth ofereceu-nos borrachas — borrachas para apagar dicionários. Gostamos das definições (tautológicas também), do saber condensado, das relações verbais e diagramáticas, das ilustrações que acompanham os dicionários. Sempre nos deleitaram os dicionários ilustrados e as enciclopédias. O que testemunha uma pulsão pela interface alegórica entre imagens e defenições. Usamos o Larousse (de que o Lello era uma versão Portuguesa), o Hobson-Jobson, a Enciclopédia Britânica, o Monier Williams, o Bleauteu, o Johnson, etc. A obra visual-literária dos escritos do Picasso pode muito bem ser aplicada às ferramentas conceptuais. De algum modo Picasso é afim de Arno Schmidt no Zettel’s Traum. Fazer um Zettel’s Traum em interior de arquitectura — seguir os passos de Bernardete Bettencourt. Ou de outra maneira, fazer um Merz Baum menos complicada e mais ornamental. Uma antologia de falsos romances conceptuais, ou de Selected Pseudo-writters. Antologias de sistemas, antologias de art worlds. O Selected Art World. O Selected Art World Fiction como projecto. A linhagem Duchamp, o witt, o jogo de palavras que abre, o lúdico. A tradução, livre, auxiliada, fiel ou desvirtuada é fundamental. Assumimo-nos, em boa parte, como tradutores (viver é traduzir) — traduzir a arte contemporânea em antigo, e a cultura e o pensamento antigos ou não-ocidentais em contemporâneo (actual). Traduzir a arte americana em «europeu», em sul-americano, etc. Assumir os grandes filões culturais (China, India, Suméria, Greco-romanos, etc.) Voltar a Shakespeare (e despoletar os processos seriais Pessoa-Llansol, mas em art world). Hamlet como condição do artista contemporâneo poeta — teatralidade pop. Mas como? Insistir nos 3 pontos: FALSIFICAÇÃO, TRADUÇÃO e VARIAÇÃO. Acolher um bom número de apetecíveis variações (a variação é infinita). Ser contemporâneo é acolher e combinar variações agora. 77


Em muitos textos e pinturas que foram lambidos/corrigidos há fragmentos ou versões que podem ter sido melhores do que o que ficou. Das notas à obra. A arte mais do que poética é um poetar que sugere poéticas. Genealogia por antecipação — Broodthaers, Arno Schmidt, Finlay, Baldessary, Haroldo de Campos, Álvaro de Campos, Marcel Duchamp. Lewis Carrol, Herberto Helder, Baltazar Grácian, Emilio Villa, Rothemberg. Entrar numa exposição como num livro complexo que contém bibliotecas. Not Boring (ou Boring), Sexy, Fake, Confessional, Auto-Irónico, Retórico, Divertido.

Depois de Duchamp a arte é uma exercitação literária que recai sobre objectos e espaços menos limitados. A tipografia tornou-se um aspecto essencial dessa prática literária afim da lápide ou do aforismo. O espaço entre as artes e a poesia fez-se quase nulo, embora poucos se tenham aproveitado disso. Exposições-poemas, exposições-inscrições, exposições-jardins, exposições-arquitecturas, exposições-casas, exposições cidades.

Desenvolver o Museu Ambulatório das Teorias de Arte (o MATA/AMAT) — MUITO IMPORTANTE. E em força!

O conceptismo sendo aparentemente um fenómeno literário ibérico, e que não anda longe de algumas teorias italianas sobre o concetto (Pietro Pallavicino, Mateo Peregrini e mais tarde Emanuele Thesauro), estende a sua influência ao espaço que hoje designamos America Latina. Sente-se-lhe, a contra-corrente, a influência francesa mas que nunca lhe chega ao gosto. A impaciência italo-ibérica está no seu cerne.

Instalações com rasuras, anotações, recontextualizações.

Architectura-Tatoo.

O caminho dos dicionários, o caminho dos antigos tratados. O dicionário é o local privilegiado dos conceitos. Dicionários de estética. Dicionários ou léxicos de fins de livros (Bateson, Watzlavicz, Morin, etc.). Thesaurus. Dicionários para traduzir.

Utilizar biografias e teorias da biografia como modelo para forjar presumíveis autobiografias. Biografias em notas. Notas a outras biografias e auto-biografias. Factos por vezes confusos (nas datas, na memória). A memória, à medida que envelhecemos, torna-se um pouco incerta, logo, mais falsificável (como diria a Augustina).

Bad Grammar, Solecismos, Mistoqueros (Batarda), Combining (combines de Rauschenberg). Folhear como arte — o aperçu.

O nosso conceptualismo é anti-essencialista. Trata-se mais de entender as definições e os conceitos como redes activas de significado que solicitam outras relações, do que de se cingir ao significado como sinónimo de essência. Colecções de vidas de artistas ou de poetas. Recolhas, sumários. O carácter novelístico. As ficções ensaísticas como em Savinio. A escolha de genealogias e de predecessores. A escolha por intuição antes de constituir vera influência. A deformação dos antepassados. Vidas como as dos trovadores provençais. 78

Les seules bonnes copies sont celles qui nous font voir le ridicule des méchants originaux. Escreveu La Rochefoucauld. Uma cópia de um artista conceptual tem grandes hipóteses de ser melhor que os seus entediantes originais.

