A ARTE DE OSGEMEOS
CRIAÇÕES DE GUTO LACAZ
NEUROARQUITETURA
MOVIMENTO ARMORIAL
XILOGRAVURAS DE J. BORGES
LITERATURA DE CORDEL
SAPATOS ESCULTURAIS
CAIXA DE PANDORA
ED. 2 | Nº 2 | 2023
Avenida Brasil: 3894 7000 | D&D Shopping: 5105 7760 | artefacto.com.br | @bcartefacto Foto: Marco Antonio MOSTRA ARTEFACTO BEACH & COUNTRY 2022 ROBERTO CIMINO E NELSON AMORIM
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14 Editorial 15 Carta do Editor 16 Design é tudo 18 Somos todos marceneiros? 20 Paixão pelo artesanato 24 Projeto Mauá 55 TÉCNICA
O design como essência das marcas 62 Como serão os carros do futuro? 66 Em busca de construções mais saudáveis 72 Renasce um museu 76 No caminho das pedras preciosas 81 ESPAÇO 82 Em nome da paz 85 Os Brasis do Brasil 88 Arquiteta do bem 91 Simples & natural 94 Arquitetura dos pés 29 PERFIL 30 Nem artista, nem designer 32 Portal para outros mundos 35 Design escultórico 38 Arte do lixo 42 Design com histórias 44 Mudanças de paradigmas 47 O homem biociclóptico 52 Móveis com alma 54 Tramas surrealistas
SUMÁRIO
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ANO 2 NÚMERO 2 © 2023 p.32
criação da capa HANS DONNER
9 99 TEMPO 100 Ecos do Movimento Armorial 106 Picasso do Sertão 110 Cordel e a corda do tempo 114 Ouro de Minas 120 Artesanato brasileiro mantém a floresta de pé 124 Design com calma 127 Conectividade entre passado e presente 131 CULTURA 132 Diálogos artísticos 136 Brenda Valansi 138 Salve a inutilidade da arte 140 Arte das crianças 142 Onde a arte e a arquitetura se encontram 148 Sem desperdícios 150 Yves Saint Laurent brilha
Divina arte 155 Aconteceu na DW 160 O design se curva à natureza 162 Desenho original p.91 p.96 p.142
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EXPEDIENTE & DESIGN MAGAZINE
IDEALIZADORA
HEAD DE CONTEÚDO
EDIÇÃO REVISÃO
RELACIONAMENTOS
FOTOGRAFIA COLABORADORES
Ângela Leal
Rosangela Moura
Eliana Castro
Ana Lúcia Neiva
Joice Joppert Leal
Joca Lutz e fotos de divulgação
Agda Carvalho, Ana Carolina Azevedo, Ângela Villarrubia, Angelo
Derenze, Bronie Lozneanu, Edson Valente, Eduardo Simões, Eleone Prestes, Jô Masson, Marcelo Lopes, Márcia Lencioni, Marcio Nonato Coutinho, Marianne Wenzel, Marta De Divitis, Regina Galvão, Ricardo Ribeiro, Sergio Zobaran, Simone Quintas, Simone Raitzik, Zizi Carderari
PROJETO GRÁFICO
COORDENAÇÃO E DIREÇÃO DE ARTE MAKING OF DA DIREÇÃO DE ARTE
EQUIPE DE ALUNOS ESTAGIÁRIOS DO INSTITUTO MAUÁ DE TECNOLOGIA
CRIAÇÃO GRÁFICA DA CAPA PRODUÇÃO, ARTES E EDIÇÃO DE VÍDEOS VERSÃO ON-LINE E MÍDIAS DIGITAIS
RELAÇÕES PÚBLICAS ESTRATÉGIA COMERCIAL
REDAÇÃO
GRÁFICA
ATENDIMENTO AO LEITOR ASSINATURA ANÚNCIO
Eliane Weizmann e Fábio Silveira IED
Cláudia Facca, Everaldo Pereira, Murilo Orefice
Austin Camigauchi, Cristiane Ruiz, Pedro Augusto Oliveira, Pedro Zero, Thiago Pirozalli
Clara Alissa, Emanuelle Ramos, Fernanda Carlini, Gisele Canever, Giulia Honda, Isabella Foganholo, Isabella Rodrigues, Isabelle Carvalho, João Ricardo Carini Leal, Julia Onaga, Larissa Mie, Lucas Fernandes, Luiz Gabriel Sarno, Marcela Amaro, Victor Scaramal
Hans Donner
John Christian Gonçalves e Joca Lutz
Jorge Flauzino @alavanka
Joel Reis
Denise Abe
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PARCEIROS DA &DESIGN MAGAZINE
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BEM-VINDOS À SEGUNDA EDIÇÃO IMPRESSA DA &DESIGN.
A segunda edição da @DESIGN Magazine também foi feita em sala de aula, com os coordenadores, professores e alunos do curso de Design do Instituto Mauá de Tecnologia. Faz parte do projeto editorial da &DESIGN a parceria com escolas e universidades que têm na grade curricular os diversos cursos de design.
Preciso ressaltar que todo o projeto gráfico da primeira edição foi executado com o corpo acadêmico e com os alunos do Instituto Europeu de Design (IED). Confesso que é bem trabalhoso, mas o prazer e a disponibilidade dos alunos abraçarem o desafio, realizarem as atividades e virem o trabalho concluído superam os obstáculos.
A segunda &DESIGN mostra a importância da criação de uma marca bem estruturada. Na construção da marca, o design vai muito além das cores, texturas e elementos gráficos. O designer precisa fazer uma imersão em 360 graus em conceitos, valores e tipos de comportamento expressos por uma empresa, produto ou serviço para caracterizá-los simbolicamente. É o branding redefinindo papéis para essa profissão.
A arte popular e o artesanato brasileiro estão com espaços relevantes nesta edição. E, como gostamos muito de pesquisar, de saber e de contar histórias, fomos prosear com o mestre J. Borges. Ele conta que, estimulado pelo poeta e amigo Olegário Fernandes, escreveu seu primeiro folheto, que narra a disputa dos dois vaqueiros no Sertão de Petrolina pela filha do coronel. O xilogravurista, que já foi comparado a Picasso, vendeu 5 mil exemplares em 2 meses. Pegou gosto e já produziu 314 folhetos.
Enfatizamos ainda nesta edição a história da Literatura de Cordel, a comemoração dos 50 anos do Movimento Armorial e a importância do Ariano Suassuna na arte popular brasileira. Boa leitura e até a próxima edição.
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EDITORIAL
POR ROSANGELA MOURA
DESIGN É TUDO
POR ANGELO DERENZE
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&DESIGN :: O QUE É DESIGN
© ILUSTRAÇÃO LÍVIA FARIAS CASSIMIRO © FOTO RAFAEL RENZO
HHoje, falar de design no Brasil é mais fácil, pois as pessoas valorizam muito isso. Vivemos uma grande caminhada até aqui, porque, na minha opinião, antes o design era considerado algo bonito, luxuoso e não confortável de usar.
Mas a indústria brasileira evoluiu, e agora vemos o design a um custo associado com funcionalidade e beleza, que é a sua verdadeira essência.
Nosso segmento tem muita relação com a Itália, lembrando que, quando Leonardo Da Vinci estudava pintura em 1500, o Brasil não havia sido descoberto. Olhe como evoluímos!
Mas não esqueço o momento de emoção que tive quando vi, pela primeira vez, o abridor de vinho da Alessi “Bailarina”, criado pelo grande mestre Alessandro Mendini. Ali, vi o design personalizado em um produto: quando se abre o vinho, os braços se movem como em um verdadeiro ballet.
Minha emoção só aumentou quando, dez anos depois, conheci o Mendini, que me falou sobre o grande amor da vida dele, que havia sido Anna G, a homenageada.
Ter conhecido ele me deu a certeza que o design é tudo.
Designer, arquiteto e filósofo, o italiano Alessandro Mendini (1931-2019) foi um dos fundadores do Radical Design. O movimento que ficou mais conhecido entre os anos 1960-70 tinha forte influência da cultura pop pós-moderna e misturava arte e arquitetura com design.
Apesar de o saca-rolha Anna G ter ficado conhecido como “bailarina”, a inspiração de Mendini para criar essa peça de 1994, seu maior best-seller, foi a artista e designer de interiores Anna Gili, esposa e colaboradora de Alessandro.
Angelo Derenze é diretor-geral do D&D Shopping
MARCENEIROS? SOMOS TODOS
Nem Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, o Tom Jobim (Rio de Janeiro - 1927 / Nova York - 1994), nosso compositor maior, além de cantor, pianista etc., apostou apenas na própria música “Samba de uma nota só”. Gênio criativo, ele soube usar todas as notas… Mas a base, como o maestro afirma, é ou tem de ser necessariamente uma só?
Às vezes parece que o design brasileiro de mobiliário segue esse pensamento da letra da música ao se apoiar primordialmente em um só material, como é o caso do uso incessante da madeira, associada a poucos elementos – mais o couro e o tecido, e menos as fibras e as pedras. Mas, a princípio, a madeira – esperamos que certificada – serve como base da maioria dos “móveis de design” que criamos e produzimos contemporaneamente. Por onde andam o barro e o tijolo, a cerâmica, o cimento e o concreto, os metais? Somente nas mostras de decoração? E os materiais com base em novas tecnologias?
E surge aí outra pergunta que não quer calar: precisamos efetivamente – em tempos sustentáveis e, talvez por isso, mais artesanais e feitos à mão – de tantos novos modelos de bancos, cadeiras e poltronas, repetindo a fórmula tão
18 &DESIGN :: IDENTIDADE BRASILEIRA
Por um design de móveis brasileiro que vá além dos bancos e das cadeiras de madeira
POR SERGIO ZOBARAN
quase que somente baseada nos mesmos materiais? Pressão da indústria e, por consequência, do grande varejo, que precisa produzir para vender, é uma resposta plausível. Falta de imaginação dos criativos nem soa como argumento, porque não é verdade. Temos muitos exemplos de excelentes profissionais, assim como estúdios, ateliês, oficinas e indústrias trabalhando muito – e bem – desde o tempo em que o design não existia como classificação para mobiliário. Tudo era móvel…
Então, por que nos inspiramos tantas vezes em congêneres do exterior? Não, por favor! Porque “yes, nós temos bananas!”. Ou será que definitivamente existe um zeitgeist universal compulsivo? Ou seria a tal da tendência?!? O fato é que continuamos copiando coisas que já existem lá fora… E aí tudo resulta indesculpável em um mundo chafurdado em informação rápida e barata na internet. Não tem jeito a dar? Tem! Talvez esteja se fazendo uma intenção confessa (homenagem, se explícita, okay!). Mas, se for camuflada (que bobagem, em qualquer caso), não podemos aceitar – vira um processo.
Aliás, ainda outra questão, talvez a mais importante de todas: por que hoje, em diversas ocasiões, como agora, reduzimos a criação e a utilização dos diversos setores de design somente na categoria do mobiliário, quando em nossa história temos ícones (pessoas e produtos) de design gráfico e industrial que não têm nada a ver com esse assunto específico que aqui abordamos por ser o queridinho do Brasil atual? Cases como o das Havaianas, com a releitura do século 20 para as sandálias da antiguidade chinesa, ou a clássica
grega, e biquínis em ousadia maior brasileira, como o “asa-delta”, são dois itens que representam/representaram a moda nacional no binômio jeitinho brasileiro + indústria antenada com o território que habita, e até para exportação.
Na área gráfica, as cédulas de dinheiro de um Aloísio Magalhães, com todo o seu trabalho de moderno resgate do País tropical, e as peripécias eletrônicas de um austríaco Hans Donner na tela da potente Rede Globo por quase 50 anos, uma história eletrônica de nível internacional made in Brazil. No ar, os aviões que sobrevoam a Terra nas asas da Embraer também soam como grande exemplo.
Diante de tudo isso, é preciso – antes de mais nada – pensar, estudar (o que significa ler), pesquisar (o que significa também ver), experimentar e testar até oferecer ao mercado um produto efetivamente útil, adequado, justamente precificado, e que atenda a uma necessidade da sociedade, nem que seja seu uso por vaidade, com rima mesmo.
O importante é fazer o que se gosta e se sabe, mas sugiro: vamos dar preferência ao que o mundo precisa nessa hora turbulenta, onde todos queremos o melhor, sem desperdícios ou grandes arroubos (ou roubos) de criatividade, mas de adequação a um espaço de viver melhor para a humanidade. Com muito e cada vez mais necessário design.
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© ILUSTRAÇÕES LARISSA MIE
PAIXÃO PELO ARTESANATO
Fundadora do Museu A CASA do Objeto Brasileiro, Renata Mellão incentiva e valoriza o fazer manual pelo País
©FOTO DIVULGAÇÃO
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&DESIGN :: MUSEU A CASA
POR REGINA GALVÃO
FFormada em Economia, Renata Mellão é referência quando se trata de artesanato no Brasil. Artista por vocação, criou um centro de identidade brasileira, com arte, música e gastronomia, em um dos seus imóveis. E foi assim que nasceu o Museu A CASA do Objeto Brasileiro, em 1997. Com sede primeiramente nos Jardins, e depois em Pinheiros, a instituição cultural ganhou prédio próprio na Avenida Pedroso de Morais, com projeto de Luiz Fernando Rocco. Em um terreno restrito e inclinado, o arquiteto planejou uma construção de linhas arrojadas cercada por uma praça com árvores e plantas.
Valorizar o desenvolvimento da produção artesanal e do design é uma missão que Renata desempenha com paixão. São muitas as oficinas e viagens feitas com sua equipe, muitas vezes bancadas com recursos próprios, para aprimorar técnicas e desenvolver coleções que possam despertar interesse de renomadas lojas pelo País.
Na Ilha do Ferro, comunidade do município alagoano de Pão de Açúcar, às margens do Rio São Francisco, Renata reformou, com a estilista Paula Ferber, a sede da Associação Art-Ilha,
© FOTOS DANIEL DULCCI / DIVULGAÇÃO
Renata Mellão, apaixonada por artesanato brasileiro, viaja pelo País com sua equipe para fazer oficinas e pesquisas
cuja produção do bordado “boa-noite” é exclusiva no Brasil. A iniciativa trouxe mais artesãs para a associação, que, com oficinas coordenadas pelo designer e curador Renato Imbroisi, idealizaram uma linha de mesa, almofadas e cortinas – todas de cores diversas e desenhos inspirados na paisagem local.
“As novas coleções incrementaram as vendas, tornaram a técnica desse bordado tradicional mais reconhecida e valorizada, e melhorou a autoestima e a sustentabilidade financeira das artesãs”, conta a diretora do museu.
Esses projetos, feitos em diferentes estados, além de oferecer novas oportunidades de trabalho, costumam também gerar exposições na sede do museu, como foi o caso de A CASA AMA Carnaúba.
Em 2017, a AMA, empresa social da Ambev, contratou a instituição para realizar um projeto de revitalização e inovação do trançado da palha de carnaúba no município de Jaguaruana, no sertão do Ceará. Até então, os artigos, feitos por eles, se restringiam a peças do dia a dia, como chapéus, vassouras e esteiras.
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A equipe do A CASA, coordenada mais uma vez por Renata e Imbroisi, propôs exercícios para diferentes grupos. O processo não foi fácil, pois muitos deles tinham parado de trançar havia anos. As oficinas provocaram desafios, trazendo cores, novos trançados e grafismos a bolsas, cestos, esteiras, mesas, pufes, bancos, redes e luminárias, vendidos posteriormente tanto na loja do museu como em outras pelo Brasil.
Em 2019, foi a vez de A CASA se aproximar do ACNUR – o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. Juntos, iniciaram um projeto com os indígenas venezuelanos da etnia warao, que chegaram ao norte do Brasil impulsionados pela difícil situação econômica e política enfrentada naquele país. “No mundo de hoje, onde uma parcela da população se encontra em trânsito, incentivar a produção artesanal é um meio eficiente de espelhar a identidade e permitir que se viva dignamente”, afirma Renata.
Para a realização das primeiras oficinas em Boa Vista, A CASA convidou o designer Sérgio Matos. Partindo da técnica tradicional dos warao, desenvolveu-se cestos, vasos e luminárias com a fibra da palmeira de buriti, considerada uma “mãe” para eles. Todo o processo resultou na compra da coleção pelo museu e em uma exposição, cujo acervo foi vendido já na noite da inauguração.
Renata é também a idealizadora do Prêmio Objeto Brasileiro que se encontra em sua 8ª edição. Dividida em três categorias – Autoral, Coletiva e Socioambiental –, a premiação bienal selecionou, neste ano, 22 objetos de diversas regiões do Brasil, eleitos por um júri de peso: os designers Paulo Alves e Rodrigo Ambrosio, e a antropóloga Sonia Carbonell. O conjunto, com obras vencedoras e menções honrosas, está exposto na sede do A CASA, em Pinheiros, destacando o melhor da produção artesanal e do design contemporâneo do nosso País. “Esse é um movimento que mobiliza o setor artesanal, incentiva a troca de saberes e nos permite conhecer projetos inovadores e carregados de brasilidade”, conclui a economista dedicada ao artesanato.
O Museu A CASA tem valorizado o desenvolvimento da produção artesanal e do design brasileiro desde sua fundação, em 1997
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©FOTOS GUSTAVO RIBEIRO/DIVULGAÇÃO
A INTERDISCIPLINARIDADE APLICADA AO DESIGN GRÁFICO
Os bastidores da criação do projeto gráfico da 2ª edição da &Design Magazine pelos alunos da Mauá
POR
EVERALDO PEREIRA, MURILO OREFICE E CLAUDIA FACCA
&DESIGN :: MAUÁ 24
Tudo nasce das ideias, elas dão origem aos fatos que apenas lhes servem de envelope.
- Aloísio Magalhães
SSermos convidados para participar da criação gráfica da 2ª edição da Revista &Design foi uma grande honra e um enorme desafio.
O Curso de Design do Instituto Mauá de Tecnologia vem sendo desafiado desde sua criação em 2007. Instalado numa Escola de Engenharia e primordialmente centrado no design de produtos, participar do projeto gráfico de uma revista de design foi uma grande responsabilidade aceita com o maior entusiasmo. O design na Mauá tem ampliado sua atuação e hoje forma profissionais capazes de desenvolver projetos nas áreas de design de produto, design gráfico, design digital e design de serviços.
Totalmente voltadas para a prática e com o desenvolvimento de projetos em todos os semestres, parcerias com empresas de diversos setores trazem para o mundo acadêmico problemas reais do mercado que serão solucionados por equipes de alunos criativos e professores experientes. Essas equipes multidisciplinares fortalecem o tripé da inovação, mote estratégico da Instituição, com a integração entre as áreas de Design, Engenharia, TI e Administração, com base nos princípios de desejabilidade, factibilidade e viabilidade.
Nesse contexto e de modo interdisciplinar, este projeto contou com a participação de professores, alunos e alunas de design de diferentes séries que contribuíram com competências distintas e complementares. Alunos do primeiro ano já puderam compartilhar dos conhecimentos de alunos mais experientes em um desafio prático e estimulante. E participar de um projeto real, resolvendo problemas trazidos pelos clientes, pensando em soluções criativas, viáveis e factíveis, discutindo as ideias e tendo um feedback imediato das propostas apresentadas é o propósito do design... É para isso que formamos nossos alunos e futuros designers.
Aloísio Magalhães foi um dos principais designers gráficos brasileiros, pioneiro na introdução do design moderno no Brasil e criador da identidade visual de grandes marcas como Petrobrás, Bienal SP, Banco Central, Banco Nacional, Light, entre outras.
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do primeiro ano já puderam compartilhar dos conhecimentos de alunos mais experientes em um desafio prático e estimulante."
Criar um plano de gestão com distribuição de tarefas e organização dos ativos digitais, como fotografia, ilustração e texto, forma uma simbiose.
" Separar as equipes por afinidade com as áreas de ilustração, edição de imagens, diagramação, revisão de layout e audiovisual foi fundamental para o processo de criação e elaboração do projeto. "
" Alunos
Um dos grandes desafios deste projeto gráfico foi pensar de modo físico num mundo que está se tornando cada vez mais digital. Todos os alunos e alunas envolvidos no projeto têm grande afinidade com os ambientes digitais e pensam de modo digital. Portanto, resgatar a prática do design gráfico impresso, num mundo digital, trouxe desafios práticos, tais como: a geração de formatos de arquivos específicos, a gestão de ativos gráficos, a resolução de tela versus resolução de página impressa, o comportamento das cores em suportes físicos versus cores de telas...
Criar um plano de gestão com distribuição de tarefas e organização dos ativos digitais, como fotografia, ilustração e texto, forma uma simbiose. E a verdadeira arte do design gráfico editorial está em saber fazer arranjos visuais atrativos e adequados aos leitores, à identidade da revista e ao propósito de cada reportagem. Com isso em mente, a equipe buscou soluções criativas e esteticamente interessantes para as páginas, respeitando o projeto gráfico da publicação.
Separar as equipes por afinidade com as áreas de ilustração, edição de imagens, diagramação, revisão de layout e audiovisual foi fundamental para o processo de criação e elaboração do projeto. A partir daí, cada área passou a desenvolver o trabalho, procurando entender as melhores possibilidades de representações visuais para os conteúdos. Foram feitas pesquisas referenciais e de estilos de ilustrações, rascunhos e sketches para as imagens, finalização dos desenhos e diagramação das páginas. Depois disso, o próximo passo foi reunir novamente todo o conteúdo e as informações visualmente organizadas e “tratadas” no projeto gráfico final. Foi um trabalho bastante desafiador e de crescimento para a equipe. E ver o resultado de todo o processo nas páginas da revista é muito gratificante.
Com muita criatividade, alunos e alunas da Mauá desenvolveram edição de fotos, ilustração e diagramação, sob orientação de professores, para esta nova edição da &Design
© FOTOS AUSTIN CAMIGAUCHI CRISTIANE RUIZ/PEDRO ZERO THIAGO PIROZALLI
+ Rapha Preto
Wesley Sacardi
Luiza Caldari
Danilo Vale
Guto Índio da Costa
Guto Lacaz
Cabelo onda, 2017 OSGEMEOS Tinta spray sobre madeira.
PORTAL PARA OUTROS MUNDOS p.32 DESIGN ESCULTÓRICO p.35 MÓVEIS COM ALMA p.52
&PERFIL
NEM ARTISTA, NEM DESIGNER
© FOTO JOCA LUTZ
Rapha Preto diz não se enquadrar em nenhum desses títulos. E que tudo o que cria vem da alma. “E ela é muito livre”
“O design aconteceu na minha vida por acaso, em uma brincadeira”, conta Rapha Preto, um dos designers da nova geração que vem despontando. Vivendo praticamente em meio à metalúrgica da família, que tem cerca de 80 anos, ele projetava máquinas e fazia algumas peças na fábrica. “Sempre fui um cara criativo, envolvido com arte, música e gastronomia, e isso me levava a gostar de criar”. Aconteceu, então, a tal obra do acaso. “Estava ajudando um amigo na decoração de sua casa, fazendo umas peças para ele. A arquiteta curtiu e me convidou para participar da mostra M. Morar”, lembra. O designer fez uma escultura de parede, participou da exposição e, a partir daí, foi convidado por uma revista para fazer uma mesa, a Iron One, que logo virou sucesso e ganhou as páginas de diversas publicações. Na sequência, veio a poltrona Rock, feita com o designer Estevão Toledo, amigo de Preto. “Minha carreira começou a andar e eu mal sabia se estava fazendo arte ou design. Mas acabei me entendendo e separando as duas coisas."
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RAPHA PRETO
"Desenho para marcas de luxo e tenho meu estúdio [Rapha Preto Studio] mais ligado à arte, onde trabalho com uma equipe multidisciplinar e que inclui pessoas com síndrome de down, espectro autista e TDH. É esse meu projeto de vida”, conta Preto.
Para ele, a marca registrada do seu trabalho é o propósito, a empatia e o carinho. “Queremos ajudar pessoas e trazer humanidade para o design e a arte”, diz. Preto garante que essa diversidade da equipe é essencial. Não apenas porque, ao projetar alguma peça, ele ganha com diferentes olhares para cada projeto, mas porque o designer acredita que cada peça precisa ter um porquê de ser criada. “É isso que vai torná-la tão especial. Tem de ter história para ter valor. Repare que todo mundo possui algum objeto que passa de geração em geração, porque tem algo que é importante de algum modo”, explica.
Para ele, a graça do possuir é essa. “Quando vejo uma obra na casa de alguém, quero saber a história. É como abrir um vinho caro: a gente fala sobre a uva e outros detalhes. Faz parte da apreciação. Com peça de design e de arte, deve acontecer a mesma coisa”.
nagem que terá sua história contada a partir das experiências de autismo, down e TDH ligadas às pessoas de seu time.
E Preto está aberto para continuar criando tanto para marcas de móveis quanto para moda ou o que mais vier. “Eu não tenho limite. Desde que comecei, falei que iria me divertir. Eu trabalho para o design e para a arte. Mas não me considero designer nem artista. Também não faço nada sozinho. Sempre crio com minha equipe. Brinco que somos criativos com superpoderes”. Ele também diz não se enquadrar em nenhum estilo. “Crio com o coração. Tudo vem da minha alma – e minha alma é muito livre”.
Acima, Balanço Fla, para Doimo Brasil. Ao lado, escultura da coleção Padrone. Página anterior, tapete EVO 2 criado para a Tapetah
© FOTOS DIVULGAÇÃO
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PORTAL PARA
OUTROS MUNDOS
OSGEMEOS contam como transformaram o universo particular em grafites que estão em galerias e nas ruas de diversos países
POR ÂNGELA VILLARRUBIA
32 &DESIGN :: OSGEMEOS
©FOTO LOST ART
É fácil imaginar a arte colorida e substanciosa assinada por OSGEMEOS transportada para a linguagem dos desenhos animados. Pois essa possibilidade empolga Otávio e Gustavo Pandolfo, particularmente conhecidos pelos grafites que transbordam de vivacidade em muros e empenas de cidades do Brasil e do mundo. “Sempre entendemos que nosso trabalho é vivo, animado. Ele fala, tem cheiro, voz, movimento e atitude”, observam.
Eles já fizeram experimentos nesse sentido, mas entendem que essa empreitada tem outra escala e que demanda tempo, dedicação e uma equipe especializada. “Pra nós, é muito fácil enxergar a animação. Temos alguns sonhos [como esse], que sabemos que acontecerão, mas somos felizes com o que estamos fazendo – seja nas ruas, nas telas, com instalações. Já vivemos dentro do sonho”, confessam.
E o sonho começou quando ainda eram meninos. Desde a maneira de arrumar a comida no prato – o feijão virava um carrinho no meio do arroz, enquanto o ovo frito se transformava em um vulcão em erupção –, até a invenção de brinquedos com coisas que muitas vezes pegavam na rua, no bairro paulistano do Cambuci, onde residiam. Vale lembrar que por ali também estava fincado o ateliê de Alfredo Volpi, que chegaram a visitar, levados pelos pais, seus grandes incentivadores. Hoje em dia, os irmãos não abrem mão de manter seu estúdio naquela vizinhança.
