Vulnerabilidade e o uso de drogas

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Organizadores: FREDERICO GARCIA MICHELLE RALIL DA COSTA LÍVIA PIRES GUIMARÃES MAILA DE CASTRO LOURENÇO DAS NEVES

Vulnerabilidade e o uso de drogas


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Ficha Catalográfica | Vulnerabilidade e o uso de drogas Os autores e os organizadores se empenharam para citar adequadamente e dar o devido crédito a todos os detentores de direitos autorais de qualquer material utilizado neste livro, dispondo-se a possíveis acertos posteriores caso, inadvertida e involuntariamente, a identificação de algum deles tenha sido omitida. Os organizadores se esforçaram ao máximo para assegurar a qualidade técnica do conteúdo deste livro, apesar disso, em conformidade com as normas de imprensa, a responsabilidade por conceitos ou opiniões emitidas nos capítulos assinados cabe inteiramente aos autores. Copyright 2016 by CRR-UFMG Reservados todos os direitos. É proibida a duplicação ou reprodução deste volume no todo ou em parte, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrônico, mecânico, gravação, fotocópia, distribuição na internet ou outros), sem autorização escrita do CRR-UFMG. Organização Frederico Garcia Michelle Ralil da Costa Livia Pires Guimarães Maila de Castro

Revisão Ortográfica Magda Barbosa Roquette Taranto

Produção Gráfica Assessoria de Comunicação Social Gilberto Boaventura Projeto Gráfico e Diagramação Luiz Romaniello Neto Atendimento Publicitário

ISBN-978-85-66115-76-5

Desirée Suzuki Guilherme Lacerda Imagem de Capa Ana Valadares

9 788566 115765

eV991 Vulnerabilidade e dependência química / organizado por Frederico Duarte Garcia [et al] . – Belo Horizonte : 3i Editora, 2016. 354 p. il. 1. Saúde pública. 2. Vulnerabilidade. 3. Drogas-Prevenção. 4. DrogasTratamento. I. Garcia, Frederico Duarte. II. Costa, Michelle Ralil da. III. Guimarães, Lívia Pires. IV. Neves, Maila de Castro Lourenço das. V. Título. CDU 614 615.9 Núcleo de Pesquisa em Drogas, Vulnerabilidade e Comportamentos de Risco a Saúde Centro Regional de Referência em Drogas da UFMG – CRR-UFMG Avenida Professor Alfredo Balena, 190/ Sala 240 CEP 30130-100 – Belo Horizonte – MG – Brasil Telefone (31)3409-9785/3409-9786 Página internet: crr.medicina.ufmg.br Email: crrdrogas.ufmg@gmail.com


sumário Lista de Figuras............................................................................................................06 Sobre os Organizadores.................................................................................................07 Sobre os Autores...........................................................................................................08 Apresentação...............................................................................................................13 Sessão 1: Conceitos e definições de vulnerabilidade..........................................................15 Capitulo 1: Conceito de vulnerabilidade e sua aplicação nos transtornos do uso de drogas..17 Capitulo 2 Epidemiologia da vulnerabilidade associada ao uso de drogas.......................27 Capitulo 3: Vulnerabilidades, estigma e uso de drogas....................................................37 Capitulo 4: Violência, vulnerabilidade e uso de drogas...................................................49 Capitulo 5: Vulnerabilidade, guerra contra as drogas: uma abordagem econômica atual..65 Capitulo 6: Drogas, vulnerabilidades e relacionamentos contemporâneos.......................75 Sessão 2: Populações vulneráveis.....................................................................................91 Capitulo 7: Vulnerabilidade clínica em pacientes com dependência química: quando a vulnerabilidade é o corpo................................................................................................93 Capitulo 8: As vulnerabilidades associadas às minorias sexuais que usam substâncias psicoativas..................................................................................................................107 Capitulo 9: Os desafios enfrentados pelos filhos no convívio com pais usuários de substâncias psicoativas...............................................................................................125 Capitulo 10: Vulnerabilidade nas mulheres usuárias de droga......................................137 Capitulo 11: Gestação e vulnerabilidade ......................................................................153 Capitulo 12: Infância e vulnerabilidade........................................................................165 Capitulo 13: População em situação de rua e vulnerabilidade ......................................181 Capitulo 14: O Sistema Prisional - Droga, criminalidade e seus efeitos: aspectos de vulnerabilidade......................................................................................................193


Capitulo 15: Vulnerabilidade em profissionais de saúde...............................................211 Capitulo 16: A interface da vulnerabilidade abordada pela atenção básica na saúde e na assistência..................................................................................................................245 Sessão 3: Abordagem da vulnerabilidade e do uso de drogas ............................................263 Capitulo 17: A vulnerabilidade dos agentes de segurança pública.................................265 Capitulo 18: Práticas em prevenção................................................................................277 Capitulo 19: Abordagem da família no cenário de vulnerabilidades..............................297 Capitulo 20: Como as comunidades terapêuticas abordam a questão da vulnerabilidade...311 Capitulo 21: Terapia comunitária integrativa: saúde comunitária na prevenção e atenção ao uso e abuso de drogas............................................................................................329 Capitulo 22: A prática do consultório de rua na abordagem da vulnerabilidade associada ao uso de drogas.........................................................................................................349 Capitulo 23: A visita domiciliar motivacional em situações de vulnerabilidade..............365


lista de figuras Figura 1: Aspectos associados à vulnerabilidade para os transtornos do uso de sustâncias psicoativas....................................................................................................................31 Figura 2: Prevalência do uso de bebidas alcoólicas entre os adolescentes brasileiros.....32 Figura 3: Modelo pré-moderno.......................................................................................78 Figura 4: Modelo moderno.............................................................................................79 Figura 5: Modelo pós-moderno......................................................................................80 Figura 6: Impacto de experiências traumáticas e idade de início do uso de cocaína e crack ...143 Figura 7: Ilustração do modelo de vulnerabilidade social na população em situação de rua...184 Figura 8: O perfil do indivíduo em situação de rua conforme o Terceiro Censo de População em Situação de Rua e Migrantes de Belo Horizonte.......................................................185 Figura 9: Pirâmide etária da população em situação de rua de Belo Horizonte de 1998 e 2013.............................................................................................................................186 Figura 10: Fatores de vulnerabilidade que contribuem para a formação da população de idosos sem situação de rua .........................................................................................187 Figura 11: Drogas mais utilizadas pela população em situação de rua..........................188 Figura 12: Uso de substâncias químicas pela população em situação de rua................188 Figura 13: Doenças mais prevalentes na população em situação de rua.......................189 Figura 14: Evolução da população carcerária no Brasil entre 1990 e 201216................199 Figura 15: Eficácia de políticas de drogas em resultados populacionais e individuais....284 Figura 16: Temas mais frequentes apresentados nas rodas de TCI................................340


Sobre os organizadores

Frederico Garcia é médico psiquiatra e coordenador do Centro de Referência em Drogas da UFMG. Atualmente lidera a equipe do Núcleo de Pesquisa em Drogas, Vulnerabilidade e Comportamentos de Risco a Saúde – UFMG. Professor do Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Medicina da UFMG. Psiquiatra Titular da Associação Brasileira de Psiquiatria. Doutor em Medicina Molecular pela Université de Rouen, França. Lívia Pires Guimarães Possui graduação em Psicologia pela Fundação Mineira de Educação e Cultura (2005), Especialização em Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica / Academia de Polícia (2007), Pós-Graduação em Gestão Pública em Organizações de Saúde pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2011), Pós-Graduação em Dependência Química pela UNIFESP (2013) e Mestrado em Educação, Cultura e Organizações Sociais pela FUNEDI/UEMG (2011). Michelle Ralil da Costa é psicóloga graduada pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2004); Mestre em Saúde da Criança e do Adolescente pelo Departamento de Pediatria - Faculdade de Medicina/UFMG (2012) e Doutoranda do programa de Pós-graduação em Saúde do Adulto/UFMG. Pesquisadora Associada do Núcleo de Pesquisa em Drogas, Vulnerabilidade e Comportamentos de Risco a Saúde NUSA – UFMG e atualmente professora convidada da Faculdade de Medicina da UFMG. Maila de Castro Lourenço das Neves graduou-se em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (2003), fez Residência Médica em Psiquiatria pela Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (2004), Residência Médica em Psicoterapia pela Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (2006), possui Mestrado em Farmacologia Bioquímica e Molecular pela UFMG (2006), e Doutorado em Medicina Molecular (2008). É professora Adjunta de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da UFMG.

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Sobre os autores Adalberto de Paula Barreto é Médico pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Doutor em Psiquiatria pela Universidade René Descartes Paris V. Doutor em Antropologia pela Universidade de Lyon II França. Docente da Faculdade de Medicina da UFC e criador da abordagem da Terapia Comunitária Integrativa. Adriana Prates é Cientista Social formada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Cursa atualmente o Doutorado em Saúde Pública no Instituto de Saúde Coletiva (ISC/UFBA). Foi coordenadora do Consultório de Rua nos períodos junho de 2010 a maio de 2011; outubro de 2013 a maio de 2015. Alessandra Diehl é psiquiatra, tem formação em Pesquisa Clínica (INVITARE), Especialização em Dependência Química na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e Sexualidade Humana na Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Ciências pela UNIFESP. Doutorado pelo Departamento de Psiquiatria da UNIFESP e especialista em EDUCAÇÃO SEXUAL pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo. Certificado em Sexual and Reproductive Health (Geneva Foundation for Medical Education and Research 2014) and Adolescent Sexual and Reproductive Health (Geneve Foudation, 2014). Cocoordenadora e Professora do curso Sexualidade e Saúde Sexual (Módulos I e II) na pós-graduação do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP, Professora convidada do Centro Brasileiro de Pós-Graduações (CENBRAP), presidente do Centro de Estudos Psiquiátricos Américo Bairral (CEPAB 2015-2016). Membro do Grupo de Estudos em Sexualidade no Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Pertence a equipe de profissionais do Instituto Psiquiatria Américo Bairral e atende em consultório privado. Amata Xavier Medeiros - Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Ana Luisa Marliére Casela é psicóloga, graduada e mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Pesquisadora do Centro de Pesquisa, Avaliação e Intervenção em Álcool e Drogas (CREPEIA). Ana Maria de Carvalho é psicóloga do sistema prisional da Secretaria de Estado de Defesa Social de Minas Gerais. Andréa Leite Ribeiro Valério é Graduada em Serviço Social pela Universidade Católica de Salvador - UCSAL, Especialista em Saúde Mental pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Mestre em Políticas

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Sociais e Cidadania pela UCSAL e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Bioética, da Universidade de Brasília - UNB. Atualmente é coordenadora de programas de prevenção na parceria entre a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas – SENAD/Ministério da Justiça- MJ com a Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ. Foi Coordenadora Geral de Políticas de Prevenção, Tratamento e Reinserção Social da SENAD / MJ. Ex-Coordenadora do Consultório de Rua do CETAD/UFBA. Foi assistente social do Núcleo de projetos especiais do CETAD/UFBA e coordenou a implantação do Consultório de Rua nos municípios de Salvador, Camaçari e Lauro de Freitas-BA. Angelo Americo Martinez Campana é Graduado em Medicina pela Faculdade de Medicina de Marília -S.P (1977); tem Especialização em Psiquiatria pela UFRGS (1982); é Membro do Conselho Consultivo da ABEAD-Associação Brasileira de Estudos sobre Álcool e outras Drogas; é Diretor Administrativo da Villa Janus- Porto Alegre-RS; é Presidente da ABEAD bienio 2015/2017 Antônio Augusto Bastos Alvim é Psiquiatra. Médico Assitente do Ambulatório de Dependências Químicas do IPSEMG desde 2012. Coordenador do Ambulatório de Dependências Químicas do IPSEMG desde 2015. Preceptor da Residência Médica em Psiquiatria do IPSEMG. Antonio Nery Filho é Médico. Psiquiatra. Professor Aposentado da Faculdade de Medicina da Bahia –FMB/UFBA. Médico Aposentado da Secretaria Estadual da Saúde. Bahia –SESAB. Consultor da Secretaria da Saúde do Município de Salvador, Bahia. Fundador e Coordenador Geral do Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas – CETAD/UFBA (1985-2013). Ex-Membro do Conselho Regional de Medicina da Bahia-CREMEB. Doutor em Sociologia e Ciências Sociais pela Universidade Lumière Lyon 2 . França. Pós-Doutorado na Universidade Laval. Quebec-Canadá. Breno Sanvicente-Vieira é psicólogo, mestre em psicologia com ênfase em cognição humana pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental pela Wainer e Piccoloto (WP), doutorando em psicologia pelo Programa de Pós Graduação em Psicologia da PUCRS, docente em psicologia pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Carolina Couto da Mata é Terapeuta Ocupacional, Especialista em Atendimento Sistêmico à Família, Mestre e Doutoranda em Psicologia pela UFMG, Co-


ordenadora Clínica da Comunidade Terapêutica da Terra Sobriedade/BH-MG.  Claiton Henrique Dotto Bau Graduação em Medicina pela UFSM (1990), Mestrado (1992) e Doutorado (1998) pela UFRGS. Pós-doutorado no “National Institutes of Health” (2001). Professor Titular do Departamento de Genética, UFRGS. Orientador nos Programas de Pós-Graduação em Genética e Biologia Molecular - PPGBM e em Ciências Médicas: Psiquiatria (UFRGS). Atual Chefe do Departamento de Genética, UFRGS. Ex-coordenador do PPGBM-UFRGS. Investigador em genética psiquiátrica, com ênfase no transtorno de déficit de atenção / hiperatividade e dependências de álcool e nicotina. Cynthia Wolle é Psicóloga e Psicanalista. Mestre em Ciências pelo Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da UNIFESP. Especialista em Dependência Química pela UNIFESP. Especialista em Psicologia Clínica e Teoria Psicanalítica pela PUC-SP. Psicóloga do Hospital Infantil Darcy Vargas. Daniel Barcelos é bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas do Oeste de Minas, Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela UNICOC, Especialista em Segurança Pública e Complexidade pela Escola Superior Dom Helder Câmara, Mestre em Administração pelo Centro Universitário UNA. Daniele da Silva Gonçalves Pompeu de Camargo é Psicóloga com formação em Terapia Cognitivo-Comportamental pelo CETCC, Especialista em Dependência Química pela UNIAD/UNIFESP e em Neuropsicologia pelo Centro de Estudos Psico-Cirúrgicos e Divisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Pós-Graduanda (lato sensu) em Terapia Cognitivo-Comportamental pelo Instituto de Terapia Cognitiva. Homepage: HYPERLINK “http://www.danielegoncalves.com.br/”www. danielegoncalves.com.br Denise Leite Vieira é psicóloga, terapeuta sexual pelo Centro de Sexologia de Brasília (Cesex), especialista em Sexologia Clínica pelo Centro de Sexologia de Brasília e Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, especialista em Educação Sexual pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL), mestre em Clinical and Public Health Aspects of Addiction pelo Institute of Psychiatry, King’s College, University of London, doutora em Ciências pelo Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Certificado em Sexual and Reproductive Health Research (Geneva Foundation for Medical Education and Research 2014) e Adolescent

Sexual and Reproductive Health (Geneva Foundation for Medical Education and Research, 2014). Professora e co-coordenadora do Curso “Sexualidade e Saúde Sexual” - Módulos I e II - no programa da pós-graduação do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e membro do Grupo de Estudos em Sexualidade da UNIFESP. Terapeuta certificada pela Federação Brasileira de Terapias Cognitivas (FBTC), Terapeuta em formação em Eye Movement Desensitization and Reprocessing (EMDR) e Brainspotting. Diego Peixoto de Souza é Graduando(a) do curso de medicina – UFMG e aluno de extensão vinculado ao Centro Regional de Referência em Drogas CRR/ UFMG. Doralice Oliveira Gomes é Psicóloga pela Universidade de Brasília. Mestre em Saúde da Família pela Universidade Federal do Ceará. Formadora em Terapia Comunitária Integrativa. Atuou como Coordenadora Geral de Prevenção pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas. Edilaine Moraes é Psicóloga clínica. Pós Doutora em Psiquiatria e Psicologia Médica - UNIFESP - Universidade Federal de São Paulo. Especialista em Dependência Química – UNIAD / UNIFESP. MBA em Economia e Gestão em Saúde – GRIDES / UNIFESP. Coordenadora e professora em cursos de Educação à Distância - UNIAD / UNIFESP. Enio Roberto Pietra Pedroso Graduado em Medicina (1973), mestrado em Medicina Tropical (1977), e doutorado em Medicina Tropical (1982) pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor titular do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina, membro do Corpo Clínico Permanente do Serviço Especial de Diagnóstico e Tratamento em Clínica Médica e em Doenças Infecciosas e Parasitárias do Hospital das Clínicas da UFMG. Editor Geral da Revista Médica de Minas Gerais. Érika Pizziolo Monteiro é psicóloga, graduada e mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Pesquisadora do Centro de Pesquisa, Avaliação e Intervenção em Álcool e Drogas (CREPEIA). Erica Cruvinel Psicóloga, graduada pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Mestre em Saúde Coletiva pela UFJF, tendo como objeto de estudo na dissertação de mestrado a relação entre o Clima Organizacional e atividades de prevenção ao consumo de álcool, tabaco e outras drogas. Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Psi-