Somos de fora cá dentro. A insegurança nunca nos abandona. Para aprender a desaprender é necessário desaprender a aprender. A arte é aquilo que os artistas fazem contra os outros artistas para se tornarem artistas. Há arte e arte. Há rir e Voltaire.


Glossário Conceptista Allready-made/Allready-unmade — Allready-made é a prática que considera o mundo como perpétua obra de arte total, de onde se tem que evadir como de um pesadelo. Para isso criaram uma pseudo-arte que des-artiza o mundo. Allready-unmade é a atitude que conjura o desconhecido como suprema obra de arte. Nesta perspectiva é «tudo o que não sabemos» que altera criativamente o significado das coisas e das obras de arte. Assim, uma obra não é feita de intencionalidades mas das potencialidades que o ainda não conhecido vai inflingindo, sendo estas intermináveis. Arte Pólvera — Um tipo de arte que mistura o lirismo conceptual afecto a materiais com uma atitude de guerrilha intelectual de origem futurista, capaz de levar a actos de choque político e moral. Caligrafistas — Grupo de artistas pomposos, que cultivam o elitismo anarquista e atitudes excêntricas no quotidiano (roupas bizarras, fora de moda, mas de boa qualidade, etc.). Fazem poemas e textos com caligrafia esmerada, complicada, dentro da tradição seiscentista e setecentista. Escrevem versões de filosofia analítica em estilo gongórico. Vivem em casas senhoriais na província. São redactores dos inúmeros artigos da Grande Enciclopédia da Academia de Vanguarda. Dadafracassado — Seita de falhados fiéis ao fracasso original dadaísta, e que recusam a recente reciclagem do dadaísmo na história de arte. São contra toda a legitimação. Produzem obras clandestinas. Auto-provocam-se e humilham-se. Estão sempre em polémica contra eles mesmo. Tentam extinguir-se como movimento mas são incapazes de o fazer. Odeiam toda a volorização de acto histórico, sendo apologistas de datas tardias (ou a ausência delas) e de sub-atitudes decadentes. Dissimulacro — Tendência para volorizar, como Duchamp no conceito de inframince, as diferenças nas réplicas, relativamente a um modelo. O dissimulacro é dissimulação e diferendo (máscara e diferença).

Expurguismo — Modo de reformular ou fazer desaparecer obras em que foi pioneiro Rauschenberg, no erased De Kooning drawing. O expurgismo encontra a sua raison d’ être nos frequentes actos (auto)destrutivos, como a cremação de pinturas feita por Baldessari, o desaparecimente de Arthur Cravan e todo o tipo de tardo-rimbaldismo e barthlebismo. Um livro que serve de manual para o expurguismo é Les Unités Perdues de Henri Lefebre. A teoria expurguista é da lavra de Fabiana Sorrento, na sua tese sobre o expurgo na obra de Herberto Helder. Inapropriacionismo — Atitude de construir uma obra através de actos que têm uma relação imperfeita, distorcida e desviante relativamente a obras que lhe servem de estímulo. O recurso à anamorfose, à alteração de detalhes e ao erro voluntário é recorrente. Macula — Nome de uma revista francesa dos anos 70 e mais tarde uma casa editorial. Na acessão conceptista é uma arte de auto-humilhação e de anti-aura (como em Jesus), com um gosto pelo informalismo e pelo carácter viral, vulgar. Moshé Benamor dá-lhe um feição cabalista, ao declarar que é da mácula, da contracção, do húmus, da inferioridade, da nulidade, do proletarismo, que nascem os mundos, assim como se expande o explendor divino. Meta-documentalismo — Atitude de conservação de actos efémeros levada ao extremo. Têm tendência a documentar todos os actos da vida, em particular os actos de documentação, de documentação de documentação, e por aí adiante. Metaforistas — Grupo de artistas que valoriza a metáfora em detrimento de conceitos e definições. Os seus percursores são Emanuelle Tesauro, Baltazar Gracian e Nietszche. Fazem obras de arte onde as palavras são determinantes na sua relação para-alegórica com imagens, e consideram, como Borges, que o número de metáforas significativas é limitado. Meta-modernismo — Reclamam-se de origem pessoana e consideram que a sensação é a base de toda a estética, seja nas sensações «puras», sejm nas nebulosas sensações que provoca o pensamento mais retorcido, seja na interface entre este ou outros tipos de 79


sensações. Enquanto meta-modernistas (e ao contrário dos post-modernistas) aceitam tanto as grandes narrativas como as micrologias e os caprichos. Preferem a noção de jogo e regra (como os Oulipianos) ao caos, à ironia e à paródia, processos que, no entanto, não excluem localmente. «São as regras que provocam os ismos, é a cartografia das regras que nos possibilita escolher o maior número de possibilidades», escrevem. Protesismo — Consiste em injectar dispositivos ou obras alheias a criadores para que estas funcionem melhor, como, por exemplo, atribuir a Pessoa a escrita das Singularidades de uma Rapariga Loura e lê-la à luz de uma biografia equívoca (como sendo um escrito em parte autobiográfico). Quietistas — Grupos de artistas que se dedicam à meditação e à prática de estados alterados da consciência respeitantes a obras de arte. Consideram que a atitude estética mais válida é a de recepção não-verbal, e que as obras foram feitas para serem lentamente desfrutadas. Retournement — Termo que traduz a prática de inversão das paródias (o anti-parodismo ou a paródia séria da paródia), ou da «tradução» que actualiza as