A pintura mural começou dentro de casa, mais especificamente na parede do próprio dormitório. “Como pré-adolescentes, queríamos transformar pelo menos o nosso quarto. Tínhamos 11 ou 12 anos. Era algo mais lúdico. Era como uma cápsula, uma máquina do tempo. Ali dentro estávamos dentro do nosso universo”, dizem. Eles também pintaram o quintal e fizeram instalações no meio da sala. Seus pais e irmãos entenderam, desde cedo, que eles viviam nesse cosmo particular e davam liberdade para mergulharem nele.
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©FOTO FILIPE BERNDT
OSGEMEOS estudaram em escola estadual e cresceram brincando na rua, em frente à casa da família. Logo se depararam com o hip-hop, que foi a brecha para descobrirem outros mundos, como o da street art, ainda pouco conhecida nas décadas de 1980 e 1990. Eles fazem parte da segunda geração de artistas, “mas a primeira do hip-hop”, como salientam.
Eles são contemporâneos de artistas como Speto, Tinho e Binho, entre outros, que tiveram de “descobrir como fazer”. “Com a cultura do grafite, pudemos expressar o que estava dentro de nossas cabeças”, além de encher as ruas de arte – um bem inestimável para qualquer urbe. “Também era uma forma de lutar e de nos afirmar na sociedade. Porque era uma época difícil para se manifestar. Havia ditadura e estava tudo turbulento. Era um movimento ascendente, que ocupava a cidade”, recordam.
Os irmãos não desenham ou pintam diariamente, mas a corrente de ideias é inesgotável. “A cabeça produz todos os dias”. Eles versam sobre absolutamente tudo. “É isso o que nos cativa: mostrar para as pessoas o que vemos, o mundo no qual vivemos. É importante dividir. Falamos muito de amor em nossa obra… Quando coloca-
©FOTO STEPHANIE BLEIER
mos um trabalho na rua, é um portal dentro dessa cidade gigantesca onde moramos”.
Suas realizações são notadamente coloridas e estão repletas de pessoas em múltiplas situações. OSGEMEOS confessam terem estudado e experimentado bastante para chegar ao matiz de amarelo que tinge suas figuras humanas e que imprime muita personalidade a cada criação. Ele representaria seu lado lúdico e espiritual, e começou a aparecer em suas obras no início dos anos de 1990. Otávio e Gustavo também dizem improvisar bastante com o uso da paleta, de forma geral, e enfatizam que todas as tonalidades combinam entre si. Ou, pelo menos, isso funciona dentro do seu trabalho. “A vida aí fora é muito em branco e preto. As cores que havia foram tiradas e transformadas em concreto. Tentamos trazê-las de volta. É muito simples: a vida sem cores é triste”.
Outra característica marcante de sua arte é a quantidade e a qualidade dos pormenores. Eles acreditam que isso ajuda a ilustrar melhor as suas ideias. “As pessoas se sentem mais próximas do que fazemos. Entendem melhor a atmosfera, o clima, o cheiro, o lugar”, ressaltam.
E dentro desse sonho também cabem as exposições em galerias e museus. Foi notória a realizada na Pinacoteca de São Paulo, denominada OSGEMEOS: Nossos Segredos, que posteriormente migrou para o Museu Oscar Niemeyer (MON), em Curitiba, e esteve no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro. A próxima parada é em Belo Horizonte.
“Com a cultura do grafite, pudemos expressar o que estava dentro de nossas cabeças.”
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ESCULTÓRICO
Entre a arte e os processos industriais, Estúdio Rain se firma como um dos principais talentos do design brasileiro
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REGINA GALVÃO &DESIGN :: ESTÚDIO RAIN
POR
Mariana Ramos é designer, Ricardo Innecco, arquiteto. Nascidos em Brasília, cidade em que também cursaram a universidade, eles uniram talentos em 2014, quando fundaram o Estúdio Rain, em São Paulo, depois de algumas experiências profissionais na capital paulista. Com produção própria, a dupla projeta móveis, luminárias e objetos, cujas linhas evidenciam o
Em 2015, as mesas baixas Piscina, um dos primeiros produtos assinados por eles, virou hit, com publicações em revistas e sites nacionais e estrangeiros. Em 2018, foi a vez de ganharem reconhecimento internacional, sendo eleitos pelo influente portal Dezeen um dos cinco destaques do design brasileiro emergente. Em 2020, a dupla viajou para Frankfurt, Alemanha, e participou da Feira Ambiente, uma das mais importantes de utilitários do mundo, que os escolheu, ao lado de outros quatro estúdios, para homenagear o Brasil.
Sem fazer alarde, Mariana e Ricardo trilham um caminho consistente no design nacional, transitando entre a arte e os processos industriais. Na mais recente coleção, surpreenderam com a originalidade das linhas Rícino e Sólida, ambas expostas durante a Semana de Design de São Paulo, o DW!, no showroom localizado na Barra Funda.
Rícino (acima e à direita) é uma coleção de luminárias de aspecto quase incorpóreo, feitas em resina vegetal à base do óleo de mamona
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Pesquisadores incansáveis de materiais renováveis, testaram por três anos uma resina maleável e altamente resistente a variações de temperatura. O polímero feito à base de óleo de mamona foi desenvolvido pela Universidade de São Paulo e tem uso mais frequente na construção civil.
O aspecto âmbar, a transparência e a estabilidade térmica dessa matéria-prima motivaram a dupla a testá-la em luminárias, o que resultou na linha Rícino, com quatro modelos – de mesa, parede e piso –, apoiados em estruturas de alumínio. “Além de ser sustentável, o material produz uma luz alaranjada. O desenho irregular das bordas captura o processo de fundição, conservando o estado líquido inicial da resina. É como se a forma final da peça contasse a história de seu processo de produção”, afirma Mariana.
Em contraponto com a leveza da Rícino, a série Sólida emprega a madeira maciça como principal elemento construtivo. Cada peça –duas mesas e dois bancos, produzidos em máquina de CNC – é composta por dois ou três volumes sintéticos e de diferentes dimensões, que, sobrepostos, sugerem uma relação de equilíbrio entre eles. “São curvas precisas, e a nossa ideia foi justamente contrastar o material natural com essas formas orgânicas e almofadadas, resultado de processos digitais”, explica os profissionais, que já partiram para novas pesquisas, pensando, é claro, na próxima coleção do Rain.
A série Sólida, composta de duas mesas, um banco e uma baqueta, tem curvas irregulares e simétricas contrastando com o uso da madeira maciça Garapeira
©FOTOS ALEX BATISTA
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ARTE DO LIXO
Wesley Sacardi é um designer brasileiro, nascido em São Paulo, onde viveu até 2020, quando se mudou para o Algarve, região sul de Portugal. Na cidade de Loulé, desenvolve seu trabalho em uma residência artística e participou da Algarve Design Meeting.
A série Descartes é sua principal obra. São peças produzidas a partir de matéria-prima de madeiras de descarte, que provocam inquietude e questionamento ambiental, fazendo com que seu trabalho se destaque internacionalmente. A seguir, alguns trechos da entrevista realizada com Sacardi.
&DESIGN - Como foi sua trajetória profissional até chegar a Portugal?
Wesley Sacardi - Eu comecei a trabalhar com madeira em 2016, quando deixei o mercado publicitário e fiz essa transição profissional. Foi então que passei a criar peças de mobiliário. Eu sempre fui muito aspiracional, sempre gostei muito de criar coisas e a minha infância foi movida pela criatividade. Sempre batalhei bastante para ter essa liberdade criativa. Em 2018, eu já tinha iniciado esse trabalho no Brasil e tive a oportunidade de vir para Portugal a passeio.
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O designer brasileiro Wesley Sacardi apresenta a série Descartes, em que recicla madeira para criar peças muito especiais
POR ANA CAROLINA AZEVEDO
&DESIGN :: WESLEY
SACARDI
Acabei me apaixonando pela região do Algarve. Eu conheci algumas células de criatividade na cidade, em Loulé, onde moro atualmente, e faço parte, como residente artístico, no Loulé Design Lab. Tudo isso fez eu me sentir atraído a vir pra cá e dar continuidade ao meu trabalho.
&D - De onde vem sua inspiração com a Série Descartes? Fale também sobre o banco Bigorna, uma peça icônica da sua coleção.
WS - Sempre me incomodou muito a questão de olhar para as coisas que estavam no lixo e imaginar porque aquilo não tinha outra função. Depois que eu comecei, literalmente, a trabalhar profissionalmente com a madeira – e não mais como hobby –, uma das formas que eu encontrei para treinar foi resgatar as madeiras que estavam nas ruas para fazer bancos e banquetas. E isso foi crescendo. Mas a série Descartes vai além da matéria-prima: é um trabalho para questionar o descarte que nós fazemos e buscar nova utilização para ele. Quando eu criei o banco Bigorna, pensei em elevar o mobiliário, ir além de criar uma identidade com a casa, com o local em que ele está, mas de propor outra função. E o Bigorna possibilita isso, porque forma padrões quando unido a mais peças. Criei uma série de fotos, com oito ou dez peças, onde o
banco vai sendo empilhado e surgindo formas infinitas. Eu gosto de peças que possam se transformar: uma peça tem uma função, duas já tem outra. É uma proposta de interatividade com as peças.
&D - Hoje vemos o uso de materiais de descarte dentro do mercado de luxo. Você considera isso uma tendência para o futuro do design?
WS - É um caminho que temos de seguir. E é um questionamento que eu sempre fazia: "por que eu uso algo e depois jogo fora?". Essa matéria-prima já foi produzida e, então, por que não garantir uma nova utilidade para ela? É importante pensar em formas de desenvolver uma produção onde haja essa preocupação com o uso da peça no futuro, como reciclar ou reutilizar sem causar muito impacto. Hoje, as pessoas estão com mais consciência do uso e do consumo de forma geral, existe a questão de responsabilidade como consumidor. Esse mercado da reutilização dos materiais vem crescendo e pode ter peças de arte valiosas. Esse é o desafio dos criativos: pensar como podemos desenvolver algo que vai ter vida nova e longa junto aos consumidores – e que fique bonito! Não é somente o ato de utilizar a matéria-prima e produzir algo sem uma linguagem ou sem um conceito, pois senão acabará gerando mais lixo depois.
Wesley sempre se incomodou com coisas que estavam no lixo e não tinham mais função. Por isso, seu trabalho busca dar vida a madeiras de descarte.
Ao lado, bancos da série Descarte. Acima peças da série Anéis
Esse é o desafio dos criativos: pensar como podemos desenvolver algo que vai ter vida nova e longa junto aos consumidores – e que fique bonito!
© FOTOS DIVULGAÇÃO
DESIGN COM HISTÓRIAS
Com trabalhos expostos nas principais feiras e mostras internacionais, o designer de móveis Danilo Vale cria peças que narram o universo pessoal
&DESIGN :: DANILO VALE
Designer de mobílias, Danilo Vale confessa que na casa dele, onde mora com a família, nada é perfeito. “Tem coisa fora do lugar, meu sofá está manchado de suco que as crianças derrubaram”, diz. Para ele, esses desarranjos fazem parte da história de um lar. “Uma casa perfeita é irreal. Me incomoda, porque não diz nada sobre quem mora nela”.
Da mesma forma que ele gosta de ver a história das pessoas impressa nos lugares em que habitam, Danilo procura imprimir a história pessoal em suas peças. Com isso, seu trabalho carrega muitas referências de Brasília, sua cidade. “Essas influências acontecem naturalmente, na maioria das vezes, eu nem percebo”, afirma o designer, que ganhou projeção internacional participando das mais relevantes feiras e exposições em Milão, Paris, Nova York e outras.
A cadeira Athos, sua primeira peça, é uma releitura dos painéis do artista plástico Athos Bulcão, que estão em várias edificações. A mesa Superquadra faz alusão às fachadas dos edifícios de Brasília e à forma como a cidade foi planejada por Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. E a mesa Planalto é inspirada no modernismo, também presente na origem da Capital Federal do Brasil. “Acho que apenas o banco Tião, feito com vergalhão de construção e ligado ao movimento brutalista, não tem relação com o Distrito Federal”, diz. Ao mesmo tempo, o fio condutor entre os produtos criados pelo designer tem a limpeza e a leveza do minimalismo.
Na última edição da Semana de Design de Milão, Danilo apresentou sua mais recente produção, a linha Tereza – também exposta na MADE, em São Paulo –, que representa a guinada do designer por se distanciar de Brasília e evidenciar o trabalho manual em seus móveis.
Nessa nova linha, ele trabalha com a ideia da transformação do material ao longo do tempo, o que, trocando em miúdos, significa deixar que o material conte a própria história. “Acho que, quanto mais velho, mais bonito fica o couro, porque vai mudando de cor, racha, ganha formas”, afirma. O designer explica que as peças da Tereza refletem seu desejo de resgatar a técnica manual de tramar tiras de couro – muito forte no artesanato brasileiro – e que, por suas mãos, ganham ares contemporâneos graças às estruturas de aço.
“Meu trabalho tem algo de brasilidade, mas nem sempre é fácil detectá-la, porque ela se mescla com diferentes culturas, já que minha produção bebe muito no estilo contemporâneo e no modernista”, explica.
Como próximo passo, Danilo adianta que, além dos móveis, vai desenvolver objetos de decoração. Como ainda está em fase embrionária, ele prefere não revelar muitos detalhes, mas garante que vai continuar a buscar um design autoral para as novas peças, caminho que persegue desde o início da sua carreira. Também assegura que buscará contar histórias com esses objetos. “O consumidor não está apenas interessado no objeto em si. Ele quer saber da história que existe por trás dele. E esse é o desafio que me proponho desde sempre”, afirma.
Danilo e a cadeira da linha Tereza, que resgata técnicas manuais de trançar o couro
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©FOTO
E VÍDEO BRUNO LEMOS/DIVULGAÇÃO
Cadeira Athos, homenagem a Athos Bulcão
MUDANÇAS
DE PARADIGMAS
Guto revela as dificuldades da profissão e aponta o design thinking como um caminho para o futuro
Corredor Expresso BHLS
Transoceânica, Niterói, RJ: o projeto venceu o prêmio da Brasil Design Award com classificação Ouro. Ao lado Chaise Longue, de 2019
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&DESIGN :: GUTO ÍNDIO DA COSTA
O Ventilador Spirit é umas das peças mais premiadas da história do designer
Reconhecido internacionalmente, Guto Índio da Costa é um dos mais premiados designers industriais do Brasil. Nem por isso a vida é fácil para ele! Tanto que desistiu de exportar produtos de design para exportar projetos.
Motivos para tomar essa decisão não lhe faltam. O primeiro deles está diretamente ligado à instabilidade da economia do Brasil, algo importantíssimo quando se trabalha em larga escala. “A indústria tem um ciclo muito longo para desenvolver um produto e não consegue fazer isso se, no início de um projeto, a Selic está a 3% e depois sobe para 14%”, explica.
Criador de um dos produtos brasileiros mais premiados da história, o ventilador Spirit, o designer carioca também aponta como desafio atender às muitas normas técnicas que variam de país para país e determinam características específicas de tamanho, forma, funções e outros detalhes que podem afetar o produto. “Conseguimos vender o Spirit para fora, mas enfrentamos dificuldades porque há uma série de normas bem diferentes das nossas, o que inviabilizou”, explicou. “Infelizmente, a exportação de design é para poucos. Para uma Embraer e uma Havaianas, que têm grande porte”.
Outro exemplo é a esteira para academia que exportou para a Alemanha e a Austrália. “Passados seis meses, recebemos reclamações. No inverno, ela dava choquinho estático. Tivemos de movimentar nossa equipe para a Austrália e trocar todas as peças”, lembra. “Agora, eu vendo meu desenho e licencio para que as empresas desenvolvam seguindo as normas locais”.
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©FOTOS DIVULGAÇÃO
DESIGN THINKING
“As pessoas se inclinam a pensar que o futuro é mais tecnológico, mais complexo, mais automático, mais parecido com uma máquina, e nós tendemos a pensar que o futuro é mais humano. A tecnologia é fantástica, mas deve ser transformada em uma experiência muito humana, senão fica tão complexa que ninguém consegue trabalhar de verdade”, diz Guto sobre sua filosofia de design.
Por isso, ele aponta o design thinking como uma das grande mudanças no mundo do design. “Os profissionais são treinados a entender os desejos, a investigar e desenvolver diferentes técnicas para considerar outros sinais que nem sempre são detectados. Infelizmente, a educação formal nos ensina de maneira focada e objetiva, razão e consequência. Mas o design não tem essa linearidade. Há milhares de maneiras de desenhar qualquer coisa. Por isso, o design thinking é uma mudança fantástica, uma revolução”, afirma.
Guto lamenta que as universidades de design ainda fragmentam as áreas de atuação.
Para ele, ter uma percepção mais ampliada do design é essencial. Para exemplificar, ele conta que, graças a uma visão macro, hoje, seu escritório, o A.U.D.T., trabalha em projetos ambiciosos, mas não exatamente com a antiga concepção de design.
Um deles é o do Parque da Orla de Balneário Camboriú, em que a ideia é trazer diversas atividades para a calçada da Avenida Atlântica, com dog parks, playgrounds, academia de ginática e ciclofaixa. “Esse projeto interage com pessoas com diferentes expectativas, e atendê-las se tornou trabalho de design, ainda mais agora, quando as cidades são produtos que disputam entre si o turismo e a qualidade de vida”, explica. “O mundo do design está fracionado e, com isso, criou uma série de especialistas que perderam a capacidade de juntar as pontas. Mas é muito importante ter a visão holística, porque, quando o design vira especialista, perde a capacidade de ver o todo, o que é nossa maior força e qualidade”.
Design thinking é uma metodologia usada para encontrar soluções inovadoras de produto, processos ou serviços para atender às necessidades das pessoas.
Projetos como este, na Orla do Rio (foto) ou em Balneário Camboriú assinados por Costa, mostram que design pode ir muito além
©FOTO ANDRÉ NAZARETH
Os projetos do artista plástico Guto Lacaz provocam no espectador espanto, curiosidade e até um meio sorriso, como quando alguém cochicha um segredo no ouvido
O HOMEM BIOCICLÓPTICO
POR BRONIE LOZNEANU &DESIGN :: GUTO LACAZ
EEm um minuto, Guto Lacaz se conecta ao seu espectador e o leva pela mão. Ou será pela ponta do olhar? Ambos embarcam cúmplices em uma viagem, ora lúdica, ora cabeça, mas sempre com incrível rigor estético.
Os trabalhos desse artista multimídia – principalmente seus fabulosos bonecos, sua marca registrada – são elaborados de forma meticulosa, calculados com régua e compasso, ferramentas do desenho técnico herdados da faculdade de arquitetura que cursou em São Carlos (SP).
Guto usa ferramentas “lógicas “para justamente subverter, desopilar, questionar – com pinturas, tipografias, performances e instalações – o mundo diante de nós. Com um minimalismo de tirar o fôlego, ele é capaz de, em dois
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OFNI Paranoá - Objeto Flutuante Não Identificado Paranoá, instalação de 2011, em Brasília
traços, transformar uma letra do alfabeto em personagem de história viva.
Essas são algumas características que permeiam toda a produção desse artista. São mais de quatro décadas nessas praias criativas que incluem ainda performances e construções de “engenhocas” cinéticas hiperelaboradas, que o artista pilota, manobra com destreza e maestria, desafiando até as regras da física e da mecânica, criando um universo “Lacaziano”, ouso dizer, uma imersão em outras realidades.
Como no homem de proporções perfeitas de Leonardo da Vinci, as figuras geométricas de Guto dialogam com o “Homem Vitruviano”, questionando com humor a relação do homem com o universo em equilíbrio – seria mesmo o homem a medida de todas as coisas?
Creio que a intenção de Guto tem o mesmo movimento do mestre da Renascença: ao estudar o corpo humano, ele também entendeu o funcionamento da arquitetura, em que um edifício perfeito deveria ser proporcional e simétrico como o corpo humano, atingindo a divina proporção áurea. Por isso, Guto se vale de seus conhecimentos de arquitetura e engenharia mecânica, que também cursou na faculdade. Ele pesquisa, passeia por conceitos estéticos e filosóficos brincando e indagando os movimentos da arte clássica ocidental até a pós-moderna.
Tudo começou quando o artista participou, em 1978, da mostra “Móvel e Objeto Inusitado” no recém-inaugurado Paço das Artes, na
Avenida Europa, em São Paulo. Nessa exposição, ele não apenas levou o primeiro prêmio como recebeu observações entusiasmadas do mais respeitado crítico de artes plásticas da época, Olívio Tavares de Araújo. De acordo com ele, os projetos de Guto eram fascinantes, quase brincadeiras na tradição de Marcel Duchamp – sendo que Guto, na época, nem sequer conhecia trabalhos do mestre surrealista.
Vamos aos objetos: um rádio desenhado a lápis num pedaço de papel dobrado em volta de um tijolo, uma garrafa de Crush presa num retângulo de gesso nomeada “Crushfixo”, um serrote e um cabide, misturando palavras e ideias, definiram o rumo e a carreira de Guto, que naqueles tempos ainda era chamado de Carlos Augusto Lacaz, seu nome de batismo. Pois aí acho que nascia o artista e o alter ego Guto, que finalmente entendeu para que e por que fabricava suas engenhocas: ele era um criador em busca do inusitado com ironia, poesia e sempre uma pitada de provocação.
Seguindo nessa trilha, nos anos 1990 o artista criou o espetáculo “Máquinas 2”, que era para “apreciar, filosofar e desopilar” em 24 performances de cinco minutos cada. Desenvolvido ao longo de sete anos, a apresentação continha pérolas do non sense, como uma máquina de escrever para abrir um guarda-chuva ou dois aspiradores de pó para duelar com o adversário, entre outras provocações. Essa faceta, que começou em 1982, também surgiu sem nenhuma pretensão quando foi convidado pelo artista Ivald Granato a participar de uma jornada de performances de um minuto com outros 60 artistas.
Guto criou uma cena em que atravessava o palco segurando uma bandeja com toca-discos, sobre o qual havia um prato com gelo seco. Ele caminhou lentamente pelo palco enquanto o gelo seco derretia, produzindo muita fumaça, prendendo a atenção do público com o inusitado da cena. Guto adorou! Conta que se emocionou
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“Biciclóptica” criada para a Paralimpíada, em 2016
A instalação “Auditório para Questões Delicadas”, no Parque do Ibirapuera, e a escultura “Ulisses”
com a experiência e nunca mais parou. Ficou obcecado com quadros performáticos partindo de cenas cotidianas – como alguém varrendo o chão ou colocando água no copo – e já ficava matutando a performance.
Como tudo que cria, à primeira vista se parece quase como um jogo infantil, mas Guto eleva a categoria de extremo rigor integrando-se a uma linhagem de artistas como Lygia Clark, Hélio Oiticica, Roberto Aguilar e Ivald Granato. Suas pesquisas de tempo, que se alteraram mexendo com as noções de movimento lentos e rápidos – e nossa percepção da realidade cotidiana –, lhe valeram convite para a 18a Bienal Internacional de São Paulo de 1985 com trabalhos de performance. O espetáculo "Máquinas 2" é o resultado de uma bolsa de estudos que ele ganhou da Guggenheim Foundation ligada ao Museu Guggenheim de Nova York, por todas essas propostas.
O tema das máquinas pode ser considerado outras de suas fixações. Desde criança, ele monta e desmonta objetos díspares que assumem outras funções. Antes, brincava no seu quarto de menino. Hoje, Guto monta e desmonta traquitanas no seu galpão ateliê, que construiu nos fundos do quintal de sua casa e do qual muito se orgulha. E é de lá que segue com projetos performáticos que incluem objetos inusitados, como elefantes voadores, bicicletas “biciclópticas” e iglus de isopor que navegam no lago de Brasília. E como não lembrar do exército de cadeiras que se revoltaram e flutuavam livres em sua primei-
ra instalação nas águas do Parque Ibirapuera, virando até destaque de jornal?
Num delicioso encontro no jardim de sua casa, Guto me confessa que produz suas traquitanas por puro amor e investe recursos próprios, pois é difícil alguma instituição que banque esses projetos. Ficou muito feliz quando conseguiu vender o projeto da Biciclóptica para as Paralimpíadas do Rio de Janeiro, em que elas fizeram parte da festa de abertura e produziram um visual de pura magia.
Guto se sustenta mesmo com sua outra persona e seu vasto conhecimento e talento como ilustrador gráfico e desenhista. Ele já fez de tudo: foi diretor de arte das revistas Gallery Around e A/Z; assinou capas de revistas e de discos das bandas Titãs e Premeditando o Breque; fez colaborações para a revista Wish Report; cartaz para a 24a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo; e maravilhosos desenhos em preto e branco para a coluna de Joyce Pascowitch, no jornal Folha de São Paulo, nos anos 1980/90. Tem ainda suas ilustrações para livros infantis, como as do livro Mandaliques, de Tatiana Belinky, ou as de O Galo Pererê, de Luiz Raul Machado. Fora as inúmeras logomarcas de produtoras de filmes, fotógrafos, eventos... As caixas de brindes e convites pop up são verdadeiras obras de arte para colecionar... A lista é imensa!
Se falarmos de tipografia, então, temos outro show: desenhou e inventou a fonte Nardja Zulpério, nome da peça de Regina Casé. Guto ama criar fontes.
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©FOTOS EDSON KUMASAKA
Ah, já ia me esquecendo de comentar os livros que produziu, como Roubo do Monumentos as Bandeiras ou InVeja, verdadeiras obras-primas reunindo os mais lindos desenhos e artes gráficas, com fino humor, filosofia e poesia.
Quando indagado sobre seu processo criativo, ele me diz que é um mistério! Não sabe explicar o que acontece em sua cabeça, mas acha que é um bom observador e, com olhar atento, já começa a matutar: “pega aquilo ali que vai dar um trabalho”. Ele se utiliza de muitos cadernos de anotação, onde moram suas obsessões. Todo dia observa e transforma a realidade em um exercício lúdico.
Outra faceta sua é a arte cinética. Foi Guto quem recriou o universo de Santos Dumont para o Museu da Casa Brasileira usando instalações cinéticas, modelos em escala e instalações de vídeo, tudo feito com rigor de historiador, inventividade de designer e ousadia de artista. Esse e outros muitos trabalhos dele podem ser admirados no seu livro Omenhobjeto, uma maravilhosa edição capa dura de mais de 320 páginas, que visita suas obras, textos e mil estrepolias mais. Para isso, contou com a ajuda do amigo e fotógrafo Edson Kumasaki, que clicou mais de 300 fotos especialmente para o livro.
O volume atesta tudo que o artista é e prova que as artes práticas podem sim se igualar às artes plásticas quando contam com a maestria e o talento de Guto.
Até dezembro de 2022, os trabalhos de Guto também puderam ser apreciados no MIS, na exposição “Arte é Bom”. Para a mostra, o multiartista produziu dois bondinhos, um azul e um vermelho, que puderam ser manobrados para deleite de adultos e crianças. O detalhe interessante é que ele conta que já criava esses bondinhos quando era criança e que, dessa vez, só reproduziu seu brinquedo de infância em escala maior.