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cologia, UFJF, doutorado sanduíche pelo CNPQ na Universidade de Kansas, KU Medical Center, EUA. Atua no desenvolvimento de projetos de pesquisa e extensão na área de álcool, tabaco e outras drogas, com enfoque na implementação de atividades preventivas na rede assistencial . É pesquisadora do Centro de Referência em Pesquisa, Intervenção e Avaliação em Álcool e Drogas (CREPEIA) da UFJF. Atua como coordenadora de módulo e docente do Centro Regional de Referência sobre Drogas, CRR, Belo Horizonte e professora formadora em Juiz de Fora. Está envolvida em pesquisas na área de cessação do consumo de tabaco no ambiente hospitalar. É membro-fundadora da Associação de Terapias Cognitivas do Estado de Minas Gerais (ATC-MG). Fabiana Paula Bueno da Silva é Graduanda do curso de medicina – UFMG e aluna de extensão vinculada ao Centro Regional de Referência em Drogas CRR/ UFMG. Felipe José Nascimento Barreto é médico psiquiatra e psicogeriatra pelo Hospital das Clínicas da UFMG. Mestrando em Medicina Molecular pela Faculdade de Medicina da UFMG. Fernando Santana de Paiva Psicólogo e Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Doutor em Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor Adjunto da Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ). Geraldo Mendes de Campos é Psicólogo clínico, especialista em Dependência Química pela UNIAD / UNIFESP. Professor de graduação em Psicologia e de Pós-Graduações em Dependência Química. Gestor em Saúde Pública e Políticas Públicas no segmento de Álcool, Tabaco e Outras Drogas. Preceptor do SUS – Sistema Único de Saúde Guilherme da Rocha B. Costa é Mestre em Economia, pela Universidade Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) e Doutor em Políticas Públicas, Estratégia e Desenvolvimento, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Hugo Monteiro Ferreira é Professor do Departamento de Educação, Universidade Federal Rural de Pernambuco. Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação Educação, Culturas, Identidades (UFRPE/FUNDAJ). Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional (UPE/FFNM). Coordenador do GETIJ – Grupo de Estudos da Transdisciplinaridade, da Infância e da Juventude. Escritor. Jéssica Verônica Tibúrcio de Freitas é psicóloga, graduada e mestre em Psicologia pela Universi-

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dade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Pesquisadora do Centro de Pesquisa, Avaliação e Intervenção em Álcool e Drogas (CREPEIA). José Aniervson Souza dos Santos é Aluno do Programa de Pós-Graduação em Educação, Culturas e Identidades da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e da Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ). Membro do Grupo de Estudos da Transdisciplinaridade, da Infância e da Juventude – GETIJ. Juliana Joni Parada é psiquiatra Titular da Associação Brasileira de Psiquiatria. Especialista em dependência química pela UNIAD/UNIFESP. Coordenadora do Ambulatório de Dependências Químicas do IPSEMG de 2009 a 2015. Preceptora da Residência Médica em Psiquiatria do IPSEMG. Juliana Rodante é aluna de graduação em medicina da Faculdade de Medicina da UFMG. Leonardo Alves Ferreira Almeida é aluno de graduação em medicina da Faculdade de Medicina da UFMG. Luania Ludmilla Castro é Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais. Luisa Fernanda Habigzang é Doutora em psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Professora do Programa de Pós Graduação em Psicologia da PUCRS, coordenadora do Grupo de Pesquisa em Violência, Vulnerabilidade e Intervenções Clínicas (GPEVVIC). Luisa Zamagna Maciel é Psicóloga Especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental pela Wainer e Piccoloto (WP), mestranda em psicologia pelo Programa de Pós Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Marco Túlio de Aquino Possui graduação em Medicina pela UFMG em 1990, residência em psiquiatria pelo Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais (1993), Título de Especialista em Psiquiatria pelo Conselho Federal de Medicina (1995), Título de Especialista em Psiquiatria pela Associação Brasileira de Psiquiatria-ABP (2004), Pós-Graduação em Perícia Médica pela Fundação Unimed/Universidade Gama Filho (2005), Mestre em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (2012). Médico perito psiquiatra concursado da Junta Central de Saúde da PMMG entre os anos de 1995 e 2014, Médico psiquiatra concursado da Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais, atualmente membro do Núcleo de Apoio Psicopedagógico dos Estudantes da Faculdade de Medicina da UFMG e clínica privada.


Marianne Leal é aluna de graduação em medicina da Faculdade de Medicina da UFMG. Monica Maria de Oliveira Melo Possui graduação em Medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais (2005), Residência Médica em Psiquiatria pelo Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (2009) e Mestrado em Ciências da Saúde - Área de Concentração Saúde da Criança e do Adolescente (2011). Atualmente é Médica Psiquiatra da Universidade Federal de Minas Gerais - Perícia Médica Oficial da Unidade SIASS do Ministério do Planejamento. Monica Zilberman é Médica Psiquiatra. Doutora em Psiquiatria pela USP. Pós-doutora pela Universidade de Calgary, Canadá. Especialista em Psiquiatria pela ABP. Professora do Programa de Pós-Graduação do Departamento de Psiquiatria da FMUSP. Pesquisadora do Laboratório de Psicofarmacologia LIM-23 (IPq-HC-FMUSP). Nádia de Souza Las Casas é aluna de graduação em medicina da Faculdade de Medicina da UFMG. Nathália Didoné Poppi é aluna de graduação em medicina da Faculdade de Medicina da UFMG. Nathália Munck Machado é psicóloga, Pesquisadora do Centro de Pesquisa, Avaliação e Intervenção em Álcool e Drogas (CREPEIA), Mestranda em Psicologia pela UFJF. Nathália Ribeiro Notaro é aluna de graduação em medicina da Faculdade de Medicina da UFMG e Aluna voluntária de iniciação científica do Centro Regional de Referência em Drogas CRR/ UFMG. Nathalie Maissa Fantoni é aluna de graduação em medicina da Faculdade de Medicina da UFMG. Neliana Buzi Figlie Psicóloga, Especialista em Dependência Química (UNIAD), Mestre em Saúde Mental e Doutora em Ciências pelo Depto de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo, Professora Afiliada Modalidade: Ensino/Assistencial da Escola Paulista de Medicina. Atuação como Psicoterapeuta Cognitiva e formação em Entrevista Motivacional. Homepage: www.nelianafiglie.com.br Nina Roth Mota Possui Graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Santa Maria e Mestrado (2009) e Doutorado (2013) em Genética e Biologia Molecular pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Realizou estágio de Doutorado no exterior (Doutorado-Sanduíche) no Instituto de Psiquiatria do King’s College London, na Inglaterra. Atualmente é bolsista de Pós-Doutorado pelo PNPD/CAPES no Programa de Pós-Graduação em Genética e Biologia Molecular (PPGBM) da UFRGS.

Patrícia von Flach é Psicóloga. Assistente Social. Doutoranda em Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde Coletiva ISC- UFBA. Coordenadora do Ponto de Cidadania – Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas -CETAD/UFBA- Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social do Estado da Bahia - SJDHDS. Consultora Técnica do Curso de Prevenção aos problemas relacionados ao uso de Drogas, da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas - SENAD – UFSC. Tutora da Residência Multiprofissional em Saúde Mental do ISC – UFBA. Docente do Curso de Psicologia da Faculdade Social da Bahia. Paula Alves Pinheiro é aluna de graduação em medicina da Faculdade de Medicina da UFMG. Pedro Henrique Antunes da Costa Graduado em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF (2012). Mestre e Doutorando em Psicologia pela UFJF, na linha “Processos Psicossociais em Saúde”. Professor do curso de Psicologia da Faculdade Machado Sobrinho. Pesquisador do Centro de Referência em Pesquisa, Intervenção e Avaliação em Álcool e Outras Drogas (CREPEIA). Atua também como docente do Centro Regional de Referência sobre Drogas de Juiz de Fora (CRR-JF). Tem interesse e experiência nos seguintes campos do conhecimento e temas de pesquisa: Saúde Coletiva, Saúde Comunitária, Psicologia Social e Comunitária, Saúde Mental, Álcool e outras Drogas e Participação Social. Pollyanna Santos da Silveira é Graduada e Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Doutora em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Pesquisadora do Centro de Pesquisa, Avaliação e Intervenção em Álcool e Drogas (CREPEIA),Coordenadora adjunta do Centro Regional de Referência Sobre Drogas CRR-JF da UFJF. Professora do Programa de Mestrado em Psicologia da Universidade Católica de Petrópolis (UCP). Renata Lima é Bacharel em Direito pela PUC-Minas, Especialista em Segurança Pública pela Escola Superior Dom Helder Câmara. Roberta Payá é psicóloga, Psicoterapeuta de Família e Casal. Doutora em Saúde Mental – UNIFESP; Mestre em Terapia Familiar pela Universidade de Londres; Especialista em Dependência Química – UNIFESP e Especialista em Terapia Familiar e de Casal Sistêmica – PUC/SP. Educadora Sexual pela Unisal. ww.robertapaya.com.br Rodrigo Grassi-Oliveira é Psiquiatra, livre docente, doutor em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), professor do Programa de Pós Graduação em Psicologia e do

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Programa de Pós Graduação em Pediatria e Saúde da Criança da PUCRS, coordenador do Developmental Cognitive Neuroscience Lab (DCNL). Rodrigo Ribeiro de Souza é psicólogo e Técnico Social do Programa Mediação de Conflitos da Secretaria de Estado de Defesa Social de Minas Gerais. Saulo Gantes Tractenberg é psicólogo, mestre em psicologia com ênfase em cognição humana pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), especialista em Psicoterapia Cognitivo-Comportamental pela PUCRS, doutorando em psicologia pelo Programa de Pós Graduação em Psicologia da PUCRS, docente em psicologia pela Faculades Integradas de Taquara (FACCAT). Sérgio de Paula Ramos Possui graduação em Medicina pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (1973), especialização em Psiquiatria pela Clínica Pinel de Porto Alegre (1975) e doutorado em Medicina pela Universidade Federal de São Paulo (2003). Organizador e coordenador do Serviço de Alcoolismo da Clínica Pinel até 1982. Organizador e coordenador da Unidade de Dependência Química do Hospital Mãe de Deus (1984 a 2012). Fundador do Grupo Interdisciplinar de Estudos sobre o Álcool e o Alcoolismo (GRINEAA), da Associação Brasileira de Estudos sobre o Álcool e o Alcoolismo (ABEAA) - que presidiu de 1989 a 91 - e da Associação Brasileira de Estudos sobre o Álcool e outras Drogas (ABEAD) - que presidiu de 2005 a 07. Membro do Conselho Federal de Entorpecentes (1984 a 88) e de várias comissões de assessorias no Ministério da Saúde e na Secretaria da Saúde do RS. Também foi o coordenador do grupo de autores do Projeto Valorização da Vida (1990), solicitado pelo Ministério da Educação, e o coordenador de sua implantação no estado do Rio Grande do Sul (1991 a 94). Sócio-proprietário e diretor da Villa Janus. Taynara Dutra Batista Formagini Psicóloga graduada pela Universidade Federal de Juiz de Fora -UFJF (2013). Atualmente é mestranda também em Psicologia, com ênfase em Psicologia Social e Saúde na UFJF. Pesquisadora do Centro de Referência em Pesquisa, Intervenção e Avaliação em Álcool e Outras Drogas (CREPEIA). Atua também como monitora do curso do Centro Regional de Referência sobre Drogas de Juiz de Fora (CRR-JF). Tem experiência nas áreas de cessação do tabagismo e fumantes leves. Tem interesse nos temas: drogas, saúde pública, cessação do tabagismo e fumantes leves. Telmo Mota Ronzani Psicólogo, Mestre em Psicologia Social pela UFMG, Doutor em Ciências da Saúde pela Unifesp, Pós-Doutor em Saúde Pública e Álcool e Drogas pela USP e University of Connecticut

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Health Center. Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora, Coordenador do Centro de Pesquisa, Intervenção e Avaliação em Álcool e Drogas (CREPEIA). Bolsista de Produtividade CNPq. Pesquisador Mineiro FAPEMIG. Vilene Eulálio de Magalhães é psicóloga. Mestre em Sexologia. Funcionária Pública da Secretaria de Estado de Defesa Social de Minas Gerais. Professora do Centro Universitário UNA. Pesquisadora Colaboradora Núcleo de Pesquisa em Drogas, Vulnerabilidade e Comportamentos de Risco a Saúde – UFMG. Vinícius Sousa Pietra Pedroso Possui graduação em Medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais (2007) e mestrado em Infectologia e Medicina Tropical pela Universidade Federal de Minas Gerais (2009). Residência médica em Psiquiatria pelo Hospital Escola Instituto Raul Soares da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (2009-2012). Wellington Eustáquio Ribeiro é psicólogo Clínico pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Especialista em Gestão e Políticas Públicas de Segurança pela Universidade Estácio de Sá, Técnico Superior em Gestão Pública Municipal da Secretaria de Defesa Social de Contagem.


Apresentação

Frederico Garcia Michelle Ralil da Costa Lívia Pires Maila de Castro Neves

Construímos este livro com o objetivo de discutir os múltiplos aspectos da vulnerabilidade ligada ao uso de substâncias psicoativas. Para isso, reunimos colaboradores com grande experiência e prática no campo da vulnerabilidade. Este livro foi dividido em três partes. Na primeira, apresentamos e discutimos o conceito de vulnerabilidade sob várias perspectivas do saber. Na segunda parte, relatamos os aspectos da vulnerabilidade específica a diferentes grupos e situações. Na terceira parte, reunimos um conjunto de artigos, descrevendo modelos e métodos de abordagem da vulnerabilidade associada ao uso de drogas. Em nossa visão, o conceito de vulnerabilidade ajuda a compreender por que algumas pessoas experimentam drogas e evoluem para a dependência química e outras conseguem superar o uso. No campo da saúde, compreender as vulnerabilidades a que estão expostas as pessoas é compreender não apenas as condições que podem deixá-las em situação de fragilidade e expô-las ao adoecimento, mas também os recursos que cada indivíduo ou grupo social dispõe para enfrentar essas fragilidades. Esperamos que a leitura desta obra possa ampliar seu conhecimento sobre a vulnerabilidade e contribua para a melhoria das práticas assistenciais e preventivas no domínio dos transtornos por uso de substâncias. Boa leitura!