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obras. Nesta disciplina as obras literárias ou obras de arte são susceptíveis de melhorias ou actualizações constantes. Transformalismo — Conjunto de ciências (gramática, teologia, sociologia, ciência política, biologia). Na sua aplicação às artes dedica-se a estudar não as formas, mas os intervalos e as relações entre as formas; sobretudo as transformações estilísticas e as propensões das mutações. Baseiam-se na escola de Focillon e Kubler, assim como em Thompson (On Growth and Form), mas integram incursões na Teoria das Catástrofes de René Thom, e elementos do pensamento chinês clássico. Também valorizam os processos de mudança na feitura das obras e nas biografias, em particular a ideia de crise.


B ibliogr a fia C onceptista 91. Stratégies et dissimulacres (Actas do Colóquio do Centro de Recherches Sémiologiques de Lyon) — 21-24 de Maio de1979 92. Prolegómenos a las filosofias non-verbales 93. La Linguistique comme Littérature 94. L’Intratabille Estetica 95. Immateriale e Informale nella Poesia Attuale 96. Kritische Fragmente der Explodierten Vernunft 97. Poetisches Glossar der Kunstkritik 98. Estabilidade/Inestável (Enaudi) 99. Psychanalyse et Destruction 100. Les organes de l’oeuvre 101. How to do things without speach 102. Tesauro e o Caos das Metáforas 103. Filosofia da Arte Conceptual 104. Anamnése da Transgressão 105. Profanação e Ser 106. Da Contra-Paródia 107. Häresien, Bildersturm und Puritanismus 108. Rhisome et Totalité 109. Das Orgias Analíticas ao Pudor Poético 110. Recepção e Irresponsabilidade 111. Sete lições sobre a Imagem e a Sensação 112. Ruínas Polilógicas 113. The Shape of Consciousnes 114. The Structure of Artistic Revolutions 115. Curadoria de Filosofia 116. Introduction a la Logologique 117. La Condition Post-Ecologique 118. Les trous du Langage 119. Masochismus und Marxismus 120. O Restruturalismo 121. Théorie du sujet expansif 122. Zérologie et Infinitomanie 123. Ecologias do desastre 124. Stirner, Mussolini, Pessoa — saggio sulla nulitá 125. Curatorship & Priesthood (a sociological essay) 126. Reconnaître l’Inconnaissable 127. Mitos e Desinências 128. Towards a Minimalist Revolution 129. Praxis & Stillness 130. Sob as barbas de Freud 131. O Livro a Vir-se 132. Post-Catastrophic Writing

133. Teoria del exílio poético 134. Refutations & Counter-refutations 135. Le Silence au Pouvoir 136. The Principles of Anti-Art Tradition 137. Essays on Post-Metaphysics 138. Montage und Kontroverse 139. Das Geheimnis der kritischen Klarheit 140. Logik als Widerlegung (Parmenides und die Elenkhos) 141. Paralogismus und Langeweile 142. Die Dämmerung der Auroren 143. Shadows & Meaningless 144. Hermeneutics Yogas 145. Enunciados Irruptivos 146. Metáforas Moribundas 147. Revoluções Impermanentes 148. Leitura e Lealdade 149. Horto de Estéticas Inconformistas 150. Quando Dizer é Calar 151. Im Wald der Stile 152. Teoria, Novelo, Novela (enciclopédia Enaudi) 153. As Máscaras da Semiose 154. Peinture et Indifférence 155. Dissimulations disséminés 156. Die Heilige Sabotage 157. O Mais do Mesmo 158. Obra Entreaberta 159. A Baba do Leitor 160. Alegoria, Transversalidade, Assimetria 161. How to be a Fucking Good Critic 162. Anamorfoses de Conceitos na Estética Neo-Barroca

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SALVAÇÃO, Rosa Davida, 2019, Instalação, 745 x 900 x 300 cm COM TRATO SOCIAL, Rosa Davida, 2019, Instalação, 12 x 12 cm

Nude, Rosa Davida, 2019, Instalação, 210 x 220 x 300 cm


Olho Cosmológico, Rosa Davida, 2019, Instalação, 210 x 220 x 300 cm

The decay of Lying, Rosa Davida, 2019, Instalação, 210 x 220 x 300 cm

Budha, Rosa Davida, 2019, Instalação, 210 x 220 x 300 cm Ascese, Rosa Davida, 2019, Instalação, 745 x 900 x 300 cm Satori, Rosa Davida, 2019, Instalação, 210 x 220 x 300 cm


Curadoria, Rosa Davida, 2020, Saleiro e sal, 20 x 18 x 9 cm


Série de 24 aguarelas: Banho de Diana, Pedro Proença, 2019, 29,5 x 21 cm e série de 45 aguarelas: Banho de Antígona, Pedro Proença, 2019, 38 x 27 cm








