Revista Científica da Escola Superior de Advocacia: Direito Previdenciário na Atualidade - Ed. 38

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Direito Previdenciário na atualidade Edição 38 Ano 2021

Após Reforma EC n.º 103/2019

SÃO PAULO


CONSELHO SECIONAL

Gestão 2019/2021

OAB SP

DIRETORIA

PRESIDENTE Caio Augusto Silva Dos Santos VICE-PRESIDENTE Ricardo Toledo Santos Filho SECRETÁRIO-GERAL Aislan De Queiroga Trigo SECRETÁRIA-GERAL ADJUNTA Margarete De Cássia Lopes DIRETORA TESOUREIRA Raquel Elita Alves Preto


MEMBROS EFETIVOS: Ailton José Gimenez Alessandro Biem Cunha Carvalho Alexandre Cadeu Bernardes Alexandre Cotrim Gialluca Alexandre Luís Mendonça Rollo Ana Amélia Mascarenhas Camargos Ana Carolina Moreira Santos Ana Cristina Zulian Ana Laura Simionato Victor Ane Elisa Perez Antônio Carlos Chiminazzo Antônio Carlos Delgado Lopes Carlos Fernando de Faria Kauffmann Celso Fernando Gioia Clarissa Campos Bernardo Cláudia Patrícia de Luna Silva Cristiano Ávila Maronna Daniella Meggiolaro Paes de Azevedo Danyelle da Silva Galvão Diva Gonçalves Zitto Miguel de Oliveira Edson Roberto Reis Fabiana das Graças Alves Garcia Fabrício de Oliveira Klébis Flávio Olímpio de Azevedo Gabriella Ramos de Andrade Moreira Gislaine Caresia Glauco Polachini Gonçalves Guilherme Miguel Gantus Irma Pereira Maceira Ivan da Cunha Sousa João Emílio Zola Júnior José Meirelles Filho José Pablo Cortês José Paschoal Filho José Roberto Manesco Juliana Miranda Rojas Júlio César Fiorino Vicente Keilla Dias Takahashi Vieira Leandro Sarcedo Letícia de Oliveira Catani Luciana Gerbovic Amiky Luciana Grandini Remolli Luís Augusto Braga Ramos Luís Henrique Ferraz Luiz Eugênio Marques de Souza Luiz Fernando Sá e Souza Pacheco Luiz Gonzaga Lisboa Rolim Marco César Gussoni Marcos Antônio David Marcos Rafael Flesch Maria Das Graças Perera de Mello Maria Helena Villela Autuori Rosa Maria Sylvia Aparecida de Oliveira Marina Zanatta Ganzarolli Marisa Aparecida Migli Milton José Ferreira De Mello Odinei Rogério Bianchin Orlando César Muzel Martho Regina Maria Sabia Darini Leal Renata Silva Ferrara Roberto Pereira Gonçalves Rogério Luís Adolfo Cury Ronaldo José de Andrade Rosana Maria Petrilli

Roseli Oliva Rosineide Martins Lisboa Molitor Rubens Rocha Pires Sidnei Alzídio Pinto Sílvia Helena Melges Sônia Maria Pinto Catarino Suzana Helena Quintana Tayon Soffener Berlanga Thiago Testini de Mello Miller Walfrido Jorge Warde Júnior

MEMBROS SUPLENTES: Acyr Mauricio Gomes Teixeira Ana Paula Mascaro José Izzi André Luiz Simões de Andrade Anna Lyvia Roberto Custódio Ribeiro Antônio José Kaxixa Francisco Arnaldo Galvão Gonçalves Augusto Gonçalves Carlos Alberto dos Santos Mattos Carlos Eduardo Boiça Marcondes Moura César Piagentini Cruz Cláudia Elisabete Schwerz Cahali Cristiano Medina da Rocha Eduardo Silveira Martins Élio Antônio Colombo Júnior Éryka Moreira Tesser Eugênio Carlo Balliano Malavasi Fábio Gindler de Oliveira Fabrício Augusto Aguiar Leme Fernando Borges Vieira Fernando Fabiani Capano Fernando Mariano da Rocha Íris Pedrozo Lippi Isabela Guimarães Del Monde Isabella Aita Maciel de Sá João Batista Muñoz Jorge Pinheiro Castelo José Luiz Da Silva Kátia De Carvalho Dias Leandro Ricardo da Silva Lia Pinheiro Romano de Carvalho Liamara Borrelli Barros Luciana Andréa Accorsi Berardi Luiz Carlos Zuchini Luiz Donato Silveira Luiz Guilherme Paiva Vianna Maitê Cazeto Lopes Marcel Afonso Barbosa Moreira Marcelo Kajiura Pereira Marcelo Tadeu Rodrigues de Omena Marcos Antônio Assumpção Cabello Marcos Fernando Lopes Marcos Guimarães Soares Marie Claire Libron Fidomanzo Mário Luiz Ribeiro Maristela Sabbag Abla Rossetti Myrian Ravanelli Scandar Karam Nilson Bélvio Camargo Pompeu Odilon Luiz de Oliveira Júnior Ozéias Paulo de Queiroz Patrícia Helena Massa Paulo Henrique de Andrade Malara Pedro Renato Lúcio Marcelino

Pedro Ricardo Boareto Pedro Virgílio Flamínio Bastos Rafael Olímpio Silva De Azevedo Raquel Barbosa Renata Lorenzetti Garrido Rita Maria Costa Dias Nolasco Rodnei Jericó da Silva Rodrigo de Melo Kriguer Rosângela Ferreira da Silva Rubens Eduardo de Sousa Arouca Rutinaldo da Silva Bastos Ruy Janoni Dourado Sérgio Martins Guerreiro Sérgio Quintero Sidmar Euzébio de Oliveira Simone Henrique Stella Vicente Serafini Sueli Dias Marinha Sueli Pinheiro Sulivan Rebouças Andrade Taísa Cintra Dosso Thais Jurema Silva Thays Leite Toschi Thiago Penha de Carvalho Ferreira Thiago Rodovalho dos Santos Wagner Fuin Willey Lopes Sucasas William Nagib Filho

MEMBROS HONORÁRIOS VITALÍCIOS: Antonio Claudio Mariz de Oliveira Carlos Miguel Castex Aidar José Roberto Batochio João Roberto Egydio Piza Fontes Luiz Flávio Borges D’urso Marcos Da Costa Mario Sergio Duarte Garcia

MEMBROS EFETIVOS PAULISTAS NO CONSELHO FEDERAL: Alexandre Ogusuku Guilherme Octávio Batochio Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró

MEMBROS SUPLENTES PAULISTAS NO CONSELHO FEDERAL: Alice Bianchini Daniela Campos Libório Fernando Calza De Salles Freire


CONSELHO CURADOR

DIRETOR ESA OAB SP Fernando Fabiani Capano

DIRETORIA

ESCOLA SUPERIOR DE ADVOCACIA

VICE-DIRETORA ESA OAB SP Letícia de Oliveira Catani CONSELHO EDITORIAL ESAOABSP Otávio Luiz Rodrigues Júnior Gianpaolo Poggio Smanio Felipe Chiarello de Souza Pinto Carlos Eduardo do Nascimento Tatiana Shirasaki Liton Lanes Pilau Sobrinho COORDENAÇÃO TÉCNICA Coordenador Geral ESAOABSP Adriano de Assis Ferreira Coordenador Acadêmico Erik Chiconelli Gomes Revisão Técnica Raíssa Moreira Lima Mendes Musarra Apoio Técnico-Operacional Marcos de Jesus Martins Izidoro


Gestão 2019/2021

PRESIDENTE Edson Roberto Reis VICE-PRESIDENTE Sueli Aparecida de Pieri SECRETÁRIO Evandro Fabiani Capano CONSELHEIROS Cíntia Regina Portes José Meireles Filho Luciano de Freitas Santoro Marcos Antonio Madeira de Mattos Martins Silvio Luiz de Almeida REPRESENTANTE DO CORPO DOCENTE Giuliana Ghizellini Carrieri COORDENADOR DE CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO Eduardo Arantes Burihan REPRESENTANTE DO CORPO DISCENTE Ricardo Carazzai Areas


Direito Previdenciário na atualidade Após Reforma EC n.º 103/2019 W W W . E S A O A B S P. E D U . B R

Prefácio

................................................................................................................................................................. 9

Camila Ghizellini Carrieri Giuliana Ghizellini Carrieri

01. A EXCLUSÃO DIGITAL E O DESAFIO DO ACESSO AOS

BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS NO BRASIL...................................................................................... 12 Roberto de Carvalho Santos

02. ENSAIO SOBRE O MITO DA UNIVERSALIDADE DE ACESSO E

COBERTURA E DA SOLIDARIEDADE DA PREVIDENCIA SOCIAL BRASILEIRA......................................................................................................................................................... 28 Heloísa Helena Silva Pancotti Luiz Geraldo do Carmo Gomes

03. NOVA PREVIDÊNCIA E O ESVAZIAMENTO DO PRINCÍPIO

DA LEGALIDADE................................................................................................................................................ 38 Marco Aurélio Serau Junior

04. MUDANÇA DE PERSPECTIVA NA TUTELA DO DIREITO SÓCIO

FUNDAMENTAL À PREVIDENCIÁRIA SOCIAL: ENTERRANDO O DISCURSO ECONÔMICO...................................................................................................................................................... 48 Rodrigo Monteiro Pessoa Jair Aparecido Cardoso

05. O IMPACTO DA SOLIDARIEDADE INTERGERACIONAL

NA DINÂMICA DO REGIME DE REPARTIÇÃO SIMPLES E DE “CAPITALIZAÇÃO”........................................................................................................................................... 60 Tatiana Conceição Fiore de Almeida

06. O AMOR NOS TEMPOS DO STF.......................................................................................................... 72 Márcia Hoffmann do Amaral Silva Turri


SUMÁRIO 07. A BUSCA DA EFETIVIDADE DA PROTEÇÃO

SOCIAL: DA NECESSIDADE DA INSERÇÃO DA LICENÇA PARENTAL COMO DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL À IGUALDADE DE GÊNERO..................................................................................... 88 Miguel Horvath Júnior Juliana de Oliveira Xavier Ribeiro

08. A AÇÃO CIVIL PÚBLICA NA DEFESA DOS

BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS................................. 106 Luiz Gustavo Boiam Pancotti Heloísa Helena Silva Pancotti

09. A CONVERSÃO DO TEMPO ESPECIAL EM

COMUM PARA FINS DE APOSENTADORIA NO REGIME PRÓPRIO DE PREVIDÊNCIA SOCIAL..................................................................................... 120 Alessandro Cardoso Faria Eloisa Vieira de Souza Renata Tieme Shimabukuro

10. RETROCESSO NA RESSOCIALIZAÇÃO DA POPULAÇÃO CARCERÁRIA ORIUNDA DA RESTRIÇÃO DE ACESSO AO BENEFÍCIO DE AUXÍLIO RECLUSÃO CAUSADO PELA LEI 13.846/2019....... 130 Jesus Nagib Beschizza Feres

11. OS ENUNCIADOS DO CONSELHO DE

RECURSOS DA PREVIDÊNCIA SOCIAL SOBRE APOSENTADORIA ESPECIAL ........................................ 138 Adriane Bramante de Castro Ladenthin

Edição 38 - Ano 2021 ESCOLA SUPERIOR DE ADVOCACIA São Paulo OAB SP - 2021 Coordenador de Editoração Artur José Pavan Torres Jornalista Responsável Marili Ribeiro Coordenação de Edição Fernanda Gaeta Coordenação Científica Dra. Camila Ghizellini Carrieri Dra. Giuliana Ghizellini Carrieri Dr. José Roberto Sodero Victório Arte e Diagramação Concept & Print Bureau Fale Conosco Largo da Pólvora, 141 Sobreloja - São Paulo SP Tel. +55 11.3346.6800 Publicação Trimestral ISSN - 2175-4462. Direitos - Periódicos. Ordem Dos Advogados do Brasil


12. A REPERCUSSÃO PREVIDENCIÁRIA DO ACIDENTE DO TRABALHO NO BENEFÍCIO DE PENSÃO POR MORTE – UMA ANÁLISE DOS IMPACTOS SOFRIDOS PELOS DEPENDENTES DO SEGURADO............................................................................................................ 156 Priscilla Milena Simonato de Migueli

13. PLANEJAMENTO PREVIDENCIÁRIO PÓS REFORMA PREVIDENCIÁRIA E A ADVOCACIA “FULL SERVICE”............................................................................................................ 166 Maura Feliciano De Araújo

14. O PAPEL DO MANDADO DE SEGURANÇA NO DIREITO PREVIDENCIÁRIO............... 178 Alexsandro Menezes Farineli

15. A PORTARIA DO MINISTÉRIO DO TRABALHO E PREVIDÊNCIA MTP Nº 620, DE 1º DE NOVEMBRO DE 2021 E REPERCUSSÕES NOS ACIDENTES COLETIVOS DE TRABALHO................................................................................................................................................. 190 José Roberto Sodero Victório

16. TRANSTORNOS DAS PERÍCIAS E A INDEFINIÇÃO DO PL 3914/20................................. 202 Mônica Christye Rodrigues da Silva

17. CRIMES PREVIDENCIÁRIOS:LESIVIDADE X ADEQUAÇÃO........................................ 212 Ricardo Alves Bento

18. OS CÁLCULOS DA NOVA PENSÃO POR MORTE, APÓS A EC Nº 103/19....................... 222

Viviane Masotti

19. INSS DIGITAL E GUICHÊ VIRTUAL..................................................................................................... 240 Fernanda Angeli Joseane Zanardi Camila Ghizellini Carrieri

Pósfacio

.......................................................................................................................................................... 247

Camila Ghizellini Carrieri Giuliana Ghizellini Carrieri


PREFÁCIO

Camila Ghizellini Carrieri1 Giuliana Ghizellini Carrieri2

Recebemos a missão de organizar e coordenar uma revista eletrônica para a Escola Superior da Advocacia da OABSP dos competentes Diretores da Escola, Dr. Fenando Fabiani Capano e Dra. Letícia de Oliveira Catani, com muita honra e cientes da grande responsabilidade que nos era confiada. A eleição do tema desta Revista Eletrônica foi quase que instantânea e não poderia ser outra: a área previdenciária, de nossa predileção, sim, mas sobretudo, pelo fato de que precisávamos homenagear a Comissão de Direito Previdenciário da OABSP – durante a gestão 2019/2021, verdadeira militante do interesse da Advocacia, em especial durante a Pandemia de Covid-19. Neste contexto, nosso projeto foi recebido de forma amorosa pelo sempre Professor Dr. José Roberto Sodero Victório, que abraçou e militou para que, em um curto espaço de tempo, tivéssemos autores e autoras valorosas, de reconhecido valor e contribuição para o Direito Previdenciário e, hoje, estamos com a revista pronta e à disposição da comunidade jurídica. 1 Advogada. Especialista em Direito da Seguridade Social e Direito Constitucional. Presidente da Comissão de Seguridade Social da OAB de Ribeirão Preto. Membro da Comissão de Direito Previdenciário da OABSP. Vice-Presidente da Comissão de Assistência Judiciária da OAB de Ribeirão Preto/SP. 2 Advogada. Especialista em Direito Penal e Direito Constitucional. Membro do Conselho Curador da ESASP - gestão 20192021. Presidente da Comissão de Assistência Judiciária da OAB de Ribeirão Preto/SP. Membro da Comissão de Direito Previdenciário da OABSP. Membro da Comissão Especial de Direito de Família e Sucessões da OABSP. Membro da Comissão de Assistência Judiciária da OABSP.

Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

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Neste tópico, é importante destacar que em nenhum momento da história a advocacia previdenciária e uma comissão temática do ramo previdenciário conseguiram espaço e autonomia para realizar tanto em benefício não só da advocacia, mas em particular do beneficiário do INSS, como por exemplo, o convênio INSS DIGITAL, o Guichê Virtual entre tantas outras conquistas, e aqui cabe um agradecimento ao nosso Presidente Seccional da OABSP, Dr. Caio Augusto Silva dos Santos, que soube como ninguém selecionar a melhor representação da advocacia previdenciária, primeiramente com o Dr. José Roberto Sodero Victório e, posteriormente com a Dra. Adriane Bramante de Castro Ladenthin.

Mas porque o Direito Previdenciário seria um tema tão relevante para uma revista jurídica? Sabemos que é da natureza humana garantir sua sobrevivência com o esforço do seu trabalho, assim como preocupar-se com o dia de amanhã, com o futuro incerto, considerando-se, inclusive, a eventualidade de estar incapacitado de prover sua própria existência, seja em razão de alguma doença, seja em razão do avanço da idade. E é com base nessa preocupação em garantir a nossa sobrevivência no futuro que, de forma evolutiva, alcançamos, enquanto sociedade e através da intervenção estatal, o sistema de Previdência e da Seguridade Social. Na atualidade, a Seguridade e a Previdência Sociais alcançaram uma relevância sem precedentes no cenário jurídico, social e político, em razão de três fatores determinantes e distintos: 1) a Reforma Previdenciária esculpida pela EC nº 103/2019, que trouxe uma reforma estrutural do sistema de previdência social, impondo consideráveis alterações aos benefícios, à idade mínima para se aposentar, ao tempo de contribuição necessário para a implementação do direito, ao cálculo de benefícios, estabelecendo regras de transição específicas, todas à impactar as fontes de custeio do sistema e minorar alegado déficit da Previdência; 2) a edição de novas legislações e normativas administrativas, a citar como exemplo o famoso Decreto 10.410/2020, e com a finalidade de tentar regulamentar o texto da Emenda Constitucional, mas que trazem previsões em si , suficientes a provar grandes debates jurídicos e consideráveis impactos à vida e à economia do segurado brasileiro; e 3) a pandemia mundial de COVID – 19, que asseverou as necessidades e vulnerabilidades humanas e nos convidou a modificar a nossa perspectiva e cultura de Previdência e Seguridade Sociais, haja vista que centenas de óbitos impactaram as famílias brasileiras, assim como as sequelas incapacitantes deixadas pela pandemia, impactando também a capacidade laboral, a vida e o orçamento de muitas pessoas. 10

38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


Sabemos que, em um passado relativamente próximo, os advogados e a advogadas previdenciaristas eram tidos como agentes de um ramo do Direito do Trabalho, mas é certo que o ramo Previdenciário, dado a sua relevância e conteúdo próprios, se consolidou como área importante da ciência jurídica moderna, exigindo de seus operadores conhecimentos cada vez mais aprofundados e específicos. Hoje, os advogados e a advogadas previdenciaristas são solicitados cada vez pela sociedade em face da crescente demanda por benefícios e, sobretudo, para atender à “nova” demanda de planejamento de sua previdência social.

É neste contexto que consideramos que a advocacia previdenciarista moderna, vocacionada à especialização, possui verdadeira missão, que hoje é, essencialmente, manter-se constantemente atualizada face às cotidianas alterações legislativas e a elaboração de novos sistemas e ferramentas de acesso à grande instituição INSS, que impactam diariamente a vida do segurado. E assim, dentro deste cenário de constantes mudanças sociais, políticas e legislativas, que este compilado de artigos, selecionados entre expoentes e renomados autores e estudiosos da área previdenciária, desenvolvido com os temas mais atuais em discussão, se torna um instrumento valioso aos operadores do Direito Previdenciário, a militar como mais uma ferramenta de atualização, aprendizado e reflexão em sua jornada na defesa dos direitos sociais fundamentais. O momento é mais do que oportuno e certamente, esta revista já é um grande sucesso e será uma referência para muitos operadores do Direito. Convidamos a todos para uma excelente leitura e aproveitamos a oportunidade para externar a nossa gratidão.

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01

A EXCLUSÃO DIGITAL E O DESAFIO DO ACESSO AOS BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS NO BRASIL Roberto de Carvalho Santos3

RESUMO O presente texto tem como objetivo demonstrar as dificuldades impostas pelo sistema informatizado do INSS (Meu INSS) para acesso a benefícios previdenciários em face da exclusão digital no Brasil. Assim, incialmente, será feita uma introdução sobre a realidade da exclusão digital no Brasil, demonstrando suas causas e os programas desenvolvidos e em desenvolvimento para combatê-la. Em seguida, será apresentado um histórico do acesso a benefícios previdenciários no Brasil desde o início do século XXI até o atual cenário de concessão pela plataforma do Meu INSS. Por fim, observaremos como a exclusão digital tem sido um obstáculo à obtenção de benefícios pelos segurados. PALAVRAS-CHAVE Acesso a Benefícios Previdenciários; Meu INSS; Exclusão Digital.

3 Presidente do Instituto de Estudos Previdenciários – IEPREV. Advogado especialista em Direito Previdenciário. Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). 12

38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


1. INTRODUÇÃO O emprego de tecnologia para prestação de serviços pela Administração Pública é fenômeno que vem ganhando bastante relevo nas últimas décadas, o que foi intensificado pela crise sanitária de 2020, ocasionada pela disseminação do vírus COVID-19. Em especial a partir da publicação do Decreto Legislativo nº 6/2020, em 20 de março de 2020, que reconheceu a ocorrência do estado de calamidade pública no país, grande parte dos serviços públicos, que já passavam pela fase de digitalização, fecharam as portas de suas agências para sua prestação quase que exclusivamente por meio eletrônico. No caso do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), no mesmo dia da promulgação do Decreto Legislativo nº 06/2020, foi emitida a Portaria nº 412, que suspendeu o atendimento presencial nas agências até o dia 30 de abril, o que foi acompanhado de outras medidas, tais como a ampliação das tarefas da autarquia que poderiam ser solicitadas por meio eletrônico (Portaria nº 123 de 13 de maio de 2020) até criação de disposição legal que limita, de forma definitiva, o atendimento presencial apenas às situações excepcionais (art. 176-A do Decreto nº 3.048/1999 – incluído pelo Decreto nº 10.410/2020). Apesar do processo de digitalização do fornecimento de serviços públicos ter se acelerado com a crise sanitária, fato é que se tratava de movimento inevitável, cujo prelúdio já era notável décadas antes. Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

Nesse contexto, em que os serviços públicos passam a ser fornecidos por meio digital, é imperioso o debate sobre o acesso da população brasileira às ferramentas tecnológicas que proporcionam o alcance aos direitos que devem ser garantidos pela Administração Pública. Esse acesso deve ser entendido não só em termos de estrutura física, com o suprimento de aparelhos eletrônicos e rede de internet, mas também no sentido de garantir à população condições intelectuais para lidar com esses instrumentos. Em outras palavras, é necessário observar se o avanço tecnológico no fornecimento de serviços pelo governo foi acompanhado do letramento digital dos brasileiros. O presente texto tem como objeto, portanto, analisar em que medida a digitalização dos serviços públicos no Brasil tem sido um problema a partir da perspectiva da exclusão digital de grande parcela da população, com foco no acesso aos direitos previdenciários, considerando que “os beneficiários do RGPS são, em sua maioria, pessoas de baixa renda, com pouco acesso a tecnologias, algumas delas com baixíssima escolaridade, sem contar com os analfabetos funcionais”4. Para melhor compreensão do tema, inicialmente, será feita uma introdução sobre a realidade da exclusão digital no Brasil, demonstrando suas causas 4 LAZZARI, João Batista; CASTRO, Carlos Alberto Pereira; KRAVCHYCHYN, Gisele Lemos e KRAVCHYCHYN, Jefferson Luis. Prática processual previdenciária: administrativa e judicial. 13 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. 13


e os programas desenvolvidos e em seguida, será apresentado um histórico

por meio da promoção da inclusão digital, meta que só seria alcançada por meio da alfabetização digital.

do acesso a benefícios previdenciários no

A alfabetização digital ou letramento

desenvolvimento para combatê-la. Em

Brasil desde o início do século até o atual cenário de concessão pela plataforma do Meu INSS. E, por fim, observaremos como a exclusão digital tem sido um obstáculo à obtenção de benefícios pelos segurados.

digital é o “conjunto de competências e capacidades que possibilitam o uso adequado das tecnologias de informação e comunicação e a própria construção do

conhecimento

decorrente

dessas

tecnologias, incluindo a internet, sistemas 2. DESIGUALDADE DIGITAL NO BRASIL

E

EXCLUSÃO

Os anos 2000 testemunharam o surgimento da preocupação do governo brasileiro com políticas públicas e programas de inclusão digital. Essa apreensão decorre diretamente da necessidade de coordenar a integração dos objetivos econômicos e sociais previstos na Constituição em uma série de práticas de inclusão digital5. Essas práticas, por sua vez, foram acompanhadas da progressiva ampliação do uso da internet, que é hoje indispensável ao funcionamento da economia e da vida em sociedade como conhecemos.

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de computação e redes digitais”6. Tratase, portanto, da “(...) compreender,

competência em

assimilar,

reelaborar

e

chegar a um conhecimento que permita uma ação consciente, o que encontra correspondente no letramento digital”7. Nesse sentido, não basta a simples compra de computadores para a população de baixa renda, é preciso fomentar a alfabetização tecnológica, ou seja, fornecer, em um primeiro momento, compreensão e proficiência básicas e mínimas para utilização das ferramentas tecnológicas e, em uma segunda fase, habilitar o cidadão para participar ativamente do mundo

digital,

compreendendo

seus

processos de informação e transmissão

Em razão disso, em 2004, por meio da publicação da Lei nº 11.012, foi criado o Programa de Inclusão Digital, que, dentre seus objetivos, buscava promover o acesso universal à seguridade social e aumentar o acesso à informação e ao conhecimento

6 POLIDO, Fabrício Bertini Pasquot. A rota oposta de uma agenda global digital inclusiva a partir do Direito e regulação: cismas de um projeto negligenciado no Brasil. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 122, jan./jun. 2021, pp. 269-322.

5 POLIDO, Fabrício Bertini Pasquot. A rota oposta de uma agenda global digital inclusiva a partir do Direito e regulação: cismas de um projeto negligenciado no Brasil. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 122, jan./jun. 2021, pp. 269-322.

7 SILVA, Helena et al. Inclusão digital e educação para a competência informacional: uma questão de ética e cidadania e cidadania. In: Ci. Inf, vol. 34, n. 1, 2005, p. 28-36. Disponível em: <http://www.scielo.br/ pdf/ci/v34n1/a04v34n1.pdf>. Acesso em: 18 de agosto de 2021. f. 33. 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


de conhecimento8. O Programa de Inclusão Digital foi acompanhado por um extenso volume de outros projetos, tais como o Projeto Cidadão Conectado-Computador para Todos (Decreto nº 5.542/05), o Programa Um Computador por Aluno (PROUCA – Lei nº 12.249/10), o Programa Telecentros.BR (Decreto nº 6.991/09), o Programa Banda Larga para as Escolas (PBLE – Decreto nº 6424/08), o Programa Nacional de Banda Larga (PNBL – Decreto nº 7.175/10) e o Programa Nacional de Redes de Banda Larga de Telecomunicações (REPNBL – Lei nº 12.715/12)9. Em 23 de abril de 2014 foi aprovada a Lei nº 12.965, mais conhecida como Marco Civil da Internet, com o objetivo de estabelecer princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. No que diz respeito ao dever do Poder Público em promover o letramento digital, os artigos 26 e 27 desse diploma legal assim preveem: Art. 26. O cumprimento do dever constitucional do Estado na prestação da educação, em todos os níveis de ensino, inclui a capacitação, 8 ROVER, Aires José. O governo eletrônico e a inclusão digital: duas faces da mesma moeda chamada democracia. Inclusão digital e governo eletrônico. Zaragoza: Prensas Universitárias de Zaragoza, Lefis series, v. 3, p. 9-34, 2008. Disponível em: <http://egov.ufsc.br/ portal/sites/default/files/ lefis_artigo_aires.pdf>. Acesso em: 18 de agosto de 2021. 9 POLIDO, Fabrício Bertini Pasquot. A rota oposta de uma agenda global digital inclusiva a partir do Direito e regulação: cismas de um projeto negligenciado no Brasil. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 122, jan./jun. 2021, pp. 269-322. Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

integrada a outras práticas educacionais, para o uso seguro, consciente e responsável da internet como ferramenta para o exercício da cidadania, a promoção da cultura e o desenvolvimento tecnológico. Art. 27. As iniciativas públicas de fomento à cultura digital e de promoção da internet como ferramenta social devem: I - promover a inclusão digital; II - buscar reduzir as desigualdades, sobretudo entre as diferentes regiões do País, no acesso às tecnologias da informação e comunicação e no seu uso; e III - fomentar a produção e circulação de conteúdo nacional.10 Apesar dessas louváveis iniciativas, conforme o Mapa da Inclusão Digital formulado em 2012 pela Fundação Getúlio Vargas11, ainda havia bastantes cidadãos sem acesso à rede mundial de computadores. De acordo com o documento, as três principais razões que fizeram o brasileiro não utilizar a internet nos três meses que antecederam a pesquisa foram: (i) não achava necessário 10 BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Brasília, 23 de abr. de 2014. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm>. Acesso em: 18 de agosto de 2021. 11 FGV, Mapa da Inclusão Digital. São Paulo: Centro de Políticas Sociais, 2012 Disponível em: <chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/ viewer.html?pdfurl=https%3A%2F%2Fbibliotecadigital. fgv.br%2Fdspace%2Fbitstream%2Fhandle%2F10438% 2F20738%2FTexto-Principal-Mapa-da-Inclusao-Digital. pdf&clen=3143208>. Acesso em 17 de agosto de 2021. 15


ou não quis – 33,14%; (ii) não sabia utilizar a internet – 31,45%; e (iii) não tinha acesso a microcomputador – 29,79%. Dentre esses motivos, os dois últimos, que dizem respeito diretamente à exclusão digital, são mais frequentes em capitais com piores índices de desenvolvimento econômico e social do país: São Luiz (MA), Boa Vista (RR), Teresina (PI), Natal (RN) e Rio Branco (AC).

uma opção prontamente disponível para trabalhadores digitais durante uma crise de saúde pública, a muito celebrada “flexibilidade” e “autonomia” na economia de gig baseada em plataforma pode ser terrivelmente frágil sob graves perturbações no mercado e na economia.12

Nesse ponto, é interessante notar como a exclusão social fomenta a exclusão digital na medida em que os cidadãos marginalizados são aqueles que não tem acesso ao conhecimento e às ferramentas tecnológicas. Do mesmo modo, a exclusão digital aumenta a exclusão social, uma vez que, sem o acesso à internet, os excluídos tendem a ser ainda mais excluídos por não conseguirem acesso a serviços públicos, a notícias, a conhecimento e, o que se tornou relevante com a pandemia da COVID-19, ao mercado de trabalho, ao mercado de consumo e a serviços de saúde.

O mesmo pode ser dito do acesso à educação, uma vez que a capacidade dos alunos de se beneficiarem do ensino à distância pode ser desigual devido às desigualdades relativas ao acesso à Internet e aos equipamentos eletrônicos, bem como à capacidade dos pais para apoiar os filhos e à forma distinta que escolas públicas e escolas privadas foram capazes de lidar com a migração do ensino para o computador durante a pandemia13.

No que diz respeito ao mercado de trabalho especificamente, ponto sensível quando se analisa a desigualdade social, conforme Zheng e Walsham: Em outras palavras, os vários níveis de divisão entre e dentro do trabalho digitalizado e não digitalizado sob covid-19 estão associados a rupturas mais profundas de desigualdade econômica e de classe, bem como à distribuição desigual de recursos através das fronteiras geográficas ao redor do globo e dentro das nações. Embora o trabalho remoto possa ser 16

A alfabetização digital e o acesso às ferramentas tecnológicas são, nesse contexto, imprescindíveis para a inclusão do indivíduo na sociedade, seja para ter acesso ao mercado de trabalho, seja para conseguir a devida prestação de seus 12 No original em inglês: “In other words, the multiple levels of division between and within digitalised and nondigitalised work under covid-19 are associated with deeper ruptures of class and economic inequality as well as the uneven distribution of resources across geographical boundaries around the globe and within nations. While remote working may be a readily available option for digital workers during a public health crisis, the much celebrated ‘flexibility’ and ‘autonomy’ in the platform-based gig economy could be terribly fragile under severe disruptions in the market and economy” In: ZHENG, Yingqin; WALSHAM, Geoff. Inequality of what? An intersectional approach to digital inequality under Covid-19. Information and Organization, v. 31, n. 1, 100341, 2021. f. 3. 13 UNCTAD. The COVID-19 Crisis: accentuating the need to bridge digital divides. Abril, 2020. 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


direitos pelo Poder Público. Atualmente vigora no país a Estratégia E-Digital, instituída pelo Decreto nº 9.319, em 21 de março de 2018, que, segundo Polido, diferentemente do Programa de Inclusão Digital de 2004, “ficam para trás em uma série de objetivos de inclusão digital relacionados, que seriam essenciais para uma transformação digital generalizada”14. Devido ao progressivo aumento da dependência da economia à tecnologia, isso se torna preocupante, sobretudo com a pandemia do COVID-19. Apesar da exclusão digital não ser o único motivo, certamente é fator que em muito influencia no atual índice de desemprego no país, que no primeiro trimestre de 2021 ficou em 14,7%, segundo o IBGE15, maior percentagem desde o início das medições do instituto em 2012.

abril de 2019, foi publicado o Decreto nº 9.756, instituindo o portal “gov.br”, que unificava, no âmbito dos órgãos e das entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional do Poder Executivo federal, a prestação dos serviços públicos sob um cadastro único do cidadão. Hoje, sobretudo com a pandemia do COVID-19, que forçou o fechamento físico dos estabelecimentos do Poder Público, para se ter acesso a determinado direito, o “gov.br” é, muitas vezes, a única alternativa, como se verá adiante no caso do INSS, o que é de extrema preocupação à luz da exclusão digital brasileira. 3. HISTÓRICO DO ACESSO A BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS NO BRASIL O Brasil só passou a ter verdadeiras

Ademais, a falta de iniciativas para promoção do letramento digital e acesso a ferramentas tecnológicas, sobretudo durante a pandemia, indubitavelmente terá reflexos na desigualdade do ensino público e particular no país.

regras de caráter geral em matéria de

No acesso aos serviços públicos a situação não é diferente. Em 11 de

A doutrina majoritária considera como

14 POLIDO, Fabrício Bertini Pasquot. A rota oposta de uma agenda global digital inclusiva a partir do Direito e regulação: cismas de um projeto negligenciado no Brasil. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 122, jan./jun. 2021, pp. 269-322. 15 BRASIL. Desemprego. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível em: <https:// www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php>. Acesso em: 18 de agosto de 2021. Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

previdência apenas no século XX. Em períodos anteriores, apesar de previsão constitucional, apenas alguns diplomas normativos ofereciam algum tipo de proteção ao trabalhador de forma isolada. marco inicial da Previdência Social no país a edição da Lei Eloy Chaves em 1923 (Decreto Legislativo nº 4.682), que criou as Caixas de Aposentadoria e Pensões nas empresas de estrada de ferro16. 16 LAZZARI, João Batista e CASTRO, Carlos Alberto de. Manual de Direito Previdenciário. 24 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. 17


A partir de então, surgiram várias outras caixas de pensão e aposentadoria, cada qual vinculada a um determinado ramo de atividade. A padronização da concessão de benefícios só foi acontecer em 1949, com a publicação do Regulamento Geral das Caixas de Aposentadorias e Pensão (Decreto nº 26.778/49), já a padronização normativa para o amparo dos segurados só foi ocorrer em 1960, com a aprovação da Lei nº 3.807, denominada Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS)17. Naquele momento, os organismos previdenciários ainda estavam descentralizados, o que só foi mudar com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS – Decreto-lei nº 72/66). Todavia, o INPS ainda não oferecia proteção social ao trabalhador rural e ao trabalhador doméstico, que só passaram a ter algum tipo de salvaguarda com a Lei Complementar nº 11/1971 (criação do FUNRURAL) e Lei nº 5.859/1976, respectivamente18. A Constituição de 1988 foi a responsável por unificar todo o sistema, criando o atual Regime Geral de Previdência Social, excluindo apenas os trabalhadores que fossem regidos por sistema próprio de previdência, tais como servidores públicos e militares, e os brasileiros que não contribuem para nenhum regime por 17 IBRAIM, Fábio Zambite. Curso de Direito Previdenciário. 25 ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2020. 18 LAZZARI, João Batista e CASTRO, Carlos Alberto Pereira de. Manual de Direito Previdenciário. 24 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. 18

não exercerem atividade laborativa, como por exemplo as crianças19. Em 1990 foi criado o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), autarquia federal que passou a coordenar as funções de concessão de benefícios e arrecadação previdenciários, tendo esta última função sido transferida para a Secretaria da Receita Federal em 2007 (Lei nº 11.457). No ano seguinte, foram aprovadas as Leis nº 8.212 e nº 8.213, que tratam do custeio e dos benefícios da previdência social20. Ainda que a Previdência Social tenha sofrido algumas reformas constitucionais consideráveis (EC nº 20/98, EC nº 41/03, EC nº 47/05 e EC nº 103/19), a estrutura de concessão de benefícios permaneceu a mesma, feita por meio do INSS. No final da década de 1990 e primeiros anos da de 2000, a previdência social brasileira passou a enfrentar passou a enfrentar um grande problema no que diz respeito ao atendimento do cidadão nas agências do INSS. Conforme relatório produzido pelo Dataprev21, de cada 10 pessoas que procuravam uma Agência da Previdência Social no país, sete voltavam para casa sem sequer obter as informações 19 LAZZARI, João Batista e CASTRO, Carlos Alberto Pereira de. Direito Previdenciário. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense; MÉTODO, 2021. 20 LAZZARI, João Batista e CASTRO, Carlos Alberto Pereira de. Manual de Direito Previdenciário. 24 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. 21 EMPRESA DE TECNOLOGIA E INFORMAÇÕES DA PREVIDÊNCIA SOCIAL. A virada da previdência social: como acabaram as filas nas portas das agências. 1. ed. Brasília: DATAPREV, 2013. 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


básicas de que precisavam. Era urgente que se pensasse em estratégias para a humanização dos serviços prestados à população brasileira, o que veio a ser implementado, dentre outras medidas, com a criação da Central de Atendimento 135, parte do Projeto de Gestão do Atendimento (PGA). A partir da criação do telecentro, aliada a abertura da possibilidade de agendamento eletrônico do atendimento presencial (Sistema de Agendamento Eletrônico – SAE), mais pessoas puderam ser atendidas em um menor intervalo de tempo, dando fim às enormes filas que, no início dos anos 2000 estampavam os noticiários. Segundo o relatório do Dataprev, uma pesquisa realizada pelo INSS em 2008 mostrou que 80% das pessoas, que ligavam para o 135, queriam apenas informações22, demanda legítima da população, mas que, muitas vezes, na rotina das agências, representava um entrave para o atendimento e concessão de benefícios àqueles que precisavam. A partir do fim da primeira década dos anos 2000, percebeu-se a necessidade de investir em tecnologia com o objetivo de agilizar ainda mais os processos de trabalho do INSS. Nesse contexto, foi publicada a Lei Complementar nº 128, de 19 de dezembro de 2008 que, além de outras medidas, modificava o art. 29-A

22 EMPRESA DE TECNOLOGIA E INFORMAÇÕES DA PREVIDÊNCIA SOCIAL. A virada da previdência social: como acabaram as filas nas portas das agências. 1. ed. Brasília: DATAPREV, 2013. Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

da Lei nº 8.213/91 (Lei de Benefícios)23, ampliando a base de dados do Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS)24, o que auxiliava na aferição dos dados dos segurados, evitando solicitação de diligências desnecessárias pelo INSS. Esse processo de digitalização, como já tratado, seguiu a tendência mundial na busca do uso da tecnologia em todos os aspectos da vida em sociedade. Com os avanços da tecnologia, novas oportunidades para seu uso foram criadas, com novos desafios a serem enfrentados25. Em 11 de novembro de 2011 foi instituído o processo eletrônico no âmbito do INSS, por meio da Resolução nº 166/PRES/INSS, o que demonstrava essa preocupação com a necessidade de adaptar as instituições a esse novo contexto digital. 23 Art. 29-A. O INSS utilizará as informações constantes no Cadastro Nacional de Informações Sociais – CNIS sobre os vínculos e as remunerações dos segurados, para fins de cálculo do salário-de-benefício, comprovação de filiação ao Regime Geral de Previdência Social, tempo de contribuição e relação de emprego. In: BRASIL. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Brasília, 24 de jul. de 1991. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/l8213cons.htm>. Acesso em: 20 de agosto de 2021. 24 O CNIS é um banco de dados do governo federal criada em 1989 pelo Decreto 97.936, que armazena as informações dos trabalhadores brasileiros necessárias para garantir seus direitos trabalhistas e previdenciários. No cadastro constam dados relativos a vínculos, remunerações e contribuições do trabalhador, que servem como prova da filiação à previdência social e permitem a apuração do direito a benefícios e seu valor. In: LAZZARI, João Batista; CASTRO, Carlos Alberto Pereira; KRAVCHYCHYN, Gisele Lemos e KRAVCHYCHYN, Jefferson Luis. Prática processual previdenciária. 13 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. 25 FILGUEIRAS, Fernando; ALMEIDA, Virgílio. Governance for the digital world: neither more state nor more market. Palgrave Macmillan, 2021. (Ch. 4: Governance for digital technologies, p. 75-104). 19


A crescente busca pela automatização dos processos culminou na criação do Meu INSS, a partir da Instrução Normativa nº 96/PRES/INSS, em 14 de maio de 2018. Trata-se de plataforma digital, vinculada ao sistema gov.br, que permite ao segurado e o INSS acessar informações sociais, bem como efetuar requerimentos, agendar perícias, realizar simulações, dentre outras funcionalidades que ao logo do tempo estão sendo inseridas na plataforma. Influenciado pelo domínio do capitalismo de vigilância, o governo brasileiro tornou-se cada vez mais dependente de entidades comerciais: a internet e as companhia de telefone, para promover os direitos básicos de seus cidadãos, em especial os previdenciários. Apesar de antes já possuir domínio dos dados dos cidadãos, a forma como isso se expandiu pelo uso da tecnologia, alterou totalmente a dinâmica do atendimento à população pelo governo26. A pandemia do COVID-19 intensificou ainda mais a necessidade de se buscar alternativas tecnológicas para o serviço público. Com o isolamento social, o atendimento presencial nas agências foi suspenso, tendo o Meu INSS se tornado o principal meio para requerimento de benefícios. 4.

ACESSO

A

BENEFÍCIOS

26 LYON, David. The culture of surveillance: Watching as a way of life. John Wiley & Sons, 2018 (Introduction: Surveillance Culture Takes Shape, p. 9-34). 20

PREVIDENCIÁRIOS E A EXCLUSÃO DIGITAL As instituições estão em constante transformação e mudança, se adaptando a novos contextos e promovendo mudanças de paradigmas pela introdução de novos procedimentos. Essa transformação, seja ela por acidente, evolução ou intenção, requer a observância de vários fatores e resiliência para decifrar os novos problemas e se adaptar a novas soluções. Nesse sentido, no mundo digital: “O grande desafio para a governança do mundo digital é criar uma nova ordem. Ou seja, o mundo digital precisa ser regido por uma nova gramática, com atributos para se adaptar e produzir para um mundo novo e complexo.”27 A pandemia da COVID-19 impôs ao mundo o desafio do isolamento social, o que representou a necessidade de se buscar alternativas digitais para a transposição das atividades presenciais para o meio virtual. Diante de desafio, o INSS permitiu a expansão das funcionalidades do atendimento da central 135, por meio da Portaria nº 123 (13 de maio de 2020), permitindo que os atendentes abrissem tarefas no Meu INSS dos segurados para solucionar eventuais pendências. Todavia,

esse

atendimento

27 Tradução minha. No original: “The big challenge for governance of the digital world is to create a new order. In other words, the digital world needs to be governed in a new grammar, with attributes to adapt and produce in order for a complex and new world.” In: FILGUEIRAS, Fernando; ALMEIDA, Virgílio. Governance for the digital world: neither more state nor more market. Palgrave Macmillan, 2021. (Ch. 4: Governance for digital technologies, p. 75-104). 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


pressupõe que o segurado tenha acesso a computador, rede banda larga e alguma ferramenta que lhe possibilite a digitalização de documentos. Ademais, subentende que o cidadão será capaz de compreender o sistema do Meu INSS e executar as tarefas necessárias para solucionar, sozinho, seu problema. A tendência pela busca de ferramentas tecnológicas ficou ainda mais forte a partir da publicação do Decreto 10.410, em 30 de junho de 2020, que acrescentou ao Decreto 3.048/99, o art. 176-A, com a seguinte redação: Art. 176-A. O requerimento de benefícios e de serviços administrados pelo INSS será formulado por meio de canais de atendimento eletrônico, observados os procedimentos previstos em ato do INSS. § 1º O requerimento formulado será processado em meio eletrônico em todas as fases do processo administrativo, ressalvados os atos que exijam a presença do requerente. § 2º Excepcionalmente, caso o requerente não disponha de meios adequados para apresentação da solicitação pelos canais de atendimento eletrônico, o requerimento e o agendamento de serviços poderão ser feitos presencialmente nas Agências da Previdência Social.28 28 Grifo meu. BRASIL. Decreto 3.048, de 6 de maio de 1999. Aprova o Regulamento da Previdência Social, e dá outras providências. Disponível em http://www.planalto. Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

Depreende-se do dispositivo supracitado que, em caráter permanente, os meios eletrônicos serão o canal principal dos segurados para o requerimento de benefícios, sendo aceito o atendimento presencial apenas na hipótese de atos que exijam a presença do requerente ou quando o segurado não possui meios para o atendimento eletrônico. Todavia, em função dessa presunção de acesso a meios digitais, não há qualquer informação sobre como o segurado poderá agendar um atendimento presencial. Na prática, isso tem se tornado quase impossível. Há, assim, uma crescente rigidez no âmbito do INSS, que, em prol da celeridade dos processos administrativos, que desconsidera o direito fundamental dos segurados ao acesso aos benefícios previdenciários. Ademais, é necessário fazer algumas ponderações acerca da transparência do algoritmo que orienta o sistema do Meu INSS. Transparência é o elemento por meio do qual os cidadãos podem tomar conhecimento acerca do modo como os sistemas de decisão fazem escolhas que afetam suas vidas29. É por meio dessa compreensão que é possível responsabilizar os coordenadores dos gov.br/ccivil_03/decreto/d3048.htm. Acesso em: 23 de agosto de 2021. 29 FILGUEIRAS, Fernando; ALMEIDA, Virgílio. Governance for the digital world: neither more state nor more market. Palgrave Macmillan, 2021. (Ch. 4: Governance for digital technologies, p. 75-104). 21


sistemas para que sejam aprimorados. Ao se analisar o Meu INSS e os diplomas normativos que o regem, observam-se enormes problemas que atingem não só o segurado ordinário, mas que trazem dificuldades até mesmo aos advogados previdenciaristas, que, em tese, estão mais bem preparados para lidar com esse sistema. Exemplo disso é a Portaria DIRBEN/ INSS nº 902, de 23 de junho de 2021, que disciplina e a rotina de tratamento prévio de tarefas de reconhecimento inicial de direitos, que é feita exclusivamente por inteligência artificial. Esse diploma normativo é responsável pelo indeferimento de inúmeros requerimentos administrativos e não está disponível em nenhum canal oficial do governo. A única forma de ter acesso à portaria é pagando a assinatura do sítio eletrônico de um servidor da autarquia previdenciária. Outra forma de ilustrar esse cenário hostil é observando-se as próprias mudanças institucionais dentro do INSS e, em consequência, do sistema do Meu INSS. A todo o tempo o governo cria e extingue secretarias dentro da autarquia, desloca funcionários de outros setores para tentar lidar com o déficit de servidores sem qualquer treinamento, aumenta ou diminui competências da autarquia e, como ocorreu nas últimas semanas recria o Ministério do Trabalho e da Previdência através de medida provisória. A desorganização institucional é extremamente confusa e frágil, o que

22

provoca reflexos dentro das ferramentas do INSS, tal como o Meu INSS. Não é incomum, por exemplo, lidar com a instabilidade do sistema ou com mudanças na interface e nomenclatura de opções de serviço. Como exemplo, temos o ícone de acesso ao CNIS, que antes possuía o título de “Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS)”, depois passou a ser chamado de “Extrato de Contribuições” e, atualmente, é nomeado de “Extrato de Contribuições (CNIS)”. Essa

realidade

principalmente

ao

se

agrava

pensarmos

na

população que mais depende do INSS, pois, se advogados tem dificuldade para entender

essas

contínuas

mudanças

organizacionais, quem dirá pessoas de baixa renda e idosos, com pouco acesso a tecnologias, com baixa escolaridade e, em sua grande parte, analfabetos funcionais e/ou digitais. A tecnologia atende a uma análise exclusivamente matemática de eficiência, o que nem sempre converge com as necessidades do público que mais depende do INSS: “muito comumente os segurados e dependentes são hipossuficientes, não apenas do ponto de vista financeiro, mas igualmente nos aspectos informacionais e culturais, com idade elevada, baixo grau de instrução e por vezes dificuldades de compreensão dos itens da vida moderna”30. Ainda que a autarquia previdenciária 30 SERAU JÚNIOR, Marco Aurélio. Operação pente-fino e minirreforma previdência: Lei 13.846/2019. Porto Alegre: Paixão, 2019. f. 132-133. 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


tenha firmado acordos de colaboração para ampliar o acesso dos segurados mais vulneráveis aos benefícios, tais como o INSS Digital (parceria OAB-INSS), esses acordos não são de amplo conhecimento da população e, mesmo que fossem, não seriam capazes de atender a todos que precisam. Há, nesse sentido, uma progressiva privatização do serviço informacional do INSS, que fica a cargo dos advogados, quando e se consultados. Além disso, o INSS Digital acentua ainda mais as desigualdades regionais de acesso digital, pois depende de convênios individuais com cada uma das seções estaduais da OAB, o que, na prática, significa que estados como São Paulo e Minas Gerais tem acesso uma gama de serviços maior do que estados com menor índice de desenvolvimento. Por fim, destaca-se que a plataforma do Meu INSS foi implantada e tem sido ampliada sem qualquer campanha governamental que informe a população de suas funcionalidades. O que se percebe são apenas eventuais propagandas que apenas indicam, de forma tímida, a existência da plataforma. Diante desse cenário, é possível perceber que o INSS caminha por um ambiente cada vez mais inacessível para grande parcela da população, sobretudo considerando o enorme abismo que o iletramento digital impõe ao público da autarquia previdenciária. Não se propõe, por óbvio, que o INSS deixe de usar a tecnologia na análise

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de benefícios. Há que se reconhecer que o sistema Meu INSS se provou bastante eficaz para vários casos, sobretudo com em virtude do número de requerimentos administrativos, a imposição de isolamento social na pandemia do COVID-19 e o consequente aumento na demanda por auxílio-doença. Todavia, é necessário um olhar crítico sobre como essa plataforma tem sido utilizada e seus reflexos na vida de milhares de brasileiros que, além de muitas vezes terem acesso precário à internet, não possuem conhecimento técnico suficiente para avaliar se o sistema está analisando seu caso sob a melhor ótica legal. A implementação dos deveres e direitos políticos, civis e sociais dependem do livre acesso à informação sobre esses deveres e direitos. Em outras palavras, dependem da ampla disseminação e circulação da informação, que possibilite um processo comunicativo de discussão crítica sobre a forma como os problemas em torno da implementação desses deveres e direitos devem ser solucionados para a construção de uma sociedade mais justa e, portanto, com maiores oportunidades para todos os cidadãos31. Trata-se de direito fundamental do cidadão, definido no inciso XXXIII do art. 5º da Constituição: “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, 31 SILVA, Helena et al. Inclusão digital e educação para a competência informacional: uma questão de ética e cidadania e cidadania. In: Ci. Inf, vol. 34, n. 1, 2005, p. 28-36. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ ci/v34n1/a04v34n1.pdf>. Acesso em: 18 de agosto de 2021. 23


ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”32. Em um país com índices de desigualdade social e digital tão acentuadas, como demonstrado anteriormente, é imprescindível que o Meu INSS seja pensado não como a ferramenta principal de concessão de benefícios, mas sim como uma alternativa, pelo menos até que se promovam inciativas no sentido de fornecer aos segurados meios materiais e intelectuais para que efetivamente utilizem o sistema para o seu melhor interesse.

5. CONCLUSÃO A partir desse artigo, pretendeu-se analisar como a exclusão digital no Brasil tem interferido no acesso a benefícios previdenciários pelo sistema informatizado do INSS (MeuINSS). Em uma primeira análise, foi feito um estudo acerca dos programas para o fomento do letramento digital, bem como o fornecimento de ferramentas tecnológicas à população e os deveres legais do Estado para combater a exclusão digital. Demonstrou-se que as iniciativas atuais do governo estão aquém das necessidades dos brasileiros. Em seguida, examinou-se o histórico do

acesso a benefícios previdenciários no Brasil, demonstrando como as ferramentas tecnológicas auxiliaram a combater as enormes filas das agências do INSS. Por fim, foi explorado o funcionamento do Meu INSS e as dificuldades que os excluídos digitais enfrentam na concessão de benefícios previdenciários, levando em conta que, a partir da publicação do Decreto nº 10.410/2020, os atendimentos presenciais se tornaram uma exceção. Não se discute aqui os evidentes benefícios que a tecnologia pode trazer à Administração Pública na prestação de serviços à população, principalmente tendo-se em vista o isolamento que a pandemia do COVID-19 impôs a todos. Todavia, o uso de ferramentas tecnológicas deve ser pensado em uma perspectiva que permita o efetivo acesso do cidadão a seus direitos. No caso dos benefícios previdenciários, que por sua natureza são concedidos a pessoas comumente hipossuficientes – inválidos e idosos –, a digitalização dos serviços do INSS deve ser ainda mais cautelosa no que diz respeito à exclusão digital, a fim de que esta não produza maiores impactos na exclusão social, por impedir o acesso a direitos básicos do cidadão.

32 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05.10.1988. Brasília, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituiçao>. Acesso em: 26 de agosto de 2021. 24

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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IBRAIM, Fábio Zambite. Curso de Direito Previdenciário. 25 ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2020. LAZZARI, João Batista; CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; KRAVCHYCHYN, Gisele Lemos e KRAVCHYCHYN, Jefferson Luis. Prática processual previdenciária: administrativa e judicial. 13 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. LAZZARI, João Batista e CASTRO, Carlos Alberto Pereira de. Manual de Direito Previdenciário. 24 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. LAZZARI, João Batista e CASTRO, Carlos Alberto Pereira de. Direito Previdenciário. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense; MÉTODO, 2021. LYON, David. The culture of surveillance: Watching as a way of life. John Wiley & Sons, 2018 (Introduction: Surveillance Culture Takes Shape, p. 9-34). UNCTAD. The COVID-19 Crisis: accentuating the need to bridge digital divides. Abril, 2020. POLIDO, Fabrício Bertini Pasquot. A rota oposta de uma agenda global digital inclusiva a partir do Direito e regulação: cismas de um projeto negligenciado no Brasil. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 122, jan./jun. 2021, pp. 269-322. ROVER, Aires José. O governo eletrônico e a inclusão digital: duas faces da mesma moeda chamada democracia. Inclusão digital e governo eletrônico. Zaragoza: Prensas Universitárias de Zaragoza, Lefis series, v. 3, p. 9-34, 2008. Disponível em: <http://egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/ lefis_artigo_ aires.pdf>. Acesso em: 18 de agosto de 2021. SERAU JÚNIOR, Marco Aurélio. Operação pente-fino e minirreforma previdência: Lei 13.846/2019. Porto Alegre: Paixão, 2019. SILVA, Helena et al. Inclusão digital e educação para a competência informacional: uma questão de ética e cidadania e cidadania. In: Ci. Inf, vol. 34, n. 1, 2005, p. 28-36. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ci/v34n1/ a04v34n1.pdf>. Acesso em: 18 de agosto de 2021. ZHENG, Yingqin; WALSHAM, Geoff. Inequality of what? An intersectional approach to digital inequality under Covid-19. Information and Organization, v. 31, n. 1, 100341, 2021.

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ENSAIO SOBRE O MITO DA UNIVERSALIDADE DE ACESSO E COBERTURA E DA SOLIDARIEDADE DA PREVIDENCIA SOCIAL BRASILEIRA. Heloísa Helena Silva Pancotti33 Luiz Geraldo do Carmo Gomes34 RESUMO O ensaio se propõe a discutir questões dogmáticas relacionadas ao direito previdenciário, sobretudo em sua principiologia. No âmbito do texto, propõe-se analisar como as estruturas de biopoder atuam recolhendo contribuições das classes sociais economicamente mais vulneráveis para sustentar os benefícios das classes mais abastadas. Para tanto será utilizada uma pesquisa realizada na cidade de São Paulo pela Rede Nossa São Paulo, que é realizada desde 2012 e traz dados sobre os 96 distritos da cidade de São Paulo, abordando indicadores de várias áreas da administração pública com base em dados oficiais publicados anualmente. Ao final, os indicadores serão contrapostos aos dados de renda, expectativa de vida, tomando por base o de melhores e piores índices para que se observe em quais distritos os indivíduos contribuem mais, por mais tempo e quais conseguem acesso e por quanto tempo aos benefícios, dividindo os indivíduos em razão da identidade de gênero. PALAVRAS-CHAVE Solidariedade, Universalidade, Direito Previdenciário, Vulnerabilidades. 33 Mestre- UNIVEM. Doutorado em andamento UENP- Universidade Estadual do Norte do Paraná. Diretora Científica do IEPREV- Instituto de Estudos Previdenciários. Parecerista da Revista Científica da DPU. Conselheira Editorial da Revista de Prática Previdenciária da Editora Paixão. Autora de Livros, Capítulos de Livros e Artigos Científicos. 34 Doutor em Função Social do Direito, Mestre em Ciências Jurídicas. Post-doctorarte training no programa de LLM in Laws da School of Law na University of Limerick. Visiting Lecturer da School of Law da University of Limerick (Irlanda). Foi pesquisador visitante do Dipartimento di Scienze Giuridiche da Università di Bologna (Itália) e do Dipartimento Giurisprudenza da Università degli Studi di Siena (Itália). Segundo vice presidente da comissão de assuntos acadêmicos do IBDFAM- Instituto Brasileiro de Direito de Família e membro do IDB- Instituto de Direito e Bioética. Autor de diversos artigos e capítulos de livros. 28

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1. INTRODUÇÃO O Direito Previdenciário é um direito social fundamental, tem status constitucional e consta de vários tratados internacionais de direitos humanos em que o Brasil figura como signatário, incorporando-se ao sistema legislativo nacional com status de norma constitucional à partir de 1.988 por força do exposto no artigo 5º § 2º da CRFB que dispõe que os direitos e garantias nela expressos não excluem outros direitos decorrentes dos tratados internacionais. É de suma importância na proteção de seus segurados e beneficiários em momentos de vicissitudes que possam impedir a manutenção do sustento e vincula de maneira obrigatória todos que percebem renda em razão de atividade laborativa. É cediço afirmar que incide sobre toda forma de renda obtida em razão da própria força do trabalho e tem natureza parafiscal. A maioria destes sistemas mescla inspirações no modelo alemão bismarquiano, que é mais primitivo, não universal e com menor rol protetivo e no modelo inglês, que visa a universalidade de atendimento, financiado por meio de impostos arrecadados de toda a sociedade.35 Quando as discussões acerca da reforma da previdência começaram a ganhar corpo na agenda política brasileira, trazia premissas discutíveis como a instabilidade financeira do sistema que 35

IBRAHIM, Fábio Zambite. 2020, p. 50.

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se dizia deficitário, muito embora não faltassem dados empíricos que revelassem o contrário36. Da mesma forma, o principal foco era o abandono total do modelo beveridgeano solidário, para a adoção do modelo capitalizado bismarquiano e com coberturas limitadas. Esta foi a principal pedra de toque do plano reformista e o ponto em que não houve possibilidade de aprovação. Contudo, muito embora a solidariedade e a universalidade de cobertura e atendimento sejam princípios basilares que sustentam nosso sistema de previdência social, ao menos na teoria, se analisado pela perspectiva foucaultiana, é possível perceber que se trata de um modelo que perpetua as desigualdades sociais e de gênero, é mais eficiente quanto mais alta a classe dos segurados e é incapaz de oferecer proteção à toda sociedade, desconectando-se dos princípios aos quais deveria se ancorar. No primeiro capítulo, analisaremos os princípios da universalidade de cobertura e atendimento e da solidariedade ante os marcadores sociais revelados pelo Mapa da Desigualdade produzido na cidade de São Paulo, maior cidade do país, que oferece um microcosmos de amostragem suficiente para reproduzir formas de atuação em todo território nacional, em razão da diversidade de gênero, etnia e sócio econômica presentes. No segundo capítulo, serão contrapostas as regras de acesso aos benefícios pós reforma, que vinculam 36

MÜLLER, Piatã. 2016. 29


idade, tempo contributivo, capacidade de recolhimento em valores e em prazo suficientes, fidelidade contributiva, aos marcadores de renda, gênero, raça e distrito da cidade, o que oferecerá um panorama acerca da possibilidade de acesso aos benefícios e tempo de fruição. No terceiro capítulo, passaremos a abordar os resultados obtidos no primeiro e segundo capítulo aos dados de expectativa de vida, empregabilidade e adequação legal das pessoas trans- assim consideradas as pessoas transexuais e travestis- bem como à população intersexo. Ao final, pretende-se comprovar que a estruturação do modelo de seguridade social não é capaz de atender à sua finalidade de proteção ante a vulnerabilidade social ocasionada pela perda da renda e capacidade de prover o próprio sustento, assim como tem sido transformada, por meio das reformas legislativas, de maneira a servir como eficiente arrecadador das fontes de custeio nas camadas mais vulneráveis que, contudo, tem menores chances de acessar os benefícios e quando o fazem, se dá por tempo menor.

2. O MITO DA SOLIDARIEDADE E DA UNIVERSALIDADE DE COBERTURA E ATENDIMENTO O primeiro princípio que se tem contato ao dedicar-se ao estudo do direito previdenciário é o da solidariedade.

Previsto no artigo 3º, I da CFRB, deveria refletir os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil que prevê a construção de uma sociedade livre justa e solidária, comprometida com a erradicação da pobreza, marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais, assim como a promoção do bem de todos sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Para tanto, delineou-se que o sistema de seguridade social do qual a previdência social faz parte, seria financiado por meio de uma ampla e diversificada fonte de custeio, que dentre outras rubricas, arrecadaria contribuições sociais, escalonadas de forma diferentes de acordo com a espécie de segurados e as faixas distintas de contribuição. Com isso, acreditava-se buscar uma equidade na forma de participação e custeio. Contudo as faixas progressivas somente são aplicáveis aos trabalhadores formais, domésticos e avulsos (aqueles que geralmente trabalham mediante a intermediação de entidades sindicais ou órgãos gestores de mão de obra). 37 Num cenário de amplo desemprego, os informais (que podem ser enquadrados como contribuintes individuais e os facultativos (que não exercem atividade remunerada) se sujeitam ainda às regras antigas de tributação que preveem alíquotas fixas de 20% para o plano completo, 11% ´para o plano simplificado e 5% para o facultativo de baixa renda.38 37

Lei 8.212/91, artigo 20.

38 Lei 8.212/91, artigo 21. 30

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Sobre o plano relativo aos facultativos de baixa renda, é importante salientar que a necessidade de validação das contribuições periodicamente, burocratiza e inviabiliza o acesso aos benefícios, criando um limbo protetivo e consequente judicialização de demandas, já que as regras para pagamento de contribuições em atraso trazidas na EC 103/2019, ai incluídas as relativas ao desenquadramento do contribuinte na condição de baixa renda. Uma outra observação é de suma importância para que se compreenda como a solidariedade atua de forma perversa quanto mais vulnerável o segurado, é que os benefícios previdenciários somente são acessíveis ao rol de segurados e seus dependentes. Quanto menor a renda e maior a informalidade do trabalho desempenhado, menores as chances de manter-se segurado dado que no desenho legislativo atual, com o advento do Decreto nº 10.410/20 que alterou substancialmente o Decreto n º 3.048/99 (Regulamento da Previdência Social), somente são consideradas as contribuições realizadas pontualmente e em valor suficiente para fins de manutenção da qualidade de segurado. Da mesma forma, o beneficiário do auxílio acidente não mais mantém a qualidade de segurado em razão da percepção deste benefício, que é devido em caso de perda parcial da capacidade laborativa, sendo pago até o momento da aposentadoria. Ocorre que o benefício Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

tem valor reduzido, caráter indenizatório, não sendo suficiente para subsistência. Convém aqui fazer um aparte, dada a interdisciplinaridade proposta neste ensaio, salientar que verbas que possuem natureza indenizatória não são tributáveis, contudo, o legislador previdenciário notabilizou-se por colocar o segurado diante de uma escolha diabólica: ou contribui em razão da renda oriunda deste benefício, ou aceita a perda da qualidade de segurado, que o tornará inapto à percepção dos demais benefícios previdenciários. É possível perceber, pensando numa sociedade estratificada por renda, que quanto maior a estabilidade, renda e longevidade, mais apto está o segurado a fruir dos benefícios previdenciários e com maior tempo de gozo. Contrário senso, quanto menor a estabilidade empregatícia, a informalidade e a renda, menores são as chances de acesso ao rol de benefícios. Como tudo que envolve o Brasil, dadas as peculiaridades advindas da imensa desigualdade social e heterogeneidade da distribuição de renda, há um complicador de suma importância, nesta correlação contributiva. Desde que se instalou a instabilidade democrática nos idos de 2015/2016, a normatização das relações de trabalho sofreu imensa flexibilização e com a instabilidade econômica e muitos trabalhadores migraram do trabalho celetista ou regulado, para o trabalho precário ou uberizado. 31


Além dos trabalhos para aplicativos, os trabalhadores intermitentes, herança maldita da Reforma Trabalhista, passaram a pertencer à classe dos que, apesar de pertencer a uma categoria de trabalhador formal, percebe intervalos que podem durar até meses em sua jornada de trabalho. Deveria ser utilizada somente por empresas que exercem atividades sazonais, contudo, disseminou-se pelo país.

é 56 vezes maior, A violência racial é 57 vezes maior, a taxa de homicídio de jovens é 24 vezes maior, a idade média ao morrer é absurdamente desigual (80,9 anos no Alto de Pinheiros e 58,3 anos em Cidade Tiradentes).39

Quatro anos após a Reforma Trabalhista, o emprego informal aumentou, assim como o desemprego e os índices de trabalho formal continuam a despencar.

No próximo capítulo, observaremos de que forma, essas diferenças abissais vão impactar a cobertura previdenciária dos segurados.

