48 Edição

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FEVEREIRO 2022

48º Edição

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Fotografia de Fernando Corrêa dos Santos


Indíce AGOSTO 2021

04 ....... O Até que o património se separe | Fernanda de Almeida Pinheiro

06 ....... E o mar logo ali | Ana Gomes

08 ....... Cantinho do João ! João Correia

10 ....... Pensar a constituição | Paulo Ferreira da Cunha

14 ....... Aquilino Ribeiro ! José António Barreiros

16 ....... O Perfeito Nazi | Duarte Rodrigues Nunes

20 .......Flores na Abíssinia ! Carla Coelho

24 ....... Ré em causa Própria | Adelina Barradas de Oliveira

28 ....... Pano para mangas | Margarida Vargues

30 ....... Você corta a Etiqueta? | Margarida de Mello Moser

32 ....... Fugir da Guerra | Margarida Vargues

DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA DESIGN E PRODUÇÃO: DIOGO FERREIRA INÊS OLIVEIRA SITE: WWW.JUSTICACOMA.COM FACEBOOK: JUSTIÇA COM A

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Editorial

DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA

FEVEREIRO 2022 DEPOIS DE 22-02 .....A 24 A Velha Europa confronta-se de novo com a ofensiva dos regimes ditatoriais. À Janela do Mundo, a velha Europa, pensa e reclama: - Guerra Nunca Mais, .....Ditaduras nunca mais. “A Guerra! Desfilam diante de mim as civilizações guerreiras... As civilizações guerreiras de todos os tempos e lugares... Num panorama confuso e lúcido, Em quadras misturadas e não misturadas, separadas e compactas, mas só quando Em desfile sucessivo e apesar disso ao mesmo tempo, Passam... Passam e eu, eu que estou estendido na erva E vi os carros passarem, passarem — cessarem depois para nós mesmos Vejo-os e o meu espanto nem é muito calmo nem interessado Nem os vê nem os deixa de ver, E eles passam por mim como um pó ou leve vento sobe pelos ares. Ah a pompa antiga, e a pompa moderna, os uniformes dos engenhos de guerra, A fúria terna e [...] dos combates Os mortos sempre a mesma misteriosa vida — o corpo no chão (e o que é o mundo, afinal, e aonde?) A ferida [...] E o céu, o eterno céu insensível sobre isso tudo!” Fernando Pessoa / Álvaro de Campos É preciso tanto para tão pouco? Ganhámos o Direito à Paz. Não abdicamos dele. Esperamos sinceramente que o número próximo, que chegará em Abril, seja de Liberdade.

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FERNANDA DE ALMEIDA PINHEIRO

Até que o património se separe... Podemos ler na imprensa deste mês de fevereiro que o acesso ao crédito à habitação vai ser mais difícil para quem tiver entre os 30 e os 35 anos de idade, já que o Banco de Portugal (BdP) propõe que limites de prazo de crédito passem a ser de 37 e de 35 anos, respetivamente. Estas novas regras surgem num momento em também podemos constatar através da imprensa as casas no país, ficaram quase 50% mais caras nos últimos cinco anos. Num país em que a média de salários é baixíssima (ronda os 1.000,00€ mensais) e o mercado de arrendamento (especialmente o habitacional), não oferece qualquer alternativa, por via dos elevadíssimos preços das rendas e as exigências garantia dos senhorios/as, torna-se cada vez mais complicado encontrar soluções de habitação para as famílias. Continuamos a empurrar os/as cidadãos/ ãs para a aquisição de habitação própria permanente, com todos os seus encargos inerentes (IMI, despesas de condomínio, seguros de vida e seguros multirriscos), que consomem uma grande parte dos seus orçamentos familiares. Naturalmente, que continuam a maioria das habitações a ser adquiridas em regime de

compropriedade ou como património comum de um casal, que depressa de transforma num dos seus maiores e mais complicados problemas, quando existe uma separação. É cada vez mais difícil manter relacionamentos com uma duração de 30 ou 35 anos, do mesmo modo que se torna praticamente impossível conseguir suportar, com o rendimento apenas de um dos membros do casal todas as despesas da habitação e de vida, quanto mais conseguir adquirir para si, oferecendo tornas ao outro, a sua parte desse património comum. Quer isto dizer que sempre que existe uma rutura familiar, para além da separação emocional, da complicadíssima partilha dos tempos das crianças nascidas desses relacionamentos, os membros dessa família desfeita vão ainda ter de endereçar a separação do seu património, que quase sempre se resume à “casa de morada de família” e que vai acarretar mais uma alteração drástica do modo de vida existente até ali, principalmente para as crianças, as suas escolas e os seus amigos. A esta realidade acresce o facto de estarem muitas vezes envolvidos neste processo de aquisição de habitação os familiares diretos dos cônjuges (os pais de cada um

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“Num país em que a média de salários é baixíssima (ronda os 1.000,00€ mensais) e o mercado de arrendamento (especialmente o habitacional), não oferece qualquer alternativa, por via dos elevadíssimos preços das rendas e as exigências garantia dos senhorios/as, torna-se cada vez mais complicado encontrar soluções de habitação para as famílias.”

dos cônjuges, senão ambos), levando a que esta separação de património possa também representar uma preocupação e um risco para toda a família alargada que se desfaz, principalmente se existe já algum incumprimento do crédito. Uma outra questão que surge prende-se com a postura das instituições de crédito que raramente aceitam desonerar o mutuário do seu empréstimo, ainda que o outro passe a assumir sozinho o encargo com o mesmo. Naturalmente que também estas questões acabam por dificultar a vida ao mutuário que cede a sua parta de casa, já que ficará com esta responsabilidade reportada no BdP, o que significa que o seu acesso ao crédito será também, por via desta situação, ainda mais restrito. Por via de tudo isto, aquele que foi um sonho comum, de um espaço seguro de crescimento da família, depressa se transforma num dos seus piores pesadelos, que poderá levar anos a resolver e ultrapassar. Ora, se por um lado o artº 65º da Constituição da República Portuguesa (CRP), refere no seu número 1 que “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e

conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”. E esclarece que (…) incumbe ao Estado: a) Programar e executar uma política de habitação (…) b) Promover, em colaboração com as regiões autónomas e com as autarquias locais, a construção de habitações económicas e sociais; c) Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria ou arrendada; d) Incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respetivos problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação e a autoconstrução. E que “O Estado adotará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria.”, em que medida estão a ser cumpridos estes preceitos da Constituição? É, por isso, urgente focar esta realidade e apresentar soluções concretas e soluções para melhorar o direito de acesso à habitação das famílias, assegurando que o mesmo não possa ser colocado em risco por via de uma separação de vida em comum e de um património.

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E O MAR LOGO ALI Ana Gomes

O pior que se pode sempre imaginar é não se poder negar, nem sequer discutir, reflectir ou argumentar, ter de obedecer a tudo o que passe pela cabeça de qualquer um (…), isto é o que nos toca a quase todos (…) desde o berço até à campa.

Javier Marías, “Berta Isla”, 2019, Alfaguara, (tradução de Paulo Ramos)

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De países vizinhos, acabaram por conhecer-se, trocar algumas palavras escassas vezes e voltar a encontrar-se ao fim de poucos meses. Falam o mesmo idioma num Tribunal estrangeiro que tenta compreender a razão de um conflito e pôr-lhe fim. Cada um sente que se lhe for dada razão é a sua Nação que ganha e que fica com o trofeu. Os dois homens terão crescido no seu mundo. Terão tido o mar a separá-los, a eles e ao respetivo povo, como se o mar só apartasse e não unisse. Iam nos quarenta quando o Grande Muro foi arrancado aos pedaços e partilharam à distância essa alegria, pois a Queda do Muro representava a vitória da Liberdade e o engrandecimento da civilização europeia. Trinta anos depois, atraídos pelo sol, pela temperatura da água e pelo calor humano das gentes, instalaram-se em Tavira a gozar a reforma. Cada um adquiriu um lote, contratou a construção de uma

moradia, as duas efetivamente separadas pelo pequeno quintal de cada um dos lados e de um pequeno muro. Por aqui, já não há grandes muros, pensava um, não pode haver grandes muros. Passara os anos a viajar em trabalho, pela Europa, com a liberdade de circulação de quem vive numa única comunidade. Agora, exigem-lhe a apresentação de um certificado de cada vez que regressa ao seu país. O seu neto deixou de fazer a viagem que tinha planeado fazer à Austrália e que tinha adiado havia dois anos. Vai ser menos viável do que ir numa viagem espacial, ou aí também será necessário o documento? O descomprometimento da idade leva-o a regar as margaridas, ganhando de novo o sorriso. Vou plantar arbustos e flores deste lado, uma fronteira impercetível. Cumprimentou o vizinho com um “good morning!”

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Nunca mais aconteceu, desde que o outro construiu sobre o primeiro muro, pequeno, um outro mais alto, enorme, impossível de galgar. Destruiu os arbustos e as flores do outro lado, ao mesmo tempo que caíram pedaços de argamassa e caiu o sol que avivava o jardim. O encontro em Tribunal não foi feliz e Tânia temeu, por instantes, que ali se resumisse a rivalidade entre povos e uma questão cível se transformasse num caso de polícia, e ela como testemunha. Como parece óbvio, não houve qualquer acordo e lá teve de fazer a sentença. Escreveu-a de uma vez sem grande dificuldade. Teve pena de não aprofundar as suas reflexões que a levariam muito longe, para lá da decisão seca e concisa, com a solução sobre a questão do muro. Seria uma questão de tempo até o vizinho réu voltar a impor ao outro a sua vontade.