Farmácia de Platão, Pedro Proença, 2018, acrílico sobre tela, 160 x 110 cm


Rapto de Europa, Pedro Proença, 2018, acrílico sobre tela, 160 x 110 cm


MALA DAS UTOPIAS, Pedro Portugal, mala de executivo de 1983, livros, 35 x 45 x 14 cm 1984, George Orwell (1949); A MODERN UTOPIA, H. G. Wells (1905); A NEW VIEW OF SOCIETY, Robert Owen (1813); ANTHEM, Ayn Rand (1938); BIOSPHERE 2, John P. Allen (1987); BRAVE NEW WORLD, Aldous Huxley (1932); CITY OF THE SUN, Tommaso Campanella (1602); CODEX SERAPHINIANUS, Luigi Serafini (1981); DIE FUNKTION DES ORGASMUS, Wilhelm Reich (1927); EREWHON, Samuel Rucker Butler (1872); E.P.C.O.T, Walt Disney (1966); EUNOIA, Christian Bök (2001); FLATLAND, Edwin Abbott Abbott (1884); FORDLANDIA, Henry Ford (1928); GAIA, James Lovelock (1979); HEAVEN AND HELL, Emanuel Swedenborg (1891); HERLAND, Charlotte Perkins Gilman (1915); HISTOIRE DU GRAND ET ADMIRABLE ROYAUME D’ANTANGIL, Unknown (1616); HYGEIA, Benjamin Ward Richardson (1876); ICOSAMÉRON, Giacomo Casanova (1788); ISLAND, Aldous Huxley (1962); ISLANDIA, Austin Tappan Wright (1942); LA SOCIETÉ DU SPECTACLE, Guy Debord (1967); LOOKING BACKWARD, 2000-1887, Edward Bellamy (1888); MUNDANEUM,Paul Otlet

(1910); MUTUAL CRITICISM, John Humphrey Noyes (1876); OPERATING MANUAL FOR SPACESHIP EARTH, R. Buckminster Fuller (1968); PRISONERS OF POWER, Arkady and Boris Strugatsky (1969); RED STAR, Alexander Bogdanov (1908); ROBINSON CRUSOÉ, Daniel Defoe (1719); SHAKERS, F. W. Adams (1858); SOLARIS, Stanislaw Lem (1961); THE BOOK OF THE LAW, Aleister Crowley (1904); THE COMMUNIST MANIFESTO, Karl Marx and Friedrich Engels (1848); THE GREEN BOOK, Muammar Al Qathfi (1976); THE ISLAND OF DR. MOREAU, H. G. Wells (1896); THE HUMAN DRIFT, King Camp Gillette (1894) THE ISLE OF PINES, Henry Neville (1668); THE LIBRARY OF BABEL, Jorge Luis Borges (1941); THE LIFE AND ADVENTURES OF PETER WILKINS, Robert Paltock (1884); THE MACHINE STOPS, E. M. Forster THE NEW ATLANTIS, Francis Bacon (1627); THE REPUBLIC, Plato (380 BC); THE THEORY OF THE FOUR MOVEMENTS, Charles Fourier (1808); TRAVELS IN ICARIA, Etienne Cabet (1840); UTOPIA, Thomas More (1516); WALDEN, Henry David Thoreau (1854); WE, Yevgeny Zamyatin (1920); WORLD CONSCIENCE SOCIETY, Hendrik Christian Andersen (1913); XANADU — KUBLA KHAN, Samuel Taylor Coleridge (1797)


Relógio de Sol de Interior, Pedro Portugal, 2019, papel, madeira e mecanismo de relógio, 40 x 30 Ø cm 97


L.H.O.O.Q. II, Pedro Portugal, 2003, impressão fotográfica com moldura de MDF e esmalte automóvel, 155 x 150 x 10 cm


SUNFLOWEROJI, Pedro Portugal, 2020, acrílico sobre madeira, 195 x 73 x 12 cm


ARTOJIS, Pedro Portugal, 2020, lápis de cor sobre papel, 50 x 50 cm FOUNTAINOJI, BLACKSQUAROJI, ADAMOJI, WARHOLROJI, TEOJI, CAMPBELLOJI, PICASSOJI, ARTISTMUSEUMOJI, LICHTENSTEINOJI, BANANOJI, EMOGRAMOJI, DALIMOJI, MERETOJI, ERECTUSLOVOJI, TOILETPAPEROJI I, MERDARTISTOJI, MONETOJI, SPLITHOUSEMOJI, MCKENNOJI, TOILETPAPEROJI II, WIDOWEMOJI, LOVEMOJI, DEGASOJI, ZENBRIANOJI, MONDRIANOJI, FRIDAKALOJI, COSTOJI, NICOLOJI, HUOJI, COLLECTORIJI


ARTOJIS, Pedro Portugal, 2020, lápis de cor sobre papel, 50 x 70 cm CACTOJI, MATISSOJI, MAGRITOJI, TURNEMOJI, EMOJITAS I, FLAROJI, EMOCYCLE, SCREAMOJI, EMOJISCAPE, SHARKOJI, CEZANNOJI, COWOJI, EMOJITAS II