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Sessão 1: Conceitos e definições de vulnerabilidade


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01

Conceito de vulnerabilidade e sua aplicação nos transtornos do uso de drogas Frederico Garcia Michelle Ralil da Costa

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Introdução Segundo o dicionário Primberam da Língua Portuguesa, vulnerabilidade é a "qualidade do vulnerável", que por sua vez trata "do lado fraco de uma questão ou do ponto por onde alguém pode ser ferido ou atacado"1. O termo vulnerabilidade é usado em diversos campos do conhecimento, muitas vezes evocando simplesmente a ideia de risco ou considerando a individualidade da pessoa vulnerável. Nos indivíduos portadores de doenças complexas, como a dependência química, a vulnerabilidade aparenta ter grande peso. Assim, parece imprescindível compreender como a vulnerabilidade contribui para o desenvolvimento da doença, sua manutenção e suas consequências negativas. Essa compreensão permite integrar melhor o conceito de vulnerabilidade à prática clínica e de pesquisa, salvaguardando-se os princípios de autodeterminação e autonomia e visando à diminuição de desigualdades. É por isso que neste capítulo será abordado o conceito de vulnerabilidade em suas diferentes dimensões. Começa-se por uma conceituação genérica, descrevendo-se o uso do conceito nas diferentes áreas do conhecimento, com destaque para as ciências da saúde. Por fim, comenta-se sobre a aplicação do termo aos transtornos do uso de substância. Como conceituar vulnerabilidade? Em sentido amplo, vulnerabilidade corresponde ao potencial de uma pessoa, grupo ou sistema sofrer uma perda ou impacto negativo em situações que exijam recursos adaptativos. A vulnerabilidade inclui três elementos distintos1: 1) o primeiro é a propensão, isto é, as circunstâncias que aumentam ou diminuem a capacidade de um indivíduo, população ou um sistema de enfrentar ou responder e se recuperar de uma ameaça2; 2) o segundo é o grau do risco a que são expostos o indivíduo, a população ou o sistema diante de determinado agente que o ameace3; 3) o terceiro é a resiliência, que corresponde à capacidade do indivíduo, população ou sistema de responder à ameaça e de se recuperar, uma vez exposto a ela. Assim, vulnerabilidade traduz a propensão de determinado indivíduo, população ou sistema a sofrer impactos negativos dos perigos e dos desastres aos quais venham a ser expostos e sua capacidade de recuperação. O estudo da vulnerabilidade permite a identificação das características da população que aumentam ou diminuem a sua capacidade de ação para responder e se recuperar de um acontecimento perigoso ou desastroso. O estudo da vulnerabilidade ajuda na compreensão da distribuição dos riscos e perdas potenciais e o modo como atingem as populações e os ambientes naturais vulneráveis3. Alguns fatores característicos podem influenciar a vulnerabilidade, entre eles podem-se citar a idade, o sexo, a condição socioeconômica, as necessidades especiais e a situação habitacional (Quadro 1).

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Quadro 1: Algumas características que exemplificam a influência da vulnerabilidade. Fundamentação

Variável

Natureza da influência sobre a vulnerabilidade

Idade

Afeta a mobilidade; menos capacidade cognitiva

Idosos Crianças

Aumenta

Sexo

Influencia a empregabilidade e a renda; Mais vitimização a atos de violência doméstica

Mulheres

Aumenta

Condição Socioeconômica

Capacidade de absorver perdas e responder aos danos; mais bem materiais a perder

Ricos Pobres

Diminui

Capacidade de se proteger e de restaurar-se em segurança

Situação de vida na rua Morar em áreas de riso

Situação habitacional

Aumenta Aumenta

Adaptado de Cutter et al. 2003.

O conceito de vulnerabilidade nas diferentes áreas do conhecimento O conceito de vulnerabilidade é utilizado em várias áreas do conhecimento e por esse motivo é importante compreender melhor como algumas dessas áreas conceituam o termo e como este é empregado nessas acepções. A Antropologia define a vulnerabilidade como um atributo dos seres humanos, inerente ao simples fato de estarem vivos. Nessa visão, todos os seres humanos são considerados vulneráveis, uns mais, outros menos, pois a vulnerabilidade é relacionada à dependência e à autonomia. O vulnerável é visto, assim, como aquele ser suscetível (ou em perigo) de sofrer danos (4) . Essa suscetibilidade “da vida” está presente nas diferentes etapas do ciclo vital. Um recém-nascido é extremamente vulnerável por ser dependente de outro indivíduo. Ele não consegue assegurar a sua alimentação, sua proteção ou a sua sobrevivência sem ajuda de um adulto. Esse processo de vulnerabilidade diminui durante a infância e adolescência e atinge seu pico na vida adulta à medida que ele vai conquistando sua autonomia. Ele ressurge na terceira idade, à medida que a senescência priva o idoso de suas capacidades cognitivas e físicas, tornando-o novamente vulnerável e dependente dos cuidados de outras pessoas. Exemplo aplicado disso são as crianças e adolescentes, que têm menos capacidade decisional que o adulto para optar pelo uso de uma droga. Este, com sua bagagem vivencial e educacional, tem significativa vantagem nessa tomada de decisão. O uso do conceito de vulnerabilidade nas ciências naturais considera não somente o indivíduo, mas, sobretudo, a inter-relação deste com os sistemas naturais e humanos. Essa abordagem do conceito de vulnerabilidade, mais integrativa, soma-se à vulnerabilidade individual, na determinação dos fatores que independem do indivíduo e que estão relacionadas ao meio onde ele vive. Por exemplo, um indivíduo que habita em uma localidade onde drogas são muito disponíveis é mais vulnerável a desenvolver dependência química que outro que vive em região onde a população tem menos acesso às drogas.

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Nas ciências econômicas o conceito de vulnerabilidade estende-se aos sistemas, incluindo não somente o indivíduo e seu ambiente, referindo-se a todo o conjunto de elementos que interagem entre si para reagir negativamente durante a ocorrência de um evento perigoso (5). Neste caso, além do indivíduo e do ambiente, o conceito de vulnerabilidade integra as interações que cada elemento desse ambiente estabelece entre si. Por exemplo, um adulto que tenha sido adequadamente orientado sobre os riscos de exposição às substâncias psicoativas, quando exposto a um ambiente em que a disponibilidade de drogas seja alta, é menos exposto ao risco de desenvolver dependência química que outro que não recebeu boa educação sobre o tema. Ainda assim, o primeiro indivíduo, quando exposto a uma condição adversa, como a guerra ou a pobreza extrema, pode, apesar do conhecimento sobre drogas, tornar-se tão vulnerável quanto o segundo à dependência. A filosofia política reconhece a vulnerabilidade como uma entidade inerente ao ser humano e propõe que as ordens sociais destinam-se a proteger a vida, a integridade corporal e a propriedade. As ordens sociais servem, assim, para proteger os indivíduos da violação de seus direitos básicos. A vulnerabilidade afetaria a capacidade decisional ou a liberdade pessoal, impondo aos indivíduos vulneráveis uma gama mais reduzida de escolhas de bens essenciais para suas vidas6. O conceito de vulnerabilidade está presente ainda na bioética. A Declaração Universal de Bioética e Direitos do Homem delimita a vulnerabilidade como um princípio ético, podendo ser oriunda de enfermidades, incapacidades e condicionantes sociais e ambientais7. Segundo essa declaração, todo ser humano é vulnerável em quatro aspectos: • biológico, porque está sujeito a adoecer, sofrer dores e incapacidade; • psicológico, porque sua mente possui traços que o tornam frágil ou inadaptado; • social, porque como agente social é suscetível a tensões e injustiças sociais; • espiritual, porque seu interior pode ser objeto de instrumentalização sectária8. Vulnerabilidade e ciências da saúde A utilização do conceito de vulnerabilidade na área da saúde é recente e remonta à década de 1980, a partir de estudos epidemiológicos, surgindo da perspectiva de risco9. O conceito de vulnerabilidade evoluiu juntamente com o conceito de saúde. Considera-se que a “saúde” das pessoas sofre interferências de ampla gama de fatores - biológicos, psicológicos, sociais e econômicos. Começa, assim, pela distinção entre os conceitos de risco e vulnerabilidade. O conceito de risco está relacionado à ideia de identificação de características que colocam os indivíduos sob mais ou sob menos chance de ocorrência de eventos de saúde 10. A investigação de fatores de risco utiliza procedimentos probabilísticos que permitem caracterizar o fenômeno de saúde e doença. Essas investigações descrevem nas populações afetadas as associações probabilísticas entre determinadas características e o agravo estudado que pareça relevante. A aplicação do conceito de risco às práticas de saúde aumenta a capacidade preditiva e de controle ou eliminação de determinados fatores de risco e permite a redução da probabilidade de ocorrência de agravos. Diferentemente de risco, o conceito de vulnerabilidade abrange não somente os potenciais de adoecimento e de não adoecimento de um indivíduo. Ele aborda também a capacidade de enfrentamento do indivíduo aos potenciais riscos com os quais ele é confrontado. Por exemplo, um indivíduo exposto a um ambiente cuja disponibilidade de drogas é

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alta tem mais risco de desenvolver uma dependência química que um outro, em que a disponibilidade de drogas é menor. Contudo, alta disponibilidade e acessibilidade ao tratamento podem fazer com que ambos tenham menos potencial de dano pela dependência, visto que esta seria abordada mais rapidamente. Outra diferença entre risco e vulnerabilidade é quanto ao objeto a que se referem as suscetibilidades. Risco diz respeito aos grupos e populações e vulnerabilidade relaciona-se aos indivíduos. A vulnerabilidade existiria apenas onde o risco está presente e sem este aquela não teria efeito. Por exemplo, existem evidências de vulnerabilidades biológicas, ambientais, psicológicas e sociais interagindo de maneira complexa na gênese do comportamento suicida. No modelo de estresse-diátese de Mann et al.10 é descrita a possibilidade de que traços estáveis de impulsividade e agressividade em indivíduos com hipofunção serotoninérgica possam interagir com estressores ambientais como perdas e doenças crônicas e psiquiátricas, aumentando a vulnerabilidade ao comportamento suicida11. O conceito de vulnerabilidade contribui para que se possa pensar a saúde de forma mais complexa, dimensional, interativa e não simplesmente causal. Ele ajuda na compreensão de problemas complexos, para os quais, apesar dos esforços, não foram encontradas respostas. Abordam-se, hoje, os mecanismos de interação de múltiplas vulnerabilidades biológicas, sociais, ambientais, culturais e econômicas. Essa mudança de paradigma serve, por exemplo, no embasamento teórico para a classificação diagnóstica do DSM V12. Vulnerabilidade e transtornos por uso de substância Como se pode integrar o conceito de vulnerabilidade aos transtornos por uso de substância? Como esse conceito pode contribuir para a compreensão do risco, dos danos, da possibilidade de prevenção e redução de danos? Quando considerados conjuntamente, o álcool, o tabaco e as drogas ilícitas estão implicados em 12% da mortalidade mundial, constituindo, assim, uma das principais causas de morte que podem ser prevenidas. Essas substâncias são responsáveis por aproximadamente 10% da carga global de doenças13,14. Contudo, estes indicadores representam ou referemse a uma minoria da população, que corresponde aos usuários de drogas, aqueles que têm algum transtorno por uso de substância, ou seja, aqueles que fazem um uso abusivo ou são dependentes de drogas. Sabe-se também que, não obstante a elevada frequência de experimentação e uso de drogas na vida, somente a minoria de pessoas evolui para uso abusivo ou dependência. Surge, então, a questão de como identificar quem irá evoluir ou não para o uso abusivo ou dependência. Parece que o conceito de vulnerabilidade pode ajudar a melhor responder a essa questão. A vulnerabilidade aos transtornos de uso de substância engloba múltiplas dimensões da vida de um indivíduo, como aspectos biológicos, ambientais e culturais. A propensão à dependência química pode ser dividida em três níveis de vulnerabilidade. O primeiro nível, o mais amplo, abrange fatores sociodemográficos, que incluem variáveis que caracterizam uma população como um todo (ex. cultura e localização geográfica) ou variáveis individuais (ex. idade, sexo, nível educacional, raça, necessidades especiais). O segundo nível corresponde aos aspectos psicológicos e psiquiátricos, que acabam por refletir ou determinar as escolhas, preferências, experiências ou problemas individuais. Esses fatores acabam por influenciar a escolha do tipo de droga usada, se ela terá uma ação estimulante, calmante ou perturbadora do pensamento, se ela será usada ou não, qual a

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percepção em relação ao uso da substância e o valor atribuído a ela. O terceiro nível refere-se aos fatores biológicos e genéticos que irão determinar os efeitos fisiológicos de determinada droga e a sua valência adictogênica15. Cabe lembrar que a divisão em três níveis é meramente didática. A todo instante, esses três níveis estabelecem interações entre eles, associando-se e modificando constantemente o grau de vulnerabilidade a dependência. Um exemplo dessa interação é que os mecanismos associados ao risco geográfico para a dependência de substâncias envolvem fatores culturais, por exemplo, aceitabilidade do uso da droga, a necessidade de um comportamento ordálico em certas fases da vida ou mais hedonismo. Por outro lado, fatores biológicos, como isolamento genético, deficiência de certas vitaminas e a inibição de certas enzimas por substâncias alimentares podem ser mais presentes em determinados locais do que em outros. Da mesma forma, a expressão da vulnerabilidade genética pode depender fortemente das experiências únicas da trajetória de vida de um indivíduo e da sua capacidade de enfrentamento delas. Apesar de esses fatores serem abordados em outros capítulos, serão apresentados brevemente alguns deles a seguir. Fatores de vulnerabilidade sociocultural e sociodemográfica Os estudos comparativos mundiais13,16 mostram diferenças importantes na prevalência do uso de drogas entre países. Essas diferenças existem mesmo entre países com mesmos indicadores socioeconômicos e geográficos e podem ser, em parte, atribuídas às divergências de disponibilidade e acesso a substâncias de abuso, às políticas de prevenção e repressão às drogas adotadas em cada país. Por outro lado, essas diferenças também são influenciadas pela cultura. Isso pode ser percebido nos estudos que avaliam o impacto da migração sobre o comportamento do uso de drogas. Por exemplo, a prevalência do uso de drogas em latinos que migraram para os Estados Unidos é menor que naqueles que vivem em seus países de origem e naqueles que nasceram nos Estados Unidos17,18. Outro possível fator explicativo dessas diferenças é a estrutura social de um local. Nos locais de estrutura familiar coletivista, aquela que estabelece laços familiares mais sólidos e que se estendem não somente à família, mas também à vizinhança, existe melhor supervisão e mais recursos sociais, que acabam agindo como fator de proteção à exposição de crianças e adolescentes às drogas19. Além dos fatores sociais e culturais, as características sociodemográficas também influenciam o risco de um indivíduo se tornar dependente químico. O mais importante desses fatores talvez seja a idade. A prevalência de uso de drogas é sabidamente maior dos 13 aos 21 anos e nos Estados Unidos a prevalência dos transtornos de uso de substância aumenta seis vezes dos 13 (3,7%) aos 18 anos (22,3%). O uso precoce de drogas é um fator importante para o desenvolvimento de um transtorno de uso de substâncias durante a vida20. Várias razões explicam essa acentuada vulnerabilidade. A adolescência e a idade adulta jovem são marcadas por importante mudança nos comportamentos, com busca mais expressiva de de situações de risco, experimentação de novas sensações, novidades e relações sociais, comportamentos lúdicos e de alta atividade. Além disso, os adolescentes têm baixos níveis de ansiedade em relação aos perigos, mais necessidade de recompensas e instabilidade emocional. Suas funções executivas ainda estão amadurecendo, a impulsividade diminuindo e as capacidades de raciocínio e planejamento surgindo. O sexo é outro fator sociodemográfico importante. Homens apresentam mais preva-