Foto João Correia

As ilhas Não são propriamente ilhas oceânicas, mas, contudo, não deixam quem por lá passa indiferente.

quem se desloca à mesma para usufruir da sua belíssima praia).

Podia passar horas a falar de Olhão, mas resumo-me a duas histórias verídicas:

Assim, a professora foi colocada na escola primária da ilha da Culatra, rodeada de areia e mar, com pouca ou nenhuma vegetação rasteira e com uma população composta por pescadores e mariscadores (segundo algumas teses, piratas também).

Existe uma pequena ilha barreira de seu nome Culatra a qual, na realidade, pertence ao concelho de Faro. A mesma está, numa perspectiva geográfica, mais próxima de Olhão do que de Faro e tem uma população residente desde o século XIX, com uma pequena capela e uma escola primária. Conhecida pelos seus boicotes eleitorais e por questão relacionados com a falta de água potável. Existia também uma professora primária que estava colocada em Trás-os-Montes e que, farta do frio, achou que era uma boa ideia concorrer para uma escola no Algarve desconhecendo as condições agrestes da ilha barreira em questão (salvo para

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A senhora não desmoralizou e agendou uma reunião de pais à qual ninguém compareceu, pois, a mesma coincidiu com o período da maré baixa e durante a maré baixa as mulheres estavam ocupadas na apanha da amêijoa (escusado será dizer que os homens não consideravam a reunião na escola dos seus filhos incumbência sua). A senhora não desmoralizou e arranjou um mapa das marés, reagendando a reunião de pais (ou


CANTINHO DO JOÃO João Correia

“Em suma, seja numa ilha ou algures num centro urbano onde nem tudo se resolve com um mapa das marés não há que desmoralizar(...)”

melhor, de mães) para uma hora que coincidisse com a maré alta. Pelo que sei, o insucesso escolar continuou a ser a regra, porém, a boa relação da professora com os seus alunos também. De resto, há ainda uma outra história verídica na qual um rapaz residente numa destas ilhas barreira (francamente não me recordo se vivia na Armona ou Culatra) envolveu-se em tempos idos com a filha de alguém de boas famílias o qual não gostou da brincadeira, sobretudo quando soube que a rapariga estava grávida. Por outro lado, o rapaz não perdeu tempo e, juntamente com a rapariga grávida embarcou num saveiro mínimo e insignificante rumando para o meio

do oceano com intenções de chegar ao Brasil. Pelo que sei, foram resgatados por um navio mercante que os transportou até Cabo Verde e, muito mais tarde, após largos anos, foram condecorados por um nosso Presidentes da República, o qual reconheceu a audácia e coragem dos (então) miúdos. Em suma, seja numa ilha ou algures num centro urbano onde nem tudo se resolve com um mapa das marés não há que desmoralizar pois, basta esperar pela maré alta para que tudo faça mais sentido. É só esperar.

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Paulo Ferreira da Cunha

PENSAR A CONSTITUIÇÃO, COM LASSALLE E HESSE 10


Não vou falar da polémica sobre quem deva ser o defensor da Constituição, que seria a tentação mais óbvia. Aludirei a algum tempo antes e a algum tempo depois. Contudo, é essa outra uma polémica muito instrutiva. A meu ver, propiciou das melhores páginas de Kelsen, a quem o inegavelmente inteligente Carl Schmitt (que contudo não nega os fantasiosos Protocolos dos Sábios do Sião¹ ) estigmatizou, desde logo, como “judeu”... Kelsen historicamente ganhou no plano constitucional, embora a nosso ver estivesse equivocado no domínio filosófico. Coisa singular... Mas não era essa a questão das polémicas com o autor da Teologia Política. Num dos títulos constitucionais mais citados e certamente menos lidos, e menos ainda razoados ou digeridos, que era leitura muito recomendada, se não mesmo obrigatória, quando cursei Direito Constitucional pela primeira vez, com o Doutor Gomes Canotilho, pode ler-se mais ou menos isto (não cito do meu velhinho exemplar, que, entretanto, emprestei, e obviamente, como mandam velhas leis naturais, fiquei sem ele): “Mas todas essas definições legais formais e outras semelhantes estão tão distantes quanto a resposta anterior de uma resposta real à minha pergunta. Porque todas essas respostas contêm apenas uma descrição externa de como uma Constituição é criada, de qual é o “papel” da Constituição, mas não a indicação do que é uma Constituição. Eles dão critérios, sinais de que uma Constituição é externa e legalmente “reconhecida”. Mas eles de forma alguma nos dizem o que é a “essência”, o que é a “noção” de uma Constituição. É por isso que não nos esclarecem onde e quando uma dada Constituição será boa ou má, possível ou impossível, durável ou insustentável. Porque tudo isso só poderia decorrer da “noção” de Constituição. Devemos primeiro conhecer a “essência” de uma Constituição em geral

para saber se uma Constituição específica “corresponde” a ela e o que é.” Não me recordo de estas palavras terem tido um eco especial no caloiro que então era, e só me apercebi da sua importância muito mais tarde. Deste livro, que é, como terão detetado já, O que é uma Constituição Política?, de Ferdinand Lassalle, outras lições retirei. Algumas, como a diferença entre constituição real e outras dimensões da Constituição, nem sempre apercebidas ou nem sempre unânimes na doutrina. Outras, como a ideia de “folha de papel” para a constituição formal, cheia de simbolismo e apta a inspirar outros desenvolvimentos. E ainda o depois batizado “conceito históricouniversal de constituição” neste opúsculo presente (na coisa, não na expressão), que sendo referido em inícios de certas obras, só mais tarde seria aceite com as suas devidas implicações quanto ao nascimento da Constituição e às suas diferentes modalidades, históricas e de natureza. Lassalle não foi aquele livrinho, creio que de capa cor-de-rosa e branca, pequenino sem utilidade aparente, mas um manancial de inspirações. Porém, da referida passagem, como dizia, não ficara nada de especial. Até que tomei contacto com o texto da aula inaugural de 1959 do Prof. Konrad Hesse, na Universidade de Freiburg, na então República Federal da Alemanha. Como se sabe, Hesse, catedrático nessa Universidade desde 1956, foi juiz constitucional na Alemanha de 1975 a 1987. O seu discípulo Peter Haeberle, em conversas publicadas no México, enfatizou a independência do seu mestre, assinalando que teria sido o último grande constitucionalista sem vinculação partidária no seu país² . Apesar de ter sido indigitado pelo FDP e pelo SPD ³. Na sua lição, Die normative Kraft der Verfassung, que bem pode considerar-se, nos nossos

1. ALVES, Adamo Dias Alves / OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de - Carl Schmitt: um teórico da exceção sob o estado de exceção, “Revista Brasileira de Estudos Políticos”, Belo Horizonte, n.º 105, jul./dez. 2012, p. 261. 2-HAEBERLE, Peter – Conversaciones Académicas com…, México, Universidad Autónoma de México / Instituto de Investigaciones Juridicas, 2006, máx. p. 121. 3- Cf. https://de.wikipedia.org/w/index.php?title=Liste_der_Richter_des_Bundesverfassungsgerichts&oldid=149232505 (consultado em 24 de novembro de 2021).

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Pensar a constituição, com Lassalle e Hesse PAU LO FER R EI R A DA CU N H A

termos, uma oração de sapiência académica, e é um texto fundante do Direito Constitucional hodierno, Hesse começa por referir aquela clássica conferência de 16 de abril de 1862, e dela extrai imediatamente uma tese que, podendo estar latente na primeira interpretação que muitos terão feito da leitura do texto de Lassalle, eu nunca vira expressa de forma tão clara, tão evidente, tão polémica, talvez – se quisermos colocar a questão nesses termos. Na equação de Lassalle há, evidentemente, no problema da Constituição, duas dimensões. Uma, exterior, exógena, que é a jurídica, e uma outra, interior, endógena, que é a política. Quando um autor alemão cujo nome parece ter-se perdido, depois de tão aceite, citada e difundida a sua fórmula, acabou por dizer que a Constituição é o “estatuto jurídico do político”, acabou por unir, de forma feliz, as duas dimensões. Mas o problema de base subsiste. E por isso importa revisitar Lassalle e Hesse. E não o fazer de forma simplista, ou com base em restritas definições pré-concebidas de “constituição”. Contudo, para o que nos importa hoje, retenhamos apenas alguns tópicos relevantes. Tenhamos como dado que a Constituição, em si, é mescla de direito e de política. Nem só uma nem só outra coisa. Mas, se assim é (e cremos que assim deve ser) não se trata de uma Constituição real, sociologicamente entendida, como fatores reais de poder em jogo – portanto, política – contra uma Constituição formal, texto escrito que não passa de “mera folha de papel”. Ponto para Hesse contra Lassalle?