Em 1938 Wittgenstein deu uma curta série de palestras sobre Estética a um pequeno grupo de estudantes em Cambridge. Ele teve a premonição dos EMOJIS quando afirmou: «Se eu desenhasse bem, poderia transmitir um número incontável de expressões com quatro traços. Palavras como pomposo ou impeditivo podem ser expressas através de rostos. Ao fazê-lo, as nossas descrições seriam muito mais flexíveis e variadas do que através de adjectivos.» Através do UNICODE, o padrão da indústria de computação para codificação, representação e manipulação consistente de texto expresso na maioria dos sistemas de escrita do mundo, podemos hoje comunicar grande parte dos nossos pensamentos por meio de imagens padronizadas. Numa série de imagens construídas com EMOJIS certificados pela UNICODE, são representadas obras de arte, artistas e outras coisas reconhecíveis relacionadas com arte.


Em 2005 a Renova lançou o Renova Black, o primeiro papel higiénico preto de todos os tempos. Tornou-se um sucesso mundial e está entre as invenções portuguesas que muda-

ram o mundo como: o ATM, a bola de vento para microfone, o elevador de cadeira de rodas ou o pacote de açúcar comprido.

Memorial ao Papel Higiénico Preto, Pedro Portugal, rolo de papel higiénico preto, vidro, leds, mecanismo rotativo e ferro, 30 x 15 x 15 cm 102


Fountain, Pedro Portugal, 2020, imitação de pele de borrego e enchimento de peluche, 40 x 77 x 55 cm 103


Poop, Pedro Portugal, 2020, burel e enchimento de peluche, 50 x Ø 50 cm


MERDARTISTATOJI, Pedro Portugal, 2020, cerâmica fria, 21,5 x Ø 29,5 cm


Espelho de Casa de Banho, Miija Haky, 2020, tampo de retrete, espelho preto e pintura de automóvel, 35 x 90 x 25 cm


Cristo Negro, Pedro Portugal, madeira de pseudotsuga, plástico, fita cola e borracha líquida, 210 x 110 x 25 cm


Em 2004, Portugal comprou dois submarinos da classe Trident à alemã Ferrostaal Germain por mais de 1 bilhão de euros. Esta compra está relacionada com corrupção, tráfico de influências e financiamento ilegal de partidos políticos. O contrato de venda foi obtido por meio de subornos e contas falsas de consultoria no Crédit Suisse e na ESCOM. Os dois submarinos de ataque Arpão e Tridente não têm armas e custam 10 milhões de euros

de manutenção anual. O Arpão flutua e o Tridente não opera a imersão. Ambos os navios estão na Base Naval de Lisboa, a poucos quilómetros da foz do Tejo. Num cenário de guerra, um navio de guerra anti-submarino bloquearia facilmente o caminho para o mar destes navios. U-TÁGIDE é um projecto para a realização de um submarino em cortiça, material cujas excelentes propriedades de flutação são conhecidas.


U-TAGID RECK, Pedro Portugal, 2019, impressão 3D, borracha líquida, 80 x 14 x 25 cm


Futebol Inteligente, Pedro Portugal, 2020, MDF, madeira, tecido e tinta automóvel, 80 x 100 x 40 cm


Cabeça de Touro, Pedro Portugal, guiador e selim de bicicleta, 35 x 45 x 17 cm


LANDSCAPEOJI, Pedro Portugal, 2020, aclílico sobre MDF recortado, 94 x 103 x 10 cm


BANANOJI, Pedro Portugal, 2020, impressão sobre PVC, 94 x 103 cm


Panda Africano, Pedro Portugal, 2020, tecido de peluche e encimento de peluche, 200 x 200 x 160 cm


Zé-Povinho Anónimo, Pedro Portugal, 2020, cerâmica Bordallo Pinheiro, acrílico, 24 x 11,5 x 8 cm 115


Monumento ao Turista (maquete), Pedro Portugal, 2020, acrílico pintado e papel autocolante, 21 x 38 x 6 cm 116


Piesimir Mondrevich é um mashup entre a pintura Black Square de Kazimir Malevich (1915, 80 x 80 cm) e a pintura Victory Boogie Woogie de Piet Mondrian (1944, 127 x 127 cm). O quadrado médio dos dois quadrados é: 102,5 x 102,5 cm. A pintura Victory Boogie Woogie, foi a última pintura que Mondrian pintou e que deixou inacabada. É revelado o processo do artista que colava

Black Square (pormenor), Kazimir Malevich, 1915, 80 x 80 cm, State Tretyakov Gallery, Moscovo

pequenas tiras de papel colorido nas zonas a pintar. Neste mashup entre as duas pinturas são consideradas as tonalidades de cinzentos da pintura de Mondrian revertidos em negativo para tonalidades de negro. As tiras de papel colorido são substituídas por tiras de fita cola colorida. É mantida a posição de quadrado a 45º da pintura de Mondrian.