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lência de transtornos de uso e de dependência de drogas. Sabe-se, por exemplo, que essas diferenças devem-se, provavelmente, a influências sobre o sistema de recompensa das mulheres devido ao ciclo hormonal feminino (21). Fatores de vulnerabilidade psiquiátrica e psicológica Transtornos psiquiátricos estão fortemente associados ao uso de substâncias. Os estudos internacionais revelam que o risco de transtorno depressivo é 1,7 a 3,3 vezes maior em pacientes dependentes de álcool e 3,6 a 6,6 maior em dependentes de outras drogas (22) . Nas explicações aventadas para esse aumento de risco estão os modelos de risco para doenças mentais, em vez de apenas um transtorno, e a possibilidade de vulnerabilidade genética compartilhada que aumente o risco para os dois transtornos. O temperamento e os traços de personalidade também aumentam a vulnerabilidade aos transtornos de uso de substâncias, assim como os transtornos psiquiátricos. Por exemplo, crianças, adolescentes e adultos jovens com traços impulsivos, neuróticos ou de não conformação às normas ou extrovertidos têm mais risco de desenvolver algum transtorno de uso de substância. Alguns desses traços podem então ser qualificados como vulnerabilidades para o desenvolvimento de transtornos do uso de substâncias. Fatores de vulnerabilidade biológica e genética O campo da genética dos transtornos do uso de substância, como de outros transtornos psiquiátricos, é marcado por uma série de modificações neurobiológicas sutis, determinadas por diferentes genes e raramente por um gene único. As pesquisas com gêmeos univitelinos separados ao nascimento, o que é considerado um dos mais elevados níveis de prova em genética, identificam a existência de vulnerabilidade genética na iniciação do uso de substâncias e na conversão do abuso para a dependência química23. A heritabilidade da dependência é estimada em 44% entre os homens e 65% em mulheres para a cocaína; em 33% em homens e 79% em mulheres para a maconha; 53% em homens e 62% em mulheres para o tabaco; e em 49% em homens e 64% em mulheres para o álcool23. Pode-se concluir, até o momento, que apesar das inúmeras pesquisas disponíveis, ainda não somos capazes de separar com clareza o peso dos diferentes fatores biológicos, psicológicos e sociais implicados no risco de transtornos de uso de substância. Cada vulnerabilidade, aparentemente, é dependente de sua interação com outros fatores, influenciando de maneira coletiva a expressão do fenótipo vulnerável (15). É por isso que o modelo de vulnerabilidade parece mais adequado para analisar todos esses fatores, integrando-os em sua unicidade. Vulnerabilidade e estigmatização Um objetivo da proposta de identificação e avaliação do indivíduo vulnerável é protegê-lo dos fatores de risco e desenvolver medidas de apoio e acesso a serviços de proteção. Deve-se observar tal proposta com cuidado, para evitar que ela reforce aspectos negativos, uma percepção de “fraqueza”, de menos valia, do indivíduo, implicando a ideia de mais dependência, passividade, necessidade de assistência, em vez de procurar valorizar e

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orientar-se em direção a mais autonomia e autodeterminação. Tais aspectos dessa proposta podem gerar dificuldades na aplicação do conceito em situações reais, nas quais sujeitos ou grupos são mais expostos a certos fatores de risco ou situações de risco. O conceito de vulnerabilidade pode, assim, enfatizar e reduzir a vida do indivíduo a uma série de fatores de risco que o impedem de estar no centro das decisões para intervir adequadamente em suas experiências vitais. O termo vulnerabilidade carrega em si uma sobrecarga semântica, tendendo a se referir a ideias de dependência, fragilidade, insegurança, centralidade, complexidade, ausência de regulação efetiva e baixa resiliência, tornando-se, nessa significação fonte de estigma e exclusão. Considerações finais O termo vulnerabilidade tem sido bastante utilizado nos últimos anos, tangenciando diferentes significados. No campo da saúde, compreender as vulnerabilidades a que estão expostas as pessoas é entender não apenas as condições que podem deixá-las em situação de fragilidade e expô-las ao adoecimento, mas também os recursos que cada indivíduo ou grupo social dispõe para enfrentar essas fragilidades. Sendo assim, os mesmos fatores de risco se expressam de maneira diferente, conforme o contexto em que as pessoas vivem, e interferem de diferentes maneiras em eventos relacionados à saúde. Assim como o conceito de saúde evoluiu ao longo do tempo, a prevenção do risco de adoecimento deixou de ser determinada por um componente causal único e lançou seu olhar para a multicausalidade. O conceito de vulnerabilidade que norteia este livro leva em consideração fatores individuais e contextuais que tornam as pessoas mais ou menos suscetíveis ao uso, consumo abusivo e dependência de drogas, de forma a encontrar os melhores recursos para minorar os fatores de risco. Partindo do pressuposto de que as pessoas apresentam características individuais na sua forma de existir (o que as coloca em diferentes graus de vulnerabilidade em relação às drogas), será possível ampliar o leque de recursos socioeconômicos, políticos e culturais à disposição da sociedade e, assim, compreender melhor sua dinâmica e pensar métodos mais eficazes de prevenção. Referências 1. PRIMBERAM. Vulnerabilidade. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa: Primberam Informática S.A. 2008-2013. 2. CUTTER, S. L. A ciência da Vulnerabilidade: modelos, métodos e indicadores. Revista Crítica de Ciências Sociais, v. 93, p. 59-56, 2011. 3. CUTTER, S. L.; BORUFF, B.; SHIRLEY, L. Social Vulnerability to Environmental Hazards. Social Science Quarterly, v. 84, n. 1, p. 242-261, 2003. 4. KOTTOW, H. M. Bioética de proteção: considerações sobre o contexto latino-americano. In: SRCAMM, F. R.;REGO, B. M., et al (Ed.). Bioética: riscos e proteção. Rio de Janeiro: UFRJ/Fiocruz, 2005. 5. PROAG, V. The concept of vulnerability and resilience. Procedia Economics and Finance, v. 18, p. 369-376, 2014. 6. MORAIS, I. M. D. Vulnerabilidade do doente versus autonomia individual. Rev bras

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Epidemiologia da vulnerabilidade associada ao uso de drogas Michelle Ralil da Costa Diego Peixoto de Souza Fabiana Paula Bueno Silva Nathรกlia Ribeiro Notaro Frederico Garcia

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Vulnerabilidade e consumo de drogas O consumo de drogas é descrito ao longo da história da humanidade, porém os efeitos negativos das substâncias psicoativas começaram a ser relatados no último século. Desconhecem-se, até o momento, os motivos pelos quais algumas pessoas que fazem uso de drogas se tornam dependentes e outras não. E vão surgindo outras questões. O que diferencia essas pessoas? Quais fatores as colocam em risco? E depois do problema instalado, o que permite que algumas pessoas se recuperem? A vulnerabilidade relacionada a transtornos por substâncias pode ser compreendida a partir de várias perspectivas. De acordo com Le Moal, podem-se agrupar as múltiplas perspectivas de pesquisa a partir de dois modelos: • centrado na droga; e • centrado no indivíduo1. A abordagem centrada na droga abrange a dependência como um transtorno adquirido a partir da ação farmacológica das substâncias no cérebro. Por um lado, esse modelo é capaz de elucidar mudanças neurobiológicas necessárias para justificar as modificações dos comportamentos que são observadas desde o início do uso de substâncias, tais como a compulsão e a perda de controle. E tem como limite o fato de desconsiderar a variabilidade individual. O modelo centrado no indivíduo tem como principal eixo de investigação as variações individuais. Nessa perspectiva, a causa da dependência química é vista como a somatória de um fenótipo vulnerável em que a exposição à droga determina uma modificação na neuroplasticidade. Nesse modelo, o foco é direcionado para a interação da droga com o sujeito e, neste sentido, torna-se mais holístico. Definição de epidemiologia e como esta ciência aborda a questão das drogas e sua vulnerabilidade A epidemiologia é a ciência que estuda o processo saúde-doença e sua distribuição dentro de uma população. Ela surgiu em meados do século XIX e se estruturou a partir de um conjunto de conhecimentos oriundos da clínica, da estatística e da Medicina social2. No último século observou-se melhor controle das doenças infecciosas, o que permitiu o aprofundamento de questões ligadas à influência de aspectos sociais na saúde das pessoas. A epidemiologia passou a se interessar não somente pela descrição de indicadores de doença, mas também pela compreensão de problemas mais complexos, como os chamados eventos relacionados à saúde e seus determinantes. A resultante dessa mudança de foco originou a Epidemiologia Social3. A epidemiologia não se ocupa somente da quantificação da incapacidade, doenças ou mortes. Ela também estuda quais fatores influenciam na melhoria dos indicadores de saúde e como se pode promover a saúde. A epidemiologia social utiliza o termo “eventos relacionados à saúde” no lugar do ter-

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mo doença. Essa mudança de perspectiva se faz porque o objeto de estudo dela não são somente as doenças, as causas de óbito. O termo abrange também os hábitos, os com portamentos - como o tabagismo -, os aspectos positivos em saúde - como a percepção de bem-estar - e as reações das populações às medidas preventivas e à oferta de serviços de saúde, entre outros apectos3. A premissa básica da epidemiologia social é de que os eventos relacionados à saúde não ocorrem ao acaso e que cada um de nós possui certas características que nos predispõem ou nos protegem desses eventos. A compreensão dessas características/fatores determinantes pode nos auxiliar em sua eliminação, redução ou neutralização4. Epidemiologia e uso de drogas A epidemiologia torna-se uma importante ferramenta para o estudo do fenômeno do uso de drogas, podendo contribuir em vários aspectos na discussão e planejamento de políticas públicas, como se segue: • dimensionamento e estabelecimento de balizas para quantificação e qualificação do problema; • pontuar suas principais características como fenômeno social que se apresenta como um problema de saúde coletiva; • identificação de grupos com mais vulnerabilidade e fatores de importância na produção do fenômeno. A abordagem epidemiológica no campo do uso de drogas permite estimar a necessidade de oferta de serviços de saúde e subsidiar o planejamento de intervenções que visem reduzir as condições relacionadas à droga na população. Os estudos epidemiológicos na área de drogas visam descrever questões como: • A frequência e os hábitos de consumo de drogas em determinadas populações; • os padrões de uso e consumo; • o diagnóstico de transtornos relacionados ao uso; • o conhecimento de fatores associados tanto ao uso quanto aos transtornos. Esses estudos são realizados com o intuito de fomentar a implantação de programas preventivos adequados e políticas públicas que melhor atendam às demandas dessa população e sua família, partindo da premissa de que é fundamental conhecer uma realidade para o planejamento de ações que realmente a atendam. Nos diversos estudos realizados sobre o uso de drogas no mundo são descritos muitos fatores de vulnerabilidade. Para a compreensão do fenômeno do uso de substâncias psicoativas e, consequentemente, da demanda de ações de abordagem, tratamento e políticas efetivas, é fundamental o conhecimento desses fatores e sua distribuição na população.

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Alguns aspectos associados à vulnerabilidade para as substâncias psicoativas Os problemas decorrentes do uso de substâncias psicoativas são complexos e têm origem multifatorial, envolvendo muitos fatores biológicos, psicológicos, sociais, econômicos e culturais1. As taxas para a maioria dos transtornos por uso de substâncias são influenciadas por variáveis demográficas como sexo, idade, escolaridade, estado civil e renda5-7. Variáveis psicológicas como certos tipos e traços de personalidade e transtornos mentais também parecem influenciar o uso e a dependência de drogas8-10. Outros aspectos se associam a fatores biológicos e genéticos11,12 (Figura 1). Figura 1: Aspectos associados à vulnerabilidade para os transtornos do uso de sustâncias psicoativas

Pré-experimentação Disponibilidade Percepção de segurança Permissividade social Estruturação familiar Pressão dos pares

Idade 1º uso Renda Raça Escolaridade Vulnerabilidade social

Disponibilidade Fragilidade orgânica Comportamento de risco

Experimentação

Abuso

Uso

Dependência

Potencial da droga Idade de uso regular Genética Vulnerabilidade social

Impacto Qualidade de vida Doenças mentais Doenças orgânicas Violência Vulnerabilização

A compreensão das características que podem tornar certos grupos mais vulneráveis que outros depende, muitas vezes, da avaliação do nível de associação dessas variáveis. Detalham-se, a seguir, alguns exemplos dessas características. Fatores sociodemográficos Idade A idade é uma das características sociodemográficas mais importantes a ser analisada quando se estuda a questão da vulnerabilidade no uso de substâncias. No Brasil, levantamentos realizados entre 2003 e 2012 descreveram que a prevalência de experimentação de álcool entre adolescentes tem aumentando (Figura 2)13,14 e que a idade de experimentação vem diminuindo, de maneira mais significativa entre as mulheres.

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Figura 2 – Prevalência do uso de bebidas alcoólicas entre os adolescentes brasileiros

Soma-se a essa acentuada vulnerabilidade às consequências negativas do uso de drogas o fato de que no início da adolescência surge intensa busca por novas sensações sem o aumento, em paralelo, da capacidade de inibir comportamentos de risco. Esse desequilíbrio, entre esses dois fatores, contribui para que os adolescentes experimentem drogas com mais facilidade. A adolescência, como se sabe, é um período crítico do desenvolvimento cerebral em que ocorrem maturação e reorganização do córtex pré-frontal e do sistema límbico. Isso faz com que os adolescentes sejam mais vulneráveis a desenvolverem abuso e dependência e a sofrerem modificações cognitivas duradouras por causa do uso de drogas15. Esses fatores provavelmente tornam a adolescência um dos momentos mais vulneráveis para a exposição de um indivíduo à droga e, daí, às consequências negativas. Infelizmente essas consequências incidirão nas próximas etapas do seu desenvolvimento, influenciando e prejudicando vários aspectos do seu funcionamento psíquico e social16. O risco para se desenvolver abuso ou dependência química é significativamente maior nos indivíduos que iniciam o uso de substâncias na adolescência, sendo o pico de risco dos 13 aos 14 anos de idade. Para o álcool, por exemplo, após essa idade, a probabilidade de se tornar dependente cai 13,2% e 14,7% e de tornar-se abusador cai 9,1% e 7,0% ao ano, para mulheres e homens, respectivamente15,17. Sexo Além da idade, o sexo é importante para se analisar a vulnerabilidade às drogas. Estudos revelam que homens são mais propensos ao uso de drogas. Contudo, as mulheres apresentam progressão mais rápida entre experimentação à dependência de drogas. Alguns pesquisadores acreditam que as mulheres são menos propensas ao uso de drogas em razão da reduzida aceitação social e de fatores culturais, que as inibem de consumir. A baixa taxa de experimentação de drogas as torna menos vulneráveis a desenvolver um transtorno decorrente do uso de drogas15. Outros pesquisadores acreditam que a motivação para o uso de drogas em homens seja a busca por novas e intensas sensações, enquanto as mulheres usam drogas como uma tentativa de se automedicarem17.

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Fatores socioculturais A disponibilidade de drogas bem como a política de repressão ao tráfico, provavelmente, são fatores importantes no que diz respeito à vulnerabilidade. Dados da Organização Mundial de Saúde mostram que mesmo em países com diferenças geográficas sutis, com rendas semelhantes, existem grandes diferenças na prevalência do uso de álcool, nicotina e drogas ilícitas18,19. Outro fator importante é a cultura de um país. Em estudos avaliando indivíduos que emigraram de um país para outro, observa-se reduzida prevalência de experimentação de drogas nos países de origem do que nos indivíduos que emigraram. Isso sugere que a mudança de cultura para uma cultura com mais aceitação do uso de drogas pode influir na experimentação15. Transtornos mentais Os transtornos mentais são também importantes para a vulnerabilidade para o uso, abuso e dependência de substâncias psicoativas. Além da vulnerabilidade psicológica dos indivíduos acometidos por uma doença mental, fatores como o tipo de droga e a sua frequência de uso também contribuem para o desenvolvimento da dependência. Contrariando o senso comum, a maior parte dos estudos sugere que os transtornos mentais precedem o uso de substâncias psicotrópicas20 e a dependência de álcool, mas não o seu abuso, que é mais prevalente em indivíduos com transtornos depressivos e de ansiedade21. Não se deve esquecer de que o abuso ou dependência de drogas comprometem de forma negativa a evolução das doenças psiquiátrica. O uso de álcool, por exemplo, pode produzir sintomas característicos de depressão, ansiedade, agitação e hipomania/mania, tanto durante a intoxicação quanto no período de abstinência22. Como dito anteriormente, características de vulnerabilidade ao uso de drogas não podem ser compreendidas de maneira isolada, pois muitas vezes elas se associam entre si. Exemplo disso é um estudo realizado entre setembro de 2006 e dezembro de 2010 nos Estados Unidos, que demonstrou que variáveis psicológicas, como humor e afeto, podem desempenhar importante papel no desejo e comportamento de beber. Porém, este estudo também mostrou mais interferência no desejo de beber e maior impacto negativo da depressão no curso do alcoolismo, entre as mulheres23. Outro estudo realizado na Alemanha, Reino Unido, Irlanda e França, no ano de 2010, encontrou associação entre o início precoce do uso de álcool e os traços de personalidade dos adolescentes24. Conclusões Como se pôde ver ao longo deste capítulo, diversos aspectos contribuem para a vulnerabilidade de se experimentar, abusar e desenvolver dependência às substâncias psicoativas. A epidemiologia contribui para a compreensão e dimensionamento qualitativo e quantitativo da questão da vulnerabilidade e o uso de drogas. Conhecer a real magnitude do problema e identificar os grupos de mais vulnerabilidade pode auxiliar no processo de construção de medidas direcionadas para minimizar os prejuízos gerados para a saúde pública.