Houve a desmobilização dos sindicatos pelo sufocamento de seus recursos e a economia nacional se debela, em razão do desparecimento da circulação do dinheiro.

3. IMPACTOS DA DESIGUALDADE NA COBERTURA PREVIDENCIÁRIA.

O Mapa da Desigualdade reflete esse cenário e é possível alcançar essa dinâmica pela verificação dos dados colhidos ano a ano. A população mais vulnerável vive em bairros mais densamente populados, de maioria feminina, preta ou parda, com menos oferta de emprego formal à população economicamente ativa (290 vezes menor que a média paulista), recebendo remunerações 3,8 vezes menor que a média paulista (R$ 7.620,00 em São Domingos e R$ 1.990,00 em Cidade Líder). O acesso ao transporte em massa é 194 vezes menor, o acesso à internet móvel e 2.513 vezes, as ocorrências de violência contra a mulher são 15 vezes maiores, contra a população LGBTQIAP+

Os casos de gravidez na adolescência são 60 vezes maiores em Marsilac com relação a Moema, bairro onde há a menor incidência de casos.40

Em primeiro lugar, para fins didáticos e metodológicos, cumpre esclarecer que no âmbito deste ensaio, apenas trataremos das regras transitórias relacionadas à Reforma da Previdência, posto que a menção a regras de transição, que são várias, levaria à superação dos limites de espaço do trabalho. Adolescentes grávidas não possuem proteção previdenciária, por decorrência não perceberão auxílio maternidade, a menos que contribuam na condição de facultativo, o que é impensável para a população de baixa renda. Da mesma forma, as chances de que esteja exercendo atividade remunerada ou possua emprego são remotas. 39

Rede Nossa São Paulo (2021).

40 Ibidem. 32

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Isso não vem a ser um grande problema para as adolescentes residentes em Moema, bairro de classe alta, já que a renda familiar é capaz de suprir a proteção estatal. Para a população vulnerável, uma nova adição ao grupo familiar pode significar fome. Não há previsão de qualquer auxílio assistencial (modalidade universal e acessível aos não contribuintes) de benefício de proteção à gestante ou ao nascituro com rendimentos condizentes com os do salário maternidade, que ofereça proteção equiparada. Um outro ponto importante, é que a EC 103/20019 adotou uma nova sistemática para os benefícios programáveis. Passou a exigir idade mínima para os benefícios de tempo de contribuição, o que obriga o segurado a permanecer um tempo maior vertendo contribuições. Além de instituir a idade mínima, passou também a determinar percentuais mínimos incidentes no Salário de Benefício de 60% cumprida a carência da aposentadoria por idade, com possibilidade de acréscimo de 2% para cada ano de contribuição excedentes à carência. As idades mínimas foram fixadas em 62 anos para a mulher e 65 para o homem. Cabe aqui tecer algumas correlações entre os indicadores do mapa da desigualdade e a nova redação constitucional dos benefícios programáveis da previdência social. Na região periférica (Anhanguera, Iguatemi) a oferta de emprego formal é

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290 vezes menor, o que significa dizer que os residentes na periferia possuem maior chance de desemprego o de exercer atividades informais, que são complicadores à manutenção da fidelidade contributiva ao sistema previdenciário. Com a intermitência contributiva, as chances de atingir a carência necessária para a aposentadoria programável (15 anos para a mulher e 20 anos para o homem) é menor. Exceder esse tempo contributivo, o que garantiria melhor renda mensal inicial de benefício, é uma tarefa ainda mais árdua. Retomando o raciocínio, se a menor renda se concentra na região periférica, assim como o emprego informal, a população periférica contribui mais, pois não tem acesso às escalas contributivas progressivas. Contribuem em percentuais que são aplicados de forma indistinta tanto ao piso quanto ao teto contributivo. Seria redundante apontar que o impacto financeiro desta contribuição em uma família de baixa renda é superior ao impacto em uma família de alta renda, sobretudo no RGPS com o teto contributivo. É cediço dizer que a incidência da contribuição previdenciária nas menores rendas dos trabalhadores informais incide sobre a totalidade, enquanto para os trabalhadores com remunerações acima do teto, apenas parcialmente. Assim, evidencia-se ainda mais a forma como o desenho do sistema contributivo previdenciário é mais cruel quanto maior a vulnerabilidade. 33


Se tomarmos como exemplo a incidência de casos de violência contra a mulher, ante os índices 42 vezes maior em Guaianazes, com relação ao Alto de Pinheiros, antevemos que a mulher que tiver maior dificuldade em se manter segurada ao regime de previdência social, terá menores chances de percepção de beneficio por incapacidade temporária decorrente das lesões resultantes de violência. Novamente, todas as mulheres trabalhadoras formais ou informais devem obrigatoriamente contribuir ao sistema previdenciário, contudo, as condições sócio econômicas exercem importante força excludente para as classes mais baixas e vulneráveis da população economicamente ativa. O mesmo raciocínio é aplicável à população LGBTQIAP+ e à população preta e parda. A contraposição dos indicadores demográficos, econômicos e sociais das populações pertencentes às classes altas e baixas, escancara que nem mesmo a Previdência Social escapa à lógica do biopoder, que assegura que as classes vulneráveis permaneçam à margem da sociedade, sem acesso à mesma proteção que os demais membros da sociedade, reforçando os processos excludentes, numa lógica absolutamente paradoxal à finalidade constitucional de assegurar a proteção face às vicissitudes, diminuir a pobreza e fomentar o desenvolvimento social. Na análise dos benefícios programáveis, encontramos a maior lacuna protetiva na aposentadoria por idade. 34

A diferença da idade ao morrer de um morador do distrito de Alto de Pinheiros é 80,9 e de cidade Tiradentes é e 58,3. Levando-se em consideração a confluência de todos os índices já analisados, o segurado do Alto de Pinheiros homem, terá vertido um número maior de contribuição e em valores maiores, dada a estabilidade financeira decorrente da menor dificuldade em obter renda formal. Permanecerá por mais tendo recebendo as parcelas previdenciárias, enquanto que o segurado de Cidade Tiradentes, se conseguir atingir a carência necessária para acesso ao beneficio de aposentadoria por idade, não atingirá a idade. As contribuições arrecadadas daqueles que não conseguiram reunir as condições necessárias para fruir dos benefícios previdenciários não são passíveis de devolução, integram o fundo que sustenta todo o sistema. E isso não é tudo. A pandemia do COVID-19 revelou uma lógica terrível a que muitos não tinham se dado conta. Muitas pessoas em seu passado gozaram de maior facilidade em verter contribuições ao sistema, mas foram solapadas pela crise democrática e econômica vivenciada pelo país, enquanto a flexibilização das relações de trabalho era vendida como solução mágica a uma nação desigual. Muitos contribuintes que não são mais segurados da previdência social possuem um passado contribuído com bastante regularidade, com contribuições superiores às exigidas para acender

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aos benefícios programáveis, contudo não tiveram a chance de readquirir a qualidade de segurado, morreram jovens e seus dependentes foram abandonados à própria sorte. O fundo de previdência social foi abastecido com as contribuições que não geraram qualquer contraprestação.

4. MARGENS DA EXCLUSÃO PREVIDENCIÁRIA: A VIDA PRECÁRIA DA TRANSGENERIDADE. Um grupo social merece um capítulo à parte porque não pode ser sequer objeto de estudos confiáveis, posto que o Estado brasileiro não reconhece a sua existência. São os transgêneros. Buscando aqui delimitar o objeto de estudo para a população composta pelas mulheres transexuais e as travestis, que possuem no Brasil a expectativa de vida de 35 anos41. Isso ocorre devido aos processos de exclusão que se iniciam ainda no seio da família42, que teme e resiste em aceitar essa identidade de gênero que escapa dos padrões hegemônicos hetero e cisnormativo. O tensionamento nas relações familiares, via de regra expulsa a pessoa trans da proteção do seio familiar e coloca na indigência. Nesta posição, é comum que não 41

BORTONI, Larissa. (2017).

42

GOMES, Luiz Geraldo do Carmo. (2019, p. 32).

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tenham condições de dar continuidade aos estudos ou de disputar vagas de empregos formais. Um grande número sobrevive em decorrência da prostituição e nesta toada, expostos a maior violência física, mental, risco biológico e de encarceramento, o que acaba por diminuir severamente sua expectativa de vida. Existe um imenso debate acerca dos dados relativos a expectativa de vida, sobretudo por parte do atual governo federal de natureza conservadora, contudo, não há qualquer intenção da inclusão nos formulários do próximo recenseamento público de campos capazes de identificar e quantificar a população trans brasileira. Os dados concernentes à expectativa de vida da população trans tem sido obtidos por meio de levantamentos de organizações independentes, como a ANTRA- Associação Nacional dos Transgêneros, ou a TransRespect que procuram traçar o mapa da violência que assola o grupo social em questão.43 Este fato dificulta o desenho de políticas públicas que visem combater os processos excludentes e identificar possíveis benefícios assistenciais direcionados ao grupo social em específico. Do ponto de vista prático, tomandose por base que os dados etários refletem a realidade, até porque inexistem outros que possam ser objetos de estudo, os benefícios programáveis somente são acessíveis aos poucos indivíduos capazes de vencer a barreira da dificuldade para a 43 TURATTI JUNIOR. (2018, p.101). 35


empregabilidade formal e superação da expectativa de vida ao morrer.

explorado pelo mercado, atua também na previdência social.

É uma tarefa hercúlea para este grupo social manter-se ativo contributivamente ao regime de previdência social dadas as particularidades que envolvem a forma com que obtém renda. No Brasil não há regulamentação da atividade de prostituição.

Muito embora tenha sobrevivido à conversão total do sistema à lógica da capitalização, o endurecimento das regras de acesso, recrudescimento das fórmulas de cálculo servem à máquina que produz desigualdade social.

Outra dificuldade intransponível é, superada a dificuldade contributiva, atingir os 62 anos se mulher e 65 se homem. Novamente o sistema previdenciário evidencia como a população mais vulnerável está fora do tecido protetivo. É inegável perceber que, inobstante sua finalidade de amparar face às contingências sociais, o sistema de previdência social seja ausente naquilo que diz respeito à população mais vulnerável. 5. CONCLUSÃO A interpretação crítica do direito permite perceber as falhas na construção das políticas públicas. Nosso sistema previdenciário que parecia escapar à lógica perversa que mantem os índices de desigualdade e subalterniza e invisibiliza os sujeitos, na verdade alimenta essas forças.

Ocorre que o impacto da flexibilização e da austeridade incide com muito mais força, quanto maior o grau de vulnerabilidade social. É preciso repensar o modelo à partir de uma nova ótica. A da vulnerabilidade social. Quanto maior o nível de vulnerabilidade, mais facilitada a regra de acesso, seja por intermédio da diminuição dos patamares e tempo contribuído, seja pelo estabelecimento de regras de cálculo mais favoráveis. A apuração de regras baseadas em médias costuma favorecer mais quem está no topo, ao custo de excluir os da base. Essa máxima é a antítese da prática da promoção da justiça social, da construção de uma nação solidária, comprometida com a erradicação da pobreza e da eliminação de toda forma de pobreza e de preconceito.

Isso não é de se estranhar, posto que o modelo neoliberal, que vem regendo as reformas que pretendem minimizar a atuação do Estado na proteção social para que a parte correspondente a tais políticas no orçamento da União possa ser

36

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BORTONI, Larissa. Expectativa de vida de transexuais é de 35 anos , metade da média nacional. 20 jun. 2017. Disponível em https://www12.senado.leg. br/noticias/especiais/especial-cidadania/expectativa-de-vida-de-transexuaise-de-35-anos-metade-da-media-nacional. Acesso em 26 nov. 2021. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1.988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/constituicao.htm . Acesso em 25 nov. 2021. BRASIL. Decreto 10.410 de 30 de junho de 2020. Altera o Regulamento da Previdência Social, aprovado pelo Decreto 3.048/99. Disponível em http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10410. htm . Acesso em 26 nov. 2021. BRASIL. Emenda Constitucional 103 de 12 de novembro e 2019. Altera o Sistema de Previdência Social e estabelece regras de transição e disposições transitórias. BRASIL, Lei nº 8.212/1991. Dispõe sobre a organização da Seguridade Social, institui Plano de Custeio, dá outras providências. Disponível em http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8212compilado.htm . Acesso e 26 nov 2021. GOMES, Luiz Geraldo do Carmo. Famílias no Armário. Parentalidades e sexualidades divergentes. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2019. IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 25ªed. Revista e Atualizada. Niterói: Editora Ímpetus, 2020. MÜLLER PIATÃ. O mito do déficit da previdência: a fatia que faltava para o mercado financeiro. In: Auditoria Cidadã da Dívida, 31 mai. 2016. Disponível em https://auditoriacidada.org.br/conteudo/o-mito-do-deficit-da-previdenciafatia-que-faltava-para-o-mercado-financeiro/ . Acesso em 25 nov. 2021. PANCOTTI, Heloísa Helena Silva. Previdência Social e Transgêneros. Proteção previdenciária, benefícios assistenciais e atendimento à saúde para os transexuais e travestis. 2ª ed. Curitiba: Juruá, 2020. REDE NOSSA SÃO PAULO. Mapa da Desigualdade 2021. Disponível em https://www.nossasaopaulo.org.br/2021/10/21/mapa-da-desigualdade2021-e-lancado/ . Acesso em 26 nov. 2021. TURATTI JUNIOR, Marco Antônio. O reconhecimento jurídico-social da identidade LGBTI+. Curitiba: Appis Editora, 2018.

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NOVA PREVIDÊNCIA E O ESVAZIAMENTO DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE Marco Aurélio Serau Junior44

RESUMO O estabelecimento da “Nova” Previdência pela Emenda Constitucional 103/2019 redundou na pretensão de refundação do Sistema de Seguridade Social, em particular do ramo previdenciário. Inclusive, é bastante palpável a percepção de que foi suprimida a adjetivação de “social” que há décadas acompanha os contornos da instituição de Previdência. Por isso, neste artigo procuramos abordar um aspecto específico da construção do novo modelo de Previdência advindo da Emenda Constitucional 103/2019, no qual fica evidente o esvaziamento da garantia de legalidade e, por consequência, a própria minoração da ideia dos direitos previdenciários enquanto direitos fundamentais. PALAVRAS-CHAVE Direito. Previdência. Reforma. Legalidade.

44 Professor da UFPR – Universidade Federal do Paraná, nas áreas de Direito do Trabalho e Previdenciário, na graduação e no Mestrado. Doutor e Metre em D. Humanos (USP). Diretor Científico do IEPREV – Instituto de Estudos Previdenciários. Consultor. Autor e coordenador de diversas obras jurídicas. Advogado. Consultor. 38

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1.INTRODUÇÃO Em 13/11/2019 foi promulgada a Emenda Constitucional 103, que trouxe a assim chamada Nova Previdência. A Filosofia, a Linguística e a Ciência Política (muito mais do que o Direito) conferem importância e valor às expressões e palavras utilizadas na Política ou no cenário político. Assim, ao se buscar criar e estabelecer uma “Nova” Previdência, percebe-se que a perspectiva da Reforma Previdenciária redundou na pretensão de refundação do Sistema de Seguridade Social, em particular do ramo previdenciário. Inclusive, é bastante palpável a percepção de que foi suprimida a adjetivação de “social” que há décadas acompanha os contornos da instituição de Previdência. De toda sorte, a simples existência de uma “Nova Previdência” impõe que esta seja objeto de reflexão e estudos por parte de todos aqueles e aquelas que se dedicam ao estudo do Direito Previdenciário. Neste artigo procuramos abordar um aspecto específico da construção do novo modelo de Previdência advindo da Emenda Constitucional 103/2019, no qual fica evidente o esvaziamento da garantia de legalidade e, por consequência, a própria minoração da ideia dos direitos previdenciários enquanto direitos fundamentais45. 45 Consoante matriz teórica que desenvolvo de longa data: SERAU JUNIOR, Marco Aurélio. Seguridade social e direitos fundamentais. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2020. Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

Este ponto é observado tanto em relação ao RGPS como quanto ao RPPS: em ambos estes segmentos previdenciários é palpável o nítido esvaziamento do princípio da legalidade. A metodologia utilizada para a elaboração deste artigo é eminentemente analítico-bibliográfica, consistindo em exame da normatividade previdenciária, bem como da literatura que lhe é correspondente. 2. O CENÁRIO NORMATIVO OBSERVADO APÓS A CRIAÇÃO DA NOVA PREVIDÊNCIA Para que possamos compreender como a Nova Previdência se constrói a partir de uma ideia de esvaziamento do princípio da legalidade é necessário, metodologicamente, examinar em um passo anterior qual o cenário normativo que adveio da promulgação da Emenda Constitucional 103/2019. As mudanças paradigmáticas impostas pela Emenda Constitucional 103/2019 faziam vislumbrar, para um horizonte próximo à sua promulgação, uma intensa produção legislativa, de sorte a adequar, dentre outras, as leis 8.212/1 e 8.213/91 às novas perspectivas trazidas pela Reforma Previdenciária. Porém, isso não se concretizou, devido a alguns fatores bem marcantes. Um fator importante reside no advento da crise sanitária internacional, logo no princípio de 2020, justo poucos meses após a promulgação da Emenda Constitucional 103/2019. 39


Esse aspecto, de relevância inegável, drenou muito das forças sociais, econômicas e políticas, e direcionou a quase totalidade dos esforços da coletividade, inclusive a produção normativa, para atender as demandas sociais urgentes advindas da pandemia de COVID-19. Nesse sentido, daí por diante a ênfase e a prioridade normativa foi a criação, através de Leis ou Medidas Provisórias, de intensa e profícua legislação emergencial, de que a criação do benefício do auxílio emergencial46 pela Lei 13.982/2020 (continuado pelas Medidas Provisórias 1.000/2020 e 1.039/2021) parece ser o maior exemplo. Outro fator relevante de não se ter observado uma significativa produção legislativa que tenha levado a cabo a concretização da Nova Previdência reside no fato de que a própria Emenda Constitucional 103/2019 trouxe diversas regras transitórias, uma espécie de tecnologia jurídica utilizada para dar conta de inúmeras adaptações do modelo previdenciário anterior para o modelo previdenciário atual47.

46 Embora o auxílio emergencial não se trate de tema previdenciário, compõe a macroestrutura da Seguridade Social, por se tratar-se de benefício de natureza jurídica assistencial: SERAU JR., Marco Aurélio. Auxílio Emergencial. Belo Horizonte: Editora IEPREV, 2021. 47 Tenho defendido que a Emenda Constitucional 103/2019 estrutura-se a partir de um complexo eixo estrutural, dotado de novas regras permanentes, às quais se somam regras de transição (esperadas e necessárias diante de tamanha mudança paradigmática imposta ao sistema previdenciário) e regras transitórias, responsáveis pelo enlace e trânsito do modelo previdenciário anterior ao modelo futuro: SERAU JUNIOR, Marco Aurélio. Seguridade social e direitos fundamentais. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2020. 40

Um exemplo bastante claro da estratégia de utilização das regras transitórias, dentre tantos outros que poderiam ser elencados, reside no artigo 27, da própria Emenda Constitucional 103/2019: Art. 27. Até que lei discipline o acesso ao salário-família e ao auxílioreclusão de que trata o inciso IV do art. 201 da Constituição Federal, esses benefícios serão concedidos apenas àqueles que tenham renda bruta mensal igual ou inferior a R$ 1.364,43 (mil, trezentos e sessenta e quatro reais e quarenta e três centavos), que serão corrigidos pelos mesmos índices aplicados aos benefícios do Regime Geral de Previdência Social. § 1º Até que lei discipline o valor do auxílio-reclusão, de que trata o inciso IV do art. 201 da Constituição Federal, seu cálculo será realizado na forma daquele aplicável à pensão por morte, não podendo exceder o valor de 1 (um) salário-mínimo. § 2º Até que lei discipline o valor do salário-família, de que trata o inciso IV do art. 201 da Constituição Federal, seu valor será de R$ 46,54 (quarenta e seis reais e cinquenta e quatro centavos). A explicação disso provavelmente se encontra na Ciência Política, sendo fácil perceber que o receio de variáveis político-eleitorais modificarem os rumos da Nova Previdência fez com que se 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


optasse, politicamente, por já inserir, no próprio corpo da Emenda Constitucional 103/2019, inúmeras questiúnculas que não possuem estofo constitucional e cabem, com muito maior propriedade, na hierarquia normativa infraconstitucional. Esse fenômeno é o que denominamos de neoconstitucionalismo às avessas ou constitucionalização invertida das normas de Previdência Social48. Outro fenômeno normativo que pode ser observado em relação à escassez normativa pós-Nova Previdência consiste no que batizei de portarização do Direito Previdenciário49, um eufemismo leve e evidentemente irônico para indicar que tem sido utilizada excessivamente a faculdade regulamentar para o tratamento jurídico dos temas previdenciários, possivelmente extrapolando em alguns casos o conteúdo do art. 84, IV, da Constituição Federal, que limita o poder regulamentar ao mero papel de viabilizar o cumprimento e a execução das leis – nunca permitindo que se transformem o Regulamento, as Portarias, as Instruções Normativas e quejandos em leis autônomas que inovam o ordenamento jurídico. O ápice desse fenômeno de portarização do Direito Previdenciário consiste na edição do Ofício Circular

450/2019 e do Decreto 10.410/202050, que auto declaradamente buscaram “regulamentar a Emenda Constitucional 103/2019”, pulando o espaço natural que seria reservado à lei em sentido estrito. Mas, tal qual indicado que seria o objeto de estudo deste artigo, o fenômeno do esvaziamento do princípio da legalidade parece ser a tônica característica da construção infraconstitucional da chamada Nova Previdência. Os exemplos são inúmeros e reiterados, os quais passaremos a indicar e pontuar nos tópicos seguintes. 3. A PRETENSÃO NORMATIVA DAS INTERPRETAÇÕES ADMINISTRATIVAS DA LEGISLAÇÃO PREVIDENCIÁRIA: COMUNICADO DIVBEN 2/2021 E PORTARIA 1.382/2021 – RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS EM ATRASO Algumas situações que fazem parte da construção da Nova Previdência evidenciam uma pretensão de dar às hipóteses de interpretação administrativa da legislação previdenciária verdadeiro caráter normativo, em franca (e inconstitucional) substituição à lei.

48 SERAU JUNIOR, Marco Aurélio. Seguridade social e direitos fundamentais. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2020.

Obviamente a interpretação dada pela Administração Pública possui um papel relevante e, em certa medida, vinculante a seus servidores. Mas a exegese praticada pela repartição pública

49 SERAU JUNIOR, Marco Aurélio. A Portarização do Direito Previdenciário. Gen Jurídico: Acessível em: http://genjuridico.com.br/2020/05/15/portarizacao-dodireito-previdenciario/ .

50 SERAU JUNIOR, Marco Aurélio (coord.). Comentários ao Novo Regulamento da Previdência Social. Belo Horizonte: Editora IEPREV, 2021a.

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nunca poderá sobrepujar o limite do poder regulamentar, nunca poderá ocupar o espaço destinado primacialmente à lei em sentido estrito. Quanto a isso podemos avaliar a Portaria INSS nº 1.382, de 19/11/2021, que tem como escopo regulamentar os efeitos do recolhimento das contribuições previdenciárias em atraso, especialmente para

as

individual

categorias e

de

contribuinte

segurado

especial

que

recolhem facultativamente. Compreendemos que a publicação dessa Portaria foi uma tentativa de dar maior grau

de

“legalidade”

ao

conteúdo que já existia no famigerado Comunicado DIVBEN 2/2021, sobretudo porque há notícia de diversas decisões judiciais

apontando

inconstitucionalidade

a

ilegalidade daquele

e ato

normativo infralegal. Ainda que a utilização da forma de jurídica de “Portaria” possa dar maior grau de juridicidade ao conteúdo pretendido pela autarquia previdenciária – limitar os efeitos jurídicos do recolhimento de contribuições previdenciárias em atraso – certo é que esse objetivo não é alcançado, pois a Portaria em tela extrapola o poder regulamentar que é atribuído ao Poder Executivo, conforme o art. 84, inciso IV, da Constituição da República. Especificamente

em

relação

à

questão tributária envolvida neste tema, temos que o art. 97, inciso V, do Código 42

Tributário Nacional, dispõe que somente a lei poderá estabelecer cominação de penalidades para ações ou omissões do contribuinte: Art. 97. Somente estabelecer:

a

lei

pode

V - a cominação de penalidades para as ações ou omissões contrárias a seus dispositivos, ou para outras infrações nela definidas; A Portaria 1382/2021 obviamente exacerba também este aspecto do Direito Tributário nacional. De outra parte, há que se fazer a distinção necessária entre obrigação tributária e crédito tributário. A obrigação tributária nasce com a ocorrência do fato gerador (a prestação da atividade laborativa pelo segurado contribuinte individual), conforme os artigos 113, § 1º, e 116, inciso I, ambos do CTN. O crédito tributário, que corresponde ao montante que deve ser pago pelo contribuinte, é elemento diverso da obrigação tributária (embora dela decorrente), e pode ser adimplido em momento diverso, conforme compreensão dos artigos 139 e 140 do CNT. Além disso, a Portaria 1.382/2021 acaba propiciando uma espécie de interpretação retroativa sobre a legislação tributária que é retroativa, o que é vedado pelos artigos 144 e 146, do Código Tributário Nacional (além do art. 23 da LINDB, c.c. art. 2º, inciso XIII, da Lei 9.784/1999): 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


Art. 144. O lançamento reporta-se à data da ocorrência do fato gerador da obrigação e rege-se pela lei então vigente, ainda que posteriormente modificada ou revogada. Art. 146. A modificação introduzida, de ofício ou em conseqüência de decisão administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução. A retroatividade da interpretação administrativa posterior (e prejudicial ao segurado/contribuinte) ocorre aqui de modo sutil, a partir da modificação do entendimento sobre os efeitos jurídicos do recolhimento das contribuições previdenciárias recolhidas posteriormente ao fato gerador. A Portaria 1382/2021, ao limitar os efeitos jurídicos da contribuição previdenciária recolhida em atraso, contraria, portanto, uma série de dispositivos legais e constitucionais. Por outro lado, também é importante registrar que qualquer conduta dos segurados no sentido de regularizar sua situação previdenciária (contributiva) tem total consonância com o princípio do equilíbrio financeiro e atuarial, previsto no art. 201, caput, do Texto Constitucional.

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Por fim, pode-se apontar que a Portaria INSS 1382/2021 também viola o princípio de vedação de tributo com efeito de confisco, tratado no art. 150, inciso IV, da Constituição da República. Esse ato normativo infralegal cria uma situação em que ocorre o recolhimento de contribuições previdenciárias por parte do segurado, ajustando sua situação contributiva, e disso não decorre praticamente nenhum efeito jurídicoprevidenciário relevante, pois a Portaria visa coibir o aproveitamento dessas contribuições para efeito de carência, obstando também o acesso às regras de transição estabelecidas na Emenda Constitucional 103/2019 assim como a eventual configuração do direito adquirido. 4. A TESE DA CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA ÚNICA E SUA “ANULAÇÃO” ATRAVÉS DE NOTA TÉCNICA DA AUTARQUIA Outro ponto onde resta nítido o esvaziamento do princípio da legalidade reside no tratamento dado pelo INSS à tese da contribuição previdenciária única, a qual possibilita um ganho efetivo no cálculo da RMI dos aposentados, e acabou por ser objeto de evidentemente ilegal Nota Técnica por parte da autarquia previdenciária. Com efeito, repercutiu muito negativamente entre a Advocacia Previdenciária o teor da Nota Técnica 43


7/2021-Pres-INSS, referente às medidas que deveriam ser adotadas no âmbito da autarquia previdenciária contra a, assim conhecida, tese da contribuição única. Apesar de ainda não haver notícia sobre a adoção formal da referida Nota Técnica pela Presidência do INSS, seu conteúdo pode e deve ser discutido dentro de uma perspectiva técnico-científica. Sem entrar no mérito da controvérsia acerca da tese da contribuição única, alguns apontamentos de cunho estritamente técnico-jurídico devem ser apresentados para elucidar esse debate, colocando-o em bases mais adequadas. O primeiro ponto a ser indicado reside no fato de que a tese da contribuição única não configura abuso de direito, aventura jurídica, ilegalidade ou oportunismo, como quer transmitir a mencionada Nota Técnica. Trata-se de uma interpretação plenamente possível, deduzida a partir do art. 26, § 6º, da Reforma Previdenciária (Emenda Constitucional 103/2019). Caso essa interpretação seja considerada contrária à perspectiva do equilíbrio financeiro e atuarial (art. 201, caput, da Constituição Federal), bem como à regra da contrapartida (art. 195, § 5º, também da Constituição Federal), é possível, e até mesmo adequado, que seja suprimida do ordenamento jurídico. Todavia, para que isso se dê, é necessário que seja respeitado o processo legislativo e o Estado Democrático de Direito, o qual exige a publicação de lei ou,

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ao menos, edição de Medida Provisória, que venha a alterar a atual sistemática de cálculo dos benefícios previdenciários. Uma simples sugestão de interpretação administrativa da legislação previdenciária não possui o condão de alterar e muito menos diminuir os direitos previdenciários dos segurados, por expressa violação aos estreitos limites do poder regulamentar (art. 84, IV, da Constituição Federal). Há aqui, manifesta inconstitucionalidade, também por afronta ao princípio da legalidade (art. 37, caput, da Constituição Federal), que norteia a atuação da Administração Pública. Outro ponto polêmico constante da mencionada Nota Técnica 7/2021 reside na sugestão para suspensão dos processos administrativos de concessão de aposentadorias em que possa constar a tese da contribuição única, medida que não encontra respaldo legal e constitucional, diante do princípio da eficiência da Administração Pública (art. 37, caput, da Constituição Federal) bem como do princípio da impulsão oficial dos processos administrativos (art. 2º, inciso XII, da Lei 9.784/1999). Ademais, não se encontra na Lei 9.784/1999 – Processo Administrativo Federal – qualquer dispositivo que justifique a suspensão cautelar desse tipo de processo administrativo. Os requerimentos administrativos de benefícios previdenciários possuem prazos específicos previstos em lei, os quais devem ser cumpridos nos termos 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


do art. 41-A, § 5º, da Lei 8.213/1991, com as peculiaridades que foram adicionadas a partir do acordo firmado entre Ministério Público Federal e INSS, homologado pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito do Tema 1066 da repercussão geral. Vale sublinhar a necessidade de cumprimento dos prazos legais para análise dos requerimentos administrativos, pois somente com a negativa da concessão (ou, em determinadas condições, a demora indevida na conclusão do processo administrativo) é possível o ingresso na via judiciária, nos termos da jurisprudência consolidada do STF (RE 631.240).

5. AFRONTA AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE EM RELAÇÃO AOS REGIMES PRÓPRIOS DE PREVIDÊNCIA Também em relação aos regimes próprios de previdência social, destinados aos servidores públicos, observa-se a perspectiva de esvaziamento da ideia de reserva de lei na estruturação da Nova Previdência. Tome-se como exemplo o Decreto 10.620, publicado em 5/2/2021, e que promove alterações estruturais no RPPS dos servidores públicos federais, especialmente a atribuição das competências sobre “concessão e a manutenção das aposentadorias e pensões do regime próprio de previdência social da União no âmbito da administração pública federal”. Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

O ponto mais polêmico reside no conteúdo do art. 1º, p. único, II, do Decreto 10.620/2021: I - não dispõe sobre o órgão ou a entidade gestora única do regime próprio de previdência social, no âmbito da União, de que trata o § 20 do art. 40 da Constituição; e O art. 2º do Decreto 10.620/2021 não afirma expressamente que esteja criando um órgão gestor de RPPS, mas que apenas estabelece uma “centralização gradual de atividades de concessão e de manutenção das aposentadorias e pensões” dos servidores e servidoras, seguida de uma segunda etapa, em que haverá a “facilitação da transferência” destas atribuições para o órgão que será criado nos termos do art. 40, § 20, da Constituição Federal: Art. 2º Até que seja instituído em lei e estruturado o órgão ou a entidade gestora única de que trata o § 20 do art. 40 da Constituição, a ação da administração pública federal será direcionada à: I - centralização gradual das atividades de concessão e de manutenção das aposentadorias e pensões, nos termos do disposto neste Decreto; e II - facilitação da transferência posterior ao órgão ou à entidade gestora única de que trata o § 20 do art. 40 da Constituição.

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Portanto, embora o Decreto 10.620/2021 mencione que “não dispõe sobre o órgão tratado no art. 40, § 20, da Constituição Federal”, compreendemos que a violação a esse dispositivo constitucional ocorre frontalmente. Vejase a redação da aludida norma: Art. 40. (...) § 20. É vedada a existência de mais de um regime próprio de previdência social e de mais de um órgão ou entidade gestora desse regime em cada ente federativo, abrangidos todos os poderes, órgãos e entidades autárquicas e fundacionais, que serão responsáveis pelo seu financiamento, observados os critérios, os parâmetros e a natureza jurídica definidos na lei complementar de que trata o § 22. Essa inconstitucionalidade se dá tanto pelo fato, mais evidente, de estabelecer dois órgãos gestores para o RPPS dos servidores públicos federais (SIPEC e INSS), tanto como pelo fato de estipular essa alteração estrutural mediante Decreto, em flagrante desrespeito à exigência de Lei Complementar fixada pelo art. 40, § 22, do Texto Constitucional: § 22. Vedada a instituição de novos regimes próprios de previdência social, lei complementar federal estabelecerá, para os que já existam, normas gerais de organização, de funcionamento e de responsabilidade em sua gestão, dispondo, entre outros aspectos, sobre: 46

I - requisitos para sua extinção e consequente migração para o Regime Geral de Previdência Social; II - modelo de arrecadação, de aplicação e de utilização dos recursos; III - fiscalização pela União e controle externo e social; IV - definição de equilíbrio financeiro e atuarial; V - condições para instituição do fundo com finalidade previdenciária de que trata o art. 249 e para vinculação a ele dos recursos provenientes de contribuições e dos bens, direitos e ativos de qualquer natureza; VI - mecanismos de equacionamento do deficit atuarial; VII - estruturação do órgão ou entidade gestora do regime, observados os princípios relacionados com governança, controle interno e transparência; VIII - condições e hipóteses para responsabilização daqueles que desempenhem atribuições relacionadas, direta ou indiretamente, com a gestão do regime; IX - condições para adesão a consórcio público; X - parâmetros para apuração da base de cálculo e definição de alíquota de contribuições ordinárias e extraordinárias.

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O Decreto 10.620/2021 revogou o Decreto 9.498/2018, que centralizava no Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão a competência sobre a concessão e a manutenção de aposentadorias e de pensões do RPPS dos órgãos da Administração Pública Federal direta integrantes do SIPEC - Sistema de Pessoal Civil da Administração Federal.

mudanças e adaptações na legislação previdenciária; a três porque se verificou, muito intensamente, a utilização intensiva da produção de normas infralegais para cuidar destes novos temas previdenciários, cujo ápice parece ser o Decreto 10.410/2020, cujo escopo autoproclamado foi de “regulamentar a Reforma Previdenciária”.

Atualmente se noticia a tramitação de Projeto de Lei Complementar tratando do tema que até então é objeto do Decreto 10.620/2021, medida que seria suficiente a corrigir a flagrante inconstitucionalidade desse diploma regulamentar.

Mas, tal qual indicado na Introdução deste estudo deste artigo, o fenômeno do esvaziamento do princípio da legalidade parece ser a tônica característica da construção infraconstitucional da chamada Nova Previdência e há inúmeros e reiterados exemplos, os quais foram retratados nas linhas acima.

6.CONCLUSÃO Após dois anos da vigência da assim proclamada Nova Previdência, reflexões do ponto de vista estrutural e um primeiro balanço dessa nova “experiência” de proteção social já se tornam possíveis e necessários. Do ponto de vista legislativo, a esperada legiferação que seria necessária à adequação das leis 8.212/91 e 8.213/91 aos novos paradigmas previdenciários acabou não ocorrendo. A uma por conta do advento da crise sanitária internacional, que mobilizou todos os esforços normativos para o atendimento das graves demandas sociais que daí vieram; a duas porque a própria Emenda Constitucional, através da estratégia do uso proliferado de regras transitórias, já imprimou, de imediato, as

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

SERAU JUNIOR, Marco Aurélio. Seguridade social e direitos fundamentais. 4. ed. Curitiba: Juruá, 2020. Auxílio Emergencial. Belo Horizonte: Editora IEPREV, 2021. Comentários ao Novo Regulamento da Previdência Social. Belo Horizonte: Editora IEPREV, 2021a.

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MUDANÇA DE PERSPECTIVA NA TUTELA DO DIREITO SÓCIO FUNDAMENTAL À PREVIDENCIÁRIA SOCIAL: ENTERRANDO O DISCURSO ECONÔMICO Rodrigo Monteiro Pessoa51 Jair Aparecido Cardoso52

RESUMO Ao longo do tempo, as reformas previdenciárias na América Latina sustentaram razões econômicas que sempre estiveram conectadas aos modelos de crescimento econômico e austeridade, além de estarem restritas às políticas que almejavam o cumprimento dos objetivos macroeconômicos, sendo vista comumente como gasto público que, para todos os fins, preocupava a sustentabilidade do orçamento público a longo prazo. As próprias razões ampliativas da seguridade social na doutrina moderna determinam que as preocupações das transformações sociais 51 Pós-doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo (Faculdade de Direito de Ribeirão Preto). Doutor em Direito pela Universidad de Chile. Mestre em Direito Econômico pela Universidade Federal da Paraíba. Especialista em Direito Previdenciário pela UNIDERP. Graduado em Direito pelo UNIESP e em Administração pela UFPB. Membro Pesquisador do Grupo de Pesquisa (CNPQ) “A transformação do Direito do Trabalho na sociedade pós-moderna e seus reflexos no mundo do trabalho” da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP/USP). Membro-pesquisador da “Rede Ibero-americana de Pesquisa em Seguridade Social (CNPQ). Professor de Direito do Trabalho, Direito Previdenciário e Economia. Endereço eletrônico: rpjurista@gmail.com. Artigo financiado pelos projetos de pesquisa FONDECYT INI N.º 11200968 e DIUFRO EP N.º DI20-0071. 52 Professor da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto – USP (FDRP/USP). Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- PUC-SP. Graduado e mestre em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba - UNIMEP. Pós-graduado em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas - PUC -Campinas. Líder do grupo de pesquisa GEDTRAB, da FDRP/USP, cadastrado no CNPq sob o nome de “ A transformação do Direito do Trabalho na sociedade pós-moderna e seus reflexos no mundo do trabalho”. Membro do grupo de pesquisa RETRABALHO, Rede de grupos de pesquisas em Direito e Processo do Trabalho (CNPQ). Presidente da Comissão de Cultura e Extensão da FDRP/ USP (2019/2021), Presidente do Programa de Pós-Graduação da FDRP/USP (2021/2023). Autor de artigos e livros na área. 48

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colocam em xeque os modelos solidários, propondo alternativas que já provaram não resultar na melhor opção para a tutela previdenciária compatível com a dignidade humana, como é o caso da capitalização individual. Neste trabalho, argumenta-se sobre a necessidade do resgate da perspectiva previdenciária a partir da sua classificação como direito humano e fundamental, buscando a diversidade das formas ampliativas na sua efetivação, como forma de abandonar o discurso econômico apocalíptico na preservação deste importante direito sócio fundamental. Para isto utiliza-se da revisão bibliográfica, delimitando as variáveis qualitativas (previdência social, direitos humanos e fundamentais, formas de custeio, tutela estatal) para, por meio do método hipotético dedutivo, formular a hipótese de que a alternativa para o discurso fatalista é abraçar novas formas de financiamento dos sistemas securitários que sejam compatíveis com as mudanças sociais comumente apontadas como problemas. Assim, testando esta hipótese por meio da análise do discurso, pôde-se chegar à conclusão de que há mecanismos alternativos que permitem seguir tutelando a previdência social de forma a garantir subsistência digna, se é vista desde esta perspectiva, como direito humano e fundamental, por meio da ampliação do custeio em vias que incluam aqueles que estão apartados da proteção destes sistemas, gerando maior equilíbrio financeiro e aumentando o espectro de pessoas protegidas, ou seja, unindo o discurso dos direitos à sustentabilidade financeira. Isto não significa que esta seja hipótese verdadeira, apenas se trata de hipótese deduzida que ainda não foi falseada. PALAVRAS-CHAVE Previdência social; custeio; direito sócio fundamental; lógica ampliativa.

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1.INTRODUÇÃO Durante as sucessivas reformas que os sistemas de seguridade social vêm sofrendo na América Latina, nos últimos anos, a presença do discurso fatalista, principalmente no tocante à previdência social, é parte do arsenal de motivos que forçam as mudanças para buscar “melhor equilíbrio financeiro”, desafogando os cofres públicos na materialização deste direito prestacional. As reformas previdenciárias, especificamente, no bloco latino americano, sempre estiveram conectadas aos modelos de crescimento econômico e austeridade, além de estarem restritas às políticas que almejavam o cumprimento dos objetivos macroeconômicos, sendo vista comumente como gasto público que, para todos os fins, preocupa a sustentabilidade do orçamento público a longo prazo. Obviamente, isto se relaciona diretamente com as sucessivas crises econômicas, constantes e muito mais agressivas no continente latino americano, pelo fato de que os países deste bloco são de desenvolvimento tardio, impossibilitando que haja reservas financeiras capazes de mitigar os efeitos das crises econômicas com a adoção de políticas anticíclicas que exijam resposta do Estado com investimento. Além disso, as próprias razões ampliativas da seguridade social na doutrina moderna determinam que as preocupações das transformações sociais colocam em xeque os modelos solidários,

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propondo alternativas que já provaram não resultar na melhor opção para a tutela previdenciária compatível com a dignidade humana, como é o caso da capitalização individual. Sendo assim, neste trabalho argumenta-se sobre a necessidade do resgate da perspectiva previdenciária a partir da sua classificação como direito humano e fundamental, buscando a diversidade das formas ampliativas na sua efetivação, como forma de abandonar o discurso econômico apocalíptico na preservação deste importante direito sócio fundamental. Para isto utiliza-se da revisão bibliográfica, delimitando as variáveis qualitativas (previdência social, direitos humanos e fundamentais, formas de custeio, tutela estatal) para, por meio do método hipotético dedutivo, formular a hipótese de que a alternativa para o discurso fatalista é abraçar novas formas de financiamento dos sistemas securitários que sejam compatíveis com as mudanças sociais comumente apontadas como problemas. Assim, testando esta hipótese por meio da análise do discurso, pôdese chegar à conclusão de que há mecanismos alternativos que permitem seguir tutelando a previdência social de forma a garantir subsistência digna, se é vista desde esta perspectiva, como direito humano e fundamental, por meio da ampliação do custeio em vias que incluam aqueles que estão apartados da proteção destes sistemas, gerando maior equilíbrio 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


financeiro e aumentando o espectro de pessoas protegidas, ou seja, unindo o discurso dos direitos à sustentabilidade financeira. Isto não significa que esta seja hipótese verdadeira, apenas se trata de hipótese deduzida que ainda não foi falseada.

enfoque é fundamental para entender que o discurso reformista no plano econômico incluiu as reformas securitária dentro desta reestruturação. O objetivo principal não era o tratamento securitário e sim como mitigar os efeitos das crises com miras à retomada do crescimento.

Na construção do argumento dividiuse a pesquisa em três partes: a primeira trata das reformas previdenciárias na América Latina e sua conexão com os modelos de crescimento econômico. A segunda, determina a necessidade de tratamento do discurso reformista em matéria previdenciária com a perspectiva dos direitos humanos e sócio fundamentais, para a preservação deste importante direito de segunda dimensão dos direitos fundamentais a partir do dever do Estado na sua garantia ótima. A terceira e última tecerá as conclusões sobre o argumento hipotético dedutivo.

Portanto, as reformas econômicas apontadas são resultado de políticas de ajuste estrutural que tentam redirecionar o crescimento econômico ao longo de um caminho sustentado e estável, em forte oposição aos fracassos da década de 1980 (CRUZ SACO; MESA-LAGO, 1998, n.p.).

Findas as considerações iniciais, passa-se à primeira parte. 2. REFORMAS PREVIDENCIÁRIAS NA AMÉRICA LATINA: O DISCURSO ECONÔMICO Se se busca entender o que ocorreu com a maioria dos países da América Latina e do Caribe desde o surgimento dos sistemas de seguridade social até os dias de hoje, entender-se-á que eles iniciaram esforços importantes para a reforma institucional das suas economias (CRUZ SACO; MESA-LAGO, 1998, n.p.). Exatamente, das suas economias. Este Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

Os eixos da reestruturação apontam para o estabelecimento do livre mercado, eliminando todos os tipos de subsídios e controles de preços, enxugando o governo, com desregulamentação substancial das atividades econômicas, e privatização de serviços do Estado, incluindo os sistemas de seguridade social(CRUZ SACO; MESALAGO, 1998, n.p.). Sem possibilidade de reação frente às crises econômicas, os países do bloco latino americano enfrentam verdadeira encruzilhada para manter o nível de gastos públicos e garantir a concretização do conteúdo prestacional das políticas públicas. Os impactos na previdência são de fácil visualização. Com a crise econômica dos anos 70, conhecida como crise do petróleo, houve aumento da inflação, recessão e alta nos preços do petróleo e seus derivados, ocasionando desestabilização das economias, aumento do desemprego e desequilíbrio 51


dos sistemas de seguridade social pela crise de financiamento (já que tratamos de sistemas custeados com a lógica do emprego formal, como o caso do sistema de repartição solidário no Brasil)(KRUGMAN; OBSTFELD, 2006, p. 570). A crise da dívida derivou-se desta crise do petróleo, e se estendeu até os anos 90, pelo fato dos países avançados emprestarem somas consideráveis aos países em vias de desenvolvimento, descobrindo posteriormente a sua incapacidade de devolução dos montantes devidos (KRUGMAN; OBSTFELD, 2006, p. 8). Nos anos 80, conhecida como a década perdida, outra crise econômica estabeleceu cenário de aumento da dívida externa, ocasionando reflexos econômicos internos com altas taxas de inflação e quedas ainda maiores nos empregos e de remuneração do trabalho(KRUGMAN; OBSTFELD, 2006, p. 671). Tudo o que os sistemas previdenciários que são custeados por contribuições dos trabalhadores formais não desejam. Para mitigar estes efeitos, os países que emprestaram recursos para a superação da crise exigiram reformas estruturais na economia para garantir a devolução dos valores concedidos. Para tanto, estabeleceu-se regras para o alcance dos objetivos macroeconômicos por meio da estabilização dos preços, tornando os países mais competitivos na era globalizada; crescimento econômico orientado para o mercado externo, acabando com as políticas de substituição 52

de importações; e o aumentoda renda e o padrão de vida dos cidadãos(CRUZ SACO; MESA-LAGO, 1998, n.p.). Toda esta filosofia orientada para o mercado fez com que os sistemas de seguridade social, em especial a esfera previdenciária, passa-se a ser reformulado por meio de uma mudança interinstitucional da responsabilidade financeira do serviço(CRUZ SACO; MESALAGO, 1998, n.p.). A modificação introduz novos tipos de serviços no mercado e mudanças procedimentais que afetam as finanças, organização e entrega dos serviços em matéria de seguridade social. Como consequência, vemos que a economia vê as alterações reformistas orientadas para o mercado de forma positiva, pelo fato de que os mercados domésticos se desenvolvem, inclusive com aumento significativo do tamanho relativo do setor privado na participação da seguridade social, pois se aumenta tanto o capital físico (por exemplo, instalações médicas privadas) quanto o financeiro (devido à ação dos administradores de fundos de pensão privados). Ademais, se modifica a estrutura financeira da cobertura de saúde e velhice, abandonando a função redistributiva tradicional e adotando o princípio de pagamento por serviço orientado para o mercado (CRUZ SACO; MESA-LAGO, 1998, n.p.). Bom para a economia, ruim para os(as) segurados(as). Nesta toada, se redefine participação do governo, que é

a o

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devedor do direito sócio fundamental à seguridade social, porque se assiste ao seu distanciamento da provisão direta de serviços, deixando-os nas mãos do mercado e, consequentemente, reduzindo a capacidade discricionária dos governos em redistribuir renda para garantir um nível mínimo de proteção aos cidadãos, o que, por sua vez, afeta a percepção dos cidadãos quanto à perda de propriedade e de seus direitos(CRUZ SACO; MESALAGO, 1998, n.p.). Todas as diretrizes econômicas exigidas estão alinhadas com o Consenso de Washington de 1989, que prega redução dos gastos públicos, disciplina fiscal, livre comércio, liberalização, privatização e desregulamentação (em especial laboral)(ASTUDILLO MOYA, 2012, p. 52). O problema, é que por outro lado, coloca os direitos sociais em verdadeira encruzilhada, porque são vistos como entraves à economia. Logo, as reformas securitárias orientadas pelas mudanças econômicas (na lógica orientada para o mercado), apenas foca nas consequências econômicas para os Estados quando o tema é o gasto público, e assim, assistimos às reformas 100% orientadas pelos modelos de desenvolvimento adotados. Seja no nascimento da seguridade social na América Latina, seja nas suas transformações. Para poder demonstrar o que aqui se argumenta, acompanha-se a pesquisa realizada por Mejía Ortega e Franco

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Giraldo, que confeccionaram tabelas a partir da revisão da literatura reformista na América Latina, demonstrando que para cada modelo de desenvolvimento, houve enfoque político que impactou na seguridade social. Ou seja, a política social esta diretamente atrelada aos objetivos econômicos de desenvolvimento, sejam os sistemas pioneiros, intermediários, tardios e os cenários reformistas (MEJÍAORTEGA; FRANCO GIRALDO, 2007). A pesar desta particularidade na América Latina, que gera barreiras na autonomia do gasto público e na disponibilidade de recursos para a materialização da própria previdência social, temos ainda outros fatores que são comuns a todos os países, e que igualmente vêm causando a reflexão para as mudanças na arquitetura dos sistemas previdenciários. Seguindo o apontado por Cortés González(2009, p. 26 a 31) sobre as razões que justificam repensar a arquitetura da seguridade social, todos estão conectados a problemas de custeio. Quanto ao crescimento da informalidade, inclusive já comentado, os sistemas pensados na lógica do emprego formal carecerão de financiamento. Com respeito à flexibilização e o surgimento de zonas grises em matéria laboral, a dúvida quanto ao enquadramento para fins de custeio também pode levar a problemas no mesmo sentido de financiamento. A internacionalização das economias e as migrações podem influenciar no

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financiamento previdenciário pois, se pensamos no déficit migratório53, e considerando que um dos principais motivos da migração é por razões socioeconômicas, então haverá menos disponibilidade de pessoas em idade laboral, causando problemas para financiar sistemas que dependem de trabalhadores formais. Sobre o envelhecimento populacional e a inversão da pirâmide social é decadente para sistemas de repartição, pois haverão menos trabalhadores ativos que passivos, gerando desequilíbrio financeiro. Neste mesmo sentido, o auge das tecnologias e sua aplicação para assegurar melhores condições de vida e maior longevidade, também necessitará de mais recursos para garantir o pagamento de benefícios por períodos mais prolongados. Estas razões levaram a mudanças de diversas ordens: substitutivas, que fecham o sistema público e abrem espaço para um privado (Chile em 1980 e Bolívia em 1997); paralelas, que não fecham o serviço público previdenciário, mas o modifica parametricamente e cria em paralelo o sistema privado para competir 53 Professor da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto – USP (FDRP/USP). Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- PUC-SP. Graduado e mestre em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba - UNIMEP. Pós-graduado em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas - PUC -Campinas. Líder do grupo de pesquisa GEDTRAB, da FDRP/ USP, cadastrado no CNPq sob o nome de “ A transformação do Direito do Trabalho na sociedade pós-moderna e seus reflexos no mundo do trabalho”. Membro do grupo de pesquisa RETRABALHO, Rede de grupos de pesquisas em Direito e Processo do Trabalho (CNPQ). Presidente da Comissão de Cultura e Extensão da FDRP/USP (2019/2021), Presidente do Programa de Pós-Graduação da FDRP/USP (2021/2023). Autor de artigos e livros na área. 54

com o público (Peru em 1992); mistas, conformado por um programa público, que não está fechado para novos filiados e que concede benefícios básicos (primeiro pilar), sendo estes benefícios complementados com um programa privado (segundo pilar) (Argentina em 1994, Uruguai em 1995 e Costa Rica em 2001); e as paramétricas, como é o caso brasileiro, que mantêm os sistemas totalmente públicos e introduzem modificações relacionadas com o cálculo e acesso aos benefícios (amplia a idade de aposentadoria, aumenta a vida laboral, modifica a carência, fator previdenciário etc.). Não obstante, estas reformas buscam reduzir a cobertura, sendo menos generosos com os benefícios ao invés de buscar outras formas de custeio, que possibilitem manter o nível de cobertura com novas formas de financiamento. Destarte, não é absurdo pensar que o discurso econômico vem em primeiro lugar, caminhando junto às tendências reformistas de corte de cobertura, justificadas na deficiência de custeio, quando o tema é a construção e a materialização do direito à previdência social, que continua sendo discutida sobre o ponto de vista financeiro e não como direito. Não que o aspecto financeiro para financiar o conteúdo prestacional deste direito fundamental não seja relevante, porque sim o é. E tem-se total consciência do que significa o custo dos direitos54 neste árduo trabalho democrático de construção securitária. Mas visualizá-lo 54 Quando existem mais pessoas em saindo que entrando no país. 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


apenas desde esta perspectiva é minimizar a importância do discurso dos direitos na tentativa de construir o sistema ideal. É o que se passa a analisar em seguida.

3. PREVIDÊNCIA SOCIAL COMO DIREITO HUMANO E FUNDAMENTAL: RESGATANDO O DISCURSO DOS DIREITOS Como segunda parte desta análise precisa-se resgatar a natureza do direito à seguridade social, que inclui a tutela previdenciária, para poder trazer à tona a compreensão do objeto que se busca reformar constantemente, e trata-lo conforme o seu núcleo essencial (dentro da perspectiva de direito sócio fundamental). Ainda que se visualizou a prevalência do discurso econômico na história da construção e reformas securitárias, não se pode esquecer que a seguridade social é reconhecida como direito humano. Os direitos humanos são “as condições da existência humana que permitem ao ser humano funcionar e utilizar plenamente os seus dons de inteligência e consciência para satisfazer as exigências fundamentais impostas pela sua vida espiritual e natural”55(SOLAR ROJAS, 2000, p. 21–22). O objetivo dos direitos humanos é efetivar a justiça social, que segundo o preâmbulo da Constituição da OIT, é o único caminho para alcançar a paz social. Os direitos humanos representam verdadeiro esforço internacional para 55 Para mais detalhes ver (HOLMES; SUNSTEIN, 2011) e (PERSSON; TABELLINI, 2005) Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

poder formular base mínima de direitos que alcance a todas as pessoas, como verdadeira lógica do direito a ter direitos(HERRERA FLORES, 2009, p. 23). Independentemente de todas as críticas que o universalismo e a ideologia por vezes descontextualizada dos direitos humanos56 podem trazer, eles seguem representando um processo necessário para a luta pela dignidade humana. Sendo assim, a comunidade internacional entende que a busca pela segurança/seguridade é parte da condição de existência que permite a outorga de dignidade às pessoas, sendo a seguridade medida de justiça social para alcançar a paz social. Logo, o artigo 22 da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 determina que: Art. 22 - Todo ser humano, como membro da sociedade, tem direito à seguridade social, à realização pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade. Esta declaração, ainda que com caráter de soft law57orienta os Estados na sua regulação e adoção de políticas públicas, consagrando a necessidade 56

Tradução livre do original em espanhol.

57 Para crítica completa nesta matéria ver (HERRERA FLORES, 2005). 55


de

segurança/seguridade

como

eixo

fundamental da atuação estatal.

princípios próprios dos direitos humanos

Outras referências, seja como soft law ou hard law, aparecem consagrando o direito humano à seguridade social, tais como a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem de 1948, art. XVI; Convenção nº 102 da OIT, sobre Seguridade Social de 1952; Pacto Internacional

Direitos

Econômicos,

Sociais e Culturais de 1966, art. 2º e art. 9º; Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969, art. 26; e Recomendação nº 202 da OIT de 2012, sobre pisos mínimos de proteção social. Enquanto

direito

humano,

a

seguridade social carece de proteção pelas atuações judicias disponíveis no ordenamento interno (ROBLES, 1997, p. 20 e ss.), o que se soluciona pela via do reconhecimento como direito fundamental, consagrando o que é visto pela comunidade internacional como intangível, inalienável e imprescritível, no ordenamento interno (LEDESMA, 2004, p. 4 e 5). A universalidade e distanciamento dos aspectos culturais e da idiossincrasia interna aos Estados, que é próprio dos direitos humanos, se reduz no momento em que há a sua incorporação à ordem constitucional, modificando o status do direito humano para direito fundamental. Neste ínterim, mesmo sendo direito fundamental, não perde sua conexão com 56

o plano internacional, devendo observar os de segunda dimensão que compreendem o

princípio de complementariedade e

interdependência dos direitos humanos, no sentido de que os direitos humanos existem em um mesmo conjunto de direitos que se complementam e para que se goze de um direito humano em plenitude, é preciso gozar de todos os demais; princípio da primazia da disposição mais favorável à pessoa humana (princípio pro homine), que determina a necessidade de buscar a melhor interpretação dos direitos humanos para sua aplicação mais favorável às pessoas; princípio da progressividade, pois são direitos graduais, contando com o Estados para garantir a melhoria gradual do desfrute de tais direitos; princípio da irreversibilidade, pois os Estados não podem piorar a condição de gozo e garantia dos direitos humanos; princípio

da

adequação

aos

critérios

estabelecidos pelos órgãos internacionais competentes, pois o conteúdo destes direitos humanos deve corresponder à forma que efetivamente rege no plano internacional; e o princípio da auto execução ou auto aplicabilidade, já que os direitos humanos, independentemente da sua dimensão, têm aplicabilidade imediata e podem ser exigidos do Estado(BARBAGELATA, 2008, p. 7 e ss.). O Estado brasileiro reconhece o direito à seguridade social como direito fundamental,

estabelecendo-o

como

38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


parte da Ordem Social, que objetiva o

o discurso reformista nos fatores que

bem-estar e a justiça social (art. 193),

realmente são prejudiciais ao sistema de

o que compatibiliza esta arquitetura

repartição solidário, como é o brasileiro,

com a ordem internacional dos direitos

e que são certos, precisa-se resgatar

humanos.

como

o discurso dos direitos e encontrar os

conjunto integrado de ações de iniciativa

caminhos para que a previdência seja mais

dos Poderes Públicos e da sociedade,

inclusiva (trabalhadores informais, não

destinadas a assegurar os direitos relativos

trabalhadores etc.) e garanta cobertura

à saúde, à previdência e à assistência

que permita a existência digna com o

social (art. 194).

sistema securitário.

Ademais,

a

define

Com esta estrutura, resta difícil compreender que os argumentos econômicos prevaleçam sobre a configuração do direito humano e fundamental pois, ao invés de buscar a progressividade, eficiência, e atuar no favor da complementariedade e interdependência e da irreversibilidade, o discurso apocalíptico da insustentabilidade do sistema tem sido utilizado constantemente para justificar a redução da cobertura por meio de reformas paramétricas ao longo da nossa história previdenciária.58 Ao invés de sustentar e centralizar 58 Segundo Mazzuoli(2020, p. 116 e 117), há normas de Direito Internacional não obrigatórias, que deixam aos destinatários certa margem de apreciação no que toca ao cumprimento de seu conteúdo. Por esta razão, por soft law (direito plástico, direito flexível ou direito maleável) entende-se todas as normas menos constringentes, seja porque não possuem o status de “normas jurídicas”, seja porque os seus dispositivos não geram obrigações de direito positivo aos Estados. Logo, estas normas carecem de elementos que garantam a sua efetiva aplicação, servindo muito mais para regulamentar futuros comportamentos dos Estados, norteando sua conduta e dos seus agentes, além de estabelecer programa de ação conjunta, mas sem pretender enquadrar-se no universo das normas convencionais, cujo traço principal é a obrigatoriedade de cumprimento do que ali ficou acordado.

Se há cada vez mais informalidade, é preciso encontrar formas de obter contribuições

sociais

sem

depender

do mercado formal de trabalho. Se há da

tendências população,

de é

envelhecimento

preciso

encontrar

alternativas ou complementos à repartição para reequilibrar a menor presença de trabalhadores. Enfim, o que se pretende é determinar que as alternativas ao custeio precisam ser o enfoque, visando a concretização do

direito

humano

à

seguridade

social

e

fundamental (neste

viés

previdenciário), e não deteriorar o sistema mantendo os erros no custeio que estava pensado para a lógica do pleno emprego (nunca alcançado), da formalidade (cada vez menos frequente) e do financiamento imediatista (repartição sem pensar em poupanças pelos excedentes – como a capitalização parcial coletiva). Tanto é possível pensar nestas formas alternativas para preservar as taxas de

. Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

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substituição59 e manter o foco no direito, muito mais que no aspecto meramente econômico, é que alguns países estão provando iniciativas de contribuição sobre consumo, como o caso da China e Espanha. A Startup Pensumo, por exemplo, utiliza o slogan: “sua compra diária, sua pensão futura”. Ainda que esta startup se conforme como medida de previdência complementar, esta iniciativa idealizou formas de custeio por esta mecanismo, como na China que inaugurou o Plano de Regulação e Gestão das Pensões por Consumo (PCPC) (COMUNICAE.ES, 2021). Claramente esta discussão foge do escopo deste trabalho, mas pretendese alertar sobre alternativas viáveis que precisam começar a ser implementadas para consagrar sistemas mais inclusivos e financeiramente sustentáveis, que permitam realismo na consagração do direito prestacional à previdência social, com progressividade e com miras à 59 Ver, por exemplo no ano de 1995, onde a lei nº 9.032, os cálculos dos benefícios foram alterados, houve unificação das alíquotas do benefício de auxílio acidente, fim da possibilidade de conversão do tempo especial em comum, entre outras modificações; no ano de 1998, em que a EC nº 20 reformou o RGPS, extinguiu a aposentadoria por tempo de serviço e estabeleceu outras diretrizes para os demais regimes; no ano de 1999 em que Novamente houveram modificações substantivas no cálculo dos benefícios e foi introduzido o fator previdenciário (Lei nº 9.876); no ano de 2003, com a Emenda Constitucional nº 41 houveram reformas no Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) com reflexos no RGPS; e no ano de 2019, com a Emenda Constitucional n.º 103, com a extinção da aposentadoria por tempo de contribuição, aumento da idade mínima de aposentadoria para a mulher (62 anos), modificação nos valores e acesso da pensão por morte, modificação no cálculo dos benefícios (sem possibilidade de descarte dos 20% menores salários de contribuição), implementação da idade mínima para a aposentadoria especial, mudanças na natureza de verbas trabalhistas, desconsiderando seu caráter remuneratório e debilitando o custeio previdenciário (Lei n.º 13.467/2017, art. 457 da CLT), entre outro. 58

consagração de todos os princípios de direitos humanos de segunda dimensão. 4. CONCLUSÃO A América Latina é marcada por crises econômicas que tiveram importantes consequências na garantia de direitos prestacionais. As discussões no surgimento e na reforma dos sistemas securitários na região acompanham os modelos de crescimento econômico e austeridade, sem autonomia e orientados para o cumprimento dos objetivos macroeconômicos, considerando a seguridade social com um gasto a ser controlado. Ademais, outros fatores apontados pela doutrina estão conectados com o discurso fatalista/apocalíptico que pretende obter apoio popular ou apenas o conformismo para modificar o sistema, ofertando benefícios menos vantajosos. Estes fatores englobam o aumento da informalidade, a globalização, o surgimento de novas formas de trabalho que geram zonas grises, a longevidade, a diminuição na taxa de natalidade, as migrações, entre outros. Não obstante, independentemente deste discurso, não se pode excluir dos debates a característica da seguridade social como direito humano e fundamental, no sentido de obter a justiça social e materializar a paz social. Por estas razões, alternativas devem ser encontradas para ampliar e diversificar o custeio, e não reduzir simplesmente os benefícios, tendo em conta que existem importantes e interessantes experiências que se orientam nesse sentido. ASTUDILLO MOYA, Marcela. Fundamentos de

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O IMPACTO DA SOLIDARIEDADE INTERGERACIONAL NA DINÂMICA DO REGIME DE REPARTIÇÃO SIMPLES E DE “CAPITALIZAÇÃO” Tatiana Conceição Fiore de Almeida60

RESUMO Entre projetos reformistas que pretendem resolver um dos maiores entraves ao desenvolvimento brasileiro, qual seja a falência econômica do setor público, e entre as mirabolantes estratégias, vira e mexe resvalamos na Capitalização da Previdência, através de uma polpuda cesta de ações mais valorizadas do mercado e sua autonomia para poder ser planejada em longo prazo, a estrutura baseada em equilíbrio orçamentário e a prática atuarial de considerar separadamente subgrupos populacionais com marcantes diferenças em seus níveis e estruturas de mortalidade. Enquanto que a Previdência Social implica as transferências intergeracionais que se fundamentam na existência e manutenção de uma solidariedade e dinâmica estatística-demográfica. PALAVRAS-CHAVE Sistemas Previdenciários; Repartição simples; Capitalização Total; Sistemas Mistos; Solidariedade Intergeracional e Impacto do Princípio da Solidariedade. 60 Equivalente ao que se ganhava em atividade laborativa com respeito ao benefício obtido. Exemplo: se certa(a) trabalhador(a) ganhava salário de R$ 3.000,00 e recebe aposentadoria no valor de R$ 2.250,00 há taxa de substituição de 75%, pois o benefício representa 75% do que ele(a) recebia em atividade. 60

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1. INTRODUÇÃO Muito se fala Capitalização e Repartição Simples – aliás este tema que nunca saiu de pauta, ressurgiu e ganhou novos contornos o diálogo nos debates da Reforma da Previdência Social, quando o Ministro da Economia Paulo Guedes, tentou incluir na proposta enviada ao Congresso em fevereiro de 2019, a previsão de um regime de capitalização, sob a justificativa de que: “A capitalização é uma espécie de poupança que o próprio trabalhador faz para assegurar a aposentadoria no futuro, enquanto que o regime atual é o de repartição, pelo qual o trabalhador ativo paga os benefícios de quem está aposentado”. O que o Governo Federal não contou à Nação é que o projeto de reformista de capitalizar a previdência social tratava de um projeto de reforma fiscal que pretendia resolver um dos maiores entraves ao desenvolvimento brasileiro, a falência econômica do setor público. O objetivo aqui não é discutir o projeto em si, o que mereceria até um comentário especial ousando comparar com as tentativas anteriores, mas apenas abordar responsabilidade social, da Previdência, sob a perspectiva do impacto da solidariedade intergeracional. Ao migrarmos de Repartição Simples para Capitalização, a pergunta que me faço é, diante da dinâmica demográfica, qual o Custo desta transição? E diante de uma comparação teórica Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

entre as características do sistema de repartição simples e o de capitalização total, e examinando alterações específicas que podem afetá-los como os índices de mortalidade e fecundidade, se de fato essa proposta serviria para “democratizar” o sistema previdenciário, “acelerar” o ritmo de crescimento e “estimular” o aumento de produtividade. E dentro de todo esse conjunto de análises tenho realizado conjecturas sobre um sistema misto, que incorpora na sua forma de estruturação, aspectos desses dois modelos de sistemas previdenciários. 2. O IMPACTO DA SOLIDARIEDADE INTERGERACIONAL NA DINÂMICA DO REGIME DE REPARTIÇÃO SIMPLES E DE “CAPITALIZAÇÃO. O Princípio da solidariedade consiste na responsabilidade coletiva das pessoas entre si na realização das finalidades do sistema e envolve o concurso do Estado no seu financiamento. Nos termos do artigo 3º, inciso I, da Constituição Federal de 1988, o qual preceitua que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, o de construir uma sociedade livre, justa e solidária; para garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; com a finalidade de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. 61


Importante destacarmos que embasado no artigo 8º, da Lei n.º 4 de 16 de janeiro de 2007, o princípio da solidariedade concretiza-se: no plano nacional, no plano laboral e no plano intergeracional. No plano nacional, através da transferência de recursos entre os cidadãos, de forma a permitir a todos uma efetiva igualdade de oportunidades e a garantia de rendimentos sociais mínimos para os mais desfavorecidos; no plano laboral, através do funcionamento de mecanismos redistributivos no âmbito da proteção de base profissional; e no plano intergeracional, através da combinação de métodos de financiamento em regime de repartição e de capitalização. Desta feita, importante esclarecer que a solidariedade deverá assumir papel subsidiário e não exclusivo, como panaceia de eventuais insustentabilidades. Ouso aqui até a reproduzir Carlos Marti Buffil, quando o In Derecho de Seguridad Social – Las prestaciones, Madri, 1964, p. 46/7; quando diz: “[...] Realmente se o estado assumir de forma integral a solução dos problemas econômicos individuais, mantendo por intermédio das prestações previdenciais a mesma renda que o segurado recebia antes da ocorrência da contigência, o sentimento de responsabilidade individual ficará debilitado”. Lembrando o que diz Mose Casteliano, em La sicurezza sociale e le improvvisazioni in Revista “Previdência

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Sociale” apude Ercole Screbo. Condições e limites da seguridade social, revista “Previdência Social”, INPS, n.º 14, 1969, p. 50. “[...] o excesso de seguridade social reduziu os trabalhadores a assistidos passivos, prontos a imprecar contra qualquer pagamento de impostos e reclamando sempre um aumento de prestações, outorgadas com o aparente caráter de gratuidade”. No âmbito do direito previdenciário, não obstante o estado social tenha o papel de garantir aos seus membros um nível adequado de realização dos direitos à segurança social e, para tanto, deva sempre levar em conta o princípio da solidariedade intergeracional; os demais atores que participam do sistema também tem o dever de observar tal princípio. Isso porque a concessão banalizada de benefícios, sem a observância de critérios preestabelecidos prejudica diretamente não somente o próprio sistema securitário, mas também outros setores da sociedade uma vez que implica em certa medida na falta de recursos para a garantia de direitos como saúde, educação, habitação etc.. Se a previdência social, por sua natureza, é técnica-científica desenvolvida com vistas nas gerações futuras, compreendo que os recursos amealhados devem ser preservados por décadas, e para tanto seria necessários planos em longo prazo, tomando como base a dinâmica demográfica, e expertise matemáticofinanceiro, atuaria e estatística, - e isso não aconteceu, nem está acontecendo. 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


O modelo de 1923 (Eloy de Miranda Chaves), baseado na Alemanha de 1883, pensado por Otto Von Bismarque envelheceu no pós-guerra diante do processo de industrialização e urbanização. O modelo de 1954, da Inglaterra de 1942, escrito pelo Willian Beveridge, descrito na LOPS, foi incapaz de suportar as transformações econômicas e sociais supervenientes, de modo que os pequenos superávits autorizaram a criação de novos benefícios, obrigando a Constituição de 1967 a dispor sobre a precedência do custeio e défcits determinaram a majoração da alíquota ou da base de cálculo. Digo isso, pois desde a implantação da experiência chilena se pretende a privatização segmental, parcial ou total da previdência social, compromissados com o lucro, objetivando tão somente benefícios de risco programados, sob o regime financeiro de capitalização, baixa ou nenhuma solidariedade num país onde uma parcela significativa da população não tem capacidade contributiva, assistencializando ainda mais o sistema previdenciário. A pressão social é legitima, porém contrária aos interesses da distribuição de rendas e riquezas, sendo um abissal retrocesso em matéria de proteção social, se em 1970, tínhamos uma complexa estrutura industrial e um mercado urbano crescente integrado, mas com baixos salários, pobreza absoluta e concentração da renda; em 1988 observamos uma alteração dinâmica do mercado de trabalho, com ampliação da informalidade; Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

em 1990 o Brasil do crescimento e da mobilidade social parece ter desaparecido, esvanecendo o sonho de uma melhor distribuição de renda e de uma sociedade mais justa, reforçou o discurso neoliberal para a reforma da previdência, sob forte justificativa da grave situação financeira do sistema de proteção social, aglomerado no Sistema Nacional de Seguridade Social. Em todas as reformas da previdência, o apego a dados econômicos, de altas taxas de desemprego, comprometendo a arrecadação das receitas de contribuição, aumenta de despesas com programas sociais, problemas com equilíbrio atuarial na relação contribuintes – beneficiários, e dados demográficos de taxa de fecundidade / envelhecimento populacional, versus taxa de mortalidade, fragilizou os princípios da proteção previdenciária, entre eles o da Solidariedade, na modalidade intergeracional. A solidariedade é pressuposto da intergeracional.

intrageracional solidariedade

Enquanto solidariedade horizontal, diante de situações de crise econômicofinanceira, destaca-se como extremamente importante para diminuir o fracasso do papel estatal na realização dos direitos econômicos, sociais e culturais. Nesse contexto, para que tal solidariedade possa atuar de forma mais efetiva, essencial que sejam estimuladas praticas de transparência e de publicidade por parte do poder público.