Victory Boogie Woogie, Piet Mondrian

(pormenor)

Piesimir Mondrevich, Pedro Portugal, 2020, acrílico e fita cola sobre tela, 102,5 x 102,5 cm


Carro de Palhaço, Manuel Vieira, 2020, metal e plasticina, 17 x 8 x 14 cm


Não se tratando de uma pintura, é no entanto um dispositivo onde é possível imaginar formas, articulações e narrativas. Como em qualquer parede em branco, como em qualquer forma nebulosa, ou parede comida pelo tempo. O campo está na realidade, completamente vazio, propondo por isso ao espectador que projecte as suas expectativas visuais numa suposta tela. A materialidade, se bem que não completamente ausente, é diluída. Assim, devemos desconfiar de quem nos diz que neste vazio existe qualquer coisa. Porque só existe o vazio. A possibilidade da ocorrência de alucinações recorrentes com este tipo de material, aparentemente amorfo, foi no entanto relatada ao artista, quando comprou o bizarro objecto a um fabricante de colchões na falência, durante a grande crise de 2008. Aquilo que alguém vir aqui é da sua única e exclusiva responsabilidade. E, ao contrário do fato novo do imperador,

o desafio é assumir que nada vemos, que a transparência é total, uma plácida parede vazia, branca, fantasmagórica, e não a de que as roupas do imperador são Dior ou imitações da feira de Benfica. Chega-se pois à melhor das conclusões, que é a de nada dizer, nada ver, nada ouvir. A pintura há muito que deixou de ser pintura. Há muito que faz parte do arsenal de um performer aldrabão, que muda de casaco como quem muda de cuecas, que usa a pintura para falsificar as suas masturbações mentais ausentando-se do diálogo crítico e informado com os seus semelhantes, para se refugiar num mundo pré-infantil e no entanto senil, como se os seus pesadelos de vigília interessassem aos grandes pedagogos do mercado, aos iluminados do fim do Mundo, aos cegos de Bruegel, que por fim compreenderam que para vender bem o templo é necessário extirpar de lá qualquer réstia de Fé.

ISTO NÃO É UMA PINTURA, Manuel Vieira, 2020, óleo sobre tela, 200 x 300 cm


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Rio da Prata, Manuel Vieira, 2020, mala de madeira, moedas, mãos de manequim, formas de sapateiro em madeira, 40 x 25 x 35 cm 121


Marte I, Marte II, Marte III e Marte IV, Manuel Vieira, 2019, acrílico sobre tela, 4 telas com 30 x 40 cm cada página seguinte: Pastorinha, Porfírio Granés, 2020, madeira, gesso, burel, plástico e metal, 98 x 37 x 69 cm



O Mundo a seus pés: Palhaço Rico, Manuel Vieira, 2020, couro, borracha, metal, vidro, papier machê, madeira, dimensões variáveis 124


O Mundo a seus pés: Palhaço Pobre, Manuel Vieira, 2020, plástico, dimensões variáveis


Nas obras de Roy Fleck (EUA, 1933-2009) vemos a repetição ad nauseum dos mesmos impulsos infantis. A forma como este artista visita os temas do amor e da felicidade, que nos servem na mitologia popular e televisiva, é de um cinismo pesado e irremediável, em que aquilo que se deixava ver nas suas primeiras obras (OBAMA ou Grace de 1995), onde a individualidade podia resgatar a narrativa

contínua e hipnótica da comunicação social moderna, esconde narrativas de felicidade já em si contaminadas pela total irrealidade. A sua obra Onde estás Nancy Cortez, infelizmente perdida, é um trabalho sobre 300 episódios de uma telenovela mexicana onde cada face é cuidadosamente velada, fotograma a fotograma, pelos seus fatídicos borrões.

OBAMA, Roy Fleck, 2019, acrílico sobre papel de jornal, 50 x 40 cm GRACE, Roy Fleck, 2019, acrílico sobre papel de jornal, 50 x 40 cm


Love Spot, Roy Fleck, 2019, acrílico sobre impressão em platex, 41 x 30 cm


O pintor Gastão da Cruz espreita uma paisagem flamenga do século XVI, uma bucólica existência humana, através da silhueta de um batráquio. Longe de ser uma metáfora da subida do poder amarelo, ou da ameaça da China para a civilização ocidental (neste caso medieva e indiferente), é antes o meditar naquilo que é a ameaça de extinção da humanidade, naquilo que ela tem de mais luminoso, por aquilo

que nela há de mais sombrio. Não o pecado ou a fecundidade pecaminosa, mas o cérebro reptilíneo que domina o sistema económico, num movimento reprodutor, de imparável inércia, até que toda a paisagem luminosa seja cada vez menor, o breu cada vez maior, até dominar o quadro como um pesadelo ou um enterro em vida. A vida nasce e morre, os organismos unicelulares continuam, mas não são fofinhos.

Paisagem Antropomórfica (políptico), Manuel Vieira, 2020, acrílico sobre tela, 240 x 160 cm


As paisagens nocturnas de José Sidney salivam sobre camelos sedosos como impassíveis jezebéis, num horizonte de improváveis safiras. Pederastas de macadame sonambuleiam pelas farmácias pestilentas em busca de pigmento fino. Mas só a escuridão lhes responde. Amanhã, talvez,

venha o dia… Mas continua a noite boreal no calor tropical, provocando erros graves de perspectiva. Cintilações bruxuleantes enfeitam o desmaio dos amantes num sussurro adamastórico, que as caravelas não tombem no fim do mundo, que os vivos regressem, que os mortos partam.