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Vulnerabilidades, estigma e uso de drogas Pollyanna Santos da Silveira Ana Luisa Marliére Casela Érika Pizziolo Monteiro Jéssica Verônica Tibúrcio de Freitas Nathália Munck Machado

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Introdução O conceito de vulnerabilidade vem sendo estudado e ampliado por diversos autores no decorrer dos anos, antes equivalente ao conceito de exclusão social e atualmente mais abrangente e contextualizado 1. A vulnerabilidade reconhece que diferentes indivíduos e grupos populacionais são diferentemente suscetíveis frente a determinado aspecto social, político-institucional e comportamental 2. No que se refere à dimensão social, a vulnerabilidade está associada a aspectos relacionados ao acesso a serviços de saúde, à informação e educação, além de aspectos culturais e sociopolíticos de certos determinantes populacionais, como idosos, crianças, mulheres, população indígena, entre outros 3. Ainda, os estudos acerca da vulnerabilidade social estão relacionados ao risco frente ao desemprego, à pobreza, à precariedade do trabalho, à falta de proteção social, garantia dos direitos e oportunidades, situação de rua, trabalho infantil, envolvimento com drogas, à violência 1,4,5, bem como ao maior ou menor grau de qualidade de vida da população, uma vez que esta é o resultado das oportunidades sociais, econômicas e culturais e da disponibilidade desses recursos 6,7. Do ponto de vista psicológico, a vulnerabilidade é entendida como uma predisposição individual ao desenvolvimento de distúrbios psicológicos ou de comportamento ineficaz em situações de crise 8. Nesse sentido, a noção de vulnerabilidade não visa à distinção de determinados grupos, mas sim à avaliação de suas características individuais e sociais e à probabilidade de mais ou de menos exposição ou proteção diante de um problema. Isso faz com que a vulnerabilidade se caracterize das mais diversas formas e que os aspectos individuais influenciem diretamente a forma como uma pessoa pode reagir a uma situação considerada de “alta vulnerabilidade” 8. No contexto brasileiro, o uso de substâncias representa um dos maiores problemas associados à saúde pública 9,10. Contudo, o uso de substâncias é visto como uma escolha pessoal ou desvio de caráter e, por isso, os usuários tendem a ser evitados e até considerados invisíveis socialmente, o que contribui para o aumento da situação de vulnerabilidade 11-13 . A condição de status social desviante de usuários de drogas ilícitas pode afetar a saúde dos mesmos, a partir da exposição crônica de estresse, e se constituir em uma barreira para acessar o serviço de saúde, contribuindo para o agravamento da condição 14. A história da Psiquiatria social ensina que as concepções culturais de doença mental têm consequências dramáticas para a busca por ajuda, estereotipagem e tipos de estruturas de tratamento criadas para atender às várias formas de doença mental. Mais especificamente, os dependentes de drogas são vistos como a condição mais provável de ser violenta, por conseguinte, há mais desejo de distância social para a pessoa dependente de drogas. Por outro lado, se os sintomas de dependência continuam a ser associados a medo de violência, pessoas com tal condição serão afetadas negativamente pela rejeição, pela relutância em procurar ajuda profissional por medo da estigmatização e por medo da exclusão 15. Definindo o estigma Erving Goffman, em seu clássico ensaio “Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada”, publicado no ano de 1963, propõe uma definição de estigma social como uma marca ou um sinal que designaria ao seu portador um status “deteriorado” e, portanto, menos valorizado que as pessoas consideradas normais, tornando o indivíduo

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estigmatizado incapacitado para a aceitação social plena. O processo de estigmatização seria uma forma de categorização social a partir do qual se identifica de forma seletiva um atributo negativo considerado desviante da norma e que por si só compromete a identidade social do portador por completo em uma situação de interação social 16. Apesar do marco teórico conceitual do estigma social ter suas raízes na Sociologia, possuindo grande valor heurístico, uma substancial porção da produção científica acerca do tema tem buscado compreender como as pessoas constroem categorias e as relacionam a crenças estereotipadas 17. Segundo essa perspectiva psicossocial, a definição de estigma envolve: • A identificação da rotulação de indivíduos baseada em características pessoais; • A construção de estereótipos grupais a partir do rótulo; • A consequente separação desse indivíduo do convívio social pleno a partir da aplicação desse estereótipo; • A perda de status e discriminação; • O fato de ser expresso em uma situação de poder que permite que esses componentes se cruzem e gerem o estigma denominado público 17. Por fim, o processo de estigmatização é compreendido ainda como um processo dinâmico e contextual, produzido socialmente, moldado por forças históricas e sociais, tendo como características fundamentais o reconhecimento da diferença com base em alguma característica distinguível ou marca e consequente desvalorização do seu portador 18. As concepções culturais podem endossar que empresas públicas ou privadas, intencionalmente ou não, limitem as oportunidades de acesso de indivíduos ou grupos estigmatizados, baseada na percepção de imprevisibilidade ou ameaça. A estigmatização estrutural manifesta-se por meio de suas regras, políticas e processos de instituições públicas e privadas em posição de poder e que consciente e propositadamente restringem os direitos e oportunidades. O valor social dessas restrições é muito dúbio, uma vez que as descrições usadas em diversos documentos refletem mais os efeitos negativos do rótulo que elas carregam, em detrimento de qualquer medida de incapacidade. Sendo assim, a despeito de seu compromisso com a neutralidade, uma política ou princípio pode resultar em menos oportunidade para um grupo estigmatizado que para a maioria, ainda que de forma não intencional 19. Há que se destacar, ainda, que a estigmatização estrutural, assim como toda e qualquer forma de discriminação, tem implicações significantes para a agenda da pesquisa e para o desenvolvimento de programas de prevenção ou tratamentos 19. Dessa forma, a estigmatização representa um desafio à humanidade, seja da perspectiva do estigmatizador, seja da perspectiva do estigmatizado, visto que se torna penosa não só interpessoal e socialmente, como também pessoalmente 18. Internalização do estigma No que se refere às consequências negativas para os indivíduos estigmatizados, o principal impacto é a internalização do estigma, conhecido também como estigma internalizado. A internalização do estigma está diretamente associada ao grau em que uma pessoa internaliza crenças estigmatizantes compartilhadas socialmente. Esse processo surge

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quando membros de um grupo desvalorizado, conscientes do preconceito, estereótipo e discriminação na sociedade, endossam e internalizam essas crenças, sentimentos e comportamentos acerca de si próprios 20. A partir de uma perspectiva sociocognitiva, a internalização do estigma ocorre à medida que o indivíduo se torna consciente de sua condição de saúde e está sujeita à maneira como ele atribui, para si próprio, responsabilidade por essa condição 20,21. O processo de internalização do estigma pode acarretar diversos prejuízos, como a perda da autoestima, autoeficácia, depressão 22,23, a diminuição do repertório de interações sociais, a exclusão social e o desemprego 24. Discute-se que existe uma relação entre o estigma internalizado e a vulnerabilidade, tanto o processo de estigmatização agrava a vulnerabilidade do usuário de drogas como o uso de substâncias, uma condição permeada por vulnerabilidades, acarreta mais chances de internalização do estigma. A vulnerabilidade associada ao uso de substâncias Sobre a vulnerabilidade associada ao consumo de substâncias, no estudo realizado pelo II LENAD, 8% dos usuários de álcool informaram que já tiveram prejuízos no trabalho decorrentes do consumo da bebida e 4,9% dos consumidores perderam o emprego em virtude do consumo de álcool10. Já em outra pesquisa realizada com dependentes de crack na cidade de São Paulo, a situação de emprego dos participantes revela que a maioria dos pacientes se encontrava fora do mercado de trabalho (75,0%) ou no mercado informal (21,4%). E a maior parte dos entrevistados declarou ser de extrema importância receber orientações para obter emprego (71,4%). Ainda sobre a mesma pesquisa, que teve como um dos objetivos avaliar a relação entre o estigma internalizado e variáveis sociodemográficas, o status ocupacional foi associado de forma significativa ao estigma internalizado. De acordo com os achados, a ausência de emprego pode induzir a um nível superior de internalização do estigma25. Na população feminina de usuárias de drogas, a vulnerabilidade torna-se evidente na prática sexual sem proteção com diferentes parceiros, aumentando o risco de contrair doenças sexualmente transmissíveis, gravidez não planejada26 e violência sexual26-30, além de serem citados igualmente prejuízos no trabalho, atrasos, faltas e até pedidos de demissão em decorrência do consumo de crack31. Da mesma forma, outros estudos corroboram a associação de níveis mais elevados de estigma internalizado com o desemprego e baixa renda32,33. Segundo Link e Phelan17, a internalização do estigma limita o repertório de integração do indivíduo com suas redes sociais, devido à antecipação da rejeição e à evocação de sentimentos de vergonha, culpa e descrédito que podem prejudicar a disposição em procurar trabalho ou manter-se nele. Já no estudo de Luoma et al. 34, os dados indicam que os usuários de substâncias sentiam medo e acreditavam que poderiam sofrer rejeição após o descobrimento do consumo de álcool e outras drogas, bem como no trabalho receberiam menos que os outros empregados e seriam tratados de forma injusta. Ao internalizar o estigma, o indivíduo agrava sua condição de saúde, limita suas possibilidades de inclusão social, diminui a autoestima e autoeficácia, o que, de modo consequente, diminui a intenção de buscar um emprego, intensificando, desse modo, o estigma internalizado35. Revisão de literatura foi realizada em 2014 por Sickel, Seacat e Nabors, com o objetivo de avaliar o impacto do estigma sobre as necessidades básicas dos usuários como o emprego, a habitação e as relações sociais, revelou que o estigma era uma barreira que

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influenciava as necessidades básicas do ser humano, como emprego, habitação, relações interpessoais, saúde física e mental e a busca por tratamento de saúde. As necessidades de emprego de indivíduos estigmatizados em grande parte não são atendidas, por sua vez, causam o aumento dos prejuízos psicológicos e financeiros. Há que se destacar que o estigma internalizado pode interferir na procura de emprego bem como na execução da função no local de trabalho36. Por outro lado, a inclusão produtiva pode reduzir o impacto da estigmatização, na medida em que os usuários ocupam novos papéis e espaços sociais, contribuindo para melhor qualidade de vida e tornando-se um aspecto fundamental na recuperação e reinserção social37. O processo de estigmatização e o uso de substâncias O uso de álcool e outras drogas é uma das condições que mais apresentam conotação moralizante do mundo 38-40, sendo considerado principalmente um problema individual, em que o diagnóstico e o tratamento muitas vezes exacerbam os aspectos morais do uso 12,41,42 . Estudos sobre a percepção popular acerca de determinadas condições de saúde mostram que indivíduos dependentes de álcool são vistos como mais responsáveis por seu problema, mais violentos e imprevisíveis que outros indivíduos afetados por outros transtornos mentais 43,44. Além disso, respostas que colocam a responsabilidade da doença sobre o indivíduo, como fraqueza de caráter e falta de autoestima, são consideradas mais relevantes para explicar o problema da dependência do que as causas biológicas 45,46. Além disso, os dependentes são vistos como a condição mais provável de ser violenta e, como consequência, existe mais desejo de distância social em relação à pessoa dependente de drogas 37,48. As consequências do estigma relacionado ao abuso de substâncias foram descritas no estudo de Link et al. 15, no qual indivíduos com diagnóstico de dependência de substâncias e transtorno mental relataram experiências de rejeição que envolvem desde atendimento médico negado até receber menor remuneração por conta da história de abuso de substâncias. Os resultados mostram que não houve declínio da percepção de estigma, nas estratégias de coping ou na recordação de experiências de rejeição com a diminuição dos sintomas após um ano de tratamento, sugerindo que o estigma pode ter efeitos não só transitórios, como duradouros para os indivíduos 15. Outro estudo realizado com usuários de drogas encontrou que a percepção de desvalorização entre os usuários é prevalente, sendo que 85% dos respondentes relataram que muitas pessoas pensam que usuários de drogas não são confiáveis; e porcentagem similar (84,5%) opinou que as pessoas pensam que usuários de drogas são perigosos. Observou-se, ainda, que os usuários evitam contato com outras pessoas porque eles podem parecer inferiores aos olhos dos outros por usarem drogas. Os participantes reportaram alta frequência de discriminação devido ao uso de drogas, sendo que os tipos mais comuns de discriminação experienciada foram atribuíveis à família (75,2%) e a amigos (65,8%) 14. Como alternativa à concepção moralizante do usuário, procura-se estabelecer ações baseadas na perspectiva da saúde coletiva, em que o foco é dado ao uso de álcool e aos danos associados, e não aos indivíduos propriamente ditos, procurando traçar ações mais gerais, compreensivas e menos estigmatizantes, que também se articulem com ações direcionadas aos indivíduos12,41,42,49. Uma das estratégias é o foco na mudança de posturas que levam à estigmatização do uso de álcool como forma de prevenir os danos associados no

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sentido de melhorar a eficácia e o acesso ao tratamento 50,51. Essas ações são planejadas partindo-se do princípio de que a automaticidade e a estereotipagem podem ser controladas ou modificadas por mediadores sociocognitivos 52. Para tanto, é importante considerar que as políticas assistenciais e a formação dos profissionais de saúde devem enfocar a mudança de atitudes negativas no sentido de evitar a estigmatização e a diminuição da consequente injustiça social que os portadores de sofrimento mental sofrem49,53. Como reduzir o estigma? A dependência de substâncias deve ser considerada um fenômeno complexo, o que implica a utilização de conhecimentos multidisciplinares, permitindo, assim, que os diversos aspectos associados a essa condição sejam considerados. Dessa forma, tão importante quanto considerar os aspectos biológicos é a inclusão de estratégias que considerem os aspectos psicossociais da dependência nos programas de tratamento. Isso significa, inclusive, abordar as diversas vulnerabilidades às quais o indivíduo está exposto, caracterizando essas intervenções como de múltiplos níveis e, portanto, dinâmicas 49,54. O presente capítulo, ao abordar especificamente o estigma como uma das problemáticas consideradas no escopo do conceito vulnerabilidades, pretende evidenciar que tal fenômeno deve ser também incluído nos programas que se propõem a tratar a dependência. Percepções moralizantes sobre os usuários ou dependentes de substâncias devem ser trabalhadas com os diversos atores envolvidos no processo de tratamento, sendo estes igualmente responsáveis pelo atingimento dos objetivos propostos pelo projeto terapêutico desenvolvido. A maioria das intervenções direcionadas à redução do estigma visa a atingir o estigma social a partir de abordagens como protesto ao estigma, informação e promoção de contato positivo, sendo que as evidências mais fortes indicam eficácia de abordagens que promovam o contato entre estigmatizadores e estigmatizados 55. Considerando o impacto negativo da estigmatização para o tratamento dos usuários de drogas, propostas de redução de estigma apresentam-se como uma forma de incluir a temática na abordagem ao fenômeno da dependência56. Tais propostas buscam mudanças em áreas intrapessoais, interpessoais e estruturais, sendo desenvolvidas para atingir pessoas vítimas de processos de estigmatização ou um público geral que não é estigmatizado 54. Ações de protesto, contato e educação Em relação ao estigma social, consideram-se como possíveis abordagens ações de protesto, contato e educação. Tais ações podem ser realizadas em diversos contextos, tornando as discussões sobre a dependência e os fatores sociais a elas associados visíveis e produtores de avanços em termos de políticas públicas e das diretrizes práticas provenientes destas. As ações caracterizadas como protesto referem-se à mobilização social contrariamente relacionada a aspectos classificatórios, estereotipados, moralizantes e discriminatórios sobre o usuário ou dependente de substâncias. Entre esses aspectos, enfatiza-se o uso de linguagem pejorativa para descrever usuários e dependentes. A partir das técnicas que incentivam o contato, busca-se promover o contato de diversos atores sociais com usuários de substâncias, a fim de possibilitar a alteração dos

