CONSCIÊNCIA E LIBERDADE
DOSSIER
Nº 21 - 2009 – Publicação Anual - Preço 10,00€
Nacionalismo e liberdade religiosa Estudos ............................................................ 7 Dossier ........................................................... 38 A importância da liberdade religiosa num Estado Nacionalista.................................. 38 Entre o nacionalismo, o islamismo e o Estado de Direito: a situação das minorias cristãs na Turquia .............................................. 53 Nacionalismo e religião: o caso francês .......... 67 A dimensão religiosa do nacionalismo – o estudo de um caso: os Países Baixos .......... 71 O papel das minorias religiosas na construção ou desmantelamento das Nações .... 84 Da pertença territorial à escolha comunista? O contexto social dos Direitos do Homem ...... 93 Palácio das Nações Unidas, em Genebra. Foto Karel Nowak
Documentos ................................................... 101
ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL PARA A DEFESA DA LIBERDADE RELIGIOSA Dotada de estatuto consultivo junto das Nações Unidas e do Conselho da Europa Schosshaldenstrasse 17, CH 3006 Berne, Tel. +41 (0)31 359 1527 E-mail info@aidlr.org - Fax +41(0)31 359 1566 Secretário-Geral: Karel Nowak Comité de honra: Presidente: Mary ROBINSON, antigo alto-comissário para os direitos humanos das Nações Unidas e antigo presidente da República Irlandesa, Estados Unidos Membros: Abdelfattah AMOR, antigo presidente do Comité dos Direitos do Homem nas Nações Unidas, Tunísia Jean BAUBÉROT, presidente de honra da Escola Prática de Altos Estudos na Sorbonne, titular da cadeira de História e Sociologia do Laicado na EPHE, Paris, França Bert B. BEACH, antigo Secretário Geral Emérito da International Religious Liberty Association, Estados Unidos. François BELLANGER, professor universitário, Suiça Olivier CLÉMENT, professor universitátio, escritor, França Alberto DE LA HERA, professor universitário, Director Geral dos Assuntos Religiosos, do Ministério da Justiça, Espanha. Silvio FERRARI, professor universitário, Itália Alain GARAY, advogado do Supremo Tribunal de Paris e investigador, França Humberto LAGOS, Professor universitário, escritor. Chile Adam LOPATKA, antigo primeiro presidente do Supremo Tribunal, Polónia Francesco MARGIOTTA BROGLIO, departamento de Estudos sobre o Estado, professor universitário, presidente da Comissão italiana para a liberdade religiosa, representante da Itália na UNESCO Rosa Maria MARTINEZ DE CODES, professora universitária, Espanha Jorge MIRANDA, professor universitário, Portugal Raghunandan Swarup PATHAK, antigo presidente do Supremo Tribunal, Índia e antigo juiz do Tribunal Internacional de Justiça Émile POULAT, professor universitário, director de investigação no CNRS, França Jacques ROBERT, professor universitário, membro do Conselho Constitucional, França Jean ROCHE, do Instituto, França Joaquin RUIZ-GIMENEZ, professor universitário, antigo ministro, presidente da UNICEF Espanha Antoinette SPAAK, ministra de Estado, Bélgica Mohamed TALBI, professor universitário, Tunísia Rik TORFS, professor Universitário, Bélgica Gheorghe, VLADUTESCU, professor universitário, vice-presidente da Academia romena, antigo Secretário de Estado para os assuntos religiosos, Roménia ANTIGOS PRESIDENTES DO COMITÉ Srª de Franklin ROOSEVELT, 1946 a 1962 Dr. Albert SCHEWEITZER, 1962 a 1965 Paul Henri SPAAK, 1966 a 1972 René CASSIN, 1972 a 1976 Edgar FAURE, 1976 a 1988 Léopold Sédar SENGHOR, 1988 a 2001
Consciência e Liberdade Nº 21 – Ano 2009
Órgão Oficial da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa Nº de Contribuinte: 500 847 088 Proprietário e Editor: Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa Sede da Redacção: R. Joaquim Bonifácio, 17 – 1169-150 Lisboa – Portugal Tel. 21 351 09 10 – Fax: 21 315 09 19
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Número 21 – 2009 Editorial Nacionalismo e liberdade religiosa . . . . . . . . . . . . . . . . . 4 Estudos J. Baubérot A representação da laicidade como “excepção francesa” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 A. Garay O papel da reconciliação no fortalecimento da liberdade de religião . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 V. Dima A influência da Lei relativa à liberdade religiosa sobre os cultos na Roménia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28 Dossier Nacionalismo e liberdade religiosa J.-Paulo Durant A importância da liberdade religiosa num Estado nacionalista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38 D. Heinz Entre nacionalismo, islamismo e Estado de Direito: a situação das minorias cristãs na Turquia . . . . . . . . . . 53 E. Poulat Nacionalismo e religião: o caso francês . . . . . . . . . . . . 67 R. Bruinsma A dimensão religiosa do nacionalismo – o estudo de um caso: os Países Baixos . . . . . . . . . . . 71 N. Lerner O papel das minorias religiosas na construção ou no desmantelamento das nações . . . . . . . . . . . . . . . . 84 D. Martin Da pertença territorial à escolha comunista? O contexto social dos Direitos do Homem . . . . . . . . . 93 Documentos Nações Unidas – Conselho dos Direitos do Homem 9ª Sessão (8-26 de Setembro de 2008) Primeira intervenção da Alto Comissário para os Direitos do Homem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101 A revista Conscience et liberté festeja os seus 60 anos e permanece bem viva . . . . . . . . . . . . 104 Os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106 3
Editorial Nacionalismo e liberdade religiosa Para este número, escolhemos como tema o dossier: “Nacionalismo e liberdade religiosa”, mesmo havendo o risco de que o assunto nos escape. A principal dificuldade reside na definição da palavra “nacionalismo”, que abrange significados e conotações diferentes conforme aquele que a emprega. Existem, é verdade, numerosos tipos e formas de nacionalismos. É por isso que o termo é, frequentemente, completado por adjectivos (que na maior parte dos casos, não o tornam mais explícito). Algumas expressões – como, por exemplo, em inglês “social nationalism”, que corresponde ao “nacional--socialismo” – reporta-nos para acontecimentos históricos dolorosos. Outros são tão ambíguos como a própria palavra nacionalismo. Para simplificar, escolhemos adoptar uma das definições históricas: a que considera o nacionalismo como um conceito vindo do Renascimento e da Reforma e que conheceu o seu verdadeiro desenvolvimento após a Revolução Francesa. Depois desenvolveu-se no decurso do século XIX e levou à criação de diversos Estados-Nações na Europa, no início do século XX. Os cépticos, sem dúvida que acrescentariam que ele também provocou as duas guerras “mundiais” do século XX. O fenómeno ressurgiu, em toda a sua amplitude, no decurso das décadas de 1950 e 1960, com os movimentos independentistas que surgiram em diversas regiões do mundo. Os países emergentes estavam então à procura de uma ideologia que justificaria a existência de novos Estados e forneceria elementos aglutinadores para construir a identidade nacional. É neste contexto que desejamos chamar a atenção para dois aspectos do nacionalismo: o nacionalismo laico e o nacionalismo religioso. Por nacionalismo entendemos uma ideologia baseada na partilha de uma História, de uma língua e – frequentemente – de um “mito” comuns. A isso junta-se, para o nacionalismo religioso, uma aspecto suplementar: uma particular convicção religiosa. Os nacionalismos religiosos perseguem, em geral, objectivos simultaneamente nacionais e religiosos. O que torna as coisas 4
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mais complicadas, é que, em numerosas regiões, não existe uma demarcação clara entre a religião e a política, como declarou o xeque Ahmed Yassine, líder palestiniano. Quanto ao nacionalismo laico, à primeira vista, espera-se que ele adopte uma atitude tolerante para com as questões religiosas. É este, geralmente, o caso, salvo quando o Estado escolhe como doutrina fundamental uma ideologia que considera a religião como um elemento perturbador ou um concorrente indesejável (o que é o caso, por exemplo, do marxismo ou do laicismo militante). Pelo seu lado, o nacionalismo religioso mais frequentemente leva à negação dos direitos do Homem e à intolerância religiosa para com as minorias – mesmo se há, nesse campo, algumas excepções. A existência de uma religião do Estado pode não ser, em si mesmo, incompatível com os direitos do Homem, enquanto não for instrumentalizada em detrimento dos direitos das minorias. A forma como certas religiões ou certos grupos religiosos colocam a sua ênfase na benevolência, na compreensão e no diálogo pacífico, mais do que na imposição, pela violência, nada tem a ver com o espírito de grupo intolerante e o etnocentrismo tão frequentemente associados ao nacionalismo. As normas e os instrumentos internacionais dos direitos do Homem declaram-se contra numerosos postulados enunciados pelo nacionalismo religioso. Entre outros, as normas partem, implícita ou explicitamente, do princípio de que a autoridade do Estado é neutra e imparcial quando se trata de questões religiosas que dizem respeito aos cidadãos. Por exemplo, como estipula o preâmbulo da Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e de descriminação baseadas na religião ou na convicção adoptada em 1981: “O desprezo e a violação dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais, em particular do direito à liberdade de pensamento, de consciência, de religião ou de convicção, qualquer que ela seja, estão, directa ou indirectamente, na origem de guerras e de grandes sofrimentos infligidos à humanidade, especialmente nos casos em que servem como meios de ingerência estrangeira nos assuntos internos de outros Estados e equivalem a atiçar o ódio entre os povos e as nações.” O papel do Estado é, antes de mais, proteger os seus cidadãos e favorecer a liberdade de consciência e garantir de forma efectiva a igualdade dos direitos e dos privilégios para todos, “sem distinção alguma, especialmente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política e de qualquer outra opinião, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação” (Artigo 2 da Declaração Universal dos Direitos do Homem). por definição, nenhuma entidade religiosa particular pode bene5
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ficiar de um tratamento de favor perante os outros, assim como é interdita a descriminação baseada na raça, na etnia, no sexo, na propriedade, etc., os instrumentos internacionais dos direitos do Homem partem do princípio de que as autoridades políticas se apoiam no que une os seres humanos e não no que os opõe ou os torna diferentes. Do ponto de vista dos direitos do Homem, cada Estado-Nação moderno é levado a adoptar uma atitude neutra para com a religião. Há, por isso, um meio seguro e já deu provas no passado: distinguir, tanto quanto possível, a autoridade religiosa da autoridade civil, separar e Igreja e o Estado, e não confundir a identidade religiosa comunitária com identidade política comunitária. Será que a liberdade religiosa e o nacionalismo – como ideologia fundadora do Estado – são compatíveis? Neste número, desejamos aprofundar um pouco o debate em curso. O ano passado foi marcado por dois aniversários importantes. Em Dezembro todos os defensores dos direitos do Homem festejam o sexagésimo aniversário da adopção da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Falaremos provavelmente disso no próximo número. O segundo aniversário diz respeito desde logo à nossa revista. Em Setembro de 1948 o fundador da nossa Associação, o Dr. Jean Nussbaum, publicava o primeiro número da Conscience et Liberté. Estamos orgulhosos por esta revista ainda existir, e que continua a ser útil a cumprir a sua missão inicial. Karel Nowak
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Estudos A representação da laicidade como “excepção francesa”* Jean Baubérot** No Outono de 1989 aparece uma fórmula que vai fazer furor: a laicidade é uma “excepção francesa”. Rapidamente é posta em evidência, até pela sua repetição constante. Assim, um jornal diário pediu-me um artigo sobre a laicidade. Intitulei-o “A Laicidade não é uma excepção francesa” e foi publicado com o título “Laicidade, a excepção francesa inscreve-se nos valores universais”, amputado de passagens, tornou-se incongruente. O México imitador da França … ou o inverso? A expressão “laicidade excepção francesa” é talvez menos frequentemente utilizada hoje. Não há necessidade de a repetir tanta vez porque se tornou uma representação implícita largamente dominante em França, a ponto de fazer com que pessoas que pretendem ter autoridade na matéria escrevam coisas falsas. Assim, o Haute Conseil à l’Intégration (HCI) afirma, desde 2007, no seu Projecto de Carta da laicidade nos serviços públicos, que “objecto de admiração para o mundo, a lei de separação (de 1905) suscitou émulos e faz aparecer imitações”. E dá, como exemplo o México. Ora este país estabeleceu a separação em … 1861 e reforçou-a em 1874. Longe de ter imitado a França, o México constituiu uma referência na elaboração da lei francesa da separação das Igrejas e do Estado. O relatório da Comissão Parlamentar, redigido por Aristide Briand cita, de resto, longamente a lei mexicana da separação de 1874. E conclui: “O México possui, assim, a legislação laica mais completa que até hoje foi posta em vigor; este país libertou-se há trinta anos da questão clerical e pôde dedicar-se, inteiramente, ao seu desenvolvimento económico: ele conhece, realmente, a paz religiosa.” Esta passagem termina um capítulo consagrado às “Legislações Estrangeiras”. Neste capítulo Briand distingue, segundo uma perspectiva evolutiva, três fases: “A primeira fase, teocrática, ou quase teocrática, na qual o Estado é, senão subordinado à Igreja, pelo menos estreitamente unido a ela.” A Espanha e Portugal católicos, a Rússia e a Grécia ortodoxas, a Suécia e a Noruega protestantes parecem ilustrar este regime. A segunda fase é a da “semi-laicidade”, na qual os Estados proclamam “os princípios da liberdade de consciência e de culto, mas consideram, apesar disso, certas determinadas religiões, como instituições públicas que eles reconhecem, 7
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protegem e subvencionam”. A França da Concordata e do regime dos cultos reconhecidos, o Benelux, a Alemanha, a Itália, o Equador incluem-se nesta categoria. “Por fim, precisa ele, em alguns países da Europa e sobretudo em diversas grandes Repúblicas americanas, aparece o terceiro termo da evolução. O Estado é, então, realmente neutro e laico; a igualdade e a independência dos cultos são reconhecidas; as Igrejas estão separadas do Estado”. E é sobretudo a legislação destes últimos países que Briand examina, em particular, no que diz respeito às Américas, o Canadá, os Estados Unidos, Cuba, o Brasil e as repúblicas da América Latina, como o México. Ao realizar a separação em 1905, longe de ser um “objecto de admiração para o mundo”, como pretende o HCI, com uma ênfase um pouco ridícula e que cheira a nacionalismo, a França não fez mais do que “atingir este terceiro grupo em que vários países a tinham precedido”. Isto é o o posto de uma visão da laicidade como “excepção francesa”. Teria havido, portanto, matéria para um bom debate por ocasião do centenário da lei. Ora o que se passou? A Assembleia Nacional (2005) reeditou em fac-simile “O Relatório Briand”, suprimindo o capítulo sobre “as legislações estrangeiras”! Salvo erro da minha parte, fui o único a analisar este capítulo (J. Baubérot 2006, 176-179). Enferma-se, portanto, de uma visão estreitamente franco-francesa da laicidade. As influências estrangeiras da laicidade francesa, da escola… Com efeito, de uma forma mais geral, a construção histórica da laicidade francesa não se fez sem empréstimos, ou influências, provenientes do estrangeiro. A laicização da escola pública tem sido aplicada ao mesmo tempo que a obrigação da instrução (1882). Foi precedida de um inquérito internacional do Ministério da Instrução Pública para saber como os países que já tinham compreendido a obrigatoriedade escolar (vários países europeus, o Canadá, os Estados Unidos, a Austrália e o Japão) conciliavam essa obrigação com o respeito pela liberdade de consciência. As soluções holandesa, americana e inglesa (em que se tinha assinado uma “Common Christianity”) prenderam a atenção de Jules Ferry na sua relação de proximidade e de distância com a situação francesa. Segundo Ferry, é o papel diferente do “laico” que criou esta distância: num país impregnado pela cultura protestante, o leigo detém uma certa legitimidade para interpretar a Bíblia. A moral ensinada pelos instrutores “laicos” pode, portanto, apoiar-se numa base cristã não confessional, com base bíblica. Em França, uma moral religiosa é forçosamente “clerical” porque o instrutor, é um “leigo” sem nenhuma legitimidade religiosa (P. Chevallier, 1981, J. Baubérot – S. Mathieu, 2002). Deve então passar-se de um ensino ministrado por um “laico” para um ensino “laico” e da neutralidade confessional para a neutralidade religiosa (B. Mely, 2004), o que, em relação aos outros países, acentua a laicização mas não cria nenhuma situação excepcional. 8
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Esta moral laica, que estudei nos cadernos escolares (J. Baubérot, 1997), está mais impregnada do filósofo alemão Emmanuel Kant do que das Luzes francesas ou do positivismo. (J. Bonet, 2007) mesmo se estas últimas correntes exercem uma certa influência (L. Loeffel, 2000). Kant é reinterpretado por Charles Renouvier (M-.Cl. Blais, 2000). A grandeza de Kant,segundo Renouvier, consiste em ter sido “o criador da moral como ciência”, mas não soube, verdadeiramente, abordar o problema da moral aplicada. Foi aí, portanto, que os filósofos-pedagogos da III República concentraram os seus esforços. Encontramos, no entanto, frequentemente entre eles as fórmulas Jules François Ferry (1832-1893), kantianas. Kant foi, de resto, largapolítico francês. Contribuiu com mente ensinado nas Escolas Normais todas as suas forças para o acesso de professores primários, completado obrigatório e gratuito de todas as cripor outras referências, tal a ênfase anças à escola laica, descartando os posta na solidariedade social. jesuítas de toda a influência sobre o Jules Ferry encontra, igualmente, sistema escolar. Reorganizou a formano exemplo do budismo a possibilição dos professores e criou a primeira dade de dissociar a moral (como valor escola pública feminina. universal) e o cristianismo (como reliFoto Wikipédia gião particular): “Na moral budista, afirma ele, espera-se caridade até nos animais e nas plantas. Isso prova que uma moral baseada na prática a mais exigente, a moral da abnegação por excelência, pode existir com dogmas que não se assemelham em nada, aos dogmas cristãos. No budismo, não há nem castigos nem recompensa.” (Citado por P. Chevallier, 1981, 438 e s.) Este elogio do budismo feito por Ferry é o aproximar da oposição que ele manifesta para com os “dogmas” da “religião civil”, segundo Jean-Jacques Rousseau, em que as injustiças aqui praticadas estão contrabalançadas com a “recompensa dos justos” e a “punição dos maus” no além. O que é necessário salientar, para além da instrumentalização do budismo, é o interesse para com esta religião, e a forma como ela permite sair das perplexidades ocidentais. A saída da religião civil de Rousseau e dos seus “dogmas” efectua-se, igualmente, através da insistência na solidariedade, sendo Confúcio uma das suas referências. A moral laica à francesa, coloca a ênfase nos “bens” materiais e intelectuais que encontramos à nascença: casas, objectos, alimento, livros, ciências, técnicas, etc., conjunto de “riquezas” devidas a um trabalho secular. Trata-se de “benifícios dos mortos”, porque a maior parte das pes9
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soas que trabalharam para obter um tal grau de civilização, estão mortos. O professor conclui, então, que devemos reconhecimento aos “antepassados” (graças aos seus “benifícios”, os mortos adquirem esse estatuto) e pode fazer uma referência explícita a Confúcio. Chega até a dizer-se que “o culto dos antepassados” é um “culto legítimo” (J. Baubérot, 1997, 251-268). Estamos portanto, perante uma espécie de “confucionismo republicano”. É uma forma de mostrar que moral e justiça não se reconciliam ao nível do indivíduo o que obriga a postular um “além”), mas ao nível da sociedade, entendida como um conjunto colectivo de indivíduos solidários. Este equilíbrio entre indivíduo e sociedade pode ser considerado como uma das particularidades da moral laica francesa. Os partidários de uma laicidade “excepção francesa” insistem, com alguma razão, sobre a importância da escola em matéria de laicidade. Mas esquecem toda a dimensão da moral laica e pretendem que a escola, para ser verdadeiramente laica, deve ensinar o “saber puro”. Segundo eles, esta posição torna-os “laicos à antiga” assim como os seus adversários seriam partidários de uma “nova laicidade”, traição, de facto, da verdadeira laicidade. Régis Debray defende especialmente, estas teses, no decurso no Outono de 1989 (por ocasião da primeira crise dos lenços muçulmanos), numa intervenção-manifesto significativamente intitulada “A laicidade: uma excepção francesa”. Foi aliás, uma das primeiras vezes que esta expressão foi utilizada. Debray declara que em República, contrariamente ao que se passa em democracia, a escola afirma-se “como méta-nivel […] A escola é mediação. É necessário um mestre para se passar de mestre”. Ele atribui esta última fórmula – que menciona duas vezes – ao seu “antigo professor de filosofia que era (ele mesmo) um ‘laico à antiga’, Jacques Muglioni1”. Encontramo-las tal e qual na pena de outros filósofos, antigos alunos de Muglioni ou influenciados por ele (ver o livro de homenagem: Les Préaux de la République). E isso faz duvidar um pouco da sua validade: se esses filósofos tivessem realmente chegado a “ultrapassar o mestre”, continuariam a repetir a sua fórmula? Ora isto é historicamente falso. A laicidade “à antiga”, a de há um século, não se passou forçosamente disto mesmo. Os laicos sabem que “para se passar de mestre”, é melhor aprender desde a idade de jovem a não o ser. É o que se pode concluir da intervenção feita por Ferdinand Buisson, antigo adjunto de Ferry e director do Dictionnaire pédagogique (“catedral da escola primária”, segundo P. Nora 1984), no congresso do Partido Radical, em 1903. A questão era saber se a laicidade podia aceitar a manutenção de uma escola privada católica, muito clerical, cujo ensino era frontalmente oposto ao da escola laica. Ferdinand Buisson refuta assim os apoiantes da “laicidade integral” (e expressão era utilizada na época), hostis ao ensino privado: “Não se faz um republicano como se faz um católico. Para fazer um católico, basta impor-lhe a verdade já feita: ela aí está, e pronto, basta engoli-la. […] Para fazer um republicano, é necessário tomar o ser humano […] e dar-lhe a ideia na 10
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qual ele deve pensar por si mesmo, que ele não deve nem fé nem obediência a ninguém, que é ele que deve procurar a verdade e não recebê-la já feita de um mestre […] seja ela qual for, temporal ou espiritual.” Buisson defende a existência da escola privada de forma paradoxal. Com efeito declara: “Não há educação liberal onde não se coloca a inteligência perante afirmações diversas, opiniões contrárias, em presença do pró e do contra, dizendo-lhe: compara e escolhe por ti mesmo.” A conclusão da aparência lógica, deveria consistir em afirmar: é mais uma razão para conceder o monopólio da instrução à escola laica. Com Ferdinand Édouard Buisson efeito, o seu ideal é precisamente a formação (1841-1932), filósofo, pedagogo do espírito crítico, embora o próprio Buisson e homem de Estado francês. sublinhe, de um ponto de vista laico, a escola Desenvolveu o conceito pedcatólica socializada tem a passividade intelecagógico para uma escola primária pública e laica. Propôs à Câmara tual. Todavia, in fine, o discurso de Buisson a separação da Igreja e do Estado induz uma indispensável volta: a emancipação e empregou, pela primeira vez, para a liberdade de pensar obriga a dar lugar a palavra “laicidade”. Ocupou, à liberdade-pluralista, pluralismo que engloba durantes vários anos, o lugar até mesmo “inimigos da liberdade”. O discurso de Presidente da Liga para os sobre a formação do espírito crítico pela escola Direitos do Homem de que tinha sido um dos fundadores. em 1927, laica é, forçosamente, uma boa parte ideológipartilhou com Ludwig Quidde o ca: o professor da escola laica é um professor prémio Nobel da Paz. e só um pensamento mágico se pode persuadir Foto Serviço de História da do contrário. Ele ensinará sempre mais “a verEducação, Paris dade”, a sua verdade, do que o espírito crítico. Portanto, não deve haver “fé e obediência a ninguém”, “procurar a verdade e não a receber já feita”, o que supõe “opiniões contrárias”, “o pró e o contra”. É a interacção social dessas opiniões contrárias que permite que se forma um espírito crítico. Não existe “mestre em liberdade”, nem (aí como em todo o lado) amanhãs que cantem. Buisson era um grande admirador da América e dos seus pedagogos. Nota-se a influência dessa admiração na estreita ligação que ele faz entre laicidade, emancipação e pluralismo. Por outro lado, ele foi vencido nesse Congresso que se pronunciou em favor do monopólio da escola pública. Mas se ele perdeu uma batalha, ganhou a guerra, uma vez que o monopólio nunca foi concretizado. Assim, pode constatar-se que muitas concepções da laicidade se têm sempre afrontado e que, de uma forma geral, é até estes últimos anos, inclusivamente, a concepção que ela importou, concepção que não receia referir-se (explicita ou implicitamente) a outros países. 11
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…à separação das Igrejas e do Estado Isto verifica-se, também, quando se analisa os debates parlamentares da lei de 1905. A Igreja Católica acusava o projecto de lei de ignorar a sua organização própria (“monárquica”, dizia-se na época) por pretender colocar os edifícios do culto (igrejas, templo, sinagogas) como propriedade pública, à disposição de associações, compostas, maioritariamente de “leigos”. O Artigo 4, artigo fundamental da lei, foi então modificado e a sua nova redacção precisa que esses bens serão atribuídos a associações que “se conformem com as regras gerais do culto do qual se propõem assegurar o exercício2”. Esta formulação é encontrada nas legislações dos Estados Unidos e da Escócia (M. Larkin, 1974, 175s, 275) em que é tido em conta a especificidade de cada Igreja, numa lógica em que os grupos intermédios são, legitimamente, parte integrante de uma sociedade civil, ela mesmo, legítima perante o Estado. Mas esta contribuição anglo-saxónica encontrou vivas oposições e o debate entre leigos provocou estragos. Nessa ocasião, Buisson, como Clemenceau (e, a fortiori, os defensores da “laicidade integral”), encontrou aquilo que se afasta na verdade da lógica republicana francesa, em que a liberdade colectiva é um prolongamento da liberdade individual. Mas Aristide Briand, Jean Jaurès e Francis de Pressensé, todos socialistas, defendem a modificação que faz da liberdade colectiva uma dimensão da liberdade individual, e esta foi adoptada. O Artigo crucial da separação recusa, portanto, a universalidade abstracta resultante da Revolução Francesa. De uma forma mais geral, o apoio global da lei da separação, o seu liberalismo político, inspira-se em John Locke. Desde logo, porque Locke é o pensador do “governo limitado” e porque a lei suprime as medidas de vigilância que o Estado francês exercia sobre a religião antes de 1905, para os trocar por uma vigilância a posteriori. Depois, porque a Carta sobre a tolerância estabeleceu, entre poder civil e autoridade religiosa, uma separação muito mais clara do que Voltaire e a tradição anticlerical francesa subsequente, que se situa mais na óptica galicana da subordinação da religião ao Estado. Por fim, porque Locke dissocia, contrariamente à “religião civil” de Rousseau, “intolerância teológica” e “intolerância civil” e que esta lei não exige às religiões senão a “tolerância civil”. As Igrejas separadas do Estado guardam, no pensamento de Locke, a possibilidade de terem “opiniões falsas ou absurdas” e de excomungar aquele que nega as leis que estabeleceram no seu seio, com a condição de que ela não esteja “a excomungar nenhuma injustiça civil”. Rousseau recusa-se a tolerar qualquer Igreja exclusiva porque, afirma ele, “não saberia viver em paz com aquele que acredita ser maldito3” (ver J. Baubérot, 2007, 22-31). Para ele, “a intolerância teológica” (só os “verdadeiros crentes” são salvos) arrasta, necessariamente, os seus adeptos para uma “intolerância civil que não poderia ser tolerada”, enquanto que, em Locke, a separação implica uma ginástica intelectual entre a atitude civil (que deve ser tolerante) e a atitude teológica (que pode ser intolerante). É possível escrever a história filosófica da laicidade francesa a partir de três ideias tipo que são o separatismo lockeano, o anticlericalismo voltairiano 12
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e a religião civil rousseauna. Sob a Restauração, Le Globe, a publicação dos filósofos proscritos da Universidade, situa-se no domínio lockeano. Jules Ferry, antijacobino, mostra-se desconfiado para com a religião civil. No seu pensamento encontram-se diversos graus segundo as circunstâncias, o modelo anticlerical e o modelo separatista. Émile Combes, apoia-se na princesa carmelita Jeanne Bibesco (à qual o ligava uma relação apaixonada) das suas ideias rousseaunas. A “laicidade integral”, reclamada no início do século XX pelos livres-pensadores, mistura anticlericalismo voltairiano e religião civil. Quanto a Aristide Briand, acabámos de ver que se situa numa filiação lockeana. A “laicidade, excepção francesa”, por fim, retoma, logicamente, a mistura de anticlericalismo e de religião civil da “laicidade integral”, acrescentando esta insistência sob o aspecto suposto nacional da laicidade.