Não verdadeiramente. Apenas numa simplificação Hesse se coloca totalmente do lado da Constituição “jurídica” contra a dimensão social e política. Afirma mesmo a dependência da constituição política da realidade histórica, embora haja também uma força normativa constitucional jurídica que interfere na realidade social e política. Há, pois, uma interação, que se poderia dizer, em termos jurisfilosóficos clássicos, entre o Ser (sein) e o dever-ser (sollen). Quem ler atentamente um e outro dos opúsculos (e têm essa excelente qualidade de serem breves, num tempo terrível em que em certos meios se confunde profusão com profundidade e qualidade), poderá verificar que a oposição entre os dois autores não é abissal, embora se possa realmente compreender que, na estratégia retórica contextual de um e outro, ao conferencista revolucionário conviesse mais sublinhar a importância das forças políticas contra o hieratismo do texto da magna carta, e o catedrático, de algum modo sacerdote do direito, fosse simpático reconhecimento de uma magia própria da normatividade constitucional, capaz de, como diria Kelsen, na Teoria Pura do Direito, como Midas criador de oiro, transformar em juridicidade tudo aquilo em que toca. A Constituição não é nunca uma simples folha de papel – isso poderá ser uma tese aceite. Porque tem uma legitimidade que lhe dá uma vida própria, que lhe dá lastro, que a impede, assim, de voar ao sabor de qualquer brisa política nova. Isso, porém, é o que não compreendem, ou não querem compreender alguns, que todavia sabem (instintivamente, quiçá) que a polémica

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constitucional encerra uma especial magia, uma particular sedução – ainda que se questione o inquestionável e se propugne o insuscetível de ser aprovado, numa Constituição. Sempre teremos polémicas constitucionais, enquanto as Constituições continuarem a ter a sua força normativa e não forem olvidadas pelos faits accomplis ou pelos faits du prince. Ou seja, enquanto subsistir o estado de coisas a que bem se chamou Estado Constitucional. A partir do momento em que esse robusto edifício institucional começasse a abrir brechas, o interesse polémico das propostas de rutura constitucional certamente esmoreceria. Donde se poderá concluir, com otimismo, que quanto

mais propostas de pseudo revisão constitucional na verdade inconstitucionais e anticonstitucionais houver, mais sólida se encontra a implantação constitucional, desde logo como cultura constitucional e sentimento social de adesão constitucional. Podendo parecer que não aos mais desatentos e veneradores do imediatismo, textos como os de Lassalle e de Hesse são armas de longo alcance para compreender, desmitificar, desconstruir e combater alguns dos maiores inimigos da Constituição: a falta de memória histórica, a ausência de conceitos teóricos, a incultura geral.

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JOSÉ ANTÓNIO BARREIROS

AQUILINO RIBEIRO Vindo das zonas de Viseu, em 1902 estudava no Seminário de Beja. Em 1906 convivia já em Lisboa com meios revolucionários. No ano seguinte foi preso, acusado de bombista e carbonário. Levado ao juiz Veiga, do Juízo de Instrução Criminal, seguiu-se a cadeia e o exílio.

«Passei a vida dobrado sobre a banca de escritor e só

nas estruturas do Grande Oriente Lusitano.

há pouco dei conta que estava velho. Como foi isso?»,

De súbito, um descuido e eis a explosão. Num ápice,

perguntava-se o criador do “Malhadinhas”. Quem lê esta

o escritor estava preso, levando para a esquadra de

frase fica sem imaginar sequer o que foi uma vida de

polícia do Caminho Novo. «Manso como um cordeiro»,

turbulência, que meteu cadeia e exílio.

submisso como relatou na sua memorável autobiografia

No dia 17 de Novembro de 1907 na sua sossegada casa

‘Um Escritor Confessa-se’, Aquilino é surpreendido em

na Rua do Carrião ao Passadiço, em Lisboa, fabricavam-

plena Rua de São José, já “sob tochas” pelo “fotógrafo

se bombas. O material improvisado era feito com as

universal” que a todos aprisionava no seu ‘daguerrotipo’,

pinhas de ferro com que se enfeitavam as sacadas das

“Joshua Benoliel, o fotógrafo beduíno, que tanto tira a D.

casas, o explosivo era mistura de pólvora negra e carda

Manuel como tira a Bernardino”.

miúda de sapateiro.

Destino do preso, a Esquadra da Parreirinha. Entre

Clandestino, o pequeno grupo integrava o médico

“iscarióticos esbirros que vinham, como no Jardim

Gonçalves

vieram

Zoológico, contemplar o gerifalte que caíra no laço”, ei-

transportadas e Belmonte de Lemos, comerciante da

lo levado para as Amoreiras “ao juiz Veiga, o celebre juiz

Rua dos Fanqueiros, todos da Carbonária, associação

Veiga, o grande papão dos republicanos, o terror dos

secreta para a imposição das ideias da fraternidade à lei

anarquistas, o alcoviteiro do rei, a divindade colérica e

da bomba, a “artilharia civil”.

tutelar que pairava sobre a Monarquia e as instituições,

Fundada pelo bibliotecário da Câmara Municipal

armada de tridente e coriscos”, titular do Juízo de

de Lisboa, Artur Augusto da Luz Almeida, que havia

Instrução Criminal.

sido iniciado na Maçonaria em 1897 na Loja Luís da

A cena do interrogatório é um momento magistral.

Camões, n.º 226, em Lisboa, como nome simbólico de

Raposa velha, Veiga faz apelo à compreensão e ao

‘Desmoulins’, por essa altura a organização tinha 20 mil

espírito de tolerância cristã para com aquele moço,

adeptos, estando, através da loja ‘Montanha’, infiltrada

ainda agora vindo das serranias para os estudos

Lopes,

de

cujo

consultório

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um, os parafusos da fechadura do gradão, com a ajuda da gravata de seda e improvisadas varetas. Esconder-se-ia numas águas-furtadas de um prédio pombalino, a 150 metros da Parreirinha, “pelas escadinhas de S. Francisco, e menos de 200 metros do Ministério do Reino, podendo ouvir, se não houvesse a interferência acústica das paredes, os espirros do Sr. João Franco”. Dali foge para França, pelo Sud Express, eclesiásticos, Aquilino não menos versátil fazia-se da

apanhado no Entroncamento.

ingénua da peça: “Já confessei tudo a V. Ex.ª. Eu sou

Chega a Paris no dia 3 de Junho de 1908, fugido.

um serrano em Lisboa… Mal assentei o pé, pus-me a ler

“Turista sem cheta nem bagagem, transportava, porém,

Kropoktine e, por desgraça, a minha condição, pobre,

um alforge de promessas de ‘irmãos’ e ‘primos’, que lhe

desamparado, sem futuro, deixei-me contaminar pelas

haviam jurado com os pés em esquadria – a ele raposo,

ideias extremistas. Logo aqueles amigos aproveitaram

beirão, que jamais se iludiu com empana-parvos”, assim

a minha inexperiência e meteram-me nesta camisa-

o descreve Jorge Reis ao compilar-lhe as ‘Páginas do

de-onze-varas”.

Exílio’.

Não tardaria a ser levado à Morgue a reconhecer

O ‘caso da Rua do Carrião’, como foi chamado, levou

os amigos que no estado em que estavam já não se

à perda de influência do juiz Veiga. As conjuras e

poderiam aproveitar de ninguém. Em pleno teatro

suspeitas não se conseguiram provar. Veiga segue para

anatómico, empestado a cheiro de fénico e de

a Relação, e dali para o Supremo Tribunal de Justiça,

formol, ali estavam a “carcaça pavorosa” de um e o Dr.

onde se reforma.

Gonçalves Lopes “a fronte escaqueirada, o peito com

Conhecedor dos meandros do Paço e das antecâmaras

um rombo cavernoso, e uma das mãos reduzidas a

dos republicanos, perguntado pelo jornalista Rocha

coto sangrento”.

Martins sobre se não escreveria memórias, o juiz

Seguem-se os curros da investigação para quem tem

respondeu através de um papel rabiscado, símbolo

palavras de soez desprezo, “um chefe de polícia néscio

da sua discrição: “nunca!”. Dele ficou, assim, o que

e um juiz reles e troca-tintas”. O magistrado visado era

dele os outros escreveram. Proclamada a República,

o Dr. Alves Ferreira, de que o escritor daria um retrato

esta extinguir-lhe-ia, «para sempre» o seu Juízo de

violento como urros: “com a pelagem totalmente

Instrução Criminal.

branca de cobaia e pele lisa dum poupon, tinha andado

Ironia da vida: o primeiro filho do escritor, Aníbal Aquilino

pelas ilhas, pela província, sempre em comarcas de

Tiedmann Ribeiro, nascido em 1914, seria juiz, jubilado

rebotalho, até que João Franco o caçou ali em Sintra,

como Conselheiro.

pau para toda a colher”. Aquilino evadir-se-ia do cárcere, desconjuntando, um a

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Duarte Rodrigues Nunes

Bruno Langbehn, O Perfeito Nazi O livro O Perfeito Nazi foi escrito pelo cineasta e escritor britânico Martin Davidson, filho de um escocês e de uma alemã .