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A solidariedade intergeracional, uma vez que representa uma dimensão mais recente de solidariedade, tem intrínseco vínculo com a sustentabilidade, a qual é condição inerente não só para a existência do meio ambiente, mas também para a previdência. Para o direito previdenciário o raciocínio é que os recursos custeados devem ser utilizados racionalmente para que a previdência social consiga alcançar da melhor forma possível o seu escopo mesmo com a limitação de recursos financeiros. A equidade intergeracional tem três dimensões: a filosófica; a jurídica; a política. A dimensão filosófica da equidade intergeracional desenvolve a teoria da responsabilidade, cujo arquétipo é o da responsabilidade parental, para explicar como é necessário um (novo) imperativo categórico que ultrapasse a noção kantiana de dignidade da pessoa humana e de solidariedade com o outro, baseada em uma (nova) responsabilidade, ínsita à existência do próprio ser e em relação não só à vida humana; A dimensão jurídica da equidade intergeracional, assenta três princípios: o da diversidade das opções; o da conservação da qualidade; o da conservação do acesso. A observância desses princípios é fundamental à existência e desenvolvimento das futuras gerações. Ambos se aproximam quando defende essa necessidade de um dever de cuidado das futuras gerações e

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seus recursos, o que implica em um compromisso ético-jurídico, o qual se traduz em uma palavra – responsabilidade, e é exatamente aqui que a equidade intergeracional tem na ideia-chave da ética da responsabilidade e de um dever para com o futuro, como seu fundamento ético-filosófico. As questões envolvendo a equidade intergeracional são debatidas tanto no plano da Teoria Geral do Direito como no próprio Direito Previdenciário sobre a necessidade de nossa geração, sendo a beneficiária do legado transmitido pelas gerações passadas, tornar-se a guardiã do que é “capitalizado” pelo sistema para as gerações futuras. Já a equidade intergeracional política recai sobre o interesse nas futuras gerações. Falar em futuras gerações, sobre pessoas indeterminadas, que não estão aqui ainda e não se sabe quando estarão, suscita uma série de problemas, principalmente quando se adentra o campo do Direito, por natureza pragmático e imediatista. Como conferir direitos a quem não tem existência nem representação? E por que razão a humanidade, também pragmática e imediatista, se preocuparia em assegurar tais direitos? Há distintas teorias sobre justiça intergeracional, a de John Rawls situa os contratantes originais, aqueles que definirão os princípios de justiça estruturadores da sociedade, atrás de

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um véu de ignorância, sem qualquer informação a seu próprio respeito ou acerca dos demais; ao lado dela há a utilitarista de agir sempre de forma a produzir a maior quantidade de bem-estar, por Jeremy Bentham e John Stuart Mill; a do liberalismo lockeano onde qualquer poder estatal que não garantisse a vida dos cidadãos e o direito à propriedade privada não seria legítimo; a da reciprocidade indireta cooperação condicional de acordo com as normas; de Brian Barry; a das vantagens mútuas, onde todos podem sair ganhando (Gauthier); a do suficienticismo a qual devemos melhorar a situação de todos, de Brundtland; e a do igualitarismo revisitado, de Ronald Dworkin e Hannah Arendt. As razões são diversas, mas da matriz constitucional, de onde tudo decorre com repercussão nas políticas públicas relativas aos objetivos da seguridade, observamos que é da gênese do liberalismo igualitário, descende a estrutura de princípios liberais à proteção social, com princípios de ordem neoliberal e de ordem neoconstitucional. O Sistema Nacional de Seguridade Social é antagônico, entre o princípio de igualdade equitativa de oportunidades, e o da justiça social, isso porque, a democracia liberal, haurida no liberalismo igualitário, pressupõe o desenvolvimento como liberdade exigindo como corolário a liberdade individual como comprometimento social, mas com os fins e os meios do desenvolvimento para o

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sentido coletivo; e partindo da concepção de democracia política tem-se através do trabalho e livre iniciativa, vincula as políticas públicas do Estado do bem-estar social à produção de resultados políticos concretos que ratifiquem o critério de justiça social constitucional. Tudo isso justifica o porquê vigora no Regime Geral da Previdência Social brasileiro o regime previdenciário de repartição simples (pay as you go), de filiação obrigatória, e pressupõe que quem está trabalhando paga os benefícios dos aposentados e pensionistas atuais. Logo, as gerações vindouras suportarão as aposentadorias da geração de agora. Esse regime está fundamentado, portanto, numa situação demográfica de significativa reposição populacional, na qual a base da pirâmide etária será sempre proporcionalmente mais larga do que o vértice. O Sistema de repartição simples estrutura-se a partir de equilíbrios orçamentários de períodos transversais (imediatos), onde parte da renda dos ativos é revertida aos aposentados, enquanto que o sistema de capitalização total baseia-se em equilíbrios orçamentários longitudinais (em longo prazo), onde os pagamentos efetuados por todos os participantes são e empregados na constituição de um fundo necessário para os pagamentos das obrigações futuras relativas a contingências ou eventos não programados, que tenham probabilidade periódica de ocorrência.

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É importante esclarecer que as contingências sociais são os eventos que impedem que o segurado possa manter o sustento próprio e o de sua família, e neste caso os eventos não programados seriam acidente, invalidez, morte e reclusão. Todavia, nem sempre a lei é clara na diferenciação dos dois regimes, igualando, por vezes, benefícios não-programados aos previsíveis. No regime de capitalização (funding), cada pessoa forma um fundo (individual ou coletivo) em que são investidos pecúlios, destinados exclusivamente à sua aposentadoria. Wladimir Novaes Martinez faz a seguinte diferenciação entre o sistema de repartição e o sistema de capitalização: “Assim, frequentemente, o regime de capitalização é o próprio do neoliberalismo, enquadrado como poupança individual e disponível, da iniciativa privada, para o plano do tipo de contribuição, com baixo nível de solidariedade, hodierno e com tendência a se universalizar. Bom para as prestações programadas. Por outro lado, o regime de partição simples, ideologicamente seria social-democrático, técnica previdenciária, de iniciativa estatal, para o plano do tipo benefício definido, com elevada solidariedade, ultrapassado no tempo e com tendência a desaparecer. Própria das prestações programadas”. A grande questão previdenciária que é discutida hoje se encontra na manutenção dos regimes de repartição. Algumas

66

correntes

postulam

a

conversão total para um regime de capitalização (tendo o Chile como paradigma), outras pugnam por um sistema misto; outras pela manutenção absolta dos regimes de repartição. No caso específico da reforma previdenciária no Chile (1981), substituiu-se o sistema tradicional por um novo programa privado compulsório, totalmente capitalizado e administrado por entidades privadas, as Associações de Fundos de Pensão (AFPs), sendo o sistema público uma opção de second-best destinado às camadas mais pobres da população. O grau de solidarismo do regime de repartição é patentemente maior em relação ao regime de capitalização. Por isso, ponderando-se de uma forma sociológica, o regime de repartição equilíbrio orçamentário imediato e a capacidade de englobar toda a população o que o tornava bastante atrativo, a composição etária da população jovem como a do Brasil em comparação aos demais países europeus, e nos Estados Unidos, logo após o término da segunda guerra, ponto este que mudou visto o Brasil ser um país envelhecente, sob o prisma da taxa de natalidade/ fecundidade, digo isto, pois equilíbrios orçamentários implicam em transferências intergeracionais, que se fundamentam na existência e manutenção de uma solidariedade intergeracional, por sua vez no sistema de capitalização não ocorrem transferências inter e intrageracionais, devido a uma estruturação baseada em equilíbrios orçamentários e à prática 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


atuarial de considerar separadamente subgrupos populacionais com marcantes diferenças em seus níveis e estruturas de mortalidade. Diante deste cenário o sistema de capitalização começa ganhar contornos atrativos, e vendáveis a população, pois este é mais viável a inclusão de indivíduos com mais idades mais avançadas a partir do cálculo de um prêmio, proporcionalmente mais elevado. Não-obstante, a despeito dos entraves demográficos e até mesmo laborais (o mercado informal prejudica o Regime Geral da Previdência Social, pois quem trabalha informalmente não contribui, mas vai precisar se aposentar), cabe ressaltar existe a possibilidade de coexistência dos regimes de repartição e capitalização. Lembremos somente que, mesmo no campo de um regime puro de repartição, deve ser postada a égide legal no sentido de obstar a redução dos benefícios a valores que impossibilitem a subsistência de um ser humano. As diretrizes que regem a Previdência Social estão pautadas no parágrafo único do art. 3º da Lei n.8.212/91, e do art. 2º da Lei n. 8.213/91, que são: universalidade de participação nos planos previdenciários, mediante contribuição; - valor da renda mensal dos benefícios, substitutos do salário-de contribuição ou de rendimento do trabalho dos segurados, não-inferior ao do salário mínimo; cálculo dos benefícios, considerando-se os salários-de-contribuição, corrigidos

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monetariamente; - preservação do valor real dos benefícios; - previdência complementar facultativa, custeada por contribuição adicional; uniformidade e de equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; - seletividade e distributividade na prestação dos benefícios; - irredutibilidade do valor dos benefícios de forma a preservar-lhes o poder aquisitivo; - caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados. As recentes reformas pelas quais vêm passando o sistema previdenciário brasileiro refletem os múltiplos aspectos (gestões irresponsáveis, com utilização de critérios políticos na designação de gestores, mercado informal crescente, demografia etc.) que permeiam essa seara e que confluíram nos últimos tempos. Entendendo que tanto o sistema hodierno oficial quanto o privado podem conviver sem problemas, isto é, um regime, não inviabiliza o outro; ao contrário, um complementa o outro. O regime de repartição possui um entrave financeiro, a abordagem atuarial e financeira deve ser levada em conta quando sopesamos o quanto a sociedade produz e contribui, e quanto pode ser pago aos aposentados; ficando claro que esses critérios de abordagem não podem servir de fonte exclusiva de uma análise previdenciária, sob pena de efetuarmos uma análise muito limitada. 67


A política econômica e tributária é também deletéria à manutenção das contribuições previdenciárias, segundo um contexto de falta de preservação e incentivo ao emprego e às contratações, digo isto, pois o Governo peca gravemente ao sobrecarregar as empresas de pequeno porte, porque é notório que são essas empresas as que mais empregam. Por conseguinte, não deveria haver sobrecarga, e sim incentivos que permitissem maiores investimentos e contratações, esse número mais elevado de contratações acarretaria, além do desenvolvimento do País, um maior aporte de recursos à Previdência Social por meio de contribuições. Todavia, preferem instituir uma verdadeira “derrama” na qual desde 1995 a carga tributária vem subindo drasticamente em relação ao nosso PIB, que, aliás, tende a diminuir a arrecadação, pois engessa a economia (o que podemos dizer é que sofremos os impactos desse efeito “cascata” na cadeia produtiva). O déficit previdenciário está intimamente tão profetizado, em breve será uma realidade. Quando ligado à política governamental falha. Como a Lei n. 8.212/91, art. 16, prevê que a União tem o dever de contribuir para Previdência Social, mediante os recursos adicionais do Orçamento Fiscal, a fim de cobrir eventuais insuficiências financeiras, o Tesouro Nacional acaba por suprir o déficit previdenciário. Isso significa que o País responde por parte dos custos previdenciários, e não somente 68

os segurados. Esse custeio geral dos benefícios não é errado, diante da nossa Constituição, que levanta a égide da guarida social, é evidente que o Estado teria a obrigação de assumir eventuais déficits previdenciários provenientes de receitas menores do que despesas com aposentados, e o faz por meio de repasses a população. O empecilho a essa assunção dos custeios por parte de toda a população se manifesta no pélago de recursos que por vezes são despendidos. O gasto estatal com previdência tem como limite a inviabilização do desenvolvimento do País. Assim, não se pode permitir que os atuais padrões dos aposentados do Regime Geral da Previdência Social piorem. Nesse ponto, a Previdência Privada oferece um apoio marcante na manutenção dos atuais ganhos dos aposentados. Em análise sobre a importância do enquadramento benefício previdenciário às necessidades humanas, o art. XXV da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948: cria um laço utópico, e igualitário a nossa Constituição de 1988, quando diz: “Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e serviços sociais indispensáveis e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle”. O equilíbrio financeiro e atuarial 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


previsto no art. 201 da Constituição tem por escopo garantir a subsistência autônoma do Regime Geral da Previdência Social, sem a ocorrência de déficit. Da mesma forma, o equilíbrio do empreendimento previdenciário privado também depende da observância dos cálculos financeiros e atuariais. Na Previdência Privada, esse equilíbrio é mais necessário, pois a União não está vinculada ao seu custeio, haja vista o notório caso de falência da Mongeral que é emblemático. Os contribuintes ficaram desamparados. Aliás, é justamente esse equilíbrio financeiro e atuarial, a ser aplicado em todo o ambiente previdenciário, que erige uma espada de Dâmocles, sobre a fronte dos estudiosos do Direito Previdenciário e da Previdência em geral. Isso porque essa regra que pressupõe o equilíbrio do sistema amiúde afronta certos princípios universais do ser humano, tais como a solidariedade e a generosidade. Devemos ainda considerar a fonte empírica da dinâmica demográfica, e as taxas de fecundidade e mortalidade. É muito penosa a delimitação previdenciária circunscrita aos limites dos princípios matemático-financeiros do equilíbrio atuarial. Afinal, temos como estereótipo de beneficiário de qualquer regime de previdência o idoso, a pessoa que merece um tratamento diferenciado e especial dentro da sociedade. Se a população é estável e não há crescimento salarial, o sistema de

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repartição simples é equivalente ao regime de capitalização total quando a taxa de crescimento populacional for igual à taxa de juros real, pois nesta situação ambos os sistemas proverão aos seus participantes a mesma taxa de retorno e o mesmo prêmio. Isto é, o prêmio será igual se ambos os sistemas possuírem a mesma taxa de benefício e o sistema de repartição simples for baseado em taxas de benefícios fixas e prêmios variados. Partindo desse contexto, uma elevação ou de crescimento populacional ou de taxa de juros real resulta em um aumento da taxa de retorno e uma diminuição do prêmio tornando, respectivamente, um dos sistemas mais atraente para o contribuinte. Para uma situação de crescimento salarial, caso a taxa de juros real seja igual a taxa de crescimento da população, e ocorra crescimento dos salários, então o sistema de repartição simples é mais vantajoso, pois sua taxa de retorno será igual ao crescimento populacional + 2 e o prêmio continuará igual, em contrapartida, no sistema de capitalização total o prêmio crescerá e a taxa de retorno cairá, pois a taxa de juros efetiva será igual a taxa de juros real -2. Em verdade, o regime de repartição simples é mais adaptável às variações do custo de vida do que o regime de capitalização mais vulnerável aos riscos inerentes às oscilações financeiras e econômicas.

69


A meu ver, existe um fator peculiar no Brasil que serve de subsídio à tese da manutenção do regime de repartição do Regime Geral da Previdência Social e jamais poderia ser olvidado: numerosas cidades brasileiras sobrevivem às custas dos benefícios do INSS. Realidade esta que ganhou destaque durante a pandemia frente às contingências sociais na área da assistência social: a pobreza extrema, o desamparo, e as Contingências sociais na área da saúde: a doença, a necessidade de medicamentos (inclusive de alto custo) e as necessidades sociais em termos preventivos (campanhas de vacinação, campanhas para prevenção de contágio e disseminação da doença), entre outras. CONCLUSÃO Em 2021, considerando cada região são provenientes dos benefícios do INSS, representando, portanto, a sobrevivência de populações inteiras. Dessa forma, com relação à coexistência de regimes (público de repartição, e privado de capitalização), não procede a idéia de que o contexto demográfico do aumento da população idosa, conjuntamente com um decréscimo da taxa de fecundidade, obstaria totalmente a manutenção de um regime de repartição estatal, pois o Estado poderia arcar com um déficit (plausível) de cunho social que possibilite u m ganho oficial de subsistência aos aposentados. Entretanto, deve haver um suporte externo (uma válvula de escape) que

70

complemente a renda auferida com o benefício previdenciário estatal. O regime de repartição deve figurar como uma garantia certa de subsistência do segurado na velhice (ou em outras contingências determinadas, como a invalidez). O envelhecimento da população, a queda da natalidade, o desemprego, e o crescimento dos mercados informais, estes são fatos que aumentam as despesas com benefícios e reduzem receitas de contribuições. Para enfrentar esses desafios é necessário buscar soluções baseadas no conceito clássico de Seguro Social, raiz da previdência, que difere da assistência e da poupança individual (capitalismo). Pela perspectiva da dinâmica demográfica, a solidariedade intergeracional nos impõe a responsabilidade de atualização periódica da legislação previdenciária, importante para incorporar tempestivamente novos aspectos sócios demográficos da população. Sem pretender me alongar a respeito, limito-me a registrar uma preocupação especial que é a expansão do chamado modelo previdenciário chileno (um misto de caderneta de poupança com Fundo de Garantia por Tempo de serviço e elimina a solidariedade inerente ao Seguro, e principalmente à modalidade especial dele que é a Previdência Social), que vários países sul-americanos adotaram sem alterações substanciais, e quando isso ocorre à sociedade retroage, quer na natureza humana, quer na ordem social e econômica. 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


Ao versar sobre a solidariedade intergeracional é primordial que se conserve as opções das futuras gerações, bem como a qualidade dos benefícios e serviços da seguridade e o acesso a estes. Não obstante seja evidente a importância do princípio da solidariedade intergeracional no âmbito do direito previdenciário, a teoria da solidariedade intergeracional encontra limites como a ausência de representatividade política dos interesses das gerações futuras, a inexistência de imputação de responsabilidade das gerações futuras relativamente às precedentes; a impossibilidade de atestar com certeza a inocuidade e irreversibilidade de certas condutas; a dificuldade de explicar a necessidade de se modificar ou eliminar hábitos em nome de interesses hipotéticos das gerações vindouras. Por fim, um regime integral de Seguridade, não os enfraqueceria os impulsos individuais e atenuaria a livre iniciativa para conseguir um mais elevado nível de vida, mas contribuiria para aumentar algumas tendências que induzem o indivíduo à indolência, em consequência de um nível médio que lhe é providencialmente oferecido pela comunidade. Também eliminaria o princípio mutualista de seguro e enfraqueceria notavelmente o impulso pessoal para enfrentar o risco futuro com o sacrifício atual. Além disso, estancaria a fonte da economia individual, necessária ao progresso econômico. Sendo assim, é preciso fortalecer o senso de

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responsabilidade, que parece no momento apagar-se como miragem da seguridade universal. Tal miragem, de fato, enfraquece notavelmente os motivos que estimulam o homem a intensificar o seu trabalho e se arrisca a transferir alguns conceitos do campo da sociologia para a mitologia. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BLANCHET, Didier. Um Systéme de retraite mixte par capitalization et par répartition permet-il de corriger les effects du vieillssement? Population, Paris, 43e année, n.1, p. 77 – 102. Jan-fev. 1988. BROWN WEISS, Edith. Citado em WOLFF, Simone. Meio Ambiente x Desenvolvimento + Solidariedade = Humanidade. Disponível em: < https://revistajuridica.presidencia.gov.br/ index.php/saj/article/view/566>. Acesso 21 de novembro de 2021. BUFFIL, Carlos Marti. In Derecho de Seguridad Social – Las prestaciones, Madri, 1964, p. 46/7. LAPKOFF, Shelley. Pay-as-you-go retirement systems in nonstable populations. Berkeley: University of California at Berkeley, program in Population Research, 1985, p. 21. MARTINEZ, Wladimir Novaes. Curso de Direito Previdenciário, 6ª ed. LTr, 2014. Princípios de direito previdenciário. 4ª ed. São Paulo: LTr, 2001. SCREBO, Ercole. Condições e limites da seguridade social, revista “Previdência Social”, INPS, n.º 14, 1969, p. 50. SILVA, Marcela Vitoriano e. O Princípio da Solidariedade Intergeracional: um olhar do Direito para o futuro. Veredas do Direito, Belo Horizonte, v.8, n.16, p.115-146, Julho/ Dezembro de 2011.

71


06

O AMOR NOS TEMPOS DO STF Márcia Hoffmann do Amaral e Silva Turri61

RESUMO O tema das famílias simultâneas ou paralelas retorna, na atualidade, como objeto de reflexão de juristas, filósofos, sociólogos, antropólogos, psicólogos, psicanalistas, escritores, jornalistas e tantos outros. O artigo pretende meditar sobre aspectos relacionados ao assunto a partir de entendimento recente do Supremo Tribunal Federal. PALAVRAS-CHAVE Direito previdenciário, união estável, casamento, concomitância, interpretação.

61 Doutoranda pela UBA; Representante Brasil Cielo Laboral; Articulista Latin-Iuris, Coordenadora do núcleo de Seguridade Social da ESA.OAB/SP (2019-2021); Coordenadora da pós em Compliance Trabalhista e SST, pelo Centro Universitário Metropolitano de São Paulo (FIG-UNIMESP); Relatora da 4ª Turma de Benefícios da CAASP (2019-2021); Membro da Comissão de Direito Previdenciário da OAB/SP (2019-2021); C.E.O do ITC.TFA, Fundadora da Advocacia Tatiana Fiore d’Almeida, Professora, Autora. 72

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1. INTRODUÇÃO

ou “calcular” ou “argumentar”, como

“Maioria dos ministros reafirma que Brasil é monogâmico”.62 Foi com essa chamada que a CNN Brasil noticiou que o plenário virtual do Supremo Tribunal Federal decidiu, por seis votos a cinco,63 que “amantes [sic] não têm direito de receber pensão por morte”. Expressões como o “Brasil é monogâmico” e “amantes não têm direito [...]” padecem de rigor técnico, mas é interessante observar sua força persuasiva perante o público em geral. Como destaca Jorge Larrosa Bondía,64

professor

na

Universidade

de Barcelona, “as palavras produzem sentido, criam realidades e, às vezes, funcionam como potentes mecanismos de subjetivação”. E continua: Eu creio no poder das palavras, na força das palavras, creio que fazemos coisas com as palavras e, também, que as palavras fazem coisas conosco. As

palavras

determinam

nosso

pensamento porque não pensamos com pensamentos, mas com palavras, não pensamos a partir de uma suposta genialidade ou inteligência, mas a partir de nossas palavras. E pensar não é somente “raciocinar” 62 Juíza Federal, Mestre e Doutora em Ética e Filosofia Política pela Universidade de São Paulo. 63 CNN Brasil, 15 dez. 2020. Disponível em: https://www. facebook.com/watch/?v=130271778769978. Acesso em: 18 nov. 2021. 64 Julgamento do Recurso Extraordinário 1.045.273/SE, leading case do Tema 529. Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

nos tem sido ensinado algumas vezes, mas é, sobretudo, dar sentido ao que somos e ao que nos acontece. E isto, o sentido ou o sem-sentido, é algo que tem a ver com as palavras (LARROSA BONDÍA, ibid., p. 21). Descrer do poder e da força das palavras significa ignorar, por exemplo, a quantidade assombrosa de relações duradouras que começaram a partir de um eu te amo! O Supremo Tribunal Federal não afirmou, ao decidir o conflito de interesses veiculado no Recurso Extraordinário

1.045.273/SE,

que

o

comportamento do brasileiro médio65 é essencialmente monogâmico. Tampouco cuidou dos amantes ou do suposto direito dos amantes, no sentido comezinho do termo.66 Não obstante, é de amor, no fundo, que se trata. Tanto a situação subjacente ao Tema 529, noticiada pela CNN Brasil, quanto à do Tema 526. E tantas outras configurações familiares plúrimas com as quais nos deparamos no cotidiano. Arranjos que falam, em suma, de amor. Amor. Tão pequena, esta palavra. Palavra bela, preciosa. Sentimento forte

e

inacessível.

Quatro

65 LARROSA BONDÍA, J. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, ANPEd, n. 19, p. 20-28, Abr. 2002. 66 Valho-me da expressão brasileiro médio por analogia à ficção jurídica do homem médio: “o homem adulto, senhor de seus atos, consciente racionalmente do que faz (FERRAZ JUNIOR, 2003). 73


letras apenas, gerando todos os

Posteriormente, o outro parceiro também

sentimentos do mundo. As mulheres

se socorreu do Judiciário para pleitear o

falam de amor. Os homens falam

direito ao benefício previdenciário, o qual

de amor. Amor que vai, amor que vem, que foge, que se esconde, que se procura, que se encontra, que se preza, que se despreza, que causa ódios e acende guerras sem fim.67

lhe foi reconhecido em primeiro grau de jurisdição e negado em segundo. O Tribunal de Justiça de Sergipe, embora reconhecendo a relação homoafetiva, negou o direito à metade da pensão. Considerou

juridicamente

impossível

a dupla união estável com fulcro no princípio da monogamia, que não admitiria

2. BREVE HISTÓRICO

a existência simultânea de mais de uma entidade familiar, independentemente da

2.1. TEMA 529

orientação sexual das partes.

Começo pelo Tema 529. O leading case

foi

o

Recurso

Extraordinário

1.045.273/SE, com repercussão geral reconhecida. A questão constitucional submetida a julgamento versou sobre a possibilidade, ou não, de reconhecimento jurídico de união estável e de relação homoafetiva

concomitantes,

com

o

consequente rateio da pensão por morte. O caso concreto envolveu uma disputa iniciada em Sergipe. O de cujos manteve relacionamentos

simultâneos

com

uma mulher, com quem teve um filho, e outro homem, com quem conviveu por doze anos. Após o falecimento do segurado, a mulher obteve, em juízo, o reconhecimento da união estável, sendo-lhe concedida a pensão por morte. 67 Amante, segundo o Dicionário Houaiss da língua portuguesa (2001, nota 1), é “que(m) ama; apaixonado”. No Brasil, o sentido mais usual do vocábulo, contudo, é: “pessoa que mantém relações sexuais extraconjugais com outra” (ibid., nota 3). 74

A discussão chegou ao Supremo Tribunal Federal por força de agravo em recurso extraordinário do companheiro do falecido. O julgamento iniciou-se em 25 de setembro de 2019, tendo sido suspenso por pedido de vista formulado pelo Ministro Dias Toffoli. Em dezembro de 2020, a Corte Suprema concluiu o julgamento por meio de sessão virtual. O relator, Ministro Alexandre de Moraes, assim se manifestou: A existência de uma declaração judicial de existência de união estável é, por si só, óbice ao reconhecimento de uma outra união paralelamente estabelecida por um dos companheiros durante o mesmo período, uma vez que o artigo 226, § 3º, da Constituição se esteia no princípio de exclusividade ou de monogamia, como requisito para o 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


reconhecimento jurídico desse tipo

benefício, desde que presente o requisito

de relação afetiva inserta no mosaico

da boa-fé objetiva. Pode haver o rateio, em

familiar atual, independentemente

outras palavras, conquanto que a pessoa

de se tratar de relacionamentos

não soubesse que o parceiro mantinha

hétero ou homoafetivos.

outra

Equiparando a união estável ao

ministro, não tendo sido comprovado que

casamento,

Moraes

concluiu

pela

impossibilidade de se reconhecer direitos à relação paralela. O ministro destacou que o artigo 1.723 do Código Civil impedia a concretização de união estável com pessoa já casada, sob pena de ficar configurada a bigamia, tipificada como crime pelo artigo

união

simultânea.

Segundo

o

os companheiros concomitantes estavam de má-fé,68 deve lhes ser concedida a proteção jurídica para os efeitos previdenciários decorrentes. Seguiram tal entendimento os Ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Marco Aurélio.

235 do Código Penal. Chamou a atenção,

Foi por uma maioria apertada de

como supramencionado, para o parágrafo

votos, portanto, que o Supremo Tribunal

3º do artigo 226 da Constituição da

Federal considerou ilegítima a existência

República, o qual, segundo Moraes, exigiria

paralela de duas uniões estáveis para

a exclusividade ou a monogamia como

efeitos

pré-requisito para o reconhecimento

o entendimento de que os deveres

jurídico da união estável. O relator foi

de fidelidade e monogamia vedam o

acompanhado pelos Ministros Ricardo

reconhecimento jurídico de entidades

Lewandowski,

familiares

Gilmar

Mendes,

Dias

Toffoli, Nunes Marques e Luiz Fux. O Ministro Edson Fachin abriu a divergência, pronunciando-se de modo favorável ao rateio da pensão. Sustentou que o caso não versava sobre direito civil ou de família, mas sobre direito previdenciário. Para Fachin, o cônjuge, o companheiro e a companheira são definidos como beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado, nos termos do artigo 16, inciso I, da Lei nº. 8.213/1991. Daí a admissibilidade da divisão do

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previdenciários.

concomitantes.

Prevaleceu

A

Corte

Suprema acabou por negar provimento ao recurso extraordinário, nos termos do voto do relator, vencidos os Ministros Edson Fachin, Roberto Barroso, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Marco Aurélio. Na sequência, firmou-se a seguinte tese: A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1.723, § 1º, do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, 68 CHIZANE, P. Niketche: uma história de poligamia. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 75


inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro.69 Apreciado o Tema 529, e ocorrido o trânsito em julgado da decisão paradigma, cumpre, aos juízes e tribunais, observar o decidido nas demandas que lhe forem submetidas,70 ainda que questionem, pessoalmente, o posicionamento majoritário do STF. Fora dos autos, não obstante, é perfeitamente lícito, ao magistrado, manifestar-se sobre temas jurídicos e até sobre decisões judiciais em obras técnicas e/ou no exercício do magistério, dentro do regime de liberdades e garantias previsto pela atual ordem constitucional.71

2.2. TEMA 526 Continuo, agora com o Tema 526. O leading case foi o Recurso Extraordinário 883.168/SC. Discutiu-se a possibilidade, ou não, de reconhecimento de direitos previdenciários na hipótese de união simultânea ao casamento. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região havia admitido o recebimento da pensão por morte de ex-combatente pela 69 Ou seja, ignoravam a concomitância dos relacionamentos. 70 STF, Plenário, Sessão Virtual de 11/12/2020 a 18/12/2020.

companheira do falecido, em concorrência com a viúva. A discussão chegou ao STF por força de recurso da União. O relator, Ministro Dias Toffoli, pronunciou-se pela impossibilidade de reconhecer direitos previdenciários nas relações que se amoldem ao instituto do concubinato. Sustentou que a recorrida não faria jus ao benefício, mesmo tendo convivido com o de cujus de 1998 a 2001, ano de sua morte, porque o falecido era casado naquela época. Invocando os princípios da monogamia, da exclusividade e da boafé, assim como os deveres de lealdade e fidelidade, Toffoli deu provimento ao recurso da União para reformar o acórdão de segundo grau. Em seu voto, o ministro relembrou o julgamento com tese de repercussão geral fixada no RE 1.045.273. Os demais ministros seguiram o entendimento do relator, com exceção do Ministro Edson Fachin. Único a divergir, Fachin circunscreveu seu voto em torno do campo previdenciário, sustentando que a questão central residia na boa-fé. Entendeu ser possível o reconhecimento de efeitos post mortem previdenciários a casamento e união estável concomitantes, desde que presente o requisito da boa-fé objetiva. Para Fachin, não ficou demonstrado, no caso concreto, que a esposa e companheira simultâneas estivessem de má-fé. Logo, deveria ser reconhecida a proteção jurídica para os efeitos previdenciários decorrentes. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento virtual finalizado em 03/08/2021,

71 V. Artigo 927 do Código de Processo Civil. 76

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apreciou o Tema 526 da repercussão geral e fixou, por maioria, a tese a seguir: É incompatível com a Constituição Federal o reconhecimento de direitos previdenciários (pensão por morte) à pessoa que manteve, durante longo período e com aparência familiar, união com outra casada, porquanto o concubinato não se equipara, para fins de proteção estatal, às uniões afetivas resultantes do casamento e da união estável.

3. PRINCIPAIS ARGUMENTOS

3.1. RELAÇÃO HOMOAFETIVA O fato de uma das relações ser homoafetiva não foi óbice ao rateio da pensão por morte no julgamento do Recurso Extraordinário 1.045.273/SE, até porque tal questão já havia sido decidida pelo STF. O próprio Ministro Alexandre de Moraes comentou que a matéria do reconhecimento de entidades familiares formadas por pessoas de mesmo gênero já estava pacificada pela Suprema Corte. Salientou que o STF, na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277/DF e na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132/RJ, “não chancelou a possibilidade de bigamia, mas sim conferiu a plena igualdade, independentemente da orientação sexual”. O Ministro Gilmar Mendes também aduziu que Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

todos os aspectos relacionados à homossexualidade eram irrelevantes para o deslinde do caso, citando os precedentes supra. A discussão, por conseguinte, não era se uma união heterossexual se sobrepõe a uma união homossexual, mas se seria possível reconhecer uniões estáveis concomitantes para fins de rateio de pensão por morte. Andou bem nossa Corte Suprema. Foi-se o tempo, afinal, do amor que não ousava dizer seu nome. A referência, por óbvio, é a outro julgamento célebre: do escritor, poeta e dramaturgo irlandês Oscar Wilde. Quando Wilde surgiu no cenário londrino, o relacionamento íntimo entre pessoas do mesmo sexo era mais conhecido por termos geralmente utilizados num sentido depreciativo, como uranismo, pederastia ou sodomia, muito embora a palavra homossexual já tivesse sido cunhada, em 1869, pelo médico húngaro Karoly Benkert. O fato, porém, é que o último vocábulo levou algum tempo para ser empregado no dia-a-dia, tendo sido absorvido, mais rapidamente, pela psiquiatria. No século em que a expressão foi inventada, a homossexualidade era considerada um crime. Com o evolucionismo, reforçou-se o entendimento de que a natureza podia dar respostas às questões morais. A natureza não errava. Por isso, o que fugisse à sua tendência era desvio, arcaísmo ou regressão. Daí para as teorias das anomalias foi um passo. “O imoral era um anormal, e o

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anormal, um degenerado ou um anômalo. Anômalo que, logo em seguida, tornou-se perverso [...]”,72 pervertido. Entre médicos e psiquiatras, ficou o estigma. O que era crime virou um misto de vício e doença: “doença dos espíritos viciosos ou espírito vicioso de doentes mentais degenerados ou portadores de aberrações instintivas”.73 O homossexual passou a ser uma espécie à parte da humanidade dita “normal”. Sua condenação migrou da esfera religiosa para a da ciência e do direito, de modo que os padres foram substituídos por médicos e juízes: uns tentando curar, outros julgando. Acusado de sodomita pelo Marquês de Queensberry, Oscar Wilde negou inicialmente, em juízo, qualquer prática homossexual. Diante, contudo, de provas irrefutáveis, entre as quais uma carta por ele enviada ao Lorde Alfred Douglas (mais conhecido pelo seu apelido: Bosie), partiu para a defesa de seu amor. Ao ser inquirido pela promotoria, Wilde retrucou com um dos discursos mais corajosos e contundentes sobre o tema, reconhecendo se tratar, numa tradução livre, da “grande afeição de um homem mais velho por um homem mais jovem, como aquela que houve entre Davi e Jônatas, o amor que Platão tornou a base de sua filosofia, o 72 Reporto-me, especialmente, ao artigo 5º, caput e incisos IV e IX da atual Constituição da República, assim como à ressalva do artigo 36, inciso III, in fine, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Complementar 35, de 14 de março de 1979). 73 COSTA, J. F. Impasses da ética naturalista: Gide e o homoerotismo. In: VVAA. Organização de Adauto Novaes. Ética. São Paulo, Companhia das Letras/Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p. 277. 78

amor que se pode achar nos sonetos de Michelangelo e Shakespeare”, mas admitindo que tal afeto era tão mal compreendido, no final do século XIX, que poderia ser descrito como o “amor que não ousa dizer seu nome”. OscarWilde acabou sendo condenado a dois anos de prisão com trabalhos forçados. Cumprida integralmente a pena, partiu diretamente para o exílio na França. Sem dinheiro, solitário e com a saúde irremediavelmente comprometida, passou a viver em hotéis baratos, ajudado pelos poucos amigos que lhe restaram, embriagando-se diuturnamente com absinto (que lhe rendeu, aliás, frases célebres). Morreu por causa de uma meningite, agravada pelo alcoolismo e pela sífilis, aos 46 anos de idade. Num primeiro momento, foi enterrado como indigente. Atualmente, jaz no cemitério Père Lachaise, o mais célebre de Paris, onde estão os túmulos de outros grandes expoentes do mundo das artes, como Balzac, Chopin e Molière. O julgamento e a condenação de Oscar Wilde tiveram repercussão internacional, seu eco se fazendo ouvir por muitas décadas adiante. Mesmo diante de defesas veementes, como a de Bernard Shaw, por exemplo, o episódio ajudou a firmar o estereótipo do homossexual como uma pessoa viciosa e decadente. Mas tudo isso é datado. Hoje em dia, é melhor pensar a homossexualidade simplesmente como uma possibilidade de realização afetiva e sexual. Desistindo de

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ver o homossexual como uma anomalia biológica ou psíquica, podemos continuar respeitando e cultivando com maior facilidade crenças igualmente importantes para nós, como a de que o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade são direitos inalienáveis do ser humano. Como diz o psicanalista e psiquiatra Jurandir Freire Costa, “se a vida e a liberdade são um problema de todos e por todos deve ser discutido e resolvido, a busca da felicidade é um problema de cada um [...]”, não precisando se justificar, “exceto quando esbarra na dor e na humilhação do outro”.74 3.2. BIGAMIA Também se argumentou que, na prática, o provimento da demanda significaria a aceitação da bigamia no Brasil, violando a Constituição da República, o Código Civil e o Código Penal. Desdobremos o argumento. O Código Penal, em seu artigo 235, tipifica a bigamia como crime. O raciocínio poderia ser enunciado, então, da seguinte maneira: “Se a bigamia é crime, não pode haver o reconhecimento de duas uniões estáveis”. É possível utilizar a bigamia por analogia em se tratando de uniões estáveis? Faz tempo que não atuo na esfera penal, mas, pelo que me lembro, é proibida a analogia em prejuízo do réu. Admite-se seu uso somente para beneficiar o acusado. No caso em tela, 74 Ibid. Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

o emprego da analogia com a bigamia prejudicou uma das partes. Há outra dificuldade: embora não haja acordo entre juristas nem lógicos sobre uma definição uniforme de analogia, é consensual que se trata de modo de integração do direito. Ela existe para suprir lacunas. Será que havia lacuna no direito positivo a exigir a atuação do intérprete em prejuízo de uma das partes? Uma questão que, por ora, deixo em aberto. 3.3. CONCUBINATO. Poder-se-ia questionar, em tese, a natureza do processo paradigma do Tema 526,75 mas não há dúvida de que o leading case do Tema 529 era de cunho eminentemente previdenciário. Por ocasião do julgamento do RE 1.045.273/ SE, aduziu-se que, apesar de a matéria ser previdenciária, tal ramo do direito se vale de institutos do direito de família para atribuir determinados direitos previdenciários. O próximo passo argumentativo foi mais delicado: o vínculo homoafetivo, pelo mero fato de ser posterior à união estável76 com a mulher, foi equiparado ao concubinato. É o que se deflui, v.g., da passagem em que o Ministro Alexandre de Moraes, invocando o artigo 75 COSTA, J.F. Op. cit., p. 287. 76 Em se tratando de demandas versando sobre pensão de ex-combatente, a jurisprudência oscila entre a natureza administrativa e a previdenciária do benefício. No sentido de que o cunho é eminentemente administrativo, v. TRF4, Corte Especial, Conflito de Competência 1999.70.00.032811-8, Relator Desembargador Vladimir Passos de Freitas, DJ de 08/05/2002, p.785; TRF3, Conflito de Competência 11964/ MS, Relatora Desembargadora Therezinha Cazerta, e-DJF3 Judicial de 15/07/2010, p. 84. 79


1.566, inciso I, do Código Civil,77 menciona a exigência de fidelidade recíproca durante o pacto nupcial como substrato do regime monogâmico. O concubinato não é admitido pelo direito de família. Logo, seguindo essa linha de raciocínio, o segundo relacionamento não poderia ser reconhecido para efeitos previdenciários. É o que se extrai da própria tese para fins de repercussão geral: A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1723, §1º, do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro (g.n.). Há menção ao artigo 1.723, § 1º, do Código Civil. Dispõe o referido preceito: Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. § 1º A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.

Não há norma sem interpretação. Como lembra Tercio Sampaio Ferraz Junior,78 “toda norma, pelo simples fato de ser posta, é passível de interpretação”. Existem, decerto, vários tipos de interpretação. A interpretação especificadora, por exemplo, parte do “pressuposto de que o sentido da norma cabe na letra de seu enunciado”.79 Postula, basicamente, que não é necessário ir muito longe para elucidar o conteúdo de uma norma jurídica. Era esse, provavelmente, o intuito do brocardo segundo o qual in claris, cessat interpretatio. O sentido literal da regra do artigo 1.723, § 1º, do Código Civil, é claro? Se fosse assim tão óbvio, seria impossível reconhecer, para fins previdenciários, o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo, porquanto o caput do aludido preceito refere-se, textualmente, à “união estável entre o homem e a mulher”. Parece-me inegável que, tomada essa norma à risca, conforme sua letra, chega-se a um resultado injusto, não desejado pelo ordenamento jurídico. Tal conclusão não destoa, na essência, do posicionamento do próprio STF.80 A união estável se define por exclusão do casamento civil. Daí a dificuldade de transpor o instituto do concubinato, intrinsecamente ligado ao casamento, à hipótese de uniões estáveis concomitantes, mormente na seara 78 Inserido no Capítulo IX — Da Eficácia do Casamento —, o artigo 1.566 do Código Civil prevê os deveres dos cônjuges. 79 FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 264

77 Reconhecida judicialmente, é importante destacar. 80

80 Ibid., p. 294. 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


previdenciária. A Constituição de 1988 fala explicitamente, acerca do direito à pensão por morte por parte do dependente do segurado da previdência social,81 em cônjuge ou companheiro. Não faz referência alguma ao concubinato. Como salientou o Ministro Carlos Ayres Brito no julgamento do Recurso Extraordinário n. 397.762/BA,82 não há concubinos para a Lei Mais Alta do nosso País, porém casais em situação de companheirismo. Até porque o concubinato implicaria discriminar os eventuais filhos do casal, que passariam a ser rotulados de ‘filhos concubinários’. Designação pejorativa, essa, incontornavelmente agressora do enunciado constitucional de que ‘Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação’ (§ 6.º do art. 227, negritos à parte). 13. Com efeito, à luz do Direito Constitucional brasileiro o que importa é a formação em si de um novo e duradouro núcleo doméstico. A concreta disposição do casal para construir um lar com um subjetivo ânimo de permanência que o tempo 81 Apesar de a CF/88 e do CC/2002 falarem em união de homem e mulher, o STF, ao julgar a ADI 4.277-DF em conjunto com a ADPF 132-RJ, entendeu que é possível a existência de uniões estáveis homoafetivas, ou seja, entre pessoas do mesmo sexo (ADI 4277, Relator Ministro Ayres Britto, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011). 82 V. Artigo 201, inciso V, da Constituição da República. Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

objetivamente confirma. Isto é família, pouco importando se um dos parceiros mantém uma concomitante relação sentimental a-dois. No que andou bem a nossa Lei Maior, a juízo, pois ao Direito não é dado sentir ciúmes pela parte supostamente traída, sabido que esse órgão chamado coração ‘é terra que ninguém nunca pisou’. Ele, coração humano, a se integrar num contexto empírico da mais entranhada privacidade, perante a qual o Ordenamento Jurídico somente pode atuar como instância protetiva. Não censora ou por qualquer modo embaraçante. É interessante a advertência de Renato Horta Rezende Advogado e Anderson Luiz de Souza Jaques:83 Ao se reconhecer que o dever de fidelidade e a monogamia constituem elementos obrigatórios a todos os modelos de família, ainda que o STF não tenha examinado com a devida profundidade e coerência tais temas, mas integrando estes a ratio decidendi, inclusive compondo o texto da tese nº 529 operou-se profunda repercussão no Direito das Famílias capaz de reduzir a proteção a que os autores familiarista atribuem ao §4º do art. 226 da Constituição da República de 1988, mantendo o casamento como referencial para todas as famílias mesmo para aqueles que 83 STF, RE 397.762-/BA, Primeira Turma, julgado em 03.06.2008. 81


não compartilham desta cosmovisão e convivam substancialmente como família dentro de uma concepção eudemonista, o que indubitavelmente reduz a abrangência da proteção estatal às famílias. 4.4. ARTIGO 226 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA Alegou-se reconhecimento

que da

a

restrição

segunda

ao

união

estaria amparada pelo artigo 226, § 3º, da Constituição da República. Reza tal dispositivo: Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. [...] § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. A Constituição determinou à lei que facilitasse a conversão da união estável entre homem e mulher em casamento, decerto, mas não determinou, expressamente, que apenas a entidade familiar estruturada nos moldes do que o direito civil denomina de concubinato

especificamente da pensão por morte no âmbito da Previdência Social: tratase do artigo 201, inciso V. Cuidarei desse assunto mais adiante. Antes, gostaria de adentrar brevemente na questão da autonomia do direito previdenciário. 4.5. AUTONOMIA PREVIDENCIÁRIO

DO

DIREITO

Em determinado momento do julgamento do RE 1.045.273/SE, a Ministra Carmen Lúcia lembrou que se tratava de processo previdenciário, e não de sucessão ou possível sucessão. Esse aspecto me parece de vital importância. O olhar do direito previdenciário, afinal, é diferente. É um olhar de repartição, de compartilhamento: de divisão de algo por todos. Como assinala a Desembargadora Federal Marisa Ferreira dos Santos,84 os resultados da exegese previdenciária “nunca podem acentuar desigualdades nem contrariar o princípio da pessoa humana”. O Ministro Luís Roberto Barroso indagou, no mesmo julgamento, se importava, para a previdência social, saber qual teria sido a primeira relação. Seria relevante, para o direito previdenciário, apurar quem contribuiu mais para a vida de outrem? Não me refiro, aqui, apenas aos aspectos materiais. Comentei, em

puro seja passível de proteção estatal. De se ponderar, ainda, que o artigo 226 diz respeito à família, tutelada por vários ramos do direito, ao passo que existe outro artigo, na Constituição, que cuida

82

84 REZENDE, R. H.; JAQUES, A. L. S. As uniões paralelas e os reflexos da Tese nº 529 do STF. In: Rezende, Renato Horta; Coelho, Thais Câmara. (Org.). Temas atuais em famílias e sucessões. 1. ed. Belo Horizonte: Renato Horta Rezende, 2021, v. 1, p. 226-255.

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outro lugar,85 que a solidariedade confere sentido à previdência social. Ora, a divisão dos bens materiais, por si só, não faz a solidariedade. Regida apenas pela dimensão racional, a distribuição equitativa pode abrigar a indiferença, o egoísmo e até o ódio. É o que Delsol (2002, p. 191) denomina de justiça sem amor. A solidariedade requer mais: exige uma “vida na divisão, não para realizar uma justiça que colocaria enfim o mundo no lugar, mas para assumir juntamente a finitude humana” (DELSOL, 2002, p. 191, grifos no original). É o face a face que dá sentido à divisão. Daí, alegoricamente, o motivo de os cinco pães e dois peixes terem sido capazes de saciar cinco mil homens (Mt 14.13-21): porque mediados, no encontro entre desiguais, pelo amor e pela compaixão (HOFFMANN, 2019, p. 147). Compartilhar, verbo bitransitivo: partilhar ou repartir com. A previdência compartilha. A história do julgamento do Rei Salomão é conhecida. Retomo alguns pontos principais apenas para ilustrarminha analogia com o direito previdenciário. Duas mulheres compareceram diante do rei. Ambas afirmavam ser mãe da mesma criança. Salomão sugeriu dividir o bebê em duas partes, dando metade a uma e a outra metade à outra. Uma das mulheres 85 SANTOS, M.F. Direito previdenciário esquematizado. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 46. Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

aprovou tal solução facilmente,86 enquanto a outra implorou para que o filho fosse dado à rival.87 Com essa estratégia, Salomão pôde constatar qual delas era a impostora, entregando a criança à sua verdadeira mãe: aquela que queria o filho vivo, ainda que sob os cuidados de outra mulher. Israel ouviu a sentença e todos demonstraram muito respeito para com seu rei, “pois viram que possuía uma sabedoria divina para fazer justiça” (1Rs 3.28). O que faria o Salomão previdenciário? Penso que o Juiz Salomão talvez designasse uma audiência de conciliação para promover um acordo sobre a guarda compartilhada. Claro que estou falando em linguagem figurada. Mas gostaria de insistir neste aspecto: a previdência distribui, reparte. E esta é uma premissa importante do meu raciocínio: estamos no campo do direito previdenciário, e não na esfera do direito de família ou de sucessões. É por isso que importa verificar, na Constituição da República, qual o preceito que cuida da pensão por morte no âmbito previdenciário. 4.6. ARTIGO 201, V, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA Parece-me, com todas as vênias, que é a norma veiculada pelo artigo 201, inciso V da Constituição da República a mais adequada para figurar como vetor 86 HOFFMANN, M. Um toque de solidariedade. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. v. 1. 184p . 87 “Ele não seja nem meu nem teu, cortai-o!” (1Rs 3.26). 83


para soluções interpretativas dentro do contexto securitário. É no artigo 201, inciso V, que se encontra o fundamento da pensão por morte. Dispõe o aludido preceito: Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma do Regime Geral de Previdência Social, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, na forma da lei, a: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019) [...] V - pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, observado o disposto no § 2º. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998) Trago, para o universo jurídico, indagação que é habitual na esfera literária: há limites ao significado que se pode dar a uma norma? Parafraseando Umberto Eco,88 diria que, entre a intenção do legislador originário e a intenção do operador jurídico, existe, por assim dizer, a “intenção da norma”. Qual a “intenção da norma” do artigo 201, inciso V? Lendo o inciso V do artigo 201, vê-se que a Constituição assegura a pensão por morte do segurado, homem ou mulher, também ao companheiro ou companheira, sem entrar em pormenores. 88 “Ó meu senhor! Que lhe seja dado então o menino vivo, não o matem de modo nenhum!” (1Rs 3.26). 84

Em outras palavras, a Constituição de 1988 não determina que a relação entre o segurado e seu companheiro ou companheira só será objeto de proteção securitária se não houver impedimentos jurídicos para o casamento nem delega a outrem a tarefa de preencher eventual lacuna na conformação do fato regulado. A ausência de detalhamento dessa relação impõe, portanto, certos limites exegéticos. Impede uma leitura tão descomprometida com as palavras do texto que faça com que o alcance da norma constitucional fique aquém de sua intenção, que é o que ocorre quando o legislador ordinário ou o intérprete resolve proteger um conjunto de pessoas menor do que aquele tutelado pela Constituição. Parafraseando novamente Umberto Eco, diria que, entre a intenção inacessível da Assembléia Nacional Constituinte e a intenção do intérprete, está a intenção transparente do preceito constitucional, que invalida uma interpretação que limite a proteção securitária. Com todas as vênias possíveis, dados os limites do significado que se pode dar ao artigo 201, inciso V, parece-me demasiadamente restritiva uma interpretação que inclua uma condição não contemplada pela norma constitucional para o reconhecimento da união estável. 89

Que condição seria essa? A ausência de casamento ou de outra união estável. Poder-se-ia objetar que o caput do artigo 89 Eco, U. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


201 valeu-se da expressão “nos termos da lei”, o que daria, em tese, uma margem de liberdade ao legislador ou ao intérprete para estender ou restringir os marcos significativos dos conceitos inseridos no inciso V. Em contraposição a essa réplica, volto a me socorrer da crítica literária para lembrar que as palavras de um texto constituem um conjunto de evidências materiais que o leitor não pode ignorar. Cito, para ilustrar, o argumento levantado por Umberto Eco,90 que, embora paradoxal, prova que existem casos em que uma interpretação é decididamente ruim: se Jack, o Estripador, nos dissesse que fez o que fez baseado em sua interpretação do Evangelho segundo São Lucas, suspeito que muitos críticos voltados para o leitor se inclinariam a pensar que ele havia lido São Lucas de uma forma despropositada. Os críticos não voltados para o leitor diriam que Jack, o Estripador, estava completamente louco – e confesso que, mesmo sentindo muita simpatia pelo paradigma voltado para o leitor, [...] muito a contragosto eu concordaria com que Jack, o Estripador, precisava de cuidados médicos. Corroborando tal entendimento, lembro que a Constituição reverencia a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, 90 Ibid. Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

consagrando valores mais sintonizados com a realidade contemporânea do que aqueles agasalhados pela ordem jurídica anterior a 1988. Aquela, no entanto, já admitia o amparo social da companheira do segurado casado, como se verifica pela Súmula nº 159 do extinto Tribunal Federal de Recursos, que dizia ser “legítima a divisão da pensão previdenciária entre a esposa e a companheira, atendidos os requisitos exigidos”. Cotejando o artigo 201, inciso V, com outros dispositivos da Constituição, tais como o artigo 1º, inciso III — que erige a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos de nosso Estado Democrático de Direito —, e com o artigo 3º, inciso IV — que elenca, no rol dos objetivos fundamentais de nossa República, a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação —, talvez seja possível concluir que a união estável de duas pessoas possa ensejar a proteção securitária, em tese, ainda que uma delas seja casada ou tenha outra união estável. Tal interpretação garante melhor, inclusive, a universalidade da cobertura, veiculada no artigo 194, parágrafo único, inciso I. Anoto que a pensão previdenciária é um substituto da remuneração do segurado falecido aos seus dependentes, os quais devem ser acudidos indistintamente, na ausência do provedor, a fim de que possam, em suma, continuar vivendo. Ora, por mais

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louvável que seja resguardar a sociedade conjugal das agruras do adultério, parece-me indubitável que, na escala de valores consagrada pela Constituição em vigor, a subsistência humana configura preocupação mais elevada. Lembro que, mesmo no STF, houve divergência. O Ministro Barroso recordou que não havia lei proibindo uma pessoa que vivesse em relação estável ter outra união. A divergência no julgamento do RE 1.045.273/SE foi significativa, revelando como o tema é intrincado. Não tenho bola de cristal, mas sinto que o debate ainda não terminou. Foi a sociedade brasileira, dinâmica, plural e complexa, quem impôs a necessidade da discussão. Não foi o Judiciário. Acrescento, ainda, que, do ponto de vista do erário, tanto faz: não há impacto financeiro. Para o INSS, é indiferente pagar um salário mínimo para uma pessoa, digamos, ou meio salário mínimo para duas. Do ponto de vista dos dependentes desamparados, no entanto, o impacto (negativo) é tremendo. Há valores, de resto, mais importantes do que a moral e os ditos bons costumes. O amor, por exemplo. E a vida.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. Tradução de Euclides Martins Balancin et al. São Paulo: Paulus, 2004. CHIZANE, P. Niketche: uma história de poligamia. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. COSTA, J. F. Impasses da ética naturalista: Gide e o homoerotismo. In: VVAA. Organização de Adauto Novaes. Ética. São Paulo, Companhia das Letras/Secretaria Municipal de Cultura, 1992. ECO, U. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2001. FERRAZ JUNIOR, T. S. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003. HOFFMANN, M. Um toque de solidariedade. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. v. 1. 184p. HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. São Paulo: Objetiva, 2001. LARROSA BONDÍA, J. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, ANPEd, n. 19, p. 20-28, Abr. 2002. REZENDE, R. H.; JAQUES, A. L. S. As uniões paralelas e os reflexos da Tese nº 529 do STF. In: REZENDE, Renato Horta; COELHO, Thais Câmara. (Org.). Temas atuais em famílias e sucessões. 1. ed. Belo Horizonte: Renato Horta Rezende, 2021, v. 1, p. 226-255. SANTOS, M.F. Direito previdenciário esquematizado. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2021.

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A BUSCA DA EFETIVIDADE DA PROTEÇÃO SOCIAL: da necessidade da inserção da licença parental como direito humano fundamental à igualdade de gênero Miguel Horvath Júnior 91 Juliana de Oliveira Xavier Ribeiro92 RESUMO A alteração da composição familiar e a crescente participação da mulher no mercado de trabalho impuseram modificações significativas no ambiente familiar e laboral. Os instrumentos sociais utilizados até o presente momento para a efetivação da proteção social diante da maternidade causam desigualdade de gênero provocando por vezes a preterição da mulher no mercado de trabalho e reforçando os papeis tradicionais entre pai e mão/ homem e mulher. O presente artigo fará busca histórica da origem da desigualdade de gênero, bem como como analisará os meios protetivos atuais que mantém a desigualdade de gênero apontando para a necessidade e urgente da inserção da licença parental com o direito humano fundamental e mecanismo da não discriminação de gênero. PALAVRAS-CHAVE Direito humano fundamental, efetividade da proteção social, igualdade de gênero, licença parental, licença paternidade e salário maternidade.