O conflito de duas Franças, catolicismo e laicidade
Porquê uma tal união depois de 1989? A nossa hipótese é a seguinte: sempre houve, em França, um laço entre laicização e identidade nacional, mas este laço alterou a sua natureza nos anos de 1980, e especialmente a partir de 1989. Muitos historiadores consideram, com Émile Poulat (1987), que a laicidade é o resultado do “conflito das duas Franças”. Ora, trata-se de um conflito de “duas Franças” porque coloca em confronto duas representações da França, duas concepções da identidade nacional. Para um catolicismo militante, e especialmente o “catolicismo intransigente” (Émile Poulat, 1977), a França devia reencontrar uma identidade católica oficial, suprimida pela nefasta Revolução e não restabelecida depois4: a França é a “filha mais velha da Igreja” (católica, escusado será dizer), o catolicismo é “a alma” da França. Por outro lado, os “sem religião” eram menos de cem mil e as minorias religiosas constituem microminorias (menos de cem mil judeus, cerca de setecentos, ou oitocentos mil protestantes), o catolicismo representava não apenas a “grande maioria” mas, na realidade, a quase totalidade dos franceses. Esta visão, no entanto, não tem em conta o facto de 97% dos católicos franceses terem uma relação muito diversificada com o catolicismo. Muitos, dentre eles, desejam beneficiar daquilo a que se chamava, na época, os “apoios da religião”, sem, no entanto, obedecerem, forçosamente, às normas morais e aderir aos dogmas religiosos do catolicismo. Face a este catolicismo militante, existia, portanto, uma grande dependência do domínio feudal que estimava, de forma racional, ou intuitiva, que a religião é um assunto individual e não uma dimensão da identidade nacional. Para estes últimos, de forma explícita ou mais implícita, a identidade nacional moderna foi moldada pela herança da Revolução Francesa, os “valores de 1798”, valores não apenas morais mas concretizados pela venda dos bens nacionais e o acesso à pequena propriedade de uma pequena classe média campesina. Trata-se, portanto, de uma referência à Revolução, desembaraçada dos seus aspectos extremos e das escórias do Terror (que, noutra perspectiva, 13
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fazia parte da própria natureza da Revolução). Nesta grande dependência do domínio feudal se encontrava, além da maior parte dos “sem religião” e muitos membros de minorias religiosas, numerosos católicos entre aqueles que tinham com a sua instituição religiosa relações de proximidade e de distância. Esta referência à Revolução Francesa completava-se, especialmente, entre as elites, por uma oposição entre os países do Norte, germânicos e anglo-saxónicos, de cultura protestante, entrados na modernidade, e os países do Sul, latinos, que o catolicismo empurrava para o arcaísmo. A laicidade foi sempre considerada como uma via de acesso à modernidade. Na verdade, as manifestações de orgulho nacional não eram excluídas. A França, com as suas leis escolares, tornou-se “em suma, a sociedade mais laica da Europa”, escreveu Buisson, em 1833, no seu Dictionnaire Pédagogique. Mas permanecemos, mais ou menos, em graus, mais ou menos acentuados da laicidade e não numa laicidade “excepção francesa”. A especificidade da laicidade francesa encontra-se, então, no facto de que ela envolve claramente toda a identidade institucional católica da França laicizando a escola pública (1882-1886) e realizando a separação das Igrejas e do Estado (1905-1908). O aspecto mais “doloroso” desta separação foi, para os católicos militantes, precisamente o fim do sonho de uma França “nação católica” (como já demonstrei no meu blogue5). A Acção Francesa de Charles Maurras (ele mesmo agnóstico, mas partidário de uma ordem pública católica) continuará a alimentar a ideia de um catolicismo nacional. De resto, a laicidade não é consensual, em França, longe disso. Concretamente, não tem sido um elemento representativo da identidade francesa (mesmo que ela se tenha institucionalizado). Ela tem constituído, em contrapartida, um elemento importante da representação de uma identidade de esquerda. Antes de mais tem sido um sinal identitário do “partido republicano”, contra os monárquicos. Depois, da aproximação de alguns católicos à República (após o pedido de Leão XIII), causou uma clivagem entre os republicanos e distingue aqueles que praticam uma política de abertura para com esses e os que a recusam. Os católicos que seguiram Leão XIII ligaram--se, com efeito, à República, mas não às leis laicas. Falava-se então de “leis intangíveis” para estabelecer a diferença. O caso Dreyfus reforçou a clivagem e a laicidade tornou-se o estandarte do governo da “Defesa republicana” (1899-1902), depois do “Bloco das Esquerdas” (1902-1904). Falava-se então (já o vimos) de “laicidade integral”, o que significava a recusa dos acordos efectuados por Jules Ferry e uma abolição da laicidade. A busca da “laicidade integral” levou a tomar e a considerar medidas cada vez mais duras, que saíam da pura democracia. Disso dá testemunho a oposição de Buisson ao projecto de instauração de monopólio do ensino superior. Clémanceau, por seu lado, resumiu a situação declarando no Senado: “Para lutar contra a congregação, fazemos da França uma imensa congregação”. E concluiu: “Somos homens de espírito latino. A perseguição da unidade por deus, pelo rei, pelo Estado assedia-nos: não aceitamos a diversidade 14
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na liberdade” (Novembro de 1903). Todavia, numa reviravolta bem surpreendente, a mesma maioria seguiu Briand em 1905 e votou uma lei que ao próprios Buisson e Clémanceau acharam muito condescendente para com a Igreja Católica (ver J. Baubérot, 2006, 145-194). Do conflito das duas Franças à “laicidade excepção francesa” Esta política de apaziguamento continuou, mas caminhava a par do endurecimento ideológico de uma ala militante: “Uma certa linguagem, ao mesmo tempo batalhadora e incantatória, está em bom andamento para fixar os seus traços. Assiste-se então ao ‘nascimento de uma vulgata’ marcada pelo uso intensivo do termo ‘clericalismo’, a ideia de que o combate a travar é ‘eterno’ e que a ‘defesa laica’ é um logro tanto que subsiste a escola privada.” (J.-P. Martin, 1992, 792-794). Esta corrente vai persistir, mesmo depois da constitucionalização da laicidade, em 1946. Oficialmente, a identidade francesa tornou-se laica. Mas, de facto, o combate das duas Franças permanece, com uma tendência para reduzir a laicidade a um problema de subvenção pública das escolas privadas (então católicas em mais de 90%) especialmente com a lei Debré (1959). Sem dúvida que a questão não é negligenciável, mas a importância, para nós, são as consequências desta situação. Desde logo, ela perpetua uma concepção da laicidade como criador de fronteiras da esquerda e não como elemento de identidade nacional. Católicos hostis à guerra da Argélia e que se tornaram socialistas tiveram bastante dificuldade em se fazerem aceitar como tal. O protestante Michel Rocard deu um interessante testemunho nas suas memórias políticas (2007). Depois, países estrangeiros – especialmente os Estados Unidos que não subvencionam as escolas privadas – eram citados como modelos de laicidade para a França. Os anos 1980 vão baralhar os dados. Desde logo, a identidade da esquerda vai começar a desestruturar-se com a reviravolta operada em 1983 pela esquerda, chegada ao poder em 1981, e, nos anos seguintes, com o declínio do comunismo e o fim rápido da URSS. Depois, o campo laico vai sofrer uma profunda derrota com a sua tentativa de impor o SPULEN (Serviço Público Unificado e Laico da Educação Nacional), que deveria ter realizado uma reunificação laica dos sistemas escolares públicos e privados. A maioria da opinião pública já não considerava, então, a escola privada católica como ensinando uma outra França e socializante com valores divergentes dos da república laica. Ela indicou, portanto, claramente, que aos seus olhos o “conflito das duas Franças” estava acabado. Sem dúvida, em 1994, a recusa em modificar a lei Falloux mostrará que se trata de um novo equilíbrio e não de uma vingança provada. Mas, entretanto, o acordo Lang-Cloupet de 1993 tinha ido mais longe do que a lei Debré no reconhecimento público do ensino católico! Significativamente, a crise de 1984 foi rapidamente banida da memória colectiva, e os partidários da “laicidade excepção francesa” agora contam-nos uma história falsa de uma laicidade francesa consensual antes do 15
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“lenço” e outras manifestações “muçulmanas” tivessem quebrado esta idade de ouro de felizes consensos. Os “problemas do lenço”, a partir de 1989 marcam, portanto, uma curva e a expressão “laicidade excepção francesa” fez figura a partir desse momento. Longe de se referir a uma “laicidade à antiga”, conota uma “nova laicidade” que se tornou a marca de uma certa concepção de identidade nacional. Implicitamente, com efeito, ela opõe antigos franceses, todos laicos por definição (apesar da Concordata e do sistema de cultos reconhecidos na Alsácia-Mosela, as subvenções à escola privada, etc.) e os novos franceses, aos quais é pedido que façam prova em matéria de laicidade. Trata-se, portanto, de uma laicidade transformada em “religião civil” republicana. Com efeito, desde o fracasso do SPULEN, a laicidade podia ser, virtualmente, um elemento de uma identidade francesa consensual. Mas esta virtualidade não se tornou efectiva senão para a construção de um novo adversário: o islão (ou pelo menos um certo islão, o das jovens que usam o lenço). Os acontecimentos políticos e sócio-económicos favoreceram o retomar do tema da “laicidade ameaçada”, que a “laicidade integral” tinha utilizado contra o catolicismo, há um século; assim como outros temas que se encontram já no século XIX (como o da “mulher submissa” de ontem). A direita disputa cada vez mais à esquerda o tema da laicidade, sobretudo, desde os atentados do 11 de Setembro de 2001. Por outro lado, a fórmula “laicidade excepção francesa” é muitas vezes oposta a outra: o “comunitarismo anglo-saxónico”, que junta ao medo dos muçulmanos o medo da globalização e de uma supremacia anglo-saxónica. Foi igualmente em 1989, com efeito, que se começou a opor “república” e “democracia”, jogando com os dois sentidos do termo república, a res publica e a República Francesa (sentido socialmente dominante), da mesma forma que se tinha jogado com os dois sentidos da palavra “homem” (ser humano e ser masculino) para fazer como se os homens masculinos fossem os seres humanos por excelência e afirmar que o sufrágio era “universal” durante o século (cerca de 30 a 35 anos) em que só os homens têm voto. A mesma universalização do particular realiza-se com a noção de república. Implicitamente (e mesmo por vezes quase explicitamente), a República Francesa tornou-se, por este passe de mágica, na res publica por excelência: a República (francesa) é universal, as democracias (incluídas repúblicas como os Estados Unidos) são particularizadas. E, embora universitários de numerosos países afirmem que existe em nome do mundo das laicidades de que a francesa é um exemplo que, como as outras, tem as suas próprias particularidades (J. Baubérot, 2007, 3-6), este tipo de laicidade dita “republicana” é franco-francesa por definição, portanto, forçosamente uma “excepção francesa”. O círculo é assim fechado. Numa tal conjuntura, esta representação da laicidade como “excepção francesa”, ao arrepio de toda a evolução histórica e sociológica (já vimos: a laicidade francesa construiu-se graças a transferências culturais e existem 16
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outras laicidades para além da laicidade francesa) arrisca-se a fazer da laicidade um bem identitário dos “Franceses de raiz” a quem os “novos Franceses” vindos da imigração deveriam prestar vassalagem para se tornarem “verdadeiros” franceses. Obras citadas: Assembleia Nacional, Le rapport Briand, rapport fait au nom de la Commission relative à la Séparation des Églises et de l’Etat. Avant-propos J.-L. Debré, Assembleia Nacional, Paris, 2005. Badinter E. et alii, Les Préaux de la République, Minerve, Paris, 1991. Baubérot J., La morale laïque contre l’ordre moral, Seuil, Paris, 1997. Idem, L’intégrisme républicain contre la laïcité, L’Aube, Paris, 2006. Idem, Les laïcités dans le monde, PUF, Paris, 2007. Baubérot J.-Mathieu S., Religion, modernité et culture au Royaume-Uni e France, Seuil, Paris, 2002. Blais M.-C., Au principe de la République, le cas Renouvier, Gallimard, Paris 2000. Bonnet J., Kant instituteur de la République (1795-1904), tese de doutoramento da Escola Prática dos Altos Estudos, Paris, 2007. Chevallier P., La séparation de l’Église et de l’École, Fayard, Paris, 1981. Debray R., “La laïcité, une exception française”, in Genèse et enjeux de la laïcité, Labor et Fides, Genève, 1990, p. 199-208, 214, 217-219, 223-224. Larkin M., Church and State after the Dreyfus Affair: the Separation Issue in France, Macmillan, Londres, 1974. Loeffel L., La question du fondement de la morale laïque, PUF, Paris, 2000 Martin J.-P., La Ligue de l’enseignement et la République, des origines à 1914, tese de doutoramento dos Instituto de Estudos Políticos, Paris,1992. Mély B., De la séparation des Églises et de l’École. Mise en perspective historique Allemagne, France, Grande-Bretagne, Italie, 1789-1914, Lausanne 2004, p. 2. Poulat E., Église contre bourgeoisie, Casterman, Tournai, 1977. Idem, Liberté, Laicité. La guerre des deux France et le principe de la modernité, Cerf/Cujas, Paris, 1987. Rocard M., Si la gauche savait. Entretiens avec Georges-Marc Benamou Robert Laffont, nova edição aumentada, Paris, 2007. * Conferência apresentada no Colégio do México, em Setembro de 2007, na Universidade de Toronto, em Outubro de 2007 e na Universidade da Florida, em Novembro de 2007. ** Presidente de Honra da Escola Prática de Altos Estudos na Sorbonne, titular da cadeira de História e Sociologia da Laicidade, na EPHE, Paris, França.
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Jean Baubérot Notas 1. E, na “mesa redonda final” houve um orador que afirmou que o “Mestre” é uma “criatura impossível, abstracta”, ao que Debray respondeu: “Pessoalmente, tive um mestre-filósofo […] Esse homem ensinou-me a pensar”. Ele contou, brevemente, a vida de Muglioni, “filho de um pastor analfabeto, que veio o ser deão da Inspecção Geral de Filosofia” e concluiu: “Mestres republicanos, isso existe, já os tenho encontrado (idem 223)”. Em França, a Inspecção Geral (IG) é uma estrutura poderosa, que constrói carreiras. A IG de filosofia é, desde há vários decénios, reputada pelo seu dogmatismo e a sua recusa da “originalidade” assim como pelo corporativismo, de todos os avanços das ciências humanas e sociais (que se arrisca a curto prazo a substituir o ensino da filosofia nos anos finais do liceu). O Debray de 1989 não tinha, manifestamente, morto o pai (intelectual). Parece que mais tarde o fez. Este não é, forçosamente o caso dos outros discípulos de Muglioni. 2. Isto é, para a Igreja Católica, tem de respeitar a autoridade do Bispo e do Papa. 3. Sobre esta questão da “religião civil”, existe toda uma literatura sociológica, desde há alguns decénios. Retenhamos aqui uma das suas conclusões importantes: o conteúdo (deista ou secular) dos “dogmas” da religião civil importa menos do que a sua função: sacralizar o ser conjunto colectivo, apoiar uma sociedade republicana sobre uma transcendência que se furta ao julgamento (ver J. Baubérot, 2006, 214). 4. A Concordata, ao afirmar que o catolicismo era “a religião da grande maioria dos franceses” poderia fazer crer aos católicos neste restabelecimento, mesmo se não o tenha efectuado. A instauração de um regime pluralista em que o protestantismo e o judaísmo eram cultos reconhecidos, o aspecto inteiramente laico do Código Civil, a criação da Universidade Imperial e a Lei sobre o exercício ilegal da medicina eram medidas, que, de facto, voltavam as costas a este restabelecimento. 5. http://jeanbaubertotlaicite.glogspirit.com, Categoria: “as novas benfeitorias de após centenário.
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O papel da reconciliação no fortalecimento da liberdade de religião Alain Garay* “Sou eu o guardador do meu irmão?” (Génesis 4:9) Introdução A abordagem analisada aqui sob o tema da “reconciliação” no fortalecimento da liberdade de religião implica uma redefinição e uma crítica. Os organizadores deste encontro de peritos colocaram, logo à partida, este problema dizendo: “Não ignoram as questões jurídicas que dizem respeito ao exercício da liberdade de religião. O quadro dito da “reconciliação” […], que resulta de certos princípios derivados das próprias religiões, oferece uma outra forma de intervenção tendo em vista consolidar o exercício e a protecção da liberdade de religião.” Esta problemática actua como um recuo ideológico desde logo porque a priori o fortalecimento da liberdade de religião é de natureza estritamente jurídica e não religiosa 1. À partida, a noção de “reconciliação”, de origem religiosa, não é nem consensual nem unívoca, tendo em conta a sua origem ética e portanto, multicultural. De natureza moral, não é neutra, contrariamente à regra do Direito fixando, de forma universalista, o princípio da liberdade de religião. Por outro lado, assim solicitado no quadro de fortalecimento da liberdade de religião, pode tornar-se um instrumento de resolução das tensões e dos conflitos causando um impasse sobre as garantias essenciais da liberdade de religião que resulta do seu fundamento jurídico. Assim, podemos interrogar-nos sobre o recurso a esta noção de ordem moral (primeira parte) para chegar a integrar melhor na ordem jurídica, que não lhe é estranha (segunda parte). Com efeito, parece que não seria caso de poder haver reconciliação possível sem que seja, desde logo, afirmado e garantido o exercício da liberdade de religião. 1. Alcance e limites do recurso à noção de reconciliação no domínio do fortalecimento de liberdade de religião. A. A noção de reconciliação solicitada consagra o modelo da “sociedade contratual” A noção de “reconciliação”, de ordem moral e de inspiração religiosa, repousa numa lógica de compaixão. Pressupõe que as partes em presença estavam a priori conciliadas ou numa relação de respeito. Isso seria assunto 19
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de aproximação e de concertação tendo em vista regressar a um acordo já formado. As relações dos grupos religiosos ou dos crentes entre si não são forçosamente de natureza conciliatória, a julgar pela exacerbação das tensões inter-religiosas na cena internacional. É a mesma coisa – por múltiplas razões – das relações dos primeiros com certos Estados. Apresentado como um substituto para os mecanismos do Estado de Direito (supra), aparece como uma alternativa à lógica jurídica, garantia de base da liberdade de religião. Porquê? Por um lado, as garantias jurídicas da liberdade de religião, num certo número de situações, não são efectivas por desconhecimento ou por ausência de efectividade das medidas de perseguição ou de sanção. A negação e o desprezo do direito à liberdade de religião são regularmente denunciadas através do mundo, sejam elas expressão dos próprios crentes ou de terceiros. Portanto, é grande a tentação de apelar para os mecanismos ditos de “reconciliação” para chegar a pacificar as crises e os conflitos que sejam um atentado ao exercício da liberdade de religião. Por outro lado, do ponto de vista dos interesses religiosos em presença, que dispõem, muitas vezes, de normas de regulação internas, o recurso à reconciliação parece mais respeitador das ditas normas, o mecanismo de reconciliação consistindo em reaproximar as partes – ou em fazê-las encontrar-se – sem passar pela norma jurídica de ordem externa. A lógica de reconciliação seria assim mais consensual e adaptada para chegar a aproximar as partes, sem que sejam desencadeadas medidas de perseguição ou de sanção externas. Por fim, a lógica da reconciliação, consagrando o “reino” dos interesses privados, espolia o Estado e as autoridades públicas do poder de intervenção que pode ser o seu (numerosos sistemas jurídicos nacionais conferem ao Estado e às autoridades públicas um papel de garante ou de árbitro do exercício da liberdade de religião; a concepção laica das relações entre os movimentos religiosos e a sociedade de que é a tradução). Esta lógica privada apoia-se no modelo de auto-regulação da sociedade. Num tal contexto, a sociedade civil conserva a sua esfera de autonomia pessoal e recorre aos seus próprios instrumentos de regulação2. Laurent Cohen-Tanugi propôs utilizar, para designar este modelo social auto-regulado, a expressão “sociedade contratual”, “isto é, uma sociedade multipolar, onde o poder é segmentado e cujo ponto de ligação é, por essência, o contrato. Numa acepção apenas metafórica, o contrato designa um sistema de direitos e de obrigações entre unidades descentralizadas, que assegura a distribuição dos poderes e a auto-regulação da sociedade.” O recurso ao quadro moral da reconciliação repousa em mecanismos clássicos de mediação, muito bem conhecidos pelos praticantes do Direito Internacional (pessoal diplomático, negociadores, organizações internacionais, algumas organizações não governamentais). O exercício da liberdade de religião, quando é um compromisso, pode, com efeito, ser firmado apelando aos tais mecanismos sob a forma de consulta, de permuta, de discussão, de grupo de trabalho, de comissão, de mediação, de conciliação, de transacção 20
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e de arbitragem, conjunto de métodos alternativos não jurisdicionais dos conflitos. Os principais grupos religiosos no mundo usam tradicionalmente estas formas de trocas religiosas, culturais ou políticas em numerosos domínios. De um ponto de vista sociológico, os dirigentes religiosos são, por natureza, profissionais da troca e da resolução de conflitos no seio das suas próprias comunidades a que pertencem. A noção de reconciliação, acto religioso no seio de numerosos grupos religiosos, está no centro da prática religiosa. A Igreja Católica Romana instituiu assim, a reconciliação como sacramento e acto litúrgico de penitência. Posto isto, o recente surgimento dos mecanismos ditos de reconciliação sobre a cena internacional, no quadro da resolução de diversas situações de conflito da África do Sul, em Moçambique, em Marrocos e na Colômbia, é paradoxal pois que assenta precisamente no défice de medidas de auto--regulação internas dos grupos em presença. É porque estes grupos não conseguem conciliar os seus interesses divergentes que os mecanismos de reconciliação são chamados em auxílio. B. O recurso aos mecanismos de reconciliação é susceptível de criar o impasse sobre a responsabilidade social dos actores em presença. A lógica da reconciliação de ordem moral consagra o poder e a autoridade apenas dos actores em presença, que dispõem assim de um quadro consensual susceptível de encontrar soluções à altura das exigências e das partes interessadas. Estes actores podem encontrar um quadro de intercâmbios e de diálogos, fecundo, sem a intervenção da regra do Direito externo. Este toma a forma de acordos, de ajustamentos e de arranjos, por vezes de concessões ou de compromissos, que correm o risco, no entanto, de suscitar uma cultura de desresponsabilização das partes em presença, dispostas a encontrar um terreno de entendimento. Porquê? Desde logo, nada garante que as fases e a solução de reconciliação sejam respeitadoras do Direito aplicável, especialmente se se dirigem para campos que os ultrapassam ou não os envolvam (por exemplo, participar em trabalhos e estudos públicos sobre a liberdade de religião sem ter em conta a demografia religiosa de um determinado país ou afastam tal ou tal dimensão ligada aos movimentos minoritários 3, etc.). É por isto que qualquer acção em matéria de Direito se deve apoiar sobre um método e um quadro democrático respeitador dos princípios gerais do Direito. Estes passos não se podem abstrair das regras de vida comuns, do jus comune, do contracto social caro a Jean Jacques Rousseau. Por outro lado, qualquer acção neste domínio não se pode conceber sem que sejam avaliados os efeitos sobre a sociedade no seu conjunto ou não (por exemplo, descartando o grau de receptividade no seio da população, ou de um grupo da população de uma legislação determinada). Em alguns países, o tema do “véu islâmico”, objecto de compromisso político e de deliberação 21
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Caim e Abel. Relevo sobre a porta principal da catedral de Speyer, na Alemanha. Foto Wikipédia
pública – como, por exemplo, a “Comissão Stasi” em França – lutou até aos limites numa tentativa de “reconciliação laica. […]” Portanto, é necessário ter cuidado, em nome da lógica da reconciliação, em evitar os efeitos colaterais de certas formas de unanimismo. Danielle Hervieu-Léger também explicou que “a liberdade religiosa não pode ser reivindicada como um direito absoluto senão na medida em que esta reivindicação equivale a uma declaração absoluta de que os direitos do homem se baseia no sistema. Ao reclamar este benefício, é para um grupo qualquer, aceitar, pelo seu lado, colocar-se na dependência do sistema4.” Assim, o processo de reconciliação, dentro da sociedade actual, liberta da tutela monopolista das religiões e do Estado que no passado se impunha, não pode faltar ao respeito das normas democráticas comuns: nem os representantes religiosos nem os do Estado podem impor aos seus o quadro do exercício democrático da liberdade de religião (pensa-se aqui nos compromissos anteriormente conseguidos entre algumas Igrejas na Europa Ocidental e dirigentes do antigo bloco comunista durante o período da guerra fria). É este assunto da liberdade, bem mais de integração do que de reconciliação. Aqui intervêm outros actores tais como eleitos políticos e figuras emblemáticas, 22
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representantes de organizações internacionais (ONU, OSCE, Conselho da Europa, etc.) de organizações não governamentais especializadas, especialistas (magistrados, advogados), etc.5 2. A reconciliação, garantia formal e efectiva da liberdade de religião: o caso da preservação da paz. A. A institucionalização dos mecanismos de reconciliação Na cena transnacional, a multiplicação de métodos de reconciliação no quadro da “justiça transicional”, da busca de regulamentação amigável dos contendores (derivado do artigo 38 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem) e no decurso de missões de bons ofícios e de negociação, têm-lhes conferido um estatuto simbólico de inegável alcance prático. Logo, não é de estranhar que esta problemática emerja no domínio da consolidação da liberdade de religião. Sob reserva dos limites e das precisões evocadas anteriormente, a institucionalização dos mecanismos de reconciliação respondam, na realidade, à emergência de sociedade civil como actor privilegiado da cena transnacional. É no domínio da protecção dos direitos do Homem e do Direito humanitário que este fenómeno que se iniciou e amplificou sob o reino do sagrado da pessoa. De ora em diante, é a própria qualidade da pessoa – individual ou colectivamente – que justifica certos direitos e garantias. Assim, a decisão de 12 de Março de 2002 da Comissão Interamericana dos Direitos do Homem, nos termos da qual este órgão estima que os “talibans” detidos em Guantanamo pelas autoridades dos Estados Unidos, podem invocar o direito inalienável, em tempo de paz, ou de guerra, a fazer definir o seu estatuto jurídico por uma jurisdição competente6. Os mecanismos de reconciliação em vista da institucionalização e do reconhecimento político continuam a colocar questões sobre a legitimidade da função reguladora de certas partes em presença, em particular as organizações não governamentais suspeitas de servir interesses particulares ou privados de ordem militante. Esta situação impõe portando, às partes uma obrigação de transparência e de legitimidade que nunca é fácil de respeitar. Sonha-se aqui, prosaicamente, nas condições materiais e financeiras de todo o esforço de pacificação das situações de conflito em matéria de liberdade de religião; quem financia o quê, como e porquê? Como são escolhidas as partes em presença? O conjunto tem um custo, sempre importante. Como testemunho a experiência vivida pelo autor destas linhas numa capital europeia, por ocasião das discussões com autoridades governamentais tendo em vista chegar a um regulamento amigável, sob os auspícios da Comissão Europeia dos Direitos do Homem. Situando-se no epílogo de um confronto contencioso assaz duro, a fase das conferências e das trocas de impressões, revelaram-se mais onerosas em termos de deslocação, dos custos correspondentes e da traduçãointerpretação. 23
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B. A reconciliação, como modalidade de prevenção, de antecipação e de gestão dos atentados ao exercício da liberdade de religião. O objectivo da reconciliação, modo de regulamentação pacífica, é restabelecer um laço e relações de natureza a neutralizar, depois a restabelecer a garantia da liberdade de religião. Pode tratar-se de pôr em contacto crentes ou as instituições a que pertencem com funcionários, ou melhor, com crentes ou as suas instituições com outros crentes ou as suas instituições. O objecto do atentado à liberdade de religião pode, com efeito, resultar de acções contrárias à liberdade de religião em que os autores são os próprios crentes, quando, eles estão na origem (tensões inter-religiosas), ou as autoridades públicas (tensões do Estado). A reconciliação pode assim constituir um mecanismo de prevenção, de antecipação e de gestão dos atentados à liberdade de religião. Ela é da ordem do método e do procedimento: visa pelo menos restabelecer um laço sobre o fundo de litígio do que sobre a forma. Porque é da forma que se trata principalmente, do próprio quadro da tensão, mais do que do fundo do atentado. Três vias de reconciliação em matéria de liberdade de religião podem assim ser dispostas: O modelo da consulta especializada Aqui, trata-se de suscitar um acontecimento ou uma situação susceptível de aproximar as partes em conflito. Pode ser o realizar uma manifestação científica ou académica sob os auspícios da comunidade de especialistas, na presença de organizações não governamentais especializadas7 (seminário, ou jornada de estudo, mesa redonda, colóquio ou congresso). A realização de uma missão de estudo ou de inquérito independente confiada a terceiros peritos ou especialistas pode assegurar um alto nível de consulta e de concertação entre as partes em presença (ver o papel do Relator Especial sobre a Liberdade Religiosa ou de Convicção das Nações Unidas ou do Advisory Council do Painel de peritos sobre a liberdade de religião da OSCE). O modelo da “agora” (diálogo “ideológico”) Este modelo repousa no recurso às instâncias nacionais ou internacionais de diálogo intercultural, que assegurem uma mediação destinada a suscitar um regulamento amigável entre as partes8. Podem ser solicitados mediadores que, sob a cobertura de “bons ofícios”, restabeleçam um diálogo e uma permuta de pensamentos de ordem ideológica em razão da sua competência, da sua legitimidade ou da sua proximidade: pode tratar-se de personalidades políticas ou de figuras intelectuais, de ex-“compagnons de route” de grupos religiosos, de ex-religiosos que tenham um conhecimento real das ideologias em conflito e das pessoas em desacordo, ou de organizações especializadas independentes9. Por outro lado, os actores da “diplomacia intercultural” constituem “testas de ponte” de primeira importância por causa do peso e da influência das redes diplomáticas, geopolíticas e económicas que por sua vez influem nos decisores do Estado, civis ou religiosos. O modelo “jurídico” (procedimento jurídico) 24
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Este modelo supõe pôr em acção o sistema jurisdicional do regulamento amigável dos conflitos é susceptível de assegurar a reconciliação das partes10. O recurso ao juiz não é exclusivo da ordem da sanção ou da reparação. Por meio do apelo ao juiz, um tal recurso cria um espaço de discussão e de trocas colocado sob os auspícios de um procedimento jurisdicional. É aqui visado o procedimento do regulamente amigável (supra) perante o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (fazem parte 46 Estados), que criam, sem o quadro do procedimento jurisdicional, a possibilidade de chegar a um acordo subscrito entre as partes, depois homologado pelo Tribunal Europeu e cuja execução posterior é assegurada Pelo Conselho de Ministros do Conselho Europeu. O Gabinete para as Instituições Democráticas e os Direitos do Homem da Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa (Varsóvia). Na base da “do requerimento individual” (“individual human rights complaint”) pode igualmente decidir despoletar uma série de intervenções descritas com precisão no seu Individual Human Rights Complaints – A Handbook for OSCE Field Personnel (ver as págs. 89-96)11. Por outro lado, em vários países, o Direito nacional assegura procedimentos de mediação civil e penal, sob decisão jurisdicional prévia, que beneficia as partes em conflito. Na base destes três modelos, num certo número de situações, os mecanismos de reconciliação oferecem reais possibilidades de conseguir restabelecer a garantia da liberdade de religião. Mas, a não efectivação da liberdade de religião resulta, em parte, do seu desconhecimento ou da inacção, por vezes da má vontade de certas autoridades públicas ou religiosas, em detrimento dos crentes e da sociedade civil.12. O monopólio da decisão confiada às autoridades públicas ou religiosas é também a fonte de tensões e de atentados, em detrimento dos próprios crentes. Invariavelmente, cabe às autoridades religiosas reflectir seriamente nos recursos possíveis descritos acima para explorar as vias práticas de resolução amigável dos atentados à liberdade de religião. Mas aqui aparece um dos primeiros atentados à liberdade de religião, logo que no Eden, sobre o fundo da fraternidade e da inveja sacrificial, Iavé, a autoridade suprema, interrogou Caim: “Onde está o teu irmão? […] Não sei. Sou eu guardador do meu irmão?”. Conclusão Ao trazer esta contribuição, precisamos que não haveria reconciliação possível sem que seja, antes de mais, juridicamente afirmado e garantido o exercício da liberdade de religião. Posta esta condição, e constituindo o Direito o menor denominador comum da preservação das liberdade públicas e privadas13, confrontadas com ameaças e atentados constantes à liberdade de religião, devemos recusar ceder a um sentimento de culpabilidade que justificaria a lógica da reconciliação14. Porque, finalmente, aqui, a noção de reconciliação supõe um desafio religioso, uma ruptura moral e política, que se trata de reconhecer antes de se envolver no caminho da reconstrução 25
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dos interesses em presença. Supõe também, de uma certa forma, um modo de ruminação morosa quando a invocação ao exercício da liberdade de religião não é, nem uma fraqueza, nem o sinal de um qualquer perdão. Bem ao contrário, a afirmação da liberdade de religião é essencialmente subordinada às garantias jurídicas e aos mecanismos instituídos pelos actores do Direito Nacional e Internacional. Na sua falta, a lei do mais forte dominaria, o poder e a autoridade mais poderosas afastariam da carta minorias religiosas, heréticos e outros dissidentes. De sorte que parece bem que os mecanismos de reconciliação, longe de pôr em causa a liberdade de religião, constituem não modalidades de regulação do exercício da liberdade religiosa, mas muito mais, a montante, um elemento de socialização dos actores e dos sujeitos. A reconciliação aparece assim, como uma das condições da liberdade de religião. * Advogado em Paris 1. Para uma abordagem religiosa, ler, a título de exemplo o cardeal Paul Shan, “Role of Peacemaker”, in Fides et Libertas, The Journal of the International Religious Liberty Association, 2005, Silver Spring, Maryland, Estados Unidos, p. 79-84. 2. Laurent Cohen-Tanugi, Le droit sans l’État, Presses Universitaires de France, 1992. p. 5 e seguintes. A título de comparação, tratando-se de “minorias nacionais”, ver “The Lund Recommendations on the Effective Participation of National Minorities in Public Life and Explanatory Note”, Office of the Hig Commissioner on National Minorities, OSCE, La Hague, Holanda, Setembro de 1999 (www.osce.org/hcnm/). 4. Le pèlerin et le converti, La religion en movement, Ensaio, Flammarion, 1999, p. 263 5. Em 2001, a administração federal dos Estados Unidos da América era uma das raras apoiantes dos programas de reconciliação nos diferendos que opunham grupos por “questões de identidade religiosa”: ler a entrevista de M. Faar, director do Gabinete da liberdade religiosa no mundo, do Departamento de Estado americano. (http//usinfo.state.gov/journals/itdhr/100/ ijdf/frfarr.htm). 6. International Legal Materials, 2002, p. 532. 7. Sobre um modelo de acção ver SABEL, Procedure at International Conferences: A Study of the Rules of Procedure os Conferences and Assemblies of International Inter-governamentnal Orgaizations, Cambridge U.P. XXIX, 343 págs. 8. Mediação e bons ofícios de origem habitual, foram codificados pelas Convenções de Haia de 29 de Julho de 1899 e 18 de Outubro de 1907 para a regulamentação dos conflitos internacionais. Ver “Dialogue Serving Intercultural and Inter-religious Communication”, Expert Colloquy, Conselho da Europa, Estrasburgo, 7-9 de Outubro de 2002, 105 páginas. 9. W. J. Dixon, Third Party Techniques for Preventing Conflits Escalation and Promoting Peaceful Settlement, International Organisations, 1966, p. 653-681; M. Both ed. The O.S.C.E. in the Maintenance of Peace and Security, Conflit Prevencion, Crisis Management and Peaceful Settlement of Disputes, Kluwer, Haia, 1997, XIX-557 p. Ver também os mecanismos de intervenção ao nível da União Europeia, do Conselho da Europa e da OSCE, tal como inventariados no document “International Actiom Against Tacism, Xenophobia, AntiSemitism and Intolerance in the OSCE Region – A Compatarive”, OSCE/ODIHR, Varsóvia Setembro de 2004, 94 páginas. 10. Pauline Côté pôs, brilhantemente em destaque “The Rule of Law and the Virtious Circle of Symbolic Nagotiation” (ver a sua intervenção escrita “Could the Rule of Law be Successfully Negotiated? The Case of Jehovah’s Witnesses” no decruso da Conference on Law and Religion 26
Alain Garay in Transitionnal Societies – Comparative Approches to the Rule of Law, Oslo Noruega, 1-4 de Dezembro de 2006, organizada especialmente pela Oslo Coalition on Freedom of Religion or Belief, na Universidade de Oslo). 11. OSCE/ODIHR, Varsóvia, 2003 (www.osce.org/odihr). Da OSCE ver também “Common Responsability – Commitments and Implementation – Report submitted to the OSCE Ministerial Council in response to MC Decision nº 17/05 on Strengthening the Effectiveness of the OSCE”. 12. Para Jeremy Gunn, “[…] both good and bad people become involved with Religion” (intervenção escrita no decurso da Conference on Law and Religion in Transitionnal Societies – Comparative Approches to the Rule of Law, Oslo Noruega, 1-4 de Dezembro de 2006, organizada especialmente pela Oslo Coalition on Freedom of Religion or Belief, na Universidade de Oslo). 13. O Direito tornou-se a última “moral” comum numa sociedade que pretende ser una. 14. “Et si la contrition était l’autre visage de l’abdication” (Pascal Bruckner, La Tyrannie de la pénitence, Essai sue le masochisme occidental, Grasset, Paris, 2006).