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conteúdos das crenças a respeito dos usuários, utilizando-se como metodologia a troca de experiências. Já as ações educativas incluem apresentações e discussões que visam a alterar atitudes e comportamentos em um nível comunitário, permitindo que a questão do uso de substâncias seja pensada de forma crítica 24 . Na tentativa de reduzir o estigma, é necessária, ainda, a sensibilização dos profissionais de saúde, uma vez que estes apresentam visão moralizante do consumo de drogas25, o que por vezes contribui para a estigmatização e exclusão de dependentes de drogas. Diante disso, Ronzani et al. 56 buscaram elaborar um primeiro guia para profissionais e gestores para sensibilizar os profissionais sobre o impacto de se compartilhar imagens e percepções negativas sobre usuários de drogas. Esse guia pode ser acessado gratuitamente em: http://www.editoraufjf.com.br/ftpeditora/site/reduzindo_o_estigma_entre_usuarios_de_drogas.pdf Grupos de Suporte e a Terapia de Aceitação de Compromisso Há, ainda, ações a serem realizadas com indivíduos potencialmente estigmatizados, podendo ser utilizadas em serviços que objetivam lidar com a questão da dependência de forma ampliada. Entre essas ações citam-se a realização de grupos de suporte, o incentivo à promoção de autonomia e um processo terapêutico denominado terapia de aceitação e compromisso (ACT). Os grupos de suporte contribuem para a construção de uma noção de identidade, autoestima, habilidades de enfrentamento e integração social. Nesse âmbito, suporte mútuo pode significar motivação para adesão ao tratamento, partindo do pressuposto de que as experiências serão trabalhadas em conjunto. Por outro lado, ações que visam à construção de autonomia devem ser desenvolvidas a fim de proporcionar espaço para que os usuários e dependentes de substâncias se tornem ativos em seus processos de tratamento. Por fim, a terapia de aceitação e compromisso (ACT) é uma técnica oriunda das terapias cognitivo-comportamentais, que apresenta como conceito principal a flexibilidade psicológica, definida como a capacidade de entrar em contato com o momento presente e as experiências internas e, de acordo com o contexto, persistir ou alterar a busca de objetivos e valores pessoais. Exercícios que envolvem tais objetivos podem ser incluídos no processo de tratamento de forma a contribuir para o aumento de qualidade de vida dos usuários de substâncias e aqueles indivíduos com os quais eles se relacionam 57. Independentemente de qual forma de estigma será abordada ou qual ação será utilizada, enfatiza-se a necessidade de ações desenvolvidas e aplicadas de acordo com o âmbito em que os indivíduos para os quais essas ações se dirigem vivem, estudam, trabalham e se relacionam. Ações pontuais que não consideram as características de seu público-alvo tendem a ser menos eficientes, pois desconsideram os problemas de saúde, psicossociais e estruturais associados à dependência, assim como não trabalham as diversas potencialidades dos ambientes nos quais os atores, para os quais a intervenção se dirige, convivem. Conclusão Visões estigmatizantes sobre usuários de drogas legitimam abordagens ineficazes que atribuem aos usuários a responsabilidade pelos problemas não só que eles próprios enfrentam, mas culpabilizam os usuários por problemas sociais, como a violência, e configu-

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ram-se em barreiras à procura de tratamento e trabalho, aspectos estes importantes para a recuperação e reinserção social de indivíduos. A superação desse estigma social torna-se necessária a fim de garantir estratégias de prevenção, tratamento e reinserção social com foco na evidência de efetividade e, mais do que isso, é importante que os pacientes sejam envolvidos no processo decisório do tratamento e considere as demais demandas do individuo, além do foco exclusivo na abstinência do uso de drogas. O estigma social ou internalizado pode limitar as perspectivas de inserção social, diminuindo a autoestima e autoeficácia, o que, consequentemente, diminui a disposição para buscar um emprego. E isso, por sua vez, contribui também para aumentar ainda mais a internalização do estigma. Da mesma forma, esse ciclo também se reflete diretamente na vulnerabilidade social. O estigma social está relacionado ao risco frente ao desemprego, à pobreza, garantia dos direitos e oportunidades, ao agravamento da condição 1, 4, 5 e ao maior ou menor grau de qualidade de vida da população, uma vez que este é o resultado entre as oportunidades sociais, econômicas e culturais e a disponibilidade desses recursos 6,7 . Sendo assim, é de fundamental importância no processo de recuperação considerar ambos os aspectos - estigma e vulnerabilidade -, a fim de garantir os benefícios do tratamento. Referências 1. BRASIL. Ministério do Trabalho e do Emprego (MTE). Aspectos Conceituais da Vulnerabilidade Social. Brasília: Ministério do Trabalho e do Emprego, 2007. 2. AYRES, J. R. C. M. O Jovem Que Buscamos e o Encontro Que Queremos Ser: A Vulnerabilidade Como Eixo de Avaliação de Ações Preventivas do Abuso de Drogas, DST e AIDS Entre Crianças e Adolescentes. Série Idéias, v. 29, p. 15-23, 1996. 3. LUZ, A. A.; WOSNIAK, F. L; SAVI, C. A. Vulnerabilidade ao abuso de drogas e a outras situações de risco. Educar em Revista (América do Sul), v. 15, 2004. 4. MALVASI, P. A. ONGs, vulnerabilidade juvenil e reconhecimento cultural: eficácia simbólica e dilemas. Interface, comunicação, saúde e educação, v. 12, n. 26, p. 605617, 2008. 5. MORAIS, N.A.; KOLLER, S.H.; RAFFAELLI, M. Eventos Estressores e Indicadores de Ajustamento entre Adolescentes em Situação de Vulnerabilidade Social no Brasil. Universitas Psychologica, v. 9, n. 3, p. 787-806, 2010. 6. ABRAMOVAY, M.; CASTRO, M.G.; PINHEIRO, L.C.; LIMA, F.S.; MARTINELLI, C.C. Juventude, Violência e Vulnerabilidade Social na América Latina: Desafios para Políticas Públicas. Brasília: Ed.UNESCO, 2002. 7. ROCHA, S. R. Possibilidades e limites no enfrentamento da vulnerabilidade social juvenil: a experiência do programa agente jovem em Porto Alegre. (Tese de Doutorado). Universidade Católica do Rio Grande do Sul: Porto Alegre, 2007. 8. HUTZ, C. S.; KOLLER, S. H.; BANDEIRA, D. R. Resiliência e vulnerabilidade em crianças em situação de risco. In KOLLER, H. (Org.). Aplicações da psicologia na melhoria da qualidade de vida. Rio de Janeiro: Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia, 1996. 9. CARLINI, E. A.; GALDUROZ, J. C.; NOTO, A. R.; CARLINI, C. M.; OLIVEIRA L. G.; NAPPO, S. A.; SANCHEZ, Z. V. D. M. II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil: Estudo Envolvendo as 108 maiores Cidades do País. São Paulo: Cebrid/Unifesp, 2006.

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ViolĂŞncia, vulnerabilidade e uso de drogas Daniel Barcelos Renata Lima Luania Ludmilla Castro

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Introdução O uso de substâncias que produzem alterações no organismo humano não é uma novidade. Milenarmente os indivíduos exploram os recursos naturais em prol da sua sobrevivência e paulatinamente descobrem as potencialidades desses recursos, estabelecendo nova relação com essas descobertas, as quais interferem diretamente na forma como os indivíduos interpretam o mundo e se interpretam no mundo. A história das substâncias psicoativas, a que muitos atribuem a nomenclatura drogas, não foge a esse cenário. Sociedades antigas e contemporâneas inseriram em seu cotidiano o uso dessas substâncias, associando-as às práticas medicinais, ritualísticas, religiosas e recreativas, entre outras. Como problema social, observa-se o uso (ou abuso) problemático das drogas ilícitas como um processo moderno, que coincide com a expansão colonial europeia e com a consolidação do capitalismoa. O fenômeno da industrialização, por meio dos processos tecnológicos modificadores do uso de drogas tradicionais, e o desenvolvimento da indústria químico-farmacêutica são outros fatores que potencializaram as consequências do uso de drogas. No que se refere ao tratamento dado pelos sistemas legais ao consumo de substâncias psicoativas, observam-se movimentos variados. No Ocidente, o fenômeno do proibicionismo teria sido desencadeado inicialmente em razão do álcool, na Inglaterra, em 1736, com a edição do “Gin Act”, uma lei que objetivava reprimir o consumo de gim, bebida destilada que fora largamente produzida com subsídios governamentais, inclusive, a partir de 1690, para fazer frente ao vinho francês, diante da produção excedente de grãos na Grã-Bretanha. Em poucas décadas o consumo de gim atingiu níveis considerados intoleráveis e desencadeou movimentos de “temperança” que se propagaram da Inglaterra para os Estados Unidos, onde encontraram campo e floresceram. Os movimentos pela temperança, repressivos ao álcool, tiveram seu auge nos Estados Unidos, em 1919, quando foi promulgada a 18ª Emenda à Constituição Americana, que proibia a produção, o comércio e o consumo de bebidas alcoólicas em todo o território estadunidense. Em pouco tempo a proibição se tornou ineficaz e foram construídas alternativas mais severas, com o aumento de penas e sanções. Com o recrudescimento das penas, aumentaram também o silêncio da população, a corrupção e a sonegação de informações a respeito do tema, o encarceramento e o nascimento de uma criminalidade que se organizava para explorar os lucros da atividade ilícita1. Naquele período, fortaleceu-se consideravelmente o tráfico de álcool, resultando na construção de verdadeiros impérios pertencentes aos estereotipados gângsteres como Al Capone, imortalizado e romantizado pelo cinema. Após a Primeira Guerra Mundial, havia indícios de que o consumo de álcool seria abolido do mundo e que já existia algum nível de proibição legal nos Estados Unidos e na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, enquanto grandes líderes mundiais, como Hitler, Mussolini, Gandhi e Cárdenas, condenavam o consumo e pregavam a proibição total 2. A falta de eficácia da Lei Seca nos Estados Unidos resultou na liberação de seu consumo e comercialização já em 1933, por meio da 21ª Emenda Constitucional, sendo relevante que as receitas tributárias obtidas pela taxação dessa atividade foram importantes para compensar o 2 New Deal resultante da Crise de 1929b. Exemplos desse desenvolvimento são o isolamento do alcaloide da folha de coca tradicionalmente usada pelos povos andinos, em 1860, por Albert Niemann e o isolamaento da morfina, codeína e heroína, derivados do ópio, em 1804, 1832 e 1874, respectivamente. b Programa de Medidas de intervenção do Estado na Economia implementado pelo Governo do Presidente Franklin Delano Roosevelt nos Estados Unidos da América. a

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A modificação legislativa não foi capaz de alterar, entretanto, a cultura proibicionista que conduziu à discussão sobre a proibição da maconha, culminando no “Marijuana Act”, que proibiu o consumo da substância no país. No Brasil, foi o Decreto-Lei nº 891, de 25 de novembro de 1938, que primeiro estabeleceu a Lei de Fiscalização dos Entorpecentes. Nele foram arroladas 19 substâncias sujeitas à disciplina dessa norma, por serem classificadas como entorpecentes, em relação às quais se proibia o plantio, cultivo, colheita, fabricação, transformação, transporte e comercialização discricionários, regulamentando-se ainda os processos de importação, exportação e reexportação, armazenamento e estocagem de substâncias entorpecentes por drogarias, laboratórios e unidades fabris, unidades de tratamento e de ensino. O capítulo terceiro do Decreto-Lei disciplinava a internação e interdição civil, considerando como doença aomia toxicomania ou intoxicação habitual, prevendo-se, em consequência, os condicionantes para internação obrigatória 3. Artigo 27 - A toxicomania ou a intoxicação habitual, por substâncias entorpecentes, é considerada doença de notificação compulsória, em caráter reservado, à autoridade sanitária local. [...] § 1º A internação obrigatória se dará, nos casos de toxicomania por entorpecentes ou nos outros casos, quando provada a necessidade de tratamento adequado ao enfermo ou for conveniente à ordem pública. Essa internação se verificará mediante representação da autoridade policial ou a requerimento do Ministério Público, só se tornando efetiva após decisão judicial. No capítulo quatro, “Das Infrações e Suas Penas”, o Decreto-Lei dispunha: Artigo 33 Facilitar, instigar por atos ou por palavras a aquisição, uso, emprego ou aplicação de qualquer substância entorpecente ou, sem as formalidades prescritas nesta lei, vender, ministrar, dar, deter, guardar, transportar, enviar, trocar, sonegar, consumir substâncias compreendidas no art. 1º ou plantar, cultivar, colher as plantas mencionadas no art. 2º ou de qualquer modo proporcionar a aquisição, uso ou aplicação dessas substâncias - penas: um a cinco anos de prisão celular e multa de 1:000$000 a 5:000$000. Depois de 26 anos, em 4 de novembro de 1964, já no primeiro ano do Regime Militar, a Lei nº 4.451 alterou o artigo 281 do Código Penal Brasileiro, estabelecendo4: Art 1º O artigo 281 do Código Penal passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 281. Plantar, importar ou exportar, vender ou expor à venda, fornecer, ainda que a título gratuito, transportar, trazer consigo, ter em depósito, guardar, ministrar ou, de qualquer maneira, entregar a consumo, substância entorpecente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão, de um a cinco anos e multa de dois a dez mil cruzeiros.” Até então, os dispositivos legais tratavam a questão sob uma perspectiva generalista que utilizava palavras como venda, aquisição, troca, posse, consumo e uso para definir condutas proibidas. Apenas em 1976 é que a Lei nº 3.668 trouxe a expressão “tráfico”, que pode ser definida sob duas perspectivas. De maneira ampla, como a circulação de todo tipo de mercadorias, e, em sentido mais estrito, como o comércio ilícito, tanto de substâncias, animais, armas e produtos, como de pessoas. A Lei 3.668/76 ainda explicitou o seu caráter repressivo, compartilhando a responsabilidade da prevenção e repressão do uso indevido entre a União,

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unidades federativas e municípios, assim dispondo5: Art. 3º Fica instituído o Sistema Nacional Antidrogas, constituído pelo conjunto de órgãos que exercem, nos âmbitos federal, estadual, distrital e municipal, atividades relacionadas com: I - a prevenção do uso indevido, o tratamento, a recuperação e a reinserção social de dependentes de substâncias entorpecentes e drogas que causem dependência física ou psíquica; e II - a repressão ao uso indevido, a prevenção e a repressão do tráfico ilícito e da produção não autorizada de substâncias entorpecentes e drogas que causem dependência física ou psíquica. Art. 12. Importar ou exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda ou oferecer, fornecer ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a consumo substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar; Pena - reclusão, de 3 (três) a 15 (quinze) anos, e pagamento de 50 (cinquenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa. Art. 16. Adquirir, guardar ou trazer consigo, para o uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de (vinte) a 50 (cinquenta) dias-multa. Não por coincidência, poucos anos antes, já no início dos anos 70, os Estados Unidos do então presidente Richard Nixon difundiram sua política de combate às drogas ou a chamada “War on Drugs” (Guerra contra as Drogas), sob a perspectiva de que os problemas de criminalidade urbana e ordem social estavam primordialmente vinculados às drogas, exigindo-se, portanto, a potencialização da atuação repressiva sobre a produção e distribuição, tráfico e uso de entorpecentes. De maneira geral, o mundo adotou a ideologia da “guerra às drogas”, incluindo o Brasil. Foram poucos os países, como Suíça e Holanda, que adotaram políticas de redução de danos ainda na década de 70, como vozes dissonantes à propagada ideologia norte-americana. No final do século XX, a perspectiva de uma política de redução de danos (RD), já adotada em países europeus com relativo êxito, passou a ser debatida no Brasil fora do âmbito exclusivo da saúde pública, provocando alterações legislativas com base na Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, atualmente em vigência. E afastou a pena de prisão para a conduta de portar drogas para consumo próprio, prevista no artigo 28, embora não tenha deixado de tratá-la sob a égide do Direito Penal. Mesmo tratamento recebeu o ato de plantio de drogas para consumo próprio. O breve relato acerca da evolução legislativa sobre drogas no Brasil, bem como do panorama geral nos Estados Unidos, visa a demonstrar como a sociedade brasileira tem tratado legalmente a questão, além de exortar as questões reflexivas sobre o fato de que a matéria transita ao longo do tempo como tema tratado ora pela saúde pública, ora pela segurança pública, recebendo influência relevante das dimensões morais e sociais que sustentam as alterações jurídicas e orientam a privação de direitos no país. Longe de pretender exaurir o tema, os pontos abordados neste capítulo objetivam agregar valor e elementos ao debate. O usuário e o traficante Em 26 de agosto de 2006 foi promulgada a Lei nº 11.343/06, atualmente a lei de dro-