91 ECO, U. Op. cit. 92 Doutor em Direitos Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) . Mestre em Direito Previdenciário pela PUC-Sp. Professor do Programa Stricto Sensu de Direito e da Graduação da PUC- SP . Membro da Academia Brasileira de Seguridade Social (ABDSS). Membro da advocacia Geral da União (Procurador Federal). Autor de obras jurídicas. 88

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1. INTRODUÇÃO Historicamente e legislativamente na sociedade ocidental e, especificamente, na sociedade brasileira, homens e mulheres ocupam nichos diferentes na divisão do trabalho, causando discriminação de gênero das mulheres em relação aos homens. Esta característica social impõe a busca pela redução de desigualdades, para que se possa conseguir a almejada justiça social. Na busca pela efetivação da justiça social através da redução de desigualdades a concessão da licença parental ganha múltiplas dimensões que serão analisadas neste artigo. O disparate existente entre a licençamaternidade e a licença-paternidade configura um tipo de exemplo sobre essa diferenciação da divisão sexual do trabalho entre homens e mulheres na sociedade atual. Isso porque, a discrepância entre os tipos de licença tendo como critério apenas o gênero, reforça os papéis que a mulher deve cuidar da esfera reprodutiva sexual (filhos e casa), e que os homens devem estar nas esferas produtivas da sociedade, possuindo o seu trabalho maior status social agregado. Esta distorção social jurídica deve ser combatida. O presente artigo visa discutir a licença parental como mecanismo legal de promoção da igualdade de gênero nas relações trabalhistas-previdenciáriasfamiliares. Busca o presente artigo analisar se é possível classificar a licença-parental como direito humano fundamental, a Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

fim de efetivar um outro direito humano fundamental, que é a igualdade de gênero entre homens e mulheres. Além de investigar quais são os mecanismos jurídicos existentes no ordenamento jurídico pátrio em relação à licença parental. O tipo de pesquisa aplicada foi a bibliográfica e adotado o método dedutivo, que parte da premissa maior, para chegar até um ponto mais específico, que é a premissa menor. Ou seja, parte se da reflexão mais geral, que é a reprodução sexual do trabalho na sociedade, até chegar em um ponto mais específico, que é a necessidade da efetivação da licença parental como direito humano fundamental. 2. A HISTÓRICA DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO ENTRE HOMENS E MULHERES Historicamente, na sociedade ocidental em geral os homens – especialmente os brancos – ocupavam os espaços públicos e de poder, exercendo cargos como advogados, governantes, professores, médicos, dentistas, fazendeiros, dentre outros. Já as mulheres, especialmente as mulheres brancas ocupavam os nichos domésticos, sendo responsáveis pelas obrigações e os afazeres familiares e da casa, como cuidar dos filhos e limpar da casa. Frisa-se, ainda, que tal divisão do trabalho através dos papeis de gênero

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ressaltam ainda os critérios de raça. Isto porque no período da escravatura não só os homens negros eram escravizados, mas também as mulheres negras. Nesse sentido, a mulher negra já trabalhava fora de sua casa desde o período escravocrata, além de sofrer todas as outras violências e explorações advindas da escravidão. Desse modo, historicamente, a mulher negra não ocupa o mesmo lugar na divisão do trabalho na perspectiva de gênero do que a mulher branca. Percebe-se então que a formação e a consolidação da proteção jurídica brasileira da mulher, pautou-se em uma perspectiva de que ela é a responsável pelo cuidado da casa e dos filhos, enquanto os homens seriam responsáveis por ocupar os espaços públicos e de poder no mundo do trabalho e político. Tal quadro retrata a desigual divisão sexual do trabalho. A categoria divisão sexual do trabalho nasceu na França na década 1970, com a insurgência dos novos movimentos sociais, destacando-se o movimento feminista, que denunciava o quadro de opressão em que as mulheres viviam em relação aos nichos de trabalho, dentre outras reivindicações. Este conceito foi espalhado em outros países e movimentos de mulheres ao redor do mundo. Hirata e Kergoat (2007, p. 597599) explicam melhor o contexto do surgimento do termo divisão sexual do trabalho na França, afirmando que foi com a tomada de consciência de uma “opressão” especifica que teve início o

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movimento de mulheres, haja vista que se tornou evidente que uma enorme carga de trabalho é efetuada gratuitamente pelas mulheres. Trabalho realizado não somente para elas mesmas, mas para os outros, sempre em nome da natureza e do dever materno. A divisão sexual do trabalho como forma de distinção do trabalho social decorrente das relações sociais entre os sexos é modulada histórica e socialmente, tendo como características a designação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apropriação pelos homens das funções com maior valor social adicionado. A divisão sexual do trabalho se funda no princípio da separação que aponta existir trabalhos que são considerados de homens e trabalhos que são considerados de mulher e no princípio hierárquico, em que o trabalho do homem vale mais que o trabalho da mulher. No Brasil, a divisão sexual do trabalho e a discrepância de papeis de gênero entre homens e mulheres projetamse no direito de família e no direito de proteção à infância e adolescência. Alguns desses direitos são tutelados pelo direito trabalhista-previdenciário, como por exemplo, a licença-paternidade e o salário maternidade. Tais benefícios legitimam os estereótipos de papeis de gênero, reforçando a função da mulher como cuidadora do lar e da família, e do homem como provedor financeiro da entidade familiar. Dessa maneira, faz-se

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importante compreender melhor como são estabelecidos tais prestações. 3. A LICENÇA-MATERNIDADE E A LICENÇA-PATERNIDADE: MECANISMO JURÍDICOS PARA A DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO A licença-gestante enquanto expressão da proteção de natureza trabalhista está prevista no art. 7º, início XVIII da Constituição Federal assegurando direito ao afastamento de suas atividades laborais sem prejuízo do emprego e do salário pelo prazo de cento e vinte dias. Destacamos ainda que o direito à licença gestante por força da Lei n. 11.770/2008 facultou a possibilidade da extensão de tal licença por mais 60 dias desde que a empregada esteja vinculada a uma empresa que aderiu ao Programa Empresa Cidadã. Sem olvidar que o direito ao salário maternidade enquanto expressão da proteção de natureza previdenciária tem fundamento no artigo 201, inciso II da Constituição Federal e Lei n. 10.421/2002. O ordenamento pátrio efetivou um grande avanço ao prever a proteção à maternidade adotiva com a edição da Lei nº 10.421, de 15 de abril de 2002. Os homens, por sua vez, tem acesso à licença paternidade quando do nascimento de seus filhos pelo período de 05 (cinco) dias, com base na previsão do art. 7°, inciso XIX, da Constituição Federal ao afirmar que são direitos dos trabalhadores

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urbanos e rurais a licença-paternidade, além de estar prevista no artigo 10, §1° no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, ao afirmar que até a promulgação de Lei Complementar que discipline o referido artigo 7°, inciso XIX da CF, o prazo da licença-paternidade é de 5(cinco) dias. Posteriormente, com a edição da Lei n.º 11.770/2008, ficou determinado que a licença-paternidade poderia ser prorrogada por mais 15 (quinze) dias, nos casos em que a empresa seja inscrita no Programa Empresa Cidadã, mediante concessão de incentivo fiscal (podendo a empresa deduzir o valor pago do que deve a título de imposto de renda pessoa jurídica). A licença paternidade tem natureza jurídica de direito trabalhista, enquanto o salário maternidade tem natureza de benefício previdenciário. A contingência social maternidade está prevista no rol do art. 201 da Constituição Federal de 1988 e Lei n. 10.421/2002. Cabe aqui ressaltar que esse formato de proteção se encontra em descompasso com as transformações recentes na composição da família brasileira. Isso porque segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) o formato familiar heterossexual, de um pai e uma mãe e filhos, vem diminuindo cada vez mais números na estatística: Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) revelam 91


que, desde 2005, o perfil composto unicamente por pai, mãe e filhos deixou de ser maioria nos domicílios brasileiros. Na pesquisa de 2015, o tradicional arranjo ocupava 42,3% dos lares pesquisados. Uma queda de 7,8 pontos percentuais em relação a 2005, quando abrangia 50,1% das moradias. Por outro lado, novas tendências ganharam força. Em 2015, por exemplo, quase um em cada cinco lares era composto apenas por casais sem filhos (19,9%), enquanto que em 14,4% das casas só havia um morador. (IBGE, 2017, p. 18). Tais dados podem ser melhor compreendidos em face do avanço exponencial da mulher no mercado de trabalho, gerando a diminuição das taxas de natalidade. Ademais, com o reconhecimento legal do divórcio, outros tipos de arranjos também vêm ganhando contorno na realidade brasileira, como a família mosaica ou reconstituída. A família reconstituída, mosaica ou pluriparental está diretamente ligada ao recomeço de uma nova entidade familiar com integrantes e descendentes de uma entidade familiar anterior, tendo em vista que será originada após a dissolução de um vínculo conjugal anterior. Segundo MADALENO ( 2019, p.11): “A partir do casamento podem surgir e é comum que surjam diferentes ciclos familiares experimentados depois da separação, ficando a prole com a mulher em uma nova 92

conformação familiar, dessa feita uma entidade monoparental. Seguindo sua trajetória de vida e, sobrevindo ou não o divórcio, ela se casa novamente ou estabelece uma união estável e passa a constituir uma nova família, que não tem identificação na codificação civil, e passou a ser chamada de família reconstituída, mosaica ou pluriparental”.” As diferenças quanto à proteção entre homens e mulheres reforçam os papéis e comportamentos de gênero que são historicamente considerados como de homens e mulheres. Sobre o tema destacamos reflexão de Luana Pinheiro, Marcelo Galiza e Natália Fontoura acerca desse desatino: [...] É nítido, portanto, que os benefícios previstos focalizam, prioritariamente, os direitos reprodutivos das mulheres, oferecendo poucas possibilidades aos homens de se comprometerem com o exercício da paternidade responsável, bem como ignorando a existência de famílias homoafetivas e monoparentais masculinas. Nesse contexto, nota-se que o aparato legal contribui no mínimo para a manutenção e a reprodução de uma realidade bastante desigual no que diz respeito à divisão sexual do trabalho reprodutivo. (FONTOURA; GALIZA; PINHEIRO; 2009, p. 854).

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O Conselho Nacional de Justiça (2015, p.8) destaca que o censo escolar de 2011 registrou que há 5,5 milhões de crianças e adolescentes no Brasil que não possuem o registro paterno na certidão de nascimento. Neste contexto é fundamental se criar mecanismo que não faça discriminação entre homens e mulheres, e que nem reforce estereótipos de papeis de gênero na divisão do trabalho. Nesta medida surge de maneira exponencial a licença-parental, que na sua nomenclatura não traz subjugações sobre os papeis que homens e mulheres exercem no mundo do trabalho, bem como nos afazeres domésticos, além de ser instrumento de combate à não discriminação da mulher no mercado de trabalho. Isto porque, como a genitora possui maior tempo de afastamento do que o homem na licença, isso acaba por gerar distinção entre os sexos, fazendo que muitos empregadores, ainda que de maneira velada, prefiram contratar empregados homens. 4. A LICENÇA PARENTAL COMO MECANISMO DANÃO DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO NO BRASIL A Constituição Federal de 1988 assegurou modificações importantíssimas no seio da família como a possibilidade do reconhecimento de filhos sem quaisquer restrições, a igualdade entre filhos, a proteção dos integrante da família individualmente, bem como a família plural. Além do direito de igualdade Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

entre homem e mulher, nos termos do art. 5º, inciso I . “Nenhum princípio da Constituição provocou tão profunda transformação do direito de família quanto o da igualdade entre homem e mulher e entre os filhos. Todos os fundamentos jurídicos da família tradicional restaram destroçados, principalmente os da legitimidade, verdadeira summa divisio entre sujeitos e sub-sujeitos de direito, segundo os interesses patrimoniais subjacentes que protegiam, ainda que razões éticas e religiosas fossem as justificativas ostensivas. O princípio da igualdade de gênero foi igualmente elevado ao status de direito fundamental oponível aos poderes políticos e privados (art. 5º, I, da Constituição)” (LOBO NETO, p. 154). O instrumento de proteção social para a efetivação do direito à proteção à família é a seguridade social. A seguridade social como direito social caracterizase pela humanização do direito e por sua desmaterialização, pois não se pode submeter o cumprimento e efetivação da proteção social às exigências econômicas pura e simplesmente. Enquanto técnica de proteção social e política social têm como finalidade precípua assegurar a paz social e o bem estar social através do asseguramento do bem estar individual de todos os integrantes da sociedade. A seguridade social visa garantir a mais justa distribuição dos bens entre os integrantes de uma sociedade, qualquer que seja sua estrutura organizacional econômica

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ou orientação ideológica. A forma de estruturação dos sistemas de proteção social é feita adotando-se parâmetros culturais e políticos. Tem-se na seguridade social, formato mais complexo de proteção, um instrumento de concretização de justiça social e, consequentemente, um método de economia coletiva. A política social é a ação do Estado que visa atender as necessidades sociais como, por exemplo, habitação, cultura, educação, lazer, saúde, assistência social e previdência social, entre outras, atuando por meio de várias técnicas de proteção social, A política social familiar não pode ser encarada como gasto/despesa, mas sim como investimento a longo prazo. O Estado deve direcionar recursos às necessidades de jovens desempregados, assistência ao idosos, formação de competência (educação ocupacional e instrução em geral), ampliação da proteção à maternidade (no caso brasileiro a implantação da licença-parental). Há um elo invisível e indissociável entre família e proteção social. A estrutura dos riscos e necessidades sociais é amplamente impactada pela instabilidade na família. As sociedades familiares atuais que formam as atuais sociedades humanas, pelo seu modelo consumista e evolucionista exigem famílias com mais de uma fonte de renda. As estratégias visando a proteção social da família é vital para a manutenção dos sistemas protetivos sociais. Ameaçar a

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família é ameaçar a sociedade. Assim como ameaçar a proteção social, significa ameaçar a família. A questão da proteção familiar é tão grande que a Convenção da OIT n. º 183 de julho de 2000 formalizou a licença parental visando o compartilhamento da proteção social entre homens e mulheres de tal forma que se garanta a permanência no mercado de trabalho tanto do homem quanto da mulher. Os países que proporcionam garantia de trabalho às famílias com filhos no momento de educação primária, apresentam melhores taxas de fertilidade. O modelo social implementado em cada país, revela a compatibilização entre produtividade e justiça social. Para a manutenção e expansão do modelo de proteção social, hodiernamente se impõe um diálogo permanente ente o poder executivo, poder legislativo, poder judiciário e população. No Brasil, não há no Regime Geral de Previdência Social, nenhuma espécie de licença compartilhada entre pai e mãe em vida para poder cuidar de seu filho. Este fato prejudica muito o reconhecimento da igualdade de gênero relativo às relações familiares no Brasil e produz efeito jurídico e social inverso ao desejado, tendo em vista primeiramente que estimulará a discriminação da mulher no mercado de trabalho, desencorajando a contratação de mulheres, especialmente em idade fértil, bem como prejudica a relação entre recémnascido e o seu pai, o que impede um melhor empenho da função afetiva do pai. 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


No Brasil destacamos como avanço a edição do Decreto Legislativo n. º 4.377/2002 que aprovou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, assinada pela República Federativa do Brasil, em Nova York, no dia 31 de março de 1981: Tendo

presente

a

grande

contribuição da mulher ao bem-estar da família e ao desenvolvimento da sociedade, até agora não plenamente reconhecida, a importância social da maternidade, a função dos pais na família e na educação dos filhos, e conscientes de que o papel da mulher na procriação não deve ser causa de discriminação, mas sim que a educação dos filhos exige a responsabilidade entre

homens

sociedade,

compartilhada e

mulheres

na

como

conjunto,

de

forma que para alcançar a plena igualdade entre o homem e a mulher é necessário modificar o papel tradicional, tanto do homem, como da mulher na sociedade e na família. (Sem grifos no original). No âmbito internacional destaca HORVATH (2004, pp. 61-62) a Convenção n.º 183 da OIT de julho de 2000 estabeleceu as seguintes disposições: a) licença maternidade de pelo menos quatorze semanas, das quais seis deverão ser fruídas obrigatoriamente depois do parto, com exame periódico para estender o período total da licença; b) pagamento Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

de pelo menos 2/3 do salário durante a licença-maternidade, com exame periódico para aumentar o valor do benefício; c) direito a vários períodos de interrupção da jornada diária para amamentação, contagem dessas interrupções como horas de trabalho e remuneração como tal; d) proibição da dispensa durante a gravidez, a licença-maternidade e o período de reingresso ao trabalho, segundo a determinação da legislação nacional, exceto por razões não vinculadas a gravidez, ao parto ou à lactância, com prova a cargo do empregador; e) com o objetivo de proteger a situação das mulheres no mercado de trabalho, as prestações médicas e pecuniárias deverão ser financiadas mediante um seguro social obrigatório ou com recursos de fundos públicos, segundo determinação da legislação nacional; f) desobrigação do empregador custear pessoalmente as prestações pecuniárias devidas às mulheres; g) recomendação de que as contribuições ou impostos que financiam as prestações por maternidade sejam pagas levando-se em conta o número total de empregados, sem distinção do sexo; h) proteção da saúde da mulher grávida ou lactante, com a proibição de realizar tarefas prejudiciais para sua saúde ou de seu filho; i) obrigação de adotar medidas destinadas a garantir que a maternidade não constitua uma causa de discriminação no emprego, incluindo o acesso a este (entre estas, a proibição da exigência do teste de gravidez para admissão). 95


Uma das principais inovações desta Convenção foi a previsão da licença parental que pode ser definida como direito familial que faculta a possibilidade do pai e ou da mãe de se afastar de suas atividades laborais, parcialmente ou em tempo integral, por um certo período de tempo para criação e educação dos filhos, assegurada a reintegração ao trabalho. A licença parental foi prevista inicialmente na Recomendação n.º 165, da OIT de 1981 e hodiernamente encontra fundamento na Convenção n.º 183 da OIT. A instituição da licença-parental visa a atenuação das desigualdades provenientes dos encargos familiares, a proteção da criança, bem como tornar o pai corresponsável pelos cuidados e educação dos filhos. Nesta medida devemos entender a licença parental como instrumento de proporcionar bemestar aos filhos e equilíbrio entre a vida profissional e a familiar entre homens e mulheres. A duração da licença parental varia de três meses a três anos nas legislações que já a adotam, de acordo com o informe V da Organização Internacional do Trabalho, divulgado em julho de 1999 durante a 87.ª Reunião da Conferência Internacional do Trabalho. Vários países do mundo têm compreendido que a cobertura legal por meio da concessão da licença-parental irá auxiliar principalmente as mulheres nos encargos da responsabilidade familiar. O compartilhamento da responsabilidade familiar independentemente do gênero

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ajuda a comunidade internacional e ter uma nova mentalidade social quanto à isonomia entre homens e mulheres e a não discriminação da mulher no mercado de trabalho. Os seguintes países adotam a licença parental: Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Bulgária, Canadá, Chipre, Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estados Unidos, Estônia, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Hungria, Irlanda, Islândia, Israel, Itália, Japão, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Noruega, Nova Zelândia, Polônia, Portugal, Reino Unido, República Tcheca, Romênia e Suécia. Em Burkina Faso, pais ou mães podem solicitar até seis meses de licença não remunerada (renovável uma vez) para cuidar de seus filhos. No Chade, a licença parental também pode ser usufruída por qualquer dos pais. No Egito, na Guiné e no Marrocos (onde a licença somente é concedida com a concordância do empregador), apenas as mães têm direito a essa licença. Na Mongólia, os pais podem sair de licença não remunerada por até 156 semanas. Na Coreia do Sul, qualquer dos pais pode usufruir a licença parental por 52 semanas, para cuidar de criança com mais de um e menos de seis anos de idade. O Nepal concede licença não remunerada por até trinta dias por ano, que pode ser utilizada por qualquer empregado para tratar de assuntos familiares. Além desses países, as Filipinas concedem um tipo específico de licença 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


para pais solteiros, permitindo que se afastem do trabalho por até sete dias por ano”.

5. DIGRESSÕES ACERCA DO CONCEITO DE DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS

Addati, Naomi Cassier e Katherine Gilchrist (2014) enfatizam que:

Os direitos humanos e os direitos fundamentais sociais legislativamente podem ser estudados de forma separadas. Sob o ponto de vista teleológico podemos entender direitos humanos como direitos essenciais para a efetivação da dignidade da pessoa humana. Dallari (1998, p. 7) considera que os direitos humanos representam uma forma abreviada de mencionar os direitos fundamentais da pessoa humana. Esses direitos são fundamentais porque sem eles o ser humano não conseguirá existir ou não será capaz de se desenvolver e de participar plena. Por sua vez os direitos fundamentais sociais referem-se às garantias individuais e coletivas previstas e estabelecidas na Constituição e que têm o Estado como seu devedor/prestador.

Os sistemas de licença-parental diferem significantemente de um país para o outro. Existe uma variação considerável em termos de elegibilidade, pagamento, duração, flexibilidade possível no uso, a idade da criança a ser cuidada e a transferibilidade entre os pais. As normas da OIT permitem que estes termos sejam determinados pelos Estados-membros, em nível nacional. No Brasil em que pese identifiquemos algumas medidas visando a ampliação da proteção social no âmbito familiar, tais medidas beneficiam em regra, os pais separadamente, nunca em conjunto93. Urge a adaptação do sistema jurídico pátrio para implantação da licença parental, nos moldes preconizados pela OIT como instrumento de direito humano fundamental, de forma a efetivar a ação afirmativa do Estado, capaz de demonstrar de maneira ampla, o cumprimento do papel de promoção do princípio do bem-estar determinado no artigo 3º da Constituição Federal de 1988. 93 Doutoranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) de São Paulo e a Universidade Autônoma de Lisboa. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora e coordenadora de cursos de pós-graduação em Direito. Autora de obras jurídicas. Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

Cada vez mais vem sendo utilizada a expressão direitos humanos fundamentais para se referir aos direitos dignificantes da vida humana. Os direitos humanos fundamentais, portanto, são conceituados e analisados por diversos tipos de correntes epistemológicas do pensamento jurídicosociológico-filosófico. Assim, para melhor compreender esses direitos, é preciso analisar sua origem e desenvolvimento. De acordo com Marcondes (2019, p. 33), a corrente epistemológica clássica tradicional dos direitos humanos fundamentais considera como nascedouro 97


dos direitos a Declaração de Direitos do “Bom Povo da Virgínia” de 1776, além da Declaração de Independência dos Estados Unidos do mesmo ano. A Declaração de Direitos do “Bom Povo da Virgínia” (1776) possui vinte e seis artigos, devendo-se destacar o seu artigo I que afirma que todos os homens são, por natureza, igualmente livres e independentes, e têm certos direitos inatos, quando entram em estado de sociedade, não podendo privar ou despojar seus pósteros, sendo o direito o gozo da vida e da liberdade com os meios de adquirir e de possuir a propriedade e de buscar e obter felicidade e segurança. Tal

declaração

aponta

um

caráter

jusnaturalista. Perceptível da análise da expressão “por natureza”. A Declaração de Independência do Estados Unidos (1776)também segue o mesmo caráter jusnaturalista, já que não traz um conjunto de normas organizadas e positivadas, mas determinações sobre os direitos naturais das pessoas. Gizamos o seguinte trecho da

Declaração:

“Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade. [...]”. Destacamos ainda, que além de terem um caráter natural, tais declarações carregam uma enorme carga universalista,

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isto é, apontam que tais direitos são universais, isto é, são intrínsecos a todas as pessoas existentes. Com o desenvolvimento do direito e ao se entrar na era juspositivista tais direitos passam a ser expressos no ordenamento jurídico. O grande marco desta etapa foi o Código Civil Francês de 1804 também conhecido como Código Francês de Napoleão que expressa o nascedouro de um novo modelo de organização das leis através de uma perspectiva positivista. Bobbio (1995, p. 63) aponta que o Código de Napoleão teve uma grande influência jurídica na sociedade ocidental nos últimos dois séculos, haja vista que muitos códigos posteriores se basearam no código napoleônico. Os direitos humanos fundamentais inauguram nova fase, marcada pelo positivismo e universalidade com a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948: Com a Declaração de 1948, tem início uma terceira e última fase, na qual a afirmação dos direitos é, ao mesmo tempo, universal e positiva: universal no sentido de que os destinatários dos princípios nela contidos não são mais apenas os cidadãos deste ou daquele Estado, mas todos os homens; positiva no sentido de que põe em movimento um processo em cujo final os direitos do homem deverão ser não mais apenas proclamados ou apenas idealmente reconhecidos, porém 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


efetivamente protegidos até mesmo contra o próprio Estado que os tenha violado. [...] A Declaração Universal contém em germe a síntese de um movimento dialético, que começa pela universalidade abstrata dos direitos naturais, transfigura-se na particularidade concreta dos direitos positivos, e termina na universalidade não mais abstrata, mas também ela concreta, dos direitos positivos universais. (BOBBIO, 2004, p. 19).

6. A IGUALDADE DE GÊNERO COMO DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL A igualdade de gênero, do ponto de vista da perspectiva positivista do Direito, deve ser reconhecida como um direito humano e também fundamental, haja vista que está fincada e prevista na Constituição Federal de 1988 e também em tratados e convenções internacionais. Ademais, por estar prevista na Magna Carta, o Estado deve ter o dever de fazer proposições que de fato efetivam esse direito.

No Brasil, por sua vez, deve-se destacar a promulgação da Constituição Federal de 1988, também conhecida como Constituição Cidadã, que adota como fundamentos a dignidade da pessoa humana (art. 1º inc. III), os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, inc. IV), além de estabelecer como um de seus objetivos a construção de uma sociedade livre, justa e solidária ( art. 3º, inc. I). Assim, ao nos referirmos à licença parental como direitos humanos fundamentais estamos afirmando que são direitos positivados e universais a cargo do Estado, ainda que com a participação do particular (eficácia horizontal dos direitos fundamentais). Nessa perspectiva, então todos os instrumentos que visam à igualdade de gênero podem ser classificados como direitos humanos fundamentais como a licença parental.

Desse

modo,

ressalta-se

que

Constituição Federal de 1988 reconhece os mesmos direitos e deveres entre homens sociedade

e

mulheres conjugal,

em nos

relação termos

a do

artigo 226, § 5º da Constituição Federal. Ademais, perpassando o reconhecimento da igualdade entre homens e mulheres em relação a sociedade conjugal, a Magna Carta também reconhece no artigo 5º, inciso I da CF, que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos da Constituição. Destaca-se, ainda, que o artigo 227 da Constituição Federal do Brasil garante a proteção à infância, demonstrando que a criança tem o direito de conviver com ambos os pais e crescer de maneira saudável e feliz sem qualquer forma de negligência. Desse modo, tal artigo reconhece a importância da convivência saudável com os genitores de ambos os gêneros.

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No âmbito das convenções internacionais destacamos a convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher de 1979, que já no primeiro artigo, traz a premissa da igualdade de ao prever que a expressão “discriminação contra a mulher” significa toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.

independentemente de seu gênero, tenham as mesmas responsabilidades familiares, podendo se ausentar do trabalho para cuidar de seus filhos sem prejuízo de seu emprego. Proteção e efetivação que também encontra firme fundamento nas convenções internacionais .

A igualdade de sexos é determinada pelo fato de se identificar que tanto o homem quanto a mulher se reconhecem na conjugalidade em situações funcionalmente não diferenciadas, não cabendo a um ou ao outro um papel específico na coordenação e condução das tarefas que compõem a vida familiar. Diante disso, é possível identificar que a igualdade de gênero constitui um direito humano fundamental. A licençamaternidade, o salário maternidade e a licença-paternidade nos moldes que estão previstos no ordenamento pátrio desrespeitam o direito humano fundamental da igualdade de gênero, visto que reforçam os estereótipos da divisão sexual do trabalho de homens e mulheres na sociedade. Portanto, a licença parental possibilitaria que os genitores,

tido a fim de combater a discriminação

7. O ARCABOUÇO INTERNACIONAL QUANTO AOS DIREITOS TRABALHISTAS E PREVIDENCIÁRIOS NA PERSPECTIVA DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE DE GÊNERO No

âmbito

internacional,

deve-

se destacar o papel que a Organização Internacional do Trabalho (OIT) tem de gênero. Ressaltamos o documento denominado

Recomendação

123 da OIT de 1965 intitulado de Recomendação sobre os trabalhadores com responsabilidades familiares, que enfatizou a complexidade que existe entre a vida pessoal e profissional de uma mulher com responsabilidade familiar, principalmente em relação aos filhos. Tal recomendação ressalta o papel das políticas públicas de não discriminação do labor feminino que visem esclarecer o papel da mulher que possui trabalho e responsabilidades familiares. Esta recomendação destaca a função da educação como medida necessária para que o homem e a mulher compartilhem as responsabilidades familiares, gerando espaço para que ambos desempenhem 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


melhor as responsabilidades profissionais e familiares.

a mãe que é a responsável pela educação

Posteriormente, de uma maneira

Além desses instrumentos da OIT

mais abrangente e com caráter obrigatório

sobre a não discriminação de gênero na

para os países signatários, a Convenção

divisão do trabalho, deve-se destacar

n.º 156 da OIT de 1981, denominada

que em 2015, a Assembleia Geral das

“ convenção sobre a igualdade de

Nações Unidas adotou a agenda 2030

oportunidades e de tratamento para

de

homens

trabalhadores:

metas para o alcance da igualdade de

Trabalhadores com encargos de família”

gênero estão concentradas no objetivo

apontam mecanismos para que se efetive

de

a igualdade de oportunidades e de

(ODS)5 e transversalizadas em outros

tratamento para os trabalhadores homens

12 (doze) objetivos globais, devendo-se

e

destacar alguns deles, como o que trata

e

mulheres

mulheres

com

responsabilidades

familiares. A Convenção

desenvolvimento

sustentável.

desenvolvimento

As

sustentável

como

da necessidade de reconhecimento e

principal foco que os países signatários

valorização do trabalho de assistência

possam adotar políticas nacionais que

doméstico não remunerado por meio da

tragam tutela efetiva aos trabalhadores

disponibilização de serviços públicos; Da

com

familiares,

necessidade da criação de infraestrutura

evitando assim, a discriminação entre

e políticas de proteção social, bem

homens e mulheres no trabalho.

como a promoção da responsabilidade

responsabilidades

tem

dos filhos e afazeres domésticos.

O Brasil, por sua vez, embora seja membro da OIT, não aderiu ao texto da Convenção Internacional n. º 156, não se responsabilizando por um documento de suma importância para a comunidade nacional e internacional. Tal atitude permite a manutenção da discriminação da mulher no ambiente de trabalho que é

compartilhada dentro do lar e da família. Além disso, destacamos o dispositivo que afirma a necessidade de se garantir a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis da vida política, econômica e pública. Tendo como base tais recomendações

materializada pelo recebimento de salário

internacionais,

menores que homens nos mesmos cargos

constituiria, caso regulamentada pelo

e funções de trabalho, ou ainda pela

ordenamento

preferência das empresas na contratação

legal para efetivar o direito humano

de trabalhadores homens, visto que

fundamental de igualdade de gênero.

a

licença

parental

pátrio, um instrumento

socialmente, ainda se tem em mente que

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8. CONCLUSÃO Em países que se encontram em processo de envelhecimento populacional como o Brasil, há necessidade de se incrementar os benefícios que garantam a existência normal da família, visando a continuidade do pacto de gerações. A tendência ao crescimento da participação da mulher no mercado de trabalho mostra que a família deve ser cada vez mais objeto de preocupações analíticas e de formulação de políticas públicas. Pode-se atingir certos objetivos com muito mais eficácia se, ao invés de focarmos o indivíduo em si, este for visualizado no contexto da família; A licença parental é um importante mecanismo a ser implementado no Brasil, a fim de efetivar a igualdade entre homens e mulheres não só no âmbito do direito do trabalho e previdenciário, mas também na seara privada da vida doméstica familiar. Tal prestação diminui a discriminação da mulher em relação ao homem no ambiente de trabalho, bem como aporta a mesma responsabilidade de ambos os gêneros com as obrigações domésticas e com os cuidados dos filhos.

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A AÇÃO CIVIL PÚBLICA NA DEFESA DOS BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS Luiz Gustavo Boiam Pancotti94 Heloísa Helena Silva Pancotti95

RESUMO Este texto pretende apresentar premissas para a construção de uma base para a propositura das tutelas coletivas em sede de benefícios previdência social na sua vertente difusa. A experiência brasileira tem indicado que as demandas do direito previdenciário têm sido predominantemente individuais, apesar de sua natureza metaindividual ou difusa. Considerando que os riscos sociais na contemporaneidade são cada vez mais complexos, bem como a fluidez das contingências sociais cobertas, o direito previdenciário deve desenvolver uma nova dogmática, incorporando técnicas dos direitos difusos e coletivos, para produzir decisões mais uniformes e justas. O artigo concluiu incluindo o Direito Previdenciário entre os ramos do Direito Difuso, e apresentando premissas para a teorização de uma tutela coletiva previdenciária. PALAVRAS-CHAVE Tutela coletiva previdenciária, direitos difusos e teoria dos riscos.

94 Professor Adjunto do Curso de Direito na disciplina de Direito da Seguridade Social da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS, Campus Paranaíba/MS Doutor em Direito Previdenciário pela PUC/SP e Pós-Doutor em Direito na Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP 95 Doutoranda vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da UENP- Universidade Estadual do Norte do Paraná. Professora de Direito da Seguridade Social, Advogada, Escritora Jurídica.

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1. INTRODUÇÃO O que se pretende com o presente trabalho é desenvolver o estudo e a pesquisa acerca da natureza metaindividual dos benefícios previdenciários e da sua tutela coletiva na sua vertente difusa. O interesse pelo tema decorre da transição da sociedade de massa para uma sociedade de risco e dos instrumentos processuais que desempenham um papel de importância definitiva na efetividade do direito, bem como no processo de aplicação do direito. Não obstante a grande questão que se depara na transição da sociedade de massa, dividida em classe, para a sociedade de risco é o descompasso entre as promessas constitucionais e as possibilidades de sua realização, uma vez que o Estado Social não prescinde de um poder político forte, de um lado e, de outro, a desconfiança/descompromisso coletivo e individual com o seu projeto constitucional. Isto porque, se assim concebidos, produziria uma situação de incerteza sobre os perigos sociais, nem sempre abarcados pelo Estado Constitucional fortalecendo a exclusão social. Assim, diante da fluidez das contingências sociais protegidas, bem como à inexistência de uma orientação interpretativa segura sobre determinados assuntos, vislumbra-se a necessidade de uma prestação jurisdicional coletiva a fim de garantir uma função social mais efetiva sob o viés administrativo. Com Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

isso, o INSS irá tomar as suas decisões em conformidade com as orientações jurisprudenciais já consolidadas. O trabalho está dividido em três partes: na primeira, a definição de interesses metaindividuais; na segunda, enunciação dos postulados básicos do direito difuso e por fim a defesa dos benefícios previdenciários em ações coletivas. 2. INTERESSES METAINDIVIDUAIS OU TRANSINDIVIDUAIS Os interesses se denominam transindividuais porque superam, transcendem o indivíduo, ultrapassando o limite da esfera de direitos e obrigações de cunho individual96. O panorama dos direitos e interesses desta ordem transindividual, por afetarem o direito posto individualista até então existente, exigiu a busca de instrumentos jurídicos adequados, isto é, instrumentos próprios 96 Os principais exemplos da legislação brasileira sobre o mérito: A Lei n.º 11.770 de 2008 que instituiu o programa empresa Cidadã ampliou o direito à licença-maternidade para 60 dias às servidoras públicas e às empregadas de empresas que aderirem ao programa. Esta mesma lei garantiu para os homens que trabalham em empresas do Programa Empresa Cidadã, licença paternidade de 20 dias. A Lei n.º 10.421 de 2002, trouxe a licença-maternidade para adotante e guardiã somente para a adoção ou guarda judicial de crianças de zero a oito anos de idade, posteriormente a Lei n.º 13.509 de 2017 garantiu à adotante e à pessoa que obtém a guarda de crianças e adolescentes de até dezoito anos no período total da licença estipulada por lei. A Lei n.º 12.873 de 2013, ao incluir o art. 71-B na Lei n.º 8.213 de 1991, possibilitou o recebimento do salário-maternidade ao cônjuge sobrevivente em caso de morte da mãe do recémnascido ou de seu abandono pelo tempo restante da licençamaternidade. A Lei n.º 13.536 de 2017 garante as bolsistas de pesquisa o direito ao salário-maternidade. Além disso, a Lei n.º 13.257/2016 assegura o direito do pai acompanhar a gestante por até dois dias em consultas e exames pré-natal. 107


que propiciassem o seu exercício efetivo e diferenciado, surgindo assim legislações que tutelassem os interesses das massas atingidas por relações plúrimas. Neste sentido, emergem fundamentalmente duas grandes espécies de interesses reconhecidos pelos ordenamentos jurídicos contemporâneos: os individuais e os transindividuais ou metaindividuais. O marco jurídico do estudo brasileiro do direito metaindividual está no artigo de Mauro Cappelletti97, onde se discute o abismo entre a dicotomia público e privado, que foca a complexidade das relações sociais contemporâneas e a falta de um instrumento jurisdicional apto a dar a devida resposta. Na realidade, a complexidade da sociedade moderna, com intricado desenvolvimento das relações econômicas, dá lugar à situação nas quais determinadas atividades podem trazer prejuízos aos interesses de um grande número de pessoas, fazendo surgir problemas desconhecidos às lides meramente individuais98. Mauro Cappelletti, ao problematizar a questão da legitimação das ações coletivas, informa que de forma tradicional o problema é resolvido na simplicidade daquilo que é reservado ao direito privado ou público, sendo este subdividido naquilo 97 Celso Antonio Pacheco Fiorillo. Curso de Direito Ambiental Brasileiro (São Paulo: Saraiva, 2003), p. 06. 98 Mauro Cappelletti. Formações Sociais e interesses Coletivos diante da justiça civil (Revista de Dirieto Processual Civil, São Paulo, Editora Revistas dos Tribunais: 1977), 128/159. 108

que é reservado ao povo ou ao Estado. Renato Alessi99 elaborou uma classificação dos interesses públicos como o geral da coletividade e o interesse público propriamente dito, sendo aquele o interesse do estado enquanto pessoa jurídica e este o interesse comum da coletividade, na defesa dos valores públicos que devem ser promovidos pela coletividade. Estes interesses sociais, ou seja, aqueles promovidos pela sociedade podem ser exteriorizados por qualquer cidadão, individualmente ou associado, mesmo que não invoque o interesse público, intentando uma ação em defesa de seu próprio interesse subjetivo ou de categorias e de classes (saúde e ambiente do trabalho, medidas de proteção à infortunística, qualidade de vida do trabalhador, desemprego em massa, assistência médica, enquadramento profissional na Classificação Brasileira de Ocupações, etc.). Assim, no que se refere em determinadas situações ou riscos sociais, vislumbra-se que não há na atualidade um instrumento apto a corrigir ou reparar a ocorrência de determinados danos, em razão da própria impossibilidade técnica de retornar àquela situação no status quo ante. Não obstante nossa legislação já fizesse referência aos direitos e interesses metaindividuais, a defesa 99

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destes interesses sociais se consolidaram definitivamente com a edição do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990), que os classificou em direitos e interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. De acordo com Kazuo Watanabe100, um dos autores do anteprojeto da Lei 8.078/90, a tutela coletiva abrange dois tipos de interesses ou direitos: a) os essencialmente coletivos, que são os “difusos”, definidos no inc. I do parágrafo único do art. 81, e os “coletivos” propriamente ditos, conceituados no inc. II do parágrafo único do art. 81; b) os de natureza coletiva apenas na forma em que são tutelados, que são os “individuais homogêneos”, definidos no inc. III do parágrafo único do art. 81. Assim, temos duas espécies de direitos essencialmente coletivos - ou direitos coletivos lato sensu - que são os direitos coletivos strictu sensu e os direitos difusos. Os direitos individuais homogêneos possuem particularidades que os diferenciam dos interesses individuais e os excluem da classificação de interesses essencialmente coletivos, como se verá adiante. No decorrer deste artigo, buscarse-á demonstrar o caráter difuso que a atuação da previdência social possui em se tratando de benefícios, realizando de 100 Renato Alessi. Sistema istituzionale del diritto amministratitivo italiano (Milano: Giuffrè, 1960), 197198. Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

forma pontual a diferença entre a defesa dos direitos coletivos e a defesa coletiva de direitos101. 2.1. DIREITOS COLETIVOS LATO SENSU Preliminarmente, antes de aprofundar na noção de direito difuso, mister salientar que por questão de política legislativa, a lei brasileira adotou para a tutela coletiva a classificação tripartida fulcrada na distinção de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos102. Diante da inexistência de consenso doutrinário sobre a tutela do direito coletivo, no conceito do interesse difuso o legislador preferiu adotar conceitos que lhe pareciam mais adequados ao Código de Defesa do Consumidor. Essencialmente, os interesses individuais homogêneos103 foram encarados como direito coletivo pelo ordenamento pátrio para dar amparo normativo às class action 101 Ada Pellegrini Grinover. O Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do Anteprojeto. (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991), p.457. 102 Teori Albino Zavascki. Defesa dos direitos coletivos e defesa coletiva de direitos. (RF, nº 329), 1995. 103 Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo. Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base; III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum. (grifo nosso). 109


que, embora inspirada no direito norteamericano, obteve na legislação nacional contornos próprios.

características, com a análise das distintas peculiaridades que as diferenciam uma da outra.

Verifica-se que a doutrina de vanguarda aponta certa ambiguidade entre os interesses difusos e coletivos, uma vez que ambos sugerem a noção do que é extenso, de que, por serem extensos seriam aplicáveis a muitas pessoas.

Destarte, para melhor análise do tema proposto, passa-se ao estudo dos respectivos conceitos de forma pontual e clara.

Note, porém, que o Código de Defesa do Consumidor, no caput do artigo 81, dispõe que a defesa coletiva será exercida quando se tratar de direitos e interesses difuso, coletivo ou individual homogêneo. Destarte, são interesses que a ordem jurídica protege e que dispõe de instrumentos para sua satisfação, interesse configurador do direito subjetivo, se atribuível a um sujeito determinado104. Ademais, cumpre salientar que a Carta Fundamental ao elencar as atribuições do Ministério Público, no artigo 129, inciso III diz que cumpre ao órgão a defesa de outros interesses difusos e coletivos. Por fim, cumpre salientar que a orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal diferencia as expressões difusos e coletivos105. Observe-se, no entanto, que não há pretensão de divergir da classificação adotada pela lei, mas far-se-á um agrupamento entre os interesses para fins científicos, dada a identidade de algumas 104 Os interesses individuais homogêneos não são interesses essencialmente coletivos, mas possui um viés coletivo em razão da forma em que eles são tutelados, definidos no inciso III do artigo 81 do CDC. 105 Édis Milaré. Ação Civil Pública: Lei 7347/85 – 15 anos. (São Paulo: Editora Revistas dos Tribunais, 2002), 57. 110

2.2. DIREITO PREVIDENCIÁRIO EM SEDE DE INTERESSES DIFUSOS Difusos são interesses indivisíveis, de grupos indetermináveis de pessoas, entre as quais existe um vínculo fático muito preciso. Trata-se de um feixe de interesses individuais ligados por pontos em comum106. Interesses difusos são os 106 “A CF confere relevo ao Ministério Público como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF, art. 127). Por isso mesmo detém o Ministério Público capacidade postulatória, não só para a abertura do inquérito civil, da ação penal pública e da ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente, mas também de outros interesses difusos e coletivos (CF, art. 129, I e III). Interesses difusos são aqueles que abrangem número indeterminado de pessoas unidas pelas mesmas circunstâncias de fato e coletivos aqueles pertencentes a grupos, categorias ou classes de pessoas determináveis, ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base. A indeterminidade é a característica fundamental dos interesses difusos e a determinidade a daqueles interesses que envolvem os coletivos. Direitos ou interesses homogêneos são os que têm a mesma origem comum (art. 81, III, da Lei 8.078, de 11-9-1990), constituindo-se em subespécie de direitos coletivos. Quer se afirme interesses coletivos ou particularmente interesses homogêneos, stricto sensu, ambos estão cingidos a uma mesma base jurídica, sendo coletivos, explicitamente dizendo, porque são relativos a grupos, categorias ou classes de pessoas, que conquanto digam respeito às pessoas isoladamente, não se classificam como direitos individuais para o fim de ser vedada a sua defesa em ação civil pública, porque sua concepção finalística destina-se à proteção desses grupos, categorias ou classe de pessoas. As chamadas mensalidades escolares, quando abusivas ou ilegais, podem ser impugnadas por via 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato. O artigo 81, inciso I do Código de Defesa do Consumidor diz que difusos são os interesses ou direitos transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por uma circunstância de fato. Assim como os direitos coletivos, os interesses difusos são também de natureza indivisível. A grande diferença, entretanto, é que os titulares destes direitos são pessoas indeterminadas e que se encontram ligadas por uma situação de fato, enquanto as outras pessoas que figuram como titulares dos direitos coletivos e estão por isso estão ligados entre si por uma relação jurídica. Mancuso107 de forma cristalina de ação civil pública, a requerimento do Órgão do Ministério Público, pois ainda que sejam interesses homogêneos de origem comum, são subespécies de interesses coletivos, tutelados pelo Estado por esse meio processual como dispõe o art. 129, III, da CF. Cuidando-se de tema ligado à educação, amparada constitucionalmente como dever do Estado e obrigação de todos (CF, art. 205), está o Ministério Público investido da capacidade postulatória, patente a legitimidade ad causam, quando o bem que se busca resguardar se insere na órbita dos interesses coletivos, em segmento de extrema delicadeza e de conteúdo social tal que, acima de tudo, recomenda-se o abrigo estatal. Recurso extraordinário conhecido e provido para, afastada a alegada ilegitimidade do Ministério Público, com vistas à defesa dos interesses de uma coletividade, determinar a remessa dos autos ao Tribunal de origem, para prosseguir no julgamento da ação.” (RE 163.231, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 26-2-1997, Plenário, DJ de 296-2001.) No mesmo sentido: AI 559.141-AgR, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 21-6-2011, Primeira Turma, DJE de 15-8-2011; RE 514.023-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 4-12-2009, Segunda Turma, DJE de 5-22010; RE 511.961, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 17-6-2009, Plenário, DJE de 13-11-2009. 107 Hugo Nigro Mazilli. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor e outros interesses Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

descreve que os interesses difusos se encontram numa ordem crescente de coletivização, baseados nos diversos planos de titularização, ordenando os interesses de menor titulares para os maiores. E assim o demonstra: Sob este enfoque, caminha-se desde os interesses individuais (suscetíveis de captação e fruição pelo indivíduo isoladamente considerado), passando pelos interesses sociais (interesses pessoais do grupo visto como pessoa jurídica; da, mais um passo, temos os interesses coletivos), que depassam as esferas anteriores, mas se restringem a valores concernentes a grupos sociais ou categorias bem definidos; no grau seguinte temos o interesse geral ou público (referido primoridialmente à coletividade representada pelo Estado e se exteriorizando em certos padrões estabelecidos, ou standards sociais, como Bem comum, Segurança Pública, Saúde Pública). Todavia, parece que há ainda um grau de escala, isto é, haveria certos interesses cujas características não permitiriam, exatamente, sua assimilação a essas espécies. Referimo-nos aos interesses difusos108. Portanto, para o autor, os interesses difusos ultrapassam o interesse público ou geral, pois existe um alto índice de difusos e coletivos. (São Paulo: Saraiva, 2001), 07. 108 Rodolfo Camargo Mancuso. Jurisdição Coletiva e Coisa Julgada – teoria geral das ações coletivas. (São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2006), 68. 111


desagregação ou de atomização que lhe permite designar um número indefinido de indivíduos e cada qual deles ao mesmo tempo109. Para Mancuso110, neste mister, o primado recai em valores de ordem social, como o bem comum, a qualidade de vida, os direitos humanos, justiça social, bem estar, proteção social, dentre outros. A fluidez destes valores, em razão da volatilidade sobre a sua dimensão e intensidade de aplicação, atrai a marca da impessoalidade, pois se cuida de aferir qual a postura mais oportuna e conveniente dentre um leque de alternativas, aglutinadas nos diversos grupos sociais interessados, naquilo que se pode chamar de conflitualidade intrínseca. Em matéria previdenciária é possível vislumbrar interesses conflituosos entre si ao se deparar com o reajuste anual dos benefícios da previdência social, em que um lado se verifica o postulado da manutenção do valor dos benefícios em contraponto com a regra da contrapartida. O interesse difuso é intrinsicamente conflituoso sempre devendo buscar o equilíbrio baseado na sua natureza e na responsabilidade ética. Exemplifico: a defesa do segurado em juízo face ao regime de previdência social pode repercutir, diante de uma determinada de lesão, beneficiários identificáveis. Nesta perspectiva, estamos diante da ofensa a interesses individuais111 109 Mancuso, Jurisdição Coletiva e Coisa Julgada, 69. 110 Mancuso, Jurisdição Coletiva e Coisa Julgada, 69 111 Mancuso, Jurisdição Coletiva e Coisa Julgada, 111. 112

e se vários forem os segurados, teremos os chamados interesses individuais homogêneos112. Assim como na tutela ao meio ambiente - interesse difuso por excelência - é possível identificar um morador - sujeito de uma relação – que seja prejudicado diante de uma lesão específica em razão de uma construção irregular feita pelo seu vizinho113. Por outro lado, e é este o ponto nodal do presente artigo, se houver ofensa à natureza molecular do benefício previdenciário em questão, em potencial prejuízo a qualquer tipo ou espécie de beneficiários da previdência social114, será 112 Interesse individual é o interesse cuja fruição se esgota no círculo de atuação de seu destinatário. Se o interesse é bem exercido, só o indivíduo disso se beneficia, em caso contrário, só ele suporta os encargos (in, Mancuso, Jurisdição Coletiva e Coisa Julgada, 41). Exemplos: indeferimento de concessão do benefício, revisão de benefício, contagem de tempo de serviço, etc. 113 Como ocorreu na Ação Civil Pública nº 98.03.028182-8, AC 28182 SP, de relatoria do Juiz Convocado Alexandre Sormani, julgado em 25/03/2008, que decidiu sobre a obrigatoriedade do INSS ao corrigir os benefícios previdenciários pelo índice de 147,06% para aqueles que eram mantidos até março de 1.991, data inicial do período base para apuração de tal corrosão monetária, aplicando-o a partir de 1º de setembro de 1.991, mas deduzindo o percentual de 79,96% já computado (Portaria MPS nº 302 de 20 de julho de 1.992). Recentemente a Ação Cívil Pública registrada sob o nº 000491128.2011.4.03.6183, tramitada na 1ª Vara Previdenciária da Subseção Judiciária de São Paulo do TRF da 3ª Região cujo objeto foi impor ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), em âmbito nacional a obrigação de fazer no sentido de proceder, no âmbito administrativo, a revisão dos benefícios previdenciários concedidos antes da vigência dos novos tetos do Regime Geral de Previdência Social estabelecidos pelo art. 14 da Emenda Constitucional 19 e 20/1998 e pelo art. 5° da Emenda Constitucional n° 41/2003, que tenham sidos calculados sob outros limites, conforme decidido pelo Supremo Tribunal Federal nos autos do Recurso Extraordinário n° 564.354. 114 Nos termos do artigo 14, § 1º da Lei 6.938/81, é possível compreender responsabilidade como sendo a conseqüência decorrente do não cumprimento de uma obrigação. No instante em que alguém se obriga perante 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


suficiente uma só demanda coletiva, cuja sentença, nos termos do artigo 103, I, do CDC, fará coisa julgada erga omnes115. Exemplo disto se verificou nas ocasiões em que os homossexuais brasileiros que viviam em regime de união estável homoafetiva não eram considerados dependentes do RGPS. Em razão desta indeterminação subjetiva que cerca os interesses difusos, configura-se a chamada titularidade aberta, ou seja, podem ser titulares da ação corpos intermediários116 da sociedade civil, indivíduos isolados ou o Ministério outrem a uma conduta positiva ou negativa e não cumpre, arcará com as implicações decorrentes de tal ato. Desta forma, as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados (artigo 225, §3º da CF/88). 115 Como prevê a concessão de liminar na Ação Civil Pública nº 2000.71.00.009347-0, do Tribunal Regional da 4ª Região, da Subseção Judiciária de Porto Alegre, onde a ação foi originada por denúncia da organização não-governamental Nuances, em 24 de setembro de 1999, perante o Ministério Público Federal em Porto Alegre, alegando que o INSS violava direitos humanos, a igualdade e a livre expressão sexual ao indeferir administrativamente pedidos de pensão previdenciárias para companheiros do mesmo sexo. Foi então um Inquérito Civil Público pelo Ministério Público Federal, onde o superintendente do INSS justificou o indeferimento pois “não é devida a concessão desses benefícios em casos de relação homossexual”. Baseado em tais fatos, o Ministério Público Federal ajuizaram ação civil pública, pedindo que o INSS passasse a considerar o companheiro ou companheira homossexual como dependente preferencial de mesma classe dos companheiros heterossexuais, passando a conceder a pensão por morte e o auxílioreclusão, além de expedir ato administrativo nesse sentido. A partir de então, tal direito é garantido, encontrando-se atualmente previsto na Instrução Normativa INSS/PRES n.º 45 de 06 de agosto de 2010, nos artigos 25; 45, §2º; 322 e 335. 116 Ada Pelegrini Grinover. Código de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. (Rio de Janeiro: Forense Univeresitária, 1998), 626-633. Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

Público117. Assim, diante da nossa proposta pergunta-se: quais os homossexuais brasileiros que vivem em regime de união estável homoafetiva que dependerão de um benefício previdenciário futuramente? Quais os cônjuges varões que enviuvaram de uma segurada especial da previdência social após a promulgação da Constituição Federal de 1988, mas antes da promulgação da Lei 8.213/91? Não há como identificá-los. Na prática, os operadores do direito têm fragmentado os interesses difusos coletivizando-os, ou seja, atribuindo apenas a um segmento da sociedade, como moradores de um bairro, um Município, um ou mais Estados, ou no nosso caso, beneficiários do RGPS. Quando isto ocorre há um desvirtuamento do interesse difuso para transindividual atomizando os conflitos em pequenos blocos, quando o objetivo do legislador é submeter à apreciação nuclear do direito protegido na sua configuração molecular118 para fornecer uma tutela jurisdicional mais efetiva. Assim, os interesses difusos são interesses metaindividuais que, não tendo atingido o grau de agregação e organização necessário à sua afetação institucional junto a certas entidades ou órgãos representativos dos interesses já socialmente definidos, restam em estado fluído, dispersos na sociedade civil como 117 Cappelletti. Formações Sociais e interesses Coletivos diante da justiça civil, 147. 118 Art. 6º. Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei. 113


um todo, podendo, por vezes, concernir certas coletividades de conteúdo numérico indefinido119. É neste mister que se defende a natureza dos benefícios previdenciários como de interesse difuso. Com efeito, a nossa proposta é de demonstrar a abertura subjetiva do universo dos segurados da previdência social brasileira como sujeitos indetermináveis, já que não se pode identificar quem será acometido pela contingência deflagradora da concessão do benefício. Os interesses difusos estão soltos, desagregados, disseminados entre segmentos sociais, mais ou menos extensos, não existindo um vínculo jurídico básico, mas exsurgem de aglutinações contingenciais, normalmente contrapostas entre si120. Na seara previdenciária se verificam a conflitualidade máxima ao se deparar com interesses contrapostos entre si 119 Na realidade física a matéria não existe sem movimento, componente essencial do ser, assim a ontológica deveria nos dizer que nada existe, pois o que constantemente se move nunca é o mesmo e se nunca é o mesmo não pode existir. Mas seria absurdo afirmar que nada existe. É forçoso reconhecer que as coisas existem, há uma permanência, uma estabilidade, como atributo da estrutura. A estabilidade própria das estruturas decorre da harmonia e do equilíbrio dos seus elementos constitutivos segundo uma ordem geral. Ordem é a disposição certa dos seres. Sua causa material consiste nos elementos distintos, múltiplos que a compõe; sua causa formal é a disposição dos elementos no conjunto para que façam parte do todo conforme a sua natureza e a razão de ser da ordem, a sua causa final, é justamente o fim para cuja consecução os elementos múltiplos passam a constituir uma unidade. A ordem é algo que se acrescenta à ausência de ordem, tem existência primordial, antecede a desordem, entendida como sendo a ordem que não queremos: “Damos o nome de ordem à ordem que nos convém e o nome de desordem à ordem que não nos convém”. (Goffredo da Silva Telles. O Direito Quântico. (São Paulo: Max Lemonad, 1985), 59-67)

no grupo de massa dos beneficiários da Previdência Social com o interesse público secundário do Estado na gestão do erário público, circunstância observada dentro do postulado da seletividade (risco e necessidade). Por sua vez, a conflituosidade deriva basicamente de uma situação de fato, quais sejam: as contingências sociais. Isto é, a circunstância fática que ligam estas pessoas ao bem indivisível é justamente a ocorrência de um acontecimento no mundo fenomênico, devidamente amparado por lei, que reclama a proteção social, natureza indivisível da relação difusa, já que o segurado não pode, via de regra, cindi-la. 3. AÇÃO CIVIL PÚBLICA PREVIDENCIÁRIA De acordo com as lições de Mancuso , diz-se processo coletivo quando a finalidade perseguida é a tutela de um interesse metaindividual, não bastando para tal configuração processual a circunstância de figurarem dentre os colegitimados ativos os entes políticos e o Ministério Público. Pugna-se o caráter coletivo a ser tutelado, onde a prestação jurisdicional a ser prestada não poderá ser fracionada ou concedida individualmente, exigindo uma manifestação uniforme do Poder Judiciário aplicável a todos que se encontram naquele status jurídico. Ao contrário do processo civil individualista, o processo coletivo busca a defesa dos interesses transindividuais,

120 Mancuso, Jurisdição Coletiva e Coisa Julgada, 115. 114

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pertencentes a toda comunidade, ou a grupo de classe de pessoas indeterminadas, baseada na concepção de transformação da realidade social. Gregório Assagra de Almeida descreve o processo coletivo como um instrumento fundamental no Estado Democrático de Direito, onde a atividade jurisdicional assume um papel importante, pois assume uma função social fundamental como órgão transformador da realidade social, conferindo-lhe efetividade aos direitos e garantias sócias constitucionais fundamentais. Por outro lado, de acordo com as lições de José Antônio Savaris temos um direito processual previdenciário, pois; (...) a lide previdenciária possui um caráter único, com um feixe de problemas específicos que devem receber um tratamento normativo diferenciado daquele proposto pelo processo civil clássico. Posteriormente, o mesmo autor aponta as principais características do direito processual previdenciário, enfatizando que o processo civil clássico deverá ceder espaço à realidade previdenciária, como exigência do devido processo legal em contraponto à adequada tutela jurisdicional a partir das seguintes características fundantes da lide previdencial, qual seja: a fundamentalidade do bem jurídico previdenciário, a presunção de hipossuficiência econômica e informacional, a existência de uma suposta contingência social que o coloca

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em situação de necessidade, e o caráter público do instituto de previdência. O segurado que não recebe a prestação jurisdicional que determine a concessão do benefício, que na verdade faz jus, persiste indevidamente a situação de ameaça à subsistência e à dignidade humana. Em razão disto, o mencionado autor conclui que o direito individual fundamental à segurança social é de fato indispensável para o exercício das liberdades individuais negativas e nada deve em importância ao direito fundamental da liberdade física, razão pela qual o modelo processual civil clássico não é adequado. Conforme pudemos demonstrar, fica por demais claro que o processo civil clássico, individualista, não possui mais a aptidão de tutelar determinadas categorias de interesses, caracterizados por disputas de classe dentro de uma sociedade de risco. As ações individuais, direcionadas à jurisdição singular não respondem às necessidades atuais de forma homogênea. O processo coletivo possui a aptidão de resolver questões de larga dimensão e profundidade, decorrentes de uma sociedade de risco, constituindo um modelo de prestação jurisdicional onde uma única resposta judiciária possa resolver conflitos de grande magnitude, de maneira homogênea, evitando decisões fragmentadas de forma heterogênea. Com isto, busca-se a prestação jurisdicional adequada com efetividade do acesso à justiça qualitativa e quantitativa, destacando-se à função social do processo. Assim, é lícito afirmar que o 115


acesso aos interesses metaindividuais à justiça trouxe uma conotação políticosocial para o âmbito da função judicante, antes limitada a resolver crises jurídicas individuais, com a subsunção do fato à norma de regência, em um ambiente subjetivamente delimitado, através de um método simples de silogismo, amparada pelo efeito de imunização da decisão pela coisa julgada. As lides de jurisdição metaindividual são definidas pelo seu conteúdo comportando resposta judicial unitária e solidária, onde há um núcleo comum. De acordo com esta perspectiva, as ações coletivas lato sensu podem ser exercidas por meio do Mandado de Segurança Coletivo, Mandando de Injunção, Ação Popular e Ação Civil Pública. Diante desta nova vertente aqui apresentada, é imperioso reconhecer que é necessária a todas as pessoas envolvidas no exercício da jurisdição coletiva a adoção de novas concepções utilitaristas destinadas a resolverem novas questões sociais, relativizando a aplicação de conceitos técnicos e determinadas formalidades da lei processual civil clássica, flexibilizando os requisitos de admissibilidade processual pra enfrentar o mérito do processo coletivo, como por exemplo a atuação dos Sindicatos como legitimado para a propor a ação coletiva dispensando-o do requisito préconstitutivo para a sua formação (art. 82, § 1º, IV do CDC); a concessão de tutelas de urgência com fixação de astreintes; a adoção de qualquer modalidade de ação 116

e provimento a ser pretendido, desde que metaindividual, como por exemplo o Mandado de Segurança, etc. Propormos nesta ocasião a definição de direito processual coletivo previdenciário como um ramo do direito do direito processual, formado por um conjunto de regras e princípios específicos, destinados a resolver lides coletivas decorrentes da aplicação in concreto dos benefícios previdenciários na sua vertente difusa. Portanto, quando houver ofensa à natureza molecular do benefício previdenciário em debate, que acarrete prejuízo a todos os segurados da previdência social de forma indiscriminada, o direito processual coletivo previdenciário será o ramo do direito a informar a jurisdição coletiva, por meio das várias espécies de ações coletivas que informam o nosso ordenamento jurídico. O objeto material do processo coletivo previdenciário é o próprio mérito decorrente da afirmação do direito, isto é, a proteção social adequada, considerado neste trabalho como bem previdenciário difuso. Por se tratar de um interesse destinado a toda coletividade, a indisponibilidade do seu conteúdo tornase uma de suas características. Razão pela qual não se admite renúncia por parte de qualquer legitimado ativo das ações coletivas, ou transação que implique em risco o respectivo direito coletivo. Observa-se, porém, os titulares do direito material coletivo não se identificam com os legitimados ativos para a propositura da ação coletiva. Com efeito: 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


sua disponibilidade se limita ao conteúdo processual do litígio, pois titulares do interesse material são os indivíduos, ainda que metaindividualmente considerados. Acredita-se que por medida de cautela, seja na hipótese da não promoção da Ação Civil Pública ou da não viabilidade de sua propositura, em respeito ao artigo 9º, §§, da Lei 7.347/85, é indispensável a remessa destes para o Conselho Superior do Ministério Público, para homologar ou rejeitar-se por sua promoção. A partir deste raciocínio, permitase concluir em apertada síntese que (i) todos os co-legitimados podem desistir da ação coletiva uma vez proposta; (ii) todos eles podem assumir a titularidade ativa em caso de abandono ou desistência de qualquer dos outros; (iii) o Ministério Público não é automaticamente obrigado a assumir a promoção da ação nos casos de abandono ou desistência por qualquer dos legitimados. A transação, definida como forma de solução da lide pela autocomposição por meio de concessões recíprocas, veda o legitimado coletivo conduzir o processo por meio de concessões quanto ao direito coletivo por ele tutelado propriamente dito. Situação outra se opera na transação sobre a forma de cumprimento da obrigação decorrente da lesão ao direito coletivo a ser protegido, o que se admite. Neste mister que se observa os Termos de Ajustamento de Conduta que será estudado em item próprio. Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

4. CONCLUSÃO O principal propósito deste artigo é fixar o Direito Previdenciário como um ramo do direito difuso. A partir desta premissa, a finalidade prática almejada é de difundir Tutela Coletiva Previdenciária, propiciando instrumentos adequados para a efetividade da prestação jurisdicional. Com efeito: o acesso à justiça se reveste no interesse de uma coletividade, permitindo a legitimação por parte de representante adequado, portador em juízo de interesses e direitos, classe de pessoas. A utilização da tutela coletiva na seara previdenciária resultará em maior efetividade da prestação jurisdicional, pois garantirá aos beneficiários da Previdência Social, sejam estes presentes ou futuros, maior segurança jurídica diante das eventuais ilegalidades perpetrada pelo instituto autárquico na expedição de suas instruções normativas. Com isso, evitase a proposituras de várias demandas decorrentes do mesmo objeto, com o emprego de inúmeros processos versando sobre as mesmas controvérsias de forma fragmentária. Para isto, busca-se afirmar que a dicotomia entre Direito Público e o que seja Direito Privado, está ultrapassada. Isto porque em um Estado tipicamente esculpido em uma finalidade social não se permite uma visão estritamente individualista, cunhada em um critério privado, sem observar as categorias de pessoas que compõe o núcleo social. 117


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Alessi, Renato. Sistema istituzionale del diritto amministratitivo italiano. 3. ed. Milano: Giuffrè, 1960. Balera, Wagner. Alta programada. Quem foi o gênio que estimou tempo de cura para doenças? Artigo publicado no site Consultor Jurídico, disponível no site: http://www.conjur.com.br/2006-abr-08/quem_foi_ genio_estimou_tempo_cura_doencas, acessado em 22/07/2017. Bastos, Ribeiro Celso. A Tutela dos interesses difusos no direito constitucional brasileiro. RePro 23/39. São Paulo: Revista dos Tribunais, julho/setembro, 1981. Cappelletti, Mauro. Formações Sociais e interesses Coletivos diante da justiça civil. Revista de Direito Processual Civil, São Paulo, Editora Revistas dos Tribunais: 1977, p. 128/159. Fiorillo, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 4º Edição. Editora Saraiva. São Paulo. 2003. Mancuso, Rodolfo Camargo. Jurisdição Coletiva e Coisa Julgada – teoria geral das ações coletivas. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2006. Mazilli, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor e outros interesses difusos e coletivos. 13.ed. São Paulo: Saraiva, 2001. Mendes, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações Coletivas no direito comparado e nacional. São Paulo: Editora RT, p. 211. Milaré, Édis (Coord). Ação Civil Pública: lei 7347/85 – 15 anos. 2ª Edição. São Paulo: Editora Revistas dos Tribunais, 2002, p. 57. Moreira, José Carlos Barbosa Moreira. Tutela Jurisdicional dos Interesses Coletivos ou Difusos, RF 276, 1. Moreira, José Carlos Barbosa Moreira. Ações Coletivas na Constituição Federal de 1988. São Paulo: RT, n. 61. Telles, Goffredo da Silva. O Direito Quântico. 6ª Ed. São Paulo: Max Lemonad, 1985.

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A CONVERSÃO DO TEMPO ESPECIAL EM COMUM PARA FINS DE APOSENTADORIA NO REGIME PRÓPRIO DE PREVIDÊNCIA SOCIAL Alessandro Cardoso Faria121 Eloisa Vieira de Souza122 Renata Tieme Shimabukuro123 RESUMO

O presente artigo tem o objetivo de abordar e discutir o direito dos servidores públicos à conversão do tempo em comum para fins de aposentadoria no âmbito do regime próprio da previdência social, apresentando a problemática trazida pela falta de regulamentação e o posicionamento do Poder Judiciário nestes casos. PALAVRAS-CHAVE Servidor Público. Regime Próprio de Previdência Social. Aposentadoria. Conversão de Tempo Especial.