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A influência da Lei relativa à liberdade religiosa sobre os cultos na Roménia Viorel Dima* Introdução No decurso dos dezassete anos que se seguiram à queda do comunismo, a Secretaria de Estado encarregue dos Cultos tentou, por várias vezes, em colaboração com os representantes dos cultos religiosos, concluir um projecto de Lei sobre a liberdade religiosa e o regime geral dos cultos. Um dos projectos, que afirmava de forma evidente o seu apoio aos cultos, foi aprovado pelo Governo romeno em 1999, o que incomodou muito a Igreja maioritária. O Governo foi, por isso, obrigado a pedir à Secretaria de Estado que lhe submetesse uma outra variante desse projecto. Alguns dias mais tarde, o Governo fez chegar ao Parlamento um projecto que não tinha obtido o apoio dos cultos e que, além disso, era muito restritivo. Sob a insistência dos cultos reconhecidos e de outras organizações religiosas sediadas no estrangeiro, o projecto foi rejeitado. Foi então iniciado outro projecto entre 2000 e 2004, mas permanece sem continuidade. O projecto de Lei actual, como os precedentes, foi preparado com o concurso dos cultos reconhecidos. Durante os debates, foi proposta a ideia de organizar uma negociação entre os cultos, por um lado, e entre os cultos e o Ministério da Cultura e dos Cultos, por outro. Esta proposta foi muito bem acolhida, ele teve o mérito de incitar os parceiros implicados na realização deste projecto de Lei a procurar fórmulas que possam ser aceites por todos, mais do que em insistir nos pontos susceptíveis de dividir. O texto assim negociado foi assinado por todos os que tinham participado nos debates, com excepção da Igreja Católica Grega – a organização das Testemunhas de Jeová tinham, por seu lado, recusado tomar parte nas discussões. Na conclusão, dos dezoito cultos reconhecidos, dezasseis apuseram a sua assinatura. O Ministério da Cultura e dos Cultos insistiu junto das Comissões Parlamentares e da Câmara de Deputados para que este acordo seja respeitado, o que explica a razão do projecto ter sofrido tão poucas alterações. A liberdade religiosa Individual As normas estabelecidas pela Lei nº 480/2006 sobre a liberdade religiosa e o regime geral dos cultos1 tratam, por um lado, da protecção da liberdade e da legalidade dos indivíduos em matéria de religião e, por outro lado, da garantia do sistema de cooperação entre o Estado e as confissões religiosas. 28
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Assim, no capítulo intitulado “Disposições Gerais” é estabelecido que: a) O Estado romeno compromete-se a respeitar o direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião, de todas as pessoas (art. 1.1) b) Ninguém pode ser impedido ou obrigado a adoptar ou a aderir a uma crença religiosa que seja contrária às suas convicções. c) Ninguém pode ser objecto de descriminação, ser perseguido ou colocado numa situação de inferioridade por causa das suas convicções religiosas (art. 1.2). O artigo 3 desenvolve o princípio constitucional relativo aos direitos dos pais educarem os seus filhos segundo as suas próprias convicções. Este artigo estipula que “os pais têm o direito exclusivo de escolher a educação religiosa dos seus filhos menores, de acordo com as suas convicções”. É no entanto precisado que “a religião da criança que tenha ultrapassado a idade de 14 anos não pode ser mudada sem o consentimento desta”, assim como a criança que tenha ultrapassado a idade dos 16 anos tem o direito de escolher, ela mesma, a sua religião (art. 3.2). As relações Igreja – Estado As relações entre o Estado romeno e os cultos religiosos são regulados no seu conjunto, pela Lei sobre a liberdade religiosa e o regime geral dos cultos (daqui em diante Lei sobre a liberdade religiosa). Alguns aspectos específicos sobre a tradição dos cultos podem sê-lo por “acordos” concluídos entre estes últimos e as autoridades públicas centrais, acordos que devem ser aprovados pela Lei (art. 9.5). A legislação romena evita proclamar a separação da Igreja e do Estado afirmando, no entanto, a neutralidade deste perante qualquer crença religiosa ou ideologia ateia e garantindo a autonomia dos cultos religiosos. O Estado é neutro perante a religião e, neste sentido, “não apoia nem favorece a concessão de privilégios ou o incitamento à descriminação para com um culto, seja ele qual for” (art. 9.2), preferindo uma posição equidistante perante uns e outros. A autonomia dos cultos consiste em que eles se podem organizar “segundo os seus próprios estatutos e códigos de Direito Canónico! (art. 8:1) e escolher “livremente a forma de associação na qual querem manifestar as suas crenças religiosas: culto, associação religiosa ou grupo religioso” (art. 5:3). A preponderância do pluralismo religioso incitou o Estado romeno a adoptar uma posição de neutralidade para com as religiões, mas é uma neutralidade ponderada, porque a adopção de um sistema de reconhecimento diferenciado oferece aos cultos reconhecidos um estatuto que lhes confere uma série de privilégios perante os outros grupos religiosos. Assim, o Estado romeno estabeleceu com eles uma relação preferencial e de cooperação “em domínios de interesse comum” (art. 9.4) concedendo-lhes: – uma ajuda directa pela regulação “dos salários do seu pessoal eclesiástico e não eclesiástico” (art. 10.4), para “o funcionamento das suas 29
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congregações, para os trabalhos de reparação e de construção dos seus edifícios” (art. 10.6) e para as suas actividades “em virtude dos serviços que prestam à sociedade” (art. 10.7) – um apoio indirecto, provendo “facilidades fiscais” (art. 11), incentivando “os cidadãos a apoiar os cultos, pela dedução” de montantes entregues nos impostos e encorajando “o patrocínio em favor dos cultos” (art. 10.3). Os cultos reconhecidos beneficiam, ao mesmo tempo, de um apoio para as “actividades culturais e sociais levadas ao estrangeiro” (art. 9:4): têm também a possibilidade de concluir acordos com as autoridades centrais “em domínios de interesse comum” (art. 9.5). Alguns dentre eles já beneficiaram largamente desta ajuda do Estado durante o regime comunista e após a queda deste. O progresso importante que representa a Lei de 2006 relativamente à liberdade religiosa e à separação da Igreja e do Estado deriva de que ela justifica o tratamento diferenciado concedido pelo Estado aos cultos reconhecidos. Ela confere a estes últimos o estatuto de “’pessoas jurídicas de utilidade pública’ (art. 8:1), pelo facto de que o Estado romeno reconhece o seu papel espiritual, educativo, sócio-caritativo, cultural e a sua qualidade de parceiros sociais, assim como o estatuto de agentes sociais” (art. 7.1). Desta forma, as vantagens de que os cultos reconhecidos beneficiam comparado com os cultos não reconhecidos deixam de ser discriminatórias: elas justificam-se pelos serviços públicos prestados. O estatuto jurídico das comunidades religiosas A Lei sobre a liberdade religiosa divide as confissões religiosas em três categorias: 1. Os cultos religiosos A Lei reconhece a existência de dezoito Cultos2. Mesmo se este reconhecimento lhes é concedido, estes últimos são, todavia, obrigados a depositar os seus estatutos, os quais devem estar em harmonia com a Lei sobre os cultos, para serem aprovados. As Associações Religiosas podem obter o estatuto de Culto reconhecido por decisão governamental, sob proposta do Ministério da Cultura e dos Cultos (art. 17.1), e depois de terem dado garantias de durabilidade, de estabilidade e de interesse público. Para isso, devem entregar no aludido Ministério: – uma prova de que estão legalmente constituídos e que funcionam sem interrupção no território romeno há pelo menos doze anos; – a lista original dos seus membros (cidadãos romenos habitando na Roménia e cujo número corresponda, pelo menos, a 0,1% da população, ou seja cerca de 21 500 membros), assinada por cada um deles. – a sua profissão de fé, os seus estatutos de organização e de funcionamento, assim como outros documentos. 30
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Os Cultos reconhecidos dispõem de estatuto jurídico de utilidade pública (art. 8.1). Estes Cultos assim como “as suas partes constituintes, tal como mencionadas nos estatutos ou códigos particulares de Direito Canónico, são pessoas jurídicas” que, para o efeito da Lei, não necessitam de estar registadas junto do Tribunal ou de um notário. 2. As Associações Religiosas As Associações Religiosas têm o estatuto de pessoas jurídicas de Direito Privado, formadas por pessoas físicas que adoptam, partilham e praticam as mesmas crenças religiosas (art. 6.2). Elas adquirem este estatuto declarando-se no Registo das Associações Religiosas num Tribunal onde devem entregar um pedido de inscrição, uma acta constitutiva autenticada, as coordenadas e as assinaturas de, pelo menos, 300 membros, uma profissão de fé e documentos atestando a sede social e o património religioso. Devem também entregar a informação consultiva do Ministério da Cultura e dos Cultos e fornecer uma prova emitida pelo Ministério da Justiça segundo a qual o nome que escolheram não está já atribuído. Cada Associação existente à data da adopção da Lei e tendo como actividade principal a prática de actividades religiosas de acordo com o procedimento mencionado anteriormente. O juiz delegado pronunciar-se-á sobre a transformação da Associação Religiosa e sobre o seu registo como tal. Determinará o período durante o qual ela exerceu as suas actividades religiosas, podendo este período ser tido em consideração para a fixação do período de funcionamento tendo em vista obter a qualidade de Culto reconhecido. As Associações Religiosas beneficiam de facilidades fiscais para as suas actividades religiosas, mas não de apoio financeiro directo do Estado. 3. Grupos religiosos Esta é a forma de associação sem personalidade jurídica adoptada por certas pessoas que, deliberadamente, adoptam, partilham e praticam as mesmas crenças religiosas. Pode-se juntar a isso que o estatuto de Associação Religiosa supõe uma espécie de reconhecimento, na medida em que, para poder obtê-lo, uma organização religiosa deve receber o acordo do Ministério da Cultura e dos Cultos, contar com um número mínimo de membros (300) e ter um conselho director nacional. O Ministro da Cultura e dos Cultos afirma mesmo, na nota justificativa do projecto de Lei sobre a liberdade religiosa dirigida ao Parlamento, que “o sistema escolhido para regulamentar a via religiosa […] possui […] dois níveis de reconhecimento dos cultos”. É, portanto “um sistema de regulamentação de dois níveis3”. No entanto, os cultos submetidos a um regime de reconhecimento não 31
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são os únicos a beneficiar de um estatuto jurídico. Do artigo 47 resulta, implicitamente, que as Associações e fundações4 e tendo como actividade principal o exercício de crenças religiosas, mas que não desejam obter o estatuto de associação religiosa, têm a possibilidade de continuar a funcionar segundo a Lei sobre as associações e fundações. Esta é a situação na qual são susceptíveis de encontrar, seja as associações que não desejam o estatuto de associação religiosa, seja as que têm menos de 300 membros e que, de facto, não podem solicitar o estatuto. Nestas condições, poder-se-á afirmar que os organismos religiosos estão, na realidade, organizados em quatro níveis: 1. Os Cultos religiosos reconhecidos; 2. As Associações Religiosas; 3. As Associações cuja actividade principal consiste em praticar crenças religiosas e que têm o estatuto de Associações com fins não lucrativos; 4. Os grupos religiosos. Alguns elementos novos com impacto na liberdade religiosa O artigo 5 (par. 5 e 6) interditam a solicitação de informações e a exploração de dados pessoais relativamente às convicções ou à pertença religiosa e rejeitam a obrigação “de mencionar a religião nas relações com as autoridades públicas ou com as pessoas jurídicas de Direito Privado”. Esta disposição reduz o risco de descriminação por motivos religiosos, quer seja por ocasião de busca de um emprego, num concurso público para mudar de categoria, de exames escolares, ou em caso de abuso por parte das autoridades públicas. O parágrafo 5 estabelece duas excepções nas quais se podem solicitar informações pessoais relativas às convicções e à filiação religiosa: por ocasião de um recenseamento nacional aprovado pela lei ou “quando a pessoa visada o autorizou expressamente”. Na base do artigo 23 (3), os pastores e os padres não podem ser forçados a revelar os factos que lhes foram confiados ou de que tiveram conhecimento no exercício específico das suas funções. Na Roménia, a questão da divulgação às autoridades, de informações sobre a vida pessoal das paróquias pelos ministros do culto ainda é objecto de debates públicos. É por isso que a protecção do pessoal eclesiástico, tal como está estipulado nesta artigo, é tão importante. Esta disposição é justificada também, pelo facto de que após a queda do regime comunista, os ministros do culto eram obrigados, muitas vezes, a testemunhar em tribunal sobre factos que eles tinham conhecido no quadro do exercício da aplicação da disciplina eclesiástica. “Toda a tentativa de sabotar ou de perturbar o exercício de um acto religioso será punido conforme as disposições penais” (art. 13.1). Esta norma 32
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protege cada Igreja de pessoas ou de grupos perturbadores provenientes do exterior ou do interior da congregação. Tais atitudes cairão sob a alçada da sanção prevista no artigo 246 do Código Penal e levarão a uma condenação de um a seis meses de prisão ou multa diária. O mesmo tratamento será aplicado se se força alguém a participar em serviços religiosos ou a realizar um acto de culto. A profanação “de um monumento, de uma urna funerária ou de um cadáver será punida com uma pena que pode ir de um ano a cinco anos de prisão ou de dias de multa”. No que diz respeito à aplicação da disciplina eclesiástica, o artigo 26 reconhece a competência “dos órgãos jurídicos próprios a cada culto”, de acordo com os estatutos e regulamentos particulares que se apliquem, e estabelece que “para os problemas de disciplina interna, apenas serão aplicadas as disposições estatutárias e canónicas”. Por conseguinte, se uma Igreja aplica medidas disciplinares contra alguns dos seus membros e estes apresentam queixa junto da instância pública que tem autoridade na matéria, esta última julgará a causa a partir das normas em vigor na Igreja respectiva. De igual maneira, pelo artigo 23.2 e 32.3, os empregados do culto podem ser submetidos a sanções disciplinares por terem transgredido princípios da doutrina ou da moral desse culto, segundo os seus estatutos e regulamentos próprios. Estas disposições protegem a Igreja dos ataques malévolos dos membros ou dos empregados e, ao mesmo tempo, actua sobre os factores implicados na aplicação da disciplina eclesiástica, no sentido de uma grande exigência para com as normas e os seus procedimentos. O artigo 27 declara não penhoráveis nem inprescritíveis os bens sagrados da Igreja e protege-os, também quando estas estão na Teocista (1915-2007), o quinto patriimpossibilidade de pagar as suas dívidas. O arca da Igreja Ortodoxa Romena. contexto supõe que as Igrejas devem estabeChurchphoto/Matthias Mueller. lecer condições nas quais esses bens podem ser alienados (“a alienação dos bens sagrados sendo possível nas condições estabelecidas por cada culto”). A Lei estabelece ainda que “as pessoas que abandonem o culto não podem ter pretensões patrimoniais” (art. 31), nesse sentido não podem pretender recuperar as ofertas e as contribuições materiais que tenham entregue ao dito culto. Os cultos financiam as despesas para a manutenção e desenvolvimento das suas actividades, primeiramente, com os seus próprios recursos. Além das subvenções acordadas para os salários, as despesas de funcionamento e as que estão ligadas aos trabalhos de reparação ou da construção de edifícios, podem beneficiar de um apoio financeiro para a assistência que prestem nos hospitais, 33
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nos lares da terceira idade e nos estabelecimentos prisionais, assim como para outras formas de serviço 6. As contribuições e os donativos feitas pelos fiéis podem ser deduzidos nos impostos (art. 10.3). O Código Fiscal7 permite aos contribuintes que, na qualidade de pessoas jurídicas, apoiem as Igrejas, deduzir o montante calculado dos seus impostos sobre os benefícios, até ao limite de 3/1000 dos seus ganhos, mas sem ultrapassar 20% do imposto. Os contribuintes – pessoas físicas – podem, eles próprios, beneficiar de uma dedução do montante das somas entregues às Igrejas até ao limite de 2% do imposto sobre os seus ganhos. As disposições do art. 10.3 da Lei sobre a liberdade religiosa preocupa muito mais os contribuintes do que estas deduções. No quadro dos debates organizados pelo Ministério da Cultura e dos Cultos com os representantes dos cultos reconhecidos para finalizar o Projecto de Lei, chegou-se a este acordo visando reduzir a disparidade entre os cultos que recebem subvenções do Estado e os que não aceitam um tal apoio. Foi assim que foi convencionado que os doadores que financiam os cultos, não aceitando os fundos públicos, poderiam também deduzir essas contribuições nos seus impostos, mas numa percentagem mais elevada que a dos que beneficiam os doadores das outras organizações sem fins lucrativos. Só o tempo demonstrará se esta norma é um acto de vontade política do Estado romeno, ou se foi inserida na Lei apenas para desbloquear as negociações relativas à Lei da Liberdade Religiosa, e se será verdadeiramente aplicada um dia. Isso será possível, com a condição de harmonizar a Lei sobre as finanças públicas e a Lei sobre o Orçamento de Estado com a Lei sobre a Liberdade Religiosa. Mas, na minha opinião, mesmo se a Lei das Finanças Públicas aumenta a percentagem dedutível no imposto, a regra será aplicada a todos os cultos reconhecidos, porque esta Lei não previu aplicação diferenciada para as Igrejas. Os pontos fracos da Lei A Lei relativa a Liberdade Religiosa e aos Cultos toca um domínio que é sensível, porque está submetida a fortes pressões por parte da Igreja maioritária, por grupos de lobby e de organizações de defesa dos direitos do Homem, assim como das convenções e de organizações internacionais que controlam a aplicação das normas da liberdade religiosa. É por isso que, se é verdade que “qualquer Lei pode ser aperfeiçoada” esta o é ainda mais: ela contém algumas disposições apresentando soluções que não são as mais felizes ou que, mesmo que sejam razoáveis, não podem ser aplicadas. Gostaria de vos apresentar algumas. O texto do artigo 13.2 que interdita ofender publicamente os símbolos religiosos: Apesar de proteger todos os cultos, há um forte risco de ser interpretado de uma forma abusiva. A confissão de fé de um Culto religioso poderia, com efeito, ser considerada como uma ofensa para com os símbo34
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los religiosos de um outro Culto, porque, bem frequentemente as doutrinas relativas a certas questões são muito diferentes de uma religião para outra. É por isso que este artigo é contestado por muitos Cultos e organizações não governamentais. O Secretário de Estado dos Cultos que estava em exercício na época em que a Lei foi adoptada, defende que esta disposição “deve ser compreendida apenas como a afirmação de um princípio, sem consequências práticas jurídicas 8”. Mas uma tal explicação não satisfaz os críticos que consideram que por detrás desta norma se escondem ideias perigosas. O acesso aos cemitérios é também, um problema delicado. Com efeito, muitas localidades romenas apenas dispõem de cemitérios confessionais, dependendo da Igreja maioritária. Ora, em alguns deles, o pessoal do Culto não aceita enterrar pessoas pertencentes a minorias religiosas, a menos que o seja segundo o ritual ortodoxo. Para evitar que tais situações ocorram, os Cultos religiosos minoritários têm insistido para que a Lei sobre a liberdade religiosa, traga soluções para este problema. Aquilo que encontramos consiste, como o artigo 28 estipula, é a obrigação da Administração Pública local de “construir em cada localidade cemitérios, onde deverão ser “locais de enterramento para cada Culto religioso reconhecido”. O mesmo artigo prevê, também, que, nas localidades em que ainda não há cemitérios, as pessoas que morrem “serão enterrados, segundo o ritual” do Culto a que pertencem, nos cemitérios existentes, mesmo que sejam confessionais (com excepção, todavia, dos cemitérios judeus e muçulmanos). Um ano depois da adopção da Lei, constatou-se que este artigo não produziu os efeitos jurídicos desejados. Assim, nenhum novo cemitério foi construído no meio rural e parece que as autoridades romenas não tinham inscrito este problema na lista das suas prioridades. Muitas pessoas ainda duvidam que esta disposição seja alguma vez aplicada pelo facto de que uma disposição similar, inscrita na Lei sobre o regime geral dos Cultos religiosos que já existia durante o período comunista nunca teve efeito. Contudo, no tempo do comunismo, todas as pessoas podiam beneficiar do direito de serem enterrados segundo o ritual do Culto a que pertenciam. A despeito das disposições da Lei actual, segundo a qual os corpos podem ser enterrados nos cemitérios existentes de acordo com o ritual do Culto ao qual pertencem, quase nenhuma alteração foi feita: os Cultos minoritários encontram as mesmas dificuldades que durante os dezassete últimos anos. O artigo 39 (5) declara que “no ensino confessional, podem-se inscrever alunos e estudantes de qualquer religião ou confissão, garantindo a liberdade da sua educação religiosa, que será conforme a sua religião ou confissão particular”. Se no ensino público uma tal directiva é absolutamente normal e necessária, no ensino confessional é abusiva. Com efeito, se os alunos escolhem uma escola confessional, é porque preferem a qualidade e as condições do ensino. Encontramo-nos, portanto, perante uma situação inexplicável: por 35
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um lado, a escola confessional não deve atentar contra a liberdade religiosa do estudante. Por outro, este último pode exigir que o estabelecimento de ensino que ele frequenta organize, para ele, um ensino religioso que lhe seja específico. Conclusões A Lei sobre a liberdade religiosa e o regime geral dos cultos representa um progresso real na evolução da liberdade religiosa e das relações entre a Igreja e o Estado, e goza do apoio da grande maioria dos Cultos reconhecidos. Com efeito, ela confere aos cidadãos direitos religiosos garantidos pelos documentos internacionais relativos aos direitos do Homem no que se refere à regulamentação das relações Igreja-Estado, mostra claramente a sua vontade de reconhecer as organizações religiosas e de estender os privilégios aos dezoito Cultos reconhecidos. Quando ao estatuto jurídico que ela concede aos Cultos, classifica estes últimos em três níveis, mesmo se, de facto, eles podem ser repartidos em quatro categorias: os Cultos reconhecidos, dos quais a Igreja Ortodoxa é, pelo menos “a primeira entre os cultos iguais”, as associações religiosas, as Associações de Direito Comum (tendo um estatuto de Direito Associativo) e os grupos religiosos. Entre os grandes problemas aos quais a Lei não responde de uma forma satisfatória, estão as condições restritivas a que o acesso ao estatuto de Associação Religiosa e de Culto reconhecido estão submetidos; os riscos de abuso na interpretação da norma visando interditar o ridicularizar publicamente os símbolos religiosos; as más interpretações eventuais da noção de liberdade na educação religiosa das escolas confessionais: tudo coisas que se arriscam a criar descriminações e tensões entre os Cultos. Os conflitos inter-confessionais gerados pelos obstáculos que os cultos minoritários encontram a propósito dos enterramentos ainda vão persistir na Roménia. A solução deste problema não se poderá encontrar nas medidas administrativas que permitem assegurar a cada pessoa que morre, um local de repouso decente, no qual se poderá enterrar segundo o ritual específico da sua religião. No entanto, apesar de todos estes inconvenientes, esta Lei tem o mérito de ter trazido melhoramentos substanciais porque está garantida a neutralidade do Estado, o bom funcionamento dos Cultos religiosos e a protecção dos cidadãos contra a descriminação. Notas Lei adoptada pelo Parlamento romeno a 28 de Dezembro de 2006, promulgada pelo Presidente da Roménia (Decreto nº 1437 de 27 de Dezembro de 2006) e publicado no Moniteur Officiel, primeira parte, nº 11/8 de Janeiro de 2007. 2. A Igreja Ortodoxa Romena, o Bispo ortodoxo sérvio de Timisoara, a Igreja Católica Romena – a Igreja Gréco-católica Romena unida a Roma, o Arcebispado da Igreja Arménia, a Igreja Cristã Russa de rito antigo da Roménia, a Igreja Reformada da Roménia, a Igreja Evangélica C.A. da Roménia, a Igreja Luterana da
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Viorel Dima Roménia, a Igreja Unitária da Transilvânia, a União das Igrejas Baptistas da Roménia, a Igreja Cristã segundo o Evangelho da Roménia, a Igreja Cristã Adventista do Sétimo Dia da Roménia, a Igreja Evangélica da Roménia, a União Pentecostal, a Igreja Apostólica da Roménia, a Federação das Comunidades Judaicas da Roménia, o Culto Muçulmano e a Organização Religiosa das Testemunhas de Jeová. 3. www.culte.ro/ClientSide/lege_libertate_rel.aspx ou em francês www.culte.ro/Files/Files/Law_489_ 2006.pdf 4, O decreto do Governo nº 26/2000 sobre as Associações e Fundações, aprovada com modificações e complementos pela Lei nº 246/2005. 5. As rectificações feitas na Lei 301/2004 do Código Penal foram publicadas no Moniteur Officiel, nº 303, 1ª parte, de 12 de Abril de 200 6. Decreto do Governo nº 82 de 30 de Agosto de 2001 relativo ao estabelecimento de certas formas de apoio financeiro para as comunidades pertencentes aos cultos religiosos reconhecidos na Roménia, aprovado pela Lei nº 125 de 18 de Março de 2002, art. 3, alín. 1. 7. Código Fiscal, artigo 21 al. 4. 8. Afirmação feita durante a entrevista organizada pelo Ministério da Cultura e dos Cultos com os representantes de todos os Cultos reconhecidos, depois da adopção da Lei sobre a liberdade religiosa e o regime geral dos Cultos.
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Dossier Nacionalismo e liberdade religiosa A Importância da liberdade religiosa num Estado nacionalista Jean-Paul Durand *
A liberdade religiosa, ainda chamada liberdade de religião ou de convicção1, tornou-se um valor proclamado pelas mais altas instâncias internacionais2, mesmo se o seu significado permanece controverso – em teologia, especialmente3 – e nem todas as religiões, nações e Estados a respeitem4. O nacionalismo5, conserva uma conotação partidária e acima de tudo pejurativa, de que sofrem menos as noções de patriotismo6, de civismo7, de interesse nacional8. No início do século XXI, são intensas as confusões locais9, regionais10, e mundiais11 onde afluem interesses12 e paixões13 – em particular político-religiosas – por vezes bélicas14. Em tais contextos culturais e políticos, religiões, espiritualidades15, Estados e nacionalidades conhecem situações as mais diversas16: seja sendo instrumentalizadas17, seja estando na origem dessas tensões18 ou dando amplificação a essas crises culturais e políticas19; seja sendo preciosos berços20, onde crescem vocações para a justiça21, a
paz22, o desenvolvimento, incluindo a sua problemática do desenvolvimento duradouro23. Para conhecer melhor o que significa a liberdade religiosa, o nacionalismo e as suas relações mútuas necessita de considerar estas expressões complexas, em função das suas respectivas circunstâncias culturais24. Porque os enraizamentos culturais e geopolíticos são incontornáveis. Mas ainda é necessário que isso não comprometa a tarefa indispensável de comunhão universal do tutos orbis25; e será que isso não exigirá um trabalho de abordagem, fundamental26? Em todo o caso, não é, sobretudo, o pôr em relação a liberdade religiosa e o nacionalismo que nos importa aqui, neste artigo, e não apenas uma advertência daquilo em se tornariam cada um destes elementos que são a liberdade religiosa de um lado e o nacionalismo por outro? Contudo, é necessário, ainda, interrogar desde logo cada um dos dois pólos desta relação27. 38
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sário esperar o Concílio Vaticano II para constatar uma adopção oficial da expressão “liberdade religiosa”: antes de 196534, o vocábulo canónico, ou oficial empregue previligiava as expressões “liberdade da Igreja” no que dizia respeito à Igreja Católica Romana e “tolerância” no que se referia às outras Igrejas e religiões35. Os inícios do Século XXI conheceram, ainda, regimes políticos que não admitem as liberdades individuais, nem a liberdade cívica das próprias religiões36. No século XX, a liberdade religiosa esteve, com o ecumenismo37 e com a teologia católica das religiões não cristãs38, no centro de debates muito difíceis no Concílio Vaticano II39. Posteriormente a aplicação das decisões deste Concílio não pára de conhecer afrontamentos, embora muito minoritários40; ainda no início do século XXI, com grupos tradicionalistas e com os integristas católicos que subsistem desde a herança deixada por Msr. Marcel Lefebvre, arcebispo que se tornou cismático em 1988: este conflito, incluído no Direito Canónico litúrgico41, continua ligado a concepções sobre a autoridade da consciência individual e também da autoridade do Estado e da Nação. Mas, não é o estatuto teológico e político da “verdadeira religião” que é central neste conflito e não um nacionalismo particular42? B. O outro polo: quanto aos estudos sobre a Nação43 e o nacionallismo, também não faltam. Um Estado pode unir várias Nações. Como as quatro Nações ro Reino Unido44. A génese das nações
Gravura datada do século XVI representando Justino, teólogo, filósofo e mártir cristão nascido cerca do ano 100, perto do Siquem, na Palestina, e morto em Roma em 165, sob o reinado do imperador Marco Aurélio. Foto Wikipédia
I. Dois polos a considerar, por si mesmos: a liberdade religiosa e o nacionalismo. A. Um primeiro polo: os estudos sobre a liberdade religiosa não faltam e fazem com que a investigação recue bem longe nos tempos28: por exemplo, no início do século III cartaginês, o teólogo cristão Tertuliano não reclamou e tentou criar a liberdade religiosa para não ser obrigado a prestar culto a César29? Uma recusa que tinha custado a vida ao primeiro filósofo cristão, o apologista São Justino no século II30. Serão necessários muitos séculos para que a liberdade religiosa se possa apoiar num regime político que a favoreça31, a respeite32, a tolere33. Para aquilo que é do Magistério da Igreja Católica Romana, foi neces39
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conhece ritmos e condições diferentes45. Apenas na União Europeia, essa génese é diversificada, com duas formas principais e de alguma modo opostas, uma segundo uma bem antiga origem da nação (França, Polónia), enquanto noutros contextos, a nacionalidade é recente (Alemanha, Itália). II. Remanescência e ruturas do nacional, do simbólico, do religioso. A. Para compreender diferentes graus de modernidade, de nações, de Estados, de religião. Componentes simbólicos, religiosos e filosóficos exercem um importante papel nestas diferentes géneses da relação muito rica entre o soberano, a soberania, o bem comum, o bem público, o Estado moderno, as competâncias dos Estados contemporâneos, onde as religiões, o povo ou os povos, a nação ou as nações, a sociedade civil e esse nível de religião civil. Importa estar atento aos diferentes níveis de modernidade de cada um dos Estados membros, por exemplo, da União Europeia, como demonstram os três colóquios que pude organizar e publicar em 2003200446. Assim, compreende-se um pouco melhor como a França fala de laicidade, os britânicos de secularismo e os espanhóis de liberdade religiosa. Quanto aos fenómenos de nacionalismo, podem ter sido mais virulentos, por causa de uma unidade nacional ou de Estado ainda muito recente como a Itália47, ou pela vulnerabilidade de um território difícil
de defender como na Polónia48. Em França, o simbolismo da soberania nacional substituiu-se, em 1789 ao Soberano, pessoa física de Direito Divino: a 23 de Setembro de 1798, a Assembleia Constituinte decretou que todo o poder imanente da Nação, que o poder Legislativo pertenciam à Assembleia e o poder executivo ao Rei. E a 10 de Outubro de 1789, a mesma Assembleia Constituinte decretou que Luis XVI já não era Rei de França, mas Rei dos franceses49. A Nação revolucionária estava em perigo face às tentativas de reconquista e de desforra por parte da nobreza que acabava de perder os seus privilégios. E esse perigo nacional exaspera também os galicanos da época até dar origem a uma sitiação sismática decretando a estatização da Igreja Católica Romana em França; Igreja a que é imposto, no cerne, um estatuto de Igreja Constitucional50. A primeira separação entre o Estado e as religiões, incluindo a Igreja Constitucional, a partir dos anos 1793-1795, foi uma etapa antes da instauração de um novo galicanismo e de um novo regime concordatário por vontade do Primeiro Consul, Napoleão Bonaparte51, e apoiado nos conselhos de Portalis52. B. Para um estudo da relação entre a “Igreja Nacional” e a religião civil53: Já a propósito da Bíblia hebraica, depois do Novo Testamento, é bem sabido que essas fontes representam já toda uma evolução no que se refere à ordem de divulgar o nome de Deus junto dos povos vizinhos, aos reinos da Terra e a todas 40
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as nações54. Também é sabido que judeus, cristãos, depois muçulmanos decidiram – até hoje – designarse, especialmente, o Povo Eleito, a Nação Santa, a Terra Santa55. Estudos sobre a ortodoxia, na época contemporânea, expõem que os problemas de autocefalia estão assaz profundamente ligados a diversos tipos de relações entre a liberdade religiosa comunitária e diversos graus de nacionalismo56. As monografias disponíveis para Nação ou para Estado comportam de hoje em diante abordagens jurídicas da noção de “Igreja Nacional”. Devo notar que organizei em Moscovo, no fim de Novembro de 2007, com o Departamento de Relações Exteriores do Patriarcado russo e o Centro Ecuménico Istina de Paris, o 7º Colóquio do programa consagrado à noção de “Igreja Nacional”, programa de pesquisa que tive a honra de dirigir em França desde 1999 no Centro “Droit et Sociétés religieuses”57. Nessa notável ocasião moscovita no fim de 2007, a evocação de conflitos entre territórios ortodoxos, reivindicados por Igrejas patriarcais e autocéfalas diferentes (entre a Rússia e a Roménia), deve uma grande importância no desenrolar efectivo desse colóquio, sem que fossem omitidos os casos polémicos, por fim resolvidos, mas de dolorosa memória, a propósito de formas Católicas Romanas de proselitismo na Rússia, incluindo sob o pontificado do saudoso papa João Paulo II. Outros estudos anteriores e recentes debruçam-se sobre as relações entre a liberdade religiosa e a
D epois
da proclamação, pela Convenção, da Primeira República francesa, em 1792, o rei Luís XVI foi oficialmente destituído das suas funções e guilhotinado em 25 de Janeiro de 1793. Quadro a óleo pintado por Antoine-François Callet cerca de 1780. Museu das Artes de São Paulo, Brasil. Foto Wikipédia.