Outra exposição dele é a “Cria – Experiências de Invenção”, que fica em cartaz até 19 de fevereiro de 2023, na Fiesp da Avenida Paulista. Ali estão os eletrolivros e uma animação com seus famosos bichos tipográficos, que têm a honra até de integrar o currículo escolar.
Atualmente, o multiartista está com uma exposição inédita em curso, a “Antimatéria”, na Galeria Raquel Arnaud, e que vai até dia 18 de fevereiro de 2023.
Mas, se você imagina que a casa desse acumulador de engenhocas, rodas, molas e outras traquitanas mais é um espaço todo abarrotado, está redondamente enganado. Sua espaçosa casa mais se parece com um templo budista, totalmente minimalista e funcional. Guto não tem nenhum objeto inútil, tudo é clean e superorganizado. Ali, reina uma atmosfera de paz e harmonia e, pasmem, esse mestre das artes plásticas que coleciona dezenas de prêmios nas mais diversas modalidades arruma a casa sozinho e não tem empregados.
Para encerrar devo ainda contar um detalhe peculiar: tenho o privilégio de ser amiga e vizinha de bairro do Guto e, muitas vezes, vamos juntos a vernissages para prestigiar os amigos artistas – e ele é meu chofer particular, faz questão de me pegar e deixar na porta de casa: “madame, está entregue”, acrescenta com seu fino humor.
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Guto Lacaz em “Máquinas V”, com o assistente Javier Judas em performance non sense com aspirador de pót
MÓVEIS COM ALMA
O
Esteban Fidelis se interessa
Para Esteban Fidelis, design tem cheiro de lápis, tinta, madeira. Também traz impregnadas a literatura e a história da família, que está na quarta geração de criativos. “Durante a Guerra Civil espanhola, meu bisavô, que havia perdido muita coisa, começou a fazer objetos de madeira, caminhõezinhos e outros brinquedos, para vender nas feiras locais e, assim, sobreviver”, conta.
Ele diz que a avó sofreu muito durante esse período e que desembarcou no Brasil na década de 1950, fugindo dos horrores provocado pelo conflito travado entre 1936 e 1939 e que deu origem à ditadura franquista, que foi até 1975. “Ela era uma artista: pintava e escrevia. Minha mãe estudou artes plásticas na PUC.
designer de mobílias
pelo desafio de atender ao mercado e, ao mesmo tempo, criar storytelling para
ESTEBAN FIDELIS 52
Desde criança, me recordo de acordar e já correr para ver em que estágio estavam as telas que ela produzia. Aquele cheiro de tinta é algo muito forte na minha memória afetiva”. O pai do designer também era muito criativo. Publicitário, também gostava de fazer restauração de móveis, o que influenciou a escolha de Fidelis. “Tenho flashes e me vejo no estúdio dele, sentado, rabiscando na prancheta. Ainda sinto aquele aroma de ecoline e do lápis”, diz.
Além da relação afetiva com os materiais e o processo criativo, lembra que desde os 3 anos desenhava. Personagens em quadrinhos, ilustração e desenho anatômico fazem parte do background de Fidelis que, aos 13 anos, foi trabalhar em um escritório de arquitetura em Ribeirão Bonito, interior de São Paulo. “O que era hobby se transformou em ferramenta”, lembra. “Fora isso, aprendi Autocad, aprimorei o desenho técnico, fazia maquete 3D... e fui ganhando experiência em outras realidades criativas”.
Na época da faculdade, estava em dúvida entre arquitetura e design. Até que seu pai lhe mostrou um fôlder, que explicava sobre o curso de design, e disse que, talvez, tivesse mais a ver com o filho. “Quando li a descrição, entendi que era o que queria fazer. E acabei dando mais ênfase ao design de mobiliário, porque é onde me encaixo melhor: tem design, arquitetura e criatividade”, diz. “Nunca fui um estudante de grande destaque no curso do ensino médio, mas eu me encontrei totalmente na faculdade”.
Em 2013, Fidelis teve um empurrãozinho extra. Venceu o primeiro prêmio estudantil da Tok & Stock e decidiu mergulhar no universo do design mobiliário na Unesp de Bauru. No ano seguinte, recebeu uma bolsa para estudar durante um ano na UPC (Universidade Politécnica da Catalunha). “Foi muito importante: eu tinha uma visão da criação muito sem regras. Para mim, o processo criativo sempre foi instintivo. Mas, no curso, entendi que o design é reflexo de um processo. Na Europa, existe um entendimento muito forte disso, porque há indústrias produzindo design”.
Após essa bolsa, Esteban recebeu outra pela Fapesp e pôde desenvolver ainda mais o pensamento científico ligado ao design. Esses conhecimentos, somados à bolsa anterior e ao estágio em uma empresa de mobiliário de Barcelona, fizeram com que tivesse a visão total do
design com propósito. Depois de formado, assinava peças com um sócio designer. Mas a grande guinada aconteceu em 2020, quando começou a desenvolver, em esquema de parceria, móveis para a Klie, empresa sediada em Santa Catarina.
A primeira coleção foi a Dunas, com DayBed e o Sofá Curvo. “Essa linha foi uma resposta à tendência de peças orgânicas”, afirma. A mais recente é a Léxico, que Fidelis classifica como ápice do equilíbrio entre conceito e produto. “São peças que têm alma e estão associadas ao storytelling, que está cada vez mais recorrente no mercado”, explica. Para criar essa série, o designer, que sempre teve grande admiração por Guimarães Rosa, se aprofundou no entendimento do autor e especialmente no livro O Léxico de Guimarães Rosa, em que a autora Nilce Sant’Anna Martins organizou o vocabulário do escritor, decifrando possíveis significados para palavras criadas pelo também poeta que foram usadas em suas obras.
A EVO, que tem significado expresso por tempo, idade e duração sem fim, direcionou a escolha de pedra e metal, materiais de durabilidade e resistência, e deu origem a uma mesa de jantar, um sofá e uma mesa de centro. A Riba, a uma estante, e a Linde, a uma mesa de centro. “O mais estimulante é que essa coleção pode ter muitas ramificações. E o mais interessante é conseguir, ao mesmo tempo, contar histórias e atender ao mercado”.
©FOTOS E VÍDEO JOCA LUTZ
Poltrona EVO e mesa Linde: peças da coleção Léxico, inspirada no escritor Guimarães Rosa 53
" São peças que têm alma e estão associadas ao storytelling, que está cada vez mais recorrente no mercado."
TRAMAS SURREALISTAS
Dizem que cabeça vazia é oficina do diabo. Mas Luiza Caldari está aí para desmentir essa crença popular. Formada em estilismo pela Santa Marcelina, em 2012 ela se mudou de São Paulo para Jaraguá do Sul, Santa Catarina, para trabalhar na Colcci, grife de moda. “Lá, a vida é calma e os horários são diferentes do que havia me acostumado. Meu expediente terminava às seis da tarde, e eu chegava em casa e ficava me perguntando o que fazer”, conta.
Foi então que começou a pesquisar até se apaixonar por tear. “Sempre gostei de trabalhos manuais. Meu avô pintava e ensinava os netos, minha mãe bordava e eu, aos 13 anos, entrei para uma escola de corte e costura”, lembra. Na época em que decidiu aprender tear, estava namorando o atual marido e pediu a ele que montasse o equipamento. “Comecei de forma muito despretensiosa: aprendi sozinha a técnica e não colocava muita pressão em venda. E, talvez, por eu enxergar aquilo como hobby, fui encontrando identidades para meu trabalho”, diz. Claro que sua formação em moda influenciou e influencia o que faz. “As cores são o ponto mais importante do meu trabalho. Sou uma pessoa colorida por dentro, vivo em universo lúdico e surrealista, e deixei que isso ganhasse espaço na minha arte”. Em 2014, Luiza participou da MADE pela
primeira vez e aí pôde constatar a força do seu trabalho. Passou a estudar mais sobre arte e tem focado a sua veia artística, já que há quase dois anos parou com a moda. “Antigamente, eu pensava em peças soltas. Agora, tenho pensado mais em séries.” São peças em tear e tufting gun que ela está extrapolando das paredes para objetos decorativos, como luminárias e poltronas. “Embora eu esteja empolgada, não gosto de emendar um trabalho em outro. Então, quando faço uma mostra, procuro dar um tempo antes de engatar em outra exposição ou projeto. Na moda, essa questão das temporadas é bastante estressante, mas é um trabalho industrial. Mas, na arte, a gente precisar parar, pensar e respirar. Estou adorando isso”.
Peças em tear e tufting gun da artista Luiza Caldari ganha projeção com seu estilo lúdico e colorido
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© FOTOS DIVULGAÇÃO © VÍDEO BRUNO LEMOS
&DESIGN :: LUIZA CALDARI
&TÉCNICA
+ Neuroarquitetura Comunicação Visual Carro do Futuro
O Museu do Ipiranga, o mais antigo da capital paulista, reabre as portas ao público com novas áreas e apresenta uma obra de restauro jamais vista no Brasil.
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COMO NASCEM AS CORES p.66 RENASCE UM MUSEU p.72 PEDRAS PRECIOSAS p.76
O DESIGN COMO ESSÊNCIA DAS MARCAS
Estratégias de ‘branding’ sofisticam a simbologia dos negócios
CCem anos atrás, a figura de uma maçã mordida faria as pessoas pensarem, provavelmente, em Adão e Eva. A fruta também remete a pinturas de natureza-morta do francês Paul Cézanne (1839-1906) ou ao conto de fadas de Branca de Neve. O que contemporâneos de Cézanne e Disney porventura não supunham é a íntima relação que se estabeleceria entre maçãs e computadores a partir das últimas décadas do século 20.
Esse é o poder de uma imagem ao simbolizar com sucesso uma empresa ou uma linha de produtos. Na verdade, quando falamos desse tipo de representação simbólica, é preciso ir além das cores e dos contornos para entender o alcance e os desafios de uma construção de marca, ou o que se conhece globalmente hoje como branding.
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&DESIGN ::
POR EDSON VALENTE
COMUNICAÇÃO VISUAL
O designer tem um papel decisivo nesse processo. E, com o aumento da complexidade do mercado – tanto pela percepção de quem consome como pelo devido acirramento da concorrência e dos avanços tecnológicos –, a missão desse profissional ganha em dilemas.“As marcas mais antigas eram meio que únicas”, analisa Mara Martha Roberto, coordenadora do curso de Design da Escola Superior de Propaganda e Marketing - ESPM. “Algumas conseguiram se manter sem um trabalho de branding, outras se modificaram, há as que se reposicionaram. Hoje, as coisas acontecem de outra maneira. Há cerca de 20 anos, passou a ser mais intenso o uso de técnicas específicas para reforçar o valor da marca.” No branding, “o designer não atua sozinho”, ressalta Mara Martha. “Ele tem um trabalho colaborativo muito maior que o estético e o do desenho. Requer um olhar sistêmico sobre a marca para entender o seu problema”.
Ou os problemas, uma vez que, na verdade, o que um projeto de construção, reforço ou redefinição de identidade de marca busca nada mais é que um conjunto de soluções para atender a uma série de demandas. Elas são provenientes de diversos públicos, entre eles o consumidor final. Em primeiro lugar, é preciso conhecer esses stakeholders a fundo. "Hoje o papel do design envolve uma imersão com todos eles para entender onde a marca está inserida ou qual o seu diferencial", afirma a coordenadora da ESPM.
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Hoje o papel do design envolve uma imersão com todos eles para entender onde a marca está inserida e qual o seu diferencial.
Sol Agora
Um movimento para transformação energética. Uma marca que nasceu para democratizar o acesso à energia solar e ainda contribuir com a descarbonização no meio ambiente.
A atuação da área de fato sofreu uma reviravolta com a conceituação do branding no final dos anos 1990. Até então, a constituição de uma marca obedecia muito mais à lógica autoral, como explica Lincoln Seragini, consultor de Tecnologia e Design de Embalagem e diretor-presidente da agência de design e gestão de marca Seragini/Farné. “Quando uma empresa contratava um grande designer com essa incumbência, esse profissional desenhava a marca de acordo com a própria visão, e seus contratantes diziam ‘amém’”, contextualiza. “A autoridade no projeto era o designer.”
No Brasil, essa dinâmica se transformou perto da virada do século, nos idos de 1998, segundo Seragini. Na ocasião, seu escritório começou a aplicar os métodos do branding nos trabalhos para marcas.
“O objetivo passou a ser o de retratar no desenho a essência, a alma da marca, seus significados simbólicos”, define. “Criei, então, o método do retrato falado, em que se estudam os atributos que a marca tem de expressar, seus propósitos e valores, para então desenvolvê-la”. A essência a que o consultor se refere está muito ligada ao sonho ou à ideia criativa do fundador do negócio. O objetivo da empresa a que nos referimos no princípio deste texto, a de computadores, sempre foi, desde a fundação, o de desconstruir paradigmas e usar a inovação para facilitar a vida das pessoas. A maçã tem a capacidade de transmitir a mensagem da descoberta, do que é inventivo. Basta nos lembrarmos de que se trata da fruta que caiu sobre a cabeça do físico Isaac Newton quando ele despertou para a teoria da gravidade.
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Essa concepção de design trazida pelo novo milênio é muito mais emocional e orgânica, na avaliação de Danilo Cid, sócio e vice-presidente de Criação da agência Ana Couto. “Até a virada do milênio, o branding teve uma primeira onda em que a marca desejava ser conhecida, o produto precisava ter bom custo-benefício e a comunicação tinha de vender”, estabelece. “O design possuía, então, a função de dar clareza à representação, à atividade da empresa, de onde vinha a marca. A partir dos anos 2000, surge a onda do papel da marca na vida das pessoas. A criação de valor do negócio é maior, e a comunicação se torna responsável por criar conexões emocionais”.
Os anos 2010 trouxeram a terceira onda do branding, com o advento das redes sociais em larga escala. “É a onda do propósito, em que a marca deve ter impacto no mundo, o negócio tem de dar conta de um ecossistema de valor e a comunicação precisa criar engajamento nas redes sociais”, diz Cid. “O design passa a ter o papel de dar performance para essas interfaces e dimensionar o impacto do propósito de uma marca”.
hsm
Uma marca que evoca o poder do conhecimento e convida os públicos a mergulharem na era das transformações e da economia compartilhada. Uniu-se o humano e o tecnológico para criar uma comunicação que empodera e coloca as pessoas como protagonistas de um futuro desejável.
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XPE veio para reescrever a relação entre aluno e faculdade. Na XPE quem paga a conta da graduação não é o aluno, e sim empresas que buscam novos talentos mercado e com a garantia de emprego. Do nome ao logo, da arquitetura de marcas ao Go-to-Market, a XPE nasceu de metodologias ágeis e inovadoras, fruto de muita colaboração entre alunos, executivos e criativos.
No cenário atual, outro fator fundamental para o bom desempenho do design é a inteligência de dados. “Sua análise embasa os projetos de construção de marca”, sinaliza o VP da Ana Couto. A condução estruturada de pesquisas com diferentes públicos, sejam eles internos – como os executivos da empresa –, sejam externos – caso do público consumidor –, é que vai municiar os analistas para o desenvolvimento de estratégias de branding. As oportunidades de atuação do designer se ampliam também nessa direção, incluindo tarefas de coleta, estruturação e leitura de dados estratégicos.
Assim, chegar à essência ou alma de uma marca, hoje, está longe de ser um processo intuitivo que abrange apenas feeling. “Os dados ajudam o profissional criativo a ter verdades e não apenas suposições”, frisa Felipe Castellari, head de Design Digital e Performance da Keenwork Design. “Eles permitem validar hipóteses”.
XPE
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MARCA COM PROPÓSITO
A alma da marca deve agregar ainda outro ponto crucial para obter sucesso no mercado dos nossos tempos: o de possuir um propósito para o mundo. “As marcas têm de apontar soluções para gerar impactos positivos na sociedade”, afirma Castellari. Nesse sentido, ganharam “tanta vida, personalidade e sofisticação que mais se assemelham a pessoas que têm atitudes e gostos do que de fato a símbolos de representação”, avalia. “A importância do logo em si vai até se diluindo um pouco, tamanha a complexidade de estímulos que compõem a marca, sejam eles visuais, sonoros ou atitudinais. Hoje a marca, em muitos casos, é o maior ativo de uma empresa, especialmente no caso das nativas digitais”.
Dessa maneira, zelar pela longevidade desse bem tão valioso é “um dos maiores desafios” da comunicação e do design, na opinião de Castellari. “Pensar a marca não como ela deve ser hoje, mas como será percebida no futuro, é uma construção de longo prazo, na qual os dados vão até certo ponto, de prever e testar, mas não substituem o poder do designer de sintetizar todo esse universo”.
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Essa síntese entre racional e emocional leva a resultados que são tão simbólicos e intangíveis quanto mensuráveis. Um grande exemplo disso é a confluência entre maçãs, computadores, tecnologia, inovação e todo um estilo de vida na composição da marca que é atualmente a mais valiosa do mundo – está estimada em um valor próximo de US$ 1 trilhão. Aliás, nem precisamos citar ao longo do texto o nome da empresa em questão para que você, leitor, saiba de que corporação estamos falando. O branding e o design têm essa amplitude de influência.
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COMO SERÃO OS CARROS DO FUTURO?
Especialistas mostram que eletrificação e busca por eficiência vão determinar o design dos veículos
Lançado em 1982, o filme “Blade Runner” mostrava um futuro surpreendente no ano de 2019, com clones, telas sensíveis ao toque e, claro, carros voadores de linhas arrojadas. A data chegou e passou. Muitas dessas tecnologias, de alguma forma, estão entre nós, embora nem todas em larga escala.
Mas como será a aparência dos veículos do nosso futuro? Segundo especialistas do setor, o design dos carros é e será cada vez mais definido por dois fatores: a acelerada evolução da tecnologia e mudanças significativas na forma como o consumidor entende e utiliza os automóveis.
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POR RICARDO RIBEIRO &DESIGN :: CARROS DO FUTURO © FOTO PIXABAY
Concepção artística de um carro voador.
“A evolução do design anda de mãos dadas com o progresso tecnológico e o futuro certamente será elétrico. Por isso, a eficiência é a chave para o design do futuro”, avalia Evandro Bastos, chefe de Produto de Automóveis da Mercedes no Brasil.
José Carlos Pavone, chefe de Design da Volkswagen para a América Latina, concorda que o caminho da eletrificação influencia a arquitetura básica dos veículos, o que amplia as possibilidades do design. “Sem precisar mais de todo o espaço que o motor de combustão normalmente ocupa e com as baterias fornecendo energia, o interior pode ser maior, privilegiando o espaço interno e o conforto dos ocupantes”, explica.
De acordo com Daniel Gerzson, chefe de Design Exterior da Stellantis na América do Sul, a ampliação do espaço interno permitirá criar veículos mais versáteis pela redução ou pelo deslocamento de componentes. “Pense num carro de quatro metros em que um terço era somente motor. Em alguns anos veremos novas possibilidades, em que será possível aumentar a capacidade de levar pessoas e objetos ainda mais confortavelmente”, resume.
Por outro lado, o design também cumpre um papel decisivo para auxiliar o desempenho de novos modelos elétricos. “No exterior, o design pode influenciar nessa nova era da eletrificação, trazendo mais funcionalidade, sendo um agente importante na melhoria da aerodinâmica, para que o veículo consuma menos energia e aumente sua autonomia em distâncias percorridas”, completa Pavone.
Esses novos parâmetros no desenvolvimento tendem a se traduzir em formas mais arredondadas, pneus mais estreitos e materiais mais leves. Além dos contornos, das cores e texturas, o design também terá a possibilidade de introduzir materiais mais sustentáveis, dentro de todo o ciclo de construção do veículo. Afinal, a preocupação com o ambiente é cada vez mais forte entre os jovens e, consequentemente, os futuros consumidores dessa indústria.
Outra demanda importante dos clientes que afeta o design é a busca por conectividade. O carro precisa ser visto como a extensão do smartphone e outros dispositivos, facilitando a condução, o trabalho e poupando tempo em contexto de vida cada vez mais atribulado.
O designer Vitor Bedani, que atua no 1961 Design Studio do Instituto Mauá de Tecnologia, desenvolveu o Nano Home, um carro autônomo que não necessita de motorista, o que possibilita que os passageiros realizem outras tarefas durante o trajeto desejado.
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“A introdução de sistemas interface e experiências com o usuário de última geração também abriu um mundo totalmente novo para nós. O nosso sistema de entretenimento MBUX (Mercedes-Benz User Experience) estabelece padrões em todas as áreas: tecnicamente, em termos de facilidade de uso e também de design, é o nosso maior trunfo no campo do luxo digital, que se tornou cada vez mais importante e uma necessidade absoluta quando falamos em buscar o melhor. O luxo digital é crucial quando se trata de pensar o luxo do amanhã e criar desejo”, afirma Bastos.
Para Pavone, o consumidor de carro está cada vez mais exigente, principalmente em relação às tecnologias de segurança e dirigibilidade, além de estar muito focado em opções de multimídia e sua interface com o usuário. Ou seja, o tamanho da tela e a funcionalidade dos sistemas são essenciais, fatores que passarão a ser cada vez mais considerados no desenho do interior.
Em conjunto com a eletrificação, a expansão dos serviços de compartilhamento já está influenciando o design de carros e deve ser um quesito ainda mais forte nos próximos anos. Pesquisas recentes indicam que o consumidor está mais disposto ao uso pontual e sustentável dos veículos. Programas de aluguel curto ou “car sharing” já estão disponíveis em cidades como São Francisco, Londres, Paris, Berlim e Tóquio.
1964
Volkswagen ID Buzz
O mais novo elétrico da VW é uma releitura moderna da Kombi e mostra que o design de carros, assim como a moda de roupas, também dá suas voltas.
“O compartilhamento pode ser pensado como se o carro não fosse uma propriedade, mas um objeto coletivo em que a personalização pode ser dada pelas configurações dos usuários de maneira digital ou até mesmo por plugins que podem ser adaptados conforme a sua utilidade”, explica Gerzson.
O uso comum, porém, pode despertar necessidades de personalização entre os clientes desses serviços, o que seria um diferencial a ser fornecido pelo design. “Nesse tempo de mobilidade com veículos compartilhados, o consumidor que quer ter a mobilidade individual também busca cada vez mais que o acabamento dos interiores e as formas do exterior comuniquem um caráter cada vez mais exclusivo”, avalia Pavone.
Porsche 911
Nada é tão icônico quanto às linhas de um Porsche 911, que até hoje muda e se moderniza sem perder as suas características-chave.
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2022
O modelo mudou o segmento de SUVs de luxo e revitalizou a Land Rover. Inovou com dianteira invocada, janelas estreitas e traseira de queda acentuada em carroceria de duas portas.
AUTOMÓVEIS VOADORES
No cinema, o design do carro do futuro é sempre muito caracterizado pela capacidade de voar. Na ficção, veículos já tomavam os céus do 2019 de “Blade Runner” ou até mesmo em 2015, com “De Volta para o Futuro”. Na prática, ainda estamos longe de um congestionamento nos ares.
“Essencialmente, os carros ainda utilizam o mesmo conceito criado em 1886: um veículo com rodas e um motor de combustão interna. Para o futuro em curto prazo, os automóveis serão, além de elétricos, cada vez mais autônomos, assumindo tarefas até então dedicadas ao condutor. Se eles irão “voar” como nos filmes, ainda é cedo para afirmar”, opina Bastos.
Emblemático e um sucesso no Brasil, o Beetle foi fabricado até 2003 e é o segundo carro mais vendido no mundo.
Lançado em 1997, o carro passou a ter um design condizente com o futurismo da propulsão apenas em 2016
Para Pavone, a regulação ainda é o principal entrave. “Já existem vários estudos de mobilidade individual que inevitavelmente vão chegar ao ‘carro voador’ e certamente ele será elétrico, mas isso também vai envolver muita regulamentação. Se já é complicado a regulamentação do carro autônomo, imagine voando”, avalia.
Já Gerzson acredita que os carros serão desenhados para entregar cada vez mais diversão ao volante e ainda tornar a vida das pessoas melhor, independentemente da capacidade de voar. “Acredito que o carro tem a função de encontrar soluções para a nossa rotina e, nas horas de lazer, proporcionar momentos e experiências incríveis”, diz. “Pode não parecer, mas grandes transformações já estão acontecendo e os times de design, imaginando tudo o que a gente vê em filmes por aí. Basta somente as tecnologias serem mais democráticas e viáveis que naturalmente veremos tipos de veículos para cada experiência imaginada, desde os pequenos autônomos para o dia a dia como os que serão a extensão da nossa casa, trabalho e muito mais’”, completa.
Toyota Prius
Ford T – 1908
Primeiro carro produzido em série.
Volkswagen Fusca – 1945
1997 (2016)
Range Rover Evoque
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1945 1908
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COMO NASCEM AS CORES
Grupo multidisciplinar desenvolve cartelas com tons que possam traduzir o mood coletivo do momento com base em diferentes fatores estudados
POR MARTA DE DIVITIS
66 &DESIGN :: CORES 66
Tdiosos buscam, por meio de estudos de comporta mento, as tonalidades que serão eleitas a cor do ano e devem traduzir o mood, o humor coletivo do mo mento. A maior parte desses bureaus trabalha com observadores, em diversas partes do mundo, objeti vando encontrar as tendências de comportamento, baseando-se inclusive em estudos científicos e rela tórios técnicos de consumo, entre outros fatores. Daí as cartelas cromáticas desenvolvidas irão nortear empresas tanto de arquitetura como de design de interiores e de moda. Segundo Márcia
Holland, diretora de Pesquisa e Inovação do Por tal de Tendências e professora doutora do Institu to Mauá de Tecnologia, cada empresa utiliza uma
A Pantone Color Institute©, serviço de consul toria da Pantone© nos Estados Unidos, elegeu em 2022 a Pantone 17-3938 Very Peri. “O Very Peri lem bra os espaços coloridos do Metaverso. Esse tema no universo virtual foi tão impactante que a Pantone© optou pelo azul violáceo.
Valentino na coleção de inverno 2022 trouxe não apenas as roupas, mas todo o ambiente no mesmo tom: Pink PP -Pink. A cor representa criatividade, amor e liberdade
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© FOTO PIXABAY © FOTO DIVULGAÇÃO
Porém, a Valentino, em sua coleção Inverno 2022, criou o Pink PP – Pink. Pierpaolo Piccioli, estilista criativo da marca, afirmou "que a cor representa o amor, a liberdade, a curiosidade e a criatividade”, explica Márcia. “Mas afinal, o que o violeta e o rosa têm em comum? Talvez a resposta esteja no desfile da coleção Inverno 2022 de Dolce & Gabbana, que simulou o próprio Metaverso em plena passarela real. Versace também não escapou do tom de rosa-choque e das tonalidades digitais”, justifica.
Isso revela que o Metaverso influenciou desfiles pelo Planeta, incluindo as grandes marcas de alta costura. E vale lembrar que as passarelas influenciam observadores e formadores de opinião. De acordo com a especialista, cada segmento tem o próprio ritmo relacionado a hábitos e tendências.