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gas vigente no Brasil, que em comparação com as leis antecedentes é mais ampla, uma vez que, além de estabelecer as normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas e definir crimes e dar outras providências, ainda regulamenta as medidas preventivas do uso indevido de drogas, regula as medidas de atenção e reinserção social de usuários e dependentes e institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD). A discussão que veio gerar a edição da Lei nº 11.343/06 iniciou-se ainda no final do século XX, quando o discurso da guerra contras as drogas começou a sair do foco proibicionista puro e colocou-se em perspectiva uma política pública de redução de danos6. A Lei nº 11.343/06, embora criminalize o usuário, retirou deste a possibilidade de ser privado de liberdade. Em seu artigo 28 da Lei nº 11.343/06, dispõe que: Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. § 1 Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica. § 2 Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente. No tocante ao tráfico, a Lei nº 11.343/06 manteve o rigor penal em relação à legislação antecedente, sendo no artigo 33: Art.33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa. O criminalista gaúcho Salo de Carvalho identifica em seu artigo “Nas trincheiras de uma política criminal com derramamento de sangue: depoimentos sobre os danos diretos e colaterais provocados pela guerra às drogas” “vazios ou lacunas na linguagem jurídica e “dobras de legalidade” nas estruturas incriminadoras da Lei 11.343/06, que permite amplo poder criminalizador às agências da persecução criminal, notadamente a agência policial; estruturas normativas abertas, contraditórias ou complexas que criam zonas dúbias que são instantaneamente ocupadas pela lógica punitivista e encarceradora” 8. A dobra de legalidade está associada ao excesso normativo, à previsão de condutas idênticas nos dois tipos penais que estruturam a política criminal de drogas – proibição das condutas facilitadoras do consumo (art. 28, caput, Lei 11.343/06) e incriminação do comércio (art. 33, caput, lei 11.343/06). São cinco as condutas idênticas, sendo elas: adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo. Todas essas condutas estão previstas no artigo 28 e se repetem no artigo 33, ao qual são somadas as condutas de vender, expor à venda, oferecer, prescrever, ministrar, entregar

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a consumo ou oferecer drogas, ainda que gratuitamente. O que se percebe é que cinco condutas objetivas (adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo) impõem consequências jurídicas distintas e discrepantes, sendo aplicadas ao chamado “usuário” as sanções do artigo 28: advertência, admoestação verbal, prestação de serviços e medida educativa, nunca a pena de prisão. Sem dúvidas, este é o tipo penal mais leniente do ordenamento brasileiro, um “delito de mínimo potencial ofensivo”. E para indivíduo que se enquadrar como “traficante”, a pena de prisão entre cinco e 15 anos está entre as mais severas previstas, superior até mesmo à pena por estupro, que é de seis a 10 anos de prisão, classificado, assim, como um “delito de máximo potencial ofensivo”. Além da severidade das penas mínima e máxima impostas, há ainda que se considerar que o tráfico de drogas, sendo crime equiparado aos hediondos, tem regime jurídico diferenciado no que se refere ao cumprimento da pena. Já a lacuna, ou vazio, é identificada quando, no artigo 28, §2º, o legislador diz: “para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente’”. Embora tal regra se dirija ao juiz, o primeiro destinatário é o policial, que exercerá o primeiro “filtro” da aplicação da lei e avaliação da conduta. O dispositivo legal não define precisamente os critérios de imputação e é prolífero em metarregras que se fundem em determinadas imagens e representações sociais de quem são, onde vivem e onde circulam os traficantes e os consumidores, alimentando os estereótipos do “elemento suspeito” e da “atitude suspeita”, os quais estão definitivamente incorporados ao exercício de aplicação da lei penal, não somente pelas agências policiais, mas pelos demais órgãos da persecução penal 8. Campos6 ressalta que o debate sobre as drogas está permeado de representações históricas estigmatizantes que, por um lado, associam a imagem do usuário de drogas à práticas assistencialistas ou compulsórias, por outro lado, vinculam a imagem do traficante a uma figura monstruosa destinada a penalizações cada vez mais longas. Na mesma direção, Medeiros7 destaca que forjar uma imagem de um indivíduo às margens dos padrões e rotulá-los é uma estratégia intencional e política, assim tanto o modelo médico como o penal constroem representações que transitam entre o enfermo e o delinquente. Medeiros 7 complementa que Becker, ao estudar a categoria outsiders, concluiu que “os grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infração constitui o desvio e ao aplicar tais regras a certas pessoas, em particular, qualificam nas de outsiders. Desse ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato cometido pela pessoa, mas uma consequência da aplicação que outros fazem 7”. Tráfico de drogas e vulnerabilização Dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN)10 divulgado em 23 de junho de 2015 com dados de junho de 2014 demonstram que o encarceramento por tráfico de drogas no Brasil aumentou 339% desde a edição da Lei 11.343/06. Os presos por tráfico correspondem a 27% do total de presos no país, segundo dados do INFOPEN de junho de 2014. Entre os homens, as prisões por tráfico correspondem a 25% dos encarceramentos, enquanto entre as mulheres o índice chega a 63%. Ainda, o número de presos (provisórios e condenados) por tráfico de drogas aumentou de 31.520 em junho de 2005 para 138.366 em junho de 2013. Em 2006 o percentual de

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presos por tráfico era de 14%, totalizando 47.500 pessoas, número que passou para 25% da população carcerária em 2012 (132 mil presos). Especialmente, observe-se que, segundo dados obtidos pelo Instituto Sou da Paz, em pesquisa coordenada pelo NEV-USP, em 2013, constatou-se que 67% dos presos por tráfico de drogas portavam menos de 100 gramas de maconha, enquanto 14% portavam menos de 10 gramas de maconha, o equivalente a cerca de 10 cigarros. Entre os que portavam cocaína, 77,6% portavam menos de 100 gramas da droga. Os dados apurados demonstram os efeitos da política antidrogas em vigor e a fatia da sociedade que vem sendo atingida, em duas frentes, por assim dizer, pelos efeito da política de guerra às drogas. Em um primeiro viés, a adoção do proibicionismo diminui drasticamente ou mesmo afasta as possibilidades terapêuticas de aplicação de uma política de redução de danos aos indivíduos que, além de usuários, recreativos ou não, são também enquadrados nas sanções do artigo 33 da Lei 11.343/06. Como explanado, não há uma quantidade mínima ou forma de acondicionamento ou outro critério objetivo que venha a definir o que configuraria o tráfico de drogas, penalizado por lei, distinguindo-o do porte de drogas para uso próprio, que apesar de definido na lei penal não implica penas de prisão para o denominado coloquialmente “usuário”. Noutro ângulo, a mesma população, majoritariamente jovem, negra ou parda, de baixa renda e escolaridade, é atingida pela violência associada e decorrente do tráfico. Luiz Flávio Sapori elaborou vários estudos, especialmente em Belo Horizonte, em que sugere uma epidemia de homicídios relacionados especificamente ao “crack”. Sapori, Bráulio Figueiredo Alves da Silva e Lúcia Lamounier Sena analisaram a evolução dos homicídios num período de 20 anos e desenvolveram a tese de que o recrudescimento dos assassinatos em Belo Horizonte está relacionado à consolidação do tráfico do crack na cidade, em seu artigo “Mercado do crack e violência urbana na cidade de Belo Horizonte”, de 2011. Em pesquisa realizada em São Paulo para a verificação da associação entre a mortalidade entre os usuários de crack e a violência urbana, constatou-se que entre 1992 e 2006 a taxa de mortalidade entre usuários de crack foi sete vezes superior à mortalidade da população em geral. Número superior a 50% das mortes decorreu de homicídios, sendo que o padrão de mortalidade dos usuários de crack é distinto dos usuários de outras formas de cocaína 11. Para Sapori, a introdução do “crack” no mercado das drogas ilícitas tende a incrementar a incidência de crimes contra a vida, conformando novo patamar da violência urbana11. Dados sobre homicídios e “crack’ na cidade de Nova Iorque durante o ano de 88, no auge da violência que atingiu a cidade entre 1985 e 1993, notificam que 52% das mortes estavam relacionadas às drogas e, desse percentual, 65% envolveram o “crack”, não sendo causados pelos efeitos farmacológicos, mas por conflitos relacionados ao mercado ilícito da droga 11. No Brasil, a obra de Alba Zaluar também registra que a dinâmica da violência é afetada pelo tipo de droga comercializada, sendo que no final da década de 1970 o aumento da violência esteve associado ao tráfico de cocaína e à corrida armamentista entre as quadrilhas. No bojo do processo de armamento das quadrilhas, houve a incorporação dos jovens em situação de vulnerabilidade social e a institucionalização do ethos guerreiro e da hipermasculinidade, legitimando o recurso à violência física 11. O fenômeno mais recente do “crack” é destacado por Sapori em sua abordagem, destacando-se os “efeitos singulares do crack” na configuração de um mercado ilegal mais violento na região metropolitana de Belo Horizonte, sendo que a droga potencializou as

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situações de endividamento devido ao principal efeito farmacológico, que é a compulsão. O usuário do “crack” está propenso a ser vítima de situação de violência quando quebra as “regras” do mercado em que está inserido, a partir do endividamento. Além da vitimização pelo homicídio do usuário devedor, o endividamento ainda afeta a criminalidade patrimonial. O roubo é um crime que é tido como prática própria do comércio de crack, seja pela prática de delitos para saldar dívidas, seja pela troca de mercadorias pela droga, nas “bocas de fumo”. Obviamente, todo um “mercado negro” antecedente ao crack existe em toda comunidade, o que favorece a existência dos crimes contra o patrimônio, decorrentes ou não do “crack” em si. Dados sobre a intensidade dos homicídios derivados da dinâmica do mercado ilegal de drogas revelam que quando um território está sob domínio de um mesmo “patrão” os números de mortes decorrentes de disputas de “bocas” (pontos de venda) decresce. E quando há um conflito armado, com diversas “firmas” disputando o “mercado consumidor”, as situações de confronto e, portanto, as mortes tendem a ser mais frequentes. Maria Lucia Karam escreve de forma incisiva: “não há pessoas fortemente armadas, trocando tiros nas ruas, junto às fábricas de cerveja ou junto aos postos de venda desta e de outras bebidas alcoólicas. Mas isso já aconteceu. Foi nos Estados Unidos da América, entre 1920 e 1933, quando lá existiu a proibição ao álcool. [...] Hoje, não há violência na produção e no comércio de álcool ou na produção e no comércio de tabaco. Por que é diferente na produção e comércio de maconha ou de cocaína? A resposta é óbvia: a diferença está na proibição” 12. Segundo esse ponto de vista antiproibicionista, só existiria a violência associada ao comércio das drogas “tornadas ilícitas” porque o mercado é ilegal, e a ilegalidade, além de fazer as armas necessárias enfrentar a repressão, é essencial para a resolução de conflitos, diante da ausência de regulamentação e de acesso aos meios legais e pacíficos. Proibicionismo e a “Guerra às Drogas” Thiago Rodrigues13 relata que “o proibicionismo emergiu como uma das táticas de controle social que, na passagem do século XIX para o XX, investiram na segurança das sociedades pela articulação de políticas punitivas e de intervenção sobre a vida e que procediam, por sua vez, de práticas de governo das populações que despontaram um século antes e foram chamadas por Michel Foucault de biopolíticas”. A Conferência de Haia, de 1912, produziu o primeiro tratado internacional nesse campo e não proibia a produção, venda e consumo de qualquer substância, mas estabelecia uma intervenção sobre questões até então desregulamentadas. Foi dedicada ao ópio e seus derivados, com o objetivo de limitar sua aplicação nas chamadas finalidades médicas baseadas no juízo de que todo “uso não medicinal [de drogas] é patológico em si” 13. Com o fracasso da “Lei Seca”, em 1933, o alvo do proibicionismo se deslocou para outras drogas, inicialmente a maconha e posteriormente a cocaína e a heroína. A partir da Conferência de Haia, em 1912, e especialmente depois da 1ª Guerra Mundial, os encontros diplomáticos sobre drogas tiveram impulso e a conferência foi seguida pelas reuniões e documentos produzidos pelo Comitê sobre o Ópio (Opium Board), ainda sob a Liga das Nações, os quais foram incorporados pela ONU após o fim da 2ª Guerra Mundial. Na segunda metade do século XX, com a assinatura na Convenção Única sobre Drogas, da ONU, em 1961, convergiram os esforços para a padronização e universalização do regime de controle de drogas, estipulando-se as listas de psicoativos organizadas a partir do critério de “uso médico”: as drogas sob prescrição médica, ainda que com potencial aditivo,

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seriam aceitas e todas as demais, consideradas de certa forma meramente recreativas, deveriam ser banidas. A partir da Convenção Única, consolidou-se e universalizou a lógica proibicionista, pautada na associação entre argumentos médico-sanitaristas e o objetivo de eliminação de todo uso que escapasse do controle estatal ou do estamento médico13. Para tanto, deveria persistir a criminalização de traficantes e usuários, além da expansão de medidas internacionais para combater o fluxo de psicoativos ilícitos. A partir de 1972, com a histórica fala de Richard Nixon proclamando a “guerra às drogas”, baseado em uma divisão estática dos países em dois blocos – produtores e consumidores –, ignorando a dinâmica complexa do mercado de produção e tráfico de psicoativos, passou a predominar a lógica militarista. É a partir desse momento que é forjado o conceito de “narcotráfico”. A Drug Enforcement Agency (DEA), que centraliza o aparato repressivo da política antidrogas norte-americana, iniciou as ações em 1974 e atuou inicialmente no Caribe e no México, logo, voltando-se para os considerados “países produtores”, especialmente os andinos Bolívia, Colômbia e Peru. Na década de 80, sob a égide do governo Reagan, o investimento em treinamento e formação de grupos policiais e militares na América Latina, pelos EUA, se intensificou. As agências norte-americanas identificaram associação entre guerrilhas de esquerda e o tráfico de cocaína e o fenômeno, denominado “narcoterrorismo”, justificaram a insistência do governo dos EUA em combater militarmente o narcotráfico e exigir dos países andinos medidas mais severas contra o tráfico de drogas, sem que, no entanto, fosse possível diminuir a produção e o consumo, tampouco o tráfico internacional. Importante ressaltar que países considerados pela política norte-americana como “consumidores”, como o próprio Estados Unidos e o Canadá, são atualmente reconhecidos como grandes produtores de droga, especialmente maconha. Sobre tal fenômeno, trataremos mais adiante. Enquanto em países como Panamá, Peru e Colômbia o efeito das intervenções norte-americanas na política interna com o respaldo da guerra às drogas justificou e incrementou o combate interno, especialmente diante do vínculo entre narcotráfico e guerrilhas de esquerda, no Brasil e no México é detectado o efeito da “guerra às drogas” no reforço de políticas de segurança pública voltadas para a repressão seletiva aos grupos sociais empobrecidos13. No caso específico do Brasil, considerado até meados dos anos 90 um “corredor de exportação de cocaína”, hoje percebido como grande mercado consumidor e especialmente importante praça de lavagem de dinheiro, o tráfico é associado a populações pobres, habitantes de favelas ou periferias e vinculado aos chamados “comandos” ou “partidos” do crime. Mesmo não sendo um quadro simples, a associação “pobreza e tráfico” tem fundamentado vários programas de segurança pública que insistem na repressão e no proibicionismo como meios para tratar da “questão das drogas”. A Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD) foi criada em 1996, no governo Fernando Henrique Cardoso, vinculada à Casa Militar da Presidência e foi inicialmente designada para atuar nos moldes da DEA norte-americana como uma agência de repressão. Mas esbarrou na divisão de atribuições prevista no art. 144 da Constituição e foi esvaziada, restando uma agência de trabalho no campo da prevenção. Já no governo Lula da Silva, quando foi promulgada a Lei 11.343, em agosto de 2006, foi alterada a denominação da SENAD para Secretaria Nacional sobre Drogas, mantendo-a, todavia, vinculada a um militar até o primeiro mandato de Dilma Roussef, quando foi transmitida a um civil.