justiça58, com o pluralismo moral59, e a política com a democracia60. Mais próximas do nosso assunto estão as investigações sobre as relações da liberdade religiosa com diferentes comunitarismos61, com – digo eu – diferentes proselitismos62: estas duas noções estão infelizmente usadas por autores no singular. Ora tal condição comunitarista comporta uma mediação humanizante, ainda que outra trará ainda o confinamento perigoso e nocivo dos indivíduos. Quanto aos proselitismos, há os que são correctos: os que são praticados por missionários respeitadores das 41
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consciências. Mas subsistem, também, os proselitismos abusivos. Tratando-se dos comunitarismos: o nacionalismo, sem ser o único perigo, chega por vezes a identificar a nação com uma só das comunidades étnicas, sociais ou religiosas e isso a despeito dos outros componentes da população. Todavia, não pode, uma religião, ou uma comunidade social ser legitimamente privilegiada, se o seu estatuto não descrimina as outras religiões e consciências, no momento em que um Estado de direito chega a oferecer e a garantir um direito comum suficientemente livre e digno63 aos outros grupos de convicções e aos outros cidadãos? Parece que no início do século XXI, o sistema britânico, onde domina tradicionalmente uma cultura comunitarista, procura, a pedido do Governo e do Parlamento de Sua Magestade, ponderar esta cultura anglo-saxónica, depois dos mais graves conflitos familiares, raciais e terroristas. Quanto ao confessionalismo libanês, é uma forma de comunitarismo que, em princípio, não foi criado sobre um nacionalismo64: este sistema libanês deve reger-se perante o Estado e perante a nação libanesa. Por razões locais, uma população estruturada por comunidades de convicções diferentes, no meio de estatutos jurídicos pessoais de ordem pública constitucionais. Um nacionalismo, não estando ligado exclusivamente a certos comunitarismos, pode dominar ideologicamente, de qualquer forma, uma situação política, se bem que profundamente oposto ao comunitarismo: se se compara a situação
politico-religiosa da França antes e depois da Primeira Guerra Mundial de 1914-1918, as lutas anti-congregacionais foram menos fortes depois desta guerra. Não apenas porque o argumento anticlerical se envolveu na política desde os anos 1910-1914, mas também pelo aparecimento de um sentimento de gratidão, certamente progressivo, expresso por parte dos exércitos da opinião pública da Nação, da República, tanto para com os religosos, religiosas e outros católicos da França metropolitana e das colónias de além-mar pelo seu sacrifício e o seu devotamento patriótico65. C. A modernidade não tem sido actualidade do teológico-político66 Mas esta evolução efectua-se cada vez mais por ocasião de dois confrontos: – Por um lado, com a identificação moderna e contemporânea de uma cultura dos direitos do Homem, se bem que esta cultura moderna se esforce por chegar à universalidade. Uma cultura que outras culturas classificam de ocidentalizante e portanto, relativa. Mas não será uma crítica que infelizmente possa levar, indirectamente, a deixar na impunidade certos atentados muito graves à dignidade humana e aos direitos sociais, políticos e religiosos? Em nome de tal cultura, uma criança será casada à força, uma mulher será privada de direitos fundamentais, uma parte da população será mantida numa descriminação de casta, de gueto racial67. Já é interessante trabalhar este assunto das relações entre a liber42
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tados por certas utopias políticas, raciais e eugénicas. É verdade que houve processos contra os nazis perante o tribunal militar internacional de Nuremberga em 19451946, depois a “queda do muro de Berlim”, tocando a rebate em 1989 da bipolarização ideológica Leste-Oeste do mundo. Desde a nova situação internacional não se encontraram regulamentações suficientes. Em todo o caso, não será que a sua instauração não corresponde ao ressurgimento de formas de nacionalismo em que a componente religiosa raramente está ausente? Estas considerações podem contribuir para situar as relações entre a liberdade religiosa e a democracia; mas esta difere de uma relação entre a liberdade religiosa e o nacionalismo. Quanto muito pode ser possível emitir esta hipótese de compreensão: desde o século XVII na Europa Ocidental, depois na América do Norte, a maior parte dos Estados têm favorecido uma certa cooperação73 entre confissões religiosas e religião civil; enquanto em França vai ser proclamada por várias vezes uma ruptura entre a Nação e as religiões. O moderno Estado francês por falta de se satisfazer de um embargo absolutista sobre o Direito divino74, acaba por procurar uma forma de liberdade de consciência e de convicção religiosa, nisso envolvida, opondo-se às tentativas da religião civil75 uma estratégia consensualista da “Vontade geral”76, isto é, sem tutela, nem concorrência divinas e clericais. Entre a Revolução Francesa
dade religiosa e o nacionalismo, mediando os necessários ajustamentos históricos, para um período que vai do século XIV68 ao século XIX na Europa Ocidental, porque é o período do aparecimento da subjectividade, mas também do Estado moderno. Com a chegada, no século XIV da crítica, especialmente jansenista, do direito divino cristão. Vão querer fazer-se ouvir tantas interpelações humanistas e românticas, quando a segurança e mesmo a verdade não podem mais ser avaliadas senão à dimensão da natureza humana. Ao ler o teólogo e filósofo Grotius, o edifício resultante unicamente do esforço da razão, parece ter início como se Deus não existisse. O protestante Castillion procurou um caminho de liberdade e de tolerância69. Será que as guerras de religião terminaram com os tratados de Westfália, de Munique e de Osnabruque em 1648 quando os principes se apoderaram das consciências dos seus súbditos para homogeneizar a sua soberania política territorial (cujus regio, ejus religio)? A Revolução Francesa de 1798, que ainda nos fascina, acabou por sacrificar os seus próprios fomentadores. Reina, no século XIX um contexto de Direito Internacional que pretende romper com o direito das pessoas dos teólogos do século XIV da Escola de Salamanca70. Testemunham destas convulsões, místicos, obras artísticas, especialmente literárias71. O tema das relações entre a liberdade religiosa e o nacionalismo72 atravessou profundas crises, sobretudo no século XX com o anti-humanismo, os estragos totalitários susci43
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de 1798 e a proclamação, em 1946, da República laica é necessário um amadurecimento que abandone o laicismo perseguidor antireligioso preferindo um respeito laico. A partir da nova separação entre o Estado e os cultos (1905) já não se trata de honrar a liberdade de uma Igreja, mas de garantir nada menos que a liberdade de crer, de não crer, de mudar de religião, de abandonar qualquer filiação religiosa, de criticar a convicção da fé (ateísmo). – Outra confrontação para o teológico-político é também o que deriva da querela a propósito do desaparecimento, para uns, permanência para outros, de uma ordem dos objectivos: sem qualquer dúvida. A democracia é o menos mau dos regimes77; mas a lei da maioria – esta realidade volúvel – não chega a convencer completamente, quando entende tornar-se a única fonte da normatividade. A concepção do pensamento de Rousseau da vontade geral não pára de estar em crise. O cardeal Georges Cottier op escrita em 2007: “[…] dois temas maiores de grande preço merecem reter a nossa reflexão e a nossa meditação: a primeira é a do conceito jurídico de coisa. As relações humanas, para serem conformes com a natureza devem ser guiadas pela virtude da justiça que, ela própria, é medida pelo seu objecto. Este objecto, em última análise, não surgiu de sujeitos em inter-relação, mas é dado por uma ordem de fins que não podem, portanto, depender do seu arbítrio”. Tratando-se do segundo tema, a saber, de elaborar uma teo-
logia do Direito, o cardeal relembra que São Tomás trata da Lei Natural no quadro dos princípios da teologia moral. O cardeal acrescenta também: “Este motivo impôs-se à consideração da própria natureza das coisas. É necessário, com efeito, acrescentar o plano ontológico e apoiar-se na relação da criatura com o seu Criador para encontrar a razão de ser e a justificação última dos absolutos do Direito n’Aquele que é o Absoluto”.78 ***** Restam por explorar imensos aspectos da relação entre a liberdade religiosa e o nacionalismo. Também é possível recordar domínios em que é necessário investigações mais intensas, como as que tal religião, tal Nação, tal Estado ainda podem, no século XXI, correr o risco de se atolar em formas paradoxais de naturalismo79 ou de moralismo80, ou ainda de fundamentalismo81. Mas a Nação, apesar das suas raízes antropológicas, fenomenológicas e metafísicas, sofrem das suas próprias incertezas82, porque ela é, também, o fruto parcial e bem decisivo de reais e frágeis vontades humanas: o nacionalismo83 pode ser um meio de combate político, ou o simbólico, o místico84 e as tradições tanto religiosas, filosóficas, morais como jurídicas, são como que avaliadas à escala de uma espécie de utilidade social85, ou em função de uma utopia mais ou menos imperiosa e bem frequentemente devastadora.
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Jean-Paul Durant * Deão Honorário da Faculdade de Direito Canónico do Instituto Católico de Paris.
Notas 1. “Normes internationales” e “Droit européen” , in Liberté religieuse et régimes des cultes en droit français, col. Droit civil ecclésiastique, Cerf, Paris, 2005, 2ª éd., p. 13 e 83. 2. Emmanuel Decaux, “Les droits fondamentaux en droit international” , in Laurent Richer e Étienne Picard (Dir.), “Les droits fondamentaux, une nouvelle catégorie juridique” (dossier), in L’actualité juridique – droit administratif, número especial, 20 julho – 20 Agôsto 1998, p. 66-74. 3. Philippe Gabriel Renczes, Agir de Dieu et liberté de l’homme, recherches sur l’anthropologie théologique de Saint Maxime le Confesseur, col. Cogitatio fidei, n° 229, Cerf, Paris, 2003, 432 págs; Michel Corbin, La grâce et la liberté chez Saint Bernard de Clairvaux, col. Initiations nu Moyen Age, Cerf, Paris, 2002, 301 págs; Marie-France Renoux-Zagamé, Du droit de Dieu au droit de l’homme, col. Léviathan, PUF, Paris, 2003, 324 págs; Joël-Benoît d’Onorio (Dir.), Droits de Dieu et droits de l’homme, Téqui, Paris, 1988, 215 págs; Guy de Broglie sj, Le droit naturel à la liberte religieuse, Beauchesne, Paris, 1964, 194 págs; Jean-Paul Durand op (Dir.), “Autorité et autonomie de la consciente en christianisme” (dossier), in Revue d’éthique et de théologie morale “Le Supplément”, n° 155, Dezembro 1985, p. 1-93; Pierre Legendre, Sur la question dogmatique en Occident, aspects théoriques, Fayard, Paris, 1999, 369 págs; Marcel Gauchet, La Révolution des droits de 1’homme, col. Bibliothèque des histoires, Gallimard, Paris, 1989, 341 págs. 4. Ver Infra. 5. Justine Lacroix, L’Europe en procès. Quel patriotisme au-delà des nationalismes? col. Humanités, Cerf, Paris, 2004, 205 págs. 6. Henrich Schneider, “Patriotisme et nationalisme “, in John Coleman e Miklos Tomka (dir.), “Nationalisme et religion” (dossier), in Concilium, n° 262, 1995, p. 49-64 (Ver infra). 7. Jean-Pierre Chevènement, Une éducation civique républicaine au XXIe siècle, Fondation Res publica, Paris, 2005, 64 págs. 8. Brigitte Vassort-Rousset, “Couples interétatiques: l’intérêt national revisité” , in Arès, n° 57, vol. XXII, fasc. 2, Novembro 2006, p. 9-18. 9. Jean Baubérot, Séverine Mathieu, Religion, modernité et culture au Royaumne-Uni et en France, 1800-1914, col. Histoire, Seuil, Paris, 2002, 320 págs; Jean-Dominique Durand, L’Église catholique dans la crise de l’Italie (1943-1948), col. da École française de Rome, n° 148, Rome, 1991, 879 págs. 10. Bernard Lewis, Histoire du Moyen-Orient, 2000 ans d’histoire de la naissance du christianisme à nos jours, Paris, Albin Michel, 1997, 487 págs; Jean-Marc Ferry, Europe, la voie kantienne. Essai sur l’identité post-nationale, col. Humanités, Cerf, Paris, 2005, 216 págs. 11. Colectivo, Les droits fondamentaux à l’épreuve de la mondialisation, (Institut catholique d’études supérieures), Cujas, Paris, 2006, 167 págs; colectivo, L’Unité du genre humain, donner une impulsion nouvelle à la vie en société, Annales 2001-2002, Académie d’éducation et d’études sociales, Paris, 2002, 352 págs. 45
Jean-Paul Durant 12. Giovanni Barberini, “Les intérêts du Saint-Siège” , in Le Saint-Siège, Sujet souverain de droit internacional, prefácio do Cardinal Jean-Louis Tauran, col. Droit canonique, droit international de la liberté religieuse et de religion, Cerf, Paris, 2003, p. 87-123. 13. Élisabeth Badinter, Les passions intellectuelles (I – Désir de gloire, 1735-1751; II – Exigence de dignité, 1751-1762), Fayard, Paris, 1999, 545 págs e 2002, 461 págs; Patrick Baudry, Une sociologie du tragique, violence au quotidien, col. Ethique et société, Paris, coed. Cerf-Cujas, 1986, 192 págs; Antoine Vergotte, Modernité et christianisme, interrogations critiques réciproques, Cerf, Paris, 1999, 212 págs. 14. Pierre Crépon, Les religions et la guerre, col. Espaces libres, Albin Michel, Paris, 1991, 255 págs. 15. Jacqueline Lalouette, La libre-pensée en France 1848-1940, Prefácio de Maurice Agulhon, Bibliothèque Histoire, Albin Michel, Paris, 1997, 636 págs; Philippe Capelle (éd.), Expérience philosophique et expérience mystique, col. Philosophie et théologie, Paris, Cerf, 2005, 330 págs; Émile Poulat, Critique et mystique, autour de Loisy ou la conscience catholique et l’esprit moderne, Le Centurion, Paris, 1984, 336 págs; Gérard Bessière, Jesus selon Proudhon, la messianose et la naissance du christianisme, col. Histoire, Cerf, Paris, 2007, 484 págs. 16. Éric Voegelin, Les religions potitiques, col. Humanités, Cerf, Paris, 1994, 123 págs; Pierre Viaud (Dir.), Les religions et la guerre: judaïsme, christianisme, islam, col. Recherches morales, Cerf, Paris, 1991, 584 págs; 17. Philippe Chenaux, Entre Mauras et Maritain, une generation intellectuelle catholique (1920-1930), col. Sciences humaines et, religions, Cerf, Paris, 1999, 262 págs. 18. Barthélémy Courmont (Dir.), Washington et les États voyous, une stratégie plurielle?, col. Enjeux stratégiques, coed. IRIS-Dalloz, Paris, 20)7, 304 págs. 19. Daniel Menozzi, Les interprétations politiques de Jesus de l’ancien régime à la Révolution, col. Sciences humaines et religions, Cerf, Paris, 1983, 282 págs. 20. Alberto Bondolfi, Denis Müller, Simone Romagnoli (Dir.), Dietrich Bonhoeffer, autonomie, suivance et responsabilité (dossier), Revue d’éthique et de théologie morale “Le Supplément”, et Cerf, n° 246, Setembro de 2007, 284 págs. 21. Église orthodoxe russe, Les fondements de la doctrine sociale, coed. Cerf-Istina, Paris, 2007, 194 págs. 22. Pontifical council for interreligious dialogue, Resources for peace in traditional religions, Roma, Cidade do Vaticano, 2006, 388 págs. 23. Dominique Larralde et Gabriel Vidalenc (Dir.), Développement durable, un défi pour le droit (dossier), in Petites affiches, n° 81, 22 de Abril de 2008, 119 págs. 24. Daniel Dubuisson, L’Occident et la religion, mythes, science et idéologie, col. Les dieux dans la cité, éd. Complexe, Paris, 1998, 333 págs; Kaspar von Greyerz, Religion et culture, Europe 1500-1800, col. Sciences humaines et religions, Cerf, Paris, 2006, 372 págs. 25. Jean Greisch (Dir.), “Les rationalités de l’action” (dossiers I et II), in Revue d’éthique et de théologie morale “Le Supplément”, n° 193, Junho de 1995, p. 25-128 e n° 194, 1995, p. 97-142; Éric Gaziaux (Dir.), “Enjeux des morales” (dossier), in Revue d’éthique et de théologie morale “Le Supplément”, n° 213, Junho de 2000, p. 5-216. 26. Feng Youlan, Nouveau traité sur l’homme, col. Patrimoines Chine, coed. Institut Ricci et Cerf, 2006, 303 págs; Bernard Meunier (Dir.), La personne humaine et le christianisme ancien, col. Patrimoines-Christianisme, Cerf, Paris, 2006, 360 págs; Anne Fefebvre-Teillard, Introduction historique au droit des personnes et de la famille, col. Droit fondamental /droit 46
Jean-Paul Durant civil, PUF, Paris, 1996, 475 págs; Julien Ries (Dir.), Traité d’anthropologie du sacré, Vol. 1: Les origines et te problême de l’homo religiosus, Desclée, Paris, Tournai, Louvain la Neuve, 1992, 358 págs; Claude Bruaire, “Liberté du philosophe et Révélation”, in Jean-Louis Vieillard-Baron et Francis Kaplan (Dir.), Introduction à la philosophie de la religion, Cerf, Paris, 1989, p. 377-388; François-André Isambert, De la religion à l’éthique, col. Sciences humaines et religion, Cerf, Paris, 1992, 430 págs; Olivier Perru, De Platon à Maritain, l’idéal associatif, col. Histoire de la morale, Cerf, Paris, 2004, 267 págs; André Clair, Kierkegaard et autour, col. Histoire de la morale, Paris, 2005, 141 págs; Jean-Paul Durand op, “Église catholique et nations”, in Gilles Routhier et Laurent Villemin (Dir.), Nouveaux apprentissages pour l’Église, mélanges en l’honneur de Hervé Legrand op, introducção do cardial Carlo Mario Martini, Cerf, Paris, 2006, 545 págs; Blandine Chélini-Pont (Dir), Au nom du Christ, les modalités de l’autorité dans le christianisme historique, col. Droit et religion, Imprensas universitárias de Aix-Marseille, Aix-en-Provence Marseille, 2003, 203 págs; Jean-Baptiste Donnier (Éd.), Philippe André-Vincent, jalons pour une théologie du droit, prefácio do Cardinal Georges Cottier op, col. Croire et savoir, Téqui, Paris, 2007, 356 págs. 27. En sociologie de la religion: cf. John Coleman et Miklos Tomka (Dir.), “Nationalisme et religion, (dossier), in Concilium, n° 262, 1995, 139 págs. Neste interessante dossier que é necessário actualizar, tinham sido escolhidos quatro grandes capítulos: I. O nacionalismo na história profana e a história das Igrejas: Heinrich Schilling, Confissão e identidade política na Europa da modernidade nascente”; Victor Conzemius, “Fé cristã universal e nacionalismo”; Miklos Tomka, “Secularização e nacionalismo”. II. Patriotismo, nacionalismo e cidadania: Heinrich Schneider, “Patriotismo e nacionalismo”; John Coleman, “Uma nação de cidadãos”. III. O papel da religião nos conflitos nacionais, Srdjan Vrcan, “a religião, as Igrejas e a guerra post-jugoslava; David Sedljak, “ Religião, nacionalismo e fractura do “Canada’” Liszlo Aseôdi et Goergius Frater, “De profundis… A religião, apoio das minorias”. IV. Religião e nacionalismo no mundo: Gregory Baum, “ Que espécie de nacionalismo? Distinções éticas”; Ashis Nandy, “O laicismo, o nacionalismo hindu e o medo das pessoas”; Ziauddin Sardar, “Islamismo e nacionalismo”. 28. Joseph Lecler sj et Marious-François Valkhoff (éd.), Les premiers défenseurs de la liberté religieuse, Cerf, Paris, tomo primeiro, 1969, 199 págs. 29. L’apologétique, 33, 1; Jean Gaudemet, Église et cité, histoire du droit canonique, coed. Cerf- Montchrestrien, Paris, 1994, p. 18. 30. Charles Munier, Justin martyr, apologie pour les chrétiens, col. Patrimoine-christianisme, Cerf, Paris, 2006, 390 págs; Pierre de Labriolle, La réaction païenne, étude sur la polémique antichétienne du 1er au VIe siècle, col. Patrimoines, Cerf, Paris, 2005, 519 págs; Philippe Capelle (ed.), Philosophie et apologétique, Maurice Blondel cent ans après, col. Philosophie et théologie, Cerf, Paris, 1999, 320 págs. 31. Colectif, “État et religion en Europe, les systèmes de reconnaissance” (dossier), in Revue de droit canonique, T4/1-2, 2004, 226 págs. 32. Brigitte Basdevant-Gaudemet (Dir.), L’administration des cultes dans les pays de l’Union européenne, Law and religion studies 4, Peeters, Louvain, 2008, 278 págs. 33. Mario Tedeschi (Dir.), La liberta religiosa, Rubbettino Editore, Naples, 2002, 3 vol.; Joseph Doré (Dir.), Perspectives actuelles sur la tolérance, Artel, Namur, 1997, 260 págs. 34. Hélène Carrère d’Encausse et Philippe Levillain (Dir.), Nations et Saint-Siège au XX siècle, Fayard, Paris, 2003; Philippe Chenaux, Pie XII, diplomate et pasteur, col. Histoire. 47
Jean-Paul Durant Biographie, Cerf, Paris, 2003, 462 págs. 35. Dominique Gonnet, La liberte religieuse à Vatican II, la contribution de John Courtney Murray, col. Cogitatio fidei, n° 183, Cerf, Paris, 1994, p. 9. 36. Cf. Religioscope, 2004-2008 – versão em inglês (www.religion info) et cf. Le Rapport annuel sur la liberte religieuse dans le monde (USA, 2001.2002: www.stats.gou/g/drl/rls/irf). 37. Jean Laporte, L’œcuménisme et les traditions des Églises, col. Initiations, Cerf, Paris, 2002, 332 págs; Bernard Sesboüé, Pour une théologie œcuménique, col. Cogitatio fidei, n° 160, Cerf, Paris, 1990, 424 págs; André Birmelé, La communion ecclésiale, progrès œcuméniques et enjeux méthodologiques, col. Cogitatio fidei n° 218, Cerf, Paris, 2000, 401 págs; Jean-Paul Durand op, “ La liberté religieuse depuis les apports du Conseil œcuménique des Églises et du Concile Vatican II”, in Consciente et liberté, n°62, 2001, p. 136–148. 38. François Bousquet, “L’engagement sans retour de l’Église catholique dans le dialogue inter-religieux”, in Documents épiscopat, n°7,2005, 15 págs. 39. Dominique Gonnet, La liberté religieuse à Vatican II, la contribution de Joim Courtney Murray, op. cit., 410 págs; Giuseppe Alberifo (Dir.), Histoire du Concile Vatican II (19591965), Louvain, coed. Cerf-Peeters, Paris, 1997–1998–2000–2003–2005, 5 vol. 40. Giuseppe Alberigo e Jean-Pierre Jossua op (ed.), La réception de Vatican II, col. Cogitatio fidei, n° 134, Cerf, Paris, 1985, 465 págs. 41. A liturgia tem como vocação anunciar a fé da Igreja (lex orandi, lex credendi); e a fé da Igreja anuncia, também o que pertence à história da Salvação, as relações do Corpo místico de Cristo e da cidade terrestre; cf. cardial Joseph Ratzinger, L’esprit de la liturgie, Genève, Ad Solem, 2001, 186 págs; Pierre Marie Gy op, “L’esprit de la liturgie du cardinal Ratzinger estil fidèle au Concile ou en réaction contre?”, in Philippe Maxence (Dir.), Enquête sur l’esprit de la liturgie, éd. de l’homme nouveau, Paris, 2002, p. 231-239; cardial Joseph Ratzinger, “Réponse au père Gy”, ibidem, p. 240-247; voir reedição: cardial Alfredo Ottaviani et Antonio Bacci, Bref examen critique du nouvet Ordo Missae et autres documents, prefácio do cardial Stickler, Paris, Éd. Renaissance catholique, 2005, 129 págs. 42. Ver, especialmente, o dossier da crise de 1988, in La documentation catholique; e mais desenvolvido: Joseph Yacoub, Fièvre démocratique et ferveur fondamentaliste, dominantes du XXIe siècle, col. L’histoire à vif, Cerf, Paris, 2008, 212 págs. 43. Colectivo, “La nation” (dossier), in Conflits actuels, n° 1, Outono-Inverno 1997, 176 págs; Jean-Paul Durand op (Dir.), “La notion de nation” (dossier) in L’année canonique, 37, 1995, p. 121-152; Richard Puza et Jean-Paul Durand op (Dir.), “Unité des nations, pluralisme religieux et construction européenne” (dossier), in Revue d’éthique et de théologie morale “Le Supplément”, n° 228, mars 2004, p. 21-229. 44. Suzanne Bray, “Relations Églises et États dans les quatre nations du Royaume-Uni: un modèle pour 1’Europe?”, in Jean-Luc Blaquart, Ceslas-Bernard Bourdin op, Suzanne Bray, Jean-Paul Durand op (Dir.), “Phénomènes religieux et métamorphoses de l’État en Europe: Belgique, Hollande, Royaume-Uni” (dossier), in Revue d’éthique et de théologie morale “Le Supplément”, n° 226, Setembro de 2003, p. 93-112. 45. André Ross, “Esquisse d’une typologie des différentes conceptions de la nation à travers l’espace et le temps”, in Jean-Paul Durand op, La notion de nation, op. cit. 1995, p. 125-128. 46. Jean-Luc Blaquart…, ibidem; Marie-France Rénoux-Zagamé, Ceslas-Bernard Bourdin, Jean-Paul Durand op (Dir.), “Droit divin de l’État, genèse de la modernité politique” (dossier), in Revue d’éthique et de théologie morate “Le Supplément”, n° 227, Dezembro de 2003, p. 121-310; Richard Puza et Jean-Paul Durand op (Dir.), “Unité des nations, pluralisme religieux et construction européenne” (dossier), op. cit. 48
Jean-Paul Durant 47. Pierre Milza, Serge Berstein, L’Italie contemporaine des nationalistes aux Européens, A. Colin, Paris, 1997, 423 págs. 48. Jerzy Kloczowski et Iwona Geral (Dir.), La Pologne retigieuse aux XIXe et XXe siècles dans le contexte international, IHPan & IES, Varsóvia, Lublin, 2007, 241 págs. 49. Firmin Didot, Chronologie de l’histoire de France, Mesnil-sur-l’Estrée, 2007, p. 202. 50. Nigel Aston, Religion and Revolution in France, 1780-1804, Londres, 2000. 51. Rodney J. Dean, L’Église constitutionnelle, Napoléon et le Concordat de 1801, prefácio de Jean Tulard, Rodney J. Dean, Paris, 2004, 737 págs. 52. Bruno Oppetit, “Portalis philosophe”, in Recueil Dalloz Sirey, 43° cahier, chronique, 1995, p. 331-334. Os diferentes galicanismos desde o século XIV e o jansenismo tiveram um papel não negligenciável na evolução dos nacionalismos franceses e as relações com a liberdade religiosa. 53. Emilio Gentile, Les religions et la politique, entre démocraties et totalitarismes, col. La couleur des idées, Seuil, Paris, 2005, 304 págs. 54. Camille Focant (Dir.), Quelle maison pour Dieu?, col. Lectio divina, Cerf, Paris, 2003, 470 págs; Jacques Cazeaux, Saül, David, Salomon, La Royauté et le destin d’Israél, col. Lectio divina, Cerf, Paris, 2003, 417 págs; Philippe Bordeyne (Dir.), Bible et morale, col. Lectio divina, Cerf, Paris, 2003, 220 págs; Roland Jacques, Des nations à évangéliser, genèse de la mission catholique pour l’Extrême-Orient, col. Droit canonique et droit civil ecclésiastique, Cerf, Paris, 2003, 715 págs. 55. Jacques Cazeaux, Histoire, utopie, mystique, ouvrir la Bible comme un livre, col. Initiations bibliques, Cerf, Paris, 2003, 244 págs; Roland Maisonneuve, Les mystiques chrétiens et leurs visions de Dieu un et trine, col. Patrimoine-christianisme, Cerf, Paris, 2000, 350 págs; Christian Duquoc, Messianisme de Jésus et discrétion de Dieu, Genève, Labor et Fides, 1984, 257 págs; Ghislain Lafont, Histoire théologique de l’Église catholique, itinéraire et formes de la théologie, col. Cogitatio fidei, n° 179, Cerf, Paris, 1994, 474 págs; Joseph Ratzinger, “Le dialogue interreligieux et la relation judéo-chrétienne”, in Colectivo, “La Papauté: pouvoir temporel, pouvoir spirituel” (dossier), in Géopolitique, n° 58, 1997, p. 46-53. 56. Job Getcha, “Peut-on justifier la notion d”Églises nationales” du point de vue de l’ecclésiologie ortodoxe?”, in L’année canonique, 43, 2001, p. 93-104; Grigorios Papathomas, “Face au concept d’Église nationale”, la réponse canonique orthodoxe: l’Église autocéphale”, in L’année canonique, 45, 2003, p. 149-170; do mesmo autor: “La relation d’opposition entre L’Église établie localement et la ‘diaspora’ ecclésiale. L’unité ecclésiologique face à la “coterritorialité, la multijuridiction”, in L’année canonique, 46, 2004, p. 77-102; K.-G. Papagéorgiou, “Le cadre nomocanonique des relations du patriarcat œcuménique avec l’Église semiautonome de Crète”, in L’année canonique, 46, 2004, p. 159-168; Patriciu Dorin Vlaicu, “L’identité canonique de l’Église orthodoxe de Roumanie à l’aube de l’intégration dans l’Union européene”, in L’année canonique, 47, 2005, p. 227-254; Jean-Yves Calvez et Anatole Krassikov (Dir.) Église et société, un dialogue orthodoxe russe – catholique romain, col. L’histoire à vif, Cerf, Paris, 1998, 166 págs. 57. Centre “Droit et sociétés religieuses”, co-fundada em 1991 pela Faculdade de Direito Canónico do Instituto Católico de Paris e a Faculdade de Direito, Economia, Gestão Jean Monnet da Universidade Paris Sul – ll. É uma equipa de recepção homologada pelo Estado e que pertence à L’École doctoral de la Faculte Jean Monnet. O colóquio n° 7, realizado em Moscovo de 30 de Novembro a 3 de Dezembro de 2007, em princípio será publicado no tomo 49
Jean-Paul Durant 49, 2007 de L’année canonique, de 2008. Será seguido de um colóquio n° 8 de síntese doutrinária, que se realizará em Sylvanès no Pentecostes de 2009 e que deverá ser publicado no tomo 50 de L’année canonique. Os seis colóquios precedentes já foram editados em L’année canonique (Éditions Letouzey et Ané, Paris): – colóquio nº 1 de lançamento em Paris, em 2000, cf. vol. 43, 2001; – colóquio n° 2 em Cardiff, com o Pr Norman Doe, em Setembro de 2001, cf. vol. 44, 2002; – colóquio nº 3 Cluj-Napoca com o deão honorário Ioan Vasile Leb e o Dr. Dorin Patriciu Vaiclu em Maio de 2002, cf. vol. 45, 2003, e apareceu já em romeno sob a direcção dos nossos colegas de Cluj. – colóquio n° 4 em Tessalónica com os professores Charalambos Papastathis et Grigorios Papathomas, em Novembro de 2002, cf. vol. 45, 2003, apareceu igualemente em grego e em inglês sob a direcção do Pastor H. Papathomas; – colóquio nº 5 em Beirute, com o Deão Elie Raad, em Novembro de 2003, cf. vol. 46, 2004; – colóquio nº 6 em Höör perto de Lund com o Dr. Lars Friedner, cf. vol. 48, 2006. 58. Gérard Verkindère, La Justice dans l’Ancien Testament, col. Cahiers Évangile, n° 105, 1998, 65 págs; Vincente Fortier, Justice, religions et croyances, col. CNRS Droit, Paris, CNRS Éd., 2000, 191 págs; Roland Minnerath, “La justice”, in Pour une éthique sociale universelle, la proposition catholique, posfácio de Michel Camdessus, Cerf, Paris, 2004, p. 38. 59. Michel Istas, Les morales selon Max Weber, col. Histoire de la morale, Cerf, Paris, 1986, 160 págs. 60. Bernard Plongeron, “L’Église et la Révolution, repères historiques”, in Documents épiscopat, n° 8, Abril de 1988, 10 págs; Claude Bressolettre, Le pouvoir dans l’Église et dans la société, l’ecclésiologie politique de Mons. Maret, dernier doyen de la Faculté de théologie en Sorbonne. Prefácio de Jacques Gadille, coll. Histoire des doctrines ecclésiologiques, Cerf, Paris, 1984, 211 págs; Roland J. Campiche, François Batard, Gilbert Vincent, JeanPaul Willaime, L’exercice du pouvoir dans le protestantisme, les conseillers de paroisse de France et de Suisse romande, col. Histoire et société, n° 19, Labor et Fides, Genève, 1990, 204 págs; Jean-Paul Willaime, “Les Églises protestantes et la démocratie”, in Marcel Metzger (Dir.), “L’Église dans la démocratie” (dossier), Revue de droit canonique, 49/1, 1999, p. 6784; Michael Novak, Démocratie et bien commun, coed. Cerf-Institut La Boétie, Paris, 1991, 190 págs; Jean-François Colosimo, Dieu est américain, de la théodémocratie aux États-Unis, Fayard, Paris, 2006, 222 págs; Marcel Gauchet, La religion dans la démocratie, parcours de la laïcité, col. Essai, Gallimard, Paris, 1998, 178 págs; Claudine Leleux, La démocratie moderne, les grandes théories, col. Textes en main, Cerf, Paris, 1997, 380 págs. 61. Colectivo, “Communautés et communautarisme” (dossier), in Theophilyon, XI-1, Janeiro 2006, pág. 7-122. 62. Philippe Greiner, “Activités d’évangélisation de l’Église catholique et prosélytismes”, in L’année canonique, 47, 2005, p. 119-144. 63. Tal é a posição expressa pelo Concílio Vaticano II (Declaração sobre a liberdade religiosa, 6 § 3): Ver a situação na Índia, onde a União Indiana tenta não se tornar num Estado confessional hindú (Antony-Samy Savarimuthu, “Le statut canonique et civil d’une minorité religieuse en Indi: l’Église catholique et l’affirmation de l’identité nationale”, in Revue d’éthique et de théologie morale “Le Supplément”, n° 228, Março de 2004, p. 195-238) e a situação na Roménia com os cultos reconhecidos e os outros cultos, onde a Igreja Ortodoxa da Roménia, muito maioritária, renunciou, ela própria, a pedir um reconhecimento jurídico de Igreja nacional, mesmo se essa hipótese tivesso sido concebida na ortodoxia romena que assugurou que este estatuto não descriminaria os outros cultos na Roménia: Adrian Lemeni et Florin Frunza (Dir.), Libertea religiosa in context romùcanesc si european, Editura Bizantina, Bucureste, 50
Jean-Paul Durant 2005, 397 pág. (em romeno, francês, inglês). 64. Mons. Georges Khodr, “Nation et religions: le Liban”, in Elie Raad et Jean-Paul Durand op Nation et religions: le Liban” (dossier), in L’année canonique, 46, 2004, p. 61-66. 65. Jean-Paul Durand op, Une situation métamorphosée? Droit français des congrégations religieuses et droit canonique de t’état de vie consacrée, (t. 1 de La liberté des congrégations religieuses en France), col. Droit canonique et droit civil ecclésiastique, Cerf, Paris, 1999, 66. Bernard Bourdin op, La genèse théologico-politique de l’État moderne, col. Fondements la politique, Paris, PUF, 2004, 280 págs; Jean-Louis Vieillard-Bron, Hegel, systèmes et structures théotogiques, col. Philosophie et théologie, Cerf, Paris, 2006, 320 págs; Erik Peterson, Le monothéisme: un problème politique, et autres traités, prefácio de Bernard Bourdin op, Paris, Bayard, 2007, 219 págs; Didier Rance, Erik Peterson, un témoin de la vérité, Ad Sole Genève, 2007, 124 págs; Jean-Paul Durand op, “Equilibres politico-religieux dans l’Union européenne” , in Revue d’éthique et de théologie morale “Le Supplément”, n° 195, Dezembro 1995; p. 167-188 ; Joseph Maïla, “Le rayonnement de 1’Europe: la Méditerranée et l’Union européenne”, in Richard Puza et Jean-Paul Durand op (Dir.), Unité des nations, pluralisme religieux et construction européenne, op. cit., n° 228, 2004, p. 129-136. 67. Jean-Marie Donegani, La liberté de choisir, pluralisme religieux et pluralisme politique dans le catholicisme français contemporain, Presses de la Fondation nationale des sciences politiques, Paris, 1993, 485 págs; Paul-Henri Steinauer (Dir.), L’image de l’homme en droit, Ed. universitaires de Friburgo, Friburgo, 1990, 561 págs; François Meyer-Bisch (Dir.), Le noyau intangible des droits de l’homme, collection interdisciplinaire, série droits de l’homme, Ed. universitaires de Friburgo, Friburgo, 1991, 272 pág.; do mesmo directeur, Nouveaux droits l’homme, nouvelles démocraties?, collection interdisciplinaire (19), série Droits de l’homme (7) Ed. universitaires de Friburgo, Friburgo, 1991, 176 págs; Shmuel Trigano (Dir), “Loi et liberté” (dossier), in Pardès, n° 17, 1993, pág. 9-78; Pierre Rosanvallon, “De la valeur d’égalité dans la modernité” , in La crise de l’État-providence, col. Points Politique, Seuil, Paris, 1981, p. 37 68. Louis Vereecke cssr, De Guillaume d’Ockham à Saint Alphonse de Liguori, études d’histoire de la théologie morale moderne 1300-1787 Bibliotheca historica, vol. XII, Collegium S. Alfonsi de Urbe, Rome, 1986, 606 págs. 69. Maria D’Arienzo, “Tolérance et liberté de conscience dans la pensée de Sébastien Castillion”, in L’année canonique, 43, 2001, p. 237-258. 70. Antonio Truyol Serra, “De la notion traditionnelle du droit des gens à la notion moderne de droit international public, concepts clefs de la pensée de Vitoria”, in Jean-Paul Durand op et Philippe I. André-Vincent op (Dir.), “ Las Casas et Vitoria, le droit des gens dans 1’âge moderne” (dossier), in Revue d’éthique et de théologie morale “Le Supplément”, n° 160, Março de 1987, p. 73-91; Pierre Viaud, Une humanité affranchie de Dieu au XIX siécle, recherche d’un ordre universel, col. Histoire de la morale, Cerf, Paris, 1994, 384 págs. 71. Olegario Gonzalez de Cardedal, “Expérience religieuse et création artistique: Millet, Van Gogh, Gauguin” , in Communio, XX, 4 n° 120, Julho–Agosto de 1995, 141-152 (à margem de um dossier: Olivier Boulnois” (Dir.), Dieu et César, p. 8-127. 72. Alain Lebeaupin, “La notion de nation selon la ‘conception’ contemporaine du SaintSiège” in Jean-Paul Durand op (Dir.), La notion de nation, op. cit., 37, 1995, p. 145-152. 73. A “piada” da separação na Alemanha contemporânea totalmente eurística: Joseph Krautscheidt, Heiner Marré, Burkhard Kâmper, Hans-Werner Thönnes (Hg), Die Trennung von Staat und Kirche, Modelle und Wirklichkeit in Europa, Essener Gespräche zum Thema Staat und Kirch 30, Aschendorff Verlag, Münster, 2007, 258 pág. 74. Marie-France Rénoux-Zagamé, “Du droit divin des juges dans la monarchie française”, Marie-France Rénoux-Zagamé, Ceslas-Bernard Bourdin op, Jean-Paul Durand op (Dir.), “Droit divin de l’État, genèse de la modernité politique” (dossier), in Revue d’éthique et de théologie morale “Le Supplément” , n°227, Dezembro de 2003, p. 289-309; Michel Le 51
Jean-Paul Durant Guern, “Le jansénism: une réalité politique et un enjeu de pouvoirs” , in Revue des sciences religieuses, 91/3, 2003, pág. 461-488. 75. Giovanni Filoramo, “Religion et démocratie: a-t-on besoin d’une nouvelle religion civile?” in Qu’est-ce que la religion? Thèmes, méthodes, problèmes, Cerf, Paris, 2007, p. 291. 76. Jacques Chevallier, L’État de droit, col. Clefs/Politique, Montchrestien, Paris, 1999, 11 pág. 77. Apesar das críticas: Friedrich Niezsche, “De la démocratie et de la décadence”, Par-delà le bien et le mal (1886), Essais, Folio, Paris, 1971, n° 70, § 188. 78. Prefácio da obra de Jean-Baptiste Donnier, Philippe André-Vincent, jalons pour une théologie du droit, op. cit. pág. 7, 8. 79. Giovanni Filoramo, “Une histoire naturelle des religions”, in Qu’est-ce que la religion? Thèmes, méthodes, problèmes, Cerf, Paris, 2007, p. 42; Jean Greisch, “ La lumière naturelle de la raison comme príncipe herméneutique (J. Bodin, M. Meyer, B. Spinoza)”, in Le buisson argent et les lumières de la raison, l’invention de la philosophie de la religion, Tome III: vers un paradigme herméneutique, col. Philosophie et théologie, Cerf, Paris, 2004, p. 79-109; et ver também, de Jean Greisch, no mesmo volume: “La liberté comme expérience intérieure” (La méthode réflexive et 1’herméneutique des témoignages historiques de l’absolu, Jean Nabert), ibidem, p. 385-386. 80. Jean-Marie Domenach, Une morale sans moralisme, Flammarion, Paris, 1992, 265 págs. 81. Joseph Yacoub, Fièvre démocratique et ferveur fondamentaliste. Dominantes du XXIe siècle, col. L’histoire à vif, Cerf, Paris, 2008, 212 págs. 82. Gilles Curien, “’La bonne nation’. Misères et transfiguration”, in Jean-Paul Durand op (Dir.), La notion de nation, op. cit., 47, 1995, pág. 137-144. 83. Que dizer, inversamente, do nacionalismo, a saber da anarquia? Cf. Bernard Voyenne, Proudhon et Dieu, le combat d’un anarchiste, col. Histoire, Cerf, Paris, 2004, 169 págs. 84. Charles-André Bernard, Le Dieu des mystiques, tome III: Mystique et action, col. Théologies, Cerf, Paris, 2000, 468 págs. 85. Claude Nicolet, La fabrique d’une nation, la France, entre Rome et Germains, 2007, Perrin, Paris, André Clair, Droit, communauté et humanité, col. Recherches morales, positions, Cerf, Paris, 2000, 166 pág.