Continuação... Voltando ao livro que serve de base à presente reflexão, Bruno Langbehn, avô materno do autor, nasceu em 1906, sendo filho de um Kasernen Wachtmeister (um cargo híbrido militar/polícia, uma espécie de supervisor de quartel militar) do quartel militar de Perleberg, e, desde criança, viveu de perto o ambiente militar, fortemente imbuído do militarismo e do nacionalismo germânicos que caracterizavam profundamente a Alemanha do Kaiser Guilherme II. E assistiu, igualmente, à vaga de otimismo e de orgulho germânico de 1914 e ao desânimo subsequente à derrota alemã na I Guerra Mundial, tendo sido fortemente influenciado pelos efeitos psicológicos que a derrota e as “justificações” dessa mesma derrota inventadas pelos nacionalistas alemães (de que o mito da “facada nas costas”, da traição dos judeus à Pátria em prol da salvaguarda do seu património inventado por Adolf Hitler é um mero exemplo) tiveram na generalidade do povo alemão. O seu pai combatera na guerra e voltara a casa derrotado, humilhado pela débacle do seu país e do regimento de artilharia a que pertencia e revoltado com a queda do regime imperial e a instauração da República de Weimar, de conceção de esquerda, moderna e liberal (aliás, o primeiro regime verdadeiramente democrático que existiu na Alemanha) e totalmente oposta às conceções

vigentes no II Reich dos Kaisers Guilherme I e Guilherme II e partilhadas pelos chanceleres Otto von Bismarck e Theobald von Bethmann-Hollweg, pela alta sociedade alemã e pelos marechais, generais e almirantes alemães. De resto, a nova República¹ contou, desde a sua instauração, com a feroz oposição dos nacionalistas alemães, apoiados por milícias armadas [primeiro os Freikorps² e, mais tarde, milícias como as SA nazis ou os Capacetes de Aço (Stahlhelm) ligados ao Partido Nacionalista Alemão³ , de Alfred Hugenberg]. E sofreu também forte oposição dos comunistas (através da Liga Espartaquista ou Liga Spartakus4, sendo inicialmente liderados por Karl Liebknecht e Rosa Luxemburg, assassinados em 1919), apostados em levar a cabo na Alemanha uma revolução similar à Revolução Bolchevique de outubro de 1917 e a instaurar um regime comunista, apoiados por milícias armadas. Foram inclusivamente estabelecidos conselhos de trabalhadores (Arbeiterräte) e de militares (Soldatenräte) ao estilo dos sovietes russos em várias cidades alemãs, sendo inclusivamente instaurado o Estado Livre (Freistaat) da Baviera, liderado por Kurt Eisner, assassinado em 1919 por um ultranacionalista alemão, Anton Graf von Arco auf Valley. As milícias nacionalistas (incluindo nazis) e comunistas espalharam o terror e a desordem no país entre 1918 e 19335 .

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Do livro não resulta que o pai de Bruno Langbehn tenha feito parte dos Freikorps, embora a guarnição do quartel militar de Perleberg se tivesse convertido num Freikorps (Destacamento Stillfried, que integrava o Freikorps Hülsen, comandado pelo Tenente-General Bernhard von Hülsen), que combateu os comunistas insurgentes na passagem de 1918 para 1919 e que chegou a ter mais de 11.000 homens. Mas resulta que, muito provavelmente, terá feito parte de uma força popular de defesa (anticomunista) da cidade de Perleberg após a partida do Freikorps depois de ter derrubado o soviete da cidade e arriado a bandeira vermelha da Rathaus de Perleberg. E resulta, sobretudo, que o pai de Bruno Langbehn e o próprio Bruno Langbehn (que teria 12 anos quando a guerra terminou, sendo um adolescente nos anos dos golpes e contragolpes de extrema direita e extrema esquerda contra a República de Weimar e das reações violentas das autoridades para os conterem) guardaram forte ressentimento, por estarem convictos de que a guerra tinha sido nobre e justa e que a Alemanha só havia sido derrotada pela traição dos bolcheviques pró-Moscovo, que provocaram e ainda lucraram com a derrota alemã. E esse ressentimento foi ainda mais incendiado na sequência da assinatura do Tratado de Versalhes, desde logo considerado como um Diktat (imposição) das potências vencedoras à Alemanha (que não fora derrotada militarmente) e não um Tratado (Vertrag), sobretudo tendo em conta as suas duras e humilhantes imposições à Alemanha (incluindo o desmantelamento da marinha de

guerra e da aviação, a redução das forças armadas – a Reichswehr – a 100.000 homens, a proibição de possuir aviões de combate, blindados, artilharia pesada e navios pesados de guerra como couraçados e cruzadores, bem como o pagamento de elevadas indemnizações aos países vencedores e a desmilitarização da Renânia). Todavia, ainda que dominados os espartaquistas e derrubados os últimos conselhos de trabalhadores e militares “vermelhos” nos inícios da década de 1920, os nacionalistas alemães instauraram um nacionalismo ainda mais agressivo do que o militarismo prussiano e apostado no ressurgimento alemão como uma grande potência militar e colonial, cuja voz principal começou por ser um antigo combatente altamente condecorado, Ernst Jünger, que, na sua obra seminal (para os nacionalistas e ressentidos da derrota alemã) In Stahlgewittern (Tempestade de Aço), baseado em anotações que coligira enquanto combatia na frente, que glorificava a própria guerra e a violência e a morte que lhe estão associadas; contudo, o livro de Jünger não continha quaisquer referências à política, aos impérios ou à invasão e conquista de países estrangeiros, lacuna que acabou por ser preenchida por outro nacionalista, Adolf Hitler, cuja obra fundamental Mein Kampf (Minha Luta) faz claras referências à política e à conquista do Lebensraum (Espaço Vital), que mais não era do que os territórios de países estrangeiros (Áustria, Checoslováquia, Polónia, URSS, Estónia, Letónia e Lituânia), e à superioridade racial alemã face às raças inferiores, onde se incluem os judeus, que são igualmente

acusados de terem traído a Alemanha e o Exército alemão em prol dos seus interesses económicos. Primeiro Jünger e depois Hitler terão influenciado de tal forma o adolescente/ jovem adulto Bruno Langbehn que este, após se ter mudado com os pais para Berlim, em 1922, aproximou-se de um pequeno partido nacionalista e antissemita, o DVFP (Deutschvölkische Freiheitspartei, Partido Alemão Völkisch7 da Liberdade), liderado por um general nacionalista alemão e ídolo dos alemães pelos seus feitos na Grande Guerra, Erich Ludendorf, e por um membro do Partido Nazi (então ilegalizado na sequência do Putsch de novembro de 1923 em Munique), Gregor Strasser. Todavia, procurando ação em vez de apenas retórica (a que se limitava o DVFP), Bruno Langbehn afastou-se do DVFP e, aos 18 anos, alistou-se num movimento Völkisch, dirigido por um membro do Partido Nazi e anterior comandante-chefe das SA, Ernst Röhm: o Frontbann8 , que era constituído por cerca de 30.000 homens. Tendo o Frontbann sido reabsorvido pelas SA na sequência da revogação da proibição destas após o falhanço da tentativa de Putsch nazi de 9 de novembro de 1923 e da condenação e prisão de Adolf Hitler e de outros líderes nazis, Bruno Langbehn não transitou de imediato para as SA, mas deixou-se enfeitiçar pelo carisma de Hitler, que acabara de derrotar a sua oposição interna no Partido liderada por Gregor Strasser. No fundo, seguindo as palavras de Martin Davidson, o que começara por ser um anseio político amorfo de Bruno Langbehn, transformara-se no

1- Que deveu o seu nome ao nome da cidade onde foi aprovada, em 1919, a nova Constituição (Weimarer Verfassung), que vigorou até 1949 (ainda que tendoa sido suspensa durante o regime nazi), sendo então substituída pela Lei Fundamental de Bona (Bonner Grundgesetz), que ainda vigora na atualidade. 2- Grupos paramilitares constituídos por veteranos inconformados com o regresso à vida civil e chefiados por oficiais que, tendo alcançado postos elevados na hierarquia militar, desejavam continuar a exercer esses postos, ainda que de modo não oficial, e onde se incluíam alguns futuros altos dignitários do regime nazi e líderes militares do período do III Reich. 3- Deutschnationale Volkspartei (DNVP). 4- A Liga Spartakus (Spartakusbund em alemão) foi criada na Alemanha durante a Primeira Guerra Mundial (designando-se inicialmente "Grupo Internacional"), sendo liderada por Rosa Luxemburg, Karl Liebknecht, Clara Zetkin, Franz Mehring, etc. (embora com predominância dos dois primeiros) e constituindo a oposição à esquerda no interior do SPD (Sozialdemokratische Partei Deutschlands), o Partido Social-Democrata. Durante a Grande Guerra, a Liga organizou greves e manifestações contra o militarismo alemão e disseminou propaganda revolucionária (fazendo circular panfletos ilegais), ocorrendo confrontos violentos com as forças da ordem. A partir de 1917, a Liga associa-se ao USPD (Unabhängige Sozialdemokratische Partei Deutschlands), o Partido Social-Democrata Independente, que era formado por antigos deputados do SPD que haviam sido expulsos do SPD na sequência de, sob a liderança de Hugo Haase, se terem manifestado contra a guerra em pleno Parlamento (Reichstag). Contudo, tendo-se constituído como uma organização partidária independente e com programa político próprio, a Liga rompe com o USPD e adere à Internacional Comunista (Komintern) em dezembro de 1918, participando no congresso em que foi criado o KPD (Kommunistische Partei Deutschlands), o Partido Comunista Alemão, entre 30/12/1918 e 01/01/1919. Em janeiro de 1919, a Liga, o KPD e o USPD tomam parte em grandes manifestações de rua contra o governo de Weimar (liderado por Friedrich Ebert, o líder do SPD), que, auxiliado pelos Freikorps (que combatem juntamente com as forças governamentais), põe fim a uma tentativa de greve geral e de instauração de uma revolta comunista em Berlim para derrubar o regime. E Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht são assassinados por membros de um Freikorps.