“Observando relatórios de cores do setor automotivo, as movimentações são muito mais lentas do que o de moda: os tons comuns são branco, preto, vermelho e cinza, além das nuances metálicas. Nos últimos anos, no mercado brasileiro, observamos a perpetuação da cartela de cinco cores básicas. Já a do mercado asiático difere das do Oriente Médio e da Europa”, explica.
No segmento mobiliário, as empresas se baseiam nos hábitos de consumo. “A cor do ano é muito mais voltada à criação de inspirações, de forma que as matizações são muito bem aceitas, possibilitam diversas combinações harmônicas e entendem que o espaço é composto por planos, superfícies, cores e luzes, dentre outros elementos. Portanto, dificilmente a cor do ano proclamada por uma empresa terá aplicação universal, e esse é o motivo que cartelas de diferentes segmentos elegem livremente a cor do ano”, conclui.
AS ESCOLHIDAS PARA 2023
Após praticamente três anos de isolamento, de perplexidade e das emoções mais variadas, muitas desconexas entre si, devido à pandemia, as pesquisas de comportamento que norteiam a escolha de cores buscaram tonalidades que “abracem” as pessoas e tragam uma energia mais positiva – elas revigoram e ao mesmo tempo tendem a acalmar essas emoções.
Especialista da WGSN – empresa de tendências de comportamento e consumo –, Nicole Silbert explica que a cor escolhida pela empresa foi a “Digital Lavender”, que se aproxima de um lilás. A escolha se baseou na percepção e análise de que, em 2023, os consumidores estarão com ar de otimismo renovado, à medida que o mundo se ajusta novamente às consequências vivenciadas por conta da pandemia.
Meu Caminho, o neutro rosado eleito pela Sherwin-Williams, é um tom meditativo que convida à reflexão e conexão com o mundo ao redor
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Calmaria é cor do ano da Eucatex, que tem o poder de relaxar
Saiba como a Silêncio de Inverno foi escolhida a cor do ano pela Coral
Com as prioridades e percepções alteradas, os consumidores buscarão se conectar com tons que ofereçam a sensação de esperança e harmonia. Acredita-se que os roxos – tradicionalmente ligados à espiritualidade e associados ao chacra coronário – tragam esse equilíbrio.
“Com o consumidor interessado em ofertas holísticas e restauração, o bem-estar digital ganha espaço em um momento em que as pessoas priorizam o autocuidado. Raramente encontrada na natureza, a cor ‘Digital Lavender’ oferece o vislumbre de outras realidades. Essa cor sensorial, que evoca calma e serenidade, deve transitar com desenvoltura entre o mundo virtual e o físico”, justifica Nicole.
No segmento de moda para calçados, acessórios e mobiliário, o Núcleo de Design do Inspiramais, coordenado por Walter Rodrigues, não elege uma cor apenas, mas 30 tons, que se utilizam de uma metodologia de pirâmide. A base é composta pelas tonalidades que já se encontram no mercado. O topo é formado por somente três cores e representa a vanguarda, o que está por vir – de acordo com dez designers (incluindo Rodrigues) que formam a equipe de coolhuntings.
DIFERENTES TONS DEFINEM O HUMOR
As cores têm o poder de nos influenciar emocionalmente. Ao olharmos para um jardim bem cuidado, com as diferentes nuances de verde e outras tonalidades, podemos ter sentimentos tranquilizadores, apaziguados. O mesmo efeito pode nos causar uma praia deserta, com as cores do mar e da areia, do céu ensolarado. Ou, como diz o designer Walter Rodrigues, mudar o mau humor matinal ao vestir uma camisa branca. “O branco ilumina!”, diz ele.
O fato é que as cores – compreendidas por nós de forma subjetiva – causam efeitos em nossas emoções, influenciadas por nossa experiência de vida,
por nossas memórias, pelo nosso humor. Estudadas pela neurociência, as tonalidades são item de suma importância na arquitetura, no urbanismo, no design de interiores e na moda. Segundo o arquiteto Márcio Lupion, o mais importante para falar de cor é que ela se adapta à luminância (luz refletida sob uma superfície, que vem para os nossos olhos). “Onde tem mais luz, tem mais cor. Onde tem menos luz, as cores ficam mais pesadas e o humor das pessoas se altera por conta dessa dificuldade de perceber a luz”, ensina. E isso explica porque o conselho do designer Walter Rodrigues, de usar uma camisa branca em dias ruins, funciona.
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EM BUSCA DE CONSTRUÇÕES
MAIS SAUDÁVEIS
Como a neuroarquitetura tem ajudado a criar ambientes mais equilibrados
Foi depois dos anos 1990 que surgiu a neuroarquitetura, área interdisciplinar que busca compreender como o ambiente físico nos afeta. Segundo a arquiteta Andrea de Paiva, esse entendimento seria o primeiro propósito. O outro, tão importante quanto o anterior, é possibilitar a criação de espaços melhores e mais saudáveis. Assim a neuroarquitetura observa qualquer escala de ambientes, desde as cidades e os bairros até o design de interiores. Antes da neuroarquitetura, a psicologia ambiental estudava essa questão.
“Até então, tudo era focado em técnica, estética e no espaço propriamente dito, e não na relação das pessoas com o espaço que estamos projetando. O foco, agora, é o ser humano e o ambiente, as decisões mais embasadas ao realizar um projeto com design centrado em evidências, amparando-se em estudos científicos para fazer as escolhas”, diz.
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&DESIGN :: NEUROARQUITETURA
© FOTO SHUTERSTOCK © ILUSTRAÇÃO CLARA ALISSA
Vale destacar o design biofílico – área da neuroarquitetura –, que olha os diferentes aspectos do ambiente para entender como ele pode nos afetar: iluminação (natural ou artificial), formas, layout, proporções, sons, cheiros e cores. Pisos e material de acabamentos também são pensados para criar uma atmosfera que conecte as pessoas com a natureza.
Andrea cita como exemplo o design hospitalar que vem sofrendo mudanças nos últimos anos, devido a questões científicas. “Estudos realizados na década de 1980 mostraram que a recuperação de pacientes, assim como sua percepção da dor, melhoravam quando ficavam em quartos com vista para paisagens naturais, como jardins. O mesmo não acontecia com os que tinham janelas com vista para muros ou a cidade,” fala. Assim, no Reino Unido, alguns hospitais dedicados ao tratamento de câncer são construídos afastados dos centros urbanos. No Brasil, a arquiteta cita a rede de hospitais Sarah Kubitschek: suas unidades são conectadas a jardins.
CURIOSIDADES
1. O médico americano Jonas Salk, inventor da vacina da poliomielite, observou que, toda vez que visitava a Basílica de São Francisco de Assis, construída no século 13, em Assis, se sentia mais criativo. Ele morou na Itália nos anos 1950. Quando voltou para os EUA, no final dos anos 1960, criou o Instituto Salk e convidou o arquiteto Louis Kahn para fazer um projeto que misturasse arte e ciência, funcionalidade e estética. O objetivo era que os cientistas que trabalhassem ali se inspirassem no edifício e passassem a fazer pesquisa científica como arte.
2. O termo neuroarquitetura só surgiu em 2003, após a criação da Academy of Neuroscience for Architecture (ANFA), na Califórnia, como um setor do American Institute of Architects (AIA), localizado em Washington, DC.
3. A partir do livro Architecture and the Brain: a new knowledge base from neuroscience, escrito pelo arquiteto John Eberhard, membro da AIA, e publicado em 2007, a neuroarquitetura passou a ser difundida nas universidades de arquitetura e hoje tem sido bastante aplicada em projetos de vários cantos do mundo, incluindo o Brasil.
4. Intensificação de áreas verdes, espaços bem iluminados, conforto térmico e acústico, e diferentes texturas são algumas das características da neuroarquitetura. Também é importante a escolha adequada da paleta de cores, de acordo com o propósito do ambiente, e o emprego de materiais, como madeira, bambu, pedras e outros, que ajudam a estabelecer a conexão com elementos naturais.
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RENASCE UM MUSEU
Depois de permanecer fechado por quase uma década, o Museu do Ipiranga, o mais antigo da capital paulista, reabre as portas ao público com novas áreas e apresentando uma obra de restauro jamais vista no Brasil
72 POR REGINA GALVÃO
&DESIGN :: MUSEU DO IPIRANGA © FOTO NATALIA CESAR
Abaixo, duas obras-primas do acervo: a maquete de gesso da cidade de São Paulo, do século 19, e o quadro O Grito do Ipiranga, de Pedro Américo, datado de 1888
Acima, vista do salão onde estão expostas as estátuas dos bandeirantes e pinturas que mostram acontecimentos históricos, como o ciclo do ouro e a caça aos indígenas
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© FOTOS HELOISA BORTZ/DIVULGAÇÃO
Era 1884, o italiano Tommaso Gaudenzio Bezzi, engenheiro e arquiteto que trabalhou em várias cidades brasileiras para a Corte Imperial, foi contratado para projetar um edifício-monumento na colina onde D. Pedro I deu o grito da independência do Brasil, em 7 de setembro de 1822.
Baseado no estilo de um palácio renascentista, o projeto original do prédio tinha a forma de ‘E’. As duas alas laterais, no entanto, não foram feitas por falta de recurso.
Aliás, a construção, erguida com tijolos cerâmicos – novidade para a época –, com 123 metros de comprimento e 16 metros de profundidade, 3 pavimentos e 1 subsolo, só pôde ser finalizada graças ao dinheiro arrecadado em loterias, ação proposta pela Assembleia Legislativa Provincial deSão Paulo.
Em 7 de setembro de 1895, o edifício foi oficialmente inaugurado, contendo um acervo voltado para a História Natural. Faltava, porém, planejar o jardim.Para isso, escalou-se o paisagista belga Arsênio Puttemans, que o executou seguindo as características dos jardins franceses, principalmente os do Palácio de Versalhes.
Em 1922, no Centenário da Independência, o Museu do Ipiranga recebeu novas aquisições: esculturas de mármore dos bandeirantes ocuparam os nichos do saguão; medalhões pintados com os retratos dos líderes da independên-
cia brasileira compuseram o Salão Nobre junto ao quadro “Independência ou Morte”, pintado por Pedro Américo, em 1888 – uma das mais relevantes obras do acervo; e documentos e obras sobre a história paulista reforçaram o novo caráter histórico da instituição.
Outra fase importante começou a ser traçada em 1963, quando a Universidade de São Paulo assumiu a gerência desse patrimônio, tornando-o numa instituição voltada para ensino e pesquisas. “A partir daí, o acervo passa a adotar itens relacionados à cultura material da sociedade brasileira, do mundo do trabalho e da família”, afirma o professor Amâncio de Oliveira, vice-diretor do Museu do Ipiranga, cujo nome oficial é Museu Paulista.
Problemas estruturais, a falta de acessibilidade e de segurança levaram ao fechamento do espaço em 2013. Nove longos anos se passaram até sua reabertura em 7 de setembro de 2022, data da celebração do Bicentenário da Independência.
“Tivemos de acondicionar todo o acervo – com mais de 450 mil itens – em outros locais, catalogá-lo e retorná-lo ao museu depois de tudo restaurado. A captação de recursos da iniciativa também demorou para acontecer e, nesse sentido, deve-se reconhecer o importante papel do Governo do Estado nesse processo”, diz o vice-diretor.
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© FOTO JOSÉ ROSAEL
Passado revisitado
Vencedor do concurso público para a restauração e a modernização do célebre conjunto paulistano, o projeto do escritório H+F Arquitetos procurou interferir o mínimo possível na volumetria do edifício, mas ampliou os espaços de recepção, exposição e administração.
O acesso pelas escadas foi substituído por uma passagem subterrânea, que integrou o jardim ao prédio por meio de enormes vidraças, permitindo observar os chafarizes e o paisagismo do Parque da Independência. Nessa nova área de convivência, os arquitetos alocaram bilheteria, livraria, café e auditório, além de escadas rolantes que levam o frequentador ao hall de entrada.
A área de cobertura do prédio, com 800 m², antes usada para armazenar a reserva técnica,transformou-se em espaço expositivo e o topo da construção, em mirante. “Encontramos registros de que, na inauguração em 1895, as pessoas puderam subir na cobertura. Resolvemos, então, que
essa experiência deveria ser compartilhada com o visitante do século 21, pois a vista dali revela uma geografia surpreendente”, afirmou o arquiteto Eduardo Ferroni durante uma entrevista. Com a reabertura, o museu apresenta 11 exposições, de pinturas a moedas, passando por brinquedos e louças, que perdurarão de três a cincoanos. Em novembro, estreou a mostra “Memória da Independência”, que permanece até março de 2023. “O Museu do Ipiranga resgata nossa identidade desde a Independência, recupera a história e amplifica, revelando a dinâmica da sociedadebrasileira e o confronto entre o tradicional, o moderno e o contemporâneo”, conclui Oliveira.
Além de obras importantes do século 19 e 20, como o retrato de Maria Quitéria de Jesus Medeiros (no detalhe acima), o jardim francês do museu é outra atração do Edifício-Monumento, que, com a revitalização, ganhou novas áreas e o resgate de duas fontes que haviam sido demolidas
© FOTOS HELOISA BORTZ © ILUSTRAÇÕES H+F ARQUITETOS
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NO CAMINHO DAS PEDRAS PRECIOSAS
Dentro de um enorme caldeirão de quartzo, no interior da mina, faiscava um fabuloso tesouro: turmalinas vermelhas
POR BRONIE LOZNEANU
Parece até ficção. Mas é pura verdade – e rendeu livro. Em 1978, Ailton Rodrigues Barbosa descobriu na sua Lavra do Fiote, localizada próxima da cidade de Conselheiro Pena, em Minas Gerais, um bamburro de turmalinas rubilita – turmalinas vermelhas – que, até então, foi a maior produção descoberta no mundo. E elas estavam dentro de um enorme caldeirão de quartzo.
O tamanho e as cores fascinantes das turmalinas vermelhas despertaram o interesse de colecionadores e comerciantes do mundo inteiro. Ailton era um simples minerador e teve a possibilidade de viajar pelo mundo e comprovar a todos sua fantástica descoberta.
Com o resultado financeiro obtido, adquiriu a mina de Governador Valadares, que se situa a 35 quilômetros da cidade. Ronaldo Barbosa, filho de Ailton, seguiu a tradição mineradora do pai e ainda desdobrou o projeto familiar em inúmeras atividades artísticas, projetando seu talento no mundo inteiro. Fascinado pelas formas e cores das pedras preciosas, começou a lapidá-las e utilizá-las em entalhes de objetos, joias e esculturas. Autodidata, se tornou artista e sempre buscou ampliar e valorizar as magníficas pedras preciosas brasileiras. Hoje é reconhecido como lapidador, minerador, escultor e designer de joias preciosas.
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&DESIGN :: PEDRAS PRECIOSAS
Ronaldo Barbosa e o filho de Ailton, em 1978, quando descobriram um bamburro de turmalinas rubitas em suas terras, em Minas Gerais
A escultura curvilínea apresenta, como o nome diz, superfícies e linhas curvas, interligadas ao longo da lapidação. Com isso, as gemas produzidas com essa técnica possuem aspecto orgânico pelo uso de ferramentas de corte arredondado. Os talhos na superfície das gemas reforçam o volume tridimensional a partir do jogo entre luz e sombras, e podem contribuir para criar efeitos de profundidade e maior saturação. Sua reflexão é difusa com interferência dos volumes, como nas esculturas curvilíneas em ametista criadas por Ronaldo Barbosa.
Ele trabalha com muita destreza e atenção todas essas técnicas, pois para cada etapa são necessárias ferramentas diversas e materiais abrasivos que aquecem e desgastam as pedras.
Ronaldo explica que o material em estado bruto precisa ser de excelência, pois a pureza e a forma das pedras interferem no resultado final. As principais gemas que mais utiliza são águas-marinhas, quartzos, turmalinas, ágatas e opalas. Ao dar início a um trabalho, ele faz esboços e, muitas vezes, começa o processo desenhando na própria peça bruta, calculando a resistência de cada uma ao calor. Para isso, usa várias técnicas. Entre elas, a “lapidação diferenciada”, que teve início em 1940 – graças ao lapidário Francis J. Sperinsen e à artista plástica Margaret de Patta, chamada de “lens cut” e “opticuts” – e buscava distorcer a luz no interior da gema, obtendo brilho extraordinário.
A partir dessa tendência, novos estilos foram criados. A escultura angular apresenta principalmente faces planas e linhas retas, obtidas com ferramentas de corte agudo que produzem incisões em forma de “V”, que trazem faces e arestas com ângulos agudos entre elas. As gemas transparentes lapidadas com essa técnica são reconhecidas pela aparência metálica e pelo forte contraste entre luz e sombra. Ronaldo utiliza essa técnica em suas esculturas em quartzo e em peças pequenas para a joalheria.
Já nas formas abstratas e tridimensionais na pedra, o artista foca seu trabalho na inter-relação entre a luz e a pedra, explorando reflexo, refração, brilhância e cor – principalmente em água-marinha, turmalina e quartzo.
Muito inspirado na história da arte, principalmente no abstracionismo geométrico, o artista assina objetos escultóricos que já rodaram o mundo, conquistando inúmeras premiações internacionais. No Brasil, no Gem Show Internacional, obteve a medalha de ouro em 2010, além de ser destaque no evento Gem Sculptor, realizado na cidade de Nairobi, no Quênia. O artista também foi finalista do concurso IU Awards International Gem Cutting and Jewellery Design Competition, em 2012, na cidade de Hong Kong.
Apesar dos holofotes, ele confessa que seu maior sonho é ver o Brasil assumir a posição de liderança local e internacional, enaltecendo esse precioso e rico patrimônio que possui.
“Nossas pedras fascinam muito mais europeus, asiáticos e americanos. Por isso, meu trabalho é mais apreciado e valorizado no exterior”, conta Ronaldo, que também organiza visitas guiadas à sua mina. E garante que tem que atraído turistas de todos os países, principalmente depois que seu trabalho ganhou projeção na publicação Mineralogical Records, a mais importante do setor, e com o lançamento do livro Minerais do Brasil.
“Sinto que o interesse pelas pedras preciosas brasileiras está em alta”, garante.
© FOTOS PESSOAIS REPRODUZIDAS NO LIVRO "COLEÇÕES MINERAIS DO BRASIL", DE CARLOS CORNEJO E ANDREA BARTORELLI, SOLARIS, 2020 © FOTO V&G STUDIO/SHUTTERSTOCK
&DESIGN :: PEDRAS PRECIOSAS
PRECIOSIDADES DO NOSSO BRASIL
AMETISTA
É a variedade mais valiosa e apreciada do quartzo, de cor violeta, podendo variar de um roxo bem claro até o mais escuro, que geralmente é a mais valiosa.
Marcelo Lopes
Anel Your Highness
Ouro branco 18k, ametista lavanda 29,57 ct, pérola negra do Taiti 8 mm e diamantes negro 0,72 ct (TW)
ÁGUA-MARINHA
Variedade na cor azul do berilo. As variações naturais da coloração vão do azul-celeste ao azul-marinho, mas sempre com certo tom esverdeado, e quanto mais intenso o azul mais valiosa será a gema. Essa cor azul é devido à presença do elemento ferro.
As gemas sem inclusões podem ter sua cor modificada pelo tratamento térmico, geralmente acima de 150 graus. Por meio desse método de efeito permanente, se obtém uma gema de cor azul mais pura, perdendo a tonalidade esverdeada.
O Brasil é o maior produtor de água-marinha do mundo, sendo que as principais minas se encontram em Minas Gerais, Espírito Santo e Rio Grande do Norte.
Kristhel Byancco
Quando aquecida a cerca de 500 graus, ela adquire uma cor amarela ou alaranjada, sendo então comercializada como citrino, que é outra variedade do quartzo também muito apreciada.
O Brasil é o maior produtor mundial, principalmente no Rio Grande do Sul e em Minas Gerais. Encontrada também na Bolívia, Índia, Madagascar, Rússia, México e Uruguai. Essa gema é muito utilizada como símbolo de celibato pelos membros da Igreja Católica.
Anel água que brota do amor ágape
Ouro branco 18k, água marinha martha rocha e diamantes
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POR MARCIO NONATO COUTINHO
© FOTO ALMIR PASTORE
© FOTO ANDREW GARCIA
RUBELITA
Existem turmalinas em praticamente todas as cores do arco-íris, sendo que algumas variedades recebem nomes específicos devido a sua coloração, como a turmalina vermelha, que é chamada de rubelita. Porém, para receber essa denominação, as gemas não podem sofrer alteração de cor quando expostas à luz artificial; caso sofram alteração para uma tonalidade laranja ou amarronzadas deve ser denominada turmalina rosa ou vermelha.
As rubelitas são caraterizadas pela presença de inclusões que as identificam, sendo raras as gemas totalmente limpas na tonalidade vermelho intenso.
A demanda por essa gema aumentou bastante devido ao mercado chinês há cerca de 20 anos. Os chineses sempre adoraram a cor vermelha do rubi, mas com a ocorrência cada vez mais intensa de gemas altamente tratadas com colorantes e resinas, eles passaram a procurar uma gema vermelha alternativa, encontrando na rubelita a melhor opção.
Os principais produtores da rubelita são Brasil, Nigéria, Madagascar, Congo, Moçambique e Paquistão.
Ouro 18k, rubelita 7,16 ct e diamantes 1,68 ct (TW)
Ouro amarelo 18k, esmeralda na rocha e diamantes verdes
ESMERALDA
A esmeralda é a variedade mais nobre da espécie berilo, cuja cor verde é devida à presença de traços de cromo e às vezes de vanádio. Está entre as 4 gemas mais preciosas do mundo, junto com o diamante, o rubi e a safira.
As principais minas estão na Colômbia, com cerca de 60% da produção mundial, no Brasil (principalmente nas minas da Serra da Carnaíba, na Bahia, em Itabira, Minas Gerais, e em Campos Verdes, em Goiás), na Zâmbia, na Rússia e no Afeganistão.
As primeiras esmeraldas que se têm registro foram encontradas no Egito por volta de 1500 a.c.
As esmeraldas geralmente possuem inclusões que auxiliam na sua identificação e procedência. Tais inclusões são geralmente tratadas com óleos minerais ou resinas para preencherem fissuras. Elas são extremamente sensíveis a pancadas fortes, riscos e mudanças bruscas de temperatura.
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Andréa Nicácio Anel rocha
Lu Amaral Anel Trois
© FOTO ANDREY GARCIA
© FOTO MARCOS VIANNA
TURMALINA PARAÍBA
O primeiro exemplar dessa rara gema preciosa foi encontrado em 1981 na cidade de São José da Batalha, estado da Paraíba. Por possuir um azul fosforescente neon muito intenso, pensava se tratar de uma falsificação. Somente 9 anos após sua descoberta essa pedra foi analisada pelo Gemological Institute of America que então certificou ser essa uma nova variedade da família das turmalinas, cuja cor característica é devida à presença de traços de cobre e manganês na sua composição química. Após essa descoberta, outras ocorrências foram encontradas no Rio Grande do Norte e posteriormente em minas na Nigéria e em Moçambique.
O auge da produção da mina de São José da Batalha, que produz os exemplares de cores mais intensas e consequentemente mais valiosas, ocorreu entre os anos de 1989 e 1991. Atualmente a mina se encontra em disputa judicial pelos seus direitos de mineração e sua produção é muito limitada.
Sua cor pode variar do azul neon característico até um verde semelhante ao da esmeralda, isso após tratamento térmico com temperaturas variando de 350 a 550 graus. Na natureza as cores podem ser cinzas, tons de violeta, que produzem as cores mais valiosas após esse tratamento térmico.
Fragmentos
Colar com opção de uso como duas pulseiras
Ouro branco 18 k, turmalinas paraíbas 58,14 ct (TW) e diamantes 7,30 ct (TW)
É uma das gemas mais valiosas e procuradas pelas grandes joalherias do mundo. Devido ao alto valor de mercado e grande procura dessa gema, outras gemas passaram a ser comercializadas como substitutas, tais como as apatitas azul neon e verdes, além das turmalinas azuladas sem a presença do cobre.
Anel Natura
Ouro amarelo escovado 18k e topázio imperial
TOPÁZIO IMPERIAL
Variedade mais rara dos topázios, essa gema é encontrada principalmente no Brasil, na cidade de Ouro Preto (MG), com cores bem características que podem ir do amarelo, laranja ao rosa e até mesmo um tom vermelho, que seria sua cor mais rara e valiosa.
O topázio imperial foi batizado em 1881, quando o Imperador D. Pedro II foi presenteado com um exemplar dessa gema.
Por ter uma dureza mais elevada, 8 na escala de Mohs, o topázio é muito resistente a arranhões, mas por ter clivagem perfeita deve ser lapidada com muito cuidado, pois pode fraturar facilmente.
Ruth Grieco
Miriam Mamber
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© FOTO NELLIR SOLITRENICK
© FOTO ALMIR PASTORE
&ESPAÇO
Espelho d'água central com cubas suspensas, de Migotto, trazem leveza natural ao jardim flutuante.
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EM NOME DA PAZ p.82
SIMPLES & NATURAL p.91
+ Gabriel Fernandes Bel Lobo Sapatos esculturais
EM NOME DA PAZ
O arquiteto Roberto
Migotto acredita que tem o compromisso de traduzir as necessidades dos clientes sem deixar de se posicionar
“Eu acredito que o arquiteto deve ser, antes de tudo, um bom ouvinte”, afirma Roberto Migotto, um dos nomes mais importantes da arquitetura e do design de interiores atuais. Ele entende que, quando uma família procura os serviços de um arquiteto, quer realizar o sonho de morar bem. “E a gente tem o compromisso de traduzir as necessidades que cada uma apresenta sem deixar de se posicionar: quando a pessoa tem uma noção errada de proporção e de tamanho, a gente precisa ajudá-la a entender que fazer da maneira que imaginava não vai ficar bom. Mas, para isso, é preciso saber trocar ideias”, explica.
É assim, segundo Migotto, que nascem os projetos bem-sucedidos. “Quando há uma parceria afinada entre cliente e arquiteto, o trabalho se
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©FOTO DENILSON MACHADO
&DESIGN :: ROBERTO MIGOTTO
O espaço Senses Hall Deca assinado por Roberto Mingotto traz um espaço de calmaria na vida urbana
torna uma grande satisfação”, diz ele, que é conhecido por criar projetos em que harmoniza o clássico e o contemporâneo, com ambientes amplos e integrados. “Eu gosto de definir espaços e sou muito bom nisso. Penso onde as pessoas dormem, como é a ligação com o restante da casa. Afinal, a circulação é algo muito importante e, para isso, o layout precisa estar bem definido. Assim, pode-se aproveitar todos os espaços”, conta Migotto, que sonhava seguir a carreira de arquiteto desde a infância.
Criado em Taubaté, interior de São Paulo, o arquiteto morou e fez os primeiros estudos na escola da fazenda do avô. E só conheceu a capital quando estava com 17 anos. Mas desde criança tinha fixação por cidade e construções. “Lembro-me de pegar os tijolos que sobravam dos terreiros de café e criar edifícios, fazer avenidas com rodos de areia que pegava do campo de bocha que havia na fazenda”, diverte-se. “Passava horas dos dias fazendo isso. Tinha essa fixação”.