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Entre nacionalismo, islamismo e Estado de Direito: a situação das minorias cristãs na Turquia. Daniel Heinz*
Na Turquia, o cristianismo é hoje uma religião em vias de extinção. Contudo, este país era desde há perto de dois mil anos uma região profundamente impregnada de cristianismo. Nenhum país, com excepção da Palestina, esteve tão ligado à história do cristianismo como a região da actual Turquia. Os primeiros cristãos partiram da Ásia Menor para “conquistar” o Ocidente. Ali, as comunidades cristãs sobreviveram a queda do Império Romano do Oriente, resistiram aos assaltos dos Persas e dos Árabes e, por outro lado, sobreviveram durante séculos ao domínio dos turcos seljúcidas e otomanos – os quais, contrariamente aos Árabes, não olhavam para o Leste, mas para o Oeste. Há um século a relação era de um otomano para cinco cristãos na Ásia Menor. Em 1914, em Constantinopla, quase um habitante em dois frequentava uma Igreja cristã. Mas foi no início do século XX que o destino de milhares de cristãos da Turquia e do norte da Mesopotâmia foi definitivamente selado, por ocasião dos trágicos acontecimentos que ocorreram logo após o surgimento do movimento Jovens Turcos. Este pôs em marcha um processo radical de depuração religiosa e racista, que culminou, por ocasião da Primeira Guerra Mundial com o genocídio de
cristãos e que servirá mais tarde de modelo a Hitler para o Holocausto1. Se no Império Otomano pluri-étnico, a comunidade de fiéis (em árabe umma) ultrapassava o conceito de Estado-Nação, a partir desse momento, o nacionalismo turco substituiu-o por uma nova ideologia de Estado. Contam-se 2,5 milhões de vítimas cristãs do genocídio, dos quais, a maior parte, Arménios2. Entre as vítimas encontram-se igualmente cristãos da Assíria e da Grécia. Hoje menos de 120 000 cristãos indígenas vivem ainda na Turquia, ou seja, 0,14% de uma população de 76 milhões (estimativa de 2007)3. Até ao presente, esse passado sangrento, não foi, verdadeiramente, objecto de uma análise crítica. Assim, a Turquia até hoje, tem reagido sempre com irritação, com ameaças políticas ou consequências diplomáticas, às observações internacionais sobre o genocídio dos Arménios. O Estado turco nega ainda o facto de o crime ter tido lugar. Se bem que a Assembleia Nacional turca tenha instituído a separação do Estado e da religião como princípio da Constituição, em 1928, e que foi suprimida a menção do Islão como religião do Estado, a existência de cristãos na Turquia ainda hoje é ameaçada. Desde os anos 1970, “o islão político” é nova53
Daniel Heinz
mente senhor, o que favorece um processo de re-islamisação do país e parece impedir a construção de uma sociedade laica e pluralista. Apesar dos progressos realizados nestes últimos anos, estamos ainda longe da liberdade religiosa consequente e do reforço dos direitos das minorias exigidas para que a Turquia possa aderir à União Europeia. A mudança fundamental que ela deve operar é impressionante e pode-se perguntar se este país chegará um dia a fazer-se aceitar na comunidade cultural ocidental tão impregnada dos valores do Estado de Direito tais como a democracia, a tolerância e a liberdade de opinião. Para um visitante ocidental hoje, a fractura interna da Turquia é impressionante. Por um lado, muitos abrem-se à cultura ocidental e desejam que o seu país se “europeíze”; por outro lado, são também muito numerosos os que reivindicam um retorno ao Islão “autêntico” e a condenação dos “avanços” feitos para Ocidente. É por isso que, para muitos europeus, a entrada da Turquia, que não faz parte da Europa nem geográfica, nem cultural, nem religiosamente, constitui uma “empresa arriscada” (Hans-Ulrich Wehler) na história da unificação europeia. Que direcção vai escolher a Turquia balançando que está entre tradição e transformação? Os observadores optimistas, levados por considerações económicas ou de estratégia militar, vêm a Turquia como um modelo de reconciliação entre o Islão, o nacionalismo e a modernidade. Este desejo “político” é prematuro e ignora, na minha 54
Mustafa Kemal Atatürk (1881-1938), também chamado o “Pai da Turquia), o fundador da Turquia moderna. Foto Wikipédia
opinião, a questão decisiva do debate, a saber, a questão religiosa4. O país chegará a enraizar profundamente, na sociedade pública e privada, direitos do Homem fundamentais como a liberdade de religião e de consciência enquanto o processo de re-islamisação se faz sentir cada vez mais fortemente? Para os políticos ocidentais, esquecidos da religião, esta questão pode parecer obsoleta. Para eles, há muito tempo que o cristianismo perdeu a sua função de forjar solidamente a identidade do grupo. Basta pensar, por exemplo, no conflito que surgiu sobre a introdução, eventual, da noção de Deus na Constituição Europeia. Entre os muçulmanos da Turquia é diferente.
Daniel Heinz
fes espirituais de todos os muçulmanos8. Na época dos Estados-Nações, os Otomanos adquiriram a reputação de opressores dos povos e foram violentamente combatidos. A queda do Império Otomano (“O homem doente do Bósforo”), no século XIX e início do século XX, pôs visivelmente em perigo o equilíbrio político na Europa e acabou por conduzir à Primeira Guerra Mundial. Esta terminou de uma forma trágica para este país aliado aos poderes centrais (Império Alemão, Austro-Húngaro) e marcou o início de uma nova era. A Turquia moderna, geograficamente amputada presentemente, criou uma forma ocidental de governo (uma república, desde 1923, depois de ter abolido o sultanato e depois o califado), impondo as reformas indispensáveis de forma autoritária, de acordo com a tradição do Império Otomano caído. Fermento da nova república e do Estado-Nação turco, o movimento Jovem Turco – ou “Comité União e Progresso” (“Ittihat ve Terakki”) – está também na origem de genocídio dos cristãos arménios. O período tardio da fundação da república explica-se pelos seguintes números: 80% da população da época – o país tinha então 13,6 milhões de habitantes, ou seja um pouco menos de que a Istambul de hoje! – vivia no campo e 90% dentre estes eram analfabetos9. A nova direcção tomada pela política deve-se sobretudo a um homem originário de Tessalónica – a “janela do Oeste” do Império Otomano –, Mustafa Kemal (1881-
Para eles, como ideologia, o Islão tem a prioridade absoluta no estabelecimento do Direito, das leis e da ordem social5. A dualidade religião/ Estado tal como a conhecemos no Ocidente não existe no Islão. Este é exactamente a religião “verdadeira”, que incarna a unidade dos muçulmanos no Estado e que contesta, por si mesma, a razão de ser das Igrejas cristãs6. Esta omnipresença religiosa opõe--se abertamente ao modo de pensar dos europeus, em que a sociedade e a política desde há longo tempo se libertaram da influência da Igreja e da religião. Por outro lado, à universalidade do Islão no Estado, a política e a sociedade, junta-se ainda o nacionalismo turco, de longa tradição e que culminou pela teoria histórica proto-europeia propagada por Kemal Atatürk, segundo a qual a Turquia é um componente original essencial da Europa7. A amálgama entre as identidades religiosas e nacional na Turquia constituem hoje o maior obstáculo às relações deste país com as minorias cristãs. Reforma, laicismo e Islão moderado: A herança de Kemal Atatürk Com a tomada de Bagdad (1055) os turcos (os Seljúcidas e mais tarde os Otomanos) endossaram, durante mais de mil anos, o papel de dominadores no mundo islâmico. Desde o século XV, os sultões otomanos adoptaram o título de “califa” o que os designava, a seguir ao profeta Maomé, como representantes de Alá sobre a Terra e che55
Daniel Heinz A Igreja de Santa Sofia em Istambul, o último edifício importante do período tardio da Antiguidade romana. Construída no século VI D.C. era originariamente uma igreja cristã. Durante vários séculos foi a mais importante igreja do Império Bizantino e o centro religioso do cristianismo ortodoxo. depois da conquista otomana, em 1453, tornou-se na maior mesquita otomana. Hoje é um museu. Foto © G. e H. Klenk
1938), ao qual o Parlamento turco decidiu, em 1934 aplicar o cognome de Atatürk – “Pai de todos os turcos” – em homenagem aos serviços prestados à jovem República. Este oficial, vindo de um meio modesto, que foi nomeado presidente da nova República em 1923, estava determinado a conduzir o seu país à “civilização” ocidental europeia. Mustafa Kemal agia a partir da nova capital, Ankara, sede da Assembleia Nacional parlamentar. As reformas radicais postas em prática pelos “kemalistas” tendo em vista modernizar o país, são as seguintes: 1. A aplicação de uma Constituição republicana com separação de poderes, o que representava um passo importante na direcção de um Estado de Direito moderno (1924). A abolição da função do califa e a dissolução do Ministério dos Assuntos e Fundações Espirituais. A secularização do sistema educativo, que depende desde então de um Ministério da Educação. O estabelecimento, pelo Código Civil de 1926, da igualdade de direitos para
os homens e para as mulheres no seio da família. A instauração legal da monogamia (com a abolição da poligamia), o casamento devendo ser daí em diante realizado perante um funcionário do Estado civil. A supressão dos tribunais da Sharia e a abolição da legislação islâmica. A soberania do povo, a laicidade e a centralização do governo caracterizando o modelo kemalista. 2. A abolição do Islão como religião do Estado (1928): a supressão da passagem “A religião do Estado turco é o Islão”, que ainda figurava da Constituição de 1923, simboliza, sem qualquer dúvida, “o ponto culminante da secularização vinda de cima”10. A política já não deveria poder referir-se a uma ideologia de Estado ligada ao Islão. Mesmo se a religião tinha saído da vida política, o Islão, sob uma forma moderada, permanece uma característica essencial e um elemento unificador da nova República, um sólido traço de união entre o Estado e o povo. Ainda hoje, uma administração dependente do Estado (o Directório dos Assuntos 56
Daniel Heinz
Religiosos) exerce um controlo sobre os assuntos religioso. O próprio exército exerce vigilância sobre uma estrita laicidade (separação da religião e do Estado). 3. A mudança, em 1925, do calendário islâmico (que funciona relacionado com os ciclos lunares) pelo calendário gregoriano. A utilização obrigatória do alfabeto latino, assim como a total interdição do alfabeto árabe (1928). A interdição do fez como chapéu e a instituição do domingo como dia de repouso (a partir de 1935). Os nomes de família tornaram-se obrigatórios (1934). Estas novidades visíveis, que punham em questão séculos de tradições, foram particularmente dolorosas para a população. Timo Güzelmansur11 menciona seis princípios que faziam parte do “credo” da nova ordem (o “kemalismo”): o republicanismo (a república como governo, com a abolição definitiva do sultanato e da califado), o nacionalismo (a instauração de um Estado nacional turco), o populismo (igualdade entre os cidadãos sem distinção de religião, de língua, de origem étnica ou social), o Estatismo (o papel predominante do Estado na economia), o laicismo (separação da religião e do Estado) e o reformismo (a disposição para reformar continuamente a sociedade). Nenhum país islâmico no mundo foi objecto de reformas e mutações tão radicais – uma espécie de ocidentalização – como a Turquia no século XX com estabelecimento do kemalismo. No entanto, no decurso dos últimos decénios, também observamos um recrudescimento considerável do Islão que 57
enfraquece, cada vez mais, o conceito kamalista de laicidade. Islão de Estado, Islão popular e Islão político Udo Steinbach, especialista do Islão e da Turquia, demonstra que as questões não resolvidas, sobre o papel do Islão na vida pública, têm levado ao nascimento de três correntes que não podem ser distintamente separadas umas das outras e que determinam, ainda hoje, a forma de pensar12. Desde logo, “o Islão de Estado” (a Diyanet), que representa a posição oficial do governo e que é incarnada pelo “Directório dos Assuntos Religiosos”13. Esta administração complexa que emprega mais de 90 000 pessoas (entre os quais, especialmente, oficiantes, pregadores, muezzins e juristas) tem como objectivo a instauração e a preservação da religião islâmica e de todas as suas instituições (cerca de 85 000 mesquitas). Entre as suas missões principais: a nomeação e a remuneração do pessoal religioso, a publicação e a verificação (ou censura) das obras religiosas, implementar o ensino do Corão, a redacção de pareceres jurídicos e teológicos, a organização de peregrinações a Meca e muito mais. Este Departamento é igualmente responsável pelo enquadramento religioso dos turcos que vivam no estrangeiro. A Diyanet depende do PrimeiroMinistro e é dirigido por um Ministro de Estado. Forja a identidade turca, porque se envolve em manter um laço espiritual (e não constitucional) entre o ser-se turco e o Islão. Uma vez que este Departamento “não se ocupa senão dos assuntos religiosos islâmi-
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cos – ou mais precisamente sunitas – o Islão tornou-se, indirectamente, religião de Estado na Turquia”14. A segunda corrente, a saber o islamismo popular, dirige-se à massa dos simples crentes do país. O Islão popular cria ordens, confrarias e associações. Dispõe de elementos místicos, de ritos sagrados e de superstição. O misticismo revestiu-se de uma importância significativa para a renovação religiosa, que se libertou do aspecto constrangedor e formal da religião em proveito de uma piedade pessoal e espontânea. Actualmente, os representantes progressistas do Islão popular são relativamente tolerantes para com as comunidades religiosas não muçulmanas e tendem a construir uma ponte entre as tradições e os costumes religiosos e as exigências da sociedade moderna. A terceira corrente, ou o Islão político (o islamismo) constitui, actualmente, o grande desafio, porque critica e põe, mais ou menos em questão, o sistema laico. Activo desde os anos 70, o Islão político prega um retorno ao Islão como força espiritual, política e cultural. Para ele, o Islão deve, de novo, envolver-se fortemente na vida social. Fala-se de uma “reislamização da Turquia” e de uma “síntese turco-islâmica”15. De maneira geral, pelo termo “reislamização” os observadores ocidentais entendem correntes internas do Islão, tanto conservadores como progressistas, em busca de uma identidade pós-colonial, e que pregam uma sociedade islâmica justa, descartando as influências seculares ocidentais. Algumas destas correntes
aproximam-se muito do espectro do fundamentalismo islâmico16. O primeiro partido islamita da Turquia foi fundado em 1969. Depois de várias interdições, existem dois partidos pertencendo à tradição islamita: o “Partido da Felicidade” e o “Partido da Justiça e do Desenvolvimento” (“Adalet ve Kalkinma Partisi”, AKPi). Este último formou, na época, o segundo governo turco com o seu presidente, Recep Tayyp Erdogan17. Se bem que sintoma de uma crise de identidade, o islamismo na Turquia apresenta-se como um movimento moderno, que propõe a sua via como uma alternativa às ideologias ocidentais do capitalismo e do socialismo (comunismo) – que parecem ter, mais ou menos, falhado aos olhos dos islamitas – adaptado ao país a fim de ultrapassar a divisão ideológica do kemalismo (separação estrita entre a religião e o Estado). A ideia de um Estado “islâmico islamita” é todavia rejeitado. Segundo um conselheiro de Erdogan, o islamismo turco “não seria senão a ideologia kemalista do Estado sob a cobertura de um manto religioso”18. E o conflito relativo ao lugar da religião no país continua cada vez mais! Paradoxalmente, constata-se que pela primeira vez na história da Turquia, são os muçulmanos conservadores, por via do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), que incitam à reaproximação à Europa e não os nacionalistas laicos como seria, sem dúvida, de esperar. É difícil formar uma opinião sobre a dinâmica contraditória que 58
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anima a sociedade turca oscilando entre o secularismo e o islamismo apagando completamente a delimitação entre religião e política, apesar do laicismo pregado pelo Estado. Também é necessário ter em conta a desconfiança que a Europa sente em relação à Turquia. Udo Steinbach espera, apesar disso, que a Turquia prossiga no seu processo de democratização e domine suficientemente a islamização progressiva da sociedade para que possa surgir uma síntese e um equilíbrio da democracia, da pluralidade e do Islão19. Se a Turquia conseguir isso, o seu modelo do Islão terá realmente chegado a traçar o seu caminho na modernidade. Do ponto de vista do Estado turco, e particularmente do exército, que se encontra no papel pragmático de garante do kemalismo, o significado da religião no país tem uma máxima: muito Islão ameaça o progresso, pouco Islão ameaça a unidade nacional muçulmana20. Mas não é por aí que vai regulamentar o conflito fundamental e omnipresente na Turquia entre uma consciência nacional de inspiração kemalista que progride e a crise identitária do islamismo moderno21. Dito de outra forma, os acontecimentos políticos no país têm provado várias vezes, que, quando a situação exige aos olhos dos turcos, o nacionalismo e a intolerância podem perfeitamente ir lado a lado. É por isso que Tessa Hofmann apela à prudência: “Estes problemas residem na falta de tolerância e de aceitação, como aconteceu no século XIX… Se não estão prontos a assumir esta relação de causa e efeito [entre a extermina-
ção dos cristãos no passado e a sua anulação actual – nota do autor], a situação das minorias não muçulmanas não poderá ser melhorada e a erradicação da violência em geral, não será possível”22. As ideias dos Jovens Turcos têm perdurado durante décadas e têm impedido que a actual Turquia faça um julgamento crítico sobre o seu passado, que ela o assuma e possa depois estar pronta a efectuar reformas radicais no domínio da protecção das minorias. Igrejas e comunidades cristãs A fim de compreender melhor a situação dos cristãos na actual Turquia, é necessário regressar à história do Império Otomano. Os Otomanos herdaram a estrutura administrativa do grande Império Árabe, e, portanto, dos califas, que dividiam os seus vassalos em função da sua filiação religiosa. E assim nasceu o “sistema dos millets” (do árabe milla, a religião)23. Entendia-se por grupos religiosos – ou “nações de fé” – submetidos à administração e ao controlo da autoridade otomana e que, dessa forma, tinham obtido um certo estatuto jurídico24. Essas pessoas não muçulmanas eram toleradas depois do pagamento de um imposto específico tornando-os “solicitadores de protecção” (dhimmis), mas tornavam-se de facto cidadãos de segunda classe. O governo otomano não mantinha relação individual com os dhimmis. Dirigia-se colectivamente a cada grupo religioso por intermédio do seu representante (patriarca, padre, rabi, etc.). que fazia de elo de ligação entre as autoridades e a sua comunidade religiosa sendo, 59
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Um Baptistério, testemunha do início do cristianismo, nas ruínas da Basílica de São João, em Éfeso, na Turquia. Foto © 2008 G. e H. Klenk
em tudo, responsável pelas questões “materiais” da sua Igreja (gestão, jurisdição, impostos). As comunidades cristãs gozavam, assim, de uma certa autonomia na prática do ofício religioso e a respeito das decisões de Direito Canónico interno. No entanto, no contacto com os muçulmanos, os cristãos eram frequentemente alvo de discriminação e de opressão. Como Erich Bryner resume: “Por exemplo, era-lhes proibido construir igrejas e claustros nas regiões muçulmanas ou renovar as igrejas existentes; os sinos das igrejas não deviam tocar “senão com moderação”; as disposições particulares sobre a forma de vestir deviam ser respeitadas. O testemunho dos cristãos, perante um tribunal, não tinha nenhum valor”25. E poder-se-iam continuar a enumerar as discriminações que tornavam difícil a vida dos cristãos… Com o recuo, os historiadores concordam em dizer que o sistema otomano dos millets tinha, em certa medida, suficientemente em conta a pluralidade dos povos e que tinha posto as minorias cristãs numa posição que os preservou
durante séculos, de uma islamização ameaçadora. Contudo, esta forma de tolerância parecia atrasada quando em comparação com a evolução europeia em matéria de direitos do Homem e de liberdade religiosa, que a Revolução Francesa despoletou26. A Primeira Guerra Mundial foi sinónimo de catástrofe para os cristãos otomanos. Com efeito, com o movimento dos Jovens Turcos, ela exaltou os sentimentos nacionalistas e levou ao genocídio dos Arménios em 1915-1916. Tessa Hoffmann classificou este genocídio de “crime tabu fundador da República da Turquia”. Os turcos eliminaram, sistematicamente, cerca de um milhão e meio de arménios, ou seja, três quartos da população do país (um terço dos arménios viviam pelo mundo inteiro naquela época). O exército turco continuou a acossar os cristãos no resto do território até 1922. Centenas de milhares de pessoas fugiram para a Rússia, a Europa, a América do Norte ou para os países vizinhos sob mandato francês: a Síria e o Líbano. A estratégia nacional e religiosa de homogeneização étnica aplicada 60
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pelos Jovens Turcos marcou uma rotura com a tradição multi-religiosa – que, embora reduzida, tinha, pelo menos, o mérito de existir – do Estado otomano pluriétnico. A prioridade era “tornar turca” a população no seu conjunto. A islamização foi assim introduzida progressivamente como uma forma de se conformar com a maioria da sociedade turca, de obediência sunita. É verdade que o Tratado de paz de Lausanne (1923) especificava os direitos das minorias cristãs – e ainda das únicas minorias reconhecidas na época da sua rectificação: os gregos, os arménios e os búlgaros – mas, na realidade, protegia pouco os outros cristãos que permaneciam no país. Uma liberdade de culto relativa e “interna” acabou por existir, mas não se pode falar de verdadeira liberdade religiosa e de igualdade de direitos. Além disso, o Estado não se sente seriamente envolvido com as disposições de Tratado de Lausanne, mesmo actualmente. Outros cristãos tais como os sírios ortodoxos, os católicos ou os protestantes continuam a não ser reconhecidos de jure como minorias e, portanto, sob o ponto de vista turco, protegidos pelo Tratado de Lausanne. Gabriel Yonan constata: “Na prática, estas [novas] disposições [do Tratado de Lausanne – nota do autor] não marcam senão um retorno ao sistema otomano dos millets, essa relíquia da História completamente ultrapassada”27. Qual é, hoje em dia, a situação dos cristãos na Turquia?28 O maior problema com que todas as Igrejas são confrontadas (sejam elas reconhecidas ou não como pertencendo
a uma minoria cristã) é a ausência de estatuto jurídico. Sem estatuto jurídico, uma Igreja não pode abrir uma conta bancária, nem subscrever um contrato de arrendamento, ainda menos assinar um contrato de venda ou munir-se de um qualquer título de propriedade. Para poder exercer esses direitos, cada comunidade cristã deve criar uma instituição religiosa de caridade, que se ocupe então dos assuntos jurídicos. Mas estas fundações são fortemente taxadas pelo Estado. Sob certas condições, os terrenos ou os bens imobiliários de uma Igreja, podem mesmo ser expropriados, a qualquer momento e sem indemnização. Quando as Igrejas cristãs exigem um estatuto jurídico garantido, são frequentemente reenviados para a Constituição turca, que separa, estritamente, o Estado e a religião e não prevê o reconhecimento das organizações (muçulmanos ou não) como pessoas morais. Contudo, esta separação não é tão rigorosa desde que se trate de comunidades ou instituições islâmicas, como se testemunha com os vakuf (estabelecimentos aos quais “lugares de oração” ou mesquitas estão ligados) que, à evidência possuem uma personalidade jurídica. Por outro lado, inúmeras mesquitas são construídas por todo o país, enquanto que as comunidades cristãs não têm o direito de construir igrejas. Os raros conventos, igrejas e cemitérios históricos são frequentemente pilhados e destruídos. Para poder transformar, renovar ou utilizar velhas igrejas e os anexos, é necessária uma permissão, cuja obtenção é constantemente adiada até que os edifícios se degradam completamente. O caminho para fundar uma nova 61
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comunidade cristã revela-se também tortuoso. Por exemplo, a comunidade católica alemã de S. Paulo, fundada em Istambul em 1985, teve de se constituir, perante o Estado, como uma sociedade anónima. Mas como nenhum padre, ou pastor trabalha para uma sociedade anónima, é o Consulado Geral da Alemanha que oficialmente os emprega como pessoal administrativo. Localmente, algumas comunidades fazem figura de organizações culturais perante a lei e os eclesiásticos entram no país como turistas ou homens de negócios. Outro obstáculo à vida dos cristãos na Turquia: a interdição de constituir a formação eclesiástica. O último seminário da Igreja Grega Ortodoxa fechou as portas em 1971 na ilha Heybeliada – Halki, em grego – que faz parte das ilhas dos Príncipes. Também ali, o governo fez valer o facto de que o sistema laico do país coloca a educação sob o controlo do Estado. Foi, pelo menos, a razão invocada para interditar as escolas superiores “privadas” (religiosas). Este princípio aplica-se, particularmente, às minorias cristãs não reconhecidas, que não podem construir locais de oração nem abrir escolas confessionais ou seminários para formar o clero. Em contrapartida, as autoridades turcas (a Diyanet) apoia generosamente as faculdades teológicas muçulmanas do Estado(!). Se bem que o artigo 24 da Constituição turca faça menção da liberdade religiosa, os cristãos da Turquia debatem-se, diariamente, com numerosas oposições e discri-
minações. Um código cifrado nos Bilhetes de Identidade e nos passaportes turcos permite identificar o seu possuidor como cristão. Os cristãos não estão representados no Parlamento turco. Dificilmente podem aspirar a uma grande carreira militar ou administrativa. Aquele que se declara abertamente como cristão arrisca-se a perder o emprego. A fobia da ameaça – o perigo de ver os lobies cristãos, judeus, gregos ou arménios derrubar o Estado – constantemente atiçadas pelos políticos e também tem provocado, no passado, numerosas explosões de violência. Tessa Hofmann organizou uma lista impressionante de crimes cometidos contra os cristãos desde 2004. Em 2007, três dentre eles ainda foram traiçoeiramente assassinados em Malatya29. Uma fatwa (advertência jurídica) publicada recentemente pela Diyanet constitui, no entanto, um passo encorajador no sentido da liberdade religiosa: ela permite oficialmente a um islâmico converter-se a outra religião30. Graças a este texto, os direitos dos convertidos ao cristianismo foram consideravelmente reforçados. Esta fatwa baseia-se no verso 137 da Surata 4 – As mulheres (Na-Nisa) – que declara: “Quanto àqueles que crêem e, em seguida, negam, voltam a crer e depois renegam, aumentando assim a sua descrença, é inadmissível que Deus os perdoe […]”ii. O texto é interpretado desta forma: a pena de morte por apostasia não está prevista no Corão, senão seria impossível que alguém retornasse à fé e se desviasse uma segunda vez, como o verso descreve. Por conseguinte, segundo a fatwa, a apostasia não será puni62
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da nesta Terra, abstracção feita do julgamento divino. Depois de uma conversão, é até mesmo possível mudar de nome. O futuro nos dirá se este texto terá repercussões sobre os cristãos. Conclusão A História tem mostrado que a intolerância muçulmana-nacionalista turca constitui uma associação político-religiosa fatal, à qual os cristãos deste país têm dificuldade em escapar. Até hoje, a política religiosa turca está submetida apenas à influência muçulmana. A existência das Igrejas e comunidades cristãs não é juridicamente tida em conta uma vez que estão privadas de estatuto jurídico. Esta forma de proceder é inaceitável e incompreensível. Sobretudo quando se pensa que o patriarcado ecuménico dos gregos ortodoxos goza da cidadania no país, desde há cerca de 1700 anos. A situação dos cristãos arménios e sírios reconhece-se idêntica. Outras Igrejas cristãs são igualmente “desprovidas de direitos”. O governo parece aplicar uma estratégia dupla: exteriormente, manifesta uma certa tolerância para com as Igrejas cristãs, mas, na realidade, estas são oprimidas por diversos métodos de discriminação velada e enfraquecidas por um quadro jurídico confuso e até, por vezes, contraditório. Isso dá a impressão de que o Governo
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procura como no passado “desgastar” as minorias cristãs para que possam deixar a Turquia. Deverá o cristianismo desaparecer completamente do país? É deste forma que se quer resolver a problemática jurídica das religiões? Como explicar doutra forma que se impeça a formação do desenvolvimento teológico cristão e a autorização de construir igrejas cristãs? Normas jurídicas fundamentais tais como a paridade e a reciprocidade ainda não se aplicam às minorias cristãs do país. Neste contexto, torna-se evidente que se a Turquia quer aderir à Europa, deve evoluir no sentido de uma sociedade civil pluralista, no seio da qual as diferentes culturas religiosas e étnicas não sejam apenas toleradas, mas tomem uma parte activa na vida pública. Isso acontecerá algum dia? Eis a grande questão.