121 Advogado graduado pela Universidade do Vale do Paraíba – UNIVAP e pós-graduado em Direito Civil e Processo Civil pela UCB/INPG, Presidente da Presidente da Comissão de Direito Previdenciário da 36ª Subseção da OAB de São José dos Campos, Membro Efetivo da Comissão Especial de Direito Previdenciário da Seccional São Paulo, Especialista em Direitos do Servidor Publico. 122 Advogada graduada pela Universidade do Vale do Paraíba – UNIVAP e pós-graduada em Previdenciário pela Faculdade Legale, Membro da Comissão de Direito Previdenciário da 36ª Subseção da OAB de São José dos Campos. 123 Advogada graduada pelo Centro Salesiano Universitário de São Paulo –UNISAL e pós-graduada em Direito do Trabalho, Processual do Trabalho e Previdenciário pela Universidade Municipal De São Caetano Do Sul – SP – USCS, Membro Comissão de Direito Previdenciário da 36ª Subseção da OAB de São José dos Campos. 120

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1.INTRODUÇÃO O presente artigo tem por finalidade abordar as possibilidades de conversão de tempo especial em comum prestados pelo servidor público de cargo efetivo para fins de aposentadoria. A Constituição Federal de 1988, prevê em seu artigo 40, §4º, III, o direito do servidor público a adoção de critérios diferenciados para aposentadoria nos casos de atividades exercidas em condições especiais prejudiciais à saúde ou integridade física, na forma de lei complementar. Ocorre que passados mais de 30 anos da promulgação da Carta Magna, não foi editada norma regulamentadora para o direito constitucional da aposentadoria especial e consequentemente, da conversão de tempo especial em comum. Procura-se, desta forma, apresentar a problemática instaurada em face dessa mora legislativa, os posicionamentos do Poder Judiciário no julgamento dos inúmeros mandados de injunção interpostos afim de suprir tal omissão, que antecederam a edição da Súmula Vinculante nº 33 do STF, que conforme será debatido, garantiu não somente a aposentadoria especial aos servidores públicos de cargo efetivo como também a possibilidade da contagem diferenciada de tempo de serviço prestado com exposição a agentes insalubres, perigosos e penosos. Esclarece-se sobre o tema através das leituras e obras de alguns doutrinadores e de jurisprudências pesquisadas. Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

Por fim, são apresentadas as conclusões sobre o tema, corroborando o direito do servidor público a contagem diferenciada dos períodos laborados em atividades especiais. 2. DA CONVERSÃO DO TEMPO ESPECIAL EM COMUM NO RPPS A aposentadoria especial é uma espécie de benefício que visa garantir uma compensação pelo desgaste ao segurado que trabalhou expostos em ambientes insalubres e perigosos, durante 15, 20 ou 25 anos, conforme dispuser a lei. Atendendo ao princípio da isonomia, a conversão de tempo é criada para dar tratamento igualitário aos segurados que da mesma forma, trabalharam exposto a agentes nocivos à saúde e a integridade física, em apenas alguns períodos, não completando o requisito temporal para se aposentar na forma especial. Adriane Bramante Landenthin conclui:

de

Castro

que a conversão de tempo é o meio pelo qual os períodos de atividades com graus de nocividade distintos ou alternados entre comum e especial, possam ser convertidos, desde que haja dois ou mais períodos, aplicando-se os fatores de equivalência correspondentes, de modo a torna-los iguais e permitir que sejam somados. (LANDENTHIN, 2014, P. 161)

121


Wladimir Novaes Martinez observa que o pressuposto lógico da conversão é compensar da mesma forma, o segurado que também se expôs e teve a sua saúde e integridade física ameaçada. (MARTINEZ, 2012, P. 55). Embora a Lei 6.887/80 tenha sido o primeiro dispositivo legal a tratar da matéria, a jurisprudência pátria, entende ser possível a conversão de tempo especial em comum de atividade realizada anteriormente a esta data. Ademais, a Súmula nº 50 da TNU dispõe “É possível a conversão de tempo de serviço especial em comum do trabalho prestado em qualquer período”. (BRASIL, TNU, 2012) No regime geral de previdência social, a conversão do tempo especial em comum está prevista no §5º da Lei 8.213/1991:

O tempo de trabalho exercido sob condições especiais que sejam ou venham a ser consideradas prejudiciais à saúde ou à integridade física será somado, após a respectiva conversão ao tempo de trabalho exercido em atividade comum, segundo critérios estabelecidos pelo Ministério da Previdência e Assistência Social, para efeito de concessão de qualquer benefício. Assim, os segurados que não trabalharam ou ainda que não conseguirem comprovar 15, 20 ou 25 anos de tempo especial para se conseguirem se aposentar pela modalidade especial, poderão utilizar a conversão para transformar este tempo especial em comum, para obter acréscimo no seu tempo de contribuição. Para converter os períodos especiais em comum, aplica-se os fatores de conversão da tabela do artigo 70 do Decreto 3.048/99, conforme abaixo:

Tabela de conversão de tempo especial em comum TEMPO A CONVERTER

MULTIPLICADORES MULHER (PARA 30)

MULHER (PARA 30)

DE 15 ANOS

2,00

2,33

DE 20 ANOS

1,50

1,75

DE 25 ANOS

1,20

1,40

Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3048.htm

122

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Essa é a tabela mais recente e destes fatores os mais utilizados são o de 1,20 para mulheres e o de 1,40 para homens, a partir desta tabela, que são aplicadas regras de proporcionalidade matemática para se obter um tempo de serviço comum equivalente ao tempo de trabalho exercido em condições especiais. Por conta das inúmeras alterações sofridas pela lei previdência ao longo dos anos, a TNU em 2012, editou a Súmula nº 55 prevendo que “A conversão do tempo de atividade especial em comum deve ocorrer com aplicação do fator multiplicativo em vigor na data da concessão da aposentadoria.” (BRASIL, TNU, 2012). Destaca-se, ainda, que a conversão de tempo especial em comum e aposentadoria especial embora tenham o mesmo objetivo de compensar o segurado que trabalhou exposto a condições prejudiciais a sua saúde ou integridade física, não podem ser confundidos. Pois uma vez convertido o tempo especial em comum, este deverá ser somado a outros períodos para o requerimento na modalidade de aposentadoria comum e não a especial. Se no RGPS a questão da conversão de tempo já gerou controvérsias, na esfera do RPPS, as polêmicas e a complexidade são maiores ainda, pois assim como a aposentadoria especial não há regulamentação que garanta tal direito aos servidores. Conforme demonstrado no tópico anterior a aposentadoria especial do servidor público foi e tem sido foco de Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

vários debates levados ao Poder Judiciário, por conta da falta de regulamentação, e apesar do grande avanço, com a edição da Súmula Vinculante 33 pelo Supremo Tribunal Federal, esta não foi suficiente para sanar os muitos aspectos controvertidos acerca do tema, isso porque a pretensão de segurança jurídica havida com a edição da referida Súmula é posta em xeque, uma vez que também gera dificuldades de interpretação. Assim, mesmo após a edição da súmula, várias discussões surgiram sobre a possibilidade conversão do tempo especial em comum para fins de aposentadoria no regime estatutário. Vejamos: 2.1. DA CONVERSÃO DO TEMPO ESPECIAL EM COMUM PRESTADO PELO SERVIDOR PÚBLICO SOB O REGIME CELETISTA, ANTERIOR À LEI 8.112/90 Após

a

instituição

do

regime

jurídico único, o regime de previdência dos servidores que eram celetistas passou a ser estatutário, o que acabou acarretando grandes dúvidas a aqueles servidores

que

prestavam

serviços

expostos a agentes nocivos prejudiciais a sua saúde e integridade física, tendo em vista a falta de lei completar para regulamentar tal situação. Assim, novamente foi o Poder Judiciário que após inúmeras ações judiciais versando sobre a matéria, garantiu aos segurados do RPPS, o que podemos classificar como a primeira conquista em 123


face da lacuna legislativa do §4º, artigo 40 da Constituição Federal, o direito de fazer valer o cômputo do tempo de serviço prestado sob condições especiais, com a aplicação do correspondente fator de conversão, em relação ao período anterior ao ingresso no regime estatutário. A jurisprudência pátria pacificou o entendimento de que em razão do direito adquirido, garantido constitucionalmente, e do princípio da irretroatividade das leis, o servidor que se encontrava sob a égide do regime celetista, quando implantado o regime jurídico único, faz jus à contagem do tempo de serviço celetista prestado em condições perigosas e insalubres na forma da legislação vigenteà época da prestação de serviço, ou seja, com o acréscimo previsto na legislação previdenciária de regência, tendo em vista que é um direito consubstanciado pelo tempo, já integrado ao patrimônio jurídico do servidor. Nesse sentido foi o julgamento do RE 612.358/RG, sob regime de repercussão geral, de relatoria da Ministra Ellen Gracie: ADMINISTRATIVO. CONTAGEM ESPECIAL DO TEMPO DE SERVIÇO PRESTADO EM CONDIÇÕES INSALUBRES. PERÍODO ANTERIOR À INSTITUIÇÃO DO REGIME JURÍDICO ÚNICO. DIREITO ADQUIRIDO. RATIFICAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA FIRMADA POR ESTA SUPREMA CORTE. EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL. (G.N.) O servidor amparado pelo art. 243 da lei 8.112/90 tem direito a conversão 124

de tempo especial laborado antes da vigência da referida lei, uma vez que tal direito é incorporado ao seu patrimônio jurídico no momento em que se deu o labor, aplicando-se o princípio do tempus regitactum. Ademais, a legislação posterior não pode atingir situações já consolidadas pela lei anterior, posto que o direito à averbação do tempo de serviço especial já se incorporou como direito consolidado e, portanto, é imutável. O tempo de serviço objeto da contagem, entretanto, ficou restrito ao período em que o servidor esteve subordinado ao regime celetista, por conta do regime de emprego, onde a vinculação ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS) sempre foi a regra, a atrair a incidência, desde logo, do Art. 57, da Lei nº 8.213 de 1991. Isto posto, os servidores que hoje são vinculados ao RPPS, mas que trabalharam a agentes agressivos insalubres e periculosos em períodos vinculados ao RGPS, tem direito à contagem de tempo com a respectiva conversão com a aplicação do fator previsto na legislação. Neste caso, é competência do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, a expedição de Certidão de Tempo de Contribuição – CTC, já com a devida conversão dos períodos especiais em comum, para averbação junto ao regime de previdência que se dará a aposentadoria. Infelizmente, mesmo estando consolidado o entendimento em favor do servidor público estatutário, muitas 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


vezes este direito só será efetivado por via judicial, já que por falta de regulamentação muitos órgãos da Administração Pública não o reconhecem. 2.2. DA CONVERSÃO DO TEMPO ESPECIAL EM COMUM PRESTADO PELO SERVIDOR SOB O REGIME ESTATUTÁRIO A Súmula Vinculante nº 33 editada pelo STF, em 2014, veio com a finalidade de uniformizar o entendimento em seu âmbito, mas também para preencher a omissão normativa sobre o tema. Em que pese a intenção de pacificar a questão, a referida súmula trouxe algumas polêmicas, dentre elas, a conversão de tempo especial por exposição a insalubridade e periculosidade no regime próprio de previdência. Apesar do STF, ter debatido a presente questão em inúmeros Mandados de Injunção que lá tramitaram e nos estudos que antecederam a edição da Súmula Vinculante nº 33, não há um posicionamento pacificado na corte. Em nenhum momento o Excelso Pretório consolidou entendimento quanto a vedação a conversão do tempo especial em comum no regime dos servidores públicos, este na realidade afastou apenas a possibilidade de analisar tal matéria em sede de mandado de injunção, assim, caso o servidor não alcance tal direito na esfera administrativa, poderá ingressar com ação judicial para discutir a matéria.

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De fato, o Supremo em algumas decisões obstou à possibilidade de contagem diferenciada de tempo decorrente de atividade especial ao servidor público, justificando a impossibilidade sobre o argumento de que o artigo 40, §4º da Constituição em nenhum momento garante a contagem diferenciada ao servidor, tão somente, aposentadoria especial, e ainda se referia a proibição de contagem de tempo ficto prevista no §10 do artigo 40 da Carta Magna, introduzido pela Emenda Constitucional 20/98. Porém, em julgados mais recentes da Suprema Corte sobre a presente discussão, alguns Ministros já se posicionaram de forma favorável à possibilidade de conversão, ao passo, que até o momento, nenhum outro ministro se declarou contra a tal possibilidade. Dentre esse novo posicionamento STF, podemos citar o Ministro Marco Aurélio que ao proferir seu voto no MI 2.140 AgR, de 06.03.2013, afirmou que enquanto não editada a lei reguladora do direito assegurado constitucionalmente ao servidor público, o critério a ser levado em conta é, na integralidade, o da Lei nº 8.213/93, mais precisamente o definido no artigo 57 dela constante. Em conformidade com o colega de Corte, o Ministro Luís Roberto Barroso no julgamento do Mandado de Injunção nº 4.204/DF, em que é relator, também consolidou seu entendimento em prol da possibilidade de conversão do servidor, 125


combatendo, ainda, todos os argumentos anteriormente utilizados nos precedentes denegatórios a esse direito. Desta feita, não seria razoável, tratar de forma distinta o servidor que possui apenas 24 (vinte quatro) anos de serviço sob condições que prejudique a sua saúde ou integridade física, daquele que possui os 25 anos completos de exposição a agentes nocivos. Deve-se aplicar nestes casos a mesma lógica usada nas situações de servidores ex- celetistas que exerciam atividade especial quando da mudança do regime que possuem o direito da conversão do tempo especial já pacificado na jurisprudência pátria. Assim em face da omissão normativa posta ao §4º do artigo 40 da Constituição, com fundamentos na Súmula Vinculante nº 33 bem como o §12, artigo 40 da Carta Magna que assegura a aplicação, no que couber, das regras do regime geral sobre a aposentadoria especial do servidor público, não há outra interpretação senão aplicar o artigo 57, §5º da lei 8.213/91 no caso em debate. Caso contrário, seriam violados ao mesmo passo os princípios da isonomia e da razoabilidade, dentre outros dispositivos constitucionais. Já com relação ao óbice ao direito de conversão encontrado no §10 do artigo 40 da Constituição, que proíbe a contagem de ficto, o ministro Luís Barroso afirma: “Entendo que a vedação à contagem de tempo ficto (CF, art. 40, § 10) não proíbe o cômputo diferenciado de 126

tempo de serviço especial, pois de tempo ficto não se trata. O art. 40, § 10, da Constituição, a meu ver, destina-se a proscrever a contagem, como tempo de contribuição, de férias não gozadas, licenças etc., em suma, de tempo não trabalhado. A necessidade de “requisitos e critérios diferenciados” no que diz respeito ao tempo de serviço prestado em condições prejudiciais à saúde e à integridade física decorre da letra do art. 40, § 4º, III, da Constituição.” (BARROSO, MI 4.204DF – STF – 2015). Como o ministro citado, o ilustre Professor Marcelo Barroso Lima Brito de Campos, compartilha o mesmo entendimento de que os segurados do regime próprio de previdência devem ter direito à conversão do tempo especial em comum, utilizando –se para tanto, por analogia, as normas do regime geral. Não havendo de se considerar tal período como tempo fictício, pois tratase de tempo real convertido para outra modalidade de aposentadoria (CAMPOS, 2015, P. 243 E 244). 2.3. A QUESTÃO DE TEMPO FICTO É bastante comum o argumento de que, embora permitida pelo Regime Geral de Previdência Social, é constitucionalmente vedado ao servidor público a contagem de tempo fictício devido ao disposto no art. 40, §10 da CF, razão pela qual a conversão de tempo especial em comum também 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


estaria vedada por se tratar de uma forma de tempo ficto. No entanto, há que se fazer menção ao voto do Ministro Roberto Barroso no julgamento do MI nº 4.204/DF acima citado, em que se entendeu pela possibilidade da conversão de tempo especial em comum sob a fundamentação de que não haveria incidência na proibição de cômputo de tempo ficto. Embora sejam tratadas como um mesmo instituto, a contagem de tempo ficto não deve ser confundida com a contagem de tempo diferenciada, vez que se tratam de direitos distintos. A vedação a que se refere o art. 40, §10 da Constituição abrange somente as hipóteses em que efetivamente não houve trabalho, como os períodos de licenças e de férias não gozadas, enquanto que a conversão de tempo é a forma encontrada para compensar o trabalhador pelos danos causados em razão de ter laborado em atividade com exposição a agentes agressivos. Daí se pode concluir que a conversão de tempo não se trata afinal de contagem de tempo ficto, mas tão somente de aplicação do preceito da isonomia, equilibrando a compensação pelos riscos impostos e como consectário lógico da isonomia na proteção dos trabalhadores expostos a agentes nocivos. 2.4. DO TEMA 942/STF – POSSIBILIDADE DE CONVERSÃO DE PERÍODO ESTATUTÁRIO Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

Finalmente, o Supremo Tribunal Federal, em sede do Recurso Extraordinário nº 1014286/SP, em acórdão publicado em 24/09/2020, transitado em julgado em 04/08/2021, pacificou a questão no que diz respeito à possibilidade de conversão do tempo especial em comum de períodos laborados pelo servidor público, sob o regime estatutário, pois ao apreciar o Tema 942 de repercussão geral, consolidou que Até a edição da Emenda Constitucional nº 103/2019, o direito à conversão, em tempo comum, do prestado sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física de servidor público decorre da previsão de adoção de requisitos e critérios diferenciados para a jubilação daquele enquadrado na hipótese prevista no então vigente inciso III do § 4º do art. 40 da Constituição da República, devendo ser aplicadas as normas do regime geral de previdência social relativas à aposentadoria especial contidas na Lei 8.213/1991 para viabilizar sua concretização enquanto não sobrevier lei complementar disciplinadora da matéria. 3. CONCLUSÃO Pode-se demonstrar com o presente artigo, que mesmo na ausência de lei regulamentadora do artigo 40, §4º da Constituição Federal até a presente data, não há como negar o direito da conversão do tempo especial em comum aos servidores que trabalham ou trabalharam expostos a agentes prejudiciais à saúde ou integridade física, sob a égide do regime 127


celetista ou estatutário, pelo menos até a edição da Ec nº 103/2019. A Súmula Vinculante nº 33 do STF trouxe aos servidores públicos na falta de regulamento a possibilidade de utilizarem a Lei 8.213/91 para a concessão de aposentadoria especial. Embora a edição da referida súmula tenha pacificado o entendimento ao direito da aposentadoria especial, a mesma trouxe inúmeras controversas ao direito de conversão do tempo especial em comum. Porém, como exposto nas linhas acimas, não há como tratar de forma diferenciada a aposentadoria especial ao direito da contagem diferenciada por tempo especial, já que tratam do mesmo direito, possuindo o mesmo objetivo social previsto pelo constituinte. Verificou-se ainda que após inúmeras discussões, finalmente, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 1014286/SP consolidou o entendimento da possibilidade de conversão do tempo especial em comum, com aplicação da legislação do regime geral de previdência social.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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RETROCESSO NA RESSOCIALIZAÇÃO DA POPULAÇÃO CARCERÁRIA ORIUNDA DA RESTRIÇÃO DE ACESSO AO BENEFÍCIO DE AUXÍLIO RECLUSÃO CAUSADO PELA LEI 13.846/2019 Jesus Nagib Beschizza Feres124

RESUMO O cenário atual da população carcerária constitui uma das realidades mais caóticas em nosso país, onde os detentos não possuem qualquer dignidade em seu tratamento, desde o seu alojamento, vestuário, alimentação e cuidados médicos, de modo que, tais omissões acabam, por influir de forma totalmente negativa na ressocialização dos encarcerados. Outro fato que deveria ser utilizado como forma de auxiliar na ressocialização dos presos seria o benefício previdenciário de auxílio reclusão, que deve ser pago à família do segurado recolhido à prisão, desde que cumpridos os requisitos contidos na Lei nº 8.213/91. Tal possibilidade, no entanto, vem se tornando cada vez mais distante, notadamente no que diz respeito ao auxílio reclusão, tendo em vista a grande restrição de acesso ao citado benefício advinda das alterações trazidas pela Lei nº 13.846/2019 à Lei de Benefícios da Previdência Social. PALAVRAS-CHAVE Políticas públicas. População carcerária. Auxílio reclusão. 124 Mestrando em Direito pelo Centro Universitário Eurípides de Marília – UNIVEM. Pós-graduado em Direito Previdenciário dos Servidores Públicos pelo IEPREV (2018). Pós-graduado em Direito Previdenciário pela Uniderp (2012). Graduado em Direito pelo UNIFIPA (2008). Professor de cursos de extensão e pós-graduação em Direito Previdenciário. Palestrante do Departamento de Cultura e Eventos da OAB/SP. Coordenador da Escola Superior da Advocacia da 41ª Subseção da OAB/SP. Coordenador Regional do IEPREV. Tutor da Pós-Graduação em Prática Processual Previdenciária Administrativa e Judicial do IEPREV. Membro efetivo da Comissão de Direito Previdenciário da OAB/SP. Advogado.Email: jesus@feresadvogados.com. 130

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1. INTRODUÇÃO

de carência equivalente a vinte e quatro

O auxílio reclusão constitui um benefício

previdenciário

devido

aos

dependentes do segurado de baixa renda que vier a ser recolhido à prisão, conforme previsão

expressamente

contida

no

artigo 80, da Lei nº 8.213/91125, o qual visa substituir a renda da família que presumidamente

adviria

do

trabalho

desempenhado pelo agora recluso. Até o advento da Lei nº 13.846/19, o benefício previdenciário de auxílio reclusão era devido aos dependentes dos segurados considerados baixa renda, que estivessem em cumprimento de pena privativa de liberdade (regime fechado; semiaberto ou em prisão provisória). Com

a

documento de

publicação legal,

recebimento

previdenciário

as desse

passou

a

do

citado

hipóteses benefício restringir-se

apenas aos dependentes do segurado baixa renda em cumprimento de pena em regime fechado. Outra restrição imposta pela novel legislação diz respeito à necessidade de cumprimento, por parte do segurado instituidor do benefício, de um período 125 Art. 80. O auxílio-reclusão, cumprida a carência prevista no inciso IV do caput do art. 25 desta Lei, será devido, nas condições da pensão por morte, aos dependentes do segurado de baixa renda recolhido à prisão em regime fechado que não receber remuneração da empresa nem estiver em gozo de auxílio-doença, de pensão por morte, de salário-maternidade, de aposentadoria ou de abono de permanência em serviço. (Redação dada pela Lei nº 13.846, de 2019)

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contribuições mensais para que seus dependentes façam jus ao gozo do auxílio reclusão. Até o advento da Lei 13.846/19, a lei 8.213/91 não estabelecia qualquer tempo mínimo e contribuição como requisito para concessão dessa prestação previdenciária. A última restrição advinda desta alteração

legislativa

impossibilidade

de

diz

respeito

recebimento

à do

benefício de auxílio reclusão por parte dos dependentes na hipótese de o segurado preso já estiver recebendo os seguintes benefícios previdenciários: pensão por morte e salário maternidade. Importante mencionar, que na redação anterior da Lei nº 8.213/91, já não era possível o recebimento dos benefícios de auxílio doença e aposentadorias por parte do segurado preso. E tal limitação, assim como a falta de efetivação das políticas públicas prisionais, acaba por refletir, conforme será

demonstrado

no

decorrer

do

presente trabalho, de forma totalmente negativa na ressocialização da população carcerária, pois o fato de seus familiares ficarem cada vez mais desamparados da proteção social advinda do recebimento do benefício de auxílio reclusão, maior será a chance do segurado preso permanecer no “mundo do crime”.

131


2. REQUISITOS LEGAIS PARA A CONCESSÃO DO BENEFÍCIO DE AUXÍLIO RECLUSÃO E AS RESTRIÇÕES ADVINDAS DA LEI 13.846/2019

da sua condição de baixa renda;

De acordo com o artigo 80, da Lei nº 8.213/91, O auxílio-reclusão, cumprida a carência vinte e quatro contribuições mensais, será devido, nos mesmos moldes previstos no benefício de pensão por morte, aos dependentes do segurado de baixa renda recolhido à prisão em regime fechado que não receber remuneração da empresa nem estiver em gozo de auxíliodoença, de pensão por morte, de saláriomaternidade, de aposentadoria ou de abono de permanência em serviço.

e doutrinaria, a condição de baixa renda

Da análise do artigo acima mencionado extraem-se os seguintes requisitos para a obtenção do benefício de auxílio reclusão: a) carência de vinte e quatro contribuições mensais: tal requisito surgiu como advento da lei n° 13.846/, de 18 de junho de 2019, a qual trouxe em seu bojo inúmeras restrições impostas aos segurados e dependentes do Regime Geral de Previdência Social. Até a publicação do mencionado diploma legal, não era exigido pelo artigo 25126da lei de benefícios qualquer carência para fins de obtenção do benefício em questão, ou seja, bastava que os dependentes comprovassem que o segurado possuía a qualidade de segurado à época da prisão, além da caracterização 126 Art. 25. A concessão das prestações pecuniárias do Regime Geral de Previdência Social depende dos seguintes períodos de carência, ressalvado o disposto no art. 26: 132

b) condição de baixa renda do segurado preso: embora já tenha sido objeto de grande discussão jurisprudencial a ser verificada no momento da prisão diz respeito ao segurado, e não aos seus dependentes. E como a verificação do adimplemento

dos

requisitos

deverá

observar a lei vigente no momento do fato gerador do benefício previdenciário, no caso do auxílio reclusão a apuração da condição de baixa renda deverá observar o limite estabelecido pelo Governo Federal à época da prisão, sendo que, a título informativo, a partir de 14 de janeiro de 2020, data de publicação da Portaria nº 914, de 13/01/2020, será considerado baixa renda o segurado que perceber remuneração de até R$1.425,56. c) estar recolhido à prisão sob o regime fechado: antes do advento da Lei nº 13.846/2019, o benefício de auxílio reclusão seria concedido aos dependentes do segurado baixa renda que estivesse em cumprimento de pena privativa de liberdade, seja em regime fechado, semiaberto ou em prisão provisória. Com a já citada alteração legislativa, e com nítido caráter de retrocesso social, o auxílio reclusão passou a ser concedido apenas aos dependentes de segurados que estejam recolhidos à prisão sob o regime fechado de cumprimento da pena

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privativa de liberdade127; d) não estar, o segurado, em gozo de auxílio doença, pensão por morte, salário maternidade, aposentadoria, abono de permanência, ou estar percebendo remuneração da empresa. Aqui também merece destaque mais uma restrição advinda da lei nº 13.846/2019, a qual aumentou o rol de restrições de recebimentos, por parte do segurado preso, para fins de concessão do auxílio reclusão aos seus dependentes128. Na redação anterior da Lei nº 8.213/91, conforme mencionado, já não era possível o recebimento dos benefícios de auxílio doença e aposentadorias por parte do segurado preso. Salienta-se que, assim como a grande maioria das prestações previdenciárias, o benefício de auxílio reclusão possui nítido caráter alimentar, uma vez que visa substituir o rendimento da família, que presume-se ter sido afetado com a prisão do segurado, o qual, em diversas oportunidades, era o único responsável pela subsistência do grupo familiar. Verifica-se, no entanto, que a Lei nº 13.846/2019, ao invés de trazer mais efetividade aos parcos direitos sociais 127 auxílio-reclusão: 24 (vinte e quatro) contribuições mensais. (Incluído pela Lei nº 13.846, de 2019) 128 Art. 80. O auxílio-reclusão, cumprida a carência prevista no inciso IV do caput do art. 25 desta Lei, será devido, nas condições da pensão por morte, aos dependentes do segurado de baixa renda recolhido à prisão em regime fechado que não receber remuneração da empresa nem estiver em gozo de auxílio-doença, de pensão por morte, de salário-maternidade, de aposentadoria ou de abono de permanência em serviço. (Redação dada pela Lei nº 13.846, de 2019) Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

garantidos às famílias dos encarcerados, trouxe em seu bojo grandes restrições, as quais caracterizam verdadeiros retrocessos sociais, na medida em que criou verdadeiras barreiras como forma de dificultar, por parte dos dependentes que cumpram os demais requisitos, o acesso ao benefício como forma de ter suprida a ausência de rendimento do grupo familiar. No que diz respeito à vedação ao retrocesso social, segundo Cristina Queiroz: “Concretamente, a ‘proibição do retrocesso social’ determina, de um lado, que, uma vez consagradas legalmente as ‘prestações sociais’, o legislador não pode mais eliminá-las sem alternativas ou compensações. Uma vez dimanada pelo Estado a legislação concretizadora do direito fundamental social, que se apresenta face a esse direito como uma ‘lei de proteção (Schutzgesetz), a ação do Estado, que se consubstanciava num ‘dever de legislar’, transforma-se num dever mais abrangente: o de não eliminar ou revogar essas Lei ”. (p. 103). Ao passo que, ao impor requisitos que dificultam sobremaneira o acesso a um determinado benefício previdenciário, prestação de natureza indiscutivelmente familiar, o legislador acaba, na prática, por retirar o mencionado direito social de seu destinatário, incorrendo em inequívoco retrocesso social indireto. Segundo Marco Aurélio Serau Junior: No Brasil ocorre um fenômeno singular em termos de Seguridade 133


Social e, em particular, de Previdência

não ao segurado preso, mas sim aos seus

Social. Produz-se um retrocesso

familiares, desde que haja o cumprimento

social indireto ou que não é formal.

dos requisitos previstos na Lei nº 8.213/91.

Promove-se a diminuição no alcance

Entretanto, embora não seja uma

dos direitos sociais (previdenciários

renda mensal destinada ao segurado

em particular) não a partir de sua

preso, integrante da população carcerária

supressão direta e expressa, mas

brasileira,

através do gradual enrijecimento dos

ou, melhor dizendo, as limitações de

requisitos necessários para obtenção

acesso ao benefício impostas pela lei nº

dos benefícios previdenciários, em

13.846/2019, recentemente introduzida

particular as regras de prova das

em

situações de vida que produzem

certamente

reflexo previdenciário.

implicações no que diz respeito, dentre

Exemplo dessa afirmação pode ser

outros, à ressocialização do preso, tendo

encontrado na Medida Provisória 871/2019, que passou a exigir comprovação formal

dos

e

segurados

(trabalhadores de

cadastramento

rurais)

obtenção

dos

especiais para

fins

benefícios

previdenciários (arts. 38-A e 38-B, da Lei 8.213/91). No

mesmo

igualmente

rumo trazida

a

exigência,

pela

Medida

prova formal da união estável, sendo a

prova

testemunhal,

o

exclusivamente que

certamente

dificulta, em inúmeros casos, a obtenção do benefício da pensão por morte.” (p. 103-104). Conforme já mencionado na parte introdutória desse trabalho, o benefício previdenciário

de

auxílio

reclusão

constitui prestação pecuniária destinada 134

nosso

dificuldade,

ordenamento acarretará

em

restrição,

jurídico, severas

em vista que a chance de ressocialização tonar-se-á ainda mais distante pelo fato de a família do encarcerado estar desamparada da proteção previdenciária, fato este que contribuirá sobremaneira para a permanência do detento no mundo do crime. Sabe-se que as políticas públicas

Provisória 871/2019, no sentido de vedada

a

prisionais têm por principal objetivo tornar efetiva a tão falada ressocialização. Tem-se o conhecimento, de igual modo, que a inefetividade de tais políticas decorre, sem qualquer sombra de dúvidas, do gritante desinteresse do Estado no que diz respeito à implementação dos direitos sociais em favor dessa grande e considerável parcela da população brasileira, isso sem falar da falta de cobrança, por parte dos atores sociais, no que diz respeito ao adimplemento de políticas públicas prisionais que possam

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alcançar o seu objetivo a contento (BREGA FILHO; OLIVEIRA, 2018, p. 285). Segundo Brega Filho e Oliveira: Pensar em políticas públicas que se baseiam nos direitos humanos e se realizam de forma efetiva, remete automaticamente a incorporação de princípios de dignidade humana, de prestação de contas, do empoderamento e participação. Tais princípios podem contribuir para a elaboração de um desenho de políticas mais ajustado às demandas reais dos titulares de direito, de forma que haja maior poder emancipatório, com um controle social mais efetivo, e que além do poder público, outros atores sociais participem ativamente do debate(BREGA FILHO; OLIVEIRA, 2018, p. 285). E quais seriam esses atores sociais, além do próprio Poder Público, que poderiam lutar para que não fossem ceifados os direitos sociais da população carcerária, e, ainda que de forma indireta, os direitos previdenciários até então garantidos às suas famílias. Neste ponto poderíamos mencionar a importância dos nosso parlamentares, pois são a estes que cabem, em sua grande maioria, a elaboração de normas capazes de criar, restringir, ou até mesmo retirar esses direitos destinados à garantia do mínimo existencial às famílias dos segurados presos, desde que, por óbvio, tenham preenchido os requisitos legais.

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Em que pese a existências dessa categoria de atores sociais, os parlamentares, o que se vê atualmente, na verdade, é que eles não estão cumprindo seu papel previsto em nossa constituição de legítimos representantes do povo brasileiro, fato este que somente seria efetivamente concretizado caso as propostas legislativas vissem ao encontro dos anseios da população brasileira, principalmente no que diz respeito à manutenção e ampliação das normas garantidoras dos direitos sociais, notadamente, no presente estudo, no que tange à efetividade das políticas públicas prisionais e no que concerne à proteção social das famílias dos segurados presos. Não há qualquer dúvida de que o maior objetivo das políticas públicas criminais e carcerárias seja concretizar a inserção social do preso, e, consequentemente, garantir a efetividade da aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana, dando maior valoração, assim, à defesa dos direitos humanos (BREGA FILHO; OLIVEIRA, 2018, p. 287). No que diz respeito especificamente ao retrocesso perpetrado pelo advento da Lei nº 13.846/2019, a quem poderia ser confiada a tentativa de correção de tais limitações de acesso, carreada aos ombros das famílias dos segurados de baixa renda presos, a fim de possa continuar a ser garantido o recebimento do auxílio reclusão? A fim de que possam ser corrigidas tais violações aos direitos fundamentais, 135


existe a figura importantíssima do Poder Judiciário, o qual, na condição de guardião das normas constitucionais e legais, tem a competência de declarar a ilegalidade ou inconstitucionalidade das normas, devendo ter maior relevância, tal, controle, quanto se tratar de norma que tenha em seu bojo qualquer dispositivo que venha suprimir, ou ao menos dificultar, o acesso da população aos seus direitos sociais garantidos pela Constituição Federal de 1988. Este, inclusive, foi o posicionamento adotado por Brega Filho e Oliveira: Sob essa perspectiva discursiva, o Poder Judiciário transformase no guardião de promessas constitucionais; além de servir para a proteção da Constituição e dos direitos fundamentais e passa a ter como função institucional a recuperação da democracia. (BREGA FILHO; OLIVEIRA, 2018, p. 294). Portanto, uma vez constatado o advento de documentos normativos capazes de ameaçarem os direitos sociais garantidos por nossa Ordem Constitucional, afigura-se, de pronto, a importância do Poder Judiciário no que diz respeito à defesa de tais direitos contra as constantes investidas que estes vêm sofrendo por parte dos Poderes Executivo e Legislativo. Frisa-se, por fim, a responsabilidade da advocacia brasileira no que diz respeito 136

ao combate a ser efetivado frente a tais retrocessos, pois é papel do advogado, cuja magnitude do seu papel veio insculpida no art. 133 da Carta Magna ao qualifica-lo como sendo indispensável à administração da justiça, defender os interesses, anseios, bem com buscar a corrigenda das violações aos direitos dos cidadãos, principalmente quando tais violações atacarem direitos sociais garantidos pela Constituição Federal de 1988 às classes desfavorecidas de nossa .população

3. CONCLUSÃO Desta feita, constitui medida indispensável a provocação do Poder Judiciário, paraque este realize o tão necessário controle de constitucionalidade em face dos dispositivos legais contidos na novel Lei nº 13.846/2019, a qual, dentre outros, trouxe graves limitações de acesso às famílias dos segurados presos ao benefício previdenciário de auxílio reclusão. E para que o Poder Judiciário seja provocado de forma efetiva, ágil e correta, reitera-se a importância e indispensabilidade da figura do advogado, o qual deverá demonstrar a efetiva violação constitucional contidas nos já citados dispositivos legais, pois somente assim será possível continuar garantindo o acesso dos segurados e dependentes do regime geral de previdência social aos benefícios e serviços previdenciários 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


elencados na Lei nº 8.213/91, dentre os quais destaca-se, no presente estudo, o auxílio reclusão. Indispensável se faz mencionar, por fim, que os dependentes dos segurados recolhidos à prisão não estão a pedir qualquer “favor” aos cofres públicos quando do requerimento do seu benefício de auxílio reclusão, haja vista que somente terão direito aos benefícios e serviços ofertados pela previdência social aquelas pessoas que verterem contribuição ao referido regime público, dado o seu indiscutível caráter contributivo previsto no artigo 201, da Constituição Federal de 1988129. O que estão a fazer é pura e simplesmente requerer a contraprestação decorrente de todas contribuições previdenciárias que o segurado fez, ao longo de sua vidaaos cofres do Regime Geral de Previdência Social, devendo ser frisado que a negativa de tal contrapartida acabaria por configurar nítido e indiscutível enriquecimento ilícito por parte do Governo Federal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Lei nº 13.846, de 18 de junho de 2019. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 18 jun. 2019. BREGA FILHO, Vladimir; OLIVEIRA, Samyle Regina Matos. Políticas públicas prisionais e os direitos humanos: uma análise crítica. In: ALVES, Fernando de Brito; POZZOLI, Lafayette;SILVA, Marco Antônio Marques(organizadores). Direitos fundamentais: construção do saber jurídico no exercício da cidadania – Paraná: Instituto Memória. Centro de Estudos da Contemporaneidade, 2018. p. 284-298. IBRAHIM. Fabio Zambitte. Curso de direito previdenciário. 23ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2018. QUEIROZ, Cristina. Direitos fundamentais sociais: funções, âmbito, conteúdo, questões interpretativas e problemas de justiciabilidade. Coimbra: Coimbra, 2006. ROCHA, Daniel Machado da. Comentários à lei de benefícios da previdência social. São Paulo: Atlas, 2018.

129 Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma do Regime Geral de Previdência Social, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, na forma da lei, a: Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

SERAU JUNIOR, Marco Aurélio. Seguridade social e direitos fundamentais. 3 ed. Curitiba: Juruá, 2019.

137


11

OS ENUNCIADOS DO CONSELHO DE RECURSOS DA PREVIDÊNCIA SOCIAL SOBRE APOSENTADORIA ESPECIAL Adriane Bramante de Castro Ladenthin130

RESUMO O presente estudo tem como objetivo apresentar uma abordagem acerca da fase recursal do processo administrativo previdenciário, apontando-se a aplicação dos Enunciados no julgamento dos pedidos de aposentadoria especial, bem como as dificuldades probatórias encontradas na elaboração dos formulários exigidos pela previdência social e as divergências de posicionamento, inclusive à luz das decisões judiciais. PALAVRAS-CHAVE Conselho de Recursos da Previdência Social, Aposentadoria Especial, Enunciados e Processo Administrativo Previdenciário.

130 Advogada. Mestre e Doutora em Direito Previdenciário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário – IBDP. Presidente da Comissão de Direito Previdenciário da Seccional São Paulo. Coordenadora de pós-graduação em Direito Previdenciário da ESA/SP. Professora convidada de pósgraduação em diversas instituições de ensino do país. Autora de Livros. Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito Previdenciário da Editora LexMagister. 138

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1. INTRODUÇÃO A matéria previdenciária tem se consolidado no cenário atual como um dos serviços públicos de maior relevância na Administração Pública Federal, no qual os beneficiários buscam a proteção social pela prestação pecuniária, o que se pode confirmar pela expressiva demanda do volume de requerimentos formulados pelos beneficiários nos últimos anos. Em face das inúmeras alterações legislativas e normativas ocorridas, tornouse comum ao INSS não reconhecer direito aos beneficiários, até porque o volume de informações da novel legislação, em contrapartida com o escasso número de servidores, acarreta não só a demora na prestação administrativa, como também desagua em indeferimentos desnecessários, quando não em concessão incorreta e inadequada do benefício. A consequência da ineficiência do INSS é o aumento de recursos administrativos, quando não de ajuizamento precoce das ações que podem representar desvantagens aos beneficiários, se comparadas ao entendimento administrativo do Conselho de Recursos da Previdência Social. No âmbito da dilação probatória, a esfera administrativa recursal tem se mostrado muito mais benéfica e propícia ao beneficiário da previdência social, haja vista que a própria autarquia previdenciária poderá participar da

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instrução processual, tomando iniciativas na busca do reconhecimento do direito pleiteado. O Conselho de Recursos da Previdência Social, através de seus Enunciados, vem se posicionando de forma vanguardista ao sedimentar posicionamentos que ainda não foram pacificados em sede de Poder Judiciário, com entendimentos administrativos mais adequados, partindo de conceitos racionais e atualizados, o que facilita imensamente a efetividade da proteção social pretendida pela Carta Constitucional de 1988. O presente trabalho tem como objetivo analisar o posicionamento do Conselho de Recursos da Previdência Social no que tange ao julgamento do benefício de Aposentadoria Especial e seu aspecto probatório, evidenciando as vantagens em se persistir nas vias administrativas quando da busca do reconhecimento do direito posto, considerando-se as interpretações já consolidadas e mais favoráveis ao segurado, ressaltando seu valor para a diminuição da judicialização das demandas previdenciárias. 2. BREVE EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA APOSENTADORIA ESPECIAL Instituída pela Lei Orgânica da Previdência Social, a Lei 3.807/60, a aposentadoria especial era concedida ao segurado que tivesse trabalhado por 15, 20 ou 25 anos, sujeito a condições

139


insalubres, penosas ou periculosas, conforme a atividade profissional. A Constituição Federal de 1988 elevou o benefício a status constitucional, definindo no seu Art. 202 da redação original, que deveria haver a concessão de aposentadoria com tempo menor em relação à aposentadoria comum, aos segurados sujeitos a condições especiais, prejudiciais à saúde ou à integridade física. A Lei 8.213/91, ao regulamentar o texto constitucional, trouxe nos artigos 57 e 58, as regras a serem aplicadas à aposentadoria especial, conferindo a estes segurados benefício integral, sem qualquer redutor, quando cumprido o tempo mínimo de exposição. Foi a partir da Lei 9.032/95 que as regras sobre o benefício começaram a ser restringidas, sendo ela a responsável pela extinção do enquadramento presumido das categorias profissionais, transferindo o ônus da prova ao segurado; pela exigência de exposição permanente, não ocasional e nem intermitente, além de vedar a conversão do tempo comum em tempo especial. Outras leis publicadas posteriormente também trouxeram alterações importantes, tais como: a Lei 9.528/97 (originada pela MP 1523/96), que passou a exigir LTCAT (Laudo Técnico de Condições Ambientais do Trabalho) para todos os agentes nocivos e informações sobre EPC (Equipamento de Proteção Coletiva); e a Lei 9.732/98, trazendo exigência de informações sobre EPI’s 140

(Equipamentos de Proteção Individual), complementação de contribuição ao SAT e conexão das normas previdenciárias com as regras trabalhistas. Na primeira grande reforma previdenciária trazida pela EC 20/98, foi autorizado, no Art. 201, § 1º da Constituição Federal, critério diferenciado de aposentadoria aos segurados sujeitos a condições especiais, prejudiciais à saúde ou à integridade física. Atualmente, o benefício está previsto no inciso II do § 1º do art. 201 da Constituição Federal de 1988, na redação da Emenda Constitucional n. 103/2019: CF, Art. 201 ... É vedada a adoção de requisitos ou critérios diferenciados para concessão de benefícios, ressalvada, nos termos de lei complementar, a possibilidade de previsão de idade e tempo de contribuição distintos da regra geral para concessão de aposentadoria exclusivamente em favor dos segurados: I – (...) II - cujas atividades sejam exercidas com efetiva exposição a agentes químicos, físicos e biológicos prejudiciais à saúde, ou associação desses agentes, vedada a caracterização por categoria profissional ou ocupação. Trata-se de uma proteção social ao 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


trabalhador que exerce atividade com efetiva exposição a agentes químicos, físicos e biológicos prejudiciais à saúde, ou a associação desses agentes, de forma permanente, não ocasional nem intermitente, vedada a caracterização por categoria profissional ou ocupação, durante, no mínimo, quinze, vinte ou vinte e cinco anos131. O benefício da aposentadoria antecipada visa garantir ao segurado um ressarcimento em razão do desgaste132 ocasionado pelo trabalho em condições especiais que prejudicam a saúde. A redução do tempo necessário para o jubilamento se justifica em razão do desgaste que a exposição à nocividade causa, motivo pelo qual a minoração do lapso temporal é necessária e justa. O objeto da proteção, antes da reforma, era evitar o adoecimento ou proteger a integridade física do trabalhador. Bastava a mera exposição ao risco, independentemente do atingimento da incapacidade laboral, daí a aposentadoria especial ser uma das espécies da aposentadoria por tempo de serviço.133 O novo conceito do benefício após a EC 103/19, aproxima-o da aposentadoria 131 Vide Regra Transitória, prevista no Art. 19, § 1º da EC 103/19. 132 RIBEIRO, Maria Helena Carreira Alvim. Aposentadoria Especial, Curitiba: Juruá, 8. Ed., p. 25.

133 HORVATH JR., Miguel. Direito Previdenciário. Rideel, 2020, p. 377 Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

programada ou por Idade, tornando-o reparador e não mais preventivo, com presunção de incapacidade laboral: O fato gerador do benefício, com as novas regras, é a efetiva exposição a agentes nocivos, com a idade mínima de 55, 58 e 60 anos, para cada modalidade (15,20 ou 25 anos), respectivamente. (...) Diante da presunção de incapacidade laboral com a fixação da idade mínima, podese concluir que, após a EC 103/19, o benefício passa a ter natureza jurídica de prestação previdenciária reparadora134. O Decreto n. 10.410/2020 alterou o texto do artigo 64 do Decreto n. 3.048/99, para ajustar as disposições da Emenda Constitucional n. 103/2019 que inseriu o requisito da idade na concessão do benefício. Art. 64. A aposentadoria especial, uma vez cumprido o período de carência exigido, será devida ao segurado empregado, trabalhador avulso e contribuinte individual, este último somente quando cooperado filiado a cooperativa de trabalho ou de produção, que comprove o exercício de atividades com efetiva exposição a agentes químicos, físicos e biológicos prejudiciais à saúde, ou a associação desses agentes, 134 LADENTHIN. Adriane Bramante de Castro. Aposentadoria Especial no Brasil. Evolução. Regime Jurídico. Reforma. Curitiba: Alteridade. 2021. p. 207. 141


de forma permanente, não ocasional nem intermitente, vedada a caracterização por categoria profissional ou ocupação, durante, no mínimo, quinze, vinte ou vinte e cinco anos, e que cumprir os seguintes requisitos: (Redação dada pelo Decreto nº 10.410, de 2020). I - Cinquenta e cinco anos de idade, quando se tratar de atividade especial de quinze anos de contribuição; II - Cinquenta e oito anos de idade, quando se tratar de atividade especial de vinte anos de contribuição; ou III - sessenta anos de idade, quando se tratar de atividade especial de vinte e cinco anos de contribuição. Não é necessário que tenha havido o prejuízo real da saúde, pois a sujeição dele ao agente nocivo é o que determina o direito ao benefício, além da idade mínima. A possibilidade de advir a incapacidade laboral por estar exposto aos agentes nocivos é o que enseja o direito ao benefício.135 3. O CRPS E SEUS ENUNCIADOS SOBRE APOSENTADORIA ESPECIAL No que tange ao benefício de Aposentadoria Especial, o Conselho de Recursos da Previdência Social editou alguns Enunciados em novembro de

135 LADENTHIN, Adriane Bramante de Castro. Aposentadoria Especial – Teoria e Prática. Curitiba: Juruá 5ª. Ed., p. 33. 142

2019136 e que, embora recentes, aguardam atualizações,

conforme

discutido

na

última sessão do Conselho Pleno nos dias 29 e 30/04/2021. O

Conselho

de

Recursos

da

Previdência Social adota muitas vezes um

posicionamento vanguardista,

se

adequando ao posicionamento judicial e, não raras vezes, se antecipando no reconhecimento do direito postulado, como é o caso de aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, invertendo o ônus da prova e concedendo o benefício, evitando a procrastinação no cumprimento de diligências por parte do INSS. No

caso

do

requerimento

de

Aposentadoria Especial, a fase instrutória guarda

especial

relevância,

muitas

vezes em razão da dificuldade de se comprovar adequadamente a exposição aos agentes nocivos, e isso se dá por conta do preenchimento errôneo do formulário de PPP – Perfil Profissiográfico Previdenciário, motivo maior do não enquadramento da atividade especial na via administrativa. Ao revés do que acontece na instrução probatória em processo judicial, a empresa poderá ser intimada pela autarquia previdenciária para eventual perícia ou inspeção, onde se possa constatar a exposição aos agentes nocivos. 136 Enunciados publicados através do Despacho 37/2019. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/ dou/-/despacho-n-37/2019-227382969,a acesso em 26/11/2021. 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


No âmbito do Poder Judiciário, dificilmente a empresa será chamada a apresentar um laudo técnico, cabendo ao segurado, no mais das vezes, tendo que demandar em ação autônoma, ou de exibição de documentos, ou mesmo na Justiça do Trabalho para retificação do formulário. Na fase instrutória do processo administrativo previdenciário, o próprio INSS poderá solicitar da empresa que faça as devidas retificações e/ ou complementações nos referidos formulários, o que se mostra bem mais vantajosa a perquirição da via administrativa na instrução processual. A atuação de profissional especializado junto à autarquia por certo permitirá um melhor desenvolvimento do processo de reconhecimento do direito e consequente concessão do benefício almejado, haja vista a hipossuficiência informacional do próprio segurado. Nesse viés de preenchimento do formulário comprobatório da atividade exercida em condições especiais (PPP), a demonstração cabal de que já houve impugnação do documento apresentado, porque não condiz com a realidade dos fatos e, ainda assim, a empresa não o alterou, o pedido de intimação da empresa para que apresente o laudo técnico ou faça as devidas modificações no formulário, irá sedimentar o caminho para o sucesso da pretensão. Assim, à título de esclarecimento do estudo desses Enunciados relacionados Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

ao benefício de Aposentadoria Especial, em especial à comprovação da efetiva exposição aos agentes nocivos, apontaremos os mais relevantes. ENUNCIADO 11. SOBRE PPP E LTCAT: “O

Perfil

Profissiográfico

Previdenciário (PPP) é documento hábil à comprovação da efetiva exposição do segurado a todos os agentes nocivos, sendo dispensável o Laudo Técnico de Condições Ambientais de Trabalho (LTCAT) para requerimentos feitos a partir de 1º/1/2004, inclusive abrangendo períodos anteriores a esta data. I - Poderá ser solicitado o LTCAT em caso de dúvidas ou divergências em relação às informações contidas no PPP ou no processo administrativo. II - O LTCAT ou as demonstrações ambientais substitutas extemporâneos que informem quaisquer alterações no meio ambiente do trabalho ao longo do tempo são aptos a comprovar o exercício de atividade especial, desde que a empresa informe expressamente que,

ainda

assim,

havia

efetiva

exposição ao agente nocivo. III - Não se exigirá o LTCAT para períodos de atividades anteriores 14/10/96, data da publicação da Medida Provisória n.º 1.523/96, facultando-se

ao

segurado

a

comprovação da efetiva exposição a agentes nocivos por qualquer meio 143


de prova em direito admitido, exceto

regulamentado pela Instrução Normativa

em relação a ruído.

n. 99/2003 e que deverá ser desenvolvido

Fundamentação: Antigo Enunciado nº 20 do CRPS; STJ em Pedido de Uniformização de Jurisprudência (PET 10.262 - RS); AgRg no REsp 1417312/SC, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 21/05/2015; STJ, Resp 1.436.794 - SC (2013⁄0406240-1), Relator(a): Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/09/2105; Artigo 18, inciso I, alínea “d” e art. 57 da Lei 8.213/91; Art. 68, § 8º do Decreto 3.048/99; PARECER CONJUR/MPS Nº 616/10. Questão 13; Resolução Conselho Pleno Nº 23/2017, 41/2017, 50/2017.; MemorandoCircular Conjunto no 50 /DIRBEN/ DIRSAT/PFE/INSS, de 9/9/16 referente à Ação Civil Pública nº 0802331-13.2016.4.05.8300 (21ª Vara Federal em Recife/PE); Súmulas 62 e 68 da TNU.”

com base nas informações constantes no

Para a comprovação de exposição a agentes nocivos era necessária a apresentação

de

formulários

(SB-40,

DISES-BE 5235, DSS-8030 e DIRBEN 8030), que são aceitos se emitidos até 31 de dezembro de 2003. A partir de 1º de janeiro de 2004, o legislador passou a exigir o formulário denominado Previdenciário

144

Perfil -

Profissiográfico PPP,

documento

Laudo Técnico de Condições Ambientais do Trabalho – LTCAT, assinado por engenheiro de segurança ou médico do trabalho. Todavia, é importante ponderar que para a comprovação do agente ruído sempre foi imprescindível a apresentação do laudo técnico. Para garantir o princípio da verdade material, o INSS poderá utilizar-se de todos os meios de provas lícitas com o fim de reunir informações verdadeiras dos fatos, alcançando a legalidade objetiva e amparando o trabalhador na busca do reconhecimento do seu direito ao benefício de aposentadoria antecipada. Além de demonstrar a existência dos requisitos para garantia do seu direito, cabe ao segurado comprovar que realizou trabalho permanente, não ocasional e nem intermitente, exposto aos agentes químicos,

físicos

e

biológicos

que

prejudiquem sua saúde ou integridade física, durante o período mínimo exigido em lei. O posicionamento do CRPS quanto à data da exigência do laudo técnico é que ele passou a ser exigido a partir da Medida Provisória 1523, de 13/10/96, regulamentada pelo Decreto 2.172, de 05/03/97 e convertida na Lei n. 9.528/97

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Posicionamento diverso é o do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Tema 1031, do qual entendeu ser a partir de 05/03/97, data da publicação do Decreto 2.172/97, a data pelo qual o LTCAT ou outro elemento similar é exigido para qualquer agente nocivo. A extemporaneidade é relevada pelo CRPS, desde que haja declaração de extemporaneidade do empregador, o que se mostra divergente do posicionamento jurisprudencial

do

STJ137,

do

III - A eficácia do EPI não obsta o reconhecimento de atividade especial exercida antes de 3/12/1998, data de início da vigência da MP 1.729/98, convertida na Lei n. 9.732/98, para qualquer agente nocivo. Fundamentação: Antigo Enunciado nº 21 do CRPS; Decisão do STF no ARE 664.335, com repercussão geral. Súmula 87 da TNU.”

qual

entende que a desídia do empregador não pode responsabilizar o segurado e que a extemporaneidade não obsta o reconhecimento do trabalho especial. ENUNCIADO 12. SOBRE OS EPI’S: “O fornecimento de equipamento de proteção individual (EPI) não descaracteriza a atividade exercida em condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física, devendo ser considerado todo o ambiente de trabalho. I - Se o EPI for realmente capaz de neutralizar a nocividade, não há direito à aposentadoria especial. II - A utilização de Equipamentos de Proteção Coletiva-EPC e/ou EPI não elide a exposição aos agentes reconhecidamente cancerígenos, a ruído acima dos limites de tolerância, 137 Neste sentido vide REsp 1798931; REsp 1933869 e REsp 1903687. Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

ainda que considerados eficazes;

Conquanto o PPP possa ser considerado prova plena hábil para comprovação de atividade especial, a informação de Equipamento Proteção Individual como eficaz o torna indiscutível na via administrativa. Enquanto a justiça sobrestava todos os processos que discutiam sobre EPI’s por causa do Tema 555 do Supremo Tribunal Federal (ARE 664.335), o CRPS já trazia no seu Enunciado 21 que o uso de EPI’s não excluía o direito do segurado ao cômputo do tempo como especial por exposição aos agentes nocivos, devendo ser levado em conta todo ambiente laboral138. Atualmente no Enunciado 12, o posicionamento do CRPS quanto aos EPI’s se adequou à tese fixada pelo STF, ao extrair a ratio decidendi, no qual definiu que, somente se comprovada a 138 “O simples fornecimento de equipamento de proteção individual de trabalho pelo empregador não exclui a hipótese de exposição do trabalhador aos agentes nocivos à saúde, devendo ser considerado todo o ambiente de trabalho.” Editado pela Resolução N° 1/1999, de 11/11/1999, publicada no DOU de 18/11/1999. 145


eficácia do EPI, não haverá o direito ao reconhecimento do tempo especial. Importante destacar que, no âmbito administrativo, a discussão de EPI’s dificilmente impediu o reconhecimento do tempo especial e atualmente, pela afetação de mais um Tema como repetitivo (Tema 1090), pelo STJ, mais do que nunca o caminho do processo administrativo recursal se mostra mais adequado e ideal para o alcance do direito do segurado. ENUNCIADO 13. SOBRE RUÍDO E TÉCNICA UTILIZADA “Atendidas as demais condições legais, considera-se especial, no âmbito do RGPS, a atividade exercida com exposição a ruído superior a 80 decibéis até 05/03/97, superior a 90 decibéis desta data até 18/11/2003, e superior a 85 decibéis a partir de então. I - Os níveis de ruído devem ser medidos, observado o disposto na Norma Regulamentadora nº 15 (NR15), anexos 1 e 2, com aparelho medidor de nível de pressão sonora, operando nos circuitos de compensação - dB (A) para ruído contínuo ou intermitente ou dB (C) para ruído de impacto. II - Até 31 de dezembro de 2003, para a aferição de ruído contínuo ou intermitente, é obrigatória a utilização das metodologias contidas na NR-15, devendo ser aceitos ou

146

o nível de pressão sonora pontual ou a média de ruído, podendo ser informado decibelímetro, dosímetro ou medição pontual no campo “Técnica Utilizada” do Perfil Profissiográfico Previdenciário (PPP). III - A partir de 1º de janeiro de 2004, para a aferição de ruído contínuo ou intermitente, é obrigatória a utilização das metodologias contidas na Norma de Higiene Ocupacional 01 (NHO-01) da FUNDACENTRO ou na NR-15, que reflitam a medição de exposição durante toda a jornada de trabalho, vedada a medição pontual, devendo constar do PPP a técnica utilizada e a respectiva norma. IV - Em caso de omissão ou dúvida quanto à indicação da metodologia ou técnica utilizadas para aferição da exposição nociva ao agente ruído, o PPP não deve ser admitido como prova da especialidade, devendo ser apresentado o respectivo Laudo Técnico de Condições Ambientais do Trabalho (LTCAT) ou solicitada inspeção no ambiente de trabalho, para fins de verificar a técnica utilizada na medição, bem como a respectiva norma. Fundamentação: Súmula 29 da AGU; TEMA 174 da TNU; Art. 338, §§ 2º e 3º c/c art. 68, § 7º do Decreto 3.048/99.” Antes mesmo da Turma Nacional de Uniformização afetar o Tema 174 para 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


discutir a questão relacionada à técnica utilizada a ser informada no PPP para períodos posteriores a 01/01/2004, o CRPS já tinha publicado a Resolução MDSA n. 26/2018, na qual definia que poderia ser aceita a técnica da NR-15 ou da NHO-01 no campo 15.5 do PPP. Esta questão foi objeto de outras duas Resoluções (72 e 73) e que foram mencionadas pela TNU para fundamentar o acordão que fixou a tese do tema mencionado. Se em ambas as técnicas se utiliza a dosimetria, calculada conforme o tempo de exposição e os limites de tolerância, não tem qualquer sentido deixar de reconhecer especial o período que traz no seu PPP a metodologia da NR-15 ou da NHO-01. Apesar de solucionada essa questão, a nova onda de indeferimentos pelo INSS tem ocorrido por não constar expressamente o NEN – Nível de Exposição Normalizado no PPP. Esta exigência vai além do que estabelece a legislação previdenciária e a lógica da metodologia de medição do ruído, pois quando a jornada de trabalho já é de 8 horas, é dispensada pela própria norma o cálculo do NEN. Ou ainda vale dizer, que ambas as normas (NR015 ou NHO) trazem o cálculo do NEN. Logo, se a empresa utilizou de uma destas normas para calcular a média dose do ruído, por óbvio que o cálculo do NEN foi realizado. Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

Para

períodos

anteriores

a

31/12/2003, o CRPS muito bem definiu que a técnica deve ser a da NR-15, aceitando as informações de pressão sonora pontual ou a média de ruído, podendo ser informado decibelímetro, dosímetro ou medição pontual. ENUNCIADO 14. SOBRE CATEGORIA PROFISSIONAL “A atividade especial efetivamente desempenhada pelo segurado, permite o enquadramento por categoria profissional até 28/04/1995 nos anexos dos Decretos nº 53.831/64 e 83.080/79, ainda que divergente do registro em Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS), Ficha ou Livro de Registro de Empregados, desde que comprovado o exercício nas mesmas condições de insalubridade, periculosidade ou penosidade. I - É dispensável a apresentação de PPP ou outro formulário para enquadramento de atividade especial por categoria profissional, desde que a profissão ou atividade comprovadamente exercida pelo segurado conste nos anexos dos Decretos nº 53.831/64 e 83.080/79. II - O enquadramento do guarda, vigia ou vigilante no código 2.5.7 do Decreto nº 53.831/64 independe do uso, porte ou posse de arma de fogo. Fundamentação: Antigo Enunciado 32 do CRPS; É muito comum a nomenclatura de determinada função ser diferente em diversas 147


empresas, mas que os profissionais exercem a mesma atividade constante nos decretos 53.831/64 e 8.080/79; Resoluções do Conselho Pleno Nº 4/2016, 5/2016, 14/2017, 24/2017, 25/2017, 20/2018; Arts. 16 e 19 da Lei 7.102/83; Súmula 82 da TNU.” A Lei n. 9.032/95 transferiu ao segurado o ônus da prova da exposição a agentes nocivos, uma vez que até esse advento legal, era possível o reconhecimento de tempo de trabalho exercido sob condições especiais baseado na categoria profissional, sendo necessário comprovar o exercício da atividade constante nos Decretos 53.831/64 e 83.080/79, exibindo-se a Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) contendo expressamente a função ou cargo. Era, portanto, prova idônea e suficiente para a comprovação da atividade especial, haja vista a presunção de nocividade das atividades normativamente elencadas. O Enunciado 14 é irretocável em todos os seus preceitos, a começar pela dispensa da apresentação de PPP para enquadramento por categoria, indo além do que estabelece a IN 77/15, da qual exige o PPP se não ficar comprovada a extinção da empresa (Art. 267). Convém destacar também a inexigência de porte, uso ou posse de arma de fogo para guarda/vigia ou vigilante, cuja decisão é extremamente inteligente, pois confere lógica ao conceito de presunção

148

legal de nocividade. Ora, se havia essa presunção juris et de jure de nocividade para períodos até a Lei n. 9.032/95, não tem qualquer coerência exigir arma de fogo, considerando ser presumida a periculosidade da atividade desses profissionais, independentemente da arma de fogo. A decisão está em consonância com as Instrução Normativas anteriores à IN 77/15, das quais nunca exigiram arma de fogo para guarda/ vigilante/ vigia, surpreendendo o enorme equívoco trazido pela instrução em comento. Não obstante a decisão recursal sedimentada, a TNU afetou como Representativo de Controvérsia, através do Tema 282, para saber se para o vigilante é necessária arma de fogo para período anterior à Lei 9.032/95, causando transtorno ainda maior aos processos judiciais que discutem esse tema. ENUNCIADO 15: TEMPO ESPECIAL NA AGROPECUÁRIA “Para os efeitos de reconhecimento de tempo especial, o enquadramento do tempo de atividade do trabalhador rural, segurado empregado, sob o código 2.2.1 do Quadro anexo ao Decreto nº 53.831/64, é possível quando o regime de vinculação for o da Previdência Social Urbana, e não o da Previdência Rural (PRORURAL), para os períodos anteriores à unificação de ambos os regimes pela Lei nº 8.213/91, e aplica-se ao tempo de atividade rural exercido 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


até 28/04/95, independentemente de ter sido prestado exclusivamente na lavoura ou na pecuária. I - Até a edição da Lei nº 8.213, de 24/07/91, é possível o enquadramento como especial do labor prestado na agricultura (cód. 2.2.1 do Decreto nº 53.831/64) desde que o trabalhador estivesse vinculado ao setor rural da agroindústria e a respectiva empresa necessariamente inscrita no extinto Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários - IAPI. II - Após a Lei nº 8.213/91 e até a Lei 9.032/95, admite-se o reconhecimento como especial o trabalho exercido pelo empregado rural na agropecuária, agricultura ou pecuária. Fundamentação: Antigo Enunciado 33 do CRPS; Resoluções do Conselho Pleno nº 34/2017, 10/2017, 16/2016, 6/2014, 16/2014, 34/2015; Outro tema que tem decisão bastante vanguardista em relação às decisões judiciais é este Enunciado 15, do qual reconhece como especial as atividades de agropecuária, compreendendoas também aquelas na agricultura ou pecuária, até a Lei 9.032/95. As recentes decisões jurisprudenciais têm confundido os conceitos, aceitando como especial

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apenas quando constar o trabalho na Agropecuária, não reconhecendo aquelas exercidas na agricultura ou na pecuária, apenas. Importante ressaltar que neste caso não se aplica aos segurados especiais, mas aos empregados rurais, vinculados à Previdência Social Urbana e não àqueles vinculados anteriormente ao Prorural. 4. A PROVA DO TEMPO ESPECIAL NO CONSELHO DE RECURSOS DA PREVIDÊNCIA SOCIAL – CRPS. As condições ambientais de trabalho deverão considerar a classificação dos agentes nocivos e os limites de tolerância estabelecidos pela Portaria n. 3.214/78, bem como a metodologia e os procedimentos de avaliação estabelecidos pela Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho – FUNDACENTRO. A prova material fundamental no requerimento administrativo da Aposentadoria Especial é a prova documental, não sendo admitida a prova unicamente testemunhal, ressalvados períodos enquadramentos por categoria, dos quais se admitem quaisquer meios de prova em direito admitidas (Enunciado 11, III). Poderão ser utilizados para comprovação da atividade com exposição a agentes nocivos, o CNIS, a CTPS, a Carteira Profissional, carteira de férias, carteira sanitária, a caderneta de matrícula,

149


os formulários exigidos conforme períodos de atividades especiais, bem como o PPP, Laudo Técnico de Condições Ambientais do Trabalho (LTCAT), Programa de Prevenção de Riscos Ambientais (PPRA), Programa de Gerenciamento de Riscos (PGR), Programa de Condições e Meio Ambiente de Trabalho na Indústria da Construção (PCMAT), Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO) Cabe ao INSS requisitar documentos que se encontram em outro processo ou perante outros órgãos da Administração Pública, mediante informação do segurado nesse sentido, sendo vedada à autarquia que exija do segurado a apresentação dos citados documentos, sob pena de ofensa ao artigo 37 da Lei 9.784/99. Para sanar eventuais dúvidas quanto à veracidade ou contemporaneidade dos documentos apresentados, o INSS deve realizar as diligências cabíveis, tais como: a consulta aos bancos de dados colocados à sua disposição; a emissão de ofício a empresas ou órgãos; a Pesquisa Externa; e a Justificação Administrativa, sendo imprescindível, neste último caso, que haja início razoável de prova material. As informações constantes do formulário que indicam a profissiografia do segurado, em consonância com as informações do CNIS e outras identificadas nos diversos bancos de dados, firmam a convicção do analista de que houve efetivamente o exercício de atividade com exposição aos agentes nocivos e que essas 150

condições especiais são suficientes para o deferimento do benefício postulado. No que tange ao rigor e às diversas formas de interpretação do documento que culminam no indeferimento do pedido, no mais das vezes sem o supedâneo jurídico pacificado, negativas essas que levam o Conselho de Recursos da Previdência Social, através de seus Enunciados, ao entendimento justificado de adequação às alterações legislativas, quase sempre numa visão mais avançada que a do próprio Poder Judiciário, criando o efeito vinculante administrativo recursal e, como via de consequência, o reconhecimento e a efetividade da proteção social, especialmente no que tange às informações necessárias constantes do formulário do PPP. 5. DAS VANTAGENS DA VIA ADMINISTRATIVA NO RECONHECIMENTO DA ATIVIDADE ESPECIAL. O indeferimento administrativo do pedido ocorre, muitas vezes, em face das infinitas controvérsias vertidas pela legislação previdenciária e que surgem em decorrência de cada caso concreto. Por tal razão, faz surgir o interesse de agir do segurado na via judicial e a pretensão de buscar a tutela jurisdicional do Estado. Os segurados têm interesse de agir e, portanto, há necessidade e utilidade do processo, quando sua pretensão encontra óbice na via administrativa, em face do indeferimento do pedido apresentado, ou,

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pela omissão no atendimento do pleito pela Autarquia Previdenciária.139

via administrativa, diz respeito ao local

Resguardado às partes o devido processo o

legal,

contraditório,

a

ampla

com

os

Uma vantagem inicial destacada na

defesa

e

meios

e

recursos a elas inerentes, as demandas previdenciárias podem ser ventiladas na

de apresentação do requerimento sem os rigorismos típicos do Poder Judiciário na fixação da competência, até porque o protocolo administrativo do recurso independe do local de domicílio do

via administrativa. O litígio, porém, inicia-

interessado.

se quando a decisão administrativa se

No tocante à gênese do conteúdo probatório, esgotada a instrução processual, não mais será permitida a juntada de outros documentos, tampouco em fase recursal. No âmbito administrativo,

apresenta desfavorável, bem como nos casos em que o benefício pleiteado for concedido fora dos parâmetros legais, causando prejuízo ao beneficiário da previdência social. Ao se esgotar o fluxo processual administrativo, com a decisão final do Conselho de Recursos da Previdência Social no sentido de manter a decisão do INSS, não restará ao segurado alternativa que não seja o ajuizamento da demanda judicial para a efetivação de seus direitos. Entretanto, a via judicial só se mostra como alternativa quando não há mais o que ser feito na via administrativa. O que não se aconselha, mormente as decisões administrativas em grau de recurso tenham se mostrado bem mais eficazes que a visão dos magistrados, é que se deixe de esgotar a via recursal no âmbito do Conselho de Recursos, ainda que se tenha que perquirir um longo caminho, por longos anos.