Só no ginásio é que ele passou a estudar em um colégio de Taubaté. Nessa época, o pai queria que estudasse engenharia na cidade, que tinha faculdade conceituada, mas Migotto havia escolhido arquitetura. Chegaram a um acordo, e ele foi fazer curso técnico na Braz Cubas, em Mogi das Cruzes. Ainda estudante, começou o estágio em edificações. “Na época, meu curso permitia projetar casas de até 12 metros quadrados, e foi assim que passei a construir na região”, lembra.
Em seguida, entrou na faculdade e a vida se tornou uma correria. “Eu estudava em Mogi e encarava estágio em São Paulo. Era tudo muito cansativo, mas eu amava”. As coisas começaram a melhorar quando ganhou um carro – “mas a gasolina era por minha conta” – e passou a estagiar em grandes escritórios de arquitetura de São Paulo. Foi em um deles que conheceu João Armentano que, um belo dia, ligou para Migotto com uma proposta que parecia ousada. “Ele me convidou para montar um escritório, assim, do nada, com uma mão na frente e outra atrás”, conta.
Apesar disso, a dupla encarou o desafio. Trabalharam cerca de dez anos juntos e depois, a partir de 1990, cada um seguiu carreira solo. Migotto começou a ganhar evidência ao participar de eventos importantes como CasaCor, Mostra Artefacto e muitos outros. E se firmou como um dos mais conceituados profissionais do segmento por saber evoluir com os novos modos de pensar o significado de morar bem ao longo dos anos.
“Com a pandemia, a casa se tornou o refúgio, e um dos trunfos dela é ter espaços interligados e flexíveis. Muitas pessoas trabalham em casa e vão precisar de home office. Outras só precisam acompanhar o trabalho e pode ser que não tenham necessidade de um ambiente tão demarcado. Há diferentes necessidades, mas vejo que, mais do nunca, todo mundo deseja se sentir em paz dentro de casa. E é o que sempre tentei fazer por meio dos meus projetos: transmitir paz”.
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©FOTO RAFAEL RENZO
"Há diferentes necessidades, mas vejo que, mais do nunca, todo mundo deseja se sentir em paz dentro de casa."
Migotto é conhecido por fazer projetos em que harmoniza o clássico e o contemporâneo, e também pela criação ambientes amplos e integrados
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©FOTOS DIVULGAÇÃO
"Eu gosto de definir espaços e sou muito bom nisso. Penso onde as pessoas dormem, como é a ligação com o restante da casa. Afinal, a circulação é algo muito importante e, para isso, o layout precisa estar bem definido."
OS BRASIS DO BRASIL
Com um projeto de livro em que pretende mostrar diferentes culturas e design de artesanato, o arquiteto Gabriel Fernandes constrói sua visão do contemporâneo
Ambiente "Somos" do arquiteto na CasaCor São Paulo, 2022
&DESIGN :: GABRIEL FERNANDES
“Somos vários países em um só.”
EFilho de artesã, o arquiteto e designer Gabriel Fernandes tinha uma questão logo que começou a fazer seus primeiros projetos. “Eu achava que não conseguia ser contemporâneo, porque sempre colocava uma almofada feita pela minha mãe e outros itens de artesanato”, lembra. “Até que entendi que esse era meu estilo e decidi pesquisar novas culturas e conhecer tipos de artesanato diferentes das minhas referências locais”.
Assim surgiu, em 2020, o projeto “Brasis Que Vi”, livro que Gabriel está preparando a partir de viagens que tem feito para vários cantos do País, ainda sem previsão para publicação. “Estou, por enquanto, postando alguns trechos desse trabalho no meu Instagram”, diz ele que, ao sair em campo para fazer esse projeto, se surpreendeu com a variedade cultural brasileira. “Somos vários países em um só. Existem trabalhos sendo feitos por pessoas que não estudaram por falta de oportunidade e viraram pescadores."
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Influenciado pela mãe artesã, Gabriel tem o artesanato como marca registrada do seu trabalho
"Do mesmo modo, tenho encontrado gente que concluiu a universidade, mas optou por se tornar artesão ou criador de ostra”, conta. “Em Brasília, a Maria do Barro ensinou outras mulheres a fazer cerâmica, e hoje elas vivem desse trabalho. No Sul, um estilista largou a moda e também faz cerâmica. Então, existem diferentes abordagens e são de uma riqueza enorme”.
Entre os destinos visitados, Gabriel destaca o Maranhão. “Ali, eu conheci uma senhora que mora no pé das dunas. Ela e outros que vivem por lá já se acostumaram a se deslocar de acordo com o movimento das dunas. Para quem é de lá, isso é normal”, explica. “Eu perguntei se ela não pensava em se mudar para outro local mais estável. Mas a senhora me disse que não, que gostava do lugar. Então, entendi que costumamos medir as coisas pela nossa régua, mas que está errado. Cada um deve usar a própria. Foi um aprendizado e tanto, que trouxe mais significado para meu trabalho”.
Quando o arquiteto iniciou o projeto do livro, ele pretendia desvendar uma identidade brasileira na arquitetura e no design artesanal. “Descobri que isso não existe. Não há uma casa verdadeiramente brasileira. O que temos é uma grande mistura de estilos, que reflete a diversidade cultural”, afirma. “A partir de então, percebi que, ao contrário do que imaginava no início da minha carreira, esse mix de estilos é que é contemporâneo. Até porque, hoje, com a globalização, também trazemos outros olhares para esse mix. O que faz a diferença é como cada um faz sua mistura”.
Acima casa da Juliana Pinheiro e abaixo, casa do Leo Veneza, visitadas pelo arquiteto em Salvador para o livro "Brasis Que Vi"
© FOTOS DENILSON MACHADO/MARCELO OSÉAS
ARQUITETA DO BEM
A arquiteta e apresentadora Bel Lobo realiza o sonho de desenvolver projetos comunitários
POR SIMONE RAITZIKE
Desde criança, Bel Lobo já imaginava que virar “gente grande” era algo mais do que simplesmente trabalhar e se sustentar. Sonhava em fazer diferença – em todos os sentidos. O tempo passou, Bel virou arquiteta badalada – assinando projetos de lojas como Farm, Arezzo, Salinas, Richards e Livraria da Travessa, entre tantos outros –, mas a essência (e os sonhos) da infância se mantiveram firmes e fortes. “Eu brinco que sou uma hippie das antigas, que acredita que todos podem e devem se ajudar. Tento fazer a minha parte porque, acima de tudo, é algo que me alimenta e faz bem”, conta.
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Essa busca por uma arquitetura mais social se materializou na sua rotina profissional há cerca de 10 anos, quando Bel propôs um desafio para toda a equipe do seu escritório (Be.bo): o projeto (voluntário) de planificação do Centro Cultural Histórias Que Eu Conto, na Vila Aliança, área carente no subúrbio carioca. “Desenhamos uma biblioteca, cujo teto viraria uma praça para os jovens soltarem pipa. A construção em si não aconteceu, mas a vivência foi extremamente transformadora para os que participaram”, lembra.
Mais tarde, com a consultoria do Instituto Phi, de Luiza Serpa – voltado para traçar estratégias de filantropia –, ela foi além, buscando ideias para investir na área de educação, seu maior foco de interesse. “Passei a colaborar com o Instituto Uerê, da Yvonne Bezerra de Mello, no Complexo da Maré. Pagava do meu bolso uma
Acima: vista interna do projeto da Biblioteca Ao lado: maquete em 3D do Centro Cultural Histórias Que Eu Conto, projeto de Bel Lobo desenvolvido em parceria com o seu escritório, Be.bo
das professoras e acompanhava de perto o incrível trabalho deles”, diz.
Teve ainda a Escola Municipal Joaquim Nabuco, em Botafogo, lugar onde Bel estudou, que se encontrava muito abandonado. “Bati um dia na porta e me propus a ajudar no que fosse possível. Acabei pintando todo o segundo andar, deixando os ambientes organizados para os alunos. Uma vitória”, revela.
Próxima de completar 60 anos, repleta de projetos no escritório, Bel, sempre inquieta, se sentiu acomodada e resolveu que devia dizer “sim” para tudo o que lhe interessasse. “Me senti livre para arriscar, me jogar de cabeça mesmo. Estava na hora”, lembra. Foi então que criou o programa “Quem Mandou Me Convidar?” – na esteira do sucesso que conquistou com o “Decora”, apresentado por ela em sete temporadas no canal de assinatura GNT.
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"O viveiro no Jardim Botânico vai ser o centro de soltura dos animais."
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Com divulgação on-line pelo YouTube, o “Quem Mandou” acontecia a partir de uma demanda da comunidade, desencadeando uma rede em cadeia para efetivar o projeto em questão. Na primeira temporada, que aconteceu em 2018, ela foi convocada para construir a biblioteca de uma escola pública em Paraty. “Eu adorei a experiência, mas foi algo que fiz na marra. Consegui alguns patrocinadores, no caso, a Deca, chamei meu filho Antonio, que tem a Ziggy Filmes, para dar um suporte. Nós nos instalamos por quase um mês em uma pousada local, vivendo a rotina de filmagens e produção. Um grande aprendizado, que rendeu frutos para a comunidade”, lembra.
Agora, Bel está envolvida em um novo formato do “Quem Mandou”, dessa vez em Tiradentes (MG), construindo a Escola da Semana, criada para disseminar ofícios de artesãos locais. “O convite veio dos organizadores da Semana Criativa, evento anual que acontece ali. Só que em vez de ser apenas eu à frente da empreitada, convoquei vários designers para desenvolverem o projeto junto, reformando uma escola rural que estava abandonada. Um processo lindo”, conta.
Outro projeto que já está montado – e do qual Bel muito se orgulha – é o Instituto Vida Livre, com Roched Seba, que chegou a ela pela indicação de Ademir Bueno, parceiro de vários trabalhos e head de Design e Tendências da Tok&Stok. “O Roched precisava de alguém para fazer a sede, em um sobrado no Horto, no Rio. Reformamos, conseguimos doações e ficou muito bacana”, elogia Bel, que atualmente monta um viveiro para vida silvestre próximo ao arbo-
reto do Jardim Botânico, numa casa vizinha ao antigo Teatro Tom Jobim. “Vai ser o centro de soltura dos animais”, acrescenta.
Verdade é que são muitos os projetos para os quais Bel diz “sim” – e todos pro bono, ou seja, sem remuneração. “Tive até de criar uma empresa paralela, a Be.lo, e contratar uma assistente para cuidar dessas iniciativas, que não fazem parte da agenda da Be.bo, meu escritório com Bob Néri, sócio e ex-marido. Gasto uma fortuna, mas sou assim, fazer o quê? Quero salvar o Planeta”, brinca. A questão, agora, é como viabilizar todas essas iniciativas de forma sustentável. “Ando até pensando em promover eventos no terreno/galpão que tenho em frente ao Jardim Botânico, lugar que adoro e pretendo um dia construir minha casa. Acho que seria lindo ver esse espaço, à sombra de uma mangueira centenária, ser usado de forma criativa”, sonha, já colocando a mão na massa para deixar a área mais organizada. “De alguma maneira, quero financiar a Be.lo. E conseguir fazer tudo o que acredito. Com força e sabedoria”. Salve, Bel.
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Imagem das filmagens do "Quem Mandou Me Convidar " em Tiradentes
©FOTOS DIVULGAÇÃO
SIMPLES NATURAL &
Depois de literalmente fazer moda, Antonia
Bernardes se torna sócia da Bernardes
Arquitetura e pilota com leveza e elegância a área de decoração do escritório carioca
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&DESIGN :: ANTONIA BERNARDES
POR SIMONE RAITZIKE
Ela brinca que teve a sorte de nascer em uma família onde criar é quase uma obrigação. Ou mesmo uma vocação. Desde muito cedo, aprendeu que o “simples” não era apenas a melhor escolha, mas também a mais elegante e atemporal – em todos os sentidos.
Neta, filha e irmã de arquitetos renomados (Sérgio, Claudio e Thiago Bernardes, respectivamente), a vida de Antonia, a caçula, sempre foi cercada por um mix de aconchego, beleza e despojamento. “O código comum, em casa, tinha a ver com a arte de morar e viver bem. Mas sem ostentação. A ideia era valorizar, acima de tudo, o básico e natural”, conta.
Sempre muito apoiada pelos pais – Claudio e Bebel – em suas escolhas, Antonia estudou Comunicação Social, mas de olho no universo da moda. “Comecei a trabalhar cedo, aos 16 anos, como assistente em produção de foto, ao lado das craques Bebel Moraes e Hiluz del Priore. Maior ralação, mas sentia um prazer imenso”, lembra.
Aos 20 anos, ainda na faculdade, casou-se com o então namorado Rodrigo Noronha e logo engravidou – “do Joaquim e, em seguida, de Nina. Mais tarde um pouco, da Maria, a caçulinha. E descobri com eles a felicidade em ser mãe e quanto esse sentimento me alimentava”. Quando Nina estava com 4 meses, foi convidada para cuidar da mídia da Maria Bonita, badalada grife de moda carioca. “A marca era uma potência. Foi um privilégio conviver ali com Isabela Capeto, Andrea Marques, Gabriela Moraes... Todas passaram por lá, na criação”, lembra.
A experiência na Maria Bonita se estendeu por quase cinco anos. Quando saiu, um pouco depois da morte repentina do pai – em um acidente de carro a caminho de um projeto
em Bonito, MS –, Antonia resolveu arriscar: era hora de ser dona do próprio negócio e assinar uma moda autoral que prezava por conforto, corte confortável e cartela de cores neutras. “Foi um passo largo, mas tive total apoio da família, como sempre. Meu escritório era nos fundos da casa onde até hoje funciona o escritório do Thiago (sócio criador da Bernardes Arquitetura), no Rio”.
A primeira coleção foi minimalista: branco e preto, em algodão, linho e couro. “Como na lição que aprendi em casa, a sofisticação estava na escolha de matérias-primas atemporais, fibras naturais e na simplicidade do corte”, define.
Essa filosofia de vida – e formação estética – remete diretamente à figura de Claudio, “caiçara de alma japonesa”, como ela gosta de defini-lo. Foi ele quem apresentou Angra dos Reis para a família e lá construiu um refúgio, literalmente de madeira, palha e pedra, à beira-mar. “Ele sofisticou materiais que ninguém dava valor. Nossa casa – uma cabana, na verdade – era numa ilha, praticamente aberta para a paisagem e nada convencional. Ter vivido ali foi uma enorme referência de simplicidade. Ficávamos o dia todo descalços, pé na areia, mergulho no mar, peixe fresco. Uma convivência mágica com os locais.
Projetos do escritório da Bernardes Arquitetura feitos no Rio, com o toque e a coordenação da decoração elegante de Antonia
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©FOTOS RUY TEIXEIRA
Meu pai sabia aproveitar a vida e transmitiu para nós a relação fundamental do morar com a natureza. De quebra, era generoso, divertido, recebia de forma espontânea e, cá entre nós, tinha o abraço mais sedutor do mundo”.
Há 10 anos, Antonia resolveu novamente mudar. Desgastada com as reviravoltas da vida de empresária, fechou sua marca, quitou as pendências e foi convidada por Thiago para para coordenar a decoração da Bernardes Arquitetura.
“Nossos momentos coincidiram porque eu estava terminando um ciclo como dona do negócio e ele tinha decidido romper a sociedade com Paulo Jacobsen, ex-sócio do meu pai. Confesso que de cara tive crise de ansiedade: irmã, filha, neta, muita autocobrança e responsabilidade. Mas a equipe foi incrível e tive total apoio. Foi assim
que parei de vestir gente para vestir casa”, conta. Hoje, com cerca de 40 obras em andamento – incluindo projetos em Nova York –, Antonia se sente estimulada com uma rotina intensa, que inclui viagens frequentes para conhecer artesãos, ateliês e tendências no universo do artesanato, arte e decoração. “Desde a feira de design de Milão à Feneart, de artesanato, em Recife, o negócio é ir em busca de algo que emocione e surpreenda”.
Seu trabalho, à frente de uma equipe que diz ser das mais afinadas, é conceituar cores, materiais, desenho de marcenaria e objetos para os interiores assinados pelo escritório. “O olhar da criação tem de ser múltiplo e sem vícios”, ensina com a experiência de quem, recentemente, foi convidada a se tornar efetivamente sócia da Bernardes Arquitetura. “É uma responsabilidade e tanto, mas está bom demais”, resume, feliz da vida.
Casa na Serra do Mar assinada por Antonia. Lobby do Hotel Arpoador Inn, reformado pela Bernardes Arquitetura: para esse trabalho, ela cuidou de todos os detalhes, do visual do espaço aos uniformes dos empregados. No retrato, Antonia com um vestido de sua grife
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ARQUITETURA DOS PÉS
Com materiais surpreendentes, técnicas inovadoras e muita criatividade, os sapatos de luxo são peças de arte
POR ELIANA CASTRO
A sandália Rainbow, obra de arte de Ferragamo feita especialmente para a atriz Judy Garland: a plataforma foi produzida com camadas de cortiça colorida
AA Cinderela é a prova que um par de sapatos pode mudar sua vida. Essa é uma das inúmeras frases divertidas sobre a apaixonante relação das mulheres com os calçados. Mas, quando falamos no seu poder de mudança, é claro que não estamos pensando naquela rasteirinha básica, mas em sandálias e sapatos esculturais.
Louboutin, com seus icônicos sapatos de solas vermelhas, marca registrada do francês, ou o espanhol Manolo Blahnik, com seus modelos que são joias decoradas com plumas, lantejoulas, laços, anéis e correntes, são dois dos mais relevantes designers de sapato da atualidade.
Também temos alguns arquitetos e designers de objetos que têm produzido sapatos exclusivos, com base na sua criatividade e no seu conhecimento técnico. Caso de Zaha Hadid que, depois de assinar uma coleção para a Melissa, lançou em 2013 uma edição limitada do sapato futurista nOVa em parceria com United Nude, marca do arquiteto Rem D. Koolhaas e de Galahad Clark, herdeiro de uma respeitada família de sapateiros ingleses.
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&DESIGN :: SAPATOS ESCULTURAIS
Não foi o único calçado desenhado por Hadid, mas esse modelo chama a atenção por sua engenhosidade, já que ela desenvolveu um sistema de balanço inovador baseado em princípios estruturais complexos para permitir um salto de 16 centímetros, em que o calcanhar parece estar completamente sem suporte. Um pouco antes, em 2009, o arquiteto e designer inglês Julian Hakes criou a Mojito, peça muito especial que imita o formato de uma casca de limão contorcida. Com seus conhecimentos, Hakes conseguiu fazer um calçado que, apesar de à primeira vista parecer impossível de ser usado – mas que pode ser usado –, foi projetado para sustentar a parte da frente da planta do pé e parte onde o calcanhar se apoia: são os dois pontos principais de sustentação do salto alto.
OS PIONEIROS
Muito antes desses famosos designers produzirem peças de alto luxo, é preciso lembrar que o italiano Salvatore Ferragamo e os franceses André Perugia e Roger Vivier formaram uma espécie de tríade do mundo dos calçados. Desde o começo do século 20, quando o setor ainda estava começando a se desenvolver, eles conseguiram inovar e elevar os calçados à categoria de arte, seduzindo legiões de mulheres e mostrando que o espaço para criar entre as pontas dos dedos e os calcanhares é infinito.
André Perugia, filho de sapateiro, nasceu em 1893, em Nice. Aos 16 anos, montou a própria sapataria e logo ficou famoso por seu espírito inovador, o que fez que investigasse estilos materiais e tecnologia. Até meados dos anos 1930, não era comum que sapatos de noite deixassem os calcanhares à mostra, mas Perugia desafiou os costumes e, por volta de 1929, encantou com um modelo de sandália noturna artesanal luxuosíssima. Moderno até não poder mais, em 1937 fez o “Heel-less Shoe”, sapato semisalto em que, dessa vez, parece querer desafiar a gravidade.
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O sapato futurista nOVa, criação de Zaha Hadid para uma coleção limitada de 2013
Nas décadas de 1910 e 1920, o designer colaborou com o estilista Paul Poiret. Nos anos 1930, com Elsa Schiaparelli (quem não se lembra do chapéu sapato?). Nos anos 1950, desenhou para Charles Jourdan e Arthur I. Miller, para quem criou o sapato com saltos intercambiáveis por meio de um dispositivo deslizante que permitia a troca do salto normal por um de bolinhas ou padrão de arlequim. Além dos estilistas, Perugia conquistou as estrelas, como a diva Gloria Swanson e as artistas das Folies Bergère. Vale destacar que a sandália Turbante, de 1928, foi feita em homenagem à cantora e dançarina Josephine Baker, que costumava adornar a cabeça com o acessório.
Salvatore Ferragamo criou seu primeiro par de sapatos aos 9 anos para uma das irmãs, Giuseppina, que iria fazer a primeira comunhão. Ela não tinha o que calçar, porque a família não podia arcar com os custos de sapatos brancos, que na época eram tradicionais para essa ocasião. Nascido em Bonito, província de Avelino, desde criança Salvatore sonhava em ser sapateiro – contra a vontade do pai – e observava atentamente o trabalho da construção de calçados. Com lona branca, linha, pregos e ferramentas emprestados de um sapateiro local, produziu seu primeiro modelo. Dois anos depois, foi estudar a profissão em Nápoles e logo retornou à sua aldeia, onde montou uma sapataria.
Em 1915, o designer foi morar nos EUA com os outros irmãos. Começou a trabalhar na Plant Shoe Factory, em Boston, onde ficou por apenas duas semanas, e se mudou para Santa Barbara. Ali, seu irmão Alfonso, que trabalhava na engomadoria de figurinos para American Film Manufacturing Company, e o primo Jerry, com papel em uma série chamada The Diamond from Sky, o apresentaram para a indústria cinematrográfica. Ferragamo fez seus primeiros calçados para a estrela do seriado, Lottie Pickford, irmã de Mary Pickford.
Curiosamente, sua produção inicial foi de botas de caubói, sandálias romanas e mocassins. Mas o que chamou a atenção de estrelas, entre elas, Gloria Swanson, Marlene Dietrich, Mary Pickford e Greta Garbo, eram os modelos feitos sob medida criados a partir de materiais nada ortodoxos, como penas de colibri, casca de árvores. Apesar da reputação, Ferragamo, o “sapateiro das estrelas”, decidiu estudar anatomia na Universidade da Califórnia do Sul, porque não se conformava em produzir calçados bonitos: queria que fossem também confortáveis.
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Mojito, criação do designer inglês Julian Hakes
Em 1927 montou sua fábrica em Florença e passou a talhar formas com técnicos especializados. Curiosamente, sua produção inicial foi de botas de caubói,sandálias romanas e mocassins. Mas o que chamou a atenção de estrelas, entre elas, Gloria Swanson, Marlene Dietrich, Mary Pickford e Greta Garbo, eram os modelos feitos sob medida criados a partir de materiais nada ortodoxos, como penas de colibri, casca de árvores. Apesar da reputação, Ferragamo, o “sapateiro das estrelas”, decidiu estudar anatomia na Universidade da Califórnia do Sul, porque não se conformava em produzir calçados bonitos queria que fossem também confortáveis. Em 1927 montou sua fábrica em Florença e passou a talhar formas com técnicos especializados.
E, no final dos anos 1930, o designer italiano, diante do desafio da guerra que provocou escassez de couro e borracha, passou a experimentar feltro, palha, cortiça e madeira para projetar seus sapatos. E foi assim que nasceu e foi patenteado, em 1937, seu primeiro salto cunha, com pedaços de cortiça preenchendo o espaço entre o calcanhar e a planta do pé. Não demorou para se tornar sucesso por causa da sua leveza e durabilidade. O mais célebre modelo é a sandália Rainbow, de 1938, em homenagem à atriz Judy Garland, com a cunha colorida de 8,5 centímetros e tiras douradas com costuras em relevo. Em 1947, Ferragamo ganhou o “Prêmio Neiman Marcus” pela sua criação a “Sandália Invisível”. A parte superior é feita de linha de pesca de náilon e o salto é o seu famoso “F”, produzido em madeira e com 7 centímetros, inspirado na popa de um transatlântico.
Roger Vivier nasceu em Paris e estudou escultura na École des Beaux-Arts de Paris. Quando um amigo da família lhe acenou com um emprego em uma fábrica de calçados, vis-
lumbrou uma nova carreira. Em 1937, abriu seu ateliê, mas durante a II Guerra Mundial trabalhou como assistente de fotografia. Apenas em 1945 retomou a carreira de designer de sapatos. Sua formação explica muito a quantidade de saltos inovadores que criou. Entre eles, vírgula, rolo, bola, agulha (sim, ele criou o famoso salto quand trabalhava com Christian Dior, nos anos 1950), pirâmide... E o próprio Vivier descrevia seu trabalho como “esculturas com decoração extravagante e rica”. Em 1953, chamou a atenção do mundo por ter sido escolhido para produzir os sapatos da coroação da Rainha Elizabeth II. Feitos de pelica dourada, com incrustações de rubis, eles foram os primeiros a trazer sola dupla para proporcionar conforto às longas horas de exposição da alteza.
Sandália “Noturna”, de André Perugia, revela todo o talento do mestre nos cuidadosos detalhes da peça
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© ILUSTRAÇÕES SOBRE FOTOS JULIA ONAGA
B a n c o D C 3 - V e n c e d o r d o p r ê m i o P l a t i n u m n a c a t e g o r i a d e D e s i g n d e M o b i l i á r i o d o A ' D e s i g n A w a r d a n d C o m p e t i t i o n
@ f a h r e r d e s i g n w w w . f a h r e r . c o m . b r
ECOS DO MOVIMENTO ARMORIAL p.100
&TEMPO
Literatura de Cordel Artesol Yankatu São Bento do Sapucaí
Obra de Romero de Andrade Lima, 1987. O artista tem forte influência do Movimento Armorial que completou 50 anos.
PICASSO DO SERTÃO p.106
OURO DE MINAS
p.114
+
ECOS DO
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&DESIGN :: MOVIMENTO ARMORIAL
POR ELIANA CASTRO
EEm uma das suas muitas boas frases, Ariano Suassuna pregava: “toda arte é local antes de ser regional, mas, se prestar, será contemporânea e universal”. E, ao entrar na casa dos 50 anos, o Movimento Armorial continua a ecoar. A despeito de um mundo globalizado, com intercâmbio de informações nas mais diferentes áreas, o Brasil (re)vive uma onda de forte valorização do artesanato brasileiro, especialmente nas artes e no design.
“Hoje, vejo o crescente interesse em mostras de arte popular. As pessoas vão conhecer o que está sendo produzido pelos artesãos brasileiros”, diz Manuel Dantas Suassuna, artista plástico e filho de Ariano Suassuna, idealizador do Armorial. “Antes do movimento, ninguém dava importância à arte popular. Mas, a partir do momento em que um grupo de intelectuais mostrou interesse pela produção cultural da sua terra, os outros também passaram a se interessar”.