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* Responsável dos arquivos e encarregado do curso de História das Religiões e das Igrejas na Theologischen Hochschule de Friedensau bei Magdeburg, na Alemanha. Notas 1. Cf. Wilhelm Baum, Die Türkei und ihre christlichen Minderheiten – Geschichte, Völkermord, Gegenwart, Kitab Verlag, Klagenfurt-Viena, 2005, p. 178. 2. No que diz respeito ao número de vítimas arménias, ler Gerayer Koutcharian, “Der Völkermond an der Armeniern (1915-1917”, in Verfolgung, Vertreibung und Vernichtung der Christen im Osmanichen Reich 1912-1922, von Tessa Hofmann. LIT-Verlag, Munique, 2004, p. 69 3. Tessa Hofmann: “Wer in der Türkei Christ ist, zahlt einem Preis dafür…” in Märtyrer 2007 – Das Jahrbuch zur Christenverfolgung heute, Max Klingberg e outros, Verlag für Kultur und Wissenschaft, Bona, 2007, p. 156. 4. Ler a este respeito Gerd Stricker, “Die Türkei und die Europäische Union”, in Glaube in der 2. Welt Ökumenisches Forum für Religion und Gesellschaft in Ost un West 32 (2005), Heft 6, p. 20, 21. 5. Ler a este respeito, Udo Steinbach, “Die Rolle des Religiösen in Gesellschaft und Politik ausgewählter Länder des Nahen ubd Mittleren Ostens” in Das Christliche Menschenbild in Gesellschaft und Politik (Schriftenreike des Instituts für vergleichende Staat-KircheForschung, Heft 25, Berlim, 2008, p- 117-131. 6. Ver Binnaz Toprak, “Religion als Staatsideologie in einem laizistischen Staat – Die TürkischIslamische Sunthese”, in Zeitschrift für Türkeistidien 1 (1989), p. 55-62. 7. Hans-Lukas Kieser “Die Türken ais Ur-Europäer”, in Glaube in der 2. Welt. Ökumenisches Forum für Religion und Gesellschaft in Ost und West 32 (2005), Heft 6, p. 22-25. 8. Sobre a obtenção da dignidade espiritual de califa, ler Klaus Kreiser/Christoph K. Neumann, Kleine Geschichte der Turkei, Reclam, Stugarda, 2003, p. 87,113; Josef Matuz, Das Osmanische Reich. Grundlinien seiner Geschichte, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 4º edição, Darmstadt, 2006, p. 82-83. 9. Günter Seufert/Christopher Kubaseck, Die Türkei – Politik, Geschichte, Kultur, Verlag C. H. Beck, Munique, 2004, p. 87. 10. Kreiser/Neumann, op. cit., p. 411. 11. “Wie muslimisch ist die Türkei?” , in Ost-West. Europäische Perspektiven 8 (2007), p. 264. 12. Geschichte der Türkei, Verlag C. H. Beck, 3. Munique, 2003, p. 99-102; ver também Güzelmansur, p. 264-68. 13. Ver sobre este assunto Christian Rumpf, “Das Präsidium für Religionsangelegenheiten” , in Zeitschrift für Türkeistudien 1 (1989) p. 21-33 14. Güzelmansur, p. 266. 15. Toprak, p. 55. 16. Ver Hans Heinz/Daniel Heinz, Das Christentum begegnet dem Islam – Eine religiöse Herausforderung, Advent-Verlag, Zurique, 2007, p. 95-104. O fundamentalismo islâmico tal como é hoje praticado no Irão ou na Arábia Saudita, tem traços totalitários e caracteriza-se pelos seguintes pontos: 1. Retorno ao Corão como fonte de crença não modificada 2. Culto do Islão primitivo e da união (umma) da sociedade islâmica. 3. Introdução da Sharia (direito 64
Daniel Heinz islâmico) para reger todos os aspectos da vida. Ver Monika Tworuschka/ Tworuschka (éd.), Religionen der Welt. Grundlagen, Entwicklung und Bedeutung in der Gegenwart, Orbis Verlag, Munique, 1996, p. 185-87. É justamente nesses países que os cristãos sofrem a maior opressão. Sobre os objectivos do islamismo fundamental ler Daniel Pipes, “Der Islam fordert Europa”, in Glaube in der 2. Welt. Ökumenisches Forum für Relígion und Gesellschaft in Ost und West 32 (2005), Heft 1, p. 17-20. 17. O partido conservador islâmico d’Erdogan (AKP) fez avançar as reformas governamentais visando a desejada adesão da Turquia à U.E. Assim, apresentou ao Parlamento um projecto de modificação – exigido pela U.E. – do parágrafo 301 do Código Penal (apoiado sobre “o descrédito da identidade turca e da Turquia”), muito contestado e que, no passado, causou processos aos especialistas dos direitos do homem e aos autores deste país. Todavia não é apenas a questão do Recep Tayyip Erdogan suprimir pura e simplesmente este parágrafo tristemente célebre. Ler sobre este assunto, Hofmann, Wer in der Türkei Christ ist, p. 179-80. Por fim o AKP sofre uma pressão cada vez mais forte após a sua decisão contestada de levantar a interdição do uso do véu. Critica-se o seu comportamento antilaico. O Tribunal Constitucional, marcado pelo kemalismo, que é a favor d uma estrita separação entre o Estado e a religião, faz pressão e introduziu um procedimento de interdição contra este partido. 18.Seufert/Kubaseck, p. 140 19. “Aos olhos de um muçulmano, quer viva na Turquia ou em Marrocos, o mundo é profundamente pintado pelo islão. Ele não se pode simplesmente desfazer do Islão para se submeter a uma modernidade marcada pelo Ocidente. Os muçulmanos devem tentar de uma forma, ou de outra tornar compatível a modernidade marcada pelo Ocidente com o Islão e os seus princípios”. (Steinbach, Die Rolle des Religiösen, p. 124). É por isso que o secularismo moderno tem um sentido negativo para os muçulmanos. Aos seus olhos, ele minimiza, por vezes elimina o papel maior da religião na sociedade. O cristianismo aparece como uma religião “na reforma” sem influência consequente sobre a sociedade. Os muçulmanos dificilmente podem conceber uma sociedade que envia a religião para a esfera privada. 20. Seufert/Kubaseck, p. 128. 21. Steinbach, Geschichte der Türkei, p. 100. 22. Hofmann, Wer in der Türkei Christ ist, p. 184. 23. Para uma definição do termo “millet”, ler Edgar Hôsch/Karl Nehring/Holm Sundhaussen, Lexikon zur Geschichte Südosteuropas, Böhlau-Verlag, Viena-Colónia-Weimar, 2004, p. 442, 443. 24. A diversidade dos significados do termo “millet” no decurso da história é um assunto complexo. Ver Béatrice Hendrich, Milla – millet – Nation: Von der Religionsgemeinschaft zur Nation? Über die Veränderung eines Wortes und die Wandlung eines Staates, Verlag Peter Lang, Francoforte/Main 2003. O significado primeiro de millet como grupo religioso distinto tornou-se problemático quando os vizinhos europeus se puseram a raciocinar em termos de Estados-Nações, coisa de que as autoridades otomanas aparentemente não se deram conta. Assim os dirigentes cristãos eram sempre chamados “dirigentes da cristandade” porque, no pensamento otomano, a religião revestia-se de uma muito maior importância do que a origem étnica. B. Hendrich nota que “no século XIX, ou mais tarde, muitos dos assuntos otomanos classificavam-se não apenas em função da sua religião, mas também de uma nação ou de uma etnia. Em consequência, o antigo modo de pensar já não reflectia a realidade social” (op. cit., p. 60). Ler também a nota n° 25.25. “Toleranz im Osmanischen Reich?” , in Glaube in der 2. Welt. Ökumenisches Forum für Religion und Gesellschaft in Ost und West 32 (2005), 1, p. 28. 65
Daniel Heinz 25. “Toleranz im Osmanischen Reich?” in Glaube in der 2. Welt. Ökumenisches Forum für Religion und Gesellschaft in Ost und West 32 (2005), Heft 1, p. 28. 26. Assim as jovens Igrejas protestantes, como os Adventistas do Sétimo Dia – para apresentar apenas um exemplo –, cujas primeiras missões se iniciaram em 1890 na Era Otomana, não tiveram desde o início, de forma alguma, a possibilidade de adquirir um estatuto jurídico, porque não pertencem a nenhum millet. Ler Daniel Heinz, “Adventisten im Osmanischen Reich – Ein Fallbeispiel für islamische Intoleranz”, in For You Have Strengthened Me – Biblical Theological Studies in Honor of Gerhard Pfandl in Celebration of His Sixty-Fifth Birth (Festschrift), Martin Pröbstle édit., Seminário de Bogenhofen, St. Peter am Hart, 2007, p. 453-78 27. Christliche Minderheiten in der Türkei – Ein Überblick, Zentrale Dokumentationsstelle der Freien Wohlfahrtspflege für Flüchtlinge (ZDWF-Schriftenreihe Nr. 50), Bona, 1993, p. 14. 28. Para mais detalhes sobre este assunto, ver Baum, p. 183-91; Hofmann, Wer in der Türkei Christ ist,p. 166-84; Yonan: p. 19-38. 29. Wer in der Türkei Christ ist, p. 176-178. 30. Informação da APD (serviço de imprensa adventista), Basileia, 121/2008. A notícia em alemão também está acessível na internet: www.stanet.ch/APD/news/1745.html Contrariamente ao que se passa na Turquia, o governo iraniano gostaria de criar uma lei instituindo a pena de morte para aqueles que se desviaram do Islão. i. Tradução dos nomes dos Partidos tirada dos Policy Papers, nº 10, “La Turquie aux portes de l’Europe” de Jean Marcou et Deniz Vardar, Outubro de 2004, p. 10,11. ii N.D.T. Tradução do verso extraído do seguinte endereço electrónico www.cpihts.com/PDF/ Alcorão.pdf.
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Nacionalismo e religião: o caso francês Émile Poulat*
O nacionalismo francês, é uma longa história com raízes profundas. É também, por isso, uma história complicada. É, talvez, igualmente, uma história ultrapassada, uma página virada, da história de França, restando, apenas, uma parte importante da sua herança. O caso complica-se ainda mais desde que se dê atenção às palavras que designam esta história ou a contam e aos embaraços da linguagem donde derivam. Nação surge desde o século XII, mas para designar grupos linguísticos no seio da Universidade de Paris. No início da Revolução Francesa (1798) a palavra passou a designar a federação das províncias nas fronteiras do país que ainda não eram as “fronteiras naturais” do Hexágono. Um dos primeiros actos será o “colocar os bens do clero à disposição da Nação”. Neste sentido, ao longo do século XIX, a Nação vai distinguir-se do Estado e até mesmo opor-se-lhe. Um século ainda e o primado passará para a República, transcendendo o Estado e as colectividades territoriais. Mas nação encontra um forte concorrente em pátria, que apareceu no século XVI por oposição a país (em alemão Vatreland, por oposição a Heimat). O “país” é a freguesia, a
aldeia, o pequeno país fechado sobre si mesmo que vai, lentamente, descobrir a grande pátria. É dessa forma que o camponês se torna patriota, assim como o patriota, olhando para além das fronteiras, se afirma nacionalista: temos compatriotas, não “conacionalistas”. A pátria integra, a nação separa. Patriota e patriotismo, formados no século XVIII, têm o seu início sob a acção da Revolução Francesa, conotados com a “esquerda”. O aparecimento da III República, em 1870, e o aspecto anticlerical do novo regime farão com que o patriotismo passe para a “direita”: a pátria é Joana d’Arc, assim como a República é a “meretriz”. O paradoxo da França e o ser um ramo dos povos indo-europeus, vindos em vagas sucessivas e integrados no cadinho das “fronteiras naturais” (mar, rio ou montanha, exceptuando o Nordeste): Celtas (que não foram os primeiros ocupantes), Gauleses, Romanos, Germânicos, Visigodos, Burgundos, etc., com, na periferia, a excepção basca. A França é um Estado fortemente centralizado desde há vários séculos, onde o provincianismo tem permanecido poderoso, onde o culto da língua francesa desde o Século XVII e o Cardeal Richelieu têm, desde há 67
Émile Poulat muito, coexistido com as línguas regionais, os dialectos e os patoás locais: é a escola de Jules Ferry e o serviço militar obrigatório que acabarão por triunfar sobre estas particularidades sem as eliminar. Ainda hoje permanecem vivas as línguas basca, da ocitânia, bretã, flamenga, alemã (Mosela), alsaciana e corsa. No século XVII a França será mesmo governada por uma rainha regente e um cardeal ministro italianos. Nos séculos XIX e XX a imigração não parou, seguida pela assimilação, até à última vaga actual, massiva e, por isso, criando problemas, de populações muçulmanos, além disso, heterogéneas. Toda a história interior da França se resume assim, na articulação desse centralismo (“os quarenta reis que Joana d’Arc (1412-1431) apelidada de a Donzela de Orléans, é uma heroína nacional francesa. Após fizeram a França”), perante as visões que ela teve, acreditou ser investida de o inimigo exterior, e das uma missão: libertar a França dos ingleses, a fazer suas particularidades irrecom que o Delfim Carlos VII subisse ao trono de dutíveis. Mas esta história França. Depois de alguns inícios triunfantes, foi é também subdeterminacapturada pelos burgonheses e vendida aos ingleses que a enviaram a um tribunal católico. Este da pela fractura, desde a condenou-a à morte à ordem do rei inglês. Foi Revolução Francesa entre elevada ao papel de mártir em 1909 e canonisada “as duas Franças”: a França em 1920, sob o pontificado de Bento XV. católica e a França laica, a Miniatura datada da segunda metade do século França de Joana D’Arc e a XV, propriedade do Centro Histórico dos Arquivos França de Voltaire, as raízes Nacionais de Paris. cristãs da França e as Luzes Foto Wikipédia. para as quais não há nem a história nem a religião, mas a razão que é o nosso código. As raízes cristãs da França – fontes de um debate apaixonado peran68
Émile Poulat te o projecto da Constituição Europeia e o seu preâmbulo – remonta a um passado bem antigo: ao baptismo de Clovis em 496, que fez desse rei – católico num ambiente ariano – o “filho primogénito da Igreja”. Esse não foi um acto de vassalagem, mas um serviço voluntário assumido com toda a independência após uma missão recebida directamente do Céu: “Gesta Dei per Francos”, os francos são os O palácio Bourbon, em Paris, foi construído missionários de Deus. O Reino em 1722 pela duquesa Louise-Françoise de da França não cessa de afirmar Bourbon, filha legítima do rei Luís XIV e da senhora de Montespan. Foi ocupado pelo a sua posição singular entre “o povo durante a Revolução Francesa e pela Sacerdócio do Império”, sem Assembleia Nacional, em 1827. Napoleão I todavia escapar à sua querela, modifcou-lhe a fachada e enriquece-a com que era a da supremacia; ou doze colunas de estilo grego semelhantes o poder temporal, ou o poder às da Igreja de la Madeleine. Hoje o palácio abriga o Parlamento francês, que é constituído espiritual. pela Assembleia Nacional e o Senado. O primeiro acabará por pre- Foto www.gothere-guide.com valecer sobre o segundo. Para A Revolução e o Império eram o papado, o advento da Europa herdeiros deste nacionalismo condas nações marca o fim do sonho quistador e laicizado. Napoleão I da cristandade medieval. Os intesonhará com a “Grande Nação”, resses nacionais ultrapassam a uniincluindo a Bélgica a Renânia e para dade religiosa. O papa Leão XIII além dessas fronteiras históricas, (1878-1903) relança a ideia de uma unificando a Europa – Alemanha, ordem pública internacional crisEspanha, Itália – sob a sua autoritã: o seu pensamento está na oridade. gem da democracia cristã e dos partidos de inspiração democrata No século XIX, a França deveria cristã, principalmente na Europa rever as suas ambições. O seu nacioe na América Latina. Esta corrennalismo tornar-se-á defensivo: por te triunfará em França em 1944 um lado contra os poderes exteriores depois da Libertação com o M.R.P. que a ameaçam, tendo à cabeça a (Movimento Republicano Popular), Grã-Bretanha e a Alemanha; por de uma forma efémera, demonsoutro lado contra o perigo interior, tração política de que em França o protestante, judaico e “estrangeiro”. nacionalismo era a barreira contra a Charlis Maurras (1868-1952) tornarqual se quebrou o ideal internacio-se-á o chantre do “nacionalismo nal da Santa Sé e da Democracia integral” ao serviço do qual coloCristã. cará o seu movimento: A Acção 69
Émile Poulat Francesa. O nacionalismo francês reencontra uma dimensão expansionista, principalmente, com a colonização da África, mas também na Ásia e na Oceânia, em nome da “civilização”, herança de uma mistura de cristianismo e de Luzes. Forçoso é constatar que as missões católicas deram origem a Igrejas daí em diante independentes, ao passo que o colonizador teve de se retirar deixando situações difíceis. O nacionalismo francês atravessa, assim, toda a história da França e remonta as suas origens até mesmo quando ainda não tinha esse nome. As suas “raízes cristãs” tiveram durante muito tempo as suas credenciais de nobreza. Desde então, o seu combate em duas frentes tem duas faces: por um lado, para responder à sua “vocação divina” e assegurar no mundo a sua posição eminente; por outro para lutar contra todas as forças que se declaram
contra esta vocação, sem a renegar, mas laicizando-a**. Nascido de uma iluminação mística, este nacionalismo submergiu-se nas paixões políticas. E está hoje vazio da sua substância e da sua energia, sob a influência da secularização e da actual mundialização europeia e também no momento em que a tradição política de “defesa nacional” venceu. Não subsiste mais do que de uma forma residual na extrema-direita do xadrez político ou na reacção de “soberania” perante a unificação da Europa. Poderá dizerse que o seu último refúgio seja o desporto, que o fundador dos Jogos Olímpicos, Pierre de Coubertin, considerava em 1894, como uma “nova religião”.
* Professor Universitário, director de investigação no CNRS, França ** Jocques Marx, Le Péché de la France, Surnaturel et politique au XIXe siècle, Edições da ULB Espaces de Liberté, col. “Laïcité”, Bruxelas, 2005, 442 pág. (prefácio de Émile Poulat).
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A dimensão religiosa do nacionalismo – o estudo de um caso: os Países Baixos Reinder Bruinsma*
A religião tem sido sempre um elemento fundamental no desenvolvimento das nações. Hoje, quando os problemas surgem nos Estados-Nação por questões étnicas, com muita frequência ele desempenha aí um papel importante. Religião e nacionalismo podem formar um cocktail explosivo, como se tem constatado no decurso da História. No início dos anos 1990, quando a ex-Jugoslávia se desmembrou, novos Estados, que envolviam fronteiras étnicas, não tardaram a surgir cada uma com uma religião dominante: católica para a Croácia e a Eslovénia, predominância muçulmana para a Bósnia-Herzegovina e ortodoxa para a Sérvia. Os conflitos na Irlanda do Norte permanecem igualmente bem presentes nas memórias: ainda nos lembramos do ódio que opunha os católicos e os protestantes de Ian Paisley se tem alimentado da diferença entre as suas respectivas tradições religiosas e as ideias que os dois campos faziam da futura nação. Igualmente, quando as Ilhas Fiji conheceram graves perturbações políticas, há alguns anos, a instabi-
lidade política veio, em grande parte, do facto de que uma grande percentagem da população (perto de um terço) ser indiana e adepta da religião hindu, e os “verdadeiros” fijianos serem na maioria católicos. Também no Sudão, as questões étnicas e religiosas têm contribuído, largamente, para o conflito permanente entre o Norte e o Sul, que eram um muçulmano e o outro cristão. Ambos experimentaram enormes dificuldades para encontrar um acordo de paz (concluído no início de 2005) e muitos pensaram que nunca o conseguiriam. Estes poucos exemplos escolhidos ao acaso mostram-nos como as nações são influenciadas pela religião. Bem entendido, outros factores, não religiosos, entram em jogo quer na formação, quer no desmantelamento das nações. Contudo, numerosos exemplos, para além dos citados acima, poderiam demonstrar que a religião tem sido, frequentemente, o principal detonador. E não falamos aqui de um passado longínquo, nem de uma ameaça à paz num outro continente para além do nosso. Ainda hoje, na Europa laica, o factor religioso poderá criar sérias tensões – ou pior ainda – pelo menos em certos 71
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por exemplo. Os traços que nos atlas definem as fronteiras dos cinquenta e três Estados soberanos do continente africano são muito recentes: numa carta datada de 1900, não se encontra senão uma pequena parte. Foi apenas quando o processo de descolonização se acelerou (nos anos 1950 e 1960) que as fronteiras nacionais actuais foram desenhadas e que a maior parte dos nomes actuais dos Estados africanos apareceram1. Isso é igualmente verdadeiro na América do Sul: um mapa desta região antes dos primeiros decénios do século XIX mostrar-nos-á unicamente as esferas de influência dos diversos poderes coloniais. A maior parte das nações modernas nasceram no decurso do século XIX. A criação dos Estados Unidos da América remonta apenas a 4 de Julho de 1776, data na qual os representantes de treze Estados assinaram a Declaração de Independência. E será necessário esperar ainda muitos anos antes que os Estados Unidos cheguem à sua composição actual. Por outro lado, pode dizer-se que há nações há milhares de anos. Alguns especialistas avançam mesmo que o conceito de nação é, de facto, “natural”2 e que já existiam nações na Antiguidade. Este assunto foi objecto de um aceso debate entre os “modernistas” por um lado e os “perenialistas” por outro. Os primeiros, como John Breuilly e Eric Hobsbawm, admitem algumas excepções, tais como a Inglaterra, os Países Baixos, a Sérvia, Castela, talvez a França e a Irlanda3, mas mantêm que quase todas as nações são um fenómeno contemporâneo
Guilherme de Orange-Nassau (15331584). Foi o chefe da revolta dos Países Baixos espanhois contra o rei de Espanha Filipe II e que levou à independência dos Províncias-Unidas. Retrato realizado por Adriaen Thomasz Key cerca de 1575. Foto Wikipédia
países. O presente artigo consagrado aos Países Baixos mostrará, a partir deste exemplo, o papel fundamental desempenhado no passado pela religião no desenvolvimento desta nação e a sua influência hoje no debate sobre o futuro da nação e da consciência nacional do povo holandês. Nação, nacionalismo e religião Poucos entre nós compreendem que o Estado-Nação moderno, tal como o conhecemos hoje na Europa, é um fenómeno relativamente novo. Isso é igualmente verdade para outros continentes, como a África, 72
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posterior ao Século das Luzes4. Esta opinião é violentamente contestada pelos perenialistas, como Adrian Hastings e outros, que afirmam que muitas nações são bem mais antigas. Hastings acredita que antes da nossa era os reinos do Antigo Testamento como a Judeia, mas também Samaria e o Egipto e ainda a Arménia e a Etiópia, já apresentavam as características principais de uma nação: diz também que um certo número de países europeus – principalmente a Grã Bretanha e os Países Baixos – eram verdadeiras nações bem antes do que os modernistas pretendem5. Ele estima que se pode definir uma nação seguindo critérios menos estritos do que aqueles que os modernistas avançam e, por consequência, encontrar exemplos de nações talvez já na Europa da Idade Média, certamente nos séculos XVII e XVIII. Os modernistas respondem, com razão, parece, que os perenialistas têm a tendência de confundir etnicidade e sentimento de pertença a uma nação6. Mas todos concordam em dizer que a nação moderna é uma “invenção” europeia. Desde a Era Contemporânea que existem nações (com algumas raras excepções) onde a consciência nacional não é limitada a algumas classes mas partilhada por todo – ou quase todo – o povo de um Estado, mesmo se este é constituído por diversos grupos étnicos. A maior parte dos especialistas acabam por dizer que a língua e a religião, têm, de diversas formas, desempenhado um papel
preponderante na formação das nações. Segundo Adrian Hastings, a religião cristã tem estimulado o desenvolvimento de uma consciência nacional, muito mais, do que as outras religiões do mundo. Ela adianta que o aparecimento da literatura na língua popular, e em particular a publicação e a grande difusão da Bíblia traduzida na língua falada pelo povo, foi um factor essencial na construção das nações: o exemplo do reino de Judá, tirado do Velho Testamento, devia suscitar as esperanças do povo. Hastings cita a Inglaterra, como o principal exemplo7. A criação de uma Igreja nacional e a harmonização dos textos litúrgicos traduzidos na língua falada por todos – como o Book of Common Prayer na Inglaterra, contribuíram, de uma forma significativa para o processo de formação da nação. [A província de Skåne, no sul da Suécia, constitui um outro exemplo interessante. Mostra como harmonizando os textos religiosos na língua vernácula, as autoridades podem reforçar o sentimento de consciência nacional. Esta província era dinamarquesa até ter sido ligada à Suécia, em 1658, depois de uma série de guerras. Os habitantes de Skåne não aceitavam a vitória dos suecos, e estes últimos apressaram-se a dar vida à Igreja tão sueca quanto possível. Este era para eles um dos meios mais seguros de fazer nascer e reforçar uma consciência nacional sueca nessa parte do país8.] Numa primeira abordagem, poder-se-á acreditar que numa boa parte do mundo, a religião desempenha hoje um papel menos importante de que no passado, na consciência 73
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nacional. No Ocidente laicizado, tem o aspecto de ser cada vez mais marginalizada e privatizada. Cada vez mais é posta à parte da política, da economia, da ciência, etc., e é relegada para a sua esfera própria. Em consequência, as convicções religiosas, os envolvimentos religiosos e as instituições vêem a sua importância social declinar9. Alguns pensam mesmo que o nacionalismo poderia ser considerado como uma religião laicizada10. Com efeito, pode pôr-se em dúvida que a secularização tenha modificado a paisagem política em muitos países do mundo. Estados tão diferentes como a França e a Turquia orgulhamse de ser hoje nações completamente laicas. Muitos outros marcaram bem a separação total entre a Igreja e o Estado na sua Constituição. Na Escandinávia, o conceito de Igreja e de Estado foi praticamente abandonado11. E, assim, as tradições religiosas permanecem por vezes bem fortes mesmo em ambientes muito laicos. Por exemplo, nos Estados Unidos, se bem que o princípio de uma separação total entre a Igreja e o Estado seja estritamente aplicado hoje, a religião continua, de forma evidente, a intervir em quase todos os domínios da vida pública. Trata-se, sem qualquer dúvida, de um aspecto que os candidatos à eleição presidencial não se podem permitir ignorar. Seria preciso ser verdadeiramente ingénuo para subestimar a influência dos lobbies religiosos nacionais em Washington12. Por outro lado, é necessário dizer que se, no clima pós-moderno actual, o interesse pela religião institucional
regrediu consideravelmente, a atracção pela espiritualidade e as formas de religião não institucionalizadas permanece viva e até mesmo tem progredido. Excluir as noções religiosas e filosóficas da política é cada vez menos entendido como uma prova de intransigência. Pode notar-se que muitos grupos religioso fundamentalistas não param de dar a conhecer os seus avisos sobre as questões étnicas e que utilizam todos os meios de pressão política à sua disposição e todos os media ao seu alcance – e por vezes outros meios bem mais discutíveis – para fazer valer as suas ideias. Em muitos casos, os grupos religiosos fazem, parece, prova de uma ainda maior determinação do que no passado para se fazerem ouvir e para fazer valer os seus pontos de vista. A isso, acrescenta-se, bem entendido, o facto de que os muçulmanos participam cada vez mais, no debate político. Quando há menos de um século, a maior parte dentre eles viviam em ambientes políticos que tornavam o aparecimento de nações muçulmanas improvável, hoje, a situação mudou completamente. Estamos perante uma nova realidade extremamente complexa. Assim como a religião cristã contribuiu para favorecer a distinção entre dois mundos (o de Deus e o da Terra) que estão muitas vezes em interacção, mas permanecem separados, a concepção muçulmana do mundo aceita muito menos o dissociar a fé e a vida pública13. E o facto de que milhares de muçulmanos tenham emigrado para países de tradição cristã teve 74
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um impacto considerável sobre a consciência nacional nesses países. Até que ponto esses emigrados, cuja fé difere totalmente da da maioria, podem realmente, fazer parte dessas nações? Que influência advém de tão numerosos elementos “estranhos” como tal, sobre a consciência nacional da população indígena?
Estados Gerais. Durante a Guerra dos Oitenta Anos (1568-1648), uma parte desses territórios permaneceu ocupado pela Espanha até que a Paz de Vestefália pôs termo ao conflito, em 1648. A República das Sete Províncias Unidas, tendo conquistado a sua independência, tornou-se, então, numa grande potência colonial, que englobou durante muito tempo o actual território belga. De 1795 a 1815, os Países Baixos foram fortemente submetidos à influência da França e chegaram mesmo a fazer parte do Império Francês durante um breve período (18101813). Depois da retirada das tropas napoleónicas, em 1813, a dinastia de Orange, que tinha dominado a região antes do período francês, regressou aos Países Baixos e retomou o poder. Em 1815, o Reino dos Países Baixos foi fundado e Guilherme I tornou-se o primeiro soberano. Em 1830, a Bélgica sublevou-se e obteve a sua independência, até que em 1890 a união pessoal com o Luxemburgo (os dois países tinham o mesmo monarca) chega ao fim. A partir de 1830 o território dos Países Baixos, praticamente, não evoluiu16. As razões que explicam a secessão dos territórios do Sul são múltiplas, mas o aspecto religioso deve, sem qualquer dúvida, ter-se em linha de conta: a Bélgica era – e permanece – de predominância católica, enquanto que a população dos Países Baixos era maioritariamente protestante17. Até que, há algumas dezenas de anos, a vida nos Países Baixos estava, em grande parte, dividida em diferentes “pilares”. Ainda hoje, a educação está segmentada em função
O papel da religião na história dos Países Baixos Guardando na mente estas observações gerais, examinemos de mais perto o caso de uma nação em particular e vejamos que papel desempenhou a religião na sua História. Bem entendido, não podemos permitir-nos entrar nos detalhes. Segundo Hastings, a Holanda14 é, depois da Inglaterra, uma das nações mais antigas do mundo15. Dito isto, é necessário reconhecer que o actual reino dos Países Baixos é bem diferente do que era antes do século XIX, quer seja em termos de espaço ou de organização. Na sua origem, o Estado holandês era constituído por um certo número de províncias autónomas (a Holanda, a Zelândia, a província de Utreque, a Frísia, Overijssel e a Gueldra); a Holanda era a mais importante. Esta federação era encimada por um governo, os Estados Gerais, mas dispondo de uma grande autonomia. O território de Drenth dependia um pouco mais directamente dos Estados Gerais, assim como certas regiões que correspondem, mais ou menos, à actual província de Brabant estavam sob a administração directa desses 75
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das diversas tradições religiosas, e isso bem mais estritamente do que na maior parte dos países. A organização – única no seu género – da rádio e da televisão públicas provém, também ela, dos vestígios da pilarização religiosa (em holandês: verzuiling). É necessário dizer que durante uma boa parte do século passado, a sociedade holandesa foi caracterizada pela pilarização e pela forte influência dos partidos políticos que se definiam pela sua religião. Ao longo de toda a História, a religião tem, com efeito, contado muito na sociedade e na política holandesas. No século XIX, a emancipação completa dos protestantes ortodoxos, que se separaram da Igreja nacional para fundarem as suas próprias Igrejas, ocupou a cena política durante vários anos, um dos objectivos do seu combate era conseguir que o governo subvencionasse completamente os estabelecimentos educativos de todas as confissões religiosas18. Poder-se-iam citar muitos outros casos em que a religião teve impacto sobre a política. Depois dos Países Baixos terem adoptado o calvinismo, no século XVI, as querelas religiosas dos primeiros decénios do século XVII causou perturbações políticas muito sérias. O debate teológico travou-se em redor do papel da vontade humana no processo da salvação. Os discípulos de Armínio, ou arminianos, insistiam na importância da escola do Homem e no poder da sua vontade, enquanto que Gomarus e os seus adeptos, mantinham que a salvação dependia unicamente da vontade soberana de Deus: os que tinham sido predestinados para serem 76
salvos acederiam à eternidade, e os que não tinham sido eleitos seriam condenados para sempre. Os arminianos eram chamados remonstrantes e os gomaristas contra-remonstrantes.Acontrovérsia teológica que os opunha tornouse num conflito político sangrento entre o príncipe Maurício de Nassau, um dos filhos de Guilherme de Orange e leal contra-remonstrante, e Johan Oldebarnevelt, o mais alto funcionário provincial, pertencendo ao campo dos remonstrantes e que acabaria a sua vida no cadafalso19. Se a religião tem tanta importância na vida pública holandesa, não é de admirar: quando o país se bateu contra a Espanha para ganhar a independência (durante a Guerra dos Oitenta Anos) isso tratava-se muito mais de um combate pela liberdade religiosa do que uma luta pela liberdade política. Para Guilherme de Orange, o “pai” da Nação holandesa, a religião revestia-se de uma importância capital. Nascido numa família católica, foi marcado, muito cedo, pela influência luterana. Mais tarde, identificou-se com a religião reformada, se bem que a data da sua conversão ao calvinismo seja incerta. Filipe II rei de Espanha, que governava também os Países Baixos, qualificava o príncipe de “refinado hipócrita”20 assim como Pierre Dathenus, uma figura maior do calvinismo, também não era muito elogioso em relação à vida religiosa de Guilherme: acusava-o de mudar de religião como quem muda de camisa21. Esta crítica não era, segundo parece, merecida. Contudo, podemos dizer que o
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dúvidas do ardor religioso que animou a guerra da independência e do contexto religioso do nascimento do Estado holandês como da sua consciência nacional, deveria estudar de perto o texto completo (quinze estrofes de oito versos cada) do hino nacional holandês, que parece mais cântico religioso do que um manifesto político. Antes de passar aos Países Baixos de hoje, resta acrescentar uma coisa: se a religião e os conflitos religiosos têm sido elementos recorrentes na História24, a tolerância religiosa tem sido, igualmente, uma das grandes características da Nação e tem conseguido, ao longo dos tempos, bastantes vitórias. Réplica de um navio de comércio da Companhia das Índias Orientais, no porto de Amesterdão. em 602, todas as companhias comerciais holandesas estavam agrupadas sob a Vereendigde Oostinsche Compagnie. o governo tinhalhes concedido o direito de soberania nacional e o monopólio do comércio marítimo. o seu poder económico consistia, sobretudo, em controlar a rota das especiarias que partia das Índias para a Europa. Foto Wikipédia
A actualidade: a religião e a consciência nacional holandesa Tão longe quanto remonta o sistema parlamentar, com os partidos políticos no sentido moderno do termo, as organizações políticas cristãs têm, geralmente, tomado uma parte essencial na vida política da sociedade holandesa. Desde a fusão em 1980, dos três principais partidos religiosos (um católico e dois protestantes) numa formação única, o CDA, este tem dirigido o Governo durante vinte dos últimos vinte e oito anos, em coligação, seja com os socialistas, seja com os conservadores. Actualmente (em Novembro de 2008), o chefe do Governo pertencente a este partido chama-se Peter Balkenende. Por sua vez, depois de um período de formação assaz longo, o Partido Trabalhista (o PvdA) aceitou unir-
envolvimento de Guilherme I em direcção à revolta contra a Espanha funda-se na convicção religiosa que, como príncipe de sangue nobre, tinha o Direito divino de conduzir a resistência armada contra a tirania. É fascinante constatar que ele encontrou uma justificação para o seu papel de chefe da rebelião contra os espanhóis, na teoria calvinista do Direito de resistência ao magistrado tirânico22. Se alguém ainda tem 77
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-se à coligação governamental, mas faltava um terceiro partido para ter a maioria (o Parlamento tem 150 lugares). A grande consternação de muitas pessoas é um partido de predominância evangélica, o ChristenUnie, que ocupa seis lugares no Parlamento (mais três lugares do que os obtidos nas eleições de 2006) se ter unido ao gabinete, e o seu dirigente André Rouvoets, ter obtido um dos lugares de Vice-Primeiro-Ministro. O que resultou daí? Que as leis “liberais” sobre temas como a eutanásia, as drogas leves, o aborto ou o casamento entre homossexuais tenham sido revistas? Sem dúvida, muitos holandeses leigos pensaram que a sociedade tinha o dever de pagar um preço elevado pela intrusão não atendida do sentimento religioso ortodoxo e da ética tradicional no Governo, e reclamaram um regresso ao passado em muitos domínios. Outros, pelo contrário, acolheram como uma boa notícia a perspectiva de uma influência cristã mais marcada. Em todo o caso, todos chegaram a acordo para dizer que se iam colocar na ordem do dia assuntos religiosos que ainda não tinham (ou não muito) sido abordados há muitos anos: a abertura do comércio ao domingo, a falta de respeito na utilização do nome de Deus, a alusão a Deus na mensagem pronunciada cada ano pela Rainha para a abertura do ano parlamentar. Mas outras razões podem explicar porque é que a religião surge novamente em cena. Com efeito, desde que os Países Baixos têm uma longa tradição de acolher os
que pedem asilo e outros imigrantes, recentemente, os holandeses têm mostrado, claramente, que havia limites à sua vontade de autorizar sempre mais pessoas a entrar no seu país e de os deixar disputar-lhes os recursos nacionais. Pim Fortuyn, homem político tão brilhante como oportunista, soube fazer-se entender e dessa forma ganhar uma imensa popularidade, declarando que o país estava cheio e que as pessoas residentes nos Países Baixos se deviam comportar como os holandeses. Por detrás destas observações de ordem geral, a sua mensagem era muito explícita: o número sempre crescente de muçulmanos, e a sua vontade de viver de acordo com a sua própria cultura, constitui uma ameaça para a consciência nacional holandesa. No seu livro Contre l’islamisation de notre culture, Pim Fortuyn afirma que o Islão, na sua forma radical como nas suas variantes mais liberais, deve ser considerado como sendo o oposto do “nosso” modo de vida25. É impossível adivinhar que papel Pim Fortuyn poderia desempenhar se não tivesse sido assassinado em Maio de 2002, apenas algumas semanas antes das eleições nacionais parlamentares. Em 2002, os partidários de Pim Fortuyn (mas sem ele) fizeram a sua entrada no Parlamento com vinte seis membros, o que é um resultado notável para um novo Partido. Mas na ausência do seu líder, este Partido teve falta de coesão e foi rapidamente dissolvido. Os sentimentos para que Fortuyn tinha apelado, no entanto, não desapareceram. Em Setembro de 2004. Geert Wilders, um membro 78
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do VVD, facção conservadora do Parlamento, decidiu deixar o seu Partido e prosseguir a sua carreira como deputado independente. Tem sido notado que ele partilha as ideias de Pim Fortyun, segundo as quais, não só os Países Baixos devem fechar as suas fronteiras à maior parte dos imigrantes, mas que também os holandeses devem proteger a sua herança judaico-cristã e tomar medidas para limitar a influência da religião e da cultura muçulmanas. Geert Wilders, cujo Partido conta agora com oito deputados no Parlamento, estima que as mesquitas e os imãs são muito mais numerosos nos Países Baixos. Segundo ele, a dupla nacionalidade – de que beneficiam numerosos imigrantes turcos e marroquinos – e o lenço não deveriam ser autorizados, sem falar da burca, que deveria ser interdita. Ele chega a dizer que o Islão é uma religião “atrasada” e que, uma vez que o Corão incita à violência também deveria ser proibido. No início de 2008, o seu filme antimuçulmano Fitna, provocou uma revolta semelhante à do “affaire” das caricaturas dinamarquesas de Maomé em 2006. Felizmente, antes da sua apresentação, as autoridades holandesas fizeram todo o possível para explicar que o filme de Geert Wilders não representava a opinião do Governo holandês, mas que tinha sido autorizado em virtude da liberdade de expressão holandesa. Isto permitiu evitar que as perturbações levassem a manifestações internacionais contra as embaixadas e as empresas holandesas.