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Bruno Langbehn, O Perfeito Nazi Duarte Rodrigues Nunes

embrião de um culto da liderança, primeiro adulador e posteriormente obsessivo por força do seu entusiasmo pelas dimensões das ambições nazis e das promessas de Hitler. Com a estabilização do regime de Weimar com o fim da hiperinflação e o decurso dos anos (que ia apagando progressivamente as lembranças da Grande Guerra) e com a recuperação da respeitabilidade das Alemanha por via dos acordos de Locarno e da adesão/aceitação da Alemanha como membro da Sociedade das Nações (SDN), muitos alemães começaram a pôr de lado o seu radicalismo (de extrema-esquerda ou de extrema-direita) e a sua visão antirregime de Weimar e adaptaram-se ao regime instituído, usufruindo das sensíveis melhorias daa condições de vida sob a égide do regime democrático após a contenção da inflação galopante que atingiu o país até 1924. Todavia, ao contrário dessas pessoas (muitas delas da sua geração), Bruno Langbehn, que apesar da sua pertença ao Frontbann, não era ainda um membro efetivo do Partido Nazi nem das SA, em 17 de maio de 1926 (quando contava apenas 19 anos), atraído pela amálgama de ideologia, violência e antissemitismo que caraterizava os nazis, aderiu ao Partido Nazi e às SA, fazendo questão de envergar o uniforme castanho das SA. Desconhecem-se pormenores acerca da participação de Bruno Langbehn nos frequentes confrontos de extrema violência que, naquele tempo, opunham membros das SA e membros de milícias de partidos rivais (maxime do Partido Comunista), mas sabe-se que, juntamente com outros antigos membros do Frontbann, integrou o Sturm 33 e, mais tarde, o Sturm 31 (criado em virtude do grande aumento de efetivos do Sturm 33, que, em 1930/31, teve de criar uma unidade “subsidiária” para absorver os “excedentes” ), ambos sedeados no bairro

de Charlottemburg, onde Bruno residia. O Sturm 33, comandado pelo Standartenführer Friedrich (Fritz) Hahn , foi um dos grupos mais violentos das SA. De todo o modo, tudo indicia que, como membro do ultraviolento Sturm 33 e, mais tarde, do Sturm 31 (cujas façanhas não terão atingido a gravidade das do Sturm 33, embora também tendo perpetrado atos de extrema violência), comandado pelo Sturmführer Heinrich Kuhr, Bruno Langbehn tenha tomado parte em atos de violência extrema contra comunistas (sobretudo nas “expedições punitivas” a bairros operários, como Neukölln e bairros operários da zona de Charlottemburg, ou em comícios organizados pelo Gauleiter do Partido em Berlim, Josef Goebbels, que terminavam frequentemente em rixas com comunistas que invadiam os comícios). Ao mesmo tempo que participava nas arruaças e nos atos de violência em que intervinham as SA, Bruno Langbehn terminou a sua formação como Dentist (odontologista), o que lhe permitiu ascender a uma elite minoritária da sua unidade das SA, cujos membros eram, essencialmente, operários e desempregados. Bruno Langbehn viu-se envolvido numa luta de poder entre alguns líderes das SA (Walther Stennes e Franz Pfeffer von Salomon) e Adolf Hitler, pugnando aqueles pela tomada do poder pela força (e não através de eleições, como pretendia a liderança do partido) e a subordinação do Partido Nazi às SA (que seriam um novo modelo de exército, que deveria tomar o poder pela força) em lugar daquilo que sucedia (i. e. a subordinação das SA ao partido), pois uma das unidades que apoiavam a revolta desencadeada por Stennes (na sequência da demissão de Pfeffer por Hitler) era o Sturm 31 (que chegou a ocupar a redação de um dos jornais nazis, Der Angriff, em Berlim). Como se manteve fiel à liderança de Adolf Hitler, Bruno Langbehn, foi alvo de tentativas de expulsão por parte de Heinrich Kuhr. Todavia, tendo-se queixado perante

6- Nos anos finais da República de Weimar, ainda que tendo desparecido os Spartakistas, grupos armados comunistas lutavam frequentemente com grupos armados das SA. 7- Correspondente à nossa Câmara Municipal 8- Não existe uma tradução específica da palavra para o português. Apesar de, em termos literais, possa ser traduzida como “popular” ou mesmo “populista”, o sentido com que é utilizada em alemão refere-se à pertença ao povo (Volk), mas num sentido nacionalista e racista, considerando que os judeus não fazem parte da comunidade popular nacional alemã (Volksgemeinschaft). 9- O Frontbann, organização nazi de que pouco se fala surgiu com a finalidade de contornar a proibição do Partido Nazi e das suas organizações (mais concretamente as SA). Com efeito, na sequência do Putsch (golpe de Estado) falhado de 9 de novembro de 1923 (conhecido por “Putsch da Cervejaria”, por ter tido início na Bürgerbraukeller, uma cervejaria de Munique frequentada pelos líderes nazis), que visava derrubar o Governo do Estado da Baviera e que valeu a morte a 16 nazis (abatidos pela polícia na sequência de um tiroteio entre a polícia e os revolucionários nazis) e a prisão de vários líderes do Partido, incluindo Adolf Hitler, o Partido Nazi e as SA foram ilegalizados pelo Governo. Para contornar a proibição, o Partido Nazi (NSDAP: Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei, Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães) foi substituído pelo Partido Nacional-Socialista da Liberdade (Nationalsozialistische Freiheitspartei) e as SA, lideradas por Ernst Röhm, foram substituídas pelo Frontbann. O Frontbann existiu entre abril de 1924 e fevereiro de 1925, sendo incorporado de novo nas SA, cuja ilegalização havia sido revogada. O mesmo sucedeu com o Partido Nacional-Socialista da Liberdade, que existiu igualmente entre abril de 1924 e fevereiro de 1925, sendo reabsorvido pelo Partido Nazi, cuja proibição também havia sido revogada, por se entender que Adolf Hitler, que fora condenado a uma pena extremamente exígua e que havia sido libertado da prisão em dezembro de 1924, aprendera a lição e não voltaria a atentar contra a República de Weimar. Pura ilusão. .

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a USchlA , as tentativas de Kuhr fracassaram e Bruno manteve-se nas SA. Com a nomeação de Adolf Hitler como chanceler do Reich em 30 de janeiro de 1933, iniciou-se uma nova etapa na vida de Bruno Langbehn, transformando-o, aos 26 anos, num membro da nova raça de iniciados do regime nazi, acabando por usufruir da fidelidade demonstrada desde os tempos do Frontbann. Após o incêndio do Reichstag, em 26 de fevereiro de 1933, o Sturm de Bruno transformou o bairro de Charlottemburg no seu feudo, dirigindo-se os seus membros sempre que queriam e para onde queriam, embora, não já numa longa sucessão de rixas com comunistas, mas numa campanha organizada e metódica, executando planos previamente definidos nos bairros comunistas de Berlim e detendo um grande número de opositores do regime hitleriano, que eram presos e sujeitos a tortura (e mesmo mutilados e assassinados) nos bares, apartamentos e escritórios que serviam como posto de comando das unidades das SA (que, só em Berlim, totalizavam cerca de 200), antes de serem enviados para outros centros de detenção maiores e, com a criação do campo de concentração de Dachau em 1934, para os campos de concentração. Tal barbárie, em vez de ser objeto de severas punições, era elogiada pela liderança nazi, sendo prestadas homenagens e atribuídas condecorações a muitos dos perpetradores. Embora a maioria dos líderes e inúmeros outros membros das SA tivessem sido assassinados na Noite das Facas Longas (Nacht der langen Messer) de 30 de junho de 1934 para 1 de julho de 1934 e, nos tempos que se seguiram, o número de membros das SA tivesse diminuído abruptamente (de quase 4.000.000 para pouco mais de 2.500.000 em setembro de 1934), Bruno Langbehn, que não fora minimamente molestado pela repressão exercida sobre as SA, manteve-se nas fileiras das SA. E, mais do que isso, foi agraciado

com a medalha de Honra de Ouro (que requeria uma filiação longa e ininterrupta no Partido e um número de militante inferior a 100.000, conferindo um estatuto de elite dentro do Partido) e nomeado para o Tribunal de Honra das SA (Ehrengericht), que se destinava a punir e expulsar os elementos “indesejáveis” das SA, designadamente os que tivessem alguma relação com o (pseudo)Putsch de Ernst Röhm ou que levassem uma vida inadequada em termos de imoralidade, carreirismo, materialismo, fraudes, furtos, excesso de bebida, gabarolice e dissipação de bens (mas não torturas, detenções arbitrárias intimidações ou homicídios). Todavia, o grande objetivo do Ehrengericht era justificar os homicídios da Noite das Facas Longas e garantir a credibilidade da versão (inventada) dos factos veiculada por Hitler junto do povo alemão. Desta forma, Bruno Langbehn transformou-se num verdadeiro Apparatchik do regime nazi, tirando claros benefícios pessoais dessa condição. Contudo, as SA já não mereciam a confiança da liderança do Partido e, em particular de Hitler, tendo perdido, de forma irrecuperável (a favor das SS) o prestígio e a influência que haviam tido no passado e, por isso, já não podiam proporcionar a Bruno Langbehn a “realização política” que ele tanto prezava. Por isso, Bruno Langbehn, que chegara a Sturmführer das SA, decidiu, no final de 1936, abandonar as SA e ingressar nas SS, que haviam sido as grandes vencedoras da Noite das Facas Longas e gozavam de um grande prestígio junto de Hitler.

Continua...