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Ao completar 50 anos, o estilo, que teve Ariano Suassuna como idealizador, continua forte e faz com que a arte popular brasileira seja valorizada
A xilogravura é um dos tripés do Movimento Armorial
Estudo de Francisco Brennand para o figurino de “O Auto da Compadecida”, 1968
Oficialmente, o Movimento Armorial aconteceu em um evento de 18 de outubro de 1970, com o concerto da Orquestra Armorial de Câmara chamado Três Séculos de Música Nordestina: do Barroco ao Armorial, na Igreja de São Pedro dos Clérigos, em Recife. Além disso, a data marca a abertura de uma exposição de arte nordestina com xilogravuras, pinturas e esculturas.
O nascimento da Arte Armorial vem da Santíssima Trindade formada por literatura de cordel, xilogravura e cantadores – que declamam versos acompanhados de viola, rabeca ou pífano –, que teve origem na Europa Medieval. Não por acaso, o nome Armorial vem do francês armes ou armories, que se refere ao conjunto de armas ou brasão das famílias e que Ariano Suassuna conecta à marcação de gado que o Armorial metaforicamente representaria em uma heráldica nordestina. “O design gráfico criado por Ariano é, para mim, uma das coisas mais importantes. Ele transformou a marca de posse em marca de autoria”, afirma Denise Mattar, curadora da mostra Movimento Armorial 50 Anos [leia mais no box].
Antes de lançar o movimento, Suassuna passou 25 anos fazendo pesquisas. Mas o interesse pelo popular já vinha de longe. Nascido em 1927,
o filho de João Suassuna, então presidente (hoje governador) da Paraíba do Norte (atual João Pessoa), deixou o Palácio da Redenção com um ano, quando o pai saiu do governo e se mudou com a família para a Fazenda Acauã, em Souza, a 432 quilômetros da capital. Após o assassinato do pai, em 1933, Ariano foi morar na cidade de Taperoá, antiga Vila Batalhão, que tem enorme importância no Movimento Armorial por ser o local onde se passa a história da peça O Auto da Compadecida, de 1955. “Foi ali que meu pai assistiu, ainda muito jovem, à primeira peça teatral apresentada dentro de um circo. Ou seja, já havia a junção entre o popular e o erudito que deu origem à peça de meu pai, publicada quinze anos antes de ele lançar o Manifesto Armorial e que considero a base do Movimento”, explica Manuel.
Tríptico, de 1972, por Gilvan Samico, um dos expoentes do Armorial
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Com o livro Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, lançado em 1971, o Movimento Armorial realmente ganhou corpo por ter tido grande repercussão no meio literário. E, com isso, popularizou seus artistas – entre eles, o artista plástico e ceramista Francisco Brennand; o mestre do cordel e da xilogravura J. Borges; o gravurista Gilvan Samico; o artista e músico Antonio Nóbrega; o compositor Antônio Madureira; e o escritor Raimundo Carrero.
“Samico, além de ter uma obra muito sofisticada, é o artista mais Armorial do grupo. Zélia, esposa de Ariano, com suas tapeçarias feitas com artesãs locais, também tem enorme importância dentro do movimento”, afirma Mattar. Segundo ela, hoje, a influência do estilo Armorial pode ser vista em artistas, como os diretores Guel Arraes e Luiz Fernando Carvalho.
Manuel Suassuna também lembra de como o Armorial continua a ecoar pelo Brasil. Em São Paulo, está presente no trabalho do Antonio Nóbrega. No Rio, na dança do Grupo Gestual, e no Paraná, no grupo musical Rosa Armorial. No design, Rodrigo Ambrósio, Rodrigo Almeida, Zanini de Zanine e Sérgio J. Matos formaram recentemente o coletivo Armorial Design Group, com peças e apresentações em feiras e eventos para disseminar a cultura por meio de seus trabalhos. “Eu mesmo, que me afastei artisticamente do Movimento, não posso dizer que não me deixei influenciar pelo Armorial. Tive acesso à vasta biblioteca de papai e às conversas com intelectuais como Brennand, Samico e outros amigos dele. Então, a poética está no meu sangue”, confessa Manuel.
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Figurinos do filme “A Compadecida” (1969), dirigido por George Jonas
Onça Caetana: uma das formas assumidas pela morte no universo ficcional de Ariano. O nome “Caetana” é usado pelo sertanejo para se referir à morte, vendo-a na forma de uma jovem mulher (“a moça Caetana”). A peça acima foi produzida pelos bonequeiros Agnaldo Pinho, Carla Grossi, Lia Moreira e Pedro Rolim para a mostra dos 50 anos do Armorial
Nascimento: As Estrelas, 2003, de Gilvan Samico
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Máscaras do Cavalo Marinho, folguedo folclórico tradicional da zona da mata setentrional de Pernambuco, Alagoas e agreste da Paraíba
MOSTRA VAI ATÉ 2023
Cinco décadas após o evento que lançou a Arte Armorial, o estilo ganhou uma mostra –Movimento Armorial 50 Anos –, com curadoria de Denise Mattar e coordenação geral de Regina Rosa de Godoy, idealizadora da exposição que começou em 2021 (por causa da pandemia) e irá até janeiro de 2023. Entre as 144 peças, estão a Onça Caetana, desenhada por Ariano Suassuna e que faz parte da mitologia do folclore nordestino; figurinos de Francisco Brennand para o filme A Compadecida (1969), de George Jonas, baseado na peça O Auto da Compadecida, de Suassuna; trabalhos de Fernando Lopes da Paz, Miguel dos Santos e Gilvan Samico. Também estão a tapeçaria e as cerâmicas feitas por Zélia Suassuna, esposa do dramaturgo. Há ainda palestras e apresentações musicais, entre elas do Quinteto da Paraíba, um dos mais renomados grupos de música de câmara do Brasil, que transita entre música de concerto e a música popular, resgatando a Arte Armorial.
“Ariano teve essa visão de valorizar a criatividade brasileira, pegar o que havia de melhor dela e colocar no patamar do erudito”, lembra Regina Godoy. “E esse diálogo do popular com o erudito é que dá um sabor especial”.
© DIVULGAÇÃO
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“A Morte a Moça Caetana", iluminogravura de Ariano Suassuna
PICASSO DO SERTÃO
Foi a partir das histórias contadas na hora de dormir pelo pai, o agricultor Joaquim Francisco Borges, que José Francisco Borges, o mestre J. Borges, enveredou pelo mundo da sonora e ritmada poesia de cordel. Nascido no Sítio Piroca, zona rural de Bezerros, município do Agreste Central, no dia 20 de dezembro de 1935, ele seguiu a mesma sina dos meninos vindos de famílias pobres, trocando as brincadeiras da infância pelo trabalho.
Aos oito anos já estava na lavoura e, aos dez, vendia na feira da cidade colheres de pau que ele mesmo produzia. Só frequentou a escola por dez meses, aos 12 anos, e na adolescência, agarrou todas as chances dadas pela vida: foi passador de jogo de bicho, pedreiro, carpinteiro,
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O xilogravurista J. Borges, que já foi comparado ao artista andaluz, mantém sua arte viva por meio de oficinas para novas gerações
&DESIGN :: MESTRE ARTESÃO
POR ZIZI CARDERARI
pintor de parede, oleiro, trabalhador da palha da cana-de-açúcar e vendedor. Encontrou seu caminho aos 21 anos e, por meio dele, se tornou artista consagrado, com obra premiada, e admirado em todo o mundo.
A secular literatura de cordel – que revela histórias reais e fantásticas em textos poéticos, impressos em folhetos – foi o contraponto na vida do pequeno José Francisco e de seus irmãos, nos anos 1940. “O cordel nasceu em mim quando criança. Eu me divertia muito ouvindo o meu pai lendo os folhetos que ele trazia da feira. A imaginação da gente corria solta”, recorda. Com a grande seca de 1952, que trouxe graves repercussões sociais e econômicas para o Nordeste, J. Borges, então com 17 anos, migrou com a família para a Zona da Mata, vivendo durante 15 anos entre os municípios de Escada e Ribeirão. Foi nessa época, mais precisamente em 1956, que ele, depois de passar por muitas ocupações profissionais, decidiu ser vendedor de cordéis (folheteiro), divulgando a literatura popular pelas feiras e praças públicas do interior de Pernambuco e dos estados vizinhos.
Em 1964, estimulado pelo poeta e amigo Olegário Fernandes, escreveu o primeiro folheto, O Encontro de Dois Vaqueiros no Sertão de Petrolina, com capa ilustrada pelo mestre cordelista e xilogravurista Dila (José Soares da Silva), patrimônio vivo da cultura pernambucana.
O folheto, que narra a disputa dos vaqueiros pelo prêmio (a filha do coronel), teve cinco mil exemplares vendidos em apenas dois meses. O desempenho estimulou o artista a produzir, no ano seguinte, o segundo cordel, O Verdadeiro Aviso de Frei Damião sobre os Castigos Que Vêm , no qual estreou como xilogravurista. Com pouco dinheiro disponível, J. Borges criou o desenho da capa, que trazia a fachada da Igreja Matriz de Bezerros, numa tentativa de reproduzir a Igreja de Juazeiro (CE), onde Frei Damião pregava.
Sua xilogravura ganhou projeção a partir dos anos 1970, quando os artistas plásticos José Maria de Souza (1935-1985) e Ivan Marquetti (1941-2004), em visita a Bezerros – para onde voltou em 1967 –, encomendaram as primeiras gravuras em grande formato, tendo como temática o folclore nordestino. Por intermédio deles, o trabalho elaborado com maestria no interior do Estado foi apresentado a Ariano Suassuna (19272014). “Soube que, assim que ele viu as gravuras, perguntou quem era a fera que fazia aquilo. Logo depois, fui chamado à Universidade Federal de Pernambuco para conhecê-lo e dar entrevistas a meio mundo de jornalistas que ele tinha convocado. Depois dali eu não parei mais”, relembra J. Borges, detalhando o começo da longa amizade que manteve com o escritor, que o considerava “o maior gravador popular do Brasil”.
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Figuras encantadas, seres alados, animais, anjos, demônios, cangaceiros, vaqueiros, cantadores fazem parte da obra de J. Borges
Em madeiras como a imburana e o louro-canela, usadas no entalhe cuidadoso das matrizes que dão origem às gravuras, mestre J. Borges plasma, reinventa e dá novos significados ao imaginário nordestino. Um universo em plena expansão e densamente povoado por figuras encantadas, seres alados, animais, anjos, demônios, o povo e sua resiliência, cangaceiros, vaqueiros, cantadores, entre outros tantos heróis populares talhados sob o sol do Sertão.
Ao longo de mais de 50 anos de fecunda trajetória artística, J. Borges produziu 314 folhetos de cordel (hoje só faz por encomenda) e um número incalculável de xilogravuras já expostas em diversos museus – como o Louvre (França), o de Arte Popular do Novo México (Santa Fé, EUA), o de Arte Moderna de Nova York (EUA) e a Biblioteca do Congresso Norte-americano (Washington, EUA), considerada a maior do mundo e que tem em seu acervo uma coleção do pernambucano. Desde os anos 1990, divide seu tempo entre Bezerros e o resto do mundo. Já ministrou oficinas e apresentou a cultura popular nordestina em mais de vinte países, entre eles
Estados Unidos, México, Cuba, França, Alemanha, Suíça, Portugal, Itália, Espanha, Holanda, Bélgica, Argentina e Venezuela.
Comparado a Pablo Picasso em reportagem do jornal New York Times (2006), que também o considerou “gênio da cultura popular”, J. Borges já emprestou seus seres encantados para o mundo literário, ilustrando livros de importantes nomes, como o uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015), em As Palavras Andantes; José Saramago (1922-2010), em O Lagarto; Miguel de Cervantes, em edição comemorativa aos 400 anos D. Quixote (2005); e do livro Contos Maravilhosos Infantis e Domésticos (2012, Editora Cosac Naify), que marcou o bicentenário da primeira edição dos contos dos Irmãos Grimm. O pernambucano foi, ainda, o único artista brasileiro convidado a participar do Calendário da Organização das Nações Unidas (2002), apresentando a gravura “A vida na floresta”.
A relevância do seu trabalho foi reconhecida por meio de importantes prêmios a ele conferidos, como a Medalha de Honra ao Mérito da Fundação Joaquim Nabuco (1990); o Prêmio de Gravura Manuel Mendive, na 5ª Bienal Internacional Salvador Valero (Venezuela, 1995); a Comenda Ordem do Mérito Cultural (1999, Ministério da Cultura); o Prêmio Arte na Escola Cidadã (2000, Instituto Arte na Escola e Unesco); entre outros.
Artista popular autodidata, poeta, xilogravador, patrimônio vivo de Pernambuco e pai de 18 filhos, J. Borges tem especial atenção às oficinas que realiza para jovens e crianças em seu Memorial, que também abriga o Museu da Xilogravura, ateliê e loja. “Faço com muita alegria esses encontros. As crianças vão aprendendo a ler e tomam gosto pelo cordel. E isso é muito importante porque levarão essa riqueza adiante”, assegura o mestre.
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“A arte pra mim é minha vida... A arte para mim é tudo.”
©FOTOS
SALVADOR CORDARO ©ILUSTRAÇÃO MURILO OREFICE
CORDEL E A CORDA DO TEMPO
Surgido na Europa graças à prensa de Gutenberg, esse estilo literário, hoje respeitado pelos acadêmicos, só chegou ao Brasil no século 19
POR ELIANA CASTRO
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&DESIGN :: LITERATURA
Muito antes de o Brasil ser descoberto, a literatura de cordel já existia. Mundus Novus, espécie de folheto de cordel, datado entre 15031504 e escrito em latim, foi a publicação que noticiou as descobertas de novas terras. Com a prensa recém-lançada por Johannes Gutenberg, no século 16, esse gênero literário passou a ser produzido e divulgado na Europa. “Na época, a produção e o comércio de folhetos alcançaram enorme proporção nos países europeus. Na Itália, havia vendedores ambulantes que, à maneira de mascates, comercializavam os chamados libretti muriccioli, estampados nas prensas napolitanas”, afirma o professor Francisco Claudio Alves Marques, especialista no tema.
Ele conta que as primeiras narrativas, gravadas em papel ordinário e a baixo preço, em prosa e verso, consistiam em adaptações de livros de autores consagrados da literatura italiana, como Ariosto e Torquato Tasso. Até o final do século 19, era por meio desses libretti que os camponeses italianos se informavam sobre histórias de acontecidos, vida dos santos, briganti (bandidos) e romances de cavalaria adaptados em rimas.
Na França, por volta dos séculos 16 e 17, predominaram os livrinhos de colportage (que significa mascate), impressos no mesmo formato dos folhetos italianos. No mesmo período, os pliegos sueltos ganharam as ruas e praças da Espanha, com inúmeras reedições da História do Imperador Carlos Magno.
“Mas foi em Portugal que ganhou o nome de literatura de cordel, dando continuidade aos temas e arquétipos reproduzidos por toda a Península Ibérica. Entre eles, as histórias da sábia Donzela Teodora e a da esposa casta injustamente caluniada de adultério, a Imperatriz Porcina”, explica Marques. O professor ressalta que esse tipo de literatura teve enorme importância cultural e de inclusão social, porque no período os livros eram raríssimos e escritos em latim, fazendo com que grande parcela da população europeia não tivesse acesso ao conteúdo escrito.
Francisco Claudio Alvez
Marques é coordenador do Grupo de Pesquisa Cultura Popular e Tradição Oral: Vertentes, que busca investigar elementos da cultura popular europeia e africana em diferentes manifestações populares brasileiras: na literatura oral/popular, na Literatura de Cordel, nos modos de dizer, na religiosidade popular, nas festas tradicionais, no teatro, na música etc.
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Aqui, no Brasil, a literatura de cordel só aportou no século 19. No Rio de Janeiro, havia várias lojas que vendiam cordéis produzidos em Portugal. No entanto, com o surgimento dos jornais, eles desapareceram da então capital federal do Brasil ao mesmo tempo em que ganharam leitores no Nordeste, em especial no interior, onde as comunidades não tinham acesso a livros nem a jornais. “A partir de 1896, as narrativas de cordel portuguesas começaram a ser adaptadas pelos poetas pioneiros do cordel impresso no Nordeste. Entre eles, José Galdino da Silva Duda, Leandro Gomes de Barros, João Martins de Ataíde e Francisco das Chagas Batista”, diz Marques. “Histórias do romanceiro ibérico, em prosa ou verso, passaram a ser divulgadas entre o sertão e as capitais nordestinas no formato de folhetos impressos em sextilhas e décimas, sendo que a prosa não prosperou entre os nordestinos”. Entre os sucessos, estão os folhetos João da Cruz, Imperatriz Porcina, Donzela Teodora, Pedro Malasartes, Pedro Cem, Carlos Magno, Roberto do Diabo.
Segundo o professor, a partir do final do século 19, muitas dessas histórias já eram do conhecimento dos cantadores do sertão, que as ajustavam aos acordes de suas violas e rabecas. Eles também cantavam novas narrativas em saraus à luz de lampião. Quando a rádio e a tevê, entre as décadas de 1950 e 1960, se expandiram para todo o País, chegando ao Nordeste, o cordel parecia ameaçado.
“Ocorre que o cordel se reinventou, adotando temas mais universais e de interesse da população brasileira”, analisa Marques. Arievaldo e Klévisson Viana continuaram a tradição de narrar em verso. Mulheres como Dalinha Catunda e Josenir Lacerda também entraram nesse universo antes dominado pelos homens. Jarid Arraes, com os 15 cordéis da coleção Heroínas Negras Brasileiras, e Bráulio Bessa, cearense que canta o sertão, segundo o professor, “com a grandeza de Patativa do Assaré”, são alguns destaques da geração atual.
“Hoje, muitos poetas têm formação acadêmica e continuam com a produção de folhetos a todo vapor. O cordel ganhou o Brasil e despertou o interesse da academia, que passou a encará-lo como uma vertente fértil da literatura brasileira”.
©ILUSTRAÇÕES MURILO OREFICE
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Esse tipo de literatura teve enorme importância cultural e de inclusão social, porque no período os livros eram raríssimos e escritos em latim, fazendo com que grande parcela da população europeia não tivesse acesso ao conteúdo escrito.
NUNCA DIGA NORDESTINO
QUE DEUS LHE DEU UM DESTINO
CAUSADOR DO PADECER
NUNCA DIGA QUE É O PECADO
QUE LHE DEIXA FRACASSADO
SEM CONDIÇÕES DE VIVER
NÃO GUARDE NO PENSAMENTO
QUE ESTAMOS NO SOFRIMENTO É PAGANDO O QUE DEVEMOS.
A PROVIDÊNCIA DIVINA
NÃO NOS DEU A TRISTE SINA
DE SOFRER O QUE SOFREMOS
DEUS O AUTOR DA CRIAÇÃO
NOS DOTOU COM A RAZÃO
BEM LIVRES DE PRECONCEITOS
MAS OS INGRATOS DA TERRA
COM OPRESSÃO E COM GUERRA
NEGAM OS NOSSOS DIREITOS.
POEMA “NORDESTINO SIM, NORDESTINADO NÃO”, PATATIVA DO ASSARÉ
TIRADENTES OURO DE MINAS
A cidade histórica, chamada de berço da Inconfidência Mineira, também é reconhecida por seus saberes e fazeres manuais, tornando-se palco de importantes festivais, como a Semana Criativa de Tiradentes, que atrai arquitetos e designers de todo o País
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&DESIGN :: TIRADENTES POR SIMONE QUINTAS
TTiradentes é uma pepita de ouro na região conhecida como Campo das Vertentes, em Minas Gerais. Não mais pelo metal precioso em si – este não se vê por lá há alguns séculos –, mas por outras preciosidades, como os seus moradores. São pessoas com encantadoras habilidades manuais que fazem maravilhas no artesanato e na cozinha. Parece que para ser mineiro é preciso nascer sabendo fazer com as mãos. Soma-se a isso o jeito de receber, um jeito de quem gosta de ver a casa cheia, um jeito de quem está sempre preparado para receber mais um
O conjunto arquitetônico da cidade é outro bem dos mais preciosos. Remonta do início do século 18 e se encontra preservado, graças ao seu tombamento pelo então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), em 1938. Andar por suas ruas é uma aula sobre arquitetura colonial e entendimento de expressões que usamos até hoje, como “sem eira, nem beira”, “pé-rapado” entre tantas outras, que estão sendo catalogadas pelo guia turístico Fabricio Rodrigues, um dos mais requisitados da cidade por justamente fazer o trajeto nada previsível por seus becos. Becos que hoje esbanjam charme e beleza, mas que, no passado, serviam como a única via possível para os escravos, que não podiam circular nas ruas centrais.
Tiradentes, considerada em 2019 a cidade mais bonita do Brasil pela revista estadunidense Departures, tem lá suas questões. Por trás de tamanha beleza do casario, da hospitalidade das pessoas e da exuberante natureza, que abraça a cidade com a Serra de São José – importante refúgio de libélulas do Brasil –, esconde um passado sombrio de exploração e escravidão. Um passado que é relembrado pelo capitão do Congado, o mestre Prego, que volta e meia passa em cortejo pelo centro histórico, batendo tambor e cantando os lamentos do povo preto.
O conjunto arquitetônico em estilo colonial mantém-se preservado graças ao atento cuidado do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional)
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Centro histórico que nos faz voltar no tempo. Que no início da semana, quando não há turistas, se cala às sete da noite. E só se ouvem o sino da igreja e o perambular de cachorros e gatos. Tiradentes é um portal, que nos faz voltar no tempo. Um condado onde nenhum mal ou problema parece nos alcançar.
Terra onde se cozinha no fogão a lenha, onde se faz doce no tacho, onde se produz o queijo, a cachaça, a marcenaria da casa.
É nesse cenário encantador que surgiu, em 2017, a Semana Criativa de Tiradentes. Um misto de projeto social e festival com o propósito de divulgar e valorizar saberes de tradição. O festival, que atrai arquitetos, designers de interiores, designers de produto, paisagistas e artesãos de todo o País, é realizado sempre no mês de outubro, mas a mágica acontece meses antes
A artesã Lilia Fonseca mantém a tradição de colocar cruzes nas fachadas das casas de Tiradentes. Ao lado, Raimundo Nonato seguiu os passos do pai e produz ferragens coloniais, chaves, cravos e outros objetos em ferro forjado
com o projeto que reúne a cada ano um grupo de designers e de artesãos de Tiradentes e região. Essas pessoas se encontram em vários processos imersivos com o objetivo de trocar informações. Se os designers vêm com suas experiências acadêmica e de mercado, os artesãos esbanjam conhecimento profundo em saberes antigos, passados de geração para geração, que não se encontram mais nas grandes cidades. Esculpir em pedra-sabão, entalhar a madeira, aplicar técnicas de ourivesaria na lata... Uma verdadeira união do contemporâneo com a tradição. Desses encontros surgem produtos trabalhados a muitas mãos, que são expostos durante o festival. Este, uma maratona de conteúdo com palestras, batepapos, oficinas, exposições, instalações, visitas guiadas, mercadinho e tudo o que possa imaginar para proporcionar um verdadeiro mergulho nas nossas raízes, na nossa cultura e história.
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Expedito Jonas de Jesus vem de uma família de escultores em pedra-sabão. Desde criança, aprendeu a esculpir relógios de sol, que eram vendidos aos turistas na escadaria da Igreja Matriz de Santo Antônio
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© FOTOS JOÃO BERTHOLINI
Jango é um mestre santeiro, um dos mais importantes de Tiradentes. Apesar da habilidade em esculpir anjos e santos em madeira, não gosta de ser chamado de santeiro e diz: “quem sou eu para fazer um santo?”. Infelizmente, sua produção tem ficado cada vez mais rara e algumas de suas obras podem ser encontradas na Loja da Semana
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ARTESANATO BRASILEIRO
MANTÉM
A FLORESTA DE PÉ
Para além da maior biodiversidade do mundo, a Amazônia ostenta grande potencial cultural e econômico ligado à produção artesanal das comunidades tradicionais que vivem no território. São peças de mobiliário e objetos de decoração feitos com matéria-prima genuinamente brasileira, como fibras naturais, folhas e frutos da floresta. Tudo extraído de áreas de preservação e manejo sustentável.
POR JÔ MASSON
Esse mix de produtos inclui acessórios, fruteiras e luminárias com formas contemporâneas, criados por comunidades ribeirinhas em parceria com renomados designers; vasos com a história tapajoara entalhada no barro; cestos tramados com fibras tingidas naturalmente; redes produzidas em tear manual com os incríveis grafismos das artesãs Huni Kuin, entre outros.
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Rede Artesol fomenta a valorização econômica da produção das comunidades para que tenham independência financeira e, assim, possam manter sua autenticidade e preservar o meio ambiente
&DESIGN :: ARTESOL
“A Amazônia é mais que um tapete verde, os imensos rios e sua natureza exuberante. Para além da sua diversidade natural, a região tem saberes ancestrais e patrimônio cultural riquíssimo, que precisa ser conhecido e valorizado para ser preservado”, afirma Jô Masson, diretora executiva da Artesol, organização fundada há 23 anos pela antropóloga Ruth Cardoso para valorizar o artesanato brasileiro.
Além dos elementos naturais, os diversos objetos criados em meio à floresta tropical têm inspirações colhidas do entorno, o calor humano de quem as executou, o olhar atento dos artesãos para as formas da paisagem, o modo de vida que se entrelaça ao fazer artesanal e a potência criativa que nasce a partir da fusão do artesanato com o design.
Para mapear essa produção diversa e cheia de potencialidades, a Artesol atua na capacitação dos artesãos tradicionais e no mapeamento, na documentação, no fomento à comercialização e na divulgação do artesanato tradicional brasileiro para todo o mundo.
O MAIOR MAPEAMENTO DE ARTESÃOS
Uma das principais iniciativas da ONG, o projeto Rede Nacional do Artesanato Cultural Brasileiro (Rede Artesol) envolve artesãos de todo o território nacional. A cada ano, a organização pesquisa e documenta o trabalho desenvolvido pelos artesãos brasileiros e produz conteúdo qualificado sobre eles.
Para isso, os consultores do projeto viajam para comunidades em pequenas cidades, reservas, aldeias indígenas e vilas de rendeiras em muitos cantos do País, fazem a documentação do trabalho e divulgam um perfil de cada grupo com história, imagens, produtos e contatos atualizados em uma moderna plataforma digital traduzida em 57 línguas. É o maior mapeamento do artesanato brasileiro.
Ao todo, cerca de 5 mil artesãos já integram essa rede. São artesãos individuais ou organizados em associações e cooperativas, artistas populares e mestres, além de lojistas e programas de fomento. “A ideia é revelar o valor cultural dos produtos artesanais e criar uma conexão entre os consumidores e os artesãos, fortalecendo a atividade artesanal”, afirma Jô Masson.
Embora o projeto tenha abrangência nacional, o impacto em regiões mais distantes dos grandes centros comerciais – como a Amazônia – é muito significativo, porque, de forma geral, os grupos localizados em comunidades mais isoladas têm pouco acesso ao mercado. Por isso, integrar a Rede Artesol, vender seus produtos por meio das ferramentas on-line ou mesmo participar dos eventos promovidos pela organização faz grande diferença em seus negócios.