Menos extremista, mas potencialmente tão influente, Rita Verdonk, uma outra personalidade política, deixou, também ela, o VVD por causa das sua opiniões ainda mais radicais para este Partido, e foi excluída do seu grupo parlamentar em Setembro de 2007, mas escolheu conservar o seu assento no Parlamento, agora como deputada independente. Está actualmente em vias de formar um novo partido chamado Trots op Nederland (Orgulhosos dos Países Baixos). Na época em que ela era Ministra da Imigração, era muito admirada (sobretudo pelos antigos partidários de Pim Fortuyn) pelas suas tomadas de posição intransigentes em matéria de imigração. As sondagens mostram que ela teria um grande sucesso se as eleições fossem hoje. Quando ela fala em público sobre o Islão, as suas propostas são um pouco menos agressivas do que as de Geert Wilders, mas anuncia claramente que aqueles que vêm de uma outra cultura devem aprender, rapidamente, o que significa ser holandês e adaptar-se ao modo de vida holandês. Sem dúvida, hoje o debate ocupa-se, a maior parte do tempo, dos assuntos que não são abertamente religiosos, como a língua e a dupla nacionalidade, e todos os discursos a propósito da consciência nacional holandesa não falam de política interna. Muitas pessoas pensam que o alargamento e o aumento de poder da União Europeia são uma ameaça terrível para a consciência nacional, mesmo havendo ainda muito poucos elementos concretos para provar que o facto de um Estado pertencer à União Europeia 79
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se traduz, inevitavelmente, num abaixamento da lealdade nacional26. [É interessante notar que no debate sobre o projecto de Constituição Europeia, a questão de saber se se deveria, ou não, mencionar o nome de Deus ocupou um grande espaço. Este é um exemplo que mostra como o papel da religião ainda é importante.] Contudo, também não devemos subestimar a importância do religioso no debate sobre o presente e o futuro da Nação holandesa. Um estudo realizado no país, junto de jovens de todas as origens, revelou que apenas 5,7% dos jovens de origem holandesa consideram a religião como sendo o primeiro elemento da sua identidade. Entre os jovens não indígenas, esta percentagem é bem mais elevada: mais de 56% para os jovens de origem turca e quase 73% para os que são de origem marroquina. Em geral, parece estar-se de acordo, em dizer que há uma oposição completa entre o Islão e a verdadeira democracia. Para alguns, é uma razão – e um argumento – mais para que os holandeses assegurem a preservação da sua cultura tradicional, a cultura judaico-cristã, como cultura dominante28. Muitos dos que são desta opinião pretendem, também, que há um núcleo de identidade nacional que é necessário preservar das influências “estrangeiras”. Daí a crer que a “nossa” cultura tradicional é verdadeiramente superior às culturas imigradas, em particular a cultura islâmica, vai apenas um passo. Os acontecimentos do 11 de Setembro nos Estados Unidos e o assassinato
do realizador provocador holandês Theo van Gogh (a 2 de Novembro de 2002) servem de catalisador aos sentimentos anti-islâmicos latentes – ou não tão latentes como isso. Escritores e intelectuais conhecidos, tais como B. J. Spruyt e o professor Paul Cliteur, contam entre os defensores mais cultos, mas também mais intransigentes, da opinião segundo a qual a cultura única, holandesa é superior às culturas árabo-islâmicas29.
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A tolerância religiosa Num artigo como este, não podemos estudar todos os aspectos das relações entre a religião e a consciência nacional. Contudo, os poucos pontos de vista apresentados acima podem ajudar-nos a adoptar um comportamento responsável relativamente aos desafios presentes e futuros que representam a dimensão religiosa do multiculturalismo. 1. O facto de a religião continuar a desempenhar um papel fundamental na sociedade (quer social, quer política) não deveria perturbar demasiadamente os holandeses. No decurso da História, a religião sempre tem sido um dos aspectos essenciais da sua sociedade, chegando mesmo, em certas épocas, a ser um elemento da sua identidade. 2. A ideia de uma cultura holandesa relativamente coerente e estável no tempo trata-se, geralmente, de uma utopia. Aqui, como quase por todo o lado, as culturas nacionais desenvolvem-se no decorrer do tempo e estão constantemente sujeitas a evoluções maiores, devidas em parte, a influências externas, e em parte,
Reinder Bruinsma
à chegada de novos cidadãos. Os Países Baixos têm sido sempre uma sociedade relativamente aberta o que tem, certamente, incidência sobre o “carácter holandês” da Nação. 3. Não há qualquer dúvida de que a língua holandesa contribuiu para a formação da Nação. No entanto, o facto de numerosos imigrantes não o falarem não vai, necessariamente, conduzir ao processo inverso (o desmantelamento da Nação), como alguns receiam. Esta língua tem mostrado a sua capacidade, ao longo do tempo, de absorver elementos de numerosas outras línguas. Quando à popularidade dos dialectos regionais, actualmente, não põe em causa o estatuto da língua holandesa. 4. No passado, os Países Baixos foram capazes de assimilar um grande número de imigrantes, huguenotes e judeus, no decurso dos séculos XVI e XVII, até centenas de trabalhadores imigrantes espanhóis e portugueses, nas décadas de 1960 e 1970. Estes desafios foram ultrapassados sem que a consciência nacional desaparecesse. Porque razão a situação actual suscita tantos receios? 5. A dimensão religiosa do presente desafio é, certamente, mais importante do que os anteriores, uma vez que a sociedade holandesa não teve, no passado, que se adaptar à presença de numerosos muçulmanos que representam, agora, cerca de 5,3% da população (número de facto bem inferior ao que a maior parte dos holandeses imagina!). 6. Qualquer abordagem da sociedade multicultural deve ser pragmática. Não se pode regressar
à História recente: o carácter multicultural e pluriétnico da sociedade holandesa (como da maior parte dos outros países europeus) é definitiva. Crer que uma cultura seria superior às outras só pode conduzir a rancores, ou pior ainda. 7. Não esqueçamos que está em jogo uma importante questão de princípio. No decurso da sua História, os Países Baixos têm no conjunto dado prova de tolerância para com todas as religiões. Mesmo se esta atitude tem sido, em certas épocas, inspirada, à partida, por considerações mercantis que, por uma certa ética, forjou uma verdadeira tradição, que fez, daí em diante, parte da identidade holandesa. por causa dessa tradição, o povo holandês deveria interessar-se pelas crenças dos outros e praticar a tolerância positiva para com todos (salvo, bem entendido, quando as ideias religiosas entrem em conflito flagrante com os outros direitos do Homem) 8. Assim, podemos concluir que a tolerância religiosa não é um conceito ultrapassado a rejeitar em troca de uma abordagem totalmente laica da vida pública. Uma tal abordagem não poderia, de resto, funcionar, dado o papel permanente (mesmo crescente) da religião na vida pública holandesa. É necessário, portanto, promover largamente a tolerância religiosa porque ela faz parte integrante do nosso génio nacional. É igualmente a única abordagem sensata e pragmática, e, certamente, também uma questão de princípio de grande valor. Os acontecimentos recentemente ocorridos nos Países Baixos dão matéria de reflexão sobre o papel da 81
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religião na formação da consciência nacional. Um estudioso dos outros países encontrará, sem dúvida, muitos aspectos idênticos. Porque,
então, não tentar noutros países aqui que tem “funcionado” nos Países Baixos? Isso valeria verdadeiramente a pena!
* Presidente da Federação das Igrejas Adventistas dos Países Baixos. Autor de numerosas obras de teologia ética e prática. Notas 1. Colin McEvedy, The Penguin Atlas of African History, Penguin Books Ltd. Harmonsdsworth, Reino-Unido, 1980. 2. Anthony D. Smith, “Nations and History”, in Monserrat Guiserrat and John Huttchinson, eds. Understanding Nationalism, Polity Press, Cambridge, Reino Unido, 2001, p. 9. 3. Idem., p.12. 4. Benedict Anderson ocupa um lugar importante entre os “modernistas” e deve a sua fama ao seu best-seller sobre o nacionalismo, L’Imaginaire National publicado pela primeira vez em 1983 e vendidos centenas de exemplares, La Découverte, Paris, 1996. 5. Adrian Hastings, The Construction of Nationhood: Ethnicity, Religion and Nationalism, Cambridge University Press, Cambridge, 1997, p. 8-13. 6. Smith, op. cit, p. 19-26. 7. Hastings, op. cit., p. 35-65. 8. Herman Lindquist, Historien om Sverige: Från istid till framtid, Norsteds Verlag, Estocolmo, 2002, p. 227, 228. 9. Talal Asad, “Religion, Nation-State, Secularismo”, in Peter van der Veer and Hartmut Lehymann, ed., Nation and Religion: Perspectives on Europe and Asia, Princeton, University Press, Princeton, 1999, p. 178. 10. Idem., p. 183-188 11. Para um estudo muito útil da relação entre a Igreja e o Estado na maior parte dos países europeus, ver Gerard Roberts, ed., State and Church in the European Union, Nomos Verlagsgellschaft, Baden-Baden, 1996. 12. Ver Allen D. Hertzke, Representating God in Washington: The Role of Religious Lobbies in the American Polity, The University of Tennessee Press. Knoxville, TN, 1988. 13. Steven Grosby, “Nationality and Religion” in Monserrat Guibernau and John Hutchinson, eds. Understanding Nationalism, Polity Press, Cambridge, Reino-Unido, 2001, p. 109-113. 14. A Holanda é o nome da parte ocidental dos Países Baixos, mas os dois nomes são muitas vezes utilizados quase como sinónimos. É o caso deste artigo. 15. Hastings, op. Cit., p. 8 16. Bons livros de História dos Países Baixos foram publicados em inglês. Um dos mais recentes, de Thomas Colley Grattan, Holland: The History of the Netherlands, BiblioBazaar, 2006. Para um estudo aprofundado, ver também, Jonathan Irvine Israel, The Dutch Republic, Its rise, greatness and fall, 1447-1806,Oxford University Press, Oxford/Nova Iorque, 1995; e por fim, um grande classico: John Lothrop Motley, The Rise of the Dutch Republic, Harper and Brothers, Nova Iorque, 1978. 82
Reinder Bruinsma 17. John Myhill, Language, Religion and National Identity in Europe and the Middle East, John Benjamins, Amesterdão/Filadélfia, PA, 2006, p. 184, 185. 18. Eginhard Meijering, Het Nederlands Christendom in de Twintigste Eeuw, Uitgeverij Balans, Amesterdão, 2007, p. 81-112. 19. Para um estudo deste período da História dos Países Baixos e dos principais personagens da época, ver A. Th. Van Deursen, Maurits van Nassau: de Winnaar die Faalde, Aula Pecketboeken, 2000, p. 253-278; P. Geyl, Geschiedenis van de Nederlandse Stam, vol. 2, Wereldbibliotheek, Amesterdão/Anvers, 1961, p. 445-473. 20. L. N. Lehman, The Drama of William of Orange; Being a Reprint of the Actual Ban of Proscription of King Philip of Spain against him, etc., Agora Publishing Campany, Nova Iorque, 1937, p. 34 21. Ver A. Eskhof, De Drie Fasen is de Godsdienstige Ontwikkeling van Prins Willem van Oranje, Stemmen des Tijds, 1933, p. 267,268. 22. Para um estudo e uma bibliografia complete, ver Reinder Bruisma, The Calvinistic Theory of the Right of Resistance and its Influence on the Dutch Revolt against Spain, Andrews University, Berrien Springs, MD. Tese de Mestrado não publicada, 1966. 23. A maior parte dos livros de cânticos holandeses incluem o Wilhelmus – o Hino Nacional – na sua selecção. Ver por ex. Liedboek van de Adventkerk, Kerkgenootschap der Zevendedags Adventisten, 1982, p. 740-745. 24. Para conhecer em detalhe um exemplo notável de conflito religioso, ver Reinder Bruisma, “The 1834 Secession and its Aftermath: Intolerance in a mostly Tolerant”, in John Graz, ed., Bilding Bridges of Faith and Freedom – a Festschrift written in honor of Bert Beach, Silver Spring, MD, 2005, p. 76-89. 25. Pim Fortuyn, Tegen de Islamisering van onze cultuur, A. W. Bruna, Utreque, 1997, p. 17,18. 26. John Hutchinson. “Nations and Culture, in Montserrat and Hatchinson, ed. op. cit. p. 91. 27. Maria Grever et Kees Ribbens, Nationale Identiteit en Meervoudig Verleden, Amsterdam University Presse, Amestardão, 2007, p. 21. 28. C. C. van Baalen, e out., Jaarboek Parlementaire Geschidenis 2007: De Moeizame Worsteling met de Nationale Identiteit, Boom, Amesterdão, 2007, p. 21. 29. Fleur Sleegers, In Debat over Nederland, Amsterdam University Press, Amesterdão, 2007, p. 56-58.
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O papel das minorias religiosas na construção ou no desmantelamento das Nações Natan Lerner*
No quadro desta publicação consagrada ao apaixonante tema das relações entre o nacionalismo e a religião, o presente artigo concentrar-se-á sobre o papel que as minorias religiosas podem desenvolver, sob certas condições, no processo de construção ou de desmantelamento de um Estado. Este papel nem sempre é legítimo; em certos casos, é inevitável. Eis algumas reflexões a este respeito. No momento em que este artigo está a ser escrito, o Kosovo é o último Estado a adquirir a sua independência (17 de Fevereiro de 2008). Se bem que não tenha sido reconhecido, até ao presente, senão por uma minoria de Estados – os únicos que estão habilitados a reconhecer um Estado soberano criado de novo – múltiplas razões nos levam a crer que o número de Estados prontos a dar o mesmo passo e a estabelecer com o Kosovo relações diplomáticas vai aumentar regularmente, apesar das objecções
apresentadas pelos sérvios (e aqueles que os apoiam). Qualquer que seja a nossa posição sobre a fragmentação da ex-Jugoslávia e sobre a sua substituição por sete novos Estados, quaisquer que sejam as eventuais reservas a propósito da configuração etno-religiosa da nova entidade política, não há qualquer dúvida de que a existência do Kosovo como Estado independente é o resultado de tensões extremas e de violências que têm dominado a ex-Jugoslávia. Foi o genocídio, a “limpeza étnica”, a intolerância religiosa e o ódio que impediu os sérvios e os albaneses a viverem juntos numa sociedade pluralista multirreligiosa e multicultural, se bem que o Kosovo se tenha integrado, indiscutivelmente, na história da Sérvia. É necessário, no entanto, evitar tirar conclusões universais sobre o caso kosovar: noutras circunstâncias, este tipo de coexistência tem sido – e ainda é – possível porque a maioria como as 84
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à separação dos grupos étnicos na Europa podem, muito bem, voltar a acontecer em qualquer outro lugar”. Os princípios do etnonacionalismo, acrescenta ele, são que as nações existem e são definidas “por uma herança comum, que inclui em geral, uma língua comum, uma fé comum e uma história étnica comum”. Assim, “cada nação deveria ter o seu próprio Estado” e “cada Estado deveria ser composto por membros de uma só nação”1. Como se vê, os três elementos que definem uma Nação correspondem, precisamente, às três categorias de minorias reconhecidas no Direito Internacional moderno. Mas a expressão “minorias nacionais”, utilizada em certos textos para designar ou englobar as três minorias clássicas, presta-se a confusão: é uma minoria seja étnica (ou racial), seja cultural (ou linguística), seja religiosa (incluindo a religião, ou as crenças ligadas à religião). Se falamos de “minoria nacional” como de uma quarta categoria de minoria à parte, isso evoca imediatamente a ideia de secessão, o desejo de “tornar-se senhor do seu próprio destino, pelo menos em parte”, segundo os termos de Christian Tomuschat, o que implica “um certo elemento político”2. O artigo 27 do Pacto Relativo aos Direitos Civis e Políticos não faz referência às minorias nacionais. A Declaração dos direitos das pessoas pertencentes a minorias nacionais ou étnicas, religiosas e linguísticas (1992) emprega, para qualificar qualquer das três categorias, este mesmo termo que se encontra também, no título da Convenção Quadro para a
minorias adoptaram uma outra atitude. Contudo, não podemos ignorar a lição do Kosovo. As causas da fragmentação de um Estado Este fenómeno não é único na história política da humanidade. Se bem que um dos objectivos das Nações Unidas seja proteger a integridade territorial dos Estados existentes, a fragmentação dos Estados é um problema recorrente. Os problemas étnicos, a religião e a língua são muitas vezes factores decisivos que podem conduzir à secessão ou ao desmantelamento – ou, pelo menos, a tentativas para esse fim. Logo que minorias étnicas, religiosas ou linguísticas são objecto de perseguição ou vêem os seus direitos gravemente injuriados, se a repartição da população e a concentração territorial o permite, é muito possível, até mesmo inevitável, que se chegue ao aparecimento de novos Estados e à criação de novas entidades políticas. Do facto da sua natureza e dos sentimentos que ela suscita, a religião desempenha, a este respeito, um papel maior, muitas vezes em associação com os dois outros factores. No último número de Foreign Affairs, o historiador Jerry Z. Muller explica o “poder tenaz do nacionalismo étnico”. Segundo ele, “o etnonacionalismo tem desempenhado na História moderna um papel mais profundo e mais duradouro do que é comummente admitido, e os processos que têm conduzido ao domínio do Estado etnonacional e
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protecção das minorias nacionais, adoptado pelo Conselho da Europa de 10 de Novembro de 1994. Bem tenho pedido para que se evite usar o termo “minoria”, que é complexo, mas ele é utilizado e nada se pode fazer para o mudar3. Existem, bem entendido, numerosos tipos de minorias, como é precisado numa publicação mais antiga das Nações Unidas (data de 1949) sobre a Definição e a Classificação das Minorias4. As opiniões divergem para saber se certos outros grupos têm ou não o direito de serem considerados como minorias em razão, para uns, das suas origens, para outros, da sua orientação sexual ou dos seus problemas de saúde, ou ainda pela sua filiação política. Mas as três categorias principais – e geralmente admitidas – têm sido sempre e são ainda as três mencionadas anteriormente. Ora é em relação a elas que a questão de fundar um Estado adquire e se reveste actualmente, de uma importância particular. E, entre estas três categorias estão as minorias religiosas assim como, bem entendido, as minorias ou os factores religiosos, linguísticos e étnicos são concomitantes, que encontram dificuldades5.
nacionalistas. Em certos casos, tem mesmo constituído um factor decisivo na criação ou na consolidação de Nações, talvez não tanto como tal, mas certamente de uma forma determinante estendendo-se para além dos limites de um grupo definido como religião. Adrian Hastings, no seu livro, The Construction of Nationalism – Ethnicity, Religion and Nationalism6, avança que a ligação entre nacionalismo e religião “raramente tem sido fermento enraizado ou muito poderoso” como em três casos relativamente recentes: o Império estalinista, que se desfez quando teve de admitir que não podia assimilar a Polónia católica e nacionalista; o Império britânico que não conseguiu integrar a Irlanda católica; a Sérvia ortodoxa e nacionalista, que não foi capaz de se conformar com as normas liberais europeias (sendo o Kosovo a consequência desse fracasso). Para além deste exemplos, a maior parte dos nacionalismos europeus “têm sido muito mais unidos ao nível religioso” apesar de algumas excepções7. A propósito do judaísmo, Adrian Hastings declara que o sionismo não era um movimento religioso mas “um movimento nacionalista estimulado pela pressão de outros movimentos nacionalistas presentes na Europa”. No que respeita o Islão, “o projecto da criação de uma nação tem sido largamento condicionado pela islamização da sociedade e a aplicação da Sharia”. De acordo com Javaid Rehman, “isso tem sido sinónimo de uma politização da religião e tem forçado a assimilação das minorias, tanto étnicas como religiosas8.
O papel da religião No decurso da História, a religião tem desempenhado papéis contraditórios no que respeita ao nacionalismo e a criação de Nações ou de Estados. Por um lado, as religiões universais têm suplantado a Nação ou o Estado individualista. Por outro, o elemento religioso tem influenciado, consideravelmente, as tendências 86
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A igreja da virgem Hogedetria, no convento dos patriarcas sérvios ortodoxos em Pec, no Kosovo. o Convento, que desde 2006, figura na lista do património mundial da UNESCO, contém preciosos ícones datados dos séculos XIII ao XIX. Foto Wikipédia
É necessário ter consciência de que o etnonacionalismo propriamente dito, e a língua, têm, talvez, em certos casos, um maior papel do que a religião na construção de certas nações. John Cloakley afirma num livro recente9 que no século XX a maioria dos conflitos religiosos na Europa não têm sido de natureza etnonacional e que “a maior parte dos conflitos etnonacionais não tiveram uma dimensão religiosa significativa”. Não foi o caso no passado, onde muitas vezes as fronteiras políticas e religiosas se confundiam. A importância das religiões étnicas maiores para o nacionalismo é igualmente eviden-
te, como o demonstra o papel desempenhado pelo nacionalismo hindu, xintoísta, ou judeu10. A protecção das minorias De que direitos deveriam dispor as minorias se se pretende preservar a unidade dos Estados pluriétnicos, multireligiosos ou multilingues e evitar o desenvolvimento de tendências separatistas? O facto de a Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa ter achado necessário criar o lugar do Alto Comissário para as Minorias Nacionais demonstra a urgência da situação11. Recentemente, inúmeros 87
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Centro da cidade de Pristina, no Kosovo. Foto Wikipédia
trabalhos têm sido consagrados ao estatuto e à condição das minorias europeias, como, por exemplo, o European Yearbook of Minority Issues, publicado desde 2001/2002 pelo Centro Europeu Sobre as Questões das Minorias (European Centre for Minority Issues – ECMI). Um tema recorrente para o Alto Comissário: procurar os meios de ultrapassar os conflitos que levam à autodeterminação, e uma das suas principais tarefas: identificar um sistema de alerta que os antecipe. A protecção internacional das minorias em perigo está longe de estar satisfeita, apesar da comunidade internacional já ter dado alguns passos nesse sentido. Com efeito, desde 9 de Dezembro de 1948, na véspera da Declaração Universal
dos Direitos do Homem, as Nações Unidas aprovaram a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio. Se bem que tenha sido largamente ratificado, este ambicioso tratado, cujo aniversário foi celebrado a 10 de Dezembro de 2008, teve pouco impacto dada a ausência de um sistema que o ponha em execução. Foi apenas em Fevereiro de 2007 que o Tribunal Internacional de Justiça tomou uma decisão – tão importante como controversa12 – precisando que todos os Estados estão submetidos à obrigação legal de aplicar e de apoiar a Convenção. Contudo, continua a ser difícil determinar o que constitui uma prova de intenção de genocídio, como, por exemplo, no que diz respeito à Bósnia em relação à Sérvia. 88
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O Direito Penal Internacional progrediu após o fim da Segunda Guerra Mundial e o Tribunal Penal Internacional já existe. No caso da Ex-Jugoslávia, o Conselho de Segurança criou um tribunal específico encarregado de julgar os terríveis crimes aí perpetrados, sem dúvida, em ligação com os acontecimentos políticos atrás citados. O Tribunal Penal encarregue de examinar os crimes cometidos no Ruanda tinha funções semelhantes. Também foram consagrados instrumentos importantes para interditarem o incitamento ao ódio para com grupos e minorias. Esses instrumentos comportam medidas de aplicação visando garantir uma certa segurança às minorias, incluindo, sem dúvida, as minorias religiosas, o que ampliou o entendimento da protecção mais limitada do Pacto relativo aos direitos civis e políticos. Não temos aqui a possibilidade de estudar em detalhe este tipo de disposições. No entanto, parece evidente que elas estão longe de estar à altura das tragédias humanas provocadas pelos genocídios e as limpezas étnicas que têm causado e ainda vão provavelmente causar desmantelamento de Estados assim como o recurso, em desespero de causa, a uma autodeterminação que conduzirá, eventualmente, à criação de novos enquadramentos políticos. Um catálogo de direitos Seria ingenuidade acreditar que uma legislação completa em matéria de direitos do Homem ou mesmo que os progressos suplementares em Direito Penal Internacional 89
possam ser suficientes para proteger os grupos religiosos ameaçados e impedi-los de romper com as estruturas políticas existentes para criar outras novas. Estes dois elementos são importantes, mas, no final, a sua eficácia depende de pôr em acção um sistema de segurança internacional que torne impossível as perseguições e as infracções graves ao Direito Internacional. Contudo, seria talvez útil, estabelecer uma lista dos direitos e garantias editados pelos direitos do Homem para tornar possível uma tal protecção. Eles são parte dos pactos e outros instrumentos visando a protecção das minorias, religiosas e outras perseguidas, ou sendo objecto de descriminação. Em primeiro lugar, isso é bem evidente, é necessário afirmar e proteger o direito mais importante, o de existir – o que significa interditar genocídios e os males que lhe estão ligados, como a limpeza étnica. Em seguida, é preciso prescrever a descriminação racial e a intolerância religiosa com as diferenças tendo em atenção que o racismo é interdito por um tratado obrigatório enquanto que a intolerância religiosa e as descriminação apenas estão cobertas por uma declaração – contendo igualmente meios de aplicação. Também seria útil fazer uma lista dos direitos ligados à religião cuja ignorância e a violação se arriscam a conduzir a tendências separatistas. Os artigos 1 e 6 da Declaração13 de 1981 fixam aquilo que poderia ser definido como a norma universal mínima em matéria de direitos do Homem ligados à religião. Embora a liberdade de pensamento, a liberdade de consciência e a liberdade de religião estejam protegidas e que a
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coacção nesse domínio seja interdita, as restrições da liberdade de culto são toleráveis se estão previstas pela lei e necessárias à protecção da segurança e da ordem públicas, da saúde ou da moral ou ainda das liberdades e dos direitos fundamentais de outrem. Além disso, direitos específicos prevêem a liberdade: – de estabelecer lugares de culto e instituições apropriadas. – de confeccionar ou de adquirir os objectos e o material requerido pelos ritos ou os usos de uma religião ou de uma convicção, – de difundir publicações sobre esses assuntos, – de ensinar uma religião, – de receber contribuições financeiras, – de formar e de nomear ou de eleger os dirigentes apropriados, – de observar certos dias de repouso e de celebrar festas e cerimónias, – de estabelecer comunicações com indivíduos e comunidades ao nível nacional e internacional. Certos direitos que se reportam à religião não fazem parte das disposições citadas acima, mas têm sido incluídas noutros documentos tais como o projecto da Convenção sobre a Intolerância Religiosa (Draft Convention on Religious Intolerance) – ainda em espera, mas que muito provavelmente não será objecto de novas discussões num futuro próximo – e o documento de encerramento da reunião de acompanhamento da Conferência sobre a Segurança e a Cooperação na Europa (CSCE) realizada em Viena em 1989, assim como
noutros textos sobre as minorias ao nível mundial e regional. Bem entendido, a violação de um ou de vários desses direitos é censurável e ilegal, mas não constitui um incitamento à destruição de um Estado nem a fundar um novo. Em contrapartida, quando se dão tais violações ao ponto de constituir graves privações dos direitos do Homem, quando a existência e a segurança de grupos inteiros (as minorias) é ameaçada ou comprometida, quando a demografia e a geografia assumem tendências separatistas possíveis, então surgem os conflitos – em certos casos, afrontamentos entre pessoas (“clash of peoples”, para retomar a expressão o artigo do Foreign Affairs). Nas situações mais trágicas, como, por exemplo, a do Kosovo, chegou-se a uma separação e, sob certas condições, à fundação de novos Estados. Quando a separação se torna inevitável No seu relatório para as Nações Unidas, a Relatora Especial sobre a liberdade de religião e de convicção, Asma Jahangir, indica até que ponto as violações dos direitos fundamentais das pessoas e das comunidades ligadas à religião põe agentes do Estado, ou não, assim como o incitamento ao ódio religioso prejudica a coabitação em numerosos países. O facto de ela própria ter sido aprisionada no seu país, o Paquistão, ilustra a triste situação actual14. Os incidentes menores fazem, contudo, parte do mundo perigoso no qual vivemos, em contrapartida, as perseguições e as violações importantes podem exercer influência sobre a integridade dos Estados, a sua divisão e na criação 90
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missão é avaliar os progressos deste Estado, tomou a sábia decisão de não dividir, nem separar as instituições do novo país, como foi anunciado pelo seu dirigente15, que é também o representante da União Europeia16. “Basta de divisão!” parece ser a palavra de ordem, mas para chegar a este resultado, é indispensável pôr fim às perseguições e respeitar, totalmente, os direitos do Homem.
de novas entidades políticas, com ou sem a bênção da comunidade internacional. O Kosovo é, ele também, um bom exemplo. Numa declaração publicada a 10 de Março de 2008, a União Federalista das Comunidades Étnicas Europeias (UFCE) chama a atenção para a “situação específica” do grupo sérvio da população kosovar, assim como para a situação de outras minorias como “os ciganos, os Torbech, os Gorani, os Ashkali, os Egípcios do Kosovo, os Janjecvi (Croatas), os Turcos e os Bósnios”. De acordo com esta declaração é indispensável garantir a autonomia completa e duradoura das minorias. O novo Grupo Internacional de Acompanhamento do Kosovo, cuja
* Professor de Direito Internacional no Centro Interdisciplinar de Herziliya e professor na Faculdade de Direito de Tel Aviv, Israel. Notas 1. Jerry Z. Muller, “Us and Them – The Enduring Power of Ethnic Nationalism”, in Foreign Affairs, Março/Abril 2008, p. 18-35. 2. Christian Tomuschat, “Protection of Minorities under Article 27 of the International Covenant on Civil and Political Rights”, in Festchrift für Herman Mosler, ed. R. Bernhardt e out. (1983), p. 950-979. 3. Ver a minha obra Group Rights and Discrimination in International Law, 2ª ed., 2003. Sobre o texto europeu, ver, P. Thornberry e M. A. Martin Estebanez, The Council of Europe and Minorities, (1994). Para um relatório explicando a Convenção, Conselho da Europa, Convention-cadre pour la protection des minorités nationales (1994). 4. UN Doc. E/CN.4/Sub.2/85. Há inúmeras publicações tratando das minorias. Menciono algumas no meu livro citado na nota 3. 5. Para um debate sobre o tema dos grupos e minorias religiosas, ver a minha obra Religion, Secular Beliefs and Human Rights, 2006, em particular os capítulos 2 e 3.