10- Os Stürme das SA eram constituídos, em regra, por cerca de 60 membros, sendo que, com o rápido aumento das adesões às SA na sequência da Crise de Wall Street de 1929 e do desemprego que gerou na Alemanha, o número de efetivos duplicou e, nalguns casos, triplicou, obrigando a uma reorganização das SA, quer criando novas unidades quer dividindo as já existentes em subunidades. 11- Patente que, nas SA e nas SS, equivalia à de coronel (Oberst) ou de capitão-de-mar-e-guerra (Kapitän zur See) nas forças armadas. 12- Fritz Hahn, um indivíduo extremamente violento, teve de fugir da Alemanha em 1931 para escapar à punição, em virtude de ter morto um comunista (fugiu para a Holanda, apenas regressando após os nazis terem tomado o poder). Foi substituído por outro indivíduo, também ele extremamente violento, Hans Maikowski, morto em 31 de janeiro de 1933 numa rixa entre membros das SA e comunistas durante as comemorações da nomeação de Hitler como chanceler. 13- Patente que, nas SA e nas SS, equivalia à de 1.º tenente (Oberleutnant) nas forças armadas. Mais tarde, esta patente foi substituída pela de Obersturmführer.

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FLORES NA ABISSÍNIA Carla Coelho

UMA OSGA, UM PEIXINHO E ESTA ESCRIBA ENCONTRARAM-SE EM MALACA

É do que me lembro quando recordo os meus dias em Malaca. A ausência quase total de sinais da presença portuguesa, com excepção de um simulacro do pastel de nata que, valha a verdade, não me convenceu. É engraçado como os portugueses deixaram um rasto de doce na Ásia o pastel de nata de Malaca, os fios de ovos da Tailândia, e o pão de ló (castela) no Japão.

De Malaca não me lembro de nenhum rosto, nenhuma conversa, nenhuma troca de olhares. Dois seres vêm à minha memória. Um peixe e uma osga. Ela decidiu partilhar o quarto comigo numa das noites que por lá passei. Não me apeteceu fazer a figura do estrangeiro que não aguenta a mínima contrariedade e pedir na recepção que me mudassem

de quarto. Aliás, talvez decidissem antes matá-la e para mim isso estava fora de questão. Afinal, se formos ser absolutamente honestos nada me tinha feito para gerar-me incómodo. Apenas tinha dificuldade em ver-lhe a beleza que certamente teria (todas as criaturas criadas por Deus a têm, ainda que nem todos os olhos a percepcionem, como me disse um amigo jesuíta). Por isso, aguentei a inesperada partilha de quarto. Não sou tão estóica como gostaria, pelo que acabei por dormir com o candeeiro da cabeceira da cama aceso. Li algures que as osgas não se aproximam de luz e pareceu-me que assim estaria em segurança. E assim foi. Quando acordei de manhã não havia sinais da intrusa (ou seria eu quem se tinha metido onde não era o seu lugar?) e vivi para contar. O outro ser que conheci em Malaca foi um dos peixes residentes no lago do pátio interior do hotel. Claramente um

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optimista, quando o encontrei estava a debater-se com dificuldades respiratórias decorrentes de uma pirueta mal calculada que o tinha levado a aterrar, não do outro lado do lago (como por certo desejaria) mas em terra firme. Agi de forma rápida, pois os primeiros (e últimos) socorros eram evidentes: agarrei-o (o que não foi afinal fácil, pois era muito pequeno – vermelho, quase incolor na zona da barriga, com uma ligeira risca amarela no rosto - e no seu esforço para respirar debatia-se com veemência). Uma vez apanhado atirei-o para dentro do lago, onde logo se recompôs, seguindo o seu caminho.

Eu, a osga e o peixinho. Os três vivos, cada um a seguir a sua vida, ainda que por breves instantes nos tenhamos

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cruzado e a lotaria biológica me tenha colocado em posição de decidir se viveriam ou se a sua história acabava no momento do nosso encontro. Em boa verdade, na ordem geral do universo somos (vou acreditar que continuam vivos passados estes anos) os três seres pequenos com pouco ou nenhum poder. Gostaria de acreditar que, cruzando-me com um ser mais poderoso do que eu (por exemplo, uma hiena em plena selva africana ou um desses senhores da guerra armado até aos dentes), também ele escolherá deixarme viver ou, quem sabe, sofrer mesmo um ligeiro incómodo para garantir mesmo que assim seja (aposto mais na hiena, nesta última situação).


FLORES NA ABÍSSINIA U ma osga , u m pei x i n ho e esta escr i ba encont r a m-se em Malaca

*........................................ A bandeira da Ucrânia é amarela e azul. O amarelo simboliza os campos de trigo. O azul, o céu. Uma bandeira poética, sem dúvida. * A História está cheia de exemplos de gente (que vem nos manuais e tem retratos pintados nos museus) que viveu convicta de que estava acima dos outros. Aliás, os grandes monumentos do mundo (as pirâmides, os palácios onde viviam os reis, os dourados que cobrem os salões, a grande muralha da China, entre outros) apenas foram possíveis porque alguns poucos homens e mulheres acreditaram piamente que eram tão bons e esplêndidos que aos outros restava trabalharem para a sua glória, a custo zero. Esta não é, porém, uma ideia fácil de vender. Nunca, foi diga-se. Por isso, a História do mundo é feita de levantamentos, revoltas, conflitos, recusas em pagar impostos e em alistar-se nos exércitos feitos da força e sangue de outros que não os que declararam a guerra. Sempre me pareceu paradoxal este facto: não deveria, pelas mais elementares regras de decência, quem declara uma guerra ir à frente do exército? Esse bom hábito grego perdeu-se. A decência, tende a andar um bocado envergonhada, às vezes encolhida atrás da chamada “estratégia”. Um homem que inventa a História. Uns homens barbudos que vieram das montanhas e que estão a governar Cabul, apesar de não terem ganho as eleições. Vi há dias na televisão uma reportagem em que se relatava que homens e mulheres desse país já venderam um

dos dois rins que tinham para puderem comprar comida e medicamentos. De acordo com o jornalista, alguns ponderavam agora vender um dos filhos, para assegurarem a sobrevivência dos demais e também com a ideia de que o vendido poderia ter uma vida melhor. Aparentemente, sem terem ideia de que as redes de tráfico de crianças também as venderão para mendicidade, prostituição, escravatura e tantos outros horrores que convivem neste mundo com os céus azuis, as searas de trigo a oscilarem ao vento e o primeiro mergulho no mar num dia de Verão. O homem que entrou numa embaixada do seu país em Istambul para tratar de documentos e que desapareceu, tendo depois sido noticiado que por lá tinha sido morto.

* Em Alexis ou o Tratado do Vão Combate de Marguerite Yourcenar lemos “É quando abandonamos os princípios que convém munirmonos de escrúpulos”. Tinha 20 anos quando li esta frase e ficou sempre comigo.

Podemos abandonar a moral ou a ética convencional (não vou discutir agora, brevitatis causa, quais sejam). Convém, contudo, que a substituamos por um outro conjunto de regras (os escrúpulos) sob pena de concluirmos que não temos outro motivo de actuação do que o nosso interesse. Ora, agir de acordo apenas e tão só com o nosso interesse (ou numa linguagem mais

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coloquial “com o que nos apetece”) pode ser muitas coisas, mas não é ético, nem moral.

Há muitas formas de pensar a actual situação política internacional. Podemos analisá-la à luz da História, de princípios de relações internacionais, de interesses económicos ou problematizar as questões de estratégia militar, intervenção diplomática ou de recurso ao direito internacional. Tudo perspectivas válidas que deixo para os peritos em cada matéria.

nada! É para se viver com isso e poder pousar a cabeça no travesseiro à noite que se inventaram as narrativas pessoais, adulterando factos e criando “verdades alternativas”. E também há os soporíferos, claro. Talvez esta ideia seja rebuscada ou mesmo uma ilusão de óptica. Oxalá seja assim. Contudo, uma colega a quem expus esta minha opinião há dias não ficou surpreendida. Respondeu-me com simplicidade “sim, é só uma questão de escala”. Se calhar, estou para aqui a escrever o equivalente ao ovo do Colombo.

Por mim, observo os acontecimentos como uma peça de teatro num macro palco, análoga nas motivações (não nas consequências, claro) a tantos micro conflitos à escala privada nas vidas de todos nós. Pequenas peças do drama humano em que alguém que se pensa grande (ainda que apenas de forma ligeira) faz o que lhe apetece, altera alguns factos e esconde opiniões para conseguir de outro aquilo que quer. Porque pode. É a sua vontade. E podendo, porque haveria de privar-se de satisfazer o seu desejo? O que interessa o outro, a sua dignidade, os seus sentimentos? O que interessam os planos de terceiros a quem sonha com impérios que avistou num delírio? Para

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RÉ EM CAUSA PRÓPRIA Adelina Barradas de Oliveira

A AMEAÇA NUCLEAR QUE VEIO DO FRIO

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A guerra nunca partiu filho. As guerras são como as estações do ano: ficam suspensas, a amadurecer no ódio da gente miúda. Mia Couto “ O Último Voo do Flamingo”

A

maior potência mundial, um exército de ciber soldados, o maior arsenal nuclear do Mundo... estou aqui a pensar que a Rússia tem, certamente, alguma tática de sobrevivência ao tal arsenal nuclear. Assim como uma espécie de veneno e antídoto. Há dois dias achávamos que haveria o perigo de um acordo entre a China e a Rússia, vimos, depois, em Bruxelas, que a China não tomou posição, fez um discurso morno e que, quando chegou a hora de votar, absteve-se.

Mas então porquê esta passagem súbita em 3 dias para a prontidão do armamento nuclear? Putin não achou piada às sanções que lhe estão a ser aplicadas mas, será que o Homem que tem a quarta maior reserva financeira do mundo, está preocupado com estas sanções?

Todos nos lembramos das demonstrações do poderio bélico de ambas as potências em festivais de exercícios militares como em Vostok em 2018, que decorreu na Sibéria Oriental e no Extremo Oriente russo com a participação como convidada, da China... São jogos de Guerra....