Paisagem Patafísica , Manuel Vieira, 2020, acrílico sobre tela, 120 x 80 cm Paisagem Patafísica II, Manuel Vieira, 2020, acrílico sobre tela, 120 x 80 cm


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Amor Perfeito, Manuel Vieira, 2020, plástico, cerâmica, vidro, madeira, metal, dimensões variáveis Página seguinte: Esfinge (Salazauro Vermelho), Manuel Vieira, 2020, fibra de vidro, dimensões variáveis


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Há nestes autoretratos de Orgasmo Bismark da Palma Carlos uma melancolia e uma angústia perante o abismo que nos corta a respiração. O artista rende-se por fim, depois de uma fase em que o kitsch e o pop copulam arbitrariamente na nostalgia de antigas colónias imaginárias de cores queimantes, a um presbiterianismo zarolho e velazquiano, a uma sobriedade fúnebre mas não funesta, a um diletantismo perante o inevitável fim da carne e do espírito. A odisseia espiritual e sentimental em que os mecanismos do artifício acompanham

a odisseia de um Cristo Hercúleo e Báquico, de um pecador tremente ante as imagens angustiantes do além e do aquém, num piscar de olhos a um público saturado de imagens, passam pela expressão física de alguns pecados mais ou menos mortais, em que é o Olhar do retratado que nos sugere aquilo que não é retratado. As sequências de imagens, em montagens que seriam usuais nos anos 70, sustentam este caleidoscopio ou abcedário expressionista, que nos recorda que os egrégios fantasmas não estão nunca longe dos vivos.

Cruz de Cristo, Orgasmo Carlos, 2020, impressão fotográfica sobre papel, 100 x 83 X 10 cm


Ponto «L», Porfírio Granés, 2020, bronze, vidro, óxido de ferro, 30 x Ø 20 cm 135


ESTE PAINEL é o protótipo do padrão parietal projectado para a nova capela dos ossos em Fátima. A Primavera, a Ressureição de Cristo e a renovação cíclica da Vida são um tema cristão que nos aproxima tanto da humildade como da felicidade em Cristo. O apóstolo Paulo disse: «Há-de haver uma ressurreição tanto de justos como de injustos». A maioria dos ressuscitados voltará para viver numa Terra pacífica sob o Reino de Deus. Na sua primeira carta aos Coríntios, Paulo

levanta uma questão sobre a primeira ressurreição: «Como hão-de ser levantados os mortos? Sim, com que sorte [espécie] de corpo hão-de vir?» Daí ele mesmo responde: «Aquilo que semeias não é vivificado a menos que primeiro morra… mas Deus lhe dá um corpo assim como lhe agrada… A glória dos corpos celestes é de uma sorte e a dos corpos terrestres é de sorte diferente.» Infelizmente o Vaticano e o Santuário de Fátima não concordaram com esta aproximação ao tema.

Capela dos ossos (pormenor), Manuel Vieira, 2020, impressão lenticular, 180 X 120 cm 136


Retrato de D. Gastão Cruz, Manuel Vieira, 2020, impressão fotográfica, 139 x 199 x 10 cm 137


O escultor e assembleur anarquista catalão Porfírio Granes Puig revisita temas que lhe são caros: a instituição do partido comunista e a supressão do poder anarquista depois da revolução de Outubro, a guerra de Espanha e a última ceia. O curador Manuel Vieira chama-lhe simplesmente Homenagem ao meu tio Juvenal, em honra do seu homónimo tio, sindicalista, mergulhador, cineasta, motociclista, cabeleireiro, comunista, pai natal, velejador e amante do modelismo

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ferroviário. Os materiais são dos anos 20 a 40 do século passado. A figura heróica repetitiva dos bustos de gesso parodia a paródia de Dalí no seu Hallucination partielle. Six images de Lenine sur un piano, mas transporta o sistema surrealista para um sistema construtivista ortogonal e impessoal. A peça foi encontrada já montada pelo artista quando ia beber café num bairro em Barcelona depois de ter na noite anterior uma visita em sonhos do visionário soviético.


O Trans-siberiano (L’Atelier de Lenine), Porfírio Puig, 2020, madeira, metal, gesso, plástico, linóleo, mecanismos eléctricos, dimensões variáveis 139


Na mitologia grega, Acteon, Actéon ou Acteão era filho de Aristeu e de Autônoe. Seu pai, Aristeu, era filho de Apolo com Cirene, filha de Hipseu. Sua mãe, Autônoe, era filha de Cadmo, rei e fundador de Tebas, e Harmonia, filha de Ares e Afrodite; suas irmãs eram Ino, Sêmele e Agave, e seu irmão era Polidoro. Exímio caçador, fora criado pelo Centauro Quíron. Um dia, estava a caçar na floresta quando deparou com Artemis, acompanhada de Ninfas, banhando-se num lago (ou numa nascente). Famosa por sua castidade, Artemis ficou indignada, molhou as mãos e aspergiu água no caçador, transformando-o num cervo.