Essa valorização econômica que acontece a partir da relevância cultural da produção artesanal contribui para que as comunidades sejam independentes financeiramente, preservem o ambiente do entorno e exaltem a essência de sua identidade
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O artesanato tem se tornado um caminho para fortalecer o empreendedorismo e o desenvolvimento sustentável na Amazônia Legal. “Por isso, o território foi tema do festival que realizamos no Centro Cultural São Paulo - CCSP”, explica Sonia Quintella, presidente da Artesol.
O evento contou com uma exposição dedicada a objetos tradicionais e conceituais criados em parceria entre designers e artesãos da Amazônia, um seminário para debater o patrimônio cultural do território, uma série de oficinas e uma feira, onde os artesãos puderam comercializar diretamente seus produtos com o público.
“A gente fica muito feliz de vir pra São Paulo, porque aqui o artista e a sua obra são valorizados”, afirma Jefferson Paiva, ceramista de Santarém (PA). “Além disso, foi muito interessante produzir as peças em parceria com um designer, porque ele levou o conhecimento técnico dele para se somar ao nosso conhecimento tradicional”, conta o artesão sobre a experiência de criar peças exclusivas para a mostra em parceria com o designer Antônio Castro. “Isso é muito bom, porque a cerâmica tapajônica, embora seja histórica, não é uma coisa do passado, não. A gente continua produzindo e a gente fica muito feliz de poder inovar, de criar coisas novas”, complementa o artesão, que também é estudante de arqueologia.
“A ideia é revelar o valor cultural dos produtos artesanais e criar uma conexão entre os consumidores e os artesãos, fortalecendo a atividade artesanal.”
UM FESTIVAL INTEIRO DEDICADO À AMAZÔNIA
© FOTOS THEO GRAHL
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DESIGN COM CALMA
À frente da Yankatu, Maria
Fernanda Paes de Barros realiza imersões com artesãos indígenas ou de populações ribeirinhas a fim de abraçar saberes tradicionais em suas coleções de móveis e objetos
POR MARIANNE WENZEL
&DESIGN :: YANKATU 124
Na abertura do evento Amazonie Immersive, realizado no final de setembro em Genebra, a designer Maria Fernanda Paes de Barros traçou um paralelo entre 1922, ocasião da Semana e Arte Moderna e do centenário da Independência, e 2022. “Há 100 anos, os artistas, filhos da elite, estudaram fora e retornaram com a visão da vanguarda europeia. Hoje, no bicentenário, devemos adotar o movimento inverso. Olhar para nossos povos, culturas, tradições e criar algo que faça sentido nesse momento histórico”, analisa. Desde 2014, é isso que ela propõe com a Yankatu, como conta a seguir.
&DESIGN: Por que escolheu uma palavra indígena para batizar sua marca?
MARIA FERNANDA: Não quis lançar o meu nome porque sabia que não faria nada sozinha. Estava às voltas com isso quando deparei com um texto dos irmãos Villas-Bôas [sertanistas que, nos anos 1940, entraram em contato com os indígenas do oeste brasileiro] que cita uma crença dos camaiurá, segundo a qual nascemos com três almas: a do pai, a da mãe, e a essência, yankatu. &D: A Yankatu quer resgatar no artesão, no consumidor e no mercado a importância e o valor das tradições artesanais. Na prática, como isso acontece?
move."
MF: Aos poucos. No começo, foi complicada a aceitação externa. Sempre fiz meus lançamentos na MADE [feira anual de arte e design que ocorre desde 2013] e notei essa evolução. No início, as pessoas pediam informações sobre as peças e, quando falava que era artesanato, eu as via recuar. Mas segui batendo nessa tecla e senti que, em 2019, com a coleção Alma Raiz, o conceito floresceu. Hoje, esses artigos fazem parte da decoração do [hotel de luxo paulistano] Rosewood.
"O mundo precisa de equilíbrio e harmonia, e é isso que me
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© FOTOS DIVULGAÇÃO
&D: Então já houve uma mudança de mindset?
MF: Sim. Mas percebo que ainda falta reconhecer o artesão por trás do produto. A Semana Criativa de Tiradentes vem contribuindo para isso, e recentemente participei de um projeto no México com a mesma intenção. É por isso que cada artigo da Yankatu acompanha a “alma”, um caderno que conta sua história – como foi a imersão com a comunidade, a inspiração – e contém páginas em branco para registrar a continuidade dessa narrativa.
&D: Como você mapeia os artesãos com quem trabalha?
MF: Nunca determino para onde vou. Sou convidada por eventos ou instituições, como a Semana Criativa de Tiradentes, o museu A CASA, o Instituto Artesol, e aceito. Procuro não estudar nada antes, gosto de aprender com a comunidade, e o encontro flui. Primeiro, tem muita conversa. Só na segunda ida é que construímos algo juntos. Não interfiro no processo, apenas sugiro, em uma espécie de direção criativa, com muito tato e respeito. O conhecimento brota dos próprios artesãos e os itens nascem.
&D: Qual deve ser o desenho da parceira para que ela seja justa?
MF: Compro a produção da comunidade à vista, e é preciso ter sensibilidade para falar de preços. Pois os artesãos se acostumaram às pechinchas dos compradores, e não pode ser assim. Depois, no ateliê, incorporo a safra nas séries limitadas. E a participação de todos é reconhecida na “alma” de cada móvel ou objeto.
&D: Que questões permeiam a sua produção atual?
MF: Pelo nome da marca, muita gente entende que só trabalho com povos originários, mas a premissa por trás de tudo é a de união. Gostaria de envolver outras comunidades, como quilombolas, catadores, e seguir construindo um olhar cada vez mais plural, preservando a identidade de cada grupo. O mundo precisa de equilíbrio e harmonia, e é isso que me move.
As coleções de móveis e objetos da Yankatu são inspiradas pelos trabalhos de artesãos indígenas ou de populações ribeirinhas
CONECTIVIDADE &DESIGN :: ARTE NO QUILOMBO
Professora Agda Carvalho investiga como o design e o artesanato raiz da comunidade quilombola, em São Bento do Sapucaí, pode estimular outras possibilidades criativas e fomentar a economia, em um processo colaborativo e dinâmico
ENTRE O PASSADO E O PRESENTE 127
RReduto de artesãos, o bairro do Quilombo, em São Bento do Sapucaí, interior de São Paulo, na divisa com Minas Gerais, é um dos mais antigos da cidade. Fruto de uma história de fé, luta e união, os moradores exaltam sua cultura e tradições.
Hoje, o bairro possui a Associação Arte no Quilombo, e artistas como o escultor Ditinho Joana, que despertaram o interesse de Agda Carvalho, professora do Instituto Mauá de Tecnologia (IMT), artista visual e pesquisadora de Arte e Design. No ano passado, com apoio do IMT,
Feita
ela deu início ao projeto “Entre Derivas: design e conectividade” para especular possibilidades em comunidades criativas.
O projeto do IMT ampliou-se em 2022, junto a efetivação de uma parceria com o Governo do Estado de São Paulo por meio do ProAc, e da Masiero Arte e Cultura. A docente e seus alunos estão ainda mais envolvidos. “Agora, além da observação do design e do próprio território, estamos desenvolvendo ações que articulem design e artesanato, resgatando o retorno às raízes quilombolas, e a relação ancestral com a natureza”, explica Carvalho.
Agda conta que a região de influência da cultura quilombola apresenta perspectivas para a pesquisa fundamentada na sustentabilidade e no biomimetismo, pois observa a natureza como modelo e mentora para soluções que possam ser aplicadas em diferentes áreas.
Feita pela artesã Juliane Aparecida Santos Assis e pelos alunos Julia Onaga, Luiz Gabriel de Oliveira Sarno e Larissa Mie Yoshikawa.
pela artesã Renilda Aparecida da Rosa Ferreira e pelos alunos João Ricardo Carini Leal, Gisele Canever, Lucas Zampiere, Emanuelle Ramos.
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Feita pelas artesãs
Andrea dos Santos, Jéssica Janaína Santos Franco e pelos alunos
Eduardo Louzada
Bicudo
Explica também que as atividades têm como objetivo oferecer capacitações em marketing digital para cerca de 21 artesãs e estabelecer um processo criativo entre elas e os alunos de design do IMT no desenvolvimento de luminárias. “A ideia é entrelaçar o design com o artesanato para criar objetos e estimular a criação colaborativa”, diz Carvalho, e é aqui que o especular sobre o futuro abre mundos e busca outras formas de pensar e de imaginar possibilidades.
Agda Carvalho. Artista Visual. Pós-Doutora em Humanidades Digitais no Media Lab – UFG. Pós-Doutora em Artes - UNESP. Doutora em Ciências da Comunicação - ECA/USP. Mestre em Artes Visuais - Instituto de Artes da UNESP. Docente e pesquisadora no Instituto Mauá de Tecnologia onde lidera o Grupo de Pesquisa LabDesign. Participa do Grupo de Pesquisa GIIP da UNESP.
e Victor Scaramal Monteiro de Souza.
Feita pela artesã Benedita Rosana da Silva Alves e pelos alunos Eimi Takatori Okuda, Gregory Ribeiro dos Santos e Thiago Marçon Pirozelli.
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Feita pelas artesãs Maria Helena Pereira de Oliveira, Benedita Rosana da Silva Jesus, Nilza Aparecida Rennó e pelas alunas Lívia Fernandes Garrido, Isabelle Carvalho Ferreira da Silva, Clara Alissa dos Santos e Silva e Marcela Amaro.
© FOTOS ISABELLE CARVALHO FERREIRA DA SILVA
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&CULTURA
ARTE DE CRIANÇA p.140
DESPERDÍCIOS p.148
"Hypnopedia", é uma das atrações do Instituto Ling.
DIÁLOGOS
SEM
p.132
+
Brenda Valansi Gilberto Salvador Yves Saint Laurent Gui Calil Aconteceu na DW Desenho original ARTÍSTICOS
DIÁLOGOS ARTÍSTICOS M
Em sua sétima edição, o projeto Caixa de Pandora, de Camila Yunes Guarita, consolida a ponte que ela vislumbra entre passado e presente, por meio de intervenções de artistas contemporâneos no acervo e no casarão histórico de seus avós, os colecionadores Ivani e Jorge Yunes
POR EDUARDO SIMÕES
Mundo afora, casas-museus são destinos incontornáveis de viajantes que buscam conhecer como viviam e trabalhavam artistas plásticos e escritores, por exemplo. No Brasil, salvo honrosas exceções, são raros os espaços do gênero, seja por falta de interesse dos herdeiros, seja por ausência de incentivos do poder público. Uma lacuna semelhante ocorre no grand monde da arte no País: diferentemente de seus pares na Europa ou nos EUA, colecionadores brasileiros não têm o costume de abrir seus acervos ao público.
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&DESIGN :: CAIXA DE PANDORA
Em 2018, a arquiteta Camila Yunes Guarita, também uma art advisor com formação e experiência profissional dentro e fora do Brasil, quis mudar esse cenário. Fundou a Kura, escritório de consultoria de arte, e começou a abrir as portas do casarão de seus avós, Ivani e Jorge Yunes, casal de colecionadores cujo acervo abriga, estima-se, dezenas de milhares de itens. Mais do que o desejo de fazer da morada no Jardim Europa uma casa-museu, ela queria um espaço vivo e pulsante, que fizesse uma ponte entre o passado – obras de arte e objetos, do século 2 a.C. até o fim dos anos 1970, de todos os continentes – e o presente, com a arte contemporânea brasileira. Nascia o projeto Caixa de Pandora, que revelaria ao público o melhor daqueles dois mundos mencionados no início deste texto: o aspecto histórico da casa, erguida nos anos 1930, e uma valiosa coleção.
Hoje já em sua sétima edição, a iniciativa tomou emprestado seu nome do mito grego homônimo da Antiguidade, um artefacto que, se aberto, libertaria todos os males do mundo. Longe disso, a Caixa de Pandora de Camila acolhe e traz à luz beleza e conhecimento, e também instiga. Todo o projeto é financiado exclusivamente pela Kura – como a casa ainda mantém a função de residência privada, Camila não pôde recorrer a leis de incentivo. A estreia foi com o carioca Barrão, numa parceria com a galeria Fortes D’Aloia & Gabriel.
O ponto de partida, igual para todos os convidados, é o desafio de que explorem o acervo e realizem intervenções na casa, concebendo um diálogo artístico com trabalhos inéditos.
“Sabíamos que era necessário criar uma maneira para que o acervo de meus avós respirasse, fosse oxigenado, numa iniciativa que vai muito além da arte. A Caixa de Pandora nasceu, então, com essa vontade de trazer para o público uma conversa entre passado, presente e futuro [a coleção sempre adquire um trabalho novo dos artistas convidados]. Pegamos uma peça do Renascimento, por exemplo, e chamamos um artista contemporâneo para fazer uma leitura dessa obra. Ou ainda uma interferência em cima de um dos núcleos da coleção”, conta Camila.
Obras de Tadáskía, artista trans negra, ocupam a entrada da casa: “Vestida Negro I”, 2022 acrílica e carvão sobre tecido; e “Fora do Aquário II”, 2022 acrílica e carvão sobre tecido
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A casa-museu no Jardim Europa é um espaço que faz a ponte entre o mundo das artes do passado com o contemporâneo
A mudança seguinte foi a seleção dos convidados. Como lembra Margherita De Natale, head de Comunicação e Projetos na Kura, a Caixa de Pandora teve início com artistas consagrados no panorama brasileiro. “Mas a gente concluiu que gostaria de trabalhar com artistas mais jovens, nomes emergentes, trazer novos olhares para o projeto”, afirma. “Para chegar até eles, há uma busca ativa, mas boa parte desses artistas novos é indicação que a equipe recebe, de colecionadores, de nossa própria rede de contatos, ou até por meio de pesquisa em redes sociais.”
Dessa nova orientação, veio o convite para Marcela Cantuária, na sexta edição (2021), por exemplo. A artista do Rio ficou conhecida por ter assinado uma série de nove pinturas e um oratório, que definiram o conceito visual do álbum Portas, lançado no ano passado pela cantora Marisa Monte. Na edição atual da Caixa de Pandora, que ficou em cartaz até 16/12, participam Rebecca Sharp e Tadáskía, em parceria com a Sé Galeria e com patrocínio do Iguatemi. Camila destaca que a intervenção de Tadáskía lançou nova luz sobre o acervo, dentro do espírito proposto desde o começo pela iniciativa.
Todos os artistas convidados para o Caixa de Pandora são remunerados pela Kura e têm o direito de indicar um curador com quem vão trabalhar em sua quase residência artística na casa. Barrão, por exemplo, apontou Agnaldo Farias, também crítico de arte e professor da FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo). A lista de curadores que já atuaram no projeto elenca também Germano Dushá e Jacopo Crivelli Visconti, entre outros.
Ainda em 2018, aconteceu a participação da paulistana Ana Dias Batista, com apoio da Galeria Marilia Razuk. No ano seguinte, vieram Vik Muniz e Paulo Nimer Pjota, respectivamente com a assistência da Galeria Nara Roesler e da Mendes Wood DM. Já a partir do ano seguinte, o projeto começou a passar por ajustes. Em vez de duas edições anuais, algo que pesava nas contas da Kura, passaram a realizar apenas uma, e 2020 foi a vez da gaúcha Regina Silveira, numa parceria com a Galeria Luciana Brito e, pela primeira vez, um patrocínio, da marca francesa Bvlgari.
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“Ela é uma artista negra, trans, do Rio. Logo que você entra na casa, tem uma sala que originalmente se chama Império, ligada obviamente a esse período da História do Brasil. O que ela fez? Tirou retratos de membros da família real portuguesa e colocou, em seu lugar, duas pinturas que estavam na reserva técnica, ambas de autoria desconhecida. Uma delas retrata uma virgem negra, com um menino Jesus no colo. A outra traz uma senhora também negra, de idade mais avançada. São trabalhos altamente políticos aos olhos de hoje. Então conseguimos, assim, contar um pouco da história do País, a partir de novas perspectivas”, avalia Camila.
Planos para o futuro? Por ora, a equipe da Kura, que reúne 17 pessoas de formação multidisciplinar, prepara a oitava edição, prevista para acontecer durante a 35ª Bienal de São Paulo, em 2023. Serão 18 meses de organização e o nome ou os nomes dos convidados e curador são mantidos em segredo. No mais, garante Camila, “expandir não é um plano”, salvo o desejo de futura parceria com alguma instituição no exterior.
O desafio para todos artistas convidados é explorar o acervo da casa e criar um diálogo artístico com trabalhos inéditos
“A Caixa de Pandora já é o projeto de nosso coração, ela mexe com a vida da casa, com a vida dos artistas participantes. Espero que a gente possa continuar fazendo as edições, ampliar as interferências no espaço, estimular os colecionadores a abrirem também seus acervos, mostrar cada vez mais jovens talentos.” Resta torcer, de fato, para que o projeto inspire iniciativas similares Brasil afora.
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© FOTOS DIVULGAÇÃO
VALANSI BRENDA
Para Brenda (foto abaixo à direita), o papel da ArtRio é formar um público interessado em arte que apoie jovens talentos de diversos estilos e classes sociais
O escritório da ArtRio, sobrado que data de cerca de 1940 no Jardim Botânico, é daqueles ambientes que exalam personalidade. Os poucos móveis que ocupam o espaço são antiguidades –sofá e poltronas modernistas, incluindo cadeiras de Joaquim Tenreiro – e, nas paredes, se destaca um mix de obras de artistas jovens, revelações, ao lado de nomes consagrados, como Jota, Gernave de Paula, Panmela Castro.
A impressão é de uma galeria de arte, elegante e minimalista, com uma única e comprida mesa de trabalho ao fundo, onde se reúne a equipe de 12 pessoas, focada em colocar de pé as duas feiras de arte que compõem a programação
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A 12ª edição da ArtRio, evento realizado na Marina da Glória reunindo 60 galerias de arte e 15 instituições do segmento, revela a determinação, o empreendedorismo e a gestão inteligente de sua criadora
POR SIMONE RAITZIKE
da empresa: a ArtRio, cuja 12ª edição se realizou entre os dias 14 e 18 de setembro, na Marina da Glória; e a ArtSampa, que aconteceu pela primeira vez no ano passado, em março. No comando dessa turma afinada está Brenda Valansi, empresária e mãe da Helena, 13, que desde cedo já trabalha ali como estagiária. “Acho importante ela logo perceber quanto ser independente faz todo sentido na vida”, conta. ssa determinação que Brenda ensina para a filha é algo que ela pratica em cada etapa de sua trajetória profissional. Há 12 anos, deixou para trás a carreira de artista plástica e decidiu se aventurar a montar uma feira de arte no Rio – nos moldes de eventos internacionais que frequentava.
“Eu era aluna do Parque Lage, onde estudava pintura. Essa formação me ajudou a entender esse universo não apenas como empresária, mas sentindo na pele as dificuldades para um artista conquistar seu espaço. Entrei de cabeça, mas penei até encontrar o formato certo e perceber como era fundamental crescer com segurança. Hoje conseguimos chegar a um tamanho viável, com participantes de todo o Brasil e apoio de muitas instituições”, revela, contabilizando as 60 galerias que participaram da última edição. “Temos um papel importante de formar um público interessado e apoiar jovens talentos de todos os segmentos e classes sociais. A ArtRio é muito mais do que um evento comercial: buscamos fomentar uma
postura inclusiva e democrática”, explica.
A sede do escritório da ArtRio, em 2010, foi montada em seu antigo ateliê – e permanece ali até hoje, com poucas mudanças na configuração original “O que revisamos, durante esses anos, foi o esquema de trabalho. Na pandemia, percebemos que conseguíamos funcionar remotamente com eficiência. Somos uma equipe muito afinada e, como a maioria é mulher e mãe, uma entende a outra”, revela.
Envolvida atualmente com o projeto de sua casa – o imóvel que acaba de comprar no bairro do Humaitá, no Rio –, Brenda convidou o arquiteto Pedro Évora para pilotar a reforma.
Foi ele quem assinou, na última ArtRio, o Pavilhão MAR, de 3.000 m2, montado com uma estrutura móvel e itinerante, junto ao espelho d’água da Baía de Guanabara na Marina da Glória.
Parceiro de longa data, Pedro está preparando, no lar da empresária, um espaço para expor a sua coleção de mais de 120 obras.
“A cada edição da feira, acabo me encantando por um novo artista, como Rosana Paulino e Priscila Rooxo. Dessa vez, adquiri uma obra de Allan Weber, que estava na Galeria Galatea. Depois de tantos anos, acho que desenvolvi o olhar de investidora e acredito piamente que o mercado de arte tem passado, presente e um futuro dos mais promissores”, arremata.
©FOTOS TULIO THOMÉ/BRUNO RYFER
SALVE A INUTILIDADE DA ARTE
Para Gilberto Salvador, a falta de compromisso com a utilidade dá liberdade para criar obras guiadas pela sua emoção e espaço para rupturas
Quando tinha uns 45 anos, o artista plástico Gilberto Salvador foi jantar na casa de um colecionador que havia comprado uma obra sua e a pendurou entre Portinaris, Di Cavalcantis e outros artistas renomados da sua coleção. Lá pelas tantas, o anfitrião, muito divertido, comentou sobre o preço do quadro de Salvador e perguntou quanto tempo o artista havia levado para pintá-lo. Salvador respondeu: “45 anos”.
Gilberto começou na arte desde sempre. Quando morava no bairro paulistano da Mooca, ele pintava sobre retalhos de madeira que ganhava de um marceneiro local. Em 1965, aos 18 anos, realizou a primeira individual na galeria do Teatro de Arena, a convite do ator e diretor Gianfrancesco Guarnieri, com texto assinado por Jorge Mautner. “Minha formação artística foi fundamentalmente autodidata. Fui fazer arquitetura bem depois de ter iniciado minha carreira, com bienal e exposições individuais já realizadas”, conta. “Mas, assim como meu interesse pela ecologia e outras áreas de conhecimento, a arquitetura e o urbanismo foram naturalmente incluídos no meu modo de pensar a vida e a minha arte. Acredito que o desenvolvimento artístico é necessariamente interdisciplinar e tem a ver com diferentes momentos da vida”.
138 &DESIGN :: GILBERTO SALVADOR
O que me inspira é a vida. Tudo o que vivi e vivo entra no meu trabalho de alguma maneira.
Isso é evidente quando se observa as obras do artista ao longo dos anos. No início dos anos 1960, ele manifesta suas preocupações sociais e agrega elementos da pop art em seus trabalhos. Em 1969, já quando entra no curso de arquitetura e urbanismo, o formalismo das obras pode ser visto no uso de chapas de aço inoxidável e computadores para criar imagens. A partir de 1976, animais em movimento e paisagens são temas recorrentes. Em seguida, a iconografia indígena. Até que Salvador se torna um dos artistas brasileiros pioneiros na reflexão de questões ambientais.
“O que me inspira é a vida. Tudo o que vivi e vivo entra no meu trabalho de alguma maneira”, explica o artista. Em sua mais recente mostra, Abraço da Água — Swimming Pool, ele apresentou quatro gravuras dedicadas ao tema água e nove pinturas de uma série que evoca os ladrilhos das piscinas em que nadou – quando pequeno, Salvador teve poliomielite e desde sempre pratica natação.
Artista metódico, todo dia ele entra no ateliê para trabalhar, mas seu processo de criação é livre. “Nunca tenho um objetivo direto, raramente planejo o que vou criar. Acredito que a arte não tem compromisso com a utilidade. Então, me guio pelos sentimentos do momento. Deixo que o processo evolua. Depois, faço a seleção do que achei melhor e vejo se faz sentido reunir em uma série de trabalhos”, conta.
Atualmente, o artista está trabalhando em uma que mistura formas geométricas e orgânicas bidimensionais, e agrega colagem e outros elementos. “Estou com pensamento sobre materialidade e finitude do tempo. Não sei onde vai dar. Mas meu processo é assim mesmo: deixo fluir. Alguns param e depois retomo. Outros, consigo concluir. A arte é assim: por ter uma inutilidade intrínseca, tem a liberdade como seu melhor paradigma e, portanto, tem o compromisso com a ruptura sem ser funcional”.
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© FOTOS HENRIQUE LUZ
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Acima e anterior obras da coleção "Abraço da Água"
CRIANÇA ARTE DE
O desenho infantil é uma forma de se expressar que vem antes da escrita e deve ser estimulada sempre
Acima, gato, leão, girafa e urso “olhando para o buraco de uma árvore”, no tapete de Isabela Travassos.
À direita, desenho de Cecília Guimarães
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&DESIGN :: ARTE DE CRIANÇA
Q“Quando a criança desenha, escreve o mundo à sua maneira”, explica Ana Angélica Albano Moreira, no seu livro O Espaço do Desenho: a educação do educado. Ela diz que a criança cria em torno de si um espaço de jogo e desenha para brincar.
E é essencial que os adultos incentivem esse hábito nos pequenos, porque essa é a forma de expressão que eles têm antes da escrita. “Quanto mais eles forem estimulados a explorar materiais e espaço, melhor”, diz Heloísa Almeida Oliveira, professora assistente de Educação Artística no Ensino Fundamental.
Em dezembro do ano passado, durante a Semana Criativa de Tiradentes, a Tapetah fez uma ação que reuniu crianças para criarem seus desenhos com diferentes materiais. Após essa etapa, 21 imagens foram selecionadas para serem transformadas em tapetes. Cada “artista” ganhou o seu e foi convidado para participar da exposição realizada
Rabiscos desordenados ou ordenados –típicos de crianças de 2 e 3 anos, respectivamente –, monstros, arco-íris, corações e árvores foram as estampas que mais apareceram. Mas os bichos se mostraram a grande preferência entre os “artistas”. Cecília Guimarães, 11 anos, misturou foto com desenho. Primeiro ela clicou os pets. “A Semana, a cachorra, e a Frajola, a gata, estavam brincando, e eu fiz a foto. Depois, desenhei no papel”, explica. Isabela Travassos, 7 anos, diz que adora bichos. “Desenhei um gato, um leão, uma girafa e um urso. Pensei que eles estavam olhando para o buraco de uma árvore”, conta. O formato redondo do tapete surpreendeu os pais, que dizem que o espaço sugeriria mais um tapete quadrado ou retangular. “Achei a iniciativa muito bacana, porque ela percebeu que pode ter alguma coisa feita por ela para decorar o quarto e que fica legal”, observa a mãe de Isa, Patrícia Travassos. O melhor é o orgulho de ter uma peça exclusiva ao ver a reação dos amigos. “Quando eles viram meu tapete perguntaram: ‘foi você que fez?’”, lembra.