Será por causa disso a prontidão da reserva nuclear?

Mas agora, os jogos de guerra estão já no nível de ameaça nuclear e Putin parece estar sozinho, mas pouco preocupado com isso. Que pretende Putin? Defender as suas fronteiras ou recriar o seu Império? Ou tornar a Ucrânia num Estado falido para poder avançar? A independência das duas regiões que a Rússia reconheceu não fragilizam a Ucrânia? Provavelmente acabará por fazer com que a Ucrânia deixe de ter interesse estratégico, no seu ponto de vista, para a NATO porque, para si, é indiscutível que é importante. Chegar a Odessa e fechar a Ucrânia ao mar, fragilizando-a economicamente, ....já está.

O que Putin pretende mesmo é mostrar poder recuperar tudo aquilo que provocou o desmantelamento da União Soviética e para ele foi o maior desastre geopolítico do século XX.

Tudo isto é violento para a Ucrânia, péssimo em termos futuros para o Ocidente! A Europa está desnorteada. A França tem eleições na Primavera, não vai arriscar. A Alemanha está a resolver a questão do gás com a Rússia sob o mar báltico .... E não é só a Polónia que se sente ameaçada com a possível invasão e desestruturação da Ucrânia.

Putin “desatou a avançar”, anexando e repondo o seu império, ou será que quer expandir-se ainda mais? E volto a pergunta: Porquê a prontidão da reserva nuclear? Em 3 dias ele desenvolveu uma Guerra preparada há anos. Não tenhamos ilusões, este conflito tem vindo a ser preparado com a frieza e a estratégia que só um Chefe de Estado com as características de Putin tem. Esta imagem triste de conquistar povos e território devia pertencer ao Império romano ... e esse já caiu há séculos.

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RÉ EM CAUSA PRÓPRIA A A M E AÇA N UCL E A R QU E V E IO DO F R IO

A Rússia sabe que é um País Gigantesco...tem armamento nuclear e já o publicitou, tem uma lógica completamente diferente da lógica do Ocidente. Kiev foi alvo de avanços Russos ainda esta semana que passou: Se Putin nada quer a não ser afastar uma possível “estadia” das forças da Nato nas suas fronteiras, ... porque entra pela Ucrânia em tantas frentes e fala de prontidão do arsenal nuclear? Nós não somos Russos dizem os Ucranianos. Nós falamos a mesma língua, nós temos as mesmas origens... mas não somos russos. Não queremos ser Russos. Mas passando os olhos pela história deparamonos com laços Históricos e Culturais entre a Ucrânia e a Rússia que nos mostram um leste europeu de bárbaros, de origem iraniana, e lendárias amazonas no leste do mar negro, na Ucrânia, e em Kiev povos como os Rus que se misturam com os Eslavos. Kiev (quase na posse da Rússia hoje), tornou-se assim, naquela altura, o primeiro Estado russo unificado onde nasceu a identidade Russa. A União do primeiro grande principado de Kiev surge no séc. IX e decorre até o século XIII com os vikings vindos do Norte, do cristianismo chegado de Bizâncio, a sul, e do Leste através dos tártaros mongóis, pelos quais foi derrotada. E sob o domínio dos mongóis o Principado muda para Moscovo.

Não sei se destas mudanças que se avizinham com o gás a ser cortado à Europa, faremos negócios com a Argélia ou criaremos a hipótese de Espanha , Portugal e França terem o seu próprio negócio de gás. Sinceramente acho que Sines continuará à espera que reparem na região. Os Portugueses que já correram muito mundo, colaboraram no tratado de Nerchinsk (tratado de paz celebrado entre Pequim e a Rússia Czarista e que durante 171 anos delimitou a fronteira entre os dois Estados), assinado a 27 de Agosto de 1689, com tradução de um português -Tomás Pereira, jesuíta do Norte de Portugal , um dos dois jesuítas que integraram a delegação chinesa que o negociou, estarão atentos ao que a história lhes poderá trazer na Europa depois desta viragem que se avizinha? Talvez Portugal volte a ficar na História como importante em resoluções internacionais, quem sabe, seria pedir muito, num novo acordo de paz. Mas a única coisa que tenho certa e em nada resolve o que se está a passar, é que a 24 de Fevereiro de um ano que parecia querer darnos Paz, do lado Bielo russo da fronteira, perto de Kiev, a nordeste da Ucrânia ( com as bases militares ucranianas como pontos estratégicos,) acordou-se pelas 5h00 da manhã, não para apanhar um avião para uma qualquer viagem mas, para partir, ao que parece, para mais uma guerra

............................ Mas não vou continuar a desenrolar história por aqui, quem o entender que a leia. O que me preocupa são os alertas vermelhos do lado da Rússia. Não sei o que nos trará março, a primavera e a mudança da hora lá para o final do mês quando a primavera chegar...

E continuo como sempre, a não entender esta divisão de território no sentido de deter, possuir, dominar. Habitamos todos o mesmo espaço no Universo Mas foi assim sempre pela história fora, numa repetição circular de cegueira, de ditadores que se apelidam de líderes, de viragens exacerbadas que não passam de impulsos cegos.... Os Egos são nós cegos.........

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E morre-se... porque, de um momento para o outro alguém decide que não importa como, nem porquê, nem quem vai morrer como um dano colateral inevitável, necessário, ...sem importância .......... A guerra é sempre uma reação irracional, um impulso de vingança, teimosia, falta de razão, plena de razões,

Talvez não... Foi a Ucrânia que esticou a corda... pode ter sido... Mas Guerra, Não. A única coisa que queremos é viver Todos, por esse Mundo fora... só queremos viver e em Paz. Até os Ucranianos que há muitos anos procuram fora da sua Pátria uma vida melhor. Será que alguns egos não têm mais nada para fazer?!

razões,

Cheguem-se à frente e avancem na primeira linha... Serve para ambos os lados...

Eu percebo tudo, o alargamento da NATO e a falta de senso na extensão até ao Leste depois do fim do pacto de Varsóvia... Eu percebo os jogos e os interesses económicos, percebo a Soberania dos Estados que querem escolher por razões de conveniência quase sempre política, quase sempre económica... Percebo que na altura a Rússia foi humilhada, que se ajustou à criação de Estados independentes apesar das convulsões que vieram a ser resolvidas com diplomacia...

E os outros deixem-se de discursos, inflamados e voluntariosos, de gabinetes microfones e gravatas. Somos todos tão pequeninos e quanto mais agressivos, mais pequenos.

A NATO nunca disse que aceitava a Ucrânia e, o facto de esta querer entrar na Aliança Atlântica, não implica a sua entrada... Ninguém foi claro...?

Ganhámos o Direito à Paz.

Mas,

independentemente

das

Guerra, NUNCA!

Às vezes compreendo porque é que alguns vão ao confronto por vontade própria, é que é tudo tão ditatorial que até a alma se revolta.

Não abdicamos dele.

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PANO PARA MANGAS Margarida Vargues

Há lá coisa melhor que um caderno a estrear, uma esferográfica, ou lapiseira, de pontas macias e uma tarde com todo o tempo do mundo? Haver, até há, mas não cabe no universo da escrita, pelo menos desta que faço sobre o papel. As minhas folhas, ainda virgens de palavras e, sobretudo, de emoções e sentimentos - não tenho como os separar uns dos outros - estão, ainda, sobre a cama, junto da qual gosto de me sentar. Passo muitas horas de pé ou em cadeiras pouco confortáveis, por isso o prazer do chão frio, da subtileza do tapete ou do acolchoado de um almofadão são o conforto que me acompanha nesses momentos.

Hoje escrevo um poema sem nexo. Amanhã uma frase solta que me vem à cabeça - quem sabe não a consigo transformar em seiscentas ou setecentas palavras… E depois uma teoria sobre o absurdo que é ter a mania de que se sabe escrever, como a que me acompanha desde que, no terceiro ano da Primária, a minha professora elogiou um qualquer texto que escrevi na altura. Desde então nunca mais parei. Escrevinho. Escrevo Apago. Amarroto. Deito fora. Mais tarde, volto a fazer tudo como se nada se tivesse passado anteriormente. Já perdi a conta aos caracteres desenhados. Já perdi o rasto às palavras

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o PR AZER da ESCR ITA abandonadas e não consigo contabilizar o que depois de escrever já editei. No fim, apenas há lugar para aquilo que julgo ser perfeito - e ainda assim fico, muitas vezes, na dúvida. Ou será insegurança?