139 CASTRO, Carlos Alberto Pereira de, LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário – 20. ed. rev., atual. e ampl.– Rio de Janeiro: Forense, 2017. Pág. 627. Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

a inserção de provas é admitida até o momento do julgamento do recurso pelo Conselho de Recursos da Previdência Social. Por outro lado, o INSS realiza diligências com o objetivo de averiguar o direito pleiteado, emitindo Carta de Exigência se identificada a insuficiência de provas, assim como Ofício às empresas e Órgãos públicos, quando necessário, realizando ainda Pesquisa Externa nas hipóteses que considerar necessárias. Em relação aos prazos processuais, na seara judicial há prazo privilegiado para a autarquia previdenciária (para contestar o prazo é contado em dobro) e são contados em dias úteis, o que prolonga a apreciação pelo magistrado. Na esfera administrativa, os prazos são contínuos e idênticos para ambas as partes (INSS e beneficiários). Outro aspecto é a presença obrigatória de advogado na via recursal em processo judicial, e que só pode ser dispensada nos Juizados Especiais 151


Federais, exclusivamente no primeiro grau de jurisdição, o que não ocorre em nenhuma fase do processo administrativo, uma vez que o próprio interessado poderá redigir sua pretensão.

com a remessa dos autos para a Justiça Federal, postergando o andamento do feito e o reconhecimento do direito do beneficiário, sem atentar para a natureza alimentar do benefício.

No que tange à gratuidade, na via judicial somente é dispensado o pagamento de custas, taxas ou despesas no Juizado Especial Federal e no primeiro grau de jurisdição. Em grau de recurso, caso indeferida a assistência judiciaria gratuita, é obrigatoriamente exigido o preparo. Na via administrativa não há falar em cobrança de taxas, custas e demais pagamentos.

O pagamento dos valores retroativos ocorre de forma muito mais rápida que na esfera administrativa, haja vista que não

A tempestividade é outro aspecto que evidencia a diferença no trâmite administrativo, já que mesmo com a declaração de intempestividade, o recurso será instruído e analisado quanto ao mérito, em respeito ao princípio da informalidade e da busca pela verdade material que vigora no processo administrativo previdenciário. Na via judicial, a perda do prazo para interposição de recurso acarreta a preclusão do direito. A vinculação aos laudos periciais não se aplica ao âmbito administrativo desde que o julgador se convença do contrário, em atenção ao princípio do livre convencimento. Na esfera judicial, muitos magistrados motivam suas decisões exclusivamente baseados nas conclusões apuradas pela perícia judicial e, caso seja necessária realização de perícia judicial complexa no Juizado Especial Federal, mormente será alegada a incompetência, 152

se sujeitam ao rito dos precatórios. Pondere-se que na via administrativa não se exige do beneficiário o pleno domínio da legislação previdenciária, devendo

ser

concedido

o

melhor

benefício ao segurado, quando verificada a satisfação dos requisitos para mais de uma espécie de benefício, garantindo-lhe o direito de opção. 6. CONCLUSÃO A Aposentadoria Especial é um benefício de natureza protetiva e caráter programático, cujo objetivo é o amparo do segurado que, em razão das suas condições de trabalho, sofre um grande desgaste da sua saúde. O reconhecimento da atividade em condições especiais está condicionado a uma efetiva produção de provas, por todos os meios admitidos, inclusive no que tange ao momento do exercício da atividade, valendo para tanto a aplicação do princípio tempus regit actum. A insuficiência probatória na via administrativa implicará no indeferimento do pedido de benefício, surgindo para

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o interessado uma outra oportunidade

função revisora firmada no preceito de

de

órgão controlador das arbitrariedades

comprovar

o

direito

postulado,

através do Recurso Ordinário junto ao

cometidas

Conselho de Recursos da Previdência

confiança e seriedade nos trabalhos

Social. Inicialmente haverá a apreciação

que realiza em prol do bem comum dos

pela Junta de Recursos da Previdência

segurados e dependentes da previdência

que, mantendo a decisão da autarquia,

social, principalmente por sua autonomia

permitirá ao recorrente a provocação

em relação à autarquia federal.

da Câmara de Julgamento, por meio do Recurso Especial.

pelo

INSS,

transmitindo

O posicionamento jurisprudencial adotado

no

âmbito

administrativo

Mormente o tempo demandado

já demonstra de per si, a viabilidade

para a obtenção do benefício requerido,

operacional de uma nova produção de

as decisões do Conselho de Recursos

provas em grau de recurso, o que jamais

da Previdência Social vêm se mostrando

se admite na via judicial, obrigando a

mais vantajosas ao beneficiário do que demandar na via judicial, buscando a tutela jurisdicional do Estado.

autarquia previdenciária ao cumprimento

Por inúmeras razões, a via administrativa leva a um caminho mais benéfico, mais simplificado e menos burocrático e formalista que a via judicial, proporcionando a segurança jurídica necessária ao bem-estar social.

administrativa,

Os Enunciados do Conselho de Recurso da Previdência Social são constantemente adaptados à realidade posta, numa perspectiva de modernização e avanço na efetivação da aposentadoria especial, principalmente no que se refere à aplicação da norma e da metodologia utilizada no preenchimento do Perfil Profissiográfico Previdenciário. E, por não fazer parte da estrutura da Administração Indireta Estatal, a qual se encontra o INSS, o Conselho de Recursos da Previdência Social tem sua Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

de suas decisões de forma imediata. Não se corre o risco, na via de

se

encontrar

interpretações divergentes da norma, como

ocorrer

na

via

judicial,

haja

vista, muitas vezes, a intransigência no cumprimento das decisões. O presente trabalho teve como escopo central demonstrar que a aposentadoria especial, conquanto a complexidade das normas que a regem e a grande dificuldade probatória das condições especiais de trabalho com exposição a agentes nocivos, vem sendo efetivada na via recursal com uma visão vanguardista, bem mais benéfica aos beneficiários, graças ao empenho, ao conhecimento e à garra dos que conduzem um órgão de tamanha relevância e envergadura no âmbito da concretização dos direitos sociais. 153


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constituicao.htm>. Acesso em: 26 nov. 2021. BRASIL. Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons. htm>.Acesso em 26 nov. 2021. BRASIL. Decreto n. 3.048, de 06 de maio de 1999. Aprova o Regulamento da Previdência Social, e dá outras providências. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3048compilado.htm>. Acesso em: 26 nov. 2021. LADENTHIN. Adriane Bramante de Castro. Aposentadoria Especial no Brasil. Evolução. Regime Jurídico. Reforma. Curitiba: Alteridade. 2021. LADENTHIN, Adriane Bramante de Castro. Aposentadoria especial: teoria e prática. Curitiba: Juruá, 2020. CASTRO, Carlos Alberto Pereira de, LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário – 20. ed. rev., atual. e ampl.– Rio de Janeiro: Forense, 2017. PREVIDÊNCIA SOCIAL. CRPS. Enunciados. Disponível em: http:// www.previdencia.gov.br/a-previdencia/orgaos-colegiados/conselhode-recursos-da-previdencia-social-crps/. Acessado em: 26 nov. 2021. PREVIDÊNCIA SOCIAL. CRPS. Regimento Interno. Disponível em: http://www.previdencia.gov.br/a-previdencia/orgaos-colegiados/ conselho-de-recursos-da-previdencia-social-crps/. Acessado em: 26 nov. 2021. RIBEIRO, Maria Helena Carreira Alvim. Aposentadoria especial: regime geral da previdência social. 8. ed. Curitiba: Juruá, 2016.

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A REPERCUSSÃO PREVIDENCIÁRIA DO ACIDENTE DO TRABALHO NO BENEFÍCIO DE PENSÃO POR MORTE – Uma análise dos impactos sofridos pelos dependentes do segurado Priscilla Milena Simonato de Migueli 140

RESUMO Trata o presente artigo acerca das repercussões do acidente do trabalho no benefício de pensão por morte, sobretudo com relação a cálculo do benefício após a Reforma Constitucional Previdenciária. PALAVRAS-CHAVE: pensão por morte; cálculo do benefício; acidente do trabalho.

140 Doutoranda e Mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Especialista em Direito Previdenciário e Direito do Trabalho. Advogada e professora de diversos cursos de pós-graduação, inclusive da ESA – Escola Superior da Advocacia. Autora de obras jurídicas, entre elas “Pensão por Morte e dos dependentes do RGPS” pela Editora Juruá. Presidente do IAPE – Instituto dos Advogados Previdenciários. 156

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1. INTRODUÇÃO A

Reforma

Previdência,

se fosse aposentado por incapacidade Constitucional

trazida

da

com a Emenda

Constitucional 103/19, alterou as regras para a concessão e as regras de cálculo da renda mensal inicial dos benefícios previdenciários. O benefício da pensão por morte, que já tinha recebido duras regras pela Lei 13.135/15 e Lei 13.846/19, foi ainda mais penosamente impactado pela Emenda Constitucional 103/19. Antes da referida Emenda, a Lei 8.213/91 determinava que o cálculo do benefício de pensão por morte seria de 100% do valor da aposentadoria que o segurado recebia ou daquela a que teria direito se estivesse aposentado por invalidez na data de seu falecimento. A aposentadoria por invalidez era de 100% da média aritmética dos 80% dos maiores salários de contribuição de julho de 1994 até a data de início do benefício. Não era feito o cálculo diferenciado se a incapacidade/morte fosse em decorrência de acidente do trabalho. Com

a

Emenda

Constitucional

103/19, o cálculo da pensão por morte foi modificado. A partir da reforma constitucional, o benefício de pensão por morte será equivalente a uma cota familiar de 50% (cinquenta por cento) do valor da aposentadoria recebida pelo segurado ou servidor ou daquela a que teria direito

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permanente na data do óbito, acrescida de cotas de 10 (dez) pontos percentuais por dependente, até o máximo de 100% (cem por cento). A aposentadoria por incapacidade permanente, nova nomenclatura para a aposentadoria por invalidez, também sofreu alteração no seu cálculo. A partir da Emenda Constitucional 103/19, a aposentadoria por incapacidade permanente será de 60% acrescida de 2% para cada ano que exceder 20 anos de contribuição, se homem, e 15 anos de contribuição, se mulher. O percentual encontrado será aplicado sobre a média aritmética dos salários de contribuição de julho de 1994 até a data de início do benefício. Caso a aposentadoria por incapacidade por incapacidade permanente seja em decorrência de um acidente do trabalho, a aposentadoria será de 100% da média aritmética dos salários de contribuição de julho de 1994 até a data de início do benefício. Assim, pretende-se com o presente artigo discorrer sobre o acidente do trabalho e as suas repercussões no benefício de pensão por morte, principalmente no que tange ao tempo de duração do benefício aos cônjuges e companheiros e ao cálculo do benefício. Para tanto, em primeiro momento, far-se-á uma análise do conceito de acidente do trabalho.

157


A seguir, será analisada as alterações no benefício de pensão por morte e a importância do reconhecimento da morte como sendo acidentária. 2. REQUISITOS PARA CONFIGURAÇÃO DO ACIDENTE DO TRABALHO A lei previdenciária conceitua o acidente do trabalho como sendo aquele que ocorre pelo exercício do trabalho pelo segurado empregado ou trabalhador avulso a serviço de empresa, pelo empregado doméstico a serviço do empregador doméstico e do segurado especial que provoque lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho. Não estão cobertos pela proteção previdenciária inerente à ocorrência de acidente do trabalho, o contribuinte individual e o segurado facultativo . O acidente do trabalho é espécie que se admitem os gêneros acidente do trabalho típico, doença profissional e doença do trabalho. Cláudio Brandão acidente típico:

conceitua

o

“Trata-se de um evento único, subitâneo, imprevisto, bem configurado no espaço e no tempo e de conseqüências geralmente imediatas, não sendo essencial a violência, podendo ocorrer sem provocar alarde ou impacto, ocasionando, meses ou anos depois de sua ocorrência, danos 158

graves e até fatais, exigindo-se, apenas, o nexo de causalidade e a lesividade.” O art. 20, I da Lei 8.213/91 conceitua doença profissional como sendo a produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação elaborada pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social; Já a doença do trabalho é a adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, nos termos do art. 20, II da Lei 8.213/91. Estão excluídas da classificação de acidente do trabalho as doenças degenerativas; a inerente a grupo etário; a que não produza incapacidade laborativa; a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho. Há também a possibilidade de o trabalho atuar como concausa para o surgimento da doença do trabalho ou profissional. Com relação à concausa Sebastião Geraldo de Oliveira afirma que “as concausas podem ocorrer por fatores preexistentes, supervenientes ou concomitantes com aquela causa que desencadeou o acidente ou a doença ocupacional.” A lei previdenciária reconhece como sendo acidente do trabalho, o acidente

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ligado ao trabalho que, embora não tenha sido a causa única, haja contribuído diretamente para a morte do segurado, para redução ou perda da sua capacidade para o trabalho, ou produzido lesão que exija atenção médica para a sua recuperação.

de-obra, independentemente do meio de locomoção utilizado, inclusive veículo de propriedade do segurado;no percurso da residência para o local de trabalho ou deste para aquela, qualquer que seja o meio de locomoção, inclusive veículo de propriedade do segurado.

Também se equipara a acidente do trabalho aquele sofrido pelo segurado no local e no horário do trabalho, em conseqüência de ato de agressão, sabotagem ou terrorismo praticado por terceiro ou companheiro de trabalho; ofensa física intencional, inclusive de terceiro, por motivo de disputa relacionada ao trabalho; ato de imprudência, de negligência ou de imperícia de terceiro ou de companheiro de trabalho; ato de pessoa privada do uso da razão; desabamento, inundação, incêndio e outros casos fortuitos ou decorrentes de força maior.

Os períodos destinados a refeição ou descanso, ou por ocasião da satisfação de outras necessidades fisiológicas, no local do trabalho ou durante este, o empregado é considerado no exercício do trabalho.

Considera-se acidente do trabalho, além disso, a doença proveniente de contaminação acidental do empregado no exercício de sua atividade. Ainda que o acidente sofrido pelo segurado tenha ocorrido fora do local e horário de trabalho, será considerado acidente do trabalho caso tenha acontecido na execução de ordem ou na realização de serviço sob a autoridade da empresa; na prestação espontânea de qualquer serviço à empresa para lhe evitar prejuízo ou proporcionar proveito; em viagem a serviço da empresa, inclusive para estudo quando financiada por esta dentro de seus planos para melhor capacitação da mãoRevista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

A ocorrência do acidente do trabalho, caso resulte em uma incapacidade laborativa total e temporária, ensejará o percebimento do benefício denominado auxílio por incapacidade temporária, o qual recebeu nova nomenclatura com a Emenda Constitucional 103/19. Até então o benefício era denominado auxíliodoença nos termos do art. 59 e seguintes da Lei 8.213/91. Tanto para o caso de auxílio por incapacidade temporária, quanto para a aposentadoria por incapacidade permanente, o segurado deve cumprir a carência de 12 meses para a concessão do benefício, exceto em caso de acidente do trabalho ou auxílio-doença e aposentadoria por invalidez nos casos de acidente de qualquer natureza ou causa e de doença profissional ou do trabalho, bem como nos casos de segurado que, após filiar-se ao RGPS, for acometido de alguma das doenças e afecções especificadas em lista elaborada pelos Ministérios da Saúde e da Previdência Social, atualizada a cada 159


3 (três) anos, de acordo com os critérios de estigma, deformação, mutilação, deficiência ou outro fator que lhe confira especificidade e gravidade que mereçam tratamento particularizado. Caso o acidente resulte em uma incapacidade parcial e permanente para o trabalho, após a consolidação das lesões decorrentes do acidente resultem em sequelas que impliquem redução da capacidade para o trabalho que habitualmente exercia, será concedido ao segurado, com indenização, o benefício de auxílio-acidente conforme preceitua o art. 86 do Plano de Benefícios da Previdência Social. O acidente do trabalho poderá resultar em uma incapacidade total e permanente para o trabalho. Neste caso, o benefício cabível será a aposentadoria por incapacidade permanente, a qual também sofreu mudança da nomenclatura com a Emenda Constitucional 103/19, antes chamada de aposentadoria por invalidez. A aposentadoria por incapacidade permanente, concedida nas espécies previdenciária e acidentária, será concedida ao segurado que, estando ou não em gozo de auxílio-doença, for considerado incapaz e insusceptível de reabilitação para o exercício de atividade que lhe garanta a subsistência, e serlhe-á paga enquanto permanecer nesta condição. A Lei 8.213/91 não fazia distinção do cálculo do benefício de aposentadoria por invalidez, acidentária ou não. O 160

benefício consistia numa renda mensal correspondente a 100% (cem por cento) do salário-de-benefício, que até a Emenda Constitucional 103/19 era realizado com base na média aritmética simples dos maiores salários-de-contribuição correspondentes a oitenta por cento de todo o período contributivo. A aposentadoria por incapacidade permanente, caso não seja oriunda de um acidente do trabalho, nos termos da Emenda Constitucional 103/19, corresponderá a 60% da média aritmética simples dos salários de contribuição atualizados monetariamente, correspondentes a 100% (cem por cento) do período contributivo desde a competência julho de 1994 ou desde o início da contribuição, se posterior àquela competência, com acréscimo de 2 pontos percentuais para cada ano de contribuição que exceder o tempo de 20 anos de contribuição, se homem, e 15 anos de contribuição, se mulher. A Reforma Constitucional Previdenciária faz distinção do cálculo da aposentadoria por incapacidade permanente em caso de acidente do trabalho típico, de doença profissional e de doença do trabalho. Nestes casos, o valor do benefício corresponderá a 100% da média aritmética simples dos salários de contribuição atualizados monetariamente, correspondentes a 100% (cem por cento) do período contributivo desde a competência julho de 1994 ou desde o início da contribuição, se posterior

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àquela competência. Não será levado em consideração o tempo de contribuição do segurado.

3.1. DO PRAZO DE DURAÇÃO DO BENEFÍCIO DE PENSÃO POR MORTE PARA CÔNJUGE E DEPENDENTE

Por fim, poderá o acidente do trabalho resultar na morte do segurado, ocasião em que, caso tenha deixado dependentes, estes poderão receber o benefício de pensão por morte, o qual sofreu diversas alterações com a Emenda Constitucional, sobretudo com relação ao valor do benefício, conforme será demonstrado a seguir.

Tendo em vista que a ocorrência de acidente do trabalho é relevante apenas para o prazo de duração da pensão por morte ao cônjuge e companheiro, far-se-á este recorte no presente artigo, cujo foco será apenas a análise do prazo de duração do benefício para cônjuge e companheiro.

3. O BENEFÍCIO DE PENSÃO POR MORTE NO REGIME GERAL DE PREVIDÊNCIA SOCIAL A pensão por morte será devida ao conjunto dos dependentes do segurado que falecer, aposentado ou não, a contar da data do óbito, quando requerida em até 180 (cento e oitenta) dias após o óbito, para os filhos menores de 16 (dezesseis) anos, ou em até 90 (noventa) dias após o óbito, para os demais dependentes; o requerimento, quando requerida após o

prazo

anteriormente

mencionado;

da decisão judicial, no caso de morte presumida. Para a concessão do benefício em questão, não se exige carência mínima, porém, faz-se necessário que o segurado esteja com qualidade de segurado ou que esteja dentro do período denominado período de graça, que é aquele previsto no art. 15 da Lei 8.213/91. Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

Com a Lei 13.135/2015, incluiu-se o inc. V, no art. 77, § 2º da Lei 8.213/1991, determinando quais são os prazos para cessação do benefício de pensão por morte devido aos cônjuges ou companheiros. O benefício de pensão por morte será pago por somente 4 (quatro) meses ao dependente, caso o óbito ocorra sem que o segurado tenha vertido ao menos 18 (dezoito) contribuições mensais ou se o casamento ou a união estável tiverem sido iniciados em menos de 2 (dois) anos antes do óbito do segurado. Os requisitos são cumulativos, ou seja, caso o cônjuge ou companheiro falecido tenha vertido mais de 18 (dezoito) meses de contribuição, mas não tenha no mínimo 2 (dois) anos de união estável ou casamento, ou ainda, caso tenha 2 (dois) anos de união estável ou casamento, mas não tenha mais de 18 (dezoito) meses de contribuição, o benefício somente será pago ao dependente, cônjuge ou companheiro, por 4 (quatro) meses. A regra somente será afastada, se o óbito do segurado decorrer de 161


acidente de qualquer natureza ou de

anos para os cônjuges ou companheiros

doença profissional ou do trabalho, ou

com menos de 21 (vinte e um) anos de

seja, independerá do recolhimento de

idade. Durante 6 (seis) anos, se entre 41

18 (dezoito) contribuições mensais ou

(quarenta e um) e 43 (quarenta e três)

da comprovação de 2 (dois) anos de

anos de idade.

casamento ou de união estável, para que o dependente faça jus ao benefício de pensão por morte por mais de 4 (quatro) meses. Caso o segurado tenha cumprido ambos os requisitos de 18 (dezoito) contribuições e 2 (dois) anos de união estável ou casamento, ou ainda, que o óbito seja em decorrência de acidente de qualquer natureza ou doença profissional ou do trabalho, o benefício de pensão por morte será pago ao dependente pelos seguintes prazos: Por 3 (três) anos, aos cônjuges ou companheiros com menos de 21 (vinte e um) anos de idade. Durante 6 (seis) anos, se a idade dos cônjuges ou companheiros com menos de 21 (vinte e um) anos de idade. Durante 6 (seis) anos, se a idade do cônjuge ou companheiros for entre 21 (vinte e um) e 26 (vinte e seis) anos. Por 10 (dez) anos aos cônjuges ou companheiros com menos de 21 (vinte e um) anos de idade. Durante 6 (seis) anos, se entre 27 (vinte e sete) e 29 (vinte e nove) anos de idade. Durante 15 (quinze) anos para os cônjuges ou companheiros com menos de 21 (vinte e um) anos de idade. Durante 6 (seis) anos, se entre 30 (trinta) e 40 (quarenta) anos de idade. Por 20 (vinte)

162

O benefício somente será pago de forma vitalícia aos cônjuges ou companheiros com menos de 21 (vinte e um) anos de idade. Durante 6 (seis) anos, se com 44 (quarenta e quatro) anos ou mais de idade na data do óbito do segurado. Para o cônjuge ou companheiro inválido ou com deficiência, o benefício perdurará

enquanto

permanecer

a

invalidez ou a deficiência. Caso cessada a invalidez ou afastada a deficiência, o benefício será cessado, desde que respeite o período mínimo de recebimento da pensão por morte para os cônjuges e companheiros. É importante ressaltar que, passados pelo menos três anos de vigência da Lei 13.135/2015, e desde que verificada o incremento mínimo de um ano inteiro na média nacional única, para ambos os sexos, correspondente à expectativa de sobrevida da população brasileira ao nascer, poderão ser fixadas, em números inteiros, novas idades para os fins de duração do benefício de pensão por morte, em ato do Ministro de Estado da Previdência Social, limitado o acréscimo na comparação com as idades anteriores ao referido incremento. Nesse sentido, a Portaria ME n.º 424, 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


de 29 de dezembro de 2020 do Ministério

Emenda Constitucional 103/19 estipulou

da Economia aumentou a idade para o

cálculo diverso da aposentadoria, que

recebimento da pensão por morte vitalícia,

até então era chamada de invalidez, e

bem como alterou as faixas etárias para

passou a ser chamada de incapacidade

recebimento do benefício previdenciário.

permanente, dependendo do fato gerador da incapacidade.

3.2. DO VALOR DO BENEFÍCIO DE PENSÃO POR MORTE A Emenda Constitucional 103/19 trouxe substanciais modificações no benefício de pensão por morte, principalmente no cálculo do valor do benefício e instituiu, ou melhor, reviveu a cota familiar prevista na Lei Orgânica da Previdência Social, de 1960. O benefício será equivalente a uma cota familiar de 50% do valor da aposentadoria recebida pelo segurado ou daquela a que teria direito se fosse aposentado por incapacidade permanente na data do óbito.

Conforme

previsto

no

art.

26

da Emenda Constitucional 103/19, o salário de benefício será calculado com base na média aritmética simples dos salários

de

contribuição,

monetariamente,

atualizados

correspondente

a

100% do período contributivo, desde a competência de julho de 1994 ou desde o início da contribuição, se posterior àquela competência. O valor do benefício de pensão por morte que não tenha como fato gerador um acidente do trabalho, em sentido lato, será calculado nos mesmos moldes

A cota familiar será acrescida de cotas de 10 pontos percentuais por dependente, até o máximo de 100%, não podendo o valor ser inferior ao salário-mínimo.

da

Caso exista dependentes inválidos ou com deficiência intelectual, mental ou grave, a cota será sempre de 100% do valor da aposentadoria recebida em vida pelo segurado ou do valor que teria direito caso fosse aposentado por incapacidade permanente na data do óbito.

ano de contribuição que exceder o tempo

Conforme explanado acima, a Lei 8.213/91 não fazia distinção no cálculo da aposentadoria por invalidez previdenciária e acidentária, sendo ambas de 100% do salário de benefício do segurado. A Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

aposentadoria

por

incapacidade

permanente, ou seja, corresponderá a 60% da média aritmética explicada acima, com acréscimo de 2 pontos percentuais para cada de 20 anos de contribuição, se homem, e 15 anos de contribuição, se mulher. Sendo o óbito decorrente de um acidente do trabalho, doença do trabalho ou doença profissional, o cálculo do benefício será de 100% do salário de benefício, ou seja, o reconhecimento da morte como sendo acidentária, aumentará consideravelmente o cálculo do benefício de pensão por morte. 163


4. CONCLUSÃO A Constituição Federal de 1998 protege os riscos sociais, entre eles a incapacidade e a morte. Em nenhum momento, a Constituição Federal faz distinção entre risco incapacidade ou morte em decorrência de um acidente de qualquer natureza, doença ou acidente do trabalho. Contudo, a Lei 13.135/15 trouxe requisitos diferenciados no prazo de duração do benefício de pensão por morte devidos aos cônjuges e companheiros, e levou-se em consideração a causa da morte, se por doença ou por acidente do trabalho ou acidente de qualquer natureza. Posteriormente, a Emenda Constitucional 103/19 tratou o risco incapacidade decorrente de acidente do trabalho ou de outras causas de forma diferenciada, e estabeleceu, cálculo diverso para a aposentadoria por incapacidade permanente. Se for em decorrência de doença ou acidente de qualquer natureza, o benefício será de 60% acrescidos de 2% para cada ano que exceder 20 anos de tempo de contribuição, se homem, e 15 anos de tempo de contribuição, se mulher. Se for em decorrência de acidente do trabalho, a aposentadoria será de 100%.

qual a causa da morte, pois sendo ela por acidente do trabalho, sem sentido lato, haverá repercussões financeiras no benefício a ser concedido, bem como no prazo de duração, se o benefício for concedido aos cônjuges e dependentes. Sem dúvida alguma, haverá o aumento da judicialização das demandas que envolvem o reconhecimento da morte como sendo acidentária, uma vez que impactará de forma significativa no cálculo e duração do benefício de pensão por morte. Essa judicialização decorrerá da falta de análise da causa morte nos processos administrativos de requerimento de pensão por morte e da precária perícia médica que acompanhará o requerimento (que já é contumaz na análise dos benefícios por incapacidade), notadamente nos casos em que essa envolver uma análise complexa, como é no caso em que a causa da morte não é em decorrência de um acidente típico, que é aquele que acontece de forma repentina, mas sim em razão de uma doença profissional ou doença do trabalho.

Caso o segurado não esteja aposentado no momento do óbito, a base de cálculo da pensão por morte será àquela que ele teria direito se fosse requerer a aposentadoria por incapacidade permanente. Assim, faz-se relevante comprovar 164

38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRANDÃO, Cláudio. Acidente do Trabalho e Responsabilidade Civil do Empregador. São Paulo: LTr, 2006. p. 137-138 MIGUELI, Priscilla Milena Simonato. Pensão por morte e os dependentes do Regime Geral de Previdência Social. 2ª ed. Curitiba: Juruá, 2020 OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Indenizações por acidente de Trabalho ou Doença Ocupacional. 3. ed. São Paulo: LTr, 2007

Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

165


13

PLANEJAMENTO PREVIDENCIÁRIO PÓS REFORMA PREVIDENCIÁRIA E A ADVOCACIA “FULL SERVICE” Maura Feliciano De Araújo141

RESUMO O presente artigo tem como ponto de partida o Planejamento Previdenciário, serviço essencial à advocacia moderna, cujo maior desafio é obter o melhor benefício previdenciário ao segurado(a), diante de uma evolução legislativa previdenciária que oscila entre o retrocesso social e as mais diversas interpretações oriundas de uma Emenda Constitucional e uma sequência de textos legais que inverteram a hierarquia das leis. PALAVRAS-CHAVE Planejamento Previdenciário; Patrimônio Previdenciário; Carência, Tempo de Contribuição; Qualidade de Segurado; Reforma Previdenciária e Advocacia Full Service.

141

Advogada, Professora e Palestrante. Pós Graduada em Direito Previdenciário pela EPD. MBA em Direito do

Trabalho e Direito Previdenciário pela Faculdade Legale. Cursando MBA em Planejamento Previdenciário pelo ICDS

166

38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


1. INTRODUÇÃO Decreto regulamentando Emenda Constitucional, Ofício Circular disciplinando como servidor analisará direitos previdenciários à luz das regras de transição e transitória; Portaria determinando como a carência será computada após o dia 13.11.2019; Ofício sem número e sem publicidade; Portaria denegrindo a imagem da advocacia previdenciária. Assim, necessário uma análise criteriosa de cada requisito que referente ao Direito Material previsto em lei, e que de fato levam à proteção social assegurada pela Constituição Federal. A assessoria previdenciária desenvolvida através do Planejamento Previdenciário começou a ganhar espaço em nossos escritórios com a edição da Lei 9.032/95, que retirou do ordenamento jurídico a possibilidade de reconhecimento especial pela presunção das categorias profissionais descritas nos Decretos 53.861/64 e 83.080/79; depois, a partir da Emenda Constitucional nº 20/98, que extinguiu a aposentadoria por tempo de contribuição proporcional, determinando que para seu recebimento haveria de se cumprir um pedágio de 40% acumulado com idade mínima. Cita-se apenas dois textos legais, que associado a tantas mini reformas ora promovidas por emendas constitucionais, ora promovidas por leis ordinárias, medidas provisórias, portarias, ofícios e outros, exige do profissional Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

o conhecimento técnico e estudo do Patrimônio Previdenciário, e isso porque o que o cliente mais almeja é aposentarse da melhor forma no que diz respeito a tempo de contribuição e valores de sua renda mensal inicial. Àqueles que não atingiram o direito à aposentadoria até o dia 13.11.2019 (data da publicação da Emenda Constitucional nº 103/2019) somente acessarão referido benefício programado se cumpridos todos os requisitos previstos entre os artigos 15 a 21 da citada emenda, que reproduzem as regras de transição. E para muitos, ainda que filiados ao Regime Geral de Previdência Social até o dia 13/11/2019, o direito à sonhada aposentadoria se concretizará, se tudo correr bem, em 2033, 2040, 2049, ou seja, num futuro muito distante. E nesse ínterim o que a advocacia faz? Desenvolve e oferece ao segurado(a) a chamada “advocacia full service”, termo em inglês que pode ser traduzido para “advocacia de serviço completo”, onde é possível oferecer assessoria para regularização do CNIS, análise de formulários técnicos para caracterização de atividade especial, busca de documentos profissionais em razão de carteira de trabalho extraviada ou em mal estado de conservação, análise de processos requeridos, por vezes indeferidos e em outras vezes concedidos com inobservância de preceitos legais e análise profunda de documentos juntados. 167


Esse artigo vem com o intuito de conduzir o leitor a uma leitura de convencimento de que sim, a Advocacia Previdenciária é essencial à consagração do disposto no art. 1º, inc. III da Constituição Federal, qual seja, A Dignidade da Pessoa Humana, assim como à proteção social que tão bem vem sendo anunciada e propagada. Nos capítulos deste o artigo abordaremos os três grandes conceitos estudados no Planejamento Previdenciário (carência, tempo de contribuição e manutenção da qualidade de segurado) a partir da introdução do parágrafo 14 ao artigo 195 da Constituição Federal; apresenta ainda uma rápida e pontual abordagem sobre o primeiro documento a ser analisado estudo do patrimônio previdenciário do segurado(a), o CNIS e alguns indicadores importantes referentes à carência e tempo de contribuição; e por fim, como a advocacia completa garantirá, a curto, médio ou longo prazo, não apenas a aposentadoria, como também qualquer um dos outros benefícios devidos ao conjunto de beneficiários do regime geral de previdência social, inclusive, o dependente.

do

melhor

benefício,

“Planejamento

Previdenciário é o estudo do patrimônio previdenciário

do

cliente,

segurado

ou segurada da previdência social”142, compreendendo-se nessa expressão:

a reunião de todos os requisitos, ou condições, que um Requerente a

benefício

previdenciária,

ou

prestação

deve

preencher

para que então, seu direito lhe seja assegurado e confirmado pela aplicação da legislação pertinente.143 Quando da leitura do art. 1º da Lei nº 8.213/91, temos que o sistema é protetivo e dirigido a segurados e dependentes, mediante contribuições e assim acessarão as prestações previdenciárias aptas a garantir a verdadeira proteção social:

“A Previdência

Social,

mediante

contribuição, tem por fim assegurar aos

seus

beneficiários

meios

indispensáveis de manutenção, por motivo de incapacidade, desemprego involuntário, idade avançada, tempo

Dessa forma, boa leitura!

de serviço, encargos familiares e prisão ou morte daqueles de quem dependiam economicamente.”

2. CONCEITO DE PLANEJAMENTO PREVIDENCIÁRIO Conceito criado pela autora deste artigo e citado em sua obra Manual do Planejamento Previdenciário e a concessão 168

142 ARAÚJO, Maura Feliciano de, Manual do Planejamento Previdenciário : e a concessão do melhor benefício / Maura Feliciano de Araújo. – 1. Ed. – São Paulo : Lujur Editora, 2021 143

Obra citada, páginas 25 e 26 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


Assim, o Planejamento Previdenciário tem

como

objetivos:

1.

identificar

correspondente

ao

número

mínimo de contribuições mensais

quem é segurado(a) ou dependente, os

indispensáveis

verdadeiros beneficiários dessa proteção

beneficiário faça jus ao benefício,

social; 2. apurar se há contribuições e se

consideradas as competências cujo

essas estão regulares, e na sequência,

salário de contribuição seja igual

3. Apurar se os requisitos materiais de

ou superior ao seu limite mínimo

acesso a cada prestação previdenciária

mensal. (negrito da autora)

estão preenchidos.

A partir da atualização do decreto

Com a Emenda Constitucional nº

regulamentador,

para

que

que

retroage

o

seus

103/2019, a contribuição previdenciária

efeitos ao dia 13.11.2019, o Planejador

passa

na

Previdenciário deve ter total atenção no

caracterização da carência, tempo de

cômputo dos meses para caracterização

contribuição

aquisição/manutenção

da carência, que desde este marco

da qualidade de segurado e dessa

temporal a contribuição previdenciária

forma vamos na sequência, entender

que tenha ficado abaixo do limite mínimo

melhor a pertinência do Planejamento

mensal (interpretado pela Autarquia como

Previdenciário na advocacia de análise de

sendo o salário mínimo nacional) não será

direito.

computada para tal finalidade.

a

ter

grande e

relevância

Referida interpretação tem como 2.1 CARÊNCIA PREVIDENCIÁRIA

ponto de partida o disposto no art. 195,

Após a Reforma Constitucional Previdenciária,

até

o

momento

da

par. 4º da Constituição Federal de 1988, atualizado EC 103/2019:

confecção deste artigo, a Lei de Benefícios da Previdência Social (Lei nº 8.213/91)

O

não passou por qualquer reforma em seu

reconhecida

texto legal, o que ocorreu apenas e tão

contribuição ao Regime Geral de

somente no Decreto Regulamentador nº

Previdência Social a competência

3.048/99 atualizado desde o dia 1º de

cuja contribuição seja igual ou

julho de 2020, pela edição do Decreto

superior

10.410/2020.

mensal exigida para sua categoria,

No que tange à carência, assim dispõe o art. 26:

segurado

como

à

assegurado

somente tempo

contribuição o

terá de

mínima

agrupamento

de

contribuições.

Período de carência é o tempo

Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

169


O

texto

constitucional

prevê

manteve sua média de salarial por

que o reconhecimento como tempo de

apenas 7 dias de trabalho; dessa

contribuição será para a competência

forma, para a competência 09/2021

cuja contribuição for igual ou superior

recebeu apenas R$ 256,66 e em

à contribuição mínima, e em nenhum

outubro/2021 foi dispensado em 10

momento a leitura nos remete à carência

de outubro e sua remuneração paga

também! (negrito da Autora)

no importe de R$ 354,83.

Dessa forma desde a publicação da

Pois bem, muito embora Joaquim

EC 103/2019, no estudo do patrimônio

tenha trabalhado todos os meses

do patrimônio previdenciário de segurado

entre 10/2020 a outubro/2021,

empregado, doméstico e avulso a atenção

perfazendo doze de trabalho, com

ao valor do salário de contribuição

as respectivas remunerações pagas

mensal, nos casos admissão ou demissão

e tributadas, o fato é que para fins

no decorrer do mês, ou ainda, se há faltas

de carência previdenciária seu total

injustificadas no período laboral, em que o

é zero!

valor do SC tenha ficado abaixo do salário

Isso importa dizer que, se for

mínimo nacional, essa contribuição não será computada para efeito de carência. Isso significa dizer, num rápido e simples exemplo:

acometido de uma incapacidade laboral que lhe exija carência, não será protegido com a percepção do auxílio por incapacidade temporal, e caso venha a óbito, dependendo do seu

Joaquim foi contratado em 25 de outubro de 2020 para trabalhar como auxiliar de serviços gerais,

histórico laboral e de contribuições, sequer seus dependentes receberão pensão por morte.

com remuneração de R$ 1.045,00;

170

recebeu pelos dias trabalhados, a

No subcapítulo seguinte, o mesmo

importância de R$ 235,96 e sobre

cuidado há de se ter quanto ao tempo de

esta incidiu alíquota previdenciária

contribuição, com significativo impacto

de 7,5%.

no momento da contagem pós reforma

Nos

meses

seguintes,

não

conseguiu

de

trabalho,

atingir por

Joaquim 30

previdenciária.

dias

ausências

2.2. DA CONTAGEM DO TEMPO DE

injustificadas e durante os meses de

CONTRIBUIÇÃO

novembro/2020 a setembro/2021,

PREVIDENCIÁRIA

PÓS

REFORMA

38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


Como citado anteriormente, pela

contado de data a data, desde o

leitura do parágrafo 14 do art. 195 da

início da atividade até a data do

Carta Magna, a contagem do tempo

desligamento.

de contribuição do segurado(a) a partir

Art. 30. Para os períodos posteriores à

de

13.11.2019

passa

a

considerar

apenas e tão somente o mês em que a remuneração for “igual ou superior à contribuição mínima mensal exigida para sua categoria, assegurado o agrupamento de contribuições.”

EC nº 103, de 2019, as competências em que o salário de contribuição mensal tenha sido igual ou superior ao limite mínimo serão computadas integralmente

como

tempo

de

contribuição,

independentemente

Convém remeter os leitores à

do número de dias trabalhados, ou

leitura da Portaria 450 do Ministério

seja, os períodos serão computados

da

de

por mês, independente do início ou

3 de abril de 2020, publicada em 6 de

fim da atividade ocorrido dentro da

abril do mesmo ano, que dispôs sobre

competência.

Economia/INSS/Presidência144,

as alterações constantes na Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019, em especial aos artigos 28 a 30 que disciplinam de forma simples como o tempo de contribuição deve ser tratado antes e após a Reforma Previdenciária. Assim temos:

Na redação do artigo 28 desta Portaria, cujo texto se repetiu no art. 19E do Decreto 3.048/99 atualizado pelo Decreto 10.410/2020, a competência cujo recolhimento tenha ficado inferior ao mínimo não será computado para nenhum efeito (carência e tempo de contribuição);

Art.

28.

A

recolhimento

competência seja

inferior

cujo

no entanto as competências que ficaram

à

ou ficarão superiores ao limite mínimo

contribuição mínima mensal não será

mensal,

computada para nenhum fim, ou seja,

integralmente, independente dos dias

para o cálculo do valor do benefício,

trabalhados!!!!

para a carência, para a manutenção da qualidade de segurado, além do tempo de contribuição.

esse

mês

será

computado

Retomando o exemplo hipotético do S.r Joaquim com os parâmetros lá descritos: não há carência e tão pouco

Art. 29. O tempo de contribuição,

nenhum dia a ser computado como

até 13 de novembro de 2019, será

tempo de contribuição, e ainda, não será

144 Acesso https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/ portaria-n-450-de-3-de-abril-de-2020-251287830 em 07/11/2021 Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

computado para adquirir ou manter a qualidade de segurado. 171


Simples assim: trabalhou, recebeu

que poderá ser de 12 meses145, conforme

pelos dias efetivamente trabalhados,

o caso, e que ainda poderá ser prorrogado

teve tributação previdenciária MAS não

para mais 24 ou 36 meses, de acordo

terá no seu patrimônio previdenciário

com o disposto nos parágrafos 1º e 2º do

o cômputo da carência, do tempo de

mesmo artigo146.

contribuição e pode ser que sequer terá a validação como segurado do RGPS. Logo, sem acesso a benefício por incapacidade

Ocorre

que

na

forma

como

regulamento o art. 19E do Decreto nº 3.048/99, no mês em que a remuneração

temporária, aposentadoria por invalidez

não for computada, a qualidade de

permanente e sequer seus dependentes

segurado não é atingida tão pouco

poderão usufruir de auxílio reclusão ou

mantida, e voltando ao exemplo do S.r

pensão por morte.

Joaquim, em 12 meses de trabalho não adquiriu qualidade de segurado!

2.3. DA AQUISIÇÃO E MANUTENÇÃO DA QUALIDADE DE SEGURADO PÓS REFORMA O segurado adquire essa condição a partir do momento que se filia ao regime geral de previdência social, seja pelo exercício de atividade remunerada (para segurados obrigatórios), ou pelo pagamento da primeira contribuição feita dentro do prazo legal, em se tratando de segurado facultativo, nos termos do art. 20, par. 1º da Lei de Benefícios da Previdência Social.

E para situações como essa é que o Planejamento Previdenciário trará a orientação ao caso concreto, permitindo pelas formas de ajustes a seguir apontadas, 145 Art. 15. Mantém a qualidade de segurado, independentemente de contribuições: I - sem limite de prazo, quem está em gozo de benefício, exceto do auxílio-acidente; II - até 12 (doze) meses após a cessação das contribuições, o segurado que deixar de exercer atividade remunerada abrangida pela Previdência Social ou estiver suspenso ou licenciado sem remuneração; III - até 12 (doze) meses após cessar a segregação, o segurado acometido de doença de segregação compulsória; IV - até 12 (doze) meses após o livramento, o segurado retido ou recluso; V - até 3 (três) meses após o licenciamento, o segurado incorporado às Forças Armadas para prestar serviço militar; VI - até 6 (seis) meses após a cessação das contribuições, o segurado facultativo.

O sistema protetivo por sua vez, na Lei nº 8.213/91 prevê nos incisos do artigo 15, as hipóteses em que mesmo sem contrato de trabalho, sem prestação previdenciária e sem contribuições, terá cobertura previdenciária por um período

146 § 1º O prazo do inciso II será prorrogado para até 24 (vinte e quatro) meses se o segurado já tiver pago mais de 120 (cento e vinte) contribuições mensais sem interrupção que acarrete a perda da qualidade de segurado. § 2º Os prazos do inciso II ou do § 1º serão acrescidos de 12 (doze) meses para o segurado desempregado, desde que comprovada essa situação pelo registro no órgão próprio do Ministério do Trabalho e da Previdência Social. § 3º Durante os prazos deste artigo, o segurado conserva todos os seus direitos perante a Previdência Social.

172

38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


como recuperar carência, tempo de contribuição e qualidade de segurado. 2.4. OS AJUSTES DAS CONTRIBUIÇÕES PARA FINS PREVIDENCIÁRIAS Já sabemos pela leitura do 19E do Decreto 3.048/99 que as contribuições abaixo do limite mínimo mensal não serão consideradas para todos os efeitos legais, e então, para o caso hipotético do S.r Joaquim as contribuições previdenciárias serão

incorporadas

ao

patrimônio

previdenciário do Segurado (carência, tempo de contribuição, aquisição e manutenção da qualidade de segurado,

normativo apenas para complemento148, e nem todos os servidores procedem ao agrupamento, que está previsto tanto na Constituição Federal como no Regulamento da Previdência Social. O fato é, sem a atuação de um Planejador ou Estrategista Previdenciário, o beneficiário poderá ter seu benefício negado, ou uma concessão tardia, concluindo pela importância do Planejamento Previdenciário e o olhar cuidadoso do profissional, pois só assim o objetivo será apurado: entrega da prestação previdenciária devida, seja ao segurado ou ao seu conjunto de dependentes.

bem como para cálculo do seu salário de benefício (e emissão de CTC quando for o

3. CADASTRO NACIONAL DE

caso)), o regulamento permite “ajustes” a

INFORMAÇÕES SOCIAIS – CNIS

essas competências abaixo do mínimo, na forma de complementação, agrupamento ou uso de excedente147. Às possibilidades de ajustes paira algumas polêmicas, sendo certo que até o momento temos apenas um apenas ato 147 § 1º Para fins do disposto no caput, ao segurado que, no somatório de remunerações auferidas no período de um mês, receber remuneração inferior ao limite mínimo mensal do salário de contribuição será assegurado: (Incluído pelo Decreto nº 10.410, de 2020) I - complementar a contribuição das competências, de forma a alcançar o limite mínimo do salário de contribuição exigido; II - utilizar o excedente do salário de contribuição superior ao limite mínimo de uma competência para completar o salário de contribuição de outra competência até atingir o limite mínimo; ou III - agrupar os salários de contribuição inferiores ao limite mínimo de diferentes competências para aproveitamento em uma ou mais competências até que estas atinjam o limite mínimo.

Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

No estudo do patrimônio previdenciário, toda a documentação do segurado importa diante do caso concreto, seja para benefício programado ou não, seja para entrega imediata, a curto, médio ou longo prazo. E o primeiro documento a ser analisado pelo especialista é o CNIS – Cadastro Nacional de Informações Sociais, sendo sua importância medida nos termos da Lei de Benefícios da Previdência Social, art. 29 A: 148 A complementação deverá ser realizada através do Documento de Arrecadação de Receitas Federais – DARF, com a utilização do número do CPF do segurado/ contribuinte, no código de receita 1872 – Complemento de Contribuição Previdenciária, conforme Ato Declaratório Executivo CODAC/RFB nº 05, de 06/02/2020. 173


O INSS utilizará as informações

desde que devidamente autorizado por

constantes no Cadastro Nacional de

um termo escrito149.

Informações Sociais – CNIS sobre os vínculos e as remunerações dos segurados, para fins de cálculo do salário-de-benefício,

comprovação

de filiação ao Regime Geral de Previdência

Social,

tempo

de

contribuição e relação de emprego. No

mesmo

sentido,

Decreto

3.048/99, art. 19:

Para o melhor aproveitamento desse cadastro, é por demais importante ao advogado(a) saber ler e interpretar o CNIS com o “mesmo olhar” do servidor previdenciário,

atentando-se

para

o tipo de filiação no RGPS, relações previdenciárias, vínculos, remuneração e tempo de contribuição. Destaca-se ainda a importância

“Os dados constantes do Cadastro

dos indicadores do CNIS, que nada

Nacional de Informações Sociais

mais são do que indicativos do INSS ao

-

vínculos,

trabalhador, e que refletem na carência,

remunerações e contribuições valem

no tempo de contribuição e na aquisição/

como prova de filiação à previdência

manutenção da qualidade de segurado e

social, tempo de contribuição e

por conseguinte, na entrega da prestação

salários-de-contribuição.”

previdenciária.

CNIS

relativos

a

E também o art. 58 da Instrução

A seguir, algumas considerações.

Normativa 77/2015: A partir de 31 de dezembro de 2008,

3.1. INDICADORES QUE IMPACTAM NA

data da publicação do Decreto

CARÊNCIA E CONTAGEM DO TEMPO

nº 6.722, de 30 de dezembro de

DE CONTRIBUIÇÃO

2008, os dados constantes do CNIS relativos a atividade, vínculos, remunerações

e

contribuições

valem, a qualquer tempo, como prova de filiação à Previdência Social, tempo de contribuição e salários de contribuição. A obtenção desse cadastro se dá pelo acesso ao MEUINSS do segurado(a) feito pelo próprio ou então pelo patrono/ procurador

174

devidamente

constituído,

Sem

pretensão

de

esgotar

o

assunto, e considerando a importância da abordagem quanto à carência e tempo de contribuição, destaco neste artigo alguns indicadores que revelam com antecedência ajustes que o Especialista em Planejamento Previdenciário deve ter ao interpretar o CNIS. 149 A partir Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018) o profissional deve ter cuidado extremo ao manusear a senha MEUINSS do Segurado, cuja orientação é no sentido de, utilize-a apenas quando da autorização expressa do cliente. 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


PREC-MENOR-MIN – Recolhimento realizado é inferior ao valor mínimo Este é mais um daqueles indicadores comuns, revelando no caso, que o recolhimento da competência previdenciária foi inferior ao valor mínimo, necessitando do ajuste do complemento para que referida competência seja válida para tempo de contribuição/ carência no caso do segurado contribuinte individual/segurado facultativo.

Nas duas telas acima, situações comuns à execução do Planejamento Previdenciário: anterior ao dia 13.11.2019 o indicador a um vínculo empregatício “SEM DATA PREC-MENOR-MIN tinha impacto FIM”, originando assim uma concomitância apenas e tão somente aos contribuintes passível de regularização. individuais e segurados facultativos, e Há ainda os recolhimentos referente refletiam duas situações: 1. Alteração aos Planos Simplificados que revelam de salário mínimo não observada pelo a opção pela aposentadoria apenas e segurado; 2. Remuneração abaixo do tão somente por idade (IREC LC 123), salário mínimo não complementada pelo cuja recuperação pela aposentadoria contribuinte individual e o facultativo. por tempo de contribuição poderá vir na O que é posterior a 13.11.2019 poderá forma de recolhimento complementar se estender também ao segurado entre outras situações, oriundas de uma empregado, doméstico e avulso, como já boa análise do planejamento. relatado anteriormente. O fato é, um CNIS com Não há um número definido quanto indicadores apontando ausência de aos indicadores no CNIS, e podemos ainda vínculos, vínculos em aberto, vínculo citar aqueles intitulados “PREC FACULT com indicativo de exposição a agente CONC”, pode significar que por má nocivos (IEAN) já anunciam a quanto a orientação o segurado inscrito em regime advocacia especializada pode assessorar de previdência social está recolhendo positivamente na regularização prévia concomitante como facultativo, o que é do documento do segurado, e é a partir impedido por lei, ou poderá estar atrelado dessas possiblidades de acertos no Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

175


patrimônio previdenciário do trabalhador/ contribuinte que passamos a expor sobre a o serviço completo na advocacia previdenciária, ou, advocacia full service. 4. ADVOCACIA FULL SERVICE A expressão estrangeira pode ser traduzida para nosso idioma como sendo uma advocacia completa, de serviço rápido e no contexto previdenciário traz exatamente a possibilidade de, no atendimento ao cliente apurar as hipóteses de correção de informações no CNIS, ajuste nas contribuições previdenciárias, análise de processos indeferidos ou concedidos com inobservância legal, e o resultado proporcionará ao segurado a concessão de uma aposentadoria, a antecipação do direito, o enquadramento da melhor regra de transição. Ainda permite que se analise formulários técnicos para caracterização de atividade especial, outra hipótese de se antecipar a concessão de uma aposentadoria, e por vezes até mesmo o enquadramento e reconhecimento da aposentadoria especial.

trabalho do profissional que, ainda que conclua pela aposentadoria em 2040, garantirá ao segurado que se mantenha filiado ao regime geral de previdência social, com as competência recolhidas na data certa e no valor mínimo exigido em lei, ou até mesmo poderá assegurar ao trabalhador que seus dados constantes no CNIS estejam atualizados no sistema em qualquer momento. A advocacia “full service” é vista como aquela advocacia em que o cliente se mantém ao seu escritório, pois sabe que com seu olhar atento os requisitos materiais estarão sempre corretos. Ah, e sabe aquele exemplo do S.r Joaquim, é nessa advocacia full service que ele fica ciente de como corrigir as competências abaixo do mínimo, de como proceder à atualização do CNIS, e quando e como poderá requerer um benefício devido à situação e análise.

É pelo serviço completo que ao protocolar um benefício de aposentadoria o servidor já toma conhecimento dos vínculos no CNIS que estão em aberto, os documentos que corroboram com referido pedido. Ainda que não seja para instruir requerimento de aposentadoria, esse serviço “full” poderá agregar valor ao 176

38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LIVROS ARAÚJO, Maura Feliciano. Manual do Planejamento Previdenciário – 1. Ed. / Maura Feliciano de Araújo. – São Paulo: Editora Lujur, 2021;

ROBERT, Malcon. Qualidade de Segurado, período de graça e carência – volume 1 / Malcon Robert. – Teresina: Dinâmica Jurídica, 2019.

LEGISLAÇÃO BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. BRASIL. Emenda Constitucional nº 103/2019. Brasília. DF: Senado Federal, 2019. BRASIL. Planos de Benefícios da Previdência Social. Brasília. DF: Senado Federal, 1991. BRASIL. Planos de Custeio da Previdência Social. Brasília. DF: Senado Federal, 1991. BRASIL. Decreto nº 3.048/99. Brasília. DF: Senado Federal, 1999. BRASIL. Decreto n° 10.410/2020. DF: Senado Federal, 2020. BRASIL. Instrução Normativa da Previdência Social nº 77/2015. Brasília. DF: Senado Federal, 1991.

Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

177


14

O PAPEL DO MANDADO DE SEGURANÇA NO DIREITO PREVIDENCIÁRIO Alexsandro Menezes Farineli150 RESUMO O presente artigo aborda a aplicação do mandado de segurança e sua relação jurídica com o direito previdenciário, servindo de fonte para extirpar ilegalidades ocorridas no processo administrativo relativas ao princípio da ampla defesa e contraditório, para observância do devido processo legal, reconhecimento de direitos que podem ser comprovados através de prova meramente documental ou que muitas vezes dispensam tal necessidade, tal como aplicação da jurisprudência já consolidada. PALAVRAS-CHAVE Mandado de Segurança. Direito líquido e certo, processo administrativo, prova documental, efetividade, celeridade, reabertura de processo administrativo, reconhecimento de direitos.

150

Advogado especialista em direito previdenciário, escritor de livros jurídicos e presidente da comissão previdenciária

da OAB São Miguel Paulista.

178

38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


1. INTRODUÇÃO O presente artigo trata de situar e demonstrar que o mandado de segurança pode ser uma das melhores opções jurídicas junto ao direito previdenciário, ora para impor celeridade no processo administrativo, reabertura de tarefa, reconhecimento de tempo de contribuição ou de atividade especial onde a prova documental possa amparar a prestação da tutela jurisdicional. A Constituição Federal em vigor prevê em seu artigo 5º, inciso LXIX, a utilização do mandado de segurança pelo indivíduo que se sentir lesado em decorrência de atos ilegais praticados em desfavor mesmo decorrente de abuso de poder da autoridade pública ou qualquer pessoa jurídica que tenha como atribuição o exercício de função pública em suas atividades.

líquido e certo, não amparado por “habeas-corpus” ou “habeas-data”, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público; Cumpre informar que o mandado de segurança também foi regulamentado pela Lei nº 1.533/51 ora revogada pela Lei nº 12.016/2009. Vejamos

a

redação

da

lei

12.016/2009 Art. 1o Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, sempre que, ilegalmente ou com abuso de poder, qualquer pessoa física ou jurídica sofrer violação ou

Vejamos:

houver justo receio de sofrê-la por parte de autoridade, seja de que

CONSTITUIÇÃO FEDERAL

categoria for e sejam quais forem as

DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS

funções que exerça.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

para

LXIX - conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito

somente no que disser respeito a

Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

§ 1o Equiparam-se às autoridades, os

efeitos

desta

Lei,

os

representantes ou órgãos de partidos políticos e os administradores de entidades autárquicas, bem como os dirigentes de pessoas jurídicas ou as pessoas naturais no exercício de atribuições do poder público, essas atribuições. 179


O mandado de segurança surgiu no

O quadro jurídico mudou com a

Brasil na Constituição Federal de 1934

entrada em vigor da Constituição de 1946

para amparar direitos individuais não

já que definitivamente ele foi acolhido em

amparados pelo já existente “habeas

nosso direito, tendo em vista que nesta

corpus” que até aquela época, era utilizado

nova ordem constitucional ele figurou de

para conter a atividade do Estado no que

forma expressa com a mesma função, ou

se refere ao abuso de poder.

seja, a garantia de direito líquido e certo.

Sendo assim, qualquer atividade do

Após este período este passou estar

Estado que implicasse na violação do direito

previsto nas Constituições de 1967 e

do cidadão no aspecto das ilegalidades

1969, sendo regulamentado como já

cometidas pelo poder público como já nos

dito anteriormente, pela revogada Lei

referimos, ou seja, no chamado abuso de

nº 1.533 de 31 de dezembro de 1951,

poder, somente poderia ser impugnado

estando hoje previsto em nossa atual

juridicamente através do “habeas corpus”

Constituição Federal de 1988 e pela Lei

que tinha a função semelhante à do

nº 12.016/2009.

mandado de segurança. Em 1937 com a vigência da nova Constituição Federal no Brasil, o mandado de segurança até então regulado pela Lei nº 191, foi suprimido do texto constitucional em nítido atraso para o fortalecimento da democracia e garantias dos direitos individuais do cidadão. De sorte que os nossos tribunais a época insistiam em preservar os demais direitos

individuais

do

cidadão

não

garantidos pelo “habeas corpus” já que a jurisprudência entendia naquele momento de transição constitucional, que, pelo fato do mandado de segurança não ter sido inserido na Carta Magna de 1937, isso não significava necessariamente, o seu fim em nosso ordenamento jurídico até porque o instrumento em questão estava previsto também na Lei Ordinária nº 191. 180

2. DIREITO LÍQUIDO E CERTO De Plácido e Silva em sua obra de nome Vocabulário Jurídicoconsidera que o direito líquido e certo referente ao mandado de segurança significa “os fatos apresentados pelo impetrante e que são demonstrados através de documentos ou que, ao menos não sofram impugnações quanto à sua existência”151. Direito líquido e certo para Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery na obra denominada Código de Processo Civil Comentado (RT - 11ª edição – pag. 1695) é o direito que pode ser comprovado prima facie, por documentação inequívoca que deve ser juntada com a petição inicial do mandado de segurança. 151 DE PLACIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. 15 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense. 1999. p. 274

38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


Na visão dos juristas acima mencionados, a matéria de fato e de direito já deve estar comprovada logo de início no processo tendo em vista que não se admite dilação probatória no procedimento do Mandado de Segurança. Destacam ainda os autores que a complexidade da matéria é irrelevante para a aferição da liquidez e certeza do direito. 3. NATUREZA JURÍDICA DO MANDADO DE SEGURANÇA Para José Afonso da Silva em sua obra “Curso de Direito Constitucional Positivo (Malheiros - 17ª edição – pag. 448)”, o mandado de segurança é caracterizado como remédio constitucional com natureza de ação civil, posto à disposição dos titulares de direito líquido e certo, lesados ou ameaçados de lesão, por ato de omissão de autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do poder público. O mandado de segurança é considerado para grande parte da doutrina ação de natureza civil de rito sumário especial sendo que o Supremo Tribunal Federal já consolidou entendimento nesta linha de raciocínio. Em decorrência deste entendimento do STF, qualquer que seja a matéria do ato a ser impugnado, o mandado de segurança terá natureza civil com aplicação das regras do Código de Processo Civil para fins de julgamento.

Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

4. CABIMENTO DO MANDADO DE SEGURANÇA O mandado de segurança previsto na Constituição Federal no artigo 5º LXIX e no artigo 1º da Lei nº 12.016/2009, poderá ser impetrado em favor da pessoa física ou jurídica para proteção do direito líquido e certo não amparado por “habeas corpus” ou “habeas data” na hipótese em que, de forma ilegal, houver abuso por parte da autoridade de qualquer categoria e de qualquer dos poderes públicos em detrimento do impetrante na defesa de seus interesses, neste caso, amparados pela lei. Podemos entender como ato ilegal, aquele praticado por parte de autoridade que ofende o direito líquido e certo do indivíduo amparadona Constituição Federal. O mandado de segurança especificamente no direito previdenciário possui finalidades bem específicas, assim, vejamos as palavras do ilustre magistrado e autor Renato Barth Pires: “De uma forma geral, o mandado de segurança tem aplicação preferencial na correção de ilegalidades ocorridas no processo administrativo. Este tipo de ilegalidade é demonstrável mediante simples prova documental e o provimento jurisdicional que se requer é uma ordem expedida à autoridade impetrada, de forma a afastar a ilegalidade praticada. São casos, portanto, em que o mandado de segurança não só é cabível, mas 181


também preferível a outros tipos de ação”.152 Desta forma, temos que o INSS se encontra sujeito a ditames constitucionais tais como o devido processo legal, a duração razoável do processo entre outros. CONSTITUIÇÃO FEDERAL Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: ... III - a dignidade da pessoa humana; OS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; LXXVIII - a todos, no âmbito judicial 152 Mandado de segurança em matéria previdenciária: atualizado com o novo código de processo civil, Renato Barth Pires, 1ª edição, São Paulo, Editora Verbatim, 2017, Pág. 126 182

e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) Em face de disposições constitucionais temos que a autarquia previdenciária se encontra devidamente sujeita a estas mesmas normas jurídicas e deve respeitá-las sob pena de estar sujeita as suas consequências legais. 5. CONCEITO DE AUTORIDADE COATORA A lei dispõe que o mandado de segurança poderá ser impetrado contra uma autoridade coatora, mas o que podemos entender deste conceito? Nossa atual Constituição Federal prevê que o mandado de segurança poderá ser impetrado contra autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do poder público ao passo que a Lei nº 12.016/2009 equipara às autoridades, os representantes ou órgãos de partidos políticos, administradores de entidades autárquicas, dirigentes de pessoas jurídicas ou pessoas naturais no exercício de atribuições do poder público. Desta forma, temos que ato de autoridade é toda manifestação praticada por esta no exercício de suas funções, equiparando-se a elas o agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público, assim, será a parte

38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


impetrada a autoridade e não a Pessoa Jurídica ou o órgão a que pertença. Note-se que na expressão: responsável pela ilegalidade ou abuso de poder, faz pressupor que a autoridade coatora é aquela que detém na ordem hierárquica poder de decisão e é competente para praticar os atos administrativos decisórios. Sobre o tema brilhantemente Helly Lopes Meirelles, ensina que: “Ato de autoridade é toda manifestação ou omissão do Poder Público ou de seus delegados, no desempenho de suas funções ou a pretexto de exercê-las. Por autoridade entende-se a pessoa física investida de poder de decisão dentro da esfera de competência que lhe é atribuída pela norma legal. Deve-se distinguir autoridade pública do simples agente público. Aquela detém, na ordem hierárquica, poder de decisão e é competente para praticar atos administrativos decisórios, os quais, se ilegais ou abusivos, são suscetíveis de impugnação por mandado de segurança quando ferem direito líquido e certo; este não pratica atos decisórios, mas simples atos executórios, e, por isso, não responde a mandado de segurança, pois é apenas executor de ordem superior. (...) Considerase autoridade coatora a pessoa que ordena ou omite a prática do ato impugnado, e não o superior que o Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

recomenda ou baixa normas para sua execução. Não há que confundir, entretanto, o simples executor material do ato com a autoridade por ele responsável. Coator é a autoridade superior que pratica ou ordena concreta e especificamente a execução ou inexecução do ato impugnado e responde pelas suas consequências administrativas; executor é o agente subordinado que cumpre a ordem por dever hierárquico, sem se responsabilizar por ela (...) Incabível é a segurança contra autoridade que não disponha de competência para corrigir a ilegalidade impugnada. A impetração deverá ser sempre dirigida contra a autoridade que tenha poderes e meios para praticar o ato ordenado pelo Judiciário; tratando-se, porém, de simples ordem proibitiva (não fazer), é admissível o writ contra o funcionário que está realizando o ato ilegal, a ser impedido pelo mandado. Um exemplo esclarecerá as duas situações: se a segurança objetiva a efetivação de um pagamento abusivamente retido, o mandado só poderá ser dirigido à autoridade competente para incluí-lo na folha respectiva; se visa à não efetivação desse mesmo pagamento, poderá ser endereçado diretamente ao pagador, porque está na sua alçada deixar de efetivá-lo diante da proibição judicial. Essa orientação funda-se na máxima ‘ad impossibilita 183


nemotenetur’: ninguém pode ser obrigado a fazer o impossível. Se as providências pedidas no mandado não são da alçada do impetrado, o impetrante é carecedor da segurança contra aquela autoridade, por falta de legitimação passiva para responder pelo ato impugnado. A mesma carência ocorre quando o ato impugnado não foi praticado pelo apontado coator.” (in Mandado de Segurança, 18ª edição, Malheiros editores, págs. 31 e 54/55).

de mandados de segurança contra juízes e promotores no que se refere à prática de atos abusivos e ilegais cometidos por eles. 7. DA IMPOSSIBILIDADE IMPETRAÇÃO DO MANDADO SEGURANÇA

DE DE

Tão importante quanto saber quando é possível a sua impetração, é necessário saber que lei prevê expressamente situações onde o mesmo não cabível.