6. Publicado pela primeira vez em 1997 pela Cambridge University Press. 7. Ob. cit., p. 185 e seg. Hastings explora as diferenças entre os papéis do cristianismo, do judaísmo e do islamismo em matéria de criação do Estado ou da Nação. É um assunto importante muitas vezes evocado em obras sobre o nacionalismo, mas não está ligado directamente ao tema do presente artigo. 91
Natan Lerner 8. Javaid Rehman, “Nation-Building in an Islamic State: Minority Rights and Self-determination in the Islamic Republic of Pakistan”, in Religion, Human Rights and International Law, 2007, ed. Javaid Rehman and Susan C. Breau, p. 430. 9. “Religion and nationalism in the First World”, in Ethnonationalism in the Contemporary World, editado por Daniele Conversi, 2002, p. 206 e seg. 10. Idem., p. 215. 11. Para maior precisão sobre as suas tarefas e o seu papel, ver Walter A. Kemp (ed.), Quiet Diplomacy in Action: the OSCE High Commissioner on National Minorities, 2001. O seu principal objectivo parece ser a prevenção de conflitos. 12. Aplicações da Convenção para a prevenção e a repressão do crime de genocídio (Bosnie et Herzégovine vs Serbie et Monténégro), 2007, C.I.J. 140. 13. Trata-se da Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e de descriminação baseadas na religião ou na convicção, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas a 25 de Novembro de 1981 (Resolução 36/55). 14. Asma Jahangir foi nomeada para esta responsabilidade em 2004. Para ler os seus relatórios, ver E/CN.4/2005/61 e seguintes. 15. N.T. Parece que Pieter Feith rejeita a ideia de outras instituições paralelas semelhantes ao Grupo Internacional de Acompanhamento do Kosovo www.kosovocompromise.com, 28 de Fevereiro de 2008. 16. International Herald Tribune, 29 de Fevereiro de 2008.
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Da pertença territorial à escolha consumista? O contexto social dos direitos do Homem* David Martin**
Historicamente, a noção de livre pertença a uma religião tem a sua origem ma Europa Ocidental, tal como o habeas corpus, apesar de ter sido na América do Norte que ela se concretizou pela primeira vez, pelos fins do século XVIII, com a primeira emenda da Constituição, sob a expressão “livre exercício”. Na “velha Europa”, a ideia de “Igreja livre num Estado livre” não se tornou efectiva – e em parte apenas – senão no fim do século XIX e no século XX, com um sinal preciso: a separação da Igreja e do Estado em França, em 1905. Por outro lado, o pluralismo parcial anteriormente adoptado na Polónia-Lituânia assim como na Transilvânia tornou-se precária sob a pressão do nacionalismo etno-religioso. Na prática, o exercício relativamente livre da religião toma duas formas: a semi-tolerância para com as comunidades minoritárias, tal com se exprime no Édito de Nantes de 1598, e a semi-tolerância da escolha individual na Commonwealth inglesa dos anos 1640 a 1660. As sanções restabelecidas depois de 1660 contra os dissidentes, os nãoconformistas ou os católicos foram
progressivamente abrandando, apesar de, no caso dos católicos elas não terem sido abolidas antes de 1829, embora, perante os factos, a grande expansão do metodismo, de 1780 a 1840, tenha acabado por institucionalizar o princípio da liberdade de convicções. Processos paralelos tiveram lugar na América do Norte com o estabelecimento de Igrejas de Estado na Virgínia e no Massachusetts (em que a separação Igreja-Estado apenas se deu em 1830) para se interromper, bruscamente, com a chegada de imigrantes de diversas confissões diferentes (se bem que na sua maioria protestantes) e a política de abertura para com as convicções religiosas adoptada no Estado de Rhode Island. Com a Revolução Americana, o princípio da tolerância religiosa transformou-se rapidamente numa igualdade completa e absoluta. Poder-se-á dizer que existia uma zona estendendo-se de Saxe à Nova Inglaterra, em que a tolerância era limitada e desigual, mas que foi a partir dos Países Baixos que ela se exprimiu de forma mais marcada. Foi nestas regiões, seja em Halle, Amesterdão, Londres ou Rochester (Estado de Nova Iorque), que foram 93
David Martin
Pintura em madeira, representando o rei Guilherme II de Brandenburgo, o “Grande Príncipe Eleitor”, acolhendo no seu palácio de Sans-Souci, em Potsdam, perto de Berlim/Brandenburgo, os huguenotes que tinham fugido de França. Foto Ökumenisches Heiligenlexikon
acolhidos os huguenotes forçados ao exílio pela Revogação do Édito de Nantes, em 1685. O banimento dos huguenotes pode ser considerado como fazendo parte integrante da lógica nacionalista, que vai das diferentes expulsões que se conhecem em Espanha depois de 1492 até às das populações minoritárias na Grécia e na Turquia depois de 1922. Esta lógica toma duas formas. Uma foi encorajada sob as monarquias absolutas, desejosas de conservar a integridade e a uniformidade do Estado, mesmo se o Édito de tolerância proclamado em 1791 por José II na Áustria-Hungria indique que este não era um fenómeno universal – o Império Austro-Húngaro era, antes de 94
mais, multiétnico e multi-religioso. A outra forma é um nacionalismo etno-religioso, praticado sob a égide de elites intelectuais nacionalistas e cuja influência se revelou mais profunda e duradoura. Talvez as deslocações massivas de populações e a expulsão de muçulmanos (e se for necessário de cristãos) que tiveram lugar por ocasião da expansão do Império russo para o Sul façam sobretudo parte de uma política imperial absolutista tendendo para o etno-nacionalismo. É certo que o etno-nacionalismo romântico na Europa de Leste conduziu a um modelo de purificação étnica ou a forçar a emigração a que se assistiu ao longo de todo o século anterior,
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cas tem sido problemático até uma data bem recente, e a coabitação não tem sido aceite senão a contragosto naquilo que tem sido considerado como um território intrinsecamente católico. Encontramos aí o mesmo princípio territorial, tal como hoje é aceite nas regiões da Europa de Leste e numa lei recentemente aprovada na Federação Russa. No caso da Rússia, é simultaneamente censurável e compreensível: não é possível sofrer uma perseguição massiva durante setenta anos e depois fazer face com serenidade a missionários “sectários”. Na Rússia, conhece-se mal a religião ortodoxa, mas há uma forte identificação com ela. Além disso, a participação nas peregrinações daqueles que não fazem parte da Igreja é quase tão importante como em Espanha ou na Polónia e pode, também, ganhar uma ressonância política como exprimir a religiosidade popular. De facto, as peregrinações são populares por todo o lado. Encontram-se as formas mais evidentes da etno-religiosidade e o princípio da pertença territorial por todo o lado, em que se faça sentir uma ameaça às terras consideradas como sagradas ou como fazendo parte integrante na nação, e onde se disputam as fronteiras com grupos aderentes a uma etno-religião potencialmente hostil. A Sérvia, como consequência da sua posição de Estado-fronteira com o Islão otomano ao longo de toda a sua história, e por causa do ressentimento que mantém devido aos deslocamentos que se seguiram à sua derrota histórica na batalha de
ou quase, através do Médio Oriente, onde cristãos e judeus (excepto em Israel) foram progressivamente expulsos. A pressão exercida sobre os judeus na Polónia, na Roménia e na Rússia é uma reprodução flagrante deste modelo e o reflexo de uma forma de descriminação exercida no passado pelos cristãos sobre os judeus. Mesmo o nacionalismo cívico ou “cidadão” na Europa Ocidental inscreve-se nesta linha de um preconceito cristão, e muito particularmente em França, onde o caso Dreyfus foi disso uma clara ilustração. Em todo este período relativamente moderno de mobilização nacional, a religião – à semelhança da língua nacional e da exigência de que a elite no poder seja da mesmo origem étnica que o povo – tornouse um sinal de identidade. (A este propósito pode ser interessante assinalar que, segundo John Esposito, que trabalhou sobre os resultados de sondagens de opinião Gallup, a mobilização actual da identidade islâmica está estreitamente ligada a aspirações culturais e democráticas mais do que a um fervor religioso, o que mostra bem, apesar de um contexto diferente, que a religião é um sinal de identidade). É a este nível que é preciso notar um outro contraste entre a Europa do Noroeste e os países da América do Norte, por um lado, e a Europa de Sudoeste e os países da América do Sul, por outro. Durante séculos, o catolicismo exerceu uma tutela permanente na América Central e do Sul, aceitando o sincretismo. Conceder uma exigência legal a organizações religiosas não católi95
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Kosovo Polié em 1389, considera-se como uma nação mártir. Não é tanto que a prática religiosa seja tão grande ou que por ser de fé ortodoxa, mas é mais que a Igreja se envolve com o povo num ambiente hiper-nacionalista, para com os católicos na Croácia e os muçulmanos na Bósnia e porque é possuída por uma nostalgia histórica. Este tipo de nacionalismo estabeleceu a ligação da identidade política panjugoslava e comunista forjada pelo marechal Tito. Em certos aspectos, a Grécia assemelha-se à Sérvia, se bem que a questão fronteiriça com a Macedónia seja menos espinhosa. Mas o vivo debate para saber se a Grécia se deveria conformar com as normas da União Europeia e renunciar a mencionar nos seus passaportes a religião professada mostram que paixões estão em jogo. Podemos encontrar outras expressões de pertença territorial na Geórgia e na Ucrânia, se bem que existam ali grupos religiosos livres e activos nos dois países e uma competição entre Igrejas territoriais na Ucrânia ocidental. Na Roménia, sob Ceausescu, as Igrejas de minoria húngara, tanto católicos como protestantes, sentiram pressões e, a partir de 1989, a Igreja Uniata (suprimida depois) do oeste do país colocou-se como o verdadeiro guardião da identidade romena, face à Igreja Ortodoxa Romena. A integração nacional torna sempre a coexistência problemática, e isso é verdade mesmo num país profundamente laico como a Estónia, onde a Igreja protestante luterana reúne cerca de 16% da população, principalmente entre os estónios, e a Igreja Ortodoxa 17% maioritariamente russos. Esta divisão aparece em paralelo com outras
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divergências sobre a língua, num contexto de paganismo reavivado, a que se juntam interpretações opostas da história recente e dolorosamente do país sob os domínios alemão e russo, também eles fonte de tensão e de discórdia. Assim, notamos duas tendências maiores: uma a favor de uma Igreja livre num Estado livre, com o abandono do princípio de território estabelecido pelo Tratado de Westfália em 1648, e a segunda a favor de uma etno-religiosidade ou de um nacionalismo religioso baseado no princípio de pertença a um território. Grosso modo, isso corresponde a uma diferença de base entre o nacionalismo étnico e a nacionalidade assente sobre a cidadania (e sobre um certo grau de consenso político e moral), independentemente de outros critérios. A forma pela qual o nacionalismo étnico se exprime depende de factores históricos particulares, entre os quais o mais determinante é a reacção de um nacionalismo oprimido por um domínio estrangeiro e a colonização. Encontram-se alguns exemplos entre os irlandeses face à colonização britânica, entre os polacos e os lituanos perante à dos russos e entre os romenos, búlgaros, gregos e sérvios face à colonização da Turquia. Os casos mais extremos representados nestes exemplos representados pelo nacionalismo civil oposto ao nacionalismo étnico encontram-se fora da Europa. Assim, a Arábia Saudita não autoriza mesmo a construção de locais de culto não muçulmanos, em virtude do facto de que a Arábia é considerada como um território sagrado e inviolável. Há, é verdade, um preço a pagar por qualquer conversão na
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A ponte Stari Most (a ponte velha), inscrita como património mundial pela UNESCO, símbolo da cidade de Mostar, na Bósnia-Herzegovina. Esta ponte que atravessa o Neretva, ligou, durante séculos, os bairros muçulmanos e croatas desta cidade. Foi destruída durante a guerra civil que grassou na Jugoslávia e reconstruída com a decisão da União Europeia, graças à generosidade de doadores. foi oficialmente reaberta à circulação em 2003, depois de seis anos de trabalhos. É, para um grande número de pessoas, um símbolo de esperança: a esperança de reunir novamente as duas comunidades. Foto WWEDU WORLD Wide Education – Center for European Security Studies http// www.european-security.info.
maior parte do mundo muçulmano, de Marrocos à Malásia e a democracia não oferece nenhuma garantia contra uma tirania mantida pela maioria. No Qatar, os não muçulmanos apenas podem adquirir territórios ganhos artificialmente ao mar. Na Europa, os exemplos mais próximos que se podem encontrar são a Sérvia onde a religião se tornou hiper-nacionalista, depois, mais longe, a Grécia, sempre consciente da proximidade da frontei97
ra entre cristianismo e o islão, da situação de Chipre e do milhão e meio de gregos expulsos da Turquia depois de aí terem vivido durante cerca de mais de dois milénios e meio. No entanto, pondo de parte as reacções etno-religiosas face ao colonialismo, o nacionalismo laico radical pode dar lugar a conflitos e a restrições legais, como em França, onde a ideologia republicana unificadora tem sido confrontada com
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um modelo unificador alternativo constituído pelo catolicismo. Isso hoje reflecte-se na forma como o Estado francês, nas suas relações com as entidades religiosas, quer se trate de muçulmanos ou de “seitas” reproduz um modelo baseado na sua experiência histórica com a Igreja Católica: a França deve ser promovida como sede suprema de lealismo. A ideologia republicana tem estado inevitavelmente associada às formas não católicas de religião, em particular, com os protestantes e os judeus, mas é sobre a base da exigência do princípio da “laicidade”, que finalmente triunfou sobre a Terceira República, após 1870. A República tornou-se, ela própria, um objecto de veneração à maneira de uma entidade sagrada. O conceito cristão de glória foi traduzido por “a glória”, e a santa Virgem transformada em “Marianne”. O “assunto do lenço” sobre o uso apropriado pelas mulheres muçulmanas nada mais fez do que ilustrar a aplicação prática do princípio da “laicidade”, tal como o fizeram as leis limitando as actividades sectárias. As restrições legais na Bélgica são, de uma forma geral, também elas baseadas no modelo francês e conseguiram atrair para as suas fileiras entidades religiosas todavia reconhecidas, tais como os “cultos”. Se olhamos para a Europa do Sul, ou do Leste, notamos que a imagem do secularismo francês e da “laicidade” encontrou o seu equivalente em países ou regiões nas quais permanecem profundos vestígios do monopólio católico tradicional ou, no caso dos kemalistas turcos, do monopólio islâmico. Por exemplo,
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no início do século XX, os pentecostistas podiam ser apontados, na Itália, como sendo “piores do que animais” assim como a presença institucional das Igrejas protestantes era assaz precária em Espanha. Nos nossos dias, as restrições abertas parecem reduzir-se mais à pressão subtil de uma quase uniformização. Com efeito, nessas regiões, principalmente ao longo do litoral mediterrânico, como no sul da Itália e na Sicília, um processo de selecção e uma mistura de influências cristãs com outras influências faz-se quase naturalmente sob a capa da uniformidade e de uma formas que os católicos situados mais a norte acham, muitas vezes, primitivo e chocante. Para resumir a situação nas regiões do sul, do leste e particularmente do sudeste da Europa, poder-se-á dizer que a viga mestra do monopólio ainda está de pé. No entanto, o quadro legal da livre escolha religiosa também está em vigor e de uma certa forma é admitido que as normas católicas e ortodoxas específicas não podem constituir a base de uma legislação laica. Isto é cada vez mais verdade na Espanha após Franco, na Itália depois do referendo de 1974 reconhecendo o divórcio, e mesmo na Polónia pós-comunista. Mesmo que quase metade da população tenha uma prática religiosa regular, a Igreja estima que uma identificação permanente com o catolicismo não se pode traduzir, ao nível do legislador ou da população, pela adopção das normas católicas. Geralmente, a identificação pessoal e nacional no sul e no leste da Europa exprime-se pela religião, ou a língua em associação com a cultura, ou pela união religião-lín-
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gua. A Turquia, cujo carácter laico é protegido pelo exército e onde os partidos islâmicos se tornam cada vez mais poderosos, constitui um caso à parte. O debate actual está em saber se o envolvimento do partido islâmico maioritário para a adesão da Turquia à União Europeia e às normas europeias sobre os direitos do Homem é táctico ou real. Na Europa do Norte, do Oeste ou do Noroeste, o pluralismo é profundo e o multiculturalismo mais vastamente admitido, frequentemente num contexto em que as Igrejas são pouco institucionalizadas. A Alemanha é um exemplo de um Estado bi-confessional que conhece aquilo a que se chama um recuo da religião e um crescimento deste “espiritualidade” livre e de geometria variável que está muito expandida no noroeste da Europa. O seu principal problema diz respeito a vários milhões de turcos que têm o estatuto de trabalhadores imigrantes. Por razões que remontam ao seu passado nazi, os alemães desconfiam dos “cultos”. Não os reconhecem automaticamente e, tanto o Estado Federal como os Länder, tratam conjuntamente as questões levantadas como problemas concernentes às duas principais confissões as quais estimam, por sua vez, que se trata de um problema de juventude, das quais se devem ocupar, entre outros, as autoridades morais como o pastor Haack1. Os Países Baixos e o Reino Unido figuram entre os casos mais avançados de laicisação. Nos Países Baixos, os “digues” (fossos) criados pelo sistema de pilares (ou de gueto) com culturas protestantes, católicas e calvinistas fechadas sobre si mes-
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mas, quase entraram em colapso no decurso dos anos 1960-70. O problema actual de segregação cultural não é inter-confessional, mas centrado numa importante subcultura muçulmana extremamente sensível a toda a erosão liberal da sua coesão assim como aos insultos. Como no Reino Unido, a distância cultural entre uma minoria muçulmana, com as lealdades internacionais, e a maioria cristã e laica colocam os pressupostos de uma sociedade multicultural em grandes dificuldades. Os liberais holandeses e britânicos, assim como a maior parte dos cristãos empregam todos os esforços para responder às sensibilidades e/ou às exigências dos muçulmanos, mas, ao mesmo tempo, estão conscientes de ameaça de violência e de questões ligadas às mulheres e aos homossexuais. No Reino Unidos, se bem que as populações vindas das Caraíbas, os africanos do ocidente, os polacos e os romenos estejam por vezes implicados numa contestação cultural, a distância cultural é menor do que no caso dos muçulmanos do subcontinente indiano. A cena europeia ocidental, na medida em que reflecte “o virar-se sobre si mesmo” e o “triunfo da terapêutica” de que tanto se fala, encontra-se confrontada com outras formas culturais no seio dos seus migrantes e igualmente entre os novos membros da União Europeia. Algumas vezes, estes podem apelar para os direitos do Homem sem se apropriarem deles completamente, ou eles mesmos os praticarem. Há um domínio de contestação em que não são as normas europeias que sofrem a pressão crítica por parte dos novos membros, mas em que são estas normas que exercem, de forma
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sistemática, uma pressão incontestável contra todas as subculturas religiosas. Um incidente que teve lugar recentemente no Reino Unido serve para ilustrar o que pode acontecer quando os direitos dos indivíduos (neste caso preciso, os dos homossexuais) chocam com os direitos colectivos de subculturas religiosas (no caso a Igreja Católica). Tratouse de uma directiva legal obrigando as agências de adopção católicas a tratar os casais homossexuais em plano de igualdade com outros casais para colocação de crianças a adoptar. Este problema faz parte de uma questão mais vasta, que é a de saber em que medida todas as ques-
tões de moralidade pública devem ser traduzidas na linguagem – que se supõe comum – do liberalismo laico. Mas esta é uma questão que ainda não está resolvida.
* Notas sobre a exposição que o autor apresentou em Manchester em Outubro de 2006, por ocasião de um encontro Faith in Europe – associação sediada na Grã Bretanha. ** Professor emérito de sociologia na London School of Economics e autor de numerosos livros e publicações de sociologia da religião, Grã Bretanha. Notas: 1. Ver Elisabeth Arweck, Researching New Religious Movements, Routledge, Londres, 2006. 2. Ver Calvin Smith, “The Re-Privatisation of Faith and Evangelicals in the Public”, editorial in Evangelical of Society and Politics, vol. 1, nº 1, Fevereiro de 2007.
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Documentos Nações Unidas Conselho dos Direitos do Homem 9ª Sessão (8-26 de Setembro de 2008) Palácio das Nações, Genebra Primeira intervenção da Alto Comissário para os Direitos do Homem Navi Pillay, Alto Comissário para os Direitos do Homem, pronunciou o seu discurso de abertura da 9ª Sessão do Conselho dos Direitos do Homem, que se realizou no Palácio das Nações em Genebra, de 8 a 26 de Setembro de 2008. Ela sublinhou como é importante permanecer imparcial e aderir à norma que constitui a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que “se aplica a todos sem considerações políticas”. “Eu parto do princípio de que a credibilidade do trabalho dos Direitos do Homem depende do seu envolvimento com a verdade, sem tolerar os sistemas em que há dois pesos, duas medidas, mas pouca aplicação selectiva desses direitos”., declarou a Alto Comissário no seu primeiro discurso no Conselho dos Direitos do Homem. “Encorajada pelos princípios onusianos tais como a imparcialidade, a independência e a integridade, estou determinada a seguir os passos dos meus predecessores que olharam e modelaram a sua função como um trampolim para o bem-estar e a melhoria de todos, como um laço onde todos podem ser incluídos de forma igual.” Navi Pillay, que assumiu as suas funções de Alto Comissário a 1 de Setembro de 2007, afirmou que o ano de 2008 era especialmente marcado pelo 60º aniversário da Convenção sobre o Genocídio, a 9 de Dezembro de 101
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2008, e o 60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, no dia seguinte. Além do 15º aniversário da Conferência de Viena, celebrarse-á igualmente dois décimos aniversários: o da Declaração sobre o direito e a responsabilidade dos indivíduos, grupos e órgãos da sociedade promoverem e protegerem os direitos do Homem e as liberdades fundamentais, e o dos Princípios orientadores relativos à deslocação de pessoas no interior do seu próprio país. Ela recordou aos Estados participantes nesta 9ª sessão do Conselho dos Direitos do Homem que a Declaração Universal e a Convenção sobre o Genocídio eram ambas derivadas do Holocausto. “Mas ainda nos falta tirar lições do Holocausto, uma vez que os genocídios continuam”, afirmou ela. Baseando-se na longa experiência de membro dirigente do sistema relativamente recente de justiça penal internacional, que trata dos crimes de guerra e dos crimes contra a humanidade, a Alto Comissário apelou a que desde já nos concentremos na prevenção dos genocídios assim como nos “ciclos de violência, a utilização do medo e a exploração política da diferença étnica, racial e religiosa” que a ele conduzem. “O genocídio é a forma última da discriminação, sublinhou. Devemos fazer tudo o que está ao nosso alcance para o impedir. O que aprendi da minha experiência de juiz no Tribunal Penal Internacional para o Ruanda sobre a forma como um ser humano pode fazer sofrer um outro ser humano acompanhar-me-á toda a minha vida.” Navi Pillay, que foi também vítima de discriminação racial e sexual na África do Sul do apartheid, declarou que o desenvolvimento, a secularização, a paz e a justiça são todas comprometidas “quando a discriminação e a desigualdade – que se exprimem de formas, ao mesmo tempo flagrantes e subtis – são autorizadas a aprisionar uma coexistência harmoniosa”. Ela exortou os Estados a não deixarem “pontos de vista divergentes” dissuadi-los de tomar parte na Conferência do exame sobre o racismo (Durban 2), prevista para Abril de 2009. “Não creio que o ‘tudo ou nada’ seja uma boa abordagem para afirmar os seus princípios ou a levar a uma discussão, afirmou ela. […] A participação activa de todos os Estados será certamente proveitosa para o avanço dos trabalhos […] Se as diferenças devem servir de pretexto para a inacção, as esperanças e as aspirações de numerosas vítimas da intolerância seriam, talvez, irremediavelmente destruídas.” A Alto Comissário notou também que “direitos como a liberdade de expressão, de associação e de reunião, indispensáveis ao funcionamento da sociedade civil, são objecto de ataques repetidos em todas as regiões do mundo”. Ela encorajou a sociedade civil a permanecer vigilante e a fazer um bom uso dos mecanismos dos direitos do Homem a fim de defender os seus direitos e as suas prerrogativas. 102
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Insistiu, também, na discriminação baseada no género, que permanece uma fonte de inquietação. “Para milhões de mulheres e de jovens, a Declaração Universal ressoa como uma promessa vazia por causa desta discriminação” sublinhou. “Não devemos poupar esforços para convencer os países a suprimirem as leis e as práticas que ainda hoje reduzem as mulheres e as jovens ao papel de cidadãs de segunda classe, a despeito das normas internacionais e os compromissos já tomados nesse sentido”. Em conclusão, Navi Pillay reiterou o seu compromisso para com os direitos do Homem: “Como nova Alto Comissário para os Direitos do Homem, como indivíduo que já ultrapassei numerosos desafios no decurso da sua vida, farei todo o meu possível para defender e fazer avançar os direitos do Homem.”
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A revista Conscience et Liberté festeja os seus 60 anos… e permanece bem viva!
Em Setembro de 1948, o Dr. Jean Nussbaum, fundador da nossa Associação, a Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa (AIDLR), publicava o primeiro número da revista Conscience et Liberté em Paris. Na primeira página, ele expunha quais eram as suas motivações, as aspirações da Associação e os objectivos desta publicação, sob o título “Os nossos objectivos e os nossos projectos”: “A Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa tem como objectivo difundir pelo mundo os princípios desta liberdade fundamental e defender, por todos os meios legítimos, o direito de todo o homem praticar o culto da sua escolha ou de não praticar nenhum. A nossa Associação não representa nem uma Igreja particular, nem um partido político. Ela dedica-se à tarefa de reunir todas as forças espirituais para combater a intolerância e o fanatismo em todas as suas manifestações. Todos os homens, qualquer que seja a sua origem, a sua cor, a sua nacionalidade ou a sua religião, são convidados para esta cruzada contra o sectarismo, se se sentem apaixonados por um espírito de liberdade. A obra a realizar é imensa, mas não estará, certamente, para além das nossas forças nem dos nossos meios, se cada um se entregar ao trabalho com coragem. Realizaremos assim, o ecumenismo num plano particular, e de uma forma bem completa. Porque não nos dirigiremos apenas aos cristãos de toda a Terra, mas aos crentes de todas as religiões, e esperamos mesmo, que o nosso apelo também será ouvido por aqueles que não a têm. Porque não se juntarão eles a nós? Se lhes pedirmos que respeitem as nossas opiniões, estamos prontos a respeitar as suas, e defenderemos os seus direitos, com tanto ardor, como os nossos, porque não defenderemos interesses ou Igrejas mas um princípio cuja aplicação se deve estender a toda a humanidade, sem restrição.” 104
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O primeiro número da revista continua, igualmente, uma mensagem de encorajamento escrita pela primeira presidente do Comité de Honra da Associação: Senhores, Sinto-me desolada por não vos poder ter endereçado, em tempo útil, o artigo que me pediram, mas é com grande prazer que vos envio algumas linhas para apresentar os meus melhores votos de sucesso. Sinto-me feliz por publicarem uma revista que defenderá a liberdade religiosa. Sem a liberdade de consciência e sem a possibilidade de praticar livremente a religião da sua escolha, ninguém pode ser verdadeiramente livre. O meu marido também sempre considerou que estas liberdades eram fundamentais. Isso, para mim, reveste-se de uma tal importância que orarei para que a vossa revista exerça uma grande influência. As minhas sinceras saudações Eleanor Roosevelt A revista Conscience et Liberté e as actividades da AIDLR, têm resistido à prova do tempo. No decurso dos seus sessenta anos de existência, os defensores dos direitos do Homem, em geral, e da liberdade religiosa em particular têm relatado numerosas vitórias que justificam todos os esforços e todas as acções em favor deste direito fundamental. Contudo, durante, este mesmo período, também temos visto emergir, tantas, se não mais, dificuldades e desafios que tornam indispensável a prossecução da defesa dos direitos do Homem.
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Os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem
A 10 de Dezembro de 1948, no Palais de Chaillot, em Paris, a Assembleia Geral das Nações Unidas adoptou, na Resolução 217 A (III), a Declaração Universal dos Direitos do Homem. esta Declaração exprime a profissão de fé das Nações Unidas em favor dos princípios universais dos direitos do Homem e constitui o fundamento do Direito Internacional relativo aos direitos do Homem. Ela serve de exemplo para numerosos tratados internacionais e para numerosas declarações e tem sido retomada em muitas Constituições e leis nacionais. Logo após a Segunda Guerra Mundial, no decurso da qual foram cometidos alguns dos crimes mais horríveis de toda a História da Humanidade, a Declaração apresenta, pela primeira vez, a lista detalhada dos direitos e liberdades do indivíduo. A Carta dos Direitos do Homem das Nações Unidas é o documento relativo aos direitos do Homem mais conhecido no mundo e o mais frequentemente citado. Foi traduzido em perto de 350 línguas nacionais e regionais. Na época em que o texto foi elaborado (entre Janeiro de 1947 e Dezembro de 1948), a Comissão dos Direitos do Homem reuniu-se, pela primeira vez, a fim de redigir uma Carta mundial dos direitos fundamentais (International Bill of Human Rights). A sr.ª Eleanor Roosevelt, viúva do antigo presidente dos Estados Unidos, presidia à comissão de redacção assim como ao Comité de Honra da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa (de 1946 a 1962). Dadas as disparidades dos horizontes culturais, políticos, económicos e religiosos dos cinquenta e oito Estados membros, o projecto de declaração foi objecto de numerosos debates, antes de ser revisto pela Assembleia Geral e finalmente adoptado por unanimidade – exceptuando oito abstenções. Tratou-se de uma verdadeira vitória porque, mau grado este contexto, todos se encontravam, por uma vez, num mesmo sentido! Foi assim que a Declaração Universal dos Direitos do Homem se veio a tornar uma “Magna Carta” da Humanidade! O artigo primeiro estipula: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”. Aproveitamos a ocasião para reproduzir aqui, o preambula e os artigos 18 a 20, que têm uma ligação directa com o campo 106
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de competências da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa. Preâmbulo Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo; Considerando que o desconhecimento e o desprezo dos direitos do Homem conduziram a actos de barbárie que revoltam a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os seres humanos sejam livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado como a mais alta aspiração do homem; Considerando que é essencial a protecção dos direitos do Homem através de um regime de direito, para que o Homem não seja compelido, em supremo recurso, à revolta contra a tirania e a opressão; Considerando que é essencial encorajar o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações; Considerando que, na Carta, os povos das Nações Unidas proclamam, de novo, a sua fé nos direitos fundamentais do Homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres e se declaram resolvidos a favorecer o progresso social e a instaurar melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla; Considerando que os Estados membros se comprometeram a promover, em cooperação com a Organização das Nações Unidas, o respeito universal e efectivo dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais; Considerando que uma concepção comum destes direitos e liberdades é da mais alta importância para dar plena satisfação a tal compromisso, A Assembleia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Direitos do Homem como ideal comum a atingir por todos os povos e todas as Nações, a fim de que todos os indivíduos e todos os órgãos da sociedade, tendo-a constantemente no espírito, se esforcem, pelo ensino e pela educação, por desenvolver o respeito desses direitos e liberdades e por promover, por medidas progressivas de ordem nacional e internacional, o seu reconhecimento e a sua aplicação universais e efectivos tanto entre as populações dos próprios Estados membros como entre as dos territórios colocados sob a sua jurisdição. Artigo 18 – Liberdade de pensamento, de consciência e de religião Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho 107
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ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos. Artigo 19 – Liberdade de opinião e de expressão, de informação Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão. Artigo 20 – Liberdade de reunião e de associação 1. Toda a pessoa tem direito à liberdade de reunião e de associação pacíficas. 2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação. Para encontrar o texto integral da Declaração Universal dos Direitos do Homem: http://www.fd.uc.pt/hrc/enciclopedia/onu/textos_onu/dudh.pdf ou em http:// dre.pt/util/pdfs/files/dudh.pdf
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Declaração de Princípios Acreditamos que o direito à liberdade religiosa foi dado por Deus e afirmamos que ela se pode exercer nas melhores condições, quando há separação entre as organizações religiosas e o Estado. Acreditamos que toda a legislação, ou qualquer outro acto gover namental, que una as organizações religiosas e o Estado, se opõem aos interesses dessas duas instituições e podem causar prejuízo aos direitos do homem. Acreditamos que os governos foram instituídos por Deus para manter e proteger os homens no gozo dos seus direitos naturais e para regula mentar os assuntos civis; e que neste domínio tem o direito a obediência respeitosa e voluntária de cada individuo. Acreditamos no Direito natural inalienável do indivíduo à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de ter ou de adoptar uma religião ou uma convicção da sua escolha e de mudar segundo a sua consciência; assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, individualmente ou em comum, tanto em publico como em privado, através do culto e da realização dos ritos, das práticas e dos ensinos, devendo, cada um, no exercício desse direito, respeitar os mesmos direitos nos outros. Acreditamos que a liberdade religiosa comporta, igualmente, a liberdade de fundar e de manter instituições de caridade e educativas, de solicitar e de receber contribuições financeiras voluntárias, de observar os dias de repouso e de celebrar as festas de acordo com os preceitos da sua religião, e de manter relações com crentes e comunidades religiosas tanto ao nível nacional, como internacional. Acreditamos que a liberdade religiosa e a eliminação da intolerância e da descriminação fundadas sobre a religião ou a convicção, são essenciais para promover a compreensão, a paz e a amizade entre os povos. Acreditamos que os cidadãos deveriam utilizar todos os meios legais e honestos, para impedir toda a acção contrária a estes princípios, para que todos possam gozar das inestimáveis bênçãos da liberdade religiosa. Acreditamos que o espírito desta verdadeira liberdade religiosa está resumido na regra áurea: Tudo o que quiserem que os homens vos façam, façam-no a eles. 109
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