Guardo outras! Que carregam saudade, carinho, tristeza, alegrias sem fim, felicidade e até esquecimento. Lembro-me de há quase três décadas ter um diário, no qual registava os meus dias, porém alguns havia em que apenas tinha expressão para “O dia de hoje foi tão bom, que nunca o hei de esquecer!” Que ilusão! Que engano de alma! Que sacrilégio! À distância dos anos, pego nesse mesmo diário e leio o que está antes e depois destes tais “dias inesquecíveis”, mas nem uma pequena chama aviva a minha memória. Tenho fé que a idade e a senilidade mos tragam de volta, não tanto pela saudade que possam provocar, mas pela curiosidade de querer saber o que hoje me está vedado - não se diz que com o avançar da vida nos lembramos de coisas que julgávamos esquecidas? Há dias encontrei, também, “recadinhos de liceu”. Não havia telemóveis e a tecnologia mais moderna que nos passava pelas mãos eram pequenos pedaços de papel onde, com lápis ou esferográfica, combinávamos encontros depois das aulas, idas ao Rotunda - o café onde se encontrava meio mundo e mais alguém, onde íamos para ver e sermos vistos - ou à Bijou para uma partida de Tetris, nas muito disputadas máquinas que lá havia, entre trocos de vinte escudos e o fumo do tabaco que nos toldava a

vista e se entranhava na roupa. Era nesses momentos que também planeávamos faltar às aulas - o cerco não era tão apertado como hoje em dia e, até ficarmos tapados com faltas, ninguém se preocupava em comunicar as nossas ausências aos Encarregados de Educação. Era quase até ao limite. Já na faculdade, era também em papel que escrevia verdadeiros tratados de cábulas. Minúsculos livrinhos, de páginas com frente e verso, agrafadas ao meio que ainda guardo, mas que já não consigo ler - pelo menos uma grande parte. Não que se tenham apagado, os meus olhos é que já não são os mesmos! Ficavam quase sempre por usar, mas fazia-as. Eram uma espécie de porto de abrigo que levava escondido na roupa para o caso de ser apanhada por alguma tempestade. E entre páginas escritas, muitas são as que são lidas. A escrita e a leitura são, para mim, indissociáveis. A minha estante é habitada por nomes de vários continentes, e assuntos sem fim. Preciso, até, de comprar uma nova, pois o espaço já escasseia, e livros e cadernos começam a ficar sobrepostos num caos ordenado por quem conhece as lombadas de cor. O carteiro teima em trazer-me livros de duas em duas semanas e é-me impossível sair de uma livraria sem que um qualquer volume venha colado às minhas mãos. Com os cadernos acontece exactamente o mesmo…

Afinal: ler ou escrever? Como diz o povo: “Venha o diabo e escolha!

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Se pensa que o noivado está fora de moda, tire daí a ideia. Tem filhos casadoiros? Então a conversa também é consigo, ou melhor, é mesmo consigo. E é com toda a etiqueta? Ou corta a etiqueta? Umas vezes, sim. Outras vezes, não. E há ainda as outras, quando a coisa é mais para o assimassim.

Mãe, às vezes não chega beber chá em pequena, é preciso ter herdado a chícara. Sendo assim, no final, o bolso e o gosto vão ditar o melhor caminho para chegar ao anel.

Pois bem. Vejamos. O que é que o noivado implica? (Ou complica?) Há obviamente duas famílias num noivado. Podem conhecer-se bem, assim-assim, bem-mal ou não se conhecerem de todo. É, pois, obrigatório organizar um acontecimento para que se cruzem, para estalecerem uma ligação melhor, uma boa comunicação. É um encontro importante? Claro que é. Do sucesso desse encontro depende muitas vezes o sucesso do dia do casamento. Que tipo de acontecimento devemos organizar? Almoço? Jantar? Em casa? No restaurante? Pois, depende. E depende de quê? De tudo, basicamente.

Acontece com frequência a noiva oferecer um presente ao noivo na mesma ocasião: um relógio, uma caneta ou uns botões de punho têm a vantagem de uma grande variedade de modelos e preços. Mas também pode optar por um outro presente que agrade ao noivo: um livro, uma obra de arte, uma peça de colecção, enfim, as possibilidades são infinitas. O objectivo é sempre o mesmo - ir ao encontro do outro.

Os noivos têm obrigação de conhecer as famílias que têm. Com base no conhecimento que têm da sua família e da família do outro, devem optar pelo que melhor se enquadra no seu caso. Um jantar parece na maioria das vezes mais adequado, mas se tiver uma casa no campo, com espaço, o almoço pode ser uma boa aposta. E no restaurante ou em casa? Podendo, em casa é sempre mais simpático. Mas, se a sua casa não tiver as condições ideais, se não se sentir à vontade ou não tiver ajuda para a ocasião ou jeito para organizar, descontraia-se. Escolha um restaurante que tenha um espaço um pouco reservado, e, de acordo com o número de pessoas, escolha (ou não) uma ementa simples, mas requintada, incluindo as entradas. Não deixe ao critério de ninguém os pormenores, pois é fundamental que se sinta em casa. E quem convida quem? Os pais da noiva convidam para o jantar do pedido e o noivo oferece o anel à sua “amada”. O anel é uma escolha do noivo que deve tentar ir ao encontro dos gostos da noiva. Por isso, o melhor é usar alguns truques exploratórios para não falhar na escolha. No entanto, em circunstância nenhuma, a noiva pode mostrar o seu desagrado em relação à escolha. Aí, não quebra a etiqueta, mas demonstra uma total falta de maneiras, ou seja, como dizia uma grande amiga da minha

Quem se convida para este acontecimento? Normalmente estão além dos pais dos noivos, os irmãos e cunhados, os avós, eventualmente. Se o jantar for um pouco mais alargado podem estar os tios e, quando já se convidaram padrinhos, também estes. Quanto às crianças, é um critério muito pessoal. Mas se forem pequenas, talvez seja melhor ficarem nesse dia em casa. Os pais devem preparar umas palavras para dizerem na ocasião. Nada de espampanante, mas podem mostrar o seu agrado com a perspectiva da entrada de um novo membro para a sua família, e dizer algumas frases mais

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MARGARIDA DE MELLO MOSER.

VOCÊ CORTA A ETIQUETA? No A iva qu d an o.. to . ob ri ga s

Já está. ou menos circunstanciais, conforme o tipo de contacto que já tenham com os interlocutores. Dito tudo isto, não sei se não devíamos ter começado pela ementa, mas vamos ainda a tempo. Tal como referi em relação ao restaurante, a ementa deve ser simples, mas requintada. Se tiver ajuda, pode fazer coisas mais elaboradas, se não tiver ... não complique. Sem ajuda, dê preferência a uma entradas que podem estar preparadas: queijo, patês, presunto, por exemplo, e pão e tostas. No Inverno, uma sopa quentinha, cai sempre bem. No Verão, uma sopa fria também cai. Escolha pratos de forno com uma salada no Inverno e pratos frios, já preparados no Verão. As sobremesas .... Há tanta escolha! Resolva-se! A fechar o jantar, a pinga que é parte importante neste acontecimento, diria mesmo, fundamental: um vinho para as entradas, um para o repasto propriamente dito e não se esqueça que há comemoração, por isso, escolha um bom espumante ou mesmo champagne. Eu até sugeria uma alternativa menos comum, mais portuguesa: um bom Porto ou um bom Madeira.

A roupa que deve vestir? Depende, depende de muitos factores. Mas, dê atenção especial à ocasião, sem ser demais. Todos os presentes sabem que é um acontecimento de grande importância para a família e por isso vão-se vestir tendo isso em atenção. E depois desta comemoração, baralhamos e voltamos a dar. É a vez dos pais do noivo retribuírem o repasto. Quase tudo se aplica também aqui. Almoço ou jantar? Casa ou restaurante? E por aí adiante .... Sem meter muito corte na etiqueta. A seguir, é melhor pensarmos nos preparativos para o casório ....

Notada autora: As fotografias que ilustram o artigo são uma cortesia da Torres Joalheiros

Não se esqueça das flores: pequenos apontamentos ou um centro de mesa, como preferir, simples e com pouca altura. E ....

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MARGARIDA VARGUES

Fugir da Guerra Lembro-me do primeiro dia em que aqui entrou. Vinha de cabeça em baixo, num misto de vergonha, medo, respeito e submissão. Havia, também, alguma revolta nos seus tímidos gestos. Acabava de chegar da Ucrânia. Não conhecia ninguém. Numa primeira conversa, na única língua comum - o inglês - acabei por perceber que fugia da guerra. Mas que guerra? A guerra que podia estalar a qualquer momento... Nao queria ter vindo. Deixara para trás os amigos, alguma família, os seus hábitos e o seu mundo de adolescente. A contrariedade toldou o seu olhar meses a fio, depois daquele primeiro encontro. A revolta e a contrariedade dentro de si dificultavam a aprendizagem do português com a desenvoltura desejada, que eu já experienciara noutros alunos, e apenas este ano a evolução é notória. Nunca teve PLNM na escola que frequenta não sei bem porquê: não há turma, não há professor, não há horário, não há vontade... Em Outubro vi-lhe a felicidade estampada no rosto ao saber que iria regressar para passar o Natal, rever a família, os amigos e os lugares que deixara para trás há mais de dois anos. No regresso trazia um misto de sentimentos dentro de si e acabou por me confessar que tinha gostado muito de estar na Ucrânia, mas que Portugal já era a sua casa. Disse-me tudo isto com alguma culpa, como se não fosse suposto sentirse assim, como se o dever com a pátria

estivesse a ser traído por uma espécie de amor maior. A última aula que tivemos foi na manhã anterior ao rebentar da guerra. Ao acordar com a notícia, foi a primeira pessoa que me veio à cabeça e não pude deixar de pensar em como se sentiria naquele momento. Soube, entretanto, que alguns dos seus que lá estão, se encontram, neste momento, em abrigos subterrâneos... Um dia que volte - se isso acontecer aquele que foi o seu berço será, com certeza, apenas uma sombra, uma mancha acinzentada, uma ruína do que, por vezes, me descreve com os olhos postos no vazio e a saudade na voz, como um lugar bonito e que eu gostaria de visitar. Tens de lá ir, disse-me já, tantas vezes... Sinto-me impotente e o sal cobre-me o rosto enquanto trocamos mensagens de dor, de medo e de tristeza, de fé, de esperança e de oração. Trago estes miúdos cá dentro e, se pudesse, aliviava-lhes as dores, especialmente em momentos de agonia como o que se vive agora, como o que se vive demasiado perto para que possa parecer uma ilusão...

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