6. COMPETÊNCIA PARA PROCESSAMENTO E JULGAMENTO DO MANDADO DE SEGURANÇA

Lei 12.016/2009.

No que diz respeito à competência do Poder Judiciário para processamento e julgamento do mandado de segurança, temos que analisar se a autoridade coatora exerce função federal na forma delegada ou concedida pelo poder público federal conforme dispõe o artigo 2º da lei 12.016/2009.

I - de ato do qual caiba recurso administrativo com efeito suspensivo, independentemente de caução;

No que se refere ao mandado de segurança, podemos concluir que a competência para processamento e julgamento é estabelecida pela natureza da autoridade impetrada, ou seja, a qualidade de quem ocupa o polo passivo da

relação

processual,

neste

artigo

como teremos uma autarquia federal, a competência será da justiça federal. Devemos nos atentar sobre as regras de competência originária dos Tribunais 184

em relação a processamento e julgamento

Art. 5o Não se concederá mandado de segurança quando se tratar:

II - de decisão judicial da qual caiba recurso com efeito suspensivo; III - de decisão judicial transitada em julgado. Pelo que dispõe o artigo 5º da Lei do mandado de segurança, não é possível a sua utilização nas hipóteses em que o ato praticado pela autoridade seja passível de impugnação através de recurso administrativo com efeito suspensivo, independentemente de caução. Neste caso, haverá falta de interesse processual da parte devendo o juiz extinguir o feito sem resolução do mérito

38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


tendo em vista que o impetrante poderá prosseguir na via administrativa. 8. POSSIBILIDADES DE UTILIZAÇÃO DO MANDADO DE SEGURANÇA NO DIREITO PREVIDENCIÁRIO O direito previdenciário possibilita inúmeras situações onde a sua utilização poderá alcançar resultados positivos e de forma mais célere se comparada com ações de procedimento comum, especialmente em época pós-reforma da Previdência Social e com notícias de mais um milhão de

requerimentos

administrativos

represados. Desta lo

feita,

podemos

verdadeiramente

de

chamá“remédio

constitucional” porque existem situações que se deixarmos seguir o seu fluxo considerado “normal” estas se perpetuarão pelo tempo. Quem

habitualmente

lida

com

os recursos administrativos e demais processos que seguem o rito ordinário, sabe que determinado litígio poderá muito bem ficar por anos aguardando a solução final. Desta forma se houver a possibilidade de utilização do mandado de segurança

8.1 ULTRAPASSADO O PRAZO LEGAL PARA RESPOSTA PELO INSS A autarquia previdenciária possui o prazo legal de efetuar o primeiro pagamento do benefício no prazo de 45 dias após a entrega da documentação necessária para sua análise, esta previsão se encontra no artigo 174 do decreto 3048/99. Cabe destacar que na lei do processo administrativo federal o prazo é de 30 dias para decidir, salvo pedido de prorrogação devidamente justificada. LEI Nº 9.784, DE 29 DE JANEIRO DE 1999. Art. 49. Concluída a instrução de processo administrativo, a Administração tem o prazo de até TRINTA dias para decidir, salvo prorrogação por igual período expressamente motivada. (grifo nosso) Entretanto, este prazo raramente é cumprido, uma vez que a autarquia manda aguardar um comunicado em casa. O prazo concedido é mais do que razoável para que o INSS se manifeste e faça uma primeira análise dos documentos apresentados e se necessitam de complementação ou não.

no lugar de uma ação de procedimento comum, poderá ser uma ótima solução. Vejamos

algumas

situações

que

comportam a utilização do mandado de segurança:

Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

Devemos ressaltar que nos encontramos na era da tecnologia e muitos dos dados já se encontram devidamente cadastrados pelas empresas através do sistema de conectividade social. 185


Cabe destacar que o STF em 05/02/2021, homologou acordo entre o INSS e o MPF relativo aos prazos para conclusão dos processos administrativos. O acordo foi homologado por meio do Tema 1.066 (RE 1.171.152/SC), de repercussão geral, e alterou os prazos administrativos. Vejamos abaixo os prazos administrativos estipulados em comum acordo:

Cabe

inicialmente

destacar

que

tivemos alteração de prazos regularmente previstos em lei, mesmo sem a intervenção do Congresso Nacional, uma que este possui a função típica de legislar.

8.2 EXPEDIÇÃO DE CERTIDÃO DE TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO A expedição de Certidão do Tempo de Contribuição deveria ser algo simples de requerer e fácil para o INSS cumprir,

BENEFÍCIO

PRAZO

entretanto, não é o que encontramos na prática.

Bene cio assistencial

90 dias

Aposentadorias

90 dias

que trabalharam em regimes diversos

Aposentadoria por incapacidade permanente (por invalidez)

45 dias

determinado regime e levá-lo para outro,

Salário maternidade

30 dias

Pensão por morte

60 dias

Auxílio reclusão

60 dias

Ressaltamos que inúmeras pessoas podem aproveitar o período laborado em não podendo fazer uso do mesmo duas vezes ou mais. Um dos clássicos exemplos destas certidões é a pessoa iniciar a sua vida laboral na iniciativa privada e depois prestar um determinado concurso público

Auxílio por incapacidade temporária (auxílio-doença)

45 dias

Auxílio-acidente

60 dias

e desejar completar o tempo de serviço para se aposentar. Na lei 8.213/91 encontramos a contagem recíproca no artigo 94 e no

O início dos prazos acima ocorrerá após o encerramento da instrução do requerimento administrativo, ou seja, a partir da realização da perícia médica e avaliação social, quando necessária, ou a partir do requerimento para a concessão inicial dos demais benefícios.

186

decreto 3048/99 a partir do artigo 125 e seguintes. Com apoio nesta previsão legal a jurisprudência vem sendo uma grande fonte de apoio para o segurado quando tem negativa do INSS em fornecer a Certidão de Tempo de Contribuição. 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


8.3 SUSPENSÃO INDEVIDA BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO

DO

A autarquia abusar de seu poder é algo comum em nosso dia a dia, e para isto basta verificarmos as situações nas quais a mesma suspende ou cessa o pagamento dos benefícios de seus segurados sem oferecer a estes a possibilidade do exercício

possível realizar através de Mandado de Segurança, quando estivermos diante de uma negativa administrativa quanto a este direito. 8.6 RECONHECIMENTO DE PERÍODO ESPECIAL Sendo possível a produção de provas documentais

da ampla defesa e do contraditório. Vivemos num Estado Democrático de Direito onde todos possuem a oportunidade de apresentar sua defesa ou

para

comprovação

do

período a ser reconhecido como especial, é plenamente possível a impetração do mandado de segurança.

a sua própria versão dos fatos, havendo violação deste direito, o mandado de

8.7 MANDADO DE SEGURANÇA COMO

segurança é uma excelente opção.

SUBSTITUTIVO DE RECURSO

8.4 DESCONTOS INDEVIDOS BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO

NO

Temos que o mandado de segurança pode ser utilizado como substitutivo de recurso, quando da ausência legal de meio

Mesmo quando o segurado deve fazer devolução de valores que tenha recebido de forma indevida, o INSS deve respeitar os limites previstos em lei.

específico de ataque para aquela decisão.

A devolução não é simplesmente feita da forma desejada pela Autarquia, ou seja, o segurado possui o amparo do Poder Judiciário para se defender de eventuais ilegalidades.

para seu cabimento.

Detalhamos apenas que não poderá ser aceito de forma irrestrita, uma vez que o próprio writ prevê situações específicas

8.8 MANDADO DE SEGURANÇA NOS BENEFÍCIOS POR INCAPACIDADE Cabe destacar que até mesmo nos

8.5 REVISÃO E RECÁLCULO DA RENDA MENSAL INICIAL

benefícios por incapacidade é possível a

Algumas espécies de revisão do benefício previdenciário já se encontram pacificadas na jurisprudência e a prova deste direito se faz apenas com a apresentação de documentos, ou seja, é

especialmente

Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

impetração do mandado de segurança, quando

a

discussão

se der sobre qualidade de segurado, cumprimento do período de carência ou sua dispensa.

187


Vejamos esta decisão: TRF-4 - REMESSA NECESSÁRIA CÍVEL 50023136620214047208 SC 5002313-66.2021.4.04.7208 (TRF-4) Jurisprudência•Data de publicação: 08/10/2021

9. CONCLUSÃO Diante da fundamentação acima, temos que o mandado de segurança pode ser um grande aliado para a defesa dos direitos dos segurados junto ao direito previdenciário e em algumas situações poderá ser a melhor estratégia processual.

PREVIDENCIÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. INDEFERIMENTO DO BENEFÍCIO DE AUXÍLIODOENÇA. CARÊNCIA MÍNIMA. ILEGALIDADE. REABERTURA DO PROCESSO ADMINISTRATIVO. ORDEM CONCEDIDA. 1. Hipótese em que, embora tenha sido constatada a existência de incapacidade laborativa, o benefício de auxílio-doença foi indeferido sob o argumento de ‘falta de período de carência’. 2. Tem a parte impetrante direito à reabertura do procedimento administrativo para que a autoridade coatora analise, de forma fundamentada, o pedido, proferindo decisão com base no conteúdo do procedimento administrativo. 3. Mantida a sentença, que concedeu a segurança para declarar o direito líquido e certo da impetrante de reabertura do requerimento administrativo protocolado sob o n° 1476136664, para a análise do pedido de benefício por incapacidade realizado em 10/09/2020, nos termos do requerimento administrativo, no prazo de 15 (quinze) dias.

188

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm;

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/ l12016.htm;

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15

A Portaria do Ministério do Trabalho e Previdência MTP nº 620, de 1º de novembro de 2021 e repercussões nos acidentes COLETIVOS DE TRABALHO. José Roberto Sodero Victório153 1. INTRODUÇÃO Os acidentes de trabalho e outras morbidades a eles equiparadas são definidos pela Lei nº 8.213/91 em seus artigos 19 e seguintes. Veja que não é a lei trabalhista que rege sobre a questão, mas a lei previdenciária. Na normativa legal estão definidos: o acidente de trabalho típico, a doença ocupacional dividida entre a doença profissional e a do trabalho, o acidente de trabalho in itinere, causalidade e concausalidade, acidentes do trabalho ocorrido no local e no horário de trabalho e fora do local e fora do horário de trabalho, dentre outras definições. 153 Pós-Doutor em Saúde, Bioética, Meio Ambiente Laboral e Direitos Humanos pela Universidade de Salerno (Itália), Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela UMSA (Argentina), Mestre em Ciências Ambientais pela Universidade de Taubaté, Pós-Graduado em Direito Empresarial pela Universidade de Taubaté, Professor de Pós-graduação da Faculdade de Direito de Franca, da Faculdade de Direito de Passo Fundo, da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, da Escola Superior da Advocacia – ESA-OAB, da UNOESTE, da ATAME e do IEPREV, Presidente da Comissão de Direito Previdenciário da OAB SP (2019 a 05/2021), Membro Consultor da Comissão de Direito Previdenciário do CFOAB (2019 a 05/2021), Diretor de Acompanhamento de Acidentes Coletivos do Trabalho do Instituto de Estudos Previdenciários – IEPREV. 190

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Os acidentes de trabalho no Brasil têm merecido ao longo dos tempos uma avaliação e análise dimensional e estatística sob o prisma da individualidade do infortúnio laboral. A análise coletiva do meio ambiente laboral e seus reflexos na saúde do trabalhador, com o viés epidemiológico pode ter melhores resultados não demonstrados na atual sistemática de análise e estudos do infortúnio laboral de forma individual, no foco do trabalhador como um ser apartado da coletividade ambiental do trabalho. A pandemia do coronavírus abre o espaço para a discussão coletiva da sua contaminação e, portanto, impulsiona uma visão coletiva do meio ambiente de trabalho e prevenções e precauções para a garantia do seu equilíbrio e conseqüentemente da preservação da vida e da saúde do trabalhador. Na seqüência ante as necessidades econômicas de retorno de atividades profissionais que ainda não têm garantia de salubridade no combate e contenção da expansão pandêmica, discute-se nesta Nota Técnica a Portaria do Ministério do Trabalho e Previdência MTP nº 620, de 1º de novembro de 2021. Aquela Portaria embora traga em seus considerando abordagem constitucional, citando artigos da Carta Magna como fundamento de suas orientações diz em seu artigo 1º que é proibida a adoção de qualquer prática Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de trabalho, ou de sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar, deficiência, reabilitação profissional, idade, entre outros, ressalvadas, nesse caso, as hipóteses de proteção à criança e ao adolescente, previstas no inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal, nos termos da Lei nº 9.029, de 13 de abril de 1995, o que nos parece se adéqua aos preceitos e princípios constitucionais. Na seqüência em seu parágrafo 1º, orienta que ao empregador é proibido, na contratação ou na manutenção do emprego do trabalhador, exigir quaisquer documentos discriminatórios ou obstativos para a contratação, especialmente comprovante de vacinação, certidão negativa de reclamatória trabalhista, teste, exame, perícia, laudo, atestado ou declaração relativa à esterilização ou a estado de gravidez. Veja-se aqui a questão da proibição da exigência do comprovante de vacinação. O parágrafo 2º traz a orientação de que se considera prática discriminatória a obrigatoriedade de certificado de vacinação em processos seletivos de admissão de trabalhadores, assim como a demissão por justa causa de empregado em razão da não apresentação de certificado de vacinação. No artigo 4º e seus incisos I e II, a Portaria conclui a questão da proibição à exigência de vacinação de empregados e 191


de candidatos ao emprego afirmando que

conseqüências, os setores de atividades

o rompimento da relação de trabalho por

econômicas e a localização geográfica de

ato discriminatório, nos termos do art. 1º

ocorrência dos eventos.

da presente Portaria e da Lei nº 9.029, de 13 de abril de 1995, além do direito à reparação pelo dano moral, faculta ao empregado optar entre postular a reintegração com ressarcimento integral de todo o período de afastamento, mediante pagamento das remunerações devidas, corrigidas monetariamente e acrescidas de juros legais e a percepção, em dobro, da remuneração do período de afastamento, corrigida monetariamente e acrescida dos juros legais.

Embora o documento traga consigo a informação de que com os dados ali lançados é possível construir um diagnóstico mais preciso acerca destes acidentes, e propiciar a elaboração de políticas mais eficazes para as áreas relacionadas com o tema, inclusive apresentando ainda estatísticas sobre acidentes segundo a Classificação Internacional de Doenças – CID, mais incidentes por região; além das informações coletadas pelo INSS por meio da Comunicação de Acidente do Trabalho

O que se indaga é se a Portaria

– CAT, informações que têm origem

em referência tem o condão de obrigar

nos benefícios de natureza acidentária

empregadores em seus termos quanto à

concedidos pelo INSS; estatísticas básicas

questão da vacinação e de impedir que o

sobre acidentes do trabalho nos municípios

empregado que não tomar vacina contra

brasileiros, contemplando os acidentes por

COVID possa ser demitido por justa

motivo e o número de óbitos causados por

causa?

acidentes do trabalho, o que permite um detalhamento maior sobre a distribuição

2. UMA ANÁLISE DO PONTO DE VISTA DO ACIDENTE DE TRABALHO COLETIVO. Os acidentes do trabalho no Brasil trazem números estatísticos absurdos, do ponto de vista de saúde pública. A prova disso é a apresentação do Anuário Estatístico de Acidentes do Trabalho - AEAT, uma publicação do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, nos quais são apresentados dados sobre acidentes do trabalho, suas principais

192

espacial dos acidentes no país; um conjunto de indicadores de acidentes do trabalho por setor de atividade e unidade da federação, que permitem mensurar a exposição dos trabalhadores aos níveis de risco inerentes à atividade econômica, permitindo

o

acompanhamento

das

flutuações e tendências históricas dos acidentes e seus impactos nas empresas e na vida dos trabalhadores; ainda a tratativa desta questão é sustentada na individualidade do acidente laboral.

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As ferramentas e as informações

(Portaria MS nº 4/2017). O total inclui os

colhidas sobre os acidentes de trabalho

seguintes casos monitorados com ênfase

no Brasil se fossem utilizadas para uma

pela Vigilância em Saúde do Trabalhador

análise, discussão e conclusões coletivas,

do Ministério da Saúde: Acidente de

certamente nos levariam a construir uma

Trabalho Grave, Câncer Relacionado ao

ferramenta de incidências, mortalidades,

Trabalho,

letalidades e acidentalidades com um viés

Acidente de Trabalho com Exposição à

mais adequado de prevenção.

Material Biológico, Intoxicação Exógena

Ainda somos campeões de acidente de trabalho no mundo.

Segundo o

Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho, de 2012 a 2018 foram 4.503.631acidentes

de

trabalho

registrados no país. Segundo o mesmo Observatório, no mesmo período, 16.455 desses acidentes resultaram em morte. Também entre 2012 a 2018, apuraram-se 351.796.758 dias de trabalho perdidos, somados todos os dias que as pessoas não trabalharam em virtude de afastamentos previdenciários acidentários. Os gastos estimados de quase 97 bilhões de reais consideraram valores de pagamentos pelo INSS de benefícios de natureza acidentária de 2012 a 2018. O Observatório também traz os números do SINAN (Sistema Nacional de Agravos de Notificação) que incluem todos os trabalhadores atendidos pelo SUS no período. São mais de dois milhões de atendimentos. O SINAN é alimentado,

Dermatoses

Ocupacionais,

Relacionada ao Trabalho, LER/DORT, Perda Auditiva Induzida por Ruído (PAIR) Relacionada ao Trabalho, Pneumoconioses Relacionadas ao Trabalho, Transtornos Mentais Relacionados ao Trabalho e Acidente de Trabalho Grave envolvendo Crianças e Adolescentes (0 a 17 anos). Esses

números,

explica

o

Observatório, se referem a trabalhadores que laboram ou laboraram com vínculo de emprego, com carteira assinada e no âmbito do Regime Geral da Previdência Social. Não foram incluídos, por ora, exceto quanto ao SINAN (Sistema Nacional de Agravos de Notificação), os servidores estatutários ou trabalhadores informais. As estatísticas apontam para o quanto se tem, além do reflexo individual e pessoal do acidente do trabalho (incapacidades temporária e permanente, seqüelas biopsicossociais do trabalhador, etc.), a repercussão coletiva, inclusive, econômico-financeira

dos

infortúnios

laborais no Brasil.

sobretudo por notificações de casos

A estrutura, portanto, da análise da

de doenças e agravos da lista nacional

individualizada dos acidentes do trabalho

de doenças de notificação compulsória

no país não tem se mostrado adequada,

Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

193


inclusive porque, caso as avaliações fossem

vulnerabilidade, impondo-se a adoção de

realizadas de forma coletiva estaríamos

políticas que possam simultaneamente

diante de vários estudos epidemiológicos

prevenir o contágio, garantir o acesso

e certamente com o viés coletivo de

ao sistema de saúde pública e permitir

prevenção, com a preponderância de

medidas de seguridade social.

conclusões mais adequadas à proteção coletiva de meio ambiente laboral, e conseqüentemente da saúde coletiva do trabalhador em contraposição a um excesso desproporcional de proteção individualizada. relevância em tempos de pandemia do coronavírus e talvez traga uma reflexão da saúde coletiva no ambiente laboral como instrumento de avaliação e controle do meio ambiente do trabalho equilibrado. A Organização Mundial da Saúde declarou

emergência

de

em saúde

30/01/2020, pública

de

importância internacional, com base no Regulamento

Sanitário

Internacional

(2005), aprovado pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo nº 395/2009 e promulgado pelo Decreto nº 10.212, de 30/01/2020. A

enfrentamento da emergência de saúde pública

de

importância

internacional

decorrente do Coronavírus responsável

Comissão

O

Congresso

Nacional

aprovou

por meio do Decreto Legislativo 6, de 20/03/2020, a decretação do estado de calamidade pública proposto pelo Governo Federal com base na Lei Complementar 101/2000. Na seqüência foi editada a MP 927 – perdeu a vigência em 19/07/2020 - que dispôs sobre as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública

reconhecido

pelo

Decreto

Legislativo nº 6 e da emergência de saúde pública

de

importância

internacional

decorrente do coronavírus (COVID-19), e dá outras providências.

Interamericana

de

Direitos Humanos editou a Resolução nº 1/2020 (“Pandemia e Direitos Humanos nas Américas”), que ressalta os impactos diferenciados e interseccionais que a pandemia provoca sobre a realização de direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais para certos grupos e populações em situação de especial 194

de 06/02/2020, sobre as medidas para

pelo surto de 2019.

A questão epidemiológica ganhou

(OMS)

No Brasil editada a Lei nº 13.979,

Aquela MP trouxe talvez a primeira discussão de acidentes coletivos de trabalho em tempo de pandemia pelo coronavírus, já que o seu art. 29 regia que: “Os casos de contaminação pelo coronavírus

(COVID-19)

considerados

não

ocupacionais,

serão exceto

mediante comprovação do nexo causal”.

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Assim,

para

a

6349), pelo partido Solidariedade (ADI

caracterização da doença ocupacional

6352) e pela Confederação Nacional dos

por

Trabalhadores da Indústria (ADI 6354).

contaminação

que

houvesse

pelo

coronavírus

o trabalhador/segurado teria o ônus probatório da relação causal entre a patologia e a atividade laboral.

O argumento comum era que a MP

afrontava

direitos

fundamentais

dos trabalhadores, entre eles a proteção

O Plenário do Supremo Tribunal

contra a despedida arbitrária ou sem

Federal (STF), em sessão realizada por

justa causa, mas essencialmente aqui se

videoconferência

falava da coletividade dos trabalhadores

em

28/04/2020,

suspendeu a eficácia de dois dispositivos

possivelmente

da Medida Provisória (MP) 927/2020,

coronavírus

que autorizava empregadores a adotarem

caracterização de doença ocupacional.

medidas

excepcionais

em

razão

do

estado de calamidade pública decorrente da pandemia do novo coronavírus. Por maioria, foram suspensos: o artigo 29, que não considerava doença ocupacional os casos de contaminação de trabalhadores pelo coronavírus, e; o artigo 31, que limitava a atuação de auditores fiscais do trabalho à atividade de orientação. A decisão foi proferida no julgamento de medida liminar em sete Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) ajuizadas contra a MP. Partido Democrático Trabalhista (ADI 6342), pela Rede Sustentabilidade (ADI pela

e

a

pelo

possibilidade

da

Observem: o art. 29 da MP 927 faz menção à doença ocupacional, como modalidade de acidente do trabalho. Segundo as definições da Lei nº 8213/19, as doenças ocupacionais são divididas entre doenças profissionais e doenças do trabalho. A primeira (doença profissional) tem nexo causal presumido, bastando o cruzamento da Classificação Internacional da Doença – CID 10 com a atividade empresarial, ou seja, Classificação Nacional de Atividades Econômicas - CNAE. Aqui estamos falando do NTEP, nexo técnico

As ações foram ajuizadas pelo:

6344),

contaminados

Confederação

Nacional

dos Trabalhadores Metalúrgicos (ADI 6346), pelo Partido Socialista Brasileiro (ADI 6348), pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e pelo Partido dos Trabalhadores (PT) conjuntamente (ADI

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epidemiológico previdenciário. A segunda (doença do trabalho) não tem nexo causal presumido havendo a necessidade de se estabelecer o nexo causal, pois não há presunção legal da sua existência, já que há que se verificar a atuação dos agentes agressivos no meio ambiente do trabalho. Com a devida vênia, a direção do art. 29 da MP 927 estava indicada 195


aos trabalhadores da saúde (hospitais,

benéfico), e no caso das empresas (custeio

clínicas, postos de atendimento médicos,

previdenciário empresarial, as possíveis

etc.), pois aqui estaríamos tratando da

ações trabalhistas, etc.).

doença profissional, de NTEP, já que no Anexo II, lista C, do Decreto 3048/99, a intersecção da CID 10 B34.2 - Infecção por

coronavírus

de

localização

não

especificada não aparece com CNAE respectivo. Aliás, nenhuma infecção por agente patogênico aparece no NTEP. No entanto, no Anexo II do Regulamento há uma descrição de agentes patogênicos causadores

de

doenças

profissionais

ou do trabalho na forma do art. 20 da Lei 8213/91, e dentre eles estão vírus, bactérias, etc. e o trabalho desenvolvido em

hospitais,

laboratórios

e

outros

ambientes envolvidos no tratamento de doenças transmissíveis. A tentativa do art. 29 da MP era excluir a vigência do Decreto Regulamentador neste sentido.

conduzem a entender que estamos fazendo uma análise coletiva dos acidentes do trabalho decorrentes da contaminação pelo coronavírus, em tempos de pandemia. A questão para por aí? Não. Ainda que os trabalhadores não se ativem em

ambiente

ou

similar,

de a

saúde,

hospitalar

possibilidade

da

caracterização da doença ocupacional se o meio ambiente do trabalho não tiver a sua salubridade garantida. Na mesma esteira da exposição a quaisquer dos agentes agressivos estabelecidos, por exemplo, na Norma Regulamentadora nº 15 (NR-15), se o ambiente laboral não cumprir as recomendações das atividades sanitárias e tornar o ambiente insalubre há a caracterização.

Aqui,

Assim, trabalhadores do setor de

evidentemente, há a necessidade da prova

saúde, por exemplo, que se contaminarem

do nexo causal. Lembra-se que a Lei nº

com o coronavírus têm nexo causal

8.213/91 obriga o empregador a explicar

presumido e a caracterização como

pormenorizadamente ao trabalhador o

acidente do trabalho, na modalidade doença

risco da atividade a ser exercida. Aliás,

ocupacional. Perceba-se a extensão desta

deve observar o empregador a Ordem

caracterização da natureza acidentária

de Serviço estabelecida pela Norma

para o segurado (inexistência de carência,

Regulamentadora nº 1 (NR-1).

o cálculo mais benéfico do benefício acidentário, a possibilidade do acesso ao auxílio-acidente, as estabilidades no emprego, etc.), no caso dos beneficiários (a pensão por morte com o cálculo mais

196

De fato, as avaliações acima nos

A outra questão é que a Lei nº 8.213/91 (art. 20, §1º, “d”), diz que não é considerada doença do trabalho a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


desenvolva, salvo comprovação de que é

A endemia pode ser conceituada

resultante de exposição ou contato direto

como a ocorrência de um agravo dentro

determinado pela natureza do trabalho.

de um número esperado de casos para

E a CODVID-19 não seria uma doença endêmica?

determinada região, naquele período,

Alguns conceitos científicos devem ser observados para a resposta da questão: o que é uma epidemia, endemia e pandemia.

baseando-se na média histórica de sua ocorrência. Logo, não está relacionada a uma questão quantitativa, mas sim a uma incidência relativamente constante (típica)

A epidemia acontece quando há ocorrência em uma região ou comunidade de um número de casos em excesso, em relação ao que seria esperado normalmente.

de determinada doença naquela região,

O número de casos necessários para definir a presença de uma epidemia, varia de acordo com o agente, o tamanho, o tipo e a suscetibilidade da população exposta, o momento e local da ocorrência da doença, dependendo também da freqüência habitual da doença naquela região, durante uma mesma estação do ano.

Já a pandemia acontece quando

Ao nível municipal, pode ocorrer quando diversos bairros apresentam certa doença, ao nível estadual, quando diversas cidades apresentam a doença, e ao nível nacional, quando a doença acomete diversas regiões do país. Mas, um pequeno número de casos, que não tenha ocorrido previamente naquela região, já pode ser suficiente para caracterizar uma epidemia. Um exemplo de epidemia é o ebola em 2014, após atingir vários países da África.

podendo ocorrer variações sazonais no comportamento

esperado

para

esse

agravo. Temos como um exemplo de endemia a dengue no Rio de Janeiro. uma epidemia atinge vários países de diferentes continentes, se estendendo a níveis mundiais por isso, é o pior dos cenários. Afeta um grande número de pessoas, com transmissão sustentada de novos casos nesses locais. Mas não há um número fixo de casos ou de países afetados para que a situação seja classificada como pandemia. Um exemplo de pandemia é a que estamos vivendo agora, pelo novo Coronavírus, que foi declarada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) no dia 11 de março de 2020, quando o vírus já estava presente em 114 países, de diferentes continentes. Há de se observar ainda a presença da força maior prevista na MP 927, que conjugada com o art. 21, II, “e” da L. 8213/91 equipara ao acidente de trabalho aquele sofrido pelo segurado no local e no

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horário de trabalho em conseqüência de

demissões, punições, ou qualquer outra

força maior.

determinação da sua competência.

E para finalizar, a possibilidade do

Com relação à portaria, sua natureza

acidente in itinere em que a contaminação

jurídica é classificada como sendo ato

pode ocorrer no transporte coletivo, no

administrativo ordinário, ou seja, ato

transporte oferecido pela empresa ou

que tem como finalidade disciplinar o

mesmo na contaminação ocorrida com

funcionamento da Administração Pública

transeunte no caminho de ida e volta para

ou a conduta de seus agentes.

o trabalho.

Sendo assim, as portarias devem

A pandemia de coronavírus tem

ser indicadas pelos chefes dos órgãos

reflexos em todas as áreas da vida social

públicos, que as direciona aos seus

coletiva e não seria diferente no âmbito

subordinados, determinando a realização

dos direitos sociais, em especial no Direito

de atos especiais ou gerais. Logo, elas

Previdenciário e no Direito do Trabalho.

auxiliam a necessidade do administrador

Nos últimos dias, ante da Portaria MTP

620/2021,

uma

questão

polêmica envolvendo a COVID-19 e o ambiente do trabalho, têm provocado diversas discussões e controvérsias entre

na execução do texto legal. Já que são criadas para regulamentar a prática de uma lei, da Constituição Federal, decreto, regulamento ou outros atos normativos superiores.

empregados e empregadores. Mas afinal, o empregado que se recusar a tomar a vacina contra a doença provocada pelo novo coronavírus, pode ser dispensado por justa causa? Isso é

Contudo, há duas modalidades de portarias: as gerais e as internas. Conforme a finalidade da ordem ou ações a serem executadas, é inserida diante dos critérios abaixo:

juridicamente possível?

portarias que

de

são

instrução

aquelas destinada

3. O CONCEITO DE PORTARIA E SUA APLICABILIDADE.

a uma categoria de funcionários ou

A Portaria é um documento de ato

portarias especiais são as que se

administrativo de qualquer autoridade

198

tratam

gerais

administrados; dirigem a situações e validades jurídicas

pública, que contém instruções acerca

específicas, geralmente sobre uma pessoa;

da aplicação de leis ou regulamentos,

portarias internas bastante usadas

recomendações de caráter geral, normas

em prefeituras, órgãos públicos e demais

de execução de serviço, nomeações,

setores da administração, são instruções

38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


emitidas por autoridade de alto cargo

finalidade na Portaria, pois direcionado

para os seus subordinados;

a interesses privados e não ao interesse

portarias externas é aquela que atenderá a população geral ou uma classe determinada de pessoas. Portanto, a indagação que se faz é a Portaria poderia vincular e obrigar empregadores e empregados? 3. CONCLUSÃO O Professor José Cretella Júnior154 ensina que quando dirigida na órbita exterior, ao público, a portaria reúne traços de generalidade e coatividade, mas não de novidade. Ainda segundo o renomado administrativista portaria não inova, não cria, não extingue direitos, não modifica por si, qualquer impositivo de ordem jurídica em vigor. Não dispõe contra legem, mas atua secumdum legem. Interpreta o texto legal com fins executivos. Neste sentido há que se observar o seguinte: a Portaria, nos termos aqui analisados, inclusive quanto à sua extensão seria válida? Com a devida vênia, entendemos que não, eis que encontra vício na ausência de competência, pois ao círculo das atribuições do Ministro do Trabalho e da Previdência criar, extinguir e modificar a Lei em vigência através de Portaria, praticando excesso de poder.

público, além de ofender o princípio da impessoalidade. Ainda entendemos que há um vício de forma, pois a Portaria não poderia inovar no direito e há ainda um vício no objeto, pois o ato administrativo em tela foi dotado de conteúdo diverso do que a lei autoriza ou determina. Finalmente, observamos o vício quanto ao motivo: há inexistência de fundamento jurídico e sanitário, inclusive sob o prisma do acidente de trabalho coletivo, para o ato que impede que o empregador exija a vacinação de seus empregados ou como dado essencial à contratação.

Ainda

que houvesse alguma argumentação o fundamento seria falso, incompatível com a verdade real e também é desconexo com o objetivo principal da própria Administração que é conter o avanço da pandemia no Brasil. A invalidação ou anulação dos atos administrativos pode ocorrer pela própria Administração ou pelo Judiciário. Neste caso, a melhor posição deveria ser a própria administração revogar o ato administrativo ante o vício de legalidade. Somos partidários do entendimento de que não se trata de faculdade, mas sim de dever de revogação, conforme estrutura o artigo 37 da Constituição Federal e a

Também haveria no caso um desvio de

própria garantia da segurança jurídica,

154 Cretella Júnior, José. Curso de direito administrativo. Ed. revisada e atualizada. Rio de Janeiro, Ed. Forense, 2003, p. 191

interesse público.

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neste caso inserido no princípio do

199


Caso contrário, a invalidação poderá se dar dentro do controle judicial dos atos administrativos. De antemão, vale ressaltar que, o STF, nas ADIs (Ação Declaratória de Inconstitucionalidade) 6586 e 6587, decidiu pela constitucionalidade da obrigatoriedade de vacinação. Veja bem, o órgão superior não defende a vacinação forçada, compulsória e sim, a possibilidade de sanções administrativas (a vedação de matrícula em escolas, restrições de entrada em determinados lugares e viagens, por exemplo). Quanto à justificativa ideológica, merece este ponto uma análise mais restrita. Em que pese a Constituição Federal (CRFB/88) prever a proteção da liberdade de expressão e pensamento, o STF já proferiu decisão sobre o direito à recusa à vacinação por questões filosóficas ou religiosas.

da pandemia no ambiente laboral. A recusa, a princípio injustificada, do empregado deverá em um primeiro momento ser abordada pelo empregador no sentido de verificar as medidas para esclarecimento, fornecendo todas as informações necessárias para elucidação a respeito do procedimento de vacinação e das conseqüências jurídicas da recusa. No entanto, persistindo a recusa injustificada, o trabalhador deverá ser afastado do ambiente de trabalho, sob pena de colocar em risco a imunização coletiva, e o empregador poderá aplicar sanções disciplinares, inclusive a despedida por justa causa, como ultima ratio, com fundamento no artigo 482, “h”, combinado com art. 158, II, parágrafo único, alínea “a”, pois se deve observar o interesse público, já que o valor maior a ser tutelado é a proteção da coletividade.

A CLT determina, claramente, que nenhum interesse de classe ou particular pode prevalecer sobre o interesse público. Essa premissa permite concluir que o direito da coletividade de receber a vacina prevista em programa nacional de vacinação e aprovada pela ANVISA, deve ser preponderante. É verdade que o empregador deve incluir nos seus programas ambientais e de medicina ocupacional a vacinação obrigatória de seus empregados, criando no meio ambiente do trabalho condições equilibradas que visem o controle coletivo

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TRANSTORNOS DAS PERÍCIAS E A INDEFINIÇÃO DO PL 3914/20 Mônica Christye Rodrigues da Silva155 RESUMO: Pretende-se fazer uma reflexão sobre o PL 3914/20, que contém propostas de alteração da Lei 13.876/19 e a Lei 8.213/91. Em síntese rápida, esta PL busca garantir o pagamento dos honorários periciais referente as perícias realizadas desde a vigência da Lei 13.876/19 e as realizadas até o prazo de 02 anos (21/09/21), nas ações em que o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) figure como parte. Pretende a utilização de 10% dos recursos das perícias de ação popular e de 30% do montante dos RPVs e precatórios cancelados e não levantados. O texto recebeu emendas na Câmara, e segue no Senado. Retirado de pauta a pedido de requerimentos, emendas e destaques, segue sem sanção. Esgotado o prazo há dois meses, que determinava o pagamento dos honorários perícias pelo Executivo, o Judiciário segue sobrestando as perícias, diante da recusa dos peritos em prestar seus serviços sem garantia de pagamento. Ao que parece, que os segurados e o judiciário estão na espera do único instrumento que pode, trazer uma solução para o custeio das perícias, ou não, ante a ausência de uma solução orçamentária por quem de direito. Em que pese um aumento considerável e crescente das ações previdenciárias e assistenciais, e estar entre as ações de maior demanda na Justiça Federal, não se verifica a solução ou existência de verba orçamentaria para pagar as perícias não contempladas pelo fim da vigência da Lei 13.876/19, por parte do Conselho Federal de Justiça, ou seja, está sendo depositado neste Projeto de Lei, a salvação orçamentária, por quem não tem a responsabilidade de fazê-la. PALAVRAS-CHAVE: Perícias previdenciárias; Projeto de Lei 3914/20; Seguridade Social. 155 Advogada, atuaçao da área de Direito do Trabalho, Acidentário, Previdenciário, Empresarial, Família e Sucessões; Especialização em Direito Previdenciário Graduada pela EPD - Escola Paulista de Direito, São Paulo; Presidente da Comissão de Estudos Sobre Perícias Forenses da OABSP. 202

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1. INTRODUÇÃO: Através deste estudo, pretendese fazer uma reflexão crítica sobre a proposta legislativa e as considerações a certa do Projeto de Lei n. 3914/2020, no que respeita a afronta a Constituição Federal, a justicialidade dos direitos sociais, especialmente no que respeita às perícias previdenciárias e assistenciais. A PL 3.914/20 visa alterar as Leis nº 13.463, de 06 de julho de 2017 e a Lei nº 13.876, de 20 de setembro de 2019, para dispor sobre o pagamento de honorários periciais nas ações que faz parte o Instituto Nacional do Seguro Social. Este PL foi apresentado à casa legislativa em 23/07/2020, e encontrase com tramitação lenta, tanto quanto polêmica, em razão de inúmeras emendas, que carecem de debate especializado sobre o tema. Vale esclarecer, que o objetivo originário do PL era salvaguardar e prorrogar o prazo previsto de dois anos para pagamento das perícias pelo Executivo. No seu bojo, contém como alternativa o destino de parte dos recursos de ação popular, RPVs e Precatórios, com o fito de garantir ou resolver, provisoriamente, o pagamento das perícias previdenciárias e assistenciais. Assim, almeja-se neste artigo, sem pretensões de esgotar o tema, fazer uma reflexão sobre os transtornos experimentados pelos segurados que dependem da perícia judicial, seja ela médica, social ou biopsicossocial, para comprovar judicialmente a sua ausência Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

de saúde/incapacidade laboral, eis que muitos têm tido o seu benefício suspenso em detrimento da operação “pente fino”. Em que pese, o PL 3914/20 trazer alternativas orçamentárias para custeio das perícias previdenciárias e assistenciais, estas alternativas não provêm de um estudo aprofundado, não houve pesquisas e dados, e sequer se sabe se atenderá a demanda das perícias, se aprovado for. Outrossim, é preocupante o fato de que o objeto do PL visa garantir o pagamento dos honorários periciais, nas ações em que o INSS for parte, mas os benefícios que tratam de aposentadoria por tempo de contribuição ao deficiente e o benefício assistencial da LOAS estarão sem cobertura, eis que, com base no texto original do PL, se aprovado, não há como garantir que será realizada a perícia biopsicossocial para a concessão de tais benefícios. A redação não é clara nesse sentido. Se as perícias biopsicossociais estiverem excluídas da cobertura legal por força do PL, estaremos diante de mais um descaso social, em afronta à Convenção de Nova Iorque e mais uma vez, da dependência de uma interpretação literal do julgador. O entrave que envolve o universo das provas periciais é significativo, especialmente as perícias previdenciárias e assistenciais, pois entrelaça os princípios tutelados pelo direito previdenciário, protegidos constitucionalmente. O Estado tem se mantido inerte com relação às questões orçamentaria relativo aos processos judiciais que

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tramitam na Justiça Federal. A questão da obrigatoriedade da responsabilidade do custo dos honorários periciais já tinha um fim anunciado pela Lei 13.876/19, mas na contramão, em invés de o Estado gerenciar a questão do orçamento das perícias judiciais, ele coordena a gestão do ente autárquico, suspendendo milhares de benefícios por incapacidade, através do “pente fino” promovendo a judicialização em massa. 2. PROPOSTAS DO PROJETO DE LEI 3914/20 - A SOLUÇÃO ESPERADA PELO PODER PUBLICO OU A SOLUÇÃO QUE SE ESPERA DO PODER PUBLICO? Em uma breve análise da proposta inicial do Projeto 3914 de 23/07/2020, verificamos que a redação original trouxe as seguintes proposições, com a justificativa de que há Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM), que há previsão na Lei 10.259/01 para antecipar à conta de verba orçamentária do respectivo Tribunal, dos honorários do técnico nomeado pelo magistrado, quando vencido na causa a entidade pública. Há justificativa de que os atrasos ou a falta de pagamento das perícias judiciais comprometem a manutenção de um quadro de peritos qualificados, interessados, e que a assiduidade no pagamento dos médicos peritos, com remuneração justa e pontual, manterá os profissionais com melhor capacitação, dando maior garantia na decisão judicial. 204

Afirma, que para a produção de prova pericial adequada, o trabalho médico pericial deve ser executado por profissionais capacitados, com análise profunda e conhecimento técnico pautado na ciência, refletindo importante economia para o poder público. Nessa esteira, houve a proposição do PL 3914/20 visando trazer as seguintes alterações: a) Do texto, substituindo o termo “poderá” por “deverá” destinar 10% (dez por cento) do total dos valores da remuneração dos recursos depositados, dos beneficiários dos precatórios ou da RPV. O destino de tais valores visa constituir receitas em favor do Poder Judiciário, para pagamento de perícias realizadas em ações popular; b) O artigo 2º da mesma lei, acrescentou o inciso III, para destinar pelo menos 30% (trinta por cento) dos recursos, para o pagamento de perícias médicas beneficiando quem tem gratuidade judicial no âmbito dos juizados especiais federais. c) O artigo 1º da Lei 13.876/2019, propõe alterar o prazo da garantia de pagamento dos honorários periciais referente às pericias já realizadas e às que venham a ser realizadas, nas ações em que o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) figure como parte. O Estado ficara responsável pelo pagamento das referidas perícias por prazo indeterminado. d) Na mesma linha, o artigo 3.º, do mesmo diploma, responsabiliza o

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executivo pelo pagamento de “uma perícia médica por processo judicial”. e) Há a proposta da alteração do artigo 4.º da mesma Lei, para que a designação de uma segunda perícia, possa ser realizada, não mais por determinação apenas de instancias superiores, mas pela instância julgadora, em casos justificados, devolvendo à primeira instância a discricionariedade. Em que pese a plausibilidade das justificativas e a necessária urgência de garantir o pagamento das perícias previdenciárias, questiona-se se a forma mais adequada para solução orçamentária seria através da propositura de um Projeto de Lei, sem um estudo estatístico científico, sem a participação e sem a autoria do Conselho Federal de Justiça, responsável por gerir tal pasta, como se verifica na justificativa do projeto. Ao analisar a proposta do projeto, especialmente da redação inicial, concluímos que a solução é provisória, serve para apagar o incêndio, mas as propostas não são plausíveis e definitivas. Por outro lado, se o Estado atuasse como garantidor dos direitos sociais, promovendo uma gestão eficaz das perícias administrativas na autarquia previdenciária, as judicializações teriam menor expressão. A forma como o Estado tem atuado não parece adequada, uma vez que se observa o aumento dos processos judiciais previdenciários e consequentemente a necessidade da realização de perícias judiciais. Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

O PL que teve início em 23/07/2020, recebeu emendas para modificar o prazo de vigência da Lei para prolongar a cobertura de pagamento dos honorários periciais pelo Executivo, para imputar ao segurado o pagamento da perícia médica no início do processo, alterar o critério de gratuidade processual diferenciado para os processos que tratam do benefício por incapacidade, criando mais de um critério na legislação. Tal pretensão, fere o princípio de acesso à justiça, atribui requisito discriminatório ao processo previdenciário em relação aos demais processos, em afronta ao estabelecido no artigo 98 e ss. do Código de Processo Civil. A ausência de gestão orçamentária, traduz a ingerência da tutela administrativa e judicial, a falta de sensibilidade social, penaliza os mais humildes e sem meios de prover seu sustento, na maioria das vezes, em situação de completa vulnerabilidade. O Desembargador Paulo Afonso Brum Vaz (2021), descortina, através de informações do CNJ, que atualmente, os benefícios por incapacidade e assistenciais, estão entre o maior contingente de processos previdenciários: “Segundo dados do CNJ, o acúmulo de recursos em ações previdenciárias é o maior responsável pelo congestionamento de processos na Justiça Federal: 40% da demanda nos cinco Tribunais Regionais Federais diz respeito a litígios em que é parte o Instituto Nacional do Seguro

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Social (INSS). ( VAZ, 2021)

dos relatórios gerenciais extraídos

Vale destacar ainda, que cabe ao Conselho Federal da Justiça, de acordo com a Resolução n.º CJF-Res-2014/00305 de 07 de outubro de 2014, dispor:

do Sistema AJG/JF, sem prejuízo

“sobre o cadastro e a nomeação de profissionais e o pagamento de honorários a advogados dativos, curadores, peritos, tradutores e intérpretes, em casos de assistência judiciária gratuita, no âmbito da Justiça Federal e da jurisdição federal delegada e dá outras providências.”

especiais federais, bem como aos

No artigo 13 da mesma Resolução, encontra-se previsto que os dados extraídos dos relatórios do Sistema AJG/JF tem como objetivo, subsidiar a elaboração orçamentária, o que não parece ter ocorrido, posto que as perícias previdenciárias e assistenciais já estão sendo sobrestadas:

constantes

“Art. 13. Sem prejuízo de sua utilização para outros fins lícitos, os relatórios gerenciais extraídos do Sistema AJG/JF destinar-se-ão aos seguintes objetivos: I - Controle das despesas realizadas com recursos destinados à assistência judiciária gratuita; II

-

elaboração

orçamentária

de

dos

previsão exercícios

financeiros seguintes. (g.n.) § 1º O controle de despesas realizadas com

recursos

da

assistência

judiciária gratuita será feito pelas corregedorias regionais por meio 206

da possibilidade de solicitação de informações

complementares

às

seções judiciárias, varas e juizados juízes de Direito que atuem na jurisdição federal delegada. § 2º As corregedorias regionais extrairão, mensalmente, relatórios gerenciais

das

solicitações

que

extrapolarem os valores máximos nas

identificando-as

tabelas por

anexas, juízo

e

profissional, especialmente para fins de controle das exceções previstas no art. 28, parágrafo único, desta resolução. § 3º Para elaboração da previsão orçamentária, o Conselho da Justiça Federal poderá solicitar aos tribunais regionais

federais

informações

complementares às extraídas do Sistema AJG/JF. O atraso no sancionamento do Projeto de Lei, já tem refletido em decisões no judiciário, causando um imenso represamento no resultado dos processos em virtude da ausência de orçamento para o pagamento dos experts, conforme segue: “PROCEDIMENTO DO JUIZADO ESPECIAL CÍVEL Nº 0004071-67.2021.4.03.6312 / 1ª Vara Gabinete JEF de São Carlos 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


AUTOR: P.D.G.P. REU: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL – INSS D E C I S Ã O - Vistos em decisão. Concedo os benefícios da justiça gratuita, lembrando à parte autora, porém, que tal decisão pode ser reformada a qualquer tempo, caso comprovada a falsidade da declaração de pobreza, sujeitando-a, ademais, às penas da lei (art. 299 do Código Penal). Esclareço à parte autora que, em virtude da ausência de pagamento para perícias designadas após 23 de setembro de 2021, os peritos que atuam neste Juizado solicitaram o bloqueio de suas agendas, acarretando a impossibilidade na marcação de perícias. Sendo assim, no momento, não há disponibilidade de peritos em nenhuma das especialidades dentre aqueles atuantes no quadro deste Juizado. A presente situação foi comunicada pela Presidência do Conselho da Justiça Federal, ao que este Juízo foi informado que, quanto às nomeações de peritos ocorridas após 23/9/2021, os pagamentos respectivos somente poderão ocorrer caso seja aprovada lei autorizando a continuidade do pagamento pelo Executivo, tal como previsto no Projeto de Lei n. 3.914/2020, em tramitação no Senado Federal. Assim, fica a parte autora ciente de que não há previsão para a designação da

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perícia requerida nos autos. Indefiro o pedido de intimação do INSS para juntada da cópia integral do Processo Administrativo. Providências do Juízo só se justificam diante da impossibilidade da obtenção dos documentos ou da expressa negativa do órgão em fornecê-los e havendo, ainda, a possibilidade de obtenção dos referidos documentos por meio eletrônico. Num. 150365490 - Pág. 1 Publique-se. Intime-se. Registrada eletronicamente.”(g.n.) Verifica-se que uma política pública que visa proteger o cidadão em caso de vulnerabilidade social está sendo aplicada em detrimento de problemas orçamentários. O trabalhador ao longo de sua vida, recolhe para os cofres com o objetivo de que em caso de necessidade venha a pedir a proteção Estatal, vê-se com as portas fechadas por duas vezes. O Estado não cumpre o seu papel de proteção quando suspende injustamente, administrativamente o benefício do cidadão e mais uma vez, quando deveria cumprir o seu papel discricionário e não o faz porque encontra-se com sua estrutura deficitária em decorrência de orçamento, deixando aquele que deveria ser protegido a própria sorte, ainda mais em período de pandemia. 3. EXCLUSÃO DOS BENEFÍCIOS APOSENTADORIA POR TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO AO DEFICIENTE E O LOAS – UM EQUÍVOCO NA REDAÇÃO 207


OU UMA INTENCIONAL EXCLUSÃO NO PL 3914/20 O artigo 5.º, XXXV da Constituição Federal prevê o ingresso em juízo para assegurar direitos ameaçados, garantindo o princípio da inafastabilidade da jurisdicional (art. 5º XXXV) , da gratuidade judicial (art. 5º, LXXIV) , do devido processo legal, bem como o princípio do acesso ao judiciário. Em que pese tais garantias constitucionais, está evidente as restrições ao direito de defesa de direitos fundamentais contidos no PL. Chama atenção no texto do PL em debate, que a atenção é voltada para a garantia da perícia médica (g.n.), e quando se trata de benefícios previdenciários e assistenciais, não é concebível que os segurados sejam submetidos apenas às perícias médicas, sem sequer submetê-lo à avaliação social, face ao caráter que o próprio benefício exige. Tal compreensão se solidifica, quando as perícias foram consideradas pelo CNJ em sua Resolução 317/2020, como atividades essenciais, em razão dos efeitos da crise ocasionada pela pandemia do Coronavírus. E por perícia judicial, não se pode restringir, apenas como perícia médica. Por meio desta Resolução, em seu artigo 1.º, paragrafo 5.º, o CNJ estabeleceu as formas de realização da perícia socioeconômica, por meio eletrônico,

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de forma a garantir e contemplar a sua realização, mesmo naquela situação de pandemia acirrada. Verifica-se que não há um consenso sobre quem deve fazer a avaliação pericial biopsicossocial: • os peritos médicos entendem que por biopsicossocial, é a forma de se avaliar o contexto social e laboral do segurado por ele mesmo, o perito médico; • a legislação é clara, que perícia biopsicossocial contempla a necessidade de aferir a realidade do individuo de modo complexo e interdisciplinar; • já os magistrados necessitam compreender essa nova perspectiva, da necessidade de dois profissionais distintos, e não, entender como suficiente a respostas de quesitos sociais respondidos pelos médicos peritos; Como bem destaca o renomado Jose Ricardo Costa Caetano, em sua obra Perícia Biopsicossocial: “Por certo que os peritos médicos não possuem habilidades e competências, muito menos disposição, para enfrentar a realidade social, in locuo, e fazer um detalhado estudo da realidade concreta do cidadão, em sua mediação com o meio ambiente em que vive, suas interpelações pessoais e sociais, sua interação com a comunidade, o acesso às demais políticas de proteção social, suas atitudes, entre outros elementos de igual importância neste contexto. 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


Diante disso, não temos nenhuma dúvida de que a avaliação da incapacidade/ deficiência somente pode ser conhecida e avaliada mediante uma análise mais holística, inter/multidisciplinar, ou seja, biopsicossocial.” Desta forma, o termo “perícia médica” deve ser substituído por “perícia judicial”, ficando à cargo do magistrado, a designação da especialidade mais adequada ao caso em debate., e assim, garantir a cobertura dos processos onde dependem de avaliação social, ou biopsicossocial. 4. A CRESCENTE JUDICIALIZAÇÃO NOS PROCESSOS PREVIDENCIÁRIOS: E de notório conhecimento que o destino de muitos cidadãos depende de uma perícia administrativa ou judicial. A prova pericial é necessária tanto quanto tem sido insatisfatória. Assim, cabe ao perito possuir expertise em determinada área de atuação, exercendo o encargo de auxiliar do magistrado com seu conhecimento técnico. Deve ser o Perito quem colaborará com o juízo, analisando o caso concreto à luz da ciência a qual pertence. É preciso reformular essa modalidade de prova, as perícias, pois ela é a base de maior convicção do Juízo, e ela não pode ser mais tratada como uma chancela, mas é preciso apurar a dignidade do ser humano que está por trás de um segurado.

Mas em que pese não haver universalidade de pensamento sobre os critérios especificados pelo PL, existe unanimidade no sentido que a não designação da perícia judicial, a suspensão do processo, é sinal de obstaculização dos direitos do segurado, é sinal de abandono social, pois os benefícios previdenciários são fonte de alimentos e de sobrevivência. É importante trazer à tona, as origens da crescente judicialização dos processos previdenciários e assistenciais. E nessa linha, o renomado Desembargador Paulo Afonso Brum Vaz, nos ensina: No relatório A judicialização de benefícios previdenciários e assistenciais, elaborado pelo Instituto de Ensino e Pesquisa (INSPER), por encomenda do Conselho Nacional de Justiça, sobre as causas, os problemas e as políticas públicas indicadas como soluções, apresentado em 20 de outubro de 2020, durante a 320ª sessão ordinária do CNJ, apontou-se o que já se sabia. Conflitos sobre direitos da seguridade social representam mais da metade dos novos processos que ingressam na Justiça brasileira. A pesquisa revelou que a intensidade e o perfil da judicialização da seguridade social

estão

relacionados

tanto

às

condições socioeconômicas do local, como ao nível de renda e desenvolvimento do mercado formal de trabalho. Além disso, o aumento do tempo médio de análise de benefícios incentiva a mais nova modalidade de judicialização contra

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a demora da autarquia em responder às solicitações dos segurados. A demora é relacionada à redução do quadro de pessoal técnico e de procuradores do INSS. A pesquisa é muito importante porque coletou dados em uma amostragem de 9.253.045 processos administrativos e 593.772 concessões em decorrência de decisão judicial do período entre dezembro de 2018 e dezembro de 2019, assim como dados administrativos agregados para os dez anos anteriores; dados de gestão processual da Justiça de 9.027.825 processos judiciais de 2015 a 2019; textos de decisões judiciais referentes a 1.334.814 processos de 2015 a 2018; e entrevistas semiestruturadas com 47 representantes dos sistemas de justiça e previdenciário.” Os números que envolvem os benefícios previdenciários merecem destaque, desde a fase administrativa até a judicial, como bem destacou Paulo Brum Vaz em recente artigo: “Em relação ao atraso no exame ‘’dos pedidos na via administrativa, estimase que hoje existam cerca de 2 milhões de pedidos represados no INSS, sendo 1,3 milhão com mais de 45 dias. Esse” número foi impulsionado pela reforma previdenciária de 2019 (EC nº 103), que desencadeou verdadeira corrida ao INSS para diversos fins: requerimento de certidões, benefícios, contagem de tempo de contribuição, etc. Depois, a partir de março de 2020, a pandemia da COVID-19 fez com que esses números subissem

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assustadoramente com o fechamento do INSS para atendimento presencial.” E os números não param por aí, como citado no mesmo artigo, pois a cada ingerência da autarquia, reflete na consequente judicialização, contrariando o estigma de que a questão é orçamentaria: “É paradoxal a situação da judicialização para poder judicializar, a chamada “dupla judicialização”. Diante da demora do INSS em analisar na via administrativa os requerimentos formulados, o segurado é obrigado a impetrar mandado de segurança para suprir a omissão, porquanto a resposta administrativa é necessária, segundo um entendimento a partir da necessidade de prévio requerimento reconhecida pelo STF no precedente vinculante do RE 631.240, Tema 350, julgamento concluído em 2016. Por conta disso, estima-se que houve um incremento médio em torno de 300% nos mandados de segurança impetrados na Justiça Federal. Dados do Tribunal Regional Federal da 3ª Região mostram que, em 2019, esse aumento seria de 284%, passando de 4.832 para 16.805. O testemunho mais evidente da judicialização da Previdência Social está em que as concessões na via judicial têm aumentado consideravelmente. Para alguns benefícios, oito (8) entre dez (10) segurados obtiveram o benefício judicialmente. Esse reflexo da judicialização, tal como ela mesma, revela uma patológica inversão dos papéis funcionais do INSS e do Poder Judiciário. A

partir

da

análise

realizada

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até o momento, verificamos que o gargalo da desproteção social alarga significativamente. A conduta estatal é protetiva ou de exclusão? Depreendese, então, que há um descaso com a população necessitada. Estamos diante de problemas sociais e jurídicos concretos, temos argumentos suficientes para inaugurar um estudo profundo, trazer à debate, os percalços trazidos pela ineficaz malha pericial previdenciária e sua relação orçamentária. 5. CONCLUSÃO O bem jurídico tutelado pelo direito previdenciário é a vida, a saúde, a subsistência imprescindível para a sobrevivência da população. Os benefícios previdenciários têm caráter alimentar, necessitam, portanto, de celeridade processual. Constata-se ao longo do trabalho a importância da realização da prova pericial, o quanto ela é importante para o deslinde da capacidade laboral, tanto no âmbito administrativo como judicial. A realização da prova pericial é essencial para que possa elucidar alguns fatos técnicos, como por exemplo a capacidade ou incapacidade laboral do trabalhador, ela servirá de apoio ao magistrado, para que ele se sinta seguro na hora de julgar. A limitação trazida no texto do PL, acerca da realização de uma única perícia, se aprovado nesses temas, deixando a cargo de uma decisão excepcional de uma ou de qualquer instância julgadora, cerceia o jurisdicionado não somente

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ao acesso ao Judiciário como também à Justiça propriamente dita. Há de se indagar, ainda, como serão realizadas as perícias biopsicossociais já constantes na LC n. 142/2013 (Aposentadoria Especiais do Deficiente), bem como dos benefícios assistenciais da LOAS (Lei n. 8742/1993). Há de se perguntar, ainda, acerca do descumprimento da Lei n. 13146/2915 (Estatuto do Deficiente), que em seu artigo segundo, parágrafo segundo, aponta a perícia biopsicossocial como forma de verificação da incapacidade duradoura (dois anos ou mais). Estas são algumas das indagações e reflexões que queremos trazer à baila, pois estarão em jogo a vida de milhares de jurisdicionados, à maciça parcela de vulneráveis e hipossuficientes, que necessitam unicamente dos benefícios por incapacidade e outros similares, para proverem seus sustentos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRUM VAZ, Paulo Afonso. A Judicialização dos benefícios previdenciários por incapacidade: da negativa administrativa à retração judicial. Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4.ª Região n.º 18, Páginas 11-32, 28-07-2021. CAETANO COSTA, Jose Ricardo. Perícia Biopsicossocial Aplicabilidade, Metodologia, Casos Concretos, 1. Ed., Ed. Juruá, 2018.

211


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CRIMES PREVIDENCIÁRIOS: LESIVIDADE X ADEQUAÇÃO Ricardo Alves Bento156

RESUMO O Direito Penal brasileiro reconheceu a necessidade de criminalização das condutas lesivas cometidas em prejuízo da seguridade social, buscando proteger a previdência social, assistência social e saúde no Estado Democrático de Direito. Inicialmente, traçaremos uma evolução paradigmática da lesividade das condutas típicas segundo o mandato constitucional de criminalização, reconhecendo o assento constitucional da proteção deste bem jurídico. Desta forma, faremos uma necessária adequação destes crimes na proteção dos bens jurídicos-penais, para que se cumpra a proteção que a Constituição Federal determinou. Ao final, discorrendo sobre incursões na norma penal incriminadora, objetiva a pretendida harmonia entre a lesividade e adequação do tipo penal, inclusive com incursões desta modalidade delitiva no Direito Processual Penal. PALAVRAS-CHAVE Crimes previdenciários – Direito Penal – Seguridade Social – Necessidade – Adequação.

156 Advogado. Especialista, Mestre e Doutor em Direito Processual Penal – PUC/SP. Professor Assistente do PósGraduação da PUC/SP na área de Direito Processual Penal. Professor da Escola Paulista da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Coordenador de Combate à Corrupção da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional São Paulo (2019/2020). 212

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1. INTRODUÇÃO O sobre

presente legitimação

Trataremos artigo

tratará

constitucional

da

criminalização de condutas que violem a seguridade social, reconhecidamente, um bem jurídico penal que deve ser tutelado no Estado Democrático de Direito brasileiro. Inicialmente,

considerando

a

dignidade da pessoa humana como fonte constitucional

para

a

criminalização

dos crimes contra a seguridade social, firmando o fundamento humanista como paradigma a construção dos valores da sociedade brasileira. Será valorada a base normativa da lesividade supra individual dos crimes previdenciários, buscaremos elementos críticos para a busca da adequação da proteção do Direito constitucional previsto no Artigo 194 da Constitucional Federal. Nos

crimes

previdenciários,

trataremos das variáveis inseridas no tipo penal que possam impossibilitando a proteção efetiva dos bens jurídicos penais, em paralelo com o exercício do direito de defesa dos acusados desta forma delitiva. Ainda mais que pela tipificação da conduta lesiva a seguridade abarcada em contexto de norma penal em branco, descumpre o mandamento constitucional de proteção dos bens mais essenciais à coletividade, visto que depende de normatização

administrativa

definição da tipicidade delitiva.

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para

a

do

princípio

acerca da

da

aplicação

insignificância

nos

delitos previdenciários, demandando ao legislador, a determinação de critérios normativos definidos para tal fim, sob pena de criação de tipos penais indefinidos, restringindo a pretensão punitiva estatal. Ao final, apresentar indagações acerca da utilização da norma penal incriminadora

como

política

de

prevenção geral e específica delitiva, como paradigma existente na criação de formas delitivas dignas para a deflagração da instrução criminal. Reconhecendo no Direito Penal como última norma de proteção de sociedade em face da criminalidade crescente, que demanda a instrumentalização da norma penal incriminadora para que atenda aos princípios informadores da preservação dos bens jurídicos, evitando assim que seja valorado como meio para recolhimento exclusivo de recebimento de contribuições. Inclusive fazendo incursões no processo penal descrito para exercício da punição de condutas penais previdenciárias e a eficácia da decretação de medidas cautelares em sede de investigação. Desta forma, buscando a eficácia no reconhecimento da lesividade das condutas cometidas contra a previdência social, abarcando a defesa da coletividade em cumprimento com o direito constitucional preservado em prol da coletividade. 213


2. MANDATO CONSTITUCIONAL DE CRIMINALIZAÇÃO DE CONDUTAS DE INTERESSE DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. NECESSIDADE DE REVISITAÇÃO PERIÓDICA.

valorando se ainda estão inseridas no

A Constituição Federal brasileira de

previdenciários, se apresenta necessária

1988 concretizou direitos, garantias e liberdades constitucionais como ponto de partida do cumprimento da priorização do fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana. Em

verdadeiro

declaração,

trinômio

de

instrumentalização

e

liberdades dos cidadãos brasileiro, na busca da proteção constitucional. Neste

arcabouço

normativo-

constitucional, reconhecemos um amplo campo de preservação legal do cidadão como destinatário principal da norma fundamental na construção do Estado de Direito. Neste reconhecemos

Respeitamos

a

conceituação

residual no Direito Penal, porém diante a lesividade da conduta dos crimes a adequação para cumprimento de sua missão constitucional. No

contexto

atual,

se

releva

necessário a revisitação destes bens, afastando os crimes fora absorção na realidade

constitucional,

e

inseridos

novas condutas dentro das expectativas dos cidadãos. Visto que condutas que por ventura se apresentavam como crimes em 1940, podem não ter a mesma lesividade encontrada no ano de 2021. Podemos citar, por exemplo, o delito de adultério que é reconhecido, à época como forma de proteção de eventual bem jurídico, que

contexto no

normativo,

Direito

Penal

o

instrumento normativo eficaz com função primordial da proteger bens jurídicos mais fundamentais para a convivência harmônica entre as pessoas.

no contexto atual não se encontra como candente de ser criminalizada, diante total falta de harmonia com a realidade. Nos permitimos a considerar a natureza normativa dúplice no Direito Penal, primeiro a preservar condutas e bens

A missão inicial do Direito Penal

jurídicos em decorrência da prevenção

na

Constituição

geral da norma penal incriminadora. E a

os

mandatos

Federal

é

cumprir de

segunda, com missão de punir os infratores

criminalização de condutas, inicialmente

na lei penal, cumprindo assim a prevenção

visando a proteção das pessoas. Tal

específica da norma penal.

constitucionais

garantia de tipificar condutas lesivas a bens jurídicos, impõe ao legislador a 214

conceito de tensão e necessidade social.

revisitação

periódica

dos

crimes,

Precisamos outorgar ao Direito Penal a missão primordial no ordenamento

38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


jurídico

pátrio,

como

uma

barreira

A

criminalização

delitos

normativa final da sociedade, evitando

previdenciários

que este seja utilizado de forma indistinta

seguridade social enquanto bem jurídico

e não comensurado.

de interesse supra individual no Estado

Recordando

que

sempre

que

buscou

dos

proteger

a

Democrático de Direito.

idealizamos que determinada conduta

Nos permitimos a tecer considerações

deve ser criminalizada, devemos ter como

acerca das variáveis inseridas no tipo

ponto de partida o reconhecimento e

penal, que não outorgam segurança

valoração inicial de que existe assento

jurídica, seja a sociedade ou para o próprio

constitucional para tal tipificação.

acusado da prática delitiva, visto que,

Finalmente, para que uma conduta seja criminalizada deve ter um mandato constitucional de que tal bem seja criminalizada,

observando

o

devido

processo legislativo.

calcada em conceitos penais variáveis, não atingem a missão constitucional que lhes foi outorgada. Uma constatação que deve ser feita é acerca da inclusão dos crimes previdenciários no contexto do Código

3. CRIMES PREVIDENCIÁRIOS. LEI 9983/2000. INCLUSÃO NO CÓDIGO PENAL. NECESSIDADE DE HARMONIZAÇÃO DO CONTEÚDO DE DIREITO MATERIAL. A edição de normas de natureza penal deve percorrer, indubitavelmente, o devido processo legislativo que obriga aos seus autores a necessária harmonia das normas penais constitucionais e infraconstitucionais. de condutas deve estar solidificada na lesividade dos bens jurídicos penais pela

Constituição

as normas de direito material. Ora

se

o

legislador

infraconstitucional cumpriu o mandato constitucional

de

criminalização

de

condutas que violem o bem jurídico descrito pela Seguridade Social, deveria analisar

preceitos

normativos

para

evitar conflitos e ocorrências de crimes de dependam de regulamentação. Ousamos ainda mencionar que se

A necessidade de criminalização

emanadas

Penal e sua necessária harmonização com

essas condutas estão inseridas no Código Penal, devemos analisar de igual forma sua harmonia com o Código de Processo Penal.