Diodoro Sículo apresenta outras versões: ele teria oferecido o produto de sua caça ao templo de Ártemis, e teria tentado casar-se com ela no seu templo; ou ele ter-se-ia gabado de que era melhor caçador do que a deusa. Foi então perseguido pelos seus próprios cães de caça que o acabaram por matar. Esse derradeiro encontro também originou o quadro do artista Eugène Delacroix, o qual também serviu como inspiração para «o Verão» no maravilhoso concerto As Quatro Estações, de Antonio Vivaldi. Após a morte de Acteon, Aristeu consultou o oráculo de seu pai, Apolo, que o mandou para a ilha de Ceos.

A morte de Acteon, Manuel Vieira, 2020, madeira, metal, espelho, cascos de animais, chifres, dildo de silicone, 151 x 72 x 16 cm


Amor Perfeito, Manuel Vieira, 2020, plástico, cerâmica, vidro, madeira, metal, dimensões variáveis



KWØ or KWZero started out as KWZero in tribute to the artists of the KWY group from the 50’s and 60’s. Also to “Alternativa Zero” from Ernesto de Sousa (1977). This exhibition presents a set of previously unpublished texts and works by artists Manuel Vieira, Pedro Portugal and Pedro Proença. Creative engines of immaterial artistic landmarks in Portugal’s culture such as: Ena Pá 2000 (1985), Homeostética (1986), Ases da Paleta (1989), Etno-Estética (1994), Candidato Vieira (2001), Orgasmo Carlos (2006), Explicadismo (2010), Pandemos (2014), Zuturismo (2017) and Arthomem (2018). This long artistic partnership now reveals its most shamanic, post-neo-Platonic and demiurgic variant, where the art daimon is revealed as an oracle to the viewer. Reaching him in the heart of malaise, where is most fragile, willing to laugh, cry or be ecstatic. In KWØ, hundreds of objects, sculptures, drawings, photographs, paintings, videos and various performances are presented up as the corpus of this artistic eucharisty. An appeal to the conceptual, structural and non-verbal dissolution of what is produced as contemporary art.


A editora Asa de Icarus publicou em 2014, com a colaboração da Fundação Carmona e Costa e da Documenta um anti-ensaio, assinado pelos mesmos autores, sobre tudo o que é de todos: PANDEMOS©. Manuel Vieira, Pedro Portugal e Pedro Proença colaboram mais uma vez na produção de um texto para-recitativo e histórico-sensorial sobre o cânone futurista.

Os fundadores do movimento Homeostética, Ena Pá 2000, Ases da Paleta e da Associação para a Investigação Etno-Estética apresentam uma versão, em perspectiva espiritual comentada, dos acontecimentos e teorias que dominaram o universo da arte nos últimos 100 anos. Se a arte é para levar a sério, não deve ter graça e não pode haver pão para palhaços.


ALMANACH ZUTURISTA, Manuel Vieira, Pedro Portugal e Pedro Proença. 17:00h, 14 de Abril de 2017, P! REINVENÇÕES, São Luís Teatro Municipal, Lisboa, 2017 Qualquer movimento artístico tem um manifesto: É panfletário, radical, refundido, desafiam os artistas que antecedem, estabelecem intenções preferencialmente absurdas, indignam-se furiosamente com o mundo, dizem que o que fazem é completamente novo, defendem a arte como a única coisa que fica das civilizações (aqui alguma razão têm) e o nome acaba geralmente em «istas» (em inglês «ism»). Seguindo esta tradição os Zuturistas (Manuel Vieira, Pedro Portugal e Pedro Proença) apresentam — literalmente — aos gritos durante 20 minutos uma colectânea de textos/manifestos que chamam Almanache Zuturista. O que é o Almanache Zuturista? O Zuturismo opõe-se ao Futurismo e a todos os outros manifestos artísticos pela afirmação de que toda a arte é contemporânea, que não há história (e portanto não há arte do passado e muito menos do futuro), que não há boa e má arte e de que há muita arte que já existe (pré-arte) mas que ainda não é considerada arte. «Estamos a fazer Arte para Nada porque a Arte não é Nada» (We are only making Art for Nothing / because Art is Nothing).


ARTHOMEM – PERFORMANCE, 2018 Hoje o performer é a sombra da sua expansão digital. No mundo da super-gravação e dos acontecimentos on-line, a performance torna-se ecrã em propensão interactiva. Nesta performance os arthomens vão fazer filmar uma fábula que será simultaneamente gravada quer por uma equipa documental, quer por uma câmara que transmitirá em streaming. Perante a obsolescência dos statment que ornamentam o art world estes artistas são como maestros que dirigem várias orquestras num diálogo reflexivo e desconcer-

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tante. Freud disse que o trauma e a neurose são repetição. Hegel e Marx que a história está destinada, pela mesma repetição, a ser uma farsa. O espectador torna-se assim o espectro da farsa da sua interacção? E o performer? Perante isto a alternativa seria a festa. Em carne e osso? ARTHOMEM, 2018. Fernando Brito, Manuel Vieira, Pedro Portugal e Pedro Proença Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG), Guimarães


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