Abaixo o vestido desenhado por Ana Júlia Malta Nascimento, 10, para sua festa de aniversário de 15 anos
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"É essencial os adultos incentivarem as crianças a soltarem a imaginação por meio do desenho para que tenham mais uma forma de expressão"
© FOTO BRUNO LEMOS © FOTO DIVULGAÇÃO © FOTOS JOCA LUTZ
ONDE A ARTE E A
ARQUITETURA
SE ENCONTRAM
A Bienal do Mercosul ocupa centros culturais e espaços icônicos, ativando o interesse pela paisagem urbana e as construções da capital de 250 anos
ELEONE PRESTES
© FOTO JEFFERSON BERNARDES/DIVULGAÇÃO
POR
&DESIGN :: DESTINO PORTO ALEGRE
O volume da Fundação Iberê Camargo confunde-se com a orla do Guaíba, visto de longe
Mapa
Olho o mapa da cidade Como quem examinasse
A anatomia de um corpo… (É nem que fosse o meu corpo!)
Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei…
Há tanta esquina esquisita, Tanta nuança de paredes, Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei…) Quando eu for, um dia desses, Poeira ou folha levada
No vento da madrugada, Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar, Suave mistério amoroso, Cidade de meu andar (Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso…
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Se o espírito do tempo (zeitgeist, em alemão) pudesse ser mapeado em Porto Alegre, conteria em seu DNA manifestações culturais de diversas áreas da produção criativa, reforçadas a cada dois anos por uma superexposição que ocupa a cidade.
Nesse sequenciamento, a Bienal do Mercosul impera com um mérito que transcende a função primeira de expor obras de arte. A produção de 100 artistas de 23 países nesta 13ª edição – sobre Trauma, Sonho e Fuga, com a curadoria geral de Marcello Dantas – atrai também o olhar para a interação dessas criações com a arquitetura eclética e contemporânea de 11 espaços culturais e urbanos, até 20 de novembro. Quase todos estão implantados na orla do Guaíba ou a dois quarteirões do lago – chamado de rio pelos gaúchos.
Quando o assunto é arquitetura e arte em Porto Alegre, o museu projetado por um dos arquitetos mais importantes do mundo, o português Álvaro Siza, ganhador do prêmio máximo na área, o Pritzker, impõe-se como referência. Em plena Era do Metaverso, com sua proposta de um universo desmaterializado, a volumetria da FIC mereceu um Leão de Ouro de Veneza antes mesmo de ganhar materialidade no espaço real. A sua chegada em terreno que era, nas palavras de Siza, “uma ferida na paisagem” (porque tratava-se de uma pedreira), valorizou a orla do Guaíba. Como diz o arquiteto, um museu pode revelar uma cidade ao mundo.
Experiência irresistível é mirar a paisagem do Centro Histórico emoldurada pelas janelas de formatos orgânicos que acompanham as rampas voltadas para a fachada da FIC. O espaço, detalhadamente projetado por Siza, autor até do design do mobiliário e das luminárias, contém os mesmos materiais de seus projetos pelo mundo
Instituto Ling, projeto de Isay Weinfeld, é o centro cultural mais recente construído em Porto Alegre
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©FOTOS CARLOS STEIN - VIVA FOTO
©CELSO CHITTOLINA, DIVULGAÇÃO
“O trauma é o maior combustível da arte de todos os tempos, e os sonhos são um estratagema para a fuga.”
Concorrendo com o teto deslumbrante de vitrais no grande hall, o Farol Santander oferece nessa Bienal a obra fulgurante de Rafael Lozano-Hemmer, Pulse Topology
A instalação de faixas de telas – daquelas usadas para isolar construções em obras – do artista Túlio Pinto, ancoradas nos edifícios da Avenida Borges de Medeiros, elege uma amostragem das vertentes da arquitetura na época da verticalização da capital, incluindo o icônico Viaduto Otávio Rocha
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©FOTOS CARLOS STEIN-VIVAFOTO/DIVULGAÇÃO
©THIELE ELISSA, DIVULGAÇÃO
No Centro Histórico, território do ecletismo – arquitetura que surgiu após o neoclássico, principalmente com a vinda de arquitetos estrangeiros para Porto Alegre –, a arte urbana impõe delicadamente, durante a Bienal, um ritmo mais lento para a contemplação do espaço vertical. O percurso da Bienal passa pelo Mercado Público e o Paço Municipal, e se estende até o Cais do Porto, hoje cheio de vida no setor em que foi criado o Cais Embarcadero – espécie de Puerto Madero de Buenos Aires em Porto Alegre –, com operações de gastronomia voltadas para o Guaíba, oferecendo o pôr do sol que é um dos cartões-postais da cidade
Projeto do arquiteto e cineasta paulista Isay Weinfeld, o Instituto Ling foi inaugurado seis anos mais tarde que a FIC, em uma esquina do bairro Três Figueiras. Contornado por um jardim, fica distante do Guaíba. Sua marca, tanto para quem o admira da rua quanto para quem entra no prédio, após subir uma rampa externa, é a fachada principal de vidro e brises verticais. Essas estruturas filtram a luminosidade e formam desenhos de luz e sombra no interior, em uma cadência constante, como fotogramas de um filme cinematográfico.
Estruturado em contêineres, o restaurante 20barra9 tem um pouco da identidade portuária mesclada ao calor de um churrasco em família à beira do Guaíba
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©FOTO 20BARRA9/DIVULGAÇÃO
O arquiteto alemão Theodor Wiederspahn, conhecido como Theo, projetou a maior parte do conjunto arquitetônico eclético ligado à Praça da Alfândega, como o Museu de Arte do Rio Grande do Sul, onde em novembro ocorre a Feira do Livro
Perto dali, está o Mercado Público, com seu restaurante mais longevo, o Gambrinus, de 1889, um dos mais antigos do Brasil. À frente do Paço Municipal e não muito distante do Palácio Piratini, frequentado por artistas, intelectuais e autoridades, devem ter sido tomadas decisões políticas à frente de uma salada de bacalhau com batatas.
Traçando uma linha reta entre as operações culturais do perímetro em prédios históricos, o Farol Santander oferece atrativos efêmeros, como espetáculos de cinema, música, arte e dança, e também exposições permanentes, a exemplo da história da cidade e do edifício. Na vizinhança, o importante Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS) e a Casa de Cultura Mario Quintana – onde o poeta viveu –impõem presença como arquitetura e também como centros culturais integrantes da Bienal do Mercosul. Ambas as construções têm projeto arquitetônico assinado pelo alemão Theodor Wiederspahn, cuja obra determinante, principalmente para o Centro, está em exposição na Pinacoteca Aldo Locatelli até 20 de janeiro de 2023. Entre as operações na sequência dos armazéns do Cais do Porto, o restaurante 20barra9 (20 de setembro, Revolução Farroupilha) corresponde à tradição da gastronomia gaúcha, mas com ingredientes contemporâneos. A receita começou a partir da vontade de dois irmãos fazerem algo relacionado à paixão por carne e fogo, e foi concretizada pelo projeto arquitetônico de Francisco Pinto.
©FOTO THIELE ELISSA/DIVULGAÇÃO
Obra de Vivian Cacuri, entre o grande número de trabalhos importantes da Bienal do Mercosul no MARGS
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©FOTO RAUL HOLTZ/DIVULGAÇÃO
DESPERDÍCIOS SEM
Regina Tchelly é uma paraibana de Serraria, cidade com pouco mais de seis mil habitantes, localizada a 89 km da capital da Paraíba. Há 21 anos, essa mulher com cara de felicidade foi morar no Rio de Janeiro e se espantou com o que presenciou. “Fiquei doidinha quando vi o que era desperdiçado nas feiras livres do Rio. Foi quando pensei que precisava fazer alguma coisa”, conta a moça, que trabalhava como doméstica, mas sonhava em se tornar uma grande cozinheira. “O que queria não era pouca coisa, não. Queria modificar a nossa relação com os alimentos”, garante.
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Favela Orgânica, iniciativa de Regina Tchelly, ajuda a repensar a forma de aproveitar ingredientes para criar uma comida saudável e colorida em que se aproveita "tudo".
O desejo se tornou realidade há 11 anos, quando Tchelly fundou a Favela Orgânica, iniciativa com origens nas comunidades Babilônia e Morro do Chapéu. A ideia é promover a gastronomia alternativa, com consumo consciente dos ingredientes, desenvolvimento de hortas em pequenos espaços e compostagem caseira, criando um ciclo em que o desperdício de alimentos é mínimo.
O know-how vem da escola particular, no caso, a avó e a mãe, além de outras mulheres que vivem no interior da Paraíba. “Lá, a gente aproveita o máximo dos alimentos e só devolve para terra o que é da terra”, diz. Na prática, isso significa usar tudo que for possível para cozinhar e, o que não for, adubar o solo gerando mais ingredientes para alimentação. “Essa é uma cozinha com alquimia, amor, carinho”, define.
Regina conta que as receitas são criadas na hora, de acordo com o que tem na geladeira e na horta. “Da casca de banana ao sabugo de milho, tudo pode ser aproveitado. Era muito comum que a gente se reunisse na cozinha da minha avó para trocar saberes e comidas. Uma vinha com a macaxeira, outra com a farinha de mandioca, a outra com o coco... Assim a gente botava aquela mesa linda com tantos alimentos para compartilhar”, lembra.
E é exatamente esse o trabalho da Favela Orgânica e da sua fundadora! O espaço oferece oficinas e palestras não apenas no Rio, mas em outros estados do Brasil e países, entre eles, França, Itália e Uruguai.
“A proposta é multiplicar a comida com o que se tem, criando pratos bem saborosos, coloridos e nutritivos, e também modificar o paladar e a relação das pessoas com os alimentos”, explica.
PARA EXPERIMENTAR
Salpicão de melancia
Ingredientes
2 xícaras (chá) de casca de melancia higienizada, ralada no ralo fino e espremida
1 pimentão amarelo médio, higienizado, cortado em cubos pequenos
1 xícara (chá) de uvas higienizadas, sem caroço, cortadas em 4 partes
1 manga um pouco verde, higienizada, cortada em cubos pequenos, e a casca em tiras finas e pequenas
Suco de 2 limões-taiti
1/2 xícara (chá) de azeite
1 xícara (chá) de uva-passa
Folhas higienizadas de 4 ramos de manjericão
1/3 de um molho de salsinha higienizada e picada com os talos
Sal a gosto
Modo de preparo
Misture tudo em uma tigela grande, leve à geladeira e sirva gelado.
O know-how vem da Favela Orgânica vem dos aprendizados que Regina teve com a mãe, a avó e outras mulheres do interior da Paraíba: os ingredientes são
100% aproveitados
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© FOTOS JOCA LUTZ
YVES SAINT LAURENT BRILHA
Entre a homenagem ao gênio criativo do mestre e o processo de criação de coleções, o museu parisiense mergulha literalmente na art de vivre de la haute couture e no fascinante universo do couturier
POR MÁRCIA LENCIONI
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MUSEU YSL
A celebração do 60º aniversário da primeira coleção de Yves Saint Laurent com o próprio nome e o 5º aniversário da abertura do Museu Yves Saint Laurent, em Paris, estão acontecendo este ano. Para comemorar a dupla efeméride, o Museu lançou a mostra GOLD, os ouros de Yves Saint Laurent, em cartaz até 14 de maio, que explora os toques de ouro que permearam a obra do couturier.
Inaugurado quinze anos após o fechamento da maison de alta-costura, em 3 de outubro de 2017, o Museu ocupa a área de 450 metros quadrados no emblemático endereço 5 avenue Marceau, no 16º arrondissement, na histórica casa de moda onde Saint Laurent imaginou e desenhou suas criações por quase 30 anos, de 1974 a 2002.
O evento é uma ótima oportunidade para conhecer o espaço inaugurado três semanas após a morte de Pierre Bergé (em setembro de 2017), sócio e companheiro por 50 anos do estilista, que passou seus últimos anos encontrando um lar para todas as obras de arte de Saint Laurent.
O projeto foi assinado pelo designer de interiores Jacques Grange em parceria com a cenógrafa Nathalie Crinière, que, após colaborarem em vários projetos da Fundação, redesenharam os espaços expositivos na atmosfera original da casa de alta-costura. Foi o primeiro espaço dessa magnitude dedicado à obra de um dos maiores criadores do século 20 a ser inaugurado na capital da moda.
O acervo do museu é composto pelos mais importantes modelos das coleções de Yves Saint Laurent. Quarenta anos da Maison são apresentados por meio de 55 mil croquis de moda, 100 mil desenhos e amostras de tecidos, 130 mil fotografias e 20 mil peças de roupas, acessórios e objetos diversos com suporte audiovisual que auxiliam o visitante a compreender o universo criativo do lendário estilista. Todo esse acervo é o resultado de um trabalho pioneiro e sistemático decidido por Saint Laurent em 1964.
Por meio de um breve tour, nos deparamos com a primeira galeria que concentra a inspiração masculina que caracteriza muitos de seus designs femininos em toda a sua glória. Estão lá o 'Le Smoking', o trench coat de couro e a jaqueta saariana, peças que refletem a apropriação dos códigos da vestimenta masculina para o guarda-roupa feminino, um ponto decisivo na história da moda. "Se Chanel libertou as mulheres, Saint Laurent deu-lhes o poder com roupas de homens”, afirmou Bergé.
A segunda galeria ressalta o mix de referências culturais – asiáticas, africanas e russas –, que trouxe exotismo ao ethos essencialmente parisiense da YSL. O terceiro espaço mostra a paixão de Saint Laurent pelas artes plásticas e a consequente influência da arte em seu trabalho, com peças inspiradas por Matisse, Van Gogh e Mondrian. E ainda há uma galeria dedicada à primeira coleção da grife de 1962. No caminho entre as galerias, paredes com croquis e fotos – incluindo a série de retratos pop art de Andy Warhol e o box gigante com as belas joias da maison –, uma sala dedicada a um curta de 15 minutos, que narra a história do encontro entre Saint Laurent e Bergé, e outra com vídeos que dissecam o passo a passo das coleções: os desenhos, a confecção, os acessórios e a apresentação para a imprensa.
No entanto, o elemento essencial do museu é o estúdio de Saint Laurent detalhadamente recriado em uma sala com janelas amplas e grande espelho ao fundo, o que permitia ao estilista visualizar as roupas nas modelos (não usava manequins) em todos os ângulos durante as provas. Há tecidos, botões, muitos desenhos e prateleiras repletas de livros. A mesa está como ele deixou em 2008, ano da sua morte, com bibelôs, amuletos, anotações e os icônicos óculos. Mais que um museu monográfico, ele testemunha a história e a tradição da prática da alta-costura no século 20.
Nesse espaço, Yves exerceu sua criatividade e savoirfaire por quase 30 anos.
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© DROITS RÉSERVÉS/ENSEMBLES HABILLÉS AW 1965/YVES SAINT LAURENTSOPHIE CARRE/NICOLAS
MATHEUS
&DESIGN :: GUI CALIL
DIVINA ARTE
O artista Gui Calil revela como descobriu seu caminho artístico
Ele passou a infância e a adolescência mergulhado em resmas de papéis, tintas e caracteres tipográficos, já que os pais tinham uma gráfica, e Gui, na época, costumava cobrir as paredes de seu quarto com imagens e desenhos –particularmente, se recorda do desenho de uma torneira aberta, com uma gota de sangue. Aos 19 anos, sentiu a necessidade de desenvolver sua espiritualidade. Contou com a ajuda de um guru que transmitiu ao jovem agoniado o caminho da meditação e da religião, que deram um norte para sua vida.
Em 1989, Gui começou a trabalhar com design e tipologia num computador 286 – um dos primeiros PCs lançados – e com um scanner bem primitivo. Sempre gostou de revistas e, para ele que morava em Ribeirão Preto (SP), era um momento de alegria quando ia à banca e comprava as revistas Vogue, Wallpaper, entre tantas outras publicações que o encantavam pela beleza das imagens e dos conteúdos que o faziam sonhar – não havia museus na sua cidade, e ele não pensava muito no conceito de arte, mas desenhava e diagramava por instinto. O espaço da tela em branco do computador era onde podia manifestar suas inquietações mais profundas e transformá-las em arte.
Também pintava os quadros por necessidade de conectar sua alma com o divino – considerava isso um hobby – e presenteava os amigos com suas criações. Mas o acaso fez com que um amigo o contatasse para uma exposição na capital paulista. Para montar a mostra, Gui pediu
© FOTOS DIVULGAÇÃO
emprestado seis obras que havia dado de presente. Mas tudo deu errado! O moço que havia feito o convite para a exposição roubou suas obras e sumiu. Gui conta que apenas lamentou o episódio e tomou isso como um sinal para esquecer o assunto. A arte parecia um capítulo encerrado em sua vida.
Tudo iria mudar com um evento dramático quando seu segundo filho, António, nasceu. Logo, a alegria de ser pai foi abalada com a notícia de que o menino tinha um problema cardíaco e precisava ser operado com urgência. Foi um golpe duríssimo para Gui que, desconsolado, foi almoçar na casa de um amigo, que propôs um desafio para espantar a dor da espera da cirurgia e do processo de cura do filho: pintar.
Gui topou e mergulhou na pintura, produzindo uma série de 64 obras. Mandou de presente, para Miami, uma pintura a uma amiga que acompanhava seu drama e lhe dava muito apoio. Ela amou o quadro e sugeriu um espaço para Gui expor o seu trabalho. Foi quando ele percebeu que ser artista e designer estava salvando sua vida, e abraçou com muita fé esse caminho.
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POR: BRONIE LOZNEANU
Em 2015, ele voltou para Miami para expor em uma loja de design. Era um momento em que a cidade passava por uma enorme transformação cultural com a criação da Art Basel Miami.
Hoje, a vida de Gui mudou muito: seu filho é um garoto esportista e leva uma vida normal, e o artista participou da última Bienal de Veneza com uma coletiva de sua galeria de Nova York, a Saphira & Ventura, com o tema “Horizonte das virtudes”. Na sequência, seu destino foi Nova York, para acertar a representação com mais uma galeria de arte, a Agora.
Atualmente ele está com a série “Os sonhos e a aspereza humana”, na SCOPE Art Show Miami Beach, importante feira de arte voltada para novas mídias e jovens talentos, que ficou em cartaz até dia 4 de dezembro. Nela, Gui desenvolveu trabalhos em acrílico sobre folhas de lixa, mostrando o contraste entre os sonhos e a aspereza das relações humanas.
Modesto, o artista acredita que “recebe” suas pinturas de um lugar maior. “Sou apenas
um veículo e cabe a mim transmitir essa emoção nas minhas telas, espalhar uma onda de amor e harmonia”, diz. Seus quadros são uma explosão de cores e de formas muito particulares, que geram empatia e cumplicidade entre o artista e seu público, criando um momento de comunhão mágico. Em "Todo tipo de amor", feito de acrílico sobre papel craft com fibra de algodão, a definição de arte condiz com seu processo de criação. “Imagine um ponto de cor e luz bem no centro de sua vida. Por meio de diferentes formas, nossos corações se elevam em cores, sons e toques”, explica.
As obras de Gui fazem parte de um abstracionismo lúdico. Elas relacionam formas e cores de maneira potente, às vezes pela grande dimensão dos formatos, outras pelo gestual. As camadas de tinta transportam o espectador a um espaço de paz, com uma caligrafia própria e em comunhão com um sentimento maior que se relaciona, talvez, com o clássico sopro das musas.
Os trabalhos de Gui Calil geram um momento de comunhao mágico entre o artista e seu publico
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ACONTECEU NA DW
Instalações, exposições, palestras e lançamentos de produtos marcaram a Semana de Design em São Paulo
“A ideia dos personagens do Bicho no Quintal surgiu quando estava em São Bento do Sapucaí. Os personagens foram rabiscados no meu caderninho de anotações, que eu levo para todos os lugares. Voltei para São Paulo e comecei a desenhar uma série de dez telas para uma futura exposição. Quando fui convidado pela Lab88 para criar o
cubo gigante, percebi que os personagens se encaixavam na proposta. E um desses desenhos foi pintado no lado de fora do cubo. Um cineminha antigo inspirado no Georges Méliès foi montado dentro do cubo. Tudo muito mambembe, com bonecos articulados, mas casou tudo e gostei muito do resultado”, Edu Cardoso.
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&DESIGN :: ACONTECEU NA DW
“Cada vez que revisitamos o cobogó, conseguimos dar outra dimensão, outro olhar, numa tradição que é nata do Brasil, dos portugueses, dos africanos ou mesmo dos índios, usar o barro. Apesar de ele ser com linhas retas, ele consegue compor também uma curva, como um elemento da arquitetura. Vejo muita poesia no cobogó", Fernando Campana.
“Sou escultor e tenho orgulho dessa peça abstrata não apenas pelas linhas e curvas, mas pelo movimento constante, passando do assento para o encosto e vice-vesa, com possibilidades infinitas de uso. Foi um grande desafio porque é a primeira peça que criei com a Natuzzi com a intenção de trazer uma loucura específica de criatividade para a marca, e conseguimos”, Marcantonio foi escolhido Design do Ano 2022, da BOOMSPDESIGN.
© FOTOS DIVULGAÇÃO
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“Pedi para a dona Maria da Conceição, bordadeira de Tiradentes, fazer uma intervenção na cadeira e ficar livre para criar. Sugeri um jardim na Oscarina e o resultado foi surpreendente. Acredito que conseguimos conquistar a delicadeza e a poesia que buscávamos para a peça”, Linda Martins.
"Raja, do indonésio 'rei', é uma poltrona em fibra natural com dimensões grandiosas, sobreposição de curvas assimétricas, trançada manualmente por artesãos orientais para a Saccaro. A permeabilidade e transparência dessas camadas permitem estabelecer um diálogo constante com a paisagem ao seu redor, ao mesmo tempo em que as linhas verticais criam um efeito gráfico que eleva e envolve quem a ocupa", Vinicius Siega.
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© FOTO RUI TEIXEIRA
“Acreditamos que o segredo da transformação está no fazer. O casamento da minha obra e a cadeira de design upcycled por Kauê Fuoco tem em comum a ideia de que por muitas vezes o ‘pensar’ nos condiciona a específicos caminhos ou limites, e o fazer, o organiza, ao atuar, conseguimos criar algo inovador e único”, Fernanda Romão.
“Foi uma alegria receber o primeiro Prêmio Salão Design com o banco Tangará. É uma peça compacta, multifuncional, criada para facilitar o entrar e sair de casa. O banco foi pensado no início da pandemia para atender às novas necessidades e hábitos que foram incorporados à nossa rotina”, Camila Fix.
© FOTO CARLOS BEN
“A curadoria para essa mostra de fotografias de arquitetura passou por inúmeros critérios, boa parte deles inspirados no francês Cartier-Bresson, autor daquilo que se chama ‘instante decisivo’, quando você prende a respiração em busca da imagem perfeita - daí a metáfora entre o diafragma da lente e o músculo do corpo humano, de mesmo nome. Quando escolhi este trabalho do fotógrafo paulista Marcelo Magnani, um dos 45 profissionais integrantes da exposição, fomos bem literais. Na obra, o modelo nu, em pose introspectiva, contorcida, desconfortável, mal conseguia respirar. Suas veias e músculos saltavam à derme por conta do esforço do movimento, em analogia com os escombros do cenário, uma ruína brutalista abandonada, que revela a verdade dos materiais, como pilares e vigas corroídas, ferragens e vergalhões à mostra, as ações do tempo sobre a locação decadente que já foi algo um dia e se prepara para ser um outro lugar”, Alex Colontonio.
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© FOTO MARCELO MAGNANI
O DESIGN SE CURVA À NATUREZA
POR EDSON VALENTE
Se no princípio era o Verbo, não demorou para surgir a comunicação das espirais, estilizadas nas duplas hélices das estruturas do DNA. Seu desenho tem sido inspiração para muitas produções artísticas, tecnológicas e arquitetônicas ao longo dos tempos, assim como outros elementos da natureza que replicamos sob o viés autoral, ainda que o ineditismo da obra seja relativo.
Afinal, no que se refere ao design, é bem aplicável a máxima de que o que se cria é bem menos abundante do que se copia. E, aqui, quando falamos em copiar, não objetivamos a detração da originalidade auferida a tantas e tantas invenções humanas. Não sugerimos plágio ou questionamos o valor estético do que se produz pela nossa inteligência.
O ponto é que, em se tratando de concepção morfológica, o cosmo é imbatível. Consta que essa era, inclusive, a crença de um dos artistas mais conhecidos da humanidade: Leonardo da Vinci. Para ele, considerada a inclinação cientificista do movimento que integrou, o Renascimento, os conhecimentos das ciências também eram necessários para a formação de um bom artista, uma vez que a ele cabia representar a natureza.
A Antiguidade Clássica e seus ideais de beleza foram prepostos de da Vinci, mas muitas pinceladas contemporâneas a ele se propuseram a romper com a harmonia, ou a criar outros tipos de distribuição de formas no espaço. Tomemos “Guernica”, o famoso retrato de Pablo Picasso dos horrores da guerra. Distorção, desespero, deformação, angústia, sofrimento. Ali, tais elementos advêm das disputas pelo poder entre os de nossa espécie e sugerem a instauração do caos, apesar de a pintura em questão apresentar uma composição simétrica. Porém, as origens do desalinho ultrapassam a humanidade e estão no próprio universo, que também é configurado pelo caótico. Nada mais natural.
O inesperado, o conflituoso e o destrutivo alimentam os cenários de transformação convulsiva
que nos encurralam nessa era cunhada de Quarta Revolução Industrial. A estética dos grafismos acompanha a desordem vertiginosa, expandindo técnicas e campos de intervenção. A virtualidade passou a ser uma realidade de mimetismo camaleônico, enquanto a natureza em si, esgotável e esgotada, se contorce pela sobrevivência, clamando pela continuidade.
No âmbito de contorções contínuas, as espirais de DNA seguem em processo de multiplicação nesse contexto extremo. Epicentro criativo de artistas como a parisiense Louise Bourgeois, que, por sinal, ressignificava a anatomia do corpo humano em suas obras, a gênese helicoidal ganha novos contornos em projetos como o do Spiral, edifício comercial inaugurado em Nova York neste ano de 2022.
As fachadas do prédio são rodeadas por sequências de terraços verdes que conduzem nossa percepção para o infinito, determinando, para além da funcionalidade, o caráter representativo de nossa busca por novos meios de conexão e perpetuação. O Spiral foi concebido como um traço de desafogo ambiental cravado na megalópole.
A capacidade simbólica referendou o design como um dos marcadores de nossos ciclos de desenvolvimento. É compreensível, então, que ele, como recurso fundamental de linguagem e comunicação, estabeleça novos elos a favor de sua maior fonte inspiradora nestes tempos em que ela se encontra tão ameaçada.
Edson Valente é jornalista e escritor. Publicou os livros Refluxos (Ateliê Editorial, 2010), Pow-Emas e Outros Jabs Líricos (Editora Patuá, 2014), Raiz Forte (Editora Patuá, 2015), Lençóis em Leitos Coletivos (Editora Patuá, 2018) e A Mãe Escondida (Editora Patuá, 2020).
160 &DESIGN :: ARTIGO
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© ILUSTRAÇÃO LUCAS FERNANDES
Ilustração da Sede da IBM em nanquim sobre papel vegetal de Vallandro Keating Com linguagem arquitetônica brutalista, a empresa se mantém no local até hoje
162 &DESIGN :: DESENHO ORIGINAL
merchan-design
DO ANO 20 23
EU CAMINHO SW 908 1 (195-C4)
COR
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