Federal

O que pode ser analisado pela

brasileira de 1988, para a contextualização

leitura dos tipos penais de crimes

da infração penal e suas características no

previdenciários, dentre eles, o crime

arcabouço normativa nacional.

de apropriação indébita previdenciária,

Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

215


o crime de inserção de dados falsos

expressamente no Código Penal.

em sistema de informações, o crime de

sonegação

de

contribuição

previdenciária é a evidente tentativa do legislador que caso ocorram fatos que possam impedir o prosseguimento da ação, que seja essa obstada. É compreensivo que seja mitigado o direito de punir estatal em determinadas condutas, porém é inegável que a utilização não estratégica do Direito Penal certamente conduz ao descrédito da prevenção geral da norma penal incriminadora, ressaltando exclusivamente a intenção arrecadadora do legislador, não priorizando a eficácia da preservação dos bens jurídicos essenciais aos cidadãos no Estado Democrático de Direito. Ao final, o legislador migrou do conceito inicialmente descrito na Lei 8212/91

que

“seguridade expressão

utilizava

social”,

para

“previdência

a

expressão abarcar

social”,

a em

A falta de caracterização completo do tipo penal, gerando ocorrência de norma penal em branco, descumpre o preceito constitucional da proteção da seguridade social. 4. ESTELIONATO PREVIDENCIÁRIO E APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. Um questionamento que surge com grande frequência é fato do legislador constitucional tendo reconhecido como fonte normativa descrita no Artigo 194 da Constituição Federal, e se poderia se aplicar o princípio da insignificância nos delitos de estelionato previdenciário. A natureza supra individual das condutas descritas no delito do estelionato previdenciário, destaca o grande número de pessoas que são lesadas em decorrência da prática individual do agente infrator.

princípio, menos abrangente. Melhor

Neste

apresentadas

técnica legislativa seria a preservação da

essas premissas de lesividade descrita,

expressão “seguridade social” visto sua

se discute acerca da aplicação

maior abrangência.

princípio da insignificância nestes casos,

Ainda pelo fato de ser crimes caracterizados por ser norma penal em

do

reconhecendo, em princípio, a pequena ofensividade desta conduta.

branco, que depende de complementos

216

sentido,

Nos

permitimos

a

discorrer

e regramentos feitos pela Autoridade

no

Administrativa poderá determinar o valor

insignificância ou pequena lesividade da

mínimo para ajuizamento de execuções

conduta do estelionato previdenciário,

fiscais,

de

haja vista que tal recurso eventualmente

extinção de punibilidade, não prevista

desviado comporia um grande acervo

como

questão

passível

sentido

da

impossibilidade

da

38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


financeiro destinado ao custeio coletivo

previdenciário se revela composta por

da seguridade social.

alto grau de reprovabilidade, visto que,

A insignificância implica na ausência de tipicidade delitiva, querendo crer que, não seria essa a intenção do legislador constitucional. Ousamos afirmar pela impossibilidade do

reconhecimento

do

estelionato

privilegiado previsto no §1º do Artigo 171 em detrimento do previsto no §3º do Artigo 171 do Código Penal, haja vista que, outras formas de possibilidade de

o prejuízo financeiro concretizado pelo erro e fraude da conduta, implicarão em representativo desfalque no acervo financeiro do sistema previdenciário. A

aplicação

insignificância

do do

princípio

da

estelionato

previdenciário deve o montante financeiro como ínfimo para o reconhecimento de tal benesse penal e não depender da critérios administrativos.

que o agente seja submetido a instrução

O Superior Tribunal de Justiça, em

criminal já foram oferecidas pelo legislador,

Acórdão de lavra da eminente Ministra

justamente, para que somente os casos

Maria Thereza de Assis Moura registrou

efetivamente substanciais cheguem em

que somente pode ser reconhecido o

fase de sentenciamento pela Autoridade

estelionato

Judicial competente.

Artigo 171, §1º do Código Penal, se o

Os prejuízos suportados na seguridade social devem ser mensurados de forma meticulosa, sem prejuízo de possibilidade de pagamento até o oferecimento de denúncia, como anteriormente se discutia

privilegiado,

descrito

no

montante à lesão, ao tempo do crime, era inferior a um salário-mínimo à época dos fatos157, diferentes dos critérios administrativos elencados para início de uma execução fiscal.

no caso de pagamento de obrigação

Neste sentido, segundo orientação

financeira mediante fraude até a acusação

dos Tribunais Superiores em casos de

formal proposta pela titular da ação penal.

montantes superior ao descrito acima, não

A insignificância penal deve ser

se aplicaria o princípio da insignificância,

aplicada

em

ocasiões

de

pequena

reprovabilidade de conduta do agente, que consumada sua conduta lesiva, possa reparar o prejuízo ou dano causado, podendo ainda ser valorado a implicação

não trancando a ação penal contra o acusado, posto que, a conduta descrita no estelionato previdenciário ofenderia patrimônio público, a moral administrativa e a fé pública.

financeira do bem jurídico penal violado. A violação descrita no estelionato

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157 Superior Tribunal de Justiça, 6ª Turma, RHC 30.225, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJE 27/09/2013). 217


Concluímos tecendo a respeitosa e

Observamos que, o Juiz de Direito

humilde crítica que, segundo a disposição

pode deixar de aplicar a pena, se o acusado

da norma penal específica, enquanto

for primário e de bons antecedentes,

norma de natureza material, não está

desde tenha promovido o pagamento da

descrita a possibilidade de consideração

contribuição social previdenciária, e ainda

do critério do salário-mínimo para a

ao valor determinado pela previdência

aplicação da citada benesse penal.

social como mínimo para ajuizamento da execução fiscal.

5. NECESSIDADE DE HARMONIZAÇÃO DOS CRIMES PREVIDENCIÁRIOS E O PROSSEGUIMENTO PERSECUTÓRIO COM O PROCESSO PENAL. A

intenção

do

legislador

infraconstitucional ao abarcar os crimes previdenciários

no

Código

Penal,

buscou atingir determinada harmonia legislativa evitando assim interpretações divergentes, possivelmente ocorrida em

situações de

permitiremos em

suspensão

persecutório

que do pode

a

a

apresentar possibilidade

prosseguimento implicar

em

irreversibilidade das garantias do sujeito, quando iniciada a investigação policial. Como mencionado, a Lei 9983/2000 inseriu as condutas lesivas à Previdência Social no rol de crimes descritos no Código Penal. Devendo haver a coerência do legislador para que reconhecendo a possibilidade de reversão da acusação até o oferecimento da denúncia, não sejam decretadas medidas que se revelem irreversíveis como veremos.

218

que, iniciada a investigação policial pela respectiva Autoridade, este pode segundo seu critério, observado os indícios de autoria e materialidade, determinar o indiciamento do acusado, busca e apreensão, e eventual, diante a possibilidade de continuidade delitiva, até mesmo a prisão preventiva. Tais

medidas

são

de

natureza,

inegavelmente, severas que podem ser

diplomas jurídicos distintos. Nos

Neste cenário, devemos considerar

determinadas segundo a peculiaridade do caso. Devemos avaliar que, pela leitura dos tipos penais, é evidente que o legislador prevê hipóteses para que a ação penal não prossiga nos seus regulares termos seguintes. Pensamos

que,

diante

a

provisoriedade do prosseguimento da ação penal, e condições para que ocorra a extinção da punibilidade do agente caso efetue à previdência social, deve igual forma, deve ser ponderada a determinação do indiciamento que apresenta pouca contribuição a persecução penal, haja vista que, essa poderá ser objeto de punição, conforme demonstrado 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


Ainda mais grave no caso de

1. A Constituição Federal brasileira

decretação de prisão preventiva, no caso

elencou no Artigo 6º o direito do cidadão

de continuidade delitiva, possivelmente

brasileiro, de natureza social, a educação,

ocorrendo a prisão do agente até o

a saúde, a alimentação, o trabalho, a

oferecimento de denúncia, e diante o pagamento das contribuições até a denúncia, com sua colocação em liberdade.

moradia, o transporte, o lazer, a segurança, e a previdência social.

Pedimos permissão para apresentar o presente questionamento e oferecendo elementos baseados nos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, para que não ocorra o indiciamento e prisão preventiva em crimes previdenciários, ressalvada a hipótese de consunção penal com delitos de maior gravidade. Também nos crimes previdenciários deve ser ponderado que as medidas cautelares processuais penais, ainda que seja instrumentos estatais de persecução penal,

deve

também

proteger

e

2. Neste sentido, ficou declarado o direito a previdência social, como fonte de proteção jurídica normativa, dependendo da

instrumentalização

via

garantias

constitucionais para atingimento deste paradigma. 3. A ordem social prevista no título VIII, capítulo II da Carta Magna elencou a Seguridade Social como conjunto de ações e políticas para assegurar os direitos à saúde, à previdência e à assistência social.

preservação a liberdade tanto do acusado e da vítima, neste caso, a previdência

4. A criminalização dos crimes previdenciários atende ao destaque que

social.

o legislador constitucional outorgou ao tema previdência social, identificando

6. CONCLUSÃO

como bens-jurídicos penal de importância

A conclusão do presente artigo será

feita

de

forma

concatenada,

apta a demonstrar quais foram as abordagens feitas acerca do tema “crimes previdenciários”,

esperando

oferecer

argumentos para forte debate acerca da melhor estruturação dos referidos crimes e adesão ao preceito constitucional:

Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

aos cidadãos brasileiros. 5. Os crimes previdenciários inseridos no contexto da Lei 9983/2000, abarcados no corpo normativo do Código Penal, cumpre o mandato constitucional de criminalização, reconhecendo a natureza difusa deste delito, visto que, é financiada por toda a sociedade. 219


6. O custeio da seguridade social,

10.

Ao

necessidade

final, de

devemos criação

avaliar

em especial, a previdência social é o bem

a

de

um

jurídico penal protegido pelos crimes

microssistema legislativa para melhor

previdenciários, não impedindo que seja

proteger o bem jurídico da seguridade

submetido a uma revisitação periódica,

social, com conteúdo de direito material,

para melhor adequação entre o paralelo

processual penal e execução penal, sob

da lesividade e adequação.

pena, de como ocorrido atualmente, nos depararmos com tais incongruências.

7. A aplicação do princípio da insignificância nos crimes previdenciários, em princípio, depende da determinação da Autoridade Administrativa, do valor mínimo para que seja promovida execução fiscal, nos termos do inciso II do § 3º do Artigo 168-A e II do § 2º do Artigo 337-A ambos do Código Penal. 8. Por se tratar de norma pena em branco, cuja consumação dependente de

regulamentação

Administrativa,

a

da

Autoridade

tipicidade

fica

ao

critério desta, inclusive por decorrência ao reconhecimento da insignificância ao caso concreto. 9. As medidas cautelares decretadas pela

Autoridade

Policial

previdenciários

devem

circunstâncias

delitivas,

em

crimes

ponderar dentre

as elas,

autoria, materialidade, primariedade do agente e bons antecedentes, visto que, podendo ocorrer o pagamento do débito até o início da ação penal.

220

38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2ªed. 4ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2015.

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BACIGALUPO, Enrique. Princípios de derecho penal – parte general. 5ªed. Madrid: Akal edit, 1998.

BRUNO, Anibal. Direito penal. Rio de Janeiro : Forense, 1959.

JESUS, Damásio E. de. Direito penal. 8. ed. São Paulo : Saraiva, 1983

MACIEL FILHO, Euro Bento. Crimes Previdenciários. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004.

PIERANGELLI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. Bauru : Jalovi, 1980

Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

221


18

OS CÁLCULOS DA NOVA PENSÃO POR MORTE, APÓS A EC Nº 103/19

Viviane Masotti158

Palavras-chave: previdência, pensão por morte, retrocesso social, acumulação de 1. INTRODUÇÃO A previdência social tem por objetivo garantir a seus segurados a cobertura contra eventos que afetem sua capacidade de trabalho e, consequentemente, provoquem uma redução de ganhos, dificultando sua sobrevivência e de sua família. Como bem observado por Armando de Oliveira Assis (1963, p.64), (...) no seguro social há apenas uma coisa segurada: o salário do trabalhador, ou melhor, a remuneração obtida pelo segurado no exercício de sua profissão, visto que o seguro tem por missão fundamental assegurar os meios de subsistência das classes sociais mais desprotegidas. (...) Com tais medidas se tornou bem definida a finalidade do seguro social, que é a de proporcionar segurança econômica, diante das vicissitudes da vida, aos partícipes da sociedade que não dispõem de recursos suficientes para se resguardar através dos atos de previdência individuais e voluntários. 158 222

Advogada, Mestre em Direito das Relações Sociais PUC/SP 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


Essa garantia se concretiza através

ocorre em relação aos dependentes

da concessão de benefícios, ao próprio

possíveis beneficiários, o valor da renda

segurado ou a seus dependentes.

mensal e a duração do benefício.

O benefício de pensão por morte

A Lei nº 13.135, de 17 de junho

destina-se a proteger os dependentes dos

de 2015, trouxe alterações significativas

segurados do RGPS, contra a redução ou

nas regras de concessão e na duração

ausência de remuneração que permita

do benefício da pensão por morte, para

sua subsistência, após a morte do

o exercício dos direitos dos cônjuges ou

segurado instituidor. Como nos lembra

companheiros sobreviventes à proteção

Marisa Santos, “só entram em cena

previdenciária.

os dependentes quando sai de cena o

Vale

segurado. E isso acontece apenas em 2 situações: na morte ou no recolhimento à prisão.” (2011, p.278)

destacar

a

tentativa

de

redução também do valor da renda mensal inicial desse benefício, conforme redação da Medida Provisória nº 664, de 30 de

A proteção previdenciária obtida

dezembro de 2014, não aprovada quando

com a pensão por morte ultrapassa a

convertida na Lei nº 13.135. No entanto,

pessoa do segurado para atingir, de

ressurge das brasas com a Emenda

modo mais amplo, o conjunto de seus

Constitucional nº 103 de 12 de novembro

dependentes diretos, sua família. Com

de 2019 e provoca, em conjunto a outras

a substituição da remuneração, antes

regras novas, imenso retrocesso.

percebida pelo segurado no exercício de sua atividade profissional, pela prestação pecuniária, deveria ser possível manter a subsistência da família, que dependia economicamente deste.

Por ser um direito sempre em formação, que busca o atingimento dos

objetivos

do

bem-estar

e

justiça social, e em razão das variações que o risco social pode

É sobre este objetivo protetivo que

apresentar ao longo do tempo,

deve ser centrada qualquer análise das

nada obsta o desenvolvimento de

características do benefício de pensão por

mudanças

normativas.

morte.

para

sejam

A análise da evolução legislativa da Previdência Social nos mostra avanços e retrocessos da proteção aos direitos sociais. Na pensão por morte, essa variação

Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

que

Contudo,

alcançados

os

objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, dispostos no art. 3º da Lei Suprema, tais reformas devem ter caráter ampliador, numa função impeditiva do retrocesso social. (ZUBA, 2013, p. 139) 223


2. EVOLUÇÃO DA PROTEÇÃO CONTRA A MORTE DO SEGURADO

direito. Não era permitido acumular duas ou mais pensões e aposentadorias.

A Lei Eloy Chaves, publicada em 24 de janeiro de 1923, é considerada a base, o marco legal, da Previdência Social no Brasil, embora tivesse alcance restrito aos ferroviários.

O segundo marco legal da previdência no Brasil é o Decreto nº 3807 de 26 de agosto de 1960, a Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS).

Até agora, os funcionários das ferrovias do país não têm nenhuma garantia para seus dias de velhice e para arrimo de sua família em caso de morte. É verdade que em algumas companhias existem sociedades beneficentes com ação limitada a socorros médicos e medicamentos, mas isso não basta. Estamos em novos tempos. As classes menos favorecidas aspiram mui justamente a um maior quinhão de vida e de conforto. Cumpre atendê-las com espírito liberal e amigo159. (grifo nosso) O benefício de pensão por morte era garantido aos dependentes do segurado que tivesse mais de 10 anos de serviço nas empresas ferroviárias. Eram possíveis beneficiários os dependentes, na ordem da sucessão hereditária: a viúva, o viúvo inválido, os filhos e os pais e irmãs solteiras. O valor da pensão variava de 25% a 50% da aposentadoria recebida ou a que teria 159 https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/ arquivo-s/primeira-lei-da-previdencia-de-1923-permitiaaposentadoria-aos-50-anos Agência Senado, acessado em 27/11/2021 224

A partir desta lei houve a unificação nas regras dos planos de benefícios das diversas Caixas de Aposentadoria e Pensões, fundos de previdência organizados por categorias profissionais. Em 1966 houve a criação do INPS (Instituto Nacional de Previdência Social, atual INSS), agregando os institutos e centralizando a responsabilidade pela concessão e manutenção dos benefícios previdenciários. Na LOPS, a garantia previdenciária contra o risco “morte do segurado” dependia de carência, quantidade mínima de 12 (doze) contribuições. O valor da pensão era composto de uma parcela familiar igual a 50% (cinquenta por cento) do valor da aposentadoria que o segurado recebia ou da que receberia se estivesse aposentado por invalidez, mais a parcela de 10% por cada dependente habilitado, limitado a 5, ou seja, com o benefício limitado a 100% (cem por cento) da base de cálculo. Não era possível a percepção conjunta de duas ou mais aposentadorias, mas a LOPS nada previa quanto à acumulação de aposentadoria com pensão. Também nada previa sobre recebimento de duas pensões por morte.

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No caso de pensão por falecimento de cônjuge, não seria mesmo possível o acúmulo, pois na vigência da LOPS, a quota da pensão se extinguia por um novo casamento da mulher. Aliás, caso não houvesse novo casamento a pensão seria vitalícia. A justificativa para a pensão por morte vitalícia, paga ao cônjuge sobrevivente, era a menor participação da mulher no mercado de trabalho. A posição de “dona de casa” ou trabalhadora do lar, sem emprego formal que lhe garantisse o sustento por conta própria, e muitas vezes sem a necessária formação ou qualificação para uma inserção tardia nesse mercado, invocava tal vitaliciedade da proteção social. (….), la desaparición de una persona provoca una situación de necesidad en aquellas personas que tenían una dependencia económica con el sujeto causante 2. Se podría decir que en la actualidad este tipo de prestaciones, especialmente

la

viuvedad,

encuentra

se

pensión

Con ese planteamiento era posible presumir la existencia de una real situación de necesidad de la mujer cuyo marido fallecía, puesto que se producía el cese de los medios económicos con que éste atendía a la subsistencia de su mujer. De forma, que lo que se trata de proteger es la subsistencia de las personas que sobreviven al sujeto causante, y cuyas prestaciones denominamos de supervivencia. (ORRICO, 2009, p. 376) O mesmo raciocínio pode explicar os motivos pelos quais, desde a LOPS, a dependência econômica é presumida para os dependentes da classe I, os filhos menores ou inválidos, a cônjuge mulher e o cônjuge homem se inválido. Note-se que a presunção de dependência econômica está relacionada à capacidade de trabalho, ou seja, à capacidade de obtenção de renda para subsistência por conta própria. A Constituição Federal de 1988

de

menos

trouxe pelo menos

duas

alterações

justificada ya que las costumbres

positivas para os beneficiários da pensão

han variado sustancialmente. Y así,

por morte: não exigir que o dependente

la mujer hasta hace pocos años

do sexo masculino fosse inválido para ter

solía depender económicamente del

direito ao benefício e a garantia de que o

trabajo del marido y de ahí surgió la

valor mensal não seria inferior ao salário-

causa de la pensión de viudedad, ya que salvo excepciones (determinadas incapacidades del viudo), tal pensión estaba destinada exclusivamente a la viuda.

Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

mínimo. O piso mínimo no valor dos benefícios é,

provavelmente,

o

maior

avanço

alcançado na legislação previdenciária.

225


A Convenção nº 102 da Organização

§ 2º Nenhum benefício que substitua

Internacional do Trabalho, que define as

o salário de contribuição ou o

normas mínimas da seguridade social, foi

rendimento do trabalho do segurado

aprovada na 35ª reunião da Conferência

terá valor mensal inferior ao salário-

Internacional

mínimo.

do

Trabalho

(Genebra

— 1952), e entrou em vigor no plano internacional em 27 de abril de 1955. No Brasil ela foi aprovada através do Decreto Legislativo nº 269/2008 e ratificada em 15 de junho de 2009. No que se refere à garantia mínima de cobertura contra o risco morte, a Convenção traz a previsão de que o “total da prestação....deve ser suficiente para garantir à família do beneficiário condições de vida sadias e adequadas160”. Atualmente nenhum benefício que substitua a renda do segurado pode ter valor inferior ao salário-mínimo, conforme disposição constitucional e incorporado à legislação de benefícios como princípio previdenciário.

Constituição Federal, Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma do Regime Geral de Previdência

Social,

de

caráter

contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, na forma da lei, a:

160 https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/ WCMS_235192/lang--pt/index.htm Acessado em 27/11/2021.

226

Lei nº 8213/91, Art. 2º A Previdência Social rege-se pelos seguintes princípios e objetivos: VI - valor da renda mensal dos benefícios substitutos do salário-decontribuição ou do rendimento do trabalho do segurado não inferior ao do salário-mínimo; De certa forma, a garantia do salário-mínimo como piso do benefício previdenciário atende melhor as normas mínimas trazidas pela Convenção nº 102 da OIT. Resta garantir que o valor do saláriomínimo nacional seja suficiente para garantir a subsistência dos beneficiários de forma plena, com condições dignas. Mas esta é uma questão de política pública e econômica. A Lei nº 8213/91 regulamentou as garantias trazidas pela Constituição Federal de 1988, com destaque para: • O aumento de 50% para 80% na parcela relativa à família, permanecendo 10% para cada dependente, até o máximo de 2 (duas); • A redistribuição das cotas partes cessadas para os dependentes remanescentes, de modo a não permitir a redução do benefício.

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• A aposentadoria por invalidez passa a equivaler a 70% do salário de benefício, mais 1% desse salário para cada ano de contribuição do segurado, limitado a 30%. Se a invalidez fosse acidentária a alíquota seria de 100% do salário de benefício.

de seus beneficiários.

• O cônjuge sobrevivente não perde o direito ao benefício se casar novamente, mas não pode cumular duas pensões por morte de cônjuge, podendo optar pela mais vantajosa.

que o segurado “morto já aposentado”,

Dessa forma, desde a Lei nº 9.032/95, havia uma distorção na proteção previdenciária. O segurado “morto antes de aposentar”, possivelmente detentor de pouco tempo de contribuição, “valia mais” principalmente

se

optante

de

uma

aposentadoria por tempo de contribuição proporcional ou se sujeito à incidência de fator previdenciário no cálculo da

O valor da pensão variava de

renda mensal inicial. Ou seja, havia uma

acordo com o tempo de contribuição do

tendência de o segurado jovem, com

segurado caso ele não fosse aposentado.

menor tempo de contribuição ao regime

Pois a base de cálculo para a renda mensal

previdenciário, com filhos menores e

da pensão era a aposentadoria que o

cônjuge jovem, gerar um benefício de

segurado recebia na data do óbito, ou a

maior valor e por mais tempo, do que

aposentadoria por invalidez a que teria

geraria um segurado já aposentado com

direito nessa data.

idade superior.

A Lei nº 9.032/95 alterou as

Uma das questões muito criticadas

alíquotas utilizadas para o cálculo da renda

era o pagamento vitalício do benefício

mensal inicial dos benefícios de pensão

de pensão por morte para o cônjuge ou

por morte e de invalidez para 100% do

companheiro sobrevivente. A evolução

salário de benefício. Para situações em

da sociedade e das condições de saúde e

que havia apenas um dependente, um

longevidade do ser humano provocaram

acréscimo de 20% no valor do benefício,

algumas

em comparação com a legislação anterior.

concessão dos benefícios, com potencial

Outras alterações importantes na

para afetar a sustentabilidade do sistema

legislação previdenciária, ocorridas com a Emenda Constitucional nº 20 de 1998,

distorções

nas

regras

de

a longo prazo, entre eles a pensão por morte.

e a Lei nº 9876 de 1999, não afetaram o

Alguns fatos da sociedade atual que

benefício de pensão por morte. A não ser

afetariam a sustentabilidade do sistema

indiretamente, ao afetarem o valor das

seriam, por exemplo:

aposentadorias programadas que seriam base de cálculo no eventual falecimento Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

Segurado

aposentando

jovem e vivendo por mais tempo; 227


O aumento dos divórcios

com garantia de pagamento de pensão

participação ativa de ambos os cônjuges no mercado de trabalho.

alimentícia para um dependente cuja

Sin embargo, se trata de una presunción iuris et de iure, por cuanto que, exista o no la necesidad, al no precisarse su demostración, se presume que el cónyuge sobreviviente se encuentra en situación de necesidad independientemente de la realidad o no de la misma. De hecho, en nuestros días es más frecuente que se tenga más de una única fuente de ingresos debido a la creciente incorporación de la mujer al mundo laboral. Por ello, al producirse el fallecimiento de cualquiera de los cónyuges, el supérstite no se encuentra, la mayoría de las veces, en la situación de necesidad de otra época en que la Seguridad Social tenía que cubrir en la medida de sus posibilidades, las rentas que dejaba de aportar el sujeto causante. (ORRICO, 2009, p. 376)

expectativa de sobrevida pode também ser maior, posto que o art. 76, §2º, garante

ao

cônjuge

divorciado

ou

separado judicialmente ou de fato que recebia pensão de alimentos, igualdade de condições com os dependentes do inciso I do art. 16 (exceto na presunção de dependência econômica). • Os segurados com múltiplos casamentos, e famílias, gerando maior quantidade de dependentes, com faixas etárias diversas e consequente duração majorada do recebimento do benefício, tanto em relação a filhos quanto em relação a cônjuges/companheiros e excônjuges/companheiros com sobrevidas distintas Daí justificar-se na sustentabilidade do sistema a principal alteração no direito ao benefício de pensão por morte, trazida pela Lei nº 13.135 de 17 de junho de 2015, para os dependentes cônjuges e companheiros: a extinção da vitaliciedade do benefício e o estabelecimento de um prazo de duração de acordo com a idade do dependente na data de falecimento do segurado instituidor. Já que a dependência econômica de cônjuges e companheiros é presumida, a provisoriedade do direito tenderia a

compensar

principalmente 228

eventuais ao

A nova pensão por morte, definida pela Lei nº 13.135/2015, inaugura a provisoriedade do benefício para cônjuges e companheiros “jovens”, definindo faixas etárias com duração progressiva do benefício, mantendo um período de percepção para que o cônjuge sobrevivente possa manter-se enquanto se recoloca ou se reposiciona no mercado de trabalho.

distorções,

considerar

a

ou

Além disso, para o cônjuge companheiro como dependente, 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


condiciona o recebimento da pensão por prazo superior a 4 meses, ao cumprimento cumulativo de dois requisitos: 18 contribuições mínimas vertidas pelo segurado instituidor e mínimo de 2 anos de casamento ou união estável; à situação de invalidez ou deficiência do cônjuge/companheiro sobrevivente, ou à origem acidentária do óbito do segurado instituidor. A realidade do momento que vivemos é que as mulheres estão efetivamente inseridas no mercado de trabalho, apesar das dificuldades da chamada “jornada dupla”, já que permanecem presentes também na criação dos filhos e na administração da casa, conciliando seus papéis de mãe e trabalhadora. O fato de tornar-se viúva afeta o equilíbrio desta situação, inclusive porque atualmente é mais frequente que cônjuges/companheiros dividam as tarefas, tanto caseiras quanto da criação dos filhos. Mas provavelmente não seria motivo determinante para o afastamento do mercado de trabalho. Assim, nos parece que as alterações da Lei nº 13.135 são ajustes em busca da sustentabilidade do sistema, que não significariam um retrocesso da proteção social, a não ser que se discutam os prazos da duração do benefício de acordo com as faixas etárias dos cônjuges ou companheiros sobreviventes. Não se pode afirmar o mesmo das alterações trazidas pela Emenda Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

Constitucional nº 103/19, eivadas de verdadeiro retrocesso social. 3. A PENSÃO POR MORTE APÓS A EC103/19 A Emenda Constitucional nº 103 de 12 de novembro de 2019 é a maior reforma do sistema previdenciário dos últimos anos. Foram alterados desde as regras aquisitivas de direito às aposentadorias aos cálculos de renda mensal inicial. Regras de transição complexas foram criadas para a concessão de aposentadorias programadas. E em nosso tema de estudo, os benefícios de pensão por morte, regras excessivamente restritivas de direito estão vigentes desde 13 de novembro de 2019. A renda mensal inicial de um benefício previdenciário é calculada pela multiplicação de uma alíquota sobre uma base de cálculo (salário de benefício). A EC103/19 alterou a forma de cálculo do salário de benefício. Até então este era calculado de acordo com o art. 3º da Lei nº 9876/99 para os segurados filiados ao RGPS antes de sua vigência (regra de transição) e pelo art. 29 da Lei nº 8213/91 com a redação dada por esta lei para os segurados filiados a partir de 26/11/99. Art. 3o Para o segurado filiado à Previdência Social até o dia anterior à data de publicação desta Lei, que vier a cumprir as condições exigidas

229


para a concessão dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social, no cálculo do salário-de-benefício será considerada a média aritmética simples dos maiores salários-decontribuição, correspondentes a, no mínimo, oitenta por cento de todo o período contributivo decorrido desde a competência julho de 1994, observado o disposto nos incisos I e II do caput do art. 29 da Lei no 8.213, de 1991, com a redação dada por esta Lei. Art. 29. consiste:

O

salário-de-benefício

II - para os benefícios de que tratam as alíneas a, d, e e h do inciso I do art. 18, na média aritmética simples dos maiores salários-de-contribuição correspondentes a oitenta por cento de todo o período contributivo. § 2º O valor do salário-de-benefício não será inferior ao de um saláriomínimo, nem superior ao do limite máximo do salário-de-contribuição na data de início do benefício. Dentro do período básico de cálculo, equivalente a todo o período contributivo, ou ao período que vai de julho de 1994 até a data de início do benefício, era feita a média no mínimo dos 80% maiores salários de contribuição (após a aplicação da correção monetária garantida pelo art. 201, §3º da

230

Constituição Federal). Com essa forma de cálculo era possível desconsiderar os 20% menores salários de contribuição nesse período e eliminar distorções no histórico contributivo causado por vínculos em que a remuneração era baixa. Estes salários eram desconsiderados no cálculo da média, mas ainda eram considerados tempo de contribuição. A EC103/19 definiu como período básico de cálculo o período contributivo “desde a competência julho de 1994 ou desde o início da contribuição, se posterior àquela competência”. E determinou que o salário de benefício equivale à média de todos os salários de contribuição existentes dentro do período básico de cálculo. Não há mais a previsão de desconsiderar os menores salários de contribuição como na legislação anterior. O que tende a resultar em uma base de cálculo inferior. Estamos analisando a nova pensão por morte, após a EC103/19. Então importa pensar qual será a base de cálculo das pensões com fato gerador, o óbito do segurado, a partir de 13/11/19. Teremos 3 situações possíveis: 1. Segurado instituidor aposentado com base em direito adquirido antes de 13/11/19, independente da DER (data de requerimento do benefício). Base de cálculo será a aposentadoria obtida 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


de acordo com as regras anteriores a EC103/19 para as aposentadorias programadas. O salário de benefício calculado na forma da Lei n° 9876/99, com ou sem incidência de fator previdenciário, e com alíquotas variando de 70% a 100%, de acordo com o tipo de benefício.

se a incapacidade permanente for causada por acidente de trabalho, doença profissional ou do trabalho. Neste caso, se a morte for ocasionada por acidente de trabalho seria lógico usar como base de cálculo 100% do salário de benefício.

O cálculo da renda mensal da pensão 2. Segurado instituidor aposentado com direito adquirido após 13/11/19. A base de cálculo será a aposentadoria obtida pelas regras trazidas no art. 26 da EC103/19. O salário de benefício correspondente à média de todos os salários de contribuição do PBC, sem desconsideração, mas com eventual descarte dos menores (e consequente redução no tempo de contribuição). Com ou sem incidência de fator previdenciário (regra de transição do art. 17, sem limite de idade prevê o fator previdenciário). Com alíquotas a partir de 60% (em algumas regras não limitadas a 100%) do salário de benefício. 3. Segurado instituidor não aposentado na data do óbito. A base de cálculo será o valor do aposentadoria por incapacidade permanente a que teria direito. Com alíquota de 60% mais 2% a cada ano de contribuição que exceder 15 anos no caso da mulher e 20 anos no caso do homem. Com alíquota de 100%

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por morte tende a ser mais complexo a partir da EC103/19 porque envolve um cálculo prévio para os segurados instituidores não aposentados. E para os aposentados recomenda-se avaliar se há direito a alguma revisão de benefício, posto que aquele será base deste. Já teríamos acentuada redução dos benefícios pela alteração da forma de cálculo do salário de benefício. Mas o art. 23 da EC103/19 praticamente repete a forma de cálculo da pensão por morte da legislação vigente em 1960, a LOPS. Para os óbitos ocorridos a partir de 13/11/19, a pensão por morte concedida a dependente de segurado do Regime Geral de Previdência Social ou de servidor público federal será equivalente a uma cota familiar de 50% (cinquenta por cento) do valor da aposentadoria recebida pelo segurado ou servidor ou daquela a que teria direito se fosse aposentado por incapacidade permanente na data do óbito, acrescida de cotas de 10 (dez) pontos percentuais por dependente, até o máximo de 100% (cem por cento); exceto se houver dependente inválido ou com

231


deficiência intelectual, mental ou grave, quando será de 100%. As cotas por dependente cessarão com a perda dessa qualidade e deixam de ser reversíveis aos demais dependentes, preservado o valor de 100% (cem por cento) da pensão por morte quando o número de dependentes remanescente for igual ou superior a 5 (cinco). O tempo de duração do benefício é aquele definido na Lei nº 8213/91. No caso de pensão concedida para cônjuge ou companheiro, além do valor extremamente reduzido em função das novas regras, ainda há o tempo de duração. Para melhor compreensão sobre esta modificação, vamos inserir um exemplo: 1 - Homem, data de nascimento 28/06/94, contribuições no valor máximo em todo o período. Óbito em 10/11/2019. Tempo de contribuição na data igual a 20 anos e 2 meses. Não aposentado. Aposentadoria por invalidez a que teria direito seria calculada pelas regras da Lei nº 9876/99 equivalente aproximadamente a R$5.584,00. A pensão por morte equivalente a 100% da aposentadoria a que teria direito seria igual a R$5.584,00. 2 - Homem, data de nascimento 28/06/94, contribuições no valor máximo em todo o período. Óbito em 20/11/2019. Tempo de contribuição na data igual a 20 anos e 2 meses.

232

Não aposentado. Aposentadoria por incapacidade permanente a que teria direito seria calculada pelas regras do art. 26 da EC103/19 e equivalente aproximadamente a R$3.209,00. A pensão por morte equivalente à parcela familiar de 50% mais 10% por cada dependente, da aposentadoria a que teria direito. Supondo apenas a existência de cônjuge, a alíquota total seria de 60%, portanto seria igual a R$1.925,86. Seguindo o exemplo acima. Havendo apenas o cônjuge ou companheiro como dependente, deve-se considerar também: se há provas de casamento ou união estável há 2 anos antes do óbito e qual a idade do dependente. Se o casamento ou a união estável fossem recentes, com menos de 2 anos, esse benefício cessaria após 4 meses. Se o requisito tempo de convivência for cumprido, então se aplicaria o art. 77, §2º, V, c, da Lei nº 8213/91, alterado pela Portaria ME 424 de 29/12/2020. Art. 1º O direito à percepção de cada cota individual da pensão por morte, nas hipóteses de que tratam a alínea “b” do inciso VII do art. 222 da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, e a alínea “c” do inciso V do § 2º do art. 77 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, cessará, para o cônjuge ou companheiro, com o transcurso dos 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


seguintes períodos, estabelecidos de acordo com a idade do beneficiário na data de óbito do segurado, se o óbito ocorrer depois de vertidas dezoito contribuições mensais e pelo menos dois anos após o início do casamento ou da união estável: I - três anos, com menos de vinte e dois anos de idade; II - seis anos, entre vinte e dois e vinte e sete anos de idade; III - dez anos, entre vinte e oito e trinta anos de idade; IV - quinze anos, entre trinta e um e quarenta e um anos de idade; V - vinte anos, entre quarenta e dois e quarenta e quatro anos de idade; VI - vitalícia, com quarenta e cinco ou mais anos de idade. É nítida a opção do legislador por reduzir a proteção social contra o risco morte para aqueles dependentes com suposta (ou presumida) capacidade para o trabalho. As alterações da Lei nº 13.135/15 em conjunto com as da EC103/19 podem reduzir extremamente o valor dos benefícios. O exemplo dado foi baseado em contribuições sobre o teto do salário de contribuição. E facilmente resultou em uma renda inicial próxima ao saláriomínimo atual de R$1.100,00.

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Algumas regras restritivas de direito podem até ser fundamentadas no princípio da seletividade, previsto no art. 194, III da Constituição Federal. Sobretudo diante das alegações sobre um déficit no orçamento da Seguridade Social. São novas regras que buscam um ajuste econômico, orçamentário, supostamente visando equilíbrio financeiro e atuarial do sistema, conforme preceito constitucional. Representa os embates atuais entre defensores das reformas de cunho liberal e defensores do direito social. E evidencia o conflito e a necessidade de ponderação entre princípios constitucionais para proteção e respeito aos direitos fundamentais. São restrições de direito ocasionadas por um realinhamento da proteção garantida, permitida pelo princípio da seletividade, mas, tomados como base os direitos fundamentais constitucionais, limitada ao princípio da proibição de retrocesso social. Nenhum sistema de seguridade social está apto a libertar todos os indivíduos de todas as necessidades. Embora Beveridge tenha sonhado com a proteção “do berço ao túmulo”, não é o que ocorre. (SANTOS, 2003, p. 179) É provável que apenas a jurisprudência possa revolver no futuro o embate entre o princípio de proibição 233


de retrocesso e a reserva do possível, bem representada no direito previdenciário pelos princípios de seletividade e distributividade. Durante os debates para a aprovação da EC103/19, o tema mais frequente era que a reforma previdenciária buscava eliminar os privilégios, o recebimento de benefícios de alto valor. Ou o recebimento de mais de um benefício. Mas será privilégio obter um benefício, de forma legal, como contrapartida a contribuições feitas ao regime previdenciário durante uma vida laboral, calculado de acordo com essas contribuições? Eliminar os privilégios seria nivelar também os segurados que contribuíram por valores maiores para que recebam ou gerem benefícios próximos ao saláriomínimo? A resposta a estas perguntas parece esbarrar sempre no binômio seletividade/ reserva do possível.

4. A ACUMULAÇÃO DE BENEFÍCIOS COM PENSÃO POR MORTE A EC103/19 trouxe ainda outra novidade que afeta o valor da pensão por morte. Trata-se das regras de acumulação de benefícios, antes regulada pelo art. 124 da Lei nº 8.213/91. Art. 124. Salvo no caso de direito adquirido, não é permitido o recebimento conjunto dos seguintes benefícios da Previdência Social:

234

I - aposentadoria e auxílio-doença; II - mais de uma aposentadoria; III - aposentadoria e abono de permanência em serviço; IV - salário-maternidade e auxíliodoença; V - mais de um auxílio-acidente VI - mais de uma pensão deixada por cônjuge ou companheiro, ressalvado o direito de opção pela mais vantajosa. Parágrafo único. É vedado o recebimento conjunto do segurodesemprego com qualquer benefício de prestação continuada da Previdência Social, exceto pensão por morte ou auxílio-acidente. Não havia qualquer menção à proibição de recebimento de aposentadoria e pensão por morte. O fundamento da possibilidade de recebimento de ambos é que os fatos geradores são diferentes e os segurados instituidores, portanto titulares das contribuições, são diferentes. O raciocínio é semelhante ao segurado filiado, obrigatoriamente, a dois regimes previdenciários que venha a atingir em ambos os requisitos para aposentadoria. Não haveria impedimento para que gerasse também 2 benefícios de pensão por morte. O art. 24 da EC103/19 trouxe um regramento específico sobre acumulação do benefício de pensão por morte: 38ª EDIÇÃO 2021 - Revista Científica Virtual


• É vedada a acumulação de mais de uma pensão por morte deixada por cônjuge ou companheiro, no âmbito do mesmo regime de previdência social, ressalvadas as pensões do mesmo instituidor decorrentes do exercício de cargos acumuláveis na forma do art. 37 da Constituição Federal. • É permitida a acumulação de: - pensão por morte deixada por cônjuge ou companheiro de um regime de previdência social com pensão por morte concedida por outro regime de previdência social ou com pensões decorrentes das atividades militares de que tratam os arts. 42 e 142 da Constituição Federal; - pensão por morte deixada por cônjuge ou companheiro de um regime de previdência social com aposentadoria concedida no âmbito do Regime Geral de Previdência Social ou de regime próprio de previdência social ou com proventos de inatividade decorrentes das atividades militares de que tratam os arts. 42 e 142 da Constituição Federal; ou - pensões decorrentes das atividades militares de que tratam os arts. 42 e 142 da Constituição Federal com aposentadoria concedida no âmbito do Regime

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Geral de Previdência Social ou de regime próprio de previdência social. O texto menciona expressamente a possibilidade de acúmulo de pensão por morte com aposentadoria no mesmo regime (que não era proibido). Mas o faz para elencar as situações em que esta acumulação causará uma redução no valor total recebido. Basta que um dos benefícios tenha início após 13/11/19 para que a redução ocorra, pela aplicação do seguinte procedimento: • É assegurada a percepção do valor integral do benefício mais vantajoso; • Os demais benefícios não serão pagos integralmente, resguardado o direito a pelo menos 1 saláriomínimo, apurado cumulativamente de acordo com as seguintes faixas: - 60% (sessenta por cento) do valor que exceder 1 (um) salário-mínimo, até o limite de 2 (dois) saláriosmínimos; - 40% (quarenta por cento) do valor que exceder 2 (dois) saláriosmínimos, até o limite de 3 (três) salários-mínimos; - 20% (vinte por cento) do valor que exceder 3 (três) salários-mínimos, até o limite de 4 (quatro) saláriosmínimos; e - 10% (dez por cento) do valor que exceder 4 (quatro) salários-mínimos. 235


Podemos dar sequência aos exemplos, que utilizamos para demonstrar a diferença na apuração da renda mensal de pensão não precedida de aposentadoria. Agora para demonstrar a redução possível. 1 – Homem. Óbito em 10/11/2019. A pensão igual a R$5.584,00. Cônjuge aposenta no RGPS em 25/11//2021 com renda mensal de R$3.500,00 É garantida a percepção do valor integral do benefício mais vantajoso: R$5.584,00 e de uma parte do outro (ou seja, da aposentadoria recém concedida), calculada assim: Salário-mínimo em 2019 = R$998,00 Então se R$3.500,00 = R$998,00 + R$998,00 + R$998,00 + R$506,00 então A segurada receberá de aposentadoria: R$598,80 + R$399,20 + R$199,60 + R$50,6 = R$1.248,20 Total: R$6.832,20 2 – Homem. Óbito em 20/11/2019. A pensão por morte igual a R$1.925,86. Cônjuge aposenta no RGPS em 25/11//2021 com renda mensal de R$3.500,00 Já neste caso o benefício de maior valor seria a aposentadoria e o benefício a sofrer redução a pensão, 236

onde: R$1925,86 = R$998,00 + R$927,86 e a segurada receberá de pensão: R$598,80 + R$371,14 = R$969,94 arredondado para o valor do saláriomínimo = R$998,00 Total: R$4.498,00 Se o segurado tivesse mais de um benefício, com a acumulação de um terceiro, os dois menores sofreriam redução. A depender do caso concreto pode não ser vantajoso sequer requerer o benefício. Em nenhum outro momento da legislação previdenciária houve tal formato de pagamento de benefícios com redução de seus valores progressivamente em função de acumulação. Previsão que possa guardar alguma semelhança se refere à proibição de recebimento de aposentadoria com auxílio-acidente. Mas a Lei nº 9528/97 ao definir tal proibição, também estabeleceu que o valor do auxílio-acidente integra o salário de contribuição. A Jurisprudência decidiu que aquela proibição não feria o direito adquirido ao benefício de auxílio-acidente. Ele apenas seria cessado pela opção do segurado em aposentar, data em que o fato gerador da acumulação ocorreria, e na qual a lei já proibia o recebimento conjunto. No presente caso temos a permissão da percepção acumulada. Mas há uma

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redução no valor, afrontando o princípio da irredutibilidade do valor dos benefícios insculpido no art. 194, IV da Constituição Federal. Há aqui uma efetiva redução seja no valor nominal seja no valor real dos benefícios.

No caso do benefício de pensão por morte, a mudança da sistemática de cálculo da média, a vinculação do valor da aposentadoria por incapacidade permanente ao tempo de contribuição do segurado, a alteração nas alíquotas do

Por outro lado, ao limitar o valor total percebido com os benefícios acumulados, o legislador dribla a presunção absoluta de dependência econômica dos cônjuges ou companheiros, determinada na Lei n° 8213/91. Ao contrário, presume que o recebimento de outros benefícios supre suas necessidades, ainda que parcialmente, e interfere no valor real dos benefícios legitimamente concedidos.

benefício de pensão e a não reversão de

Benefícios que são contrapartida de contribuições regulares, obrigatórias, de eventos/riscos cobertos pelo sistema, que geraram direitos concretos e legais. E por isso não deveriam sofrer qualquer redução sob pena até de falar-se em enriquecimento ilícito por parte da Previdência.

um

5. CONCLUSÃO A EC n° 103/19 trouxe novos paradigmas quanto aos requisitos para aquisição de direito aos benefícios, como o limite de idade para as aposentadorias programadas e suas regras de transição complexas. Mas, além do endurecimento dos requisitos aquisitivos, também alterou as regras de cálculo dos benefícios, aplicáveis inclusive aos segurados que se aposentam pelas regras de transição. Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

cotas cessadas provocou uma redução significativa no valor desses benefícios e consequentemente na proteção social almejada. Se aliado à redução proporcional no valor dos benefícios por acumulação de pensão com outras pensões ou com

aposentadorias, aviltamento

o

da

resultado

proteção

é

social

previdenciária. A tendência é formar uma geração de idosos pobres, nivelados pelo salário-mínimo. Como se receber algo além do mínimo existencial fosse um privilégio e sobreviver para além disso fosse responsabilidade única de cada indivíduo e seu poder de poupança. Há várias

neste

tema

discussões

que

motivos devem

para ser

levadas ao judiciário, embasadas na proibição ao retrocesso e no princípio da

irredutibilidade

dos

salários,

na

necessidade de contrapartida. Mas além disso, em busca de uma proteção que possibilite a subsistência dos dependentes de forma digna.

237


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 238

ASSIS, Armando de Oliveira. Compêndio de Seguro Social, Editora Fundação Getúlio Vargas, 1963. ORRICO, Fco.Javier Fernández. Las Prestaciones de La Seguridad Social: teoria y práctica, 2ª edición, Coleccion Seguridad Social núm. 34 - Ministerio de Trabajo e Inmigración Subdirección General de Información Administrativa y Publicaciones; Espanha, 2009. pag. 376. Disponível em < https://expinterweb.empleo.gob.es/libreriavirtual/ detalle.action?cod=WSSO0034> Acesso em: 14/09/2018 SANTOS, Marisa Ferreira dos. Direito Previdenciário Esquematizado. São Paulo, Editora Saraiva, 2011. SANTOS, Marisa Ferreira dos. O Princípio da Seletividade das Prestações de Seguridade Social. São Paulo, LTR, 2003. ZUBA, Thais Maria Riedel de Resende. O direito Previdenciário e o princípio da vedação do retrocesso. São Paulo. LTR, 2013. Lei nº 13.135 de 17 de junho de 2015, disponível em: <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13135.htm>. Acesso em 26/11/2021 Emenda constitucional nº 103 de 12 de novembro de 2019, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/ emc/emc103.htm. Acesso em 26/11/2021

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INSS DIGITAL E GUICHÊ VIRTUAL

Fernanda Angeli161 Joseane Zanardi162 Camila Ghizellini Carrieri163

RESUMO Ante ao processo de digitalização e virtualização dos procedimentos administrativos e judiciais, imperioso se faz a criação de ferramentas idôneas de acesso aos sistemas digitais tanto para a população quanto para os seus representantes legais constituídos. Apresentaremos duas importantes ferramentas de acesso aos procedimentos administrativos junto ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), exclusivas para os advogados credenciados, que viabilizam a consecução dos direitos sociais do cidadão, quais sejam: “INSS Digital” e “Guichê Virtual”. PALAVRAS-CHAVE INSS. INSS Digital. Guichê Virtual. Ferramenta. Acesso. Processo Administrativo. Atendimento. Virtualização de procedimentos.

161 Advogada. Coordenadora Adjunta do IBPD e Especialista em Direito Previdenciário pela Escola Paulista de Direito Social e Membro da Comissão Estadual de Direito Previdenciário da OABSP. 162 Advogada, sócia fundadora do Zanardi Advogados com sede em Campinas/SP. Graduada em Direito pela Universidade São Francisco de Bragança Paulista (SP), Pós-Graduada em Direito Previdenciário pela Escola Paulista de Direito de São Paulo (SP). Coordenadora do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP) no Estado de São Paulo e Cursando MBA em Planejamento Previdenciário pelo Instituto Connect de Direito Social (ICDS). Membro efetivo da Comissão de Seguridade Social da OAB Campinas/SP. Membro Efetivo Regional da Comissão Especial de Direito Previdenciário da Seção da OAB São Paulo. 163 Advogada. Especialista em Direito da Seguridade Social e Direito Constitucional. Presidente da Comissão de Seguridade Social da OAB de Ribeirão Preto. Membro da Comissão de Direito Previdenciário da OABSP. Vice-Presidente da Comissão de Assistência Judiciária da OAB de Ribeirão Preto/SP.

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1. DA APRESENTAÇÃO DAS FERRAMENTAS DE ACESSO Não podemos falar em acesso e atendimento virtual junto ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) sem antes falarmos sobre a virtualização de processos e serviços previdenciários, e do modelo de gestão de processos criado pela

Previdência

Social,

denominado

“INSS Digital”. De fato, a era digital não é mais

Por

outro

lado,

não

podemos

olvidar que a advocacia desempenha fundamental

papel

de

instrumento

qualificado na consecução de direitos, sendo o intermediador por excelência entre a população e o INSS, e, por esta razão, foram criadas ferramentas específicas de acessibilidade exclusivas à advocacia, quais sejam: “INSS Digital” e “Guichê Virtual”, especificamente para a advocacia paulista.

o futuro da advocacia – já estamos

Desta feita, nos perguntamos: o que

vivenciando a era digital, e ela ocorreu

seria da população mais necessitada se

na hora certa. Imaginem se não houvesse

não tivesse ocorrido este avanço?

a virtualização de processos e serviços no período pandêmico, haja vista o fechamento das agências do INSS no país, no período de isolamento social em decorrência do COVID-19, assim como a suspensão parcial na prestação de serviços pela autarquia à população. Muito embora o INSS já disponibilize a ferramenta digital “Meu INSS” a todos os cidadãos, importante considerar que a população brasileira vive uma vida digital aquém da esperada ou imaginada, sendo certo que o acesso à citada ferramenta digital exige da população, além do acesso à internet, algumas habilidades de manejo de aparelhos celulares e computadores, assim como aos aplicativos, o que, para boa parte da população mais vulnerável, se mostra bem difícil, para não dizer impossível. Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

Como

o

INSS

é

a

autarquia

federal que mais recebe demandas de requerimentos no país, pensamos que o caos estaria instaurado se não houvesse ocorrido a virtualização e digitalização de seus processos e procedimentos. Esse projeto, iniciado em 2017, veio para acompanhar a prática de outros órgãos públicos federais, com o objetivo de dar agilidade e eficiência aos serviços ofertados pelo INSS. E tem como uma das características a descentralização dos protocolos a agentes credenciados (sejam eles entidades públicas ou privadas), para que estes representem os segurados do Regime Geral da Previdência Social (RGPS) para os pedidos e serviços necessários. Necessário

informar

que

cada

Estado poderia celebrar um acordo com

241


a Superintendência Regional de sua abrangência, conforme quadro abaixo. ESTRUTURA DO INSS

Fonte: INSS Importante destacar que o Estado de São Paulo, em termos demográficos, abrange um número muito grande de demandas no INSS, e a Superintendência Regional 1 é destinada exclusivamente para atender o Estado, conforme indica a cor verde no mapa. Desta feita, a Ordem dos Advogados do Brasil Seção São Paulo e o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), através de sua Superintendência Regional 1, que compreende o Estado de São Paulo, assinaram um Acordo de Cooperação Técnica para a implementação do INSS Digital para a advocacia paulista. Por meio desta ferramenta, o advogado poderá realizar vários procedimentos pelo sistema do INSS na internet, inclusive abrir processos para concessão de aposentadorias e benefícios, com o envio de documentação digitalizada, sem a necessidade de deslocamento a uma agência física da previdência social. 242

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Forçoso concluir, portanto, que com o advento do “INSS Digital” e do Acordo de Cooperação Técnica firmado pela OAB, iniciou-se uma mudança de trabalho e cultura: a possibilidade de postular a qualquer horário do dia e da semana, e de qualquer lugar, requerimentos e serviços junto ao INSS, o que conferiu um amplo acesso ao cidadão, pelo meio qualificado da advocacia, na efetivação de seus direitos sociais e fundamentais. Por outro lado, tal interlocução institucional favoreceu demasiadamente o bom diálogo entre a OAB e o INSS, antes figurantes em polos antagônicos da relação, alinhando objetivos na consecução de trabalhos conjuntos e

prestigiando princípios previstos em nosso Código de Ética e Disciplina, especialmente a mitigação de conflitos e a desjudicialização de processos. Com efeito, o avanço do “INSS Digital” durante a pandemia foi também outro inegável acontecimento, pois até então poucos eram os serviços ofertados à advocacia, e hoje temos mais de 50 serviços disponíveis, pelo meio digital, para a advocacia paulista previdenciária especializada que faz uso do sistema. Pedimos a vênia de anexar o gráfico demonstrativo da evolução de acesso e uso da Ferramenta “INSS Digital” no âmbito do Acordo de Cooperação Técnica da OAB/SP para o ano de 2021, vejamos.

ACORDOS DE COOPERAÇÃO TÉCNICA INSS - OAB/SP

É importante informar que o uso da ferramenta “INSS Digital” é bastante fácil e intuitiva, sendo necessária a inscrição do advogado ao sistema, o que se dá de forma rápida e on line, através do site da OAB/SP, no link https://www.oabsp.org.br/servicos/ inss-digital. Além da qualidade de advogado, é necessário estar adimplente com anuidade da OAB, e não ostentar nenhuma sanção ética junto ao Tribunal de Ética. Não podemos olvidar que se de um lado temos esta virtualização dos processos e procedimentos do INSS, de outro lado temos um número muito grande da população brasileira que pode ser considerada analfabeta digital e que não possui conhecimento, tampouco acesso à internet para realizar os requerimentos administrativos de forma virtual pela plataforma “Meu INSS”, conforme aventado anteriormente. Desta forma, a Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

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advocacia tem a sua atuação prestigiada, assim como a sua responsabilidade aumentada, pois além de prestar serviço qualificado à população na busca de seus direitos, em contrapartida, a atuação da advocacia confere a inclusão digital e a cidadania aos cidadãos mais vulneráveis, e até mesmo excluídos.

Além disso, a virtualização do atendimento é o um dos meios utilizados para o “enxugamento” da máquina estatal, vez que direciona os servidores ativos no exercício de “tarefa de meio” para “tarefa fim”, qual seja, realizar análise de pedido de benefício, mas não realizar tarefas administrativas em agências.

Necessário destacar que atualmente não é mais possível agendar atendimento presencial para formalização de requerimento de aposentadoria ou pensão por morte, por exemplo. Para estes tipos de solicitações, todo o procedimento é realizado à distância, via internet, através das plataformas do “Meu INSS”, que é de uso da população em geral, ou no “INSS Digital”, que é de uso exclusivo da advocacia, sendo certo que o atendimento presencial nas agências do INSS está se dando apenas para casos mais específicos, a citar como exemplo, os casos previstos na Portaria DIRBEN INSS 908/2021.

Com efeito, podemos considerar o “INSS Digital” o “PJE” (navegador) da advocacia previdenciária na via administrativa do INSS, e os advogados que atuam com Direito Previdenciário precisam conhecer esta ferramenta de trabalho, caso contrário não irão atuar nesta matéria num curto espaço de tempo.

Não podemos negar que tal conquista se trata de verdadeiro “caminho sem volta”, haja vista que a virtualização de procedimentos e atendimentos apenas irá aumentar cada vez mais, e a tendência é que o acesso ao atendimento presencial seja cada vez menor e restrito. Permissa vênia, devemos considerar, ainda, que isso é resultado não só da virtualização/digitalização mundial, mas também se deve ao sucateamento da autarquia, que há anos não investe no quadro de funcionários, não realiza concurso público, e o número de servidores ativos tem diminuído a cada mês, com a aposentadoria dos mais antigos. 244

Além disso, temos um ponto de estrema relevância a ser anotado. Vejamos. Com o advento da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), o “INSS Digital” confere proteção ao advogado usuário, a qualquer vazamento de dado ou o uso incorreto de senha da plataforma “Meu INSS” do cliente, a qual se dá por meio de acesso “GOV.BR”, pois o acesso do advogado ao sistema se dá com o uso de seu certificado digital e senha pessoal, conforme cadastrado junto à OAB/SP. Acresça-se, ademais, que através do sistema do “INSS Digital”, o advogado pode realizar autenticação de documentos e acompanhar as notificações de movimentação de requerimentos administrativos logado unicamente em seu sistema, sem ter que acessar o “Meu INSS” do cliente/segurado a cada consulta, o que traz uma grande facilidade ao serviço. Importante

considerar

que,

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com a pandemia, houve necessidade de adequação rapidamente dessas ferramentas de trabalho virtuais, pois a população e os advogados militantes na área ficaram sem nenhum atendimento presencial nas agências do INSS por meses, o que provocou um verdadeiro caos, em franco prejuízo aos direitos fundamentais dos beneficiários, resultando em um atraso na análise de quase 2 milhões de processos junto ao INSS. E foi neste contexto de período pandêmico que surgiu a ferramenta “Guichê Virtual”. O serviço de “Guichê Virtual” é uma nova forma de atendimento da advocacia do Estado de São Paulo pelo INSS, através vídeochamadas. Neste formato, o advogado poderá ser atendido pelo servidor do INSS sem sair de seu escritório ou de sua casa, por meio de uma reunião virtual realizada com o uso de computador ou celular. Esta iniciativa é inédita no Brasil, e foi lançada no mês de dezembro de 2020, fruto de um acordo firmado entre a Comissão de Direito Previdenciário da OAB/SP e o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), com o objetivo de facilitar

o atendimento dos advogados inscritos à OAB/SP e credenciados ao “INSS Digital”. Trata-se de atendimento previamente requerido e agendado via ferramenta “INSS Digital”, realizado virtualmente através da plataforma Google Meet preferencialmente, ou, se o caso, via chamadas de vídeo no aplicativo Whatsapp, dispensandose a obrigatoriedade do atendimento presencial nas agências da Previdência Social, o que promove a celeridade, eficiência, economicidade e acessibilidade do advogado ao atendimento por servidor público especializado. Necessário informar que, em plena operação, tal ferramenta está funcionando com capacidade de mais de 30 mil atendimentos por mês, por meio de 69 servidores especializados para a prestação de tal serviço à advocacia, superando a expectativa inicial de atendimentos mensais nos guichês preferenciais das Agências da Previdência Social. Cada atendimento dura no máximo 20 minutos, e o advogado pode tratar de quantos casos quiser durante o atendimento, assim como também pode agendar quantos atendimentos quiser, diariamente.

INSS - OAB/SP EVOLUÇÃO DOS AGENDAMENTOS NO GUICÊ VIRTUAL/ 2021

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Desde o seu lançamento, a Comissão de

Direito

Previdenciário

da

OAB/

SP faz o acompanhamento do serviço prestado e um mapeamento de problemas enfrentados

durante

o

exercício

profissional, e mantém reuniões mensais com a diretoria da Superintendência Regional 1, a fim de alinhar as melhorias e o aperfeiçoamento dessa ferramenta de trabalho. Sem sombra de dúvida, o “Guichê Virtual” tem se mostrado uma ferramenta de trabalho efetiva, econômica e prática, apta a efetivar o direitos dos beneficiários assim como prestigiar as prerrogativas da advocacia. A Comissão de Direito Previdenciário da OAB/SP criou um e-book explicativo (https://jornaldaadvocacia.oabsp.org.br/ wp-content/uploads/2021/07/OAB-SPebook-guiche-virtual.pdf), a fim de auxiliar a advocacia nesse processo de transição, de forma a conscientizar a importância da inserção e inclusão do advogado ao “INSS Digital”, para poder ter acesso e fazer uso do “Guichê Virtual”, além da realização de inúmeras palestras virtuais, webinários e lives nas redes sociais da Comissão de Direito Previdenciário da OAB/SP e das Comissões e Subseções de todo o Estado de São Paulo, sempre no intuito de prestar informações à advocacia paulista acerca das citadas ferramentas.

entre a OAB/SP e o INSS, ensejando um diálogo institucional colaborativo e respeitoso, e a cada mês implementando mais melhorias às ferramentas, para que o advogado previdenciarista possa trabalhar melhor, o que certamente impacta na sociedade de forma positiva. É a OAB/SP atuando fortemente para a valorização da advocacia previdenciarista. Se você é advogado ou advogada, e ainda não aderiu ao “INSS Digital”, não perca mais tempo e faça uso das ferramentas disponibilizadas pela OAB/ SP e INSS, para possibilitar e otimizar seu trabalho, e mais além, para tutelar os direitos sociais fundamentais de seu cliente.

Hoje são mais de 40 mil advogados inscritos no “INSS Digital”, através do Termo de Cooperação Técnica firmado

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Pósfacio Camila Ghizellini Carrieri164 Giuliana Ghizellini Carrieri165

Ao final desta jornada de profundos estudos e reflexões acerca do Direito Previdenciário após a Emenda Constitucional nº 103/19, verificamos que o mercado demanda, cada vez mais, mão de obra qualificada, e direcionada a promover os direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros. Importante destacar que passamos por um longo período de aglutinação de direitos e massificação das demandas previdenciárias, agravado pela crise do Poder Judiciário nacional diante da falta de recursos humanos, insuficiente a arcar com o fluxo de serviço em massa e se revelando incapaz de promover a distribuição da necessária Justiça. No entanto, diante a nova ordem constitucional previdenciária trazida pela Reforma constante na mencionada Emenda, e pelas demais normativas que dela derivam, assim como diante do cenário caótico, pandêmico, político e econômico nacional, presenciamos as vulnerabilidades da população se asseverarem, bem como a supressão de importantes direitos sociais, a citar como exemplo a exclusão dos cidadãos ao acesso dos serviços pelas plataformas digitais governamentais, e o depauperamento da renda do brasileiro que se vê contingenciado, além de uma crise econômica, por uma incapacidade permanente ou pela morte de um ente querido provedor. É nesse contexto que vemos a necessidade ou o ressurgimento de um direito previdenciário mais humano e individualizado ao cidadão, uma vez que a massificação já não atende mais às circunstâncias e particularidades das tutelas cotidianas. E, diante do Direito ora posto, se vislumbra a necessidade do exercício de uma advocacia previdenciarista mais artesanal, assemelhada ao ofício de um artesão, que produz peças únicas e exclusivas, e, portanto mais especializada, para uma melhor consecução dos direitos e realização dos interesses sociais e de sobrevivência que envolvem as demandas previdenciárias. E dessa maneira, com os olhos no futuro, mas com os pés alicerçados no presente, que o advogado e advogada previdenciarista deve caminhar e desenvolver seu mister, constituindo-se em um verdadeiro agente de transformação e pacificação do meio social. 164 Advogada. Especialista em Direito da Seguridade Social e Direito Constitucional. Presidente da Comissão de Seguridade Social da OAB de Ribeirão Preto. Membro da Comissão de Direito Previdenciário da OABSP. Vice-Presidente da Comissão de Assistência Judiciária da OAB de Ribeirão Preto/SP. 165 Advogada. Especialista em Direito Penal e Direito Constitucional. Membro do Conselho Curador da ESASP – gestão 2019-2021. Presidente da Comissão de Assistência Judiciária da OAB de Ribeirão Preto/SP. Membro da Comissão de Direito Previdenciário da OABSP. Membro da Comissão Especial de Direito de Família e Sucessões da OABSP. Membro da Comissão de Assistência Judiciária da OABSP. Revista Científica Virtual - 38ª EDIÇÃO 2021

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Acesse: https://issuu.com/ esa_oabsp www.esaoabsp.edu.br

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Edição 38 Ano 2021

SÃO PAULO

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