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A Lei 11.343/06 instituiu ainda o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), o qual tem como finalidade articular, integrar, organizar e coordenar as atividades relacionadas à prevenção do uso indevido, à atenção e à reinserção social de usuários e dependentes de drogas e à repressão da produção não autorizada e do tráfico ilícito de drogas. No campo jurídico penal, conforme já mencionado, não houve na nova lei de drogas a definição de um critério objetivo para a distinção entre as categorias “usuário” e “traficante”, mantendo nas políticas públicas como principal forma de prevenção ao uso de drogas o paradigma da abstinência, força motriz do proibicionismo. Todavia, a partir de 1994 ações de redução de danos no campo da saúde começaram a ser adotadas, levando a uma ponderação no campo penal que veio impactar na edição da Lei 11.343/06, na distinção entre as sanções impostas ao traficante e ao usuário. As políticas de redução de danos e o uso de drogas No Brasil, as políticas de redução de danos foram inicialmente adotadas na cidade de Santos, maior cidade portuária do país, ainda na década de 1980, diante do avanço da AIDS especialmente entre os usuários de drogas injetáveis. As medidas, que incluíam a distribuição de preservativos e de seringas, foram duramente criticadas e o coordenador da ação, David Capistrano, da Secretaria Municipal de Saúde de Santos-SP, chegou a ser processado criminalmente. A Redução de Danos (RD) se impõe de forma oposta ao paradigma da abstinência, que é a força motriz do proibicionismo. Segundo Passos, “por paradigma da abstinência entendemos algo diferente da abstinência enquanto uma direção clínica possível e muitas vezes necessária. Por paradigma da abstinência entendemos uma rede de instituições que define uma governabilidade das políticas de drogas e que se exerce de forma coercitiva na medida em que faz da abstinência a única direção de tratamento possível, submetendo o campo da saúde ao poder jurídico, psiquiátrico e religioso” 14. Prossegue Passos: “pode-se dizer que a RD coloca em questão as relações de força mobilizadas sócio-historicamente para a criminalização e a patologização do usuário de drogas, já que põe em cena uma diversidade de possibilidades de uso de drogas sem que os usuários de drogas sejam identificados aos estereótipos de criminoso e doente: pessoas que usam drogas e não precisam de tratamento, pessoas que não querem parar de usar drogas e não querem ser tratadas, pessoas que querem diminuir o uso sem necessariamente parar de usar drogas”. A realidade epidemiológica constatada em 1994 pelo Ministério da Saúde era de que 25% dos casos de AIDS no Brasil estavam ligados ao uso de drogas injetáveis, o que demandou que a RD deixasse de ser uma ação pontual do município de Santos e se tornasse uma ação dentro da política nacional. Nesse mesmo ano (1994), o “Projeto Drogas” do Programa Nacional de DST/AIDS passou a contar com o apoio político e financeiro da Organização das Nações Unidas, por meio do Programa das Nações Unidas para o Controle Internacional de Drogas (UNDCP). Esse projeto buscou articular, em torno do tema drogas, a Coordenação Nacional de Saúde Mental, o então Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN) do Ministério da Justiça e as Secretarias do Ministério de Educação e do Desporto. A RD foi inserida em diferentes programas e secretarias que criaram, junto ao Projeto Drogas, diferentes linhas de intervenção estadual e municipal, principalmente a criação dos Programas de Redução de Danos (PRDs)14. A partir da Portaria 1.028/2005 do Ministério da Saúde, a redução de danos foi oficia-

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lizada como política pública federal, no cenário da atenção integral ao usuário de álcool e drogas, mas não é consenso, sendo que muitos entendem que incentivaria o consumo de drogas, com gastos desnecessários, quando o objetivo deveria ser a desintoxicação total. Conforme Passos, na RD a abstinência pode ser uma meta a ser alcançada, sendo, porém, uma meta pactuada e não imposta por uma instituição. As regras da RD, mesmo a abstinência, são imanentes à própria experiência e não se exercem de forma coercitiva como regras transcendentais. E enquanto a abstinência está articulada com uma proposta de remissão do sintoma e a cura do doente, a proposta de reduzir danos possui como direção a produção de saúde, considerada como produção de regras autônomas de cuidado de si. Descriminalização A mais atual discussão acerca da descriminalização no Brasil aportou no Supremo Tribunal Federal no segundo semestre de 2015, por meio do julgamento do Recurso Extraordinário 635.659-RG. Neste, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo recorreu de decisão que condenou Francisco Benedito de Souza pela posse de 3 g de maconha no interior da cela onde cumpria pena, sentenciando-o à prestação de serviços pelo prazo de dois meses. A Suprema Corte entendeu tratar-se de julgamento com repercussão geral, significando que eventual decisão de que a posse dessa quantidade da droga para uso próprio não configura crime poderá orientar os juízes e os tribunais de todo o país. O julgamento está interrompido por pedido de vistas dos autos por Ministro que compõe o Pleno do STF. É, portanto, por intermédio do Poder Judiciário que o país presencia o avançar de uma discussão que já levou inúmeros países, especialmente na Europa, mas também na América, inclusive vários estados dos Estados Unidos, a descriminalizar, liberar ou mesmo legalizar o porte (e, por consequência, o consumo) de drogas, com variações sobre o tipo de droga e a forma permitida para sua fruição, para uso medicinal somente ou, inclusive, para uso recreativo, manifestando-se ou não sobre quantidades, forma de produção, formas de obtenção, locais para consumo, etc. Nessa perspectiva, ainda no século passado, Holanda e Suíça foram as primeiras nações a permitir o consumo controlado de drogas, e assim foram as primeiras a obter referenciais sobre os efeitos da não proibição absoluta, trabalhando com redução de danos. Já no século XXI, especificamente no ano de 2001, Portugal editou legislação que de fato descriminalizou o uso de todas as drogas, mantendo a proibição para o tráfico. Na América do Sul, o Uruguai, em 2013, também descriminalizou o uso de maconha, regulamentando toda a cadeia de produção. Atualmente, somente Brasil, Guianas e Suriname tratam o uso de drogas como crime, enquanto nos demais países do continente foram estipuladas regras de quantidade máxima e espécie de droga cujo uso é permitido, incluindose em alguns deles até mesmo a cocaína. Como a maioria das experiências é limitada a permitir ou não punir o porte de drogas para consumo, poucas delas se manifestando quanto à cadeia de produção e distribuição, o tráfico permanece criminalizado e existem ainda poucos números oficiais que permitam a análise dos casos concretos. Até o momento, o que se noticia é que o impacto da descriminalização foi neutro ou mínimo na escala de 1% de aumento ou 1% de diminuição da quantidade de usuários, no entanto, há de se fazer ressalvas quanto à amostragem e quanto ao período avaliado. Recentemente, o Núcleo de Estudos e Opinião Pública (NEOP) da Fundação Perseu Abramo (FPA) e a Fundação Rosa Luxemburgo (RLS) lançaram os resultados de pesquisa amostral realizada no ano de 2013, com a população adulta brasileira de 16 anos ou mais

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distribuída em 150 municípios brasileiros, totalizando 24.000 entrevistas15. A pesquisa titulada “Drogas no Brasil: entre a saúde e a justiça – proximidades e opiniões” apresentou resultados interessantes. Por exemplo, entre os entrevistados, 47% tiveram algum contato pessoal com drogas ilícitas, enquanto 20% disseram possuir algum familiar que faz uso de droga ilícita, dos quais 60% utilizam a maconha. A maconha foi citada por 44% dos entrevistados como a droga ilícita mais acessível. Entre eles, 16% tiveram acesso ao crack e 0,2% à cocaína. Já 40% dos respondentes consideraram o crack a droga mais perigosa, 22% consideraram a cocaína a droga mais perigosa, 15% a maconha, 9% o álcool e apenas 3% dos entrevistados consideraram os fármacos como a droga mais perigosa. A pesquisa constatou ainda que a taxa de dependência dos fármacos e da heroína e morfina foi de 50% ou mais, enquanto a maconha, crack e cocaína apresentaram taxa de dependência entre os usuários de 30%15. Conforme pesquisa do INPAD (2012) em parceria com a UNIFESP, estima-se que o Brasil teria em 2012, 2,6 milhões de usuários de crack e cocaína, sendo metade deles dependente (1,3 milhão). Deste total, 78% cheiram a substância exclusivamente (consumida na forma de pó); 22% fumam (crack ou oxi) simultaneamente e 5% consomem apenas pelos cachimbos. Pesquisa similar da FIOCRUZ (2012), portanto, do mesmo ano informa números distintos: o levantamento, realizado em parceria com a SENAD, indica que cerca de 370 mil brasileiros de todas as idades usaram regularmente crack e similares (pasta base, merla e óxi) nas capitais ao longo de pelo menos seis meses em 2012. Por “uso regular” foi considerado o consumo de pelo menos 25 dias nos seis meses anteriores ao estudo, de acordo com definição da Organização Pan-americana de Saúde. Esse número (370 mil pessoas) corresponde a 0,8% da população das capitais do país e a 35% dos consumidores de drogas ilícitas nessas cidades. O coordenador da pesquisa da FIOCRUZ alerta que os números são subnotificados, pois se trata de uma “população oculta”, que devido à questão criminal e à discriminação tem dificuldades de revelar seu uso (do crack), que é mais estigmatizado do que o uso de outras drogas. Segundo o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, professor titular de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina (UNIFESP) e presidente da Associação Paulista Para o Desenvolvimento da Medicina, “cada vez mais o custo social, econômico e emocional das drogas aumenta e na sua proporção existe a tendência a buscar soluções mágicas e simples como a de legalização de todas. Os proponentes dessa solução não apresentam uma clara operacionalização de como isso deveria ocorrer, mas aportam argumentos a favor. Primeiro, dizem que a quantidade de crimes associados ao uso de drogas diminuiria na medida em que fosse retirado o lucro dos traficantes. O segundo argumento é que, tornando as drogas disponíveis legalmente, haveria uma série de benefícios para a saúde pública. A disponibilidade de drogas mais puras e seringas e agulhas limpas poderia prevenir doenças como hepatite e AIDS, por exemplo. Tais argumentos têm apelo somente no nível superficial. Quando olhados em detalhes, eles desabam. A ação direta de qualquer droga com potencial de criar dependência reforça a chance de que ela venha a ser usada novamente” 16. O debate travado atualmente no STF, no julgamento do RE, é um avanço quando se trata de ampliar a abrangência de uma discussão necessária. Porém, o Ministro Gilmar Mendes foi sagaz ao indicar que “quando se cogita, portanto, do deslocamento da política de

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drogas do campo penal para o da saúde pública, está se tratando, em última análise, da conjugação de processos de descriminalização com políticas de redução e de prevenção de danos, e não de legalização pura e simples de determinadas drogas, na linha dos atuais movimentos de legalização da maconha e de leis recentemente editadas no Uruguai e em alguns Estados americanos” RE 635.659, STF. Parece que os argumentos de ambos os lados, sejam de defensores, sejam de opositores da descriminalização, perpassam desde as questões de saúde pública até a esfera da privacidade e intimidade da pessoa humana. O voto do Ministro Barroso, proferido no dia 10 de setembro de 2015, no citado julgamento do STF situa de forma adequada a questão: “Estamos lidando com um problema para o qual não há solução juridicamente simples nem moralmente barata. Estamos no domínio das escolhas trágicas. Todas têm custo alto. Porém, virar as costas para um problema não faz com que ele vá embora. Por isso, em boa hora o Supremo Tribunal Federal está discutindo essa gravíssima questão. Em uma democracia, nenhum tema é tabu. Tudo pode e deve ser debatido à luz do dia. Estamos todos aqui em busca da melhor solução, baseada em fatos e razões, e não em preconceitos ou visões moralistas da vida” (Ministro Luís Barroso, RE 635.659, STF). O Ministro votou pela descriminalização da maconha, sugerindo uma quantidade máxima de 25 gramas ou seis mudas da planta-fêmea para que não se considere criminosa a conduta. Diferentemente, os Ministros Facchin e Gilmar Mendes usaram apartes para sugerir que há significativa incoerência nos votos de seus pares quando entendem que deverá ser permitido o porte de maconha, mantendo as sanções para as demais drogas. Dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal, três já se manifestaram favoravelmente à descriminalização do porte para consumo, entre os quais apenas um se manifestou sobre a operacionalização desse entendimento jurídico, estipulando limites conforme mencionado. Exatamente para este é que os Poderes Executivo e Legislativo são tímidos quando se trata de debater temas considerados polêmicos, como a questão da legalização/descriminalização da maconha e de outras drogas devido ao custo político. Citou ainda o caso de Pedro Abramovay, que foi afastado do cargo de Secretário Nacional de Segurança Pública após se manifestar publicamente como contrário à prisão de pequenos traficantes. Conclusão A revisão do “estado da arte” sobre políticas públicas de drogas nos principais países do mundo indica que boa parte deles reconheceu o fracasso da “guerra às drogas”, passando a buscar alternativas para coibir e prevenir o uso/abuso de drogas, sem necessariamente fazer uso da coerção penal em todos os casos. O idealizador e precursor da política proibicionista, Estados Unidos da América, também dá sinais no mesmo sentido quando permite o uso legalizado da maconha para fins medicinais e até recreativos em vários Estadosmembros, registrando-se o fato de que, diferentemente do Brasil, eles possuem autonomia legislativa para disciplinar a questão de forma distinta. No Brasil, onde apenas a União, por meio do Congresso Nacional, pode elaborar leis sobre a descriminalização ou proibição do uso de drogas, parece não haver indícios de um debate sólido sobre o tema. Apesar disso, existem abordagens e manifestações distintas que propõem, desde a descriminalização pura e simples do uso - com a vedação à comercialização -, até a legalização, com o controle da cadeia de produção, ora sobre todas as drogas, ora somente a maconha, o que tem sido mais comum. Os argumentos, tanto

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de defensores como de opositores da descriminalização, variam entre questões de saúde pública e aspectos de segurança pública até a proteção da privacidade e intimidade da pessoa humana. A discussão acerca das vulnerabilidades da população em relação ao tráfico e uso de drogas parece orbitar, segundo os especialistas, ora sobre a utilização de mão de obra de jovens moradores de aglomerados urbanos no tráfico, gerando lucros acima do mercado convencional de trabalho e elevando os indicadores de criminalidade violenta, ora sobre as condições do usuário que traficam para manter a própria dependência ou vício e que é tratado pelo sistema como traficante. Nesse aspecto, a falha ou insucesso da política antidrogas atualmente tem como resultado altas taxas de encarceramento, limitadas de forma geral a determinado segmento das populações, sem implicar a diminuição da oferta de drogas proscritas no mercado ilícito e sem impactar nos indicadores de violência e criminalidade, sobretudo a violência. Na perspectiva de que as políticas de redução de danos se mostram como caminho promissor a ser trilhado, deixa-se aberto o debate, concluindo que a atual política criminal atua em duas frentes de vulnerabilização da população: ao não estipular critérios objetivos, permitindo a seletividade do encarceramento exatamente dirigido às populações já abandonadas pelo Estado, e ao afastar do usuário de álcool e drogas, que é enquadrado como traficante, as possibilidades da atenção integral, perpetuando o ciclo da violência e da criminalização. Referências 1. Shecaria, SS; Drogas e Criminologia. In: Lima, R, et al(orgs.) Polícia, Justiça e Crime no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014.p.334-339. 2. Carneiro, H. Autonomia ou Heteronomia nos estados de consciência. In: Labate, B. et al (orgs.). Drogas e Cultura: novas perspectivas. Salvador: Ed. UFBA, 2008. 3. Brasil. Decreto-Lei 891, de 25 de novembro de 1938. Aprova a Lei de Fiscalização de Entorpecentes. Presidência da República, Subchefia para Assuntos Jurídicos [acesso em 2 set 2015]. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/Del0891.htm. 4. Brasil. Lei nº 4451, de 4 de novembro de 1964. Altera a redação do artigo 281 do Código Penal [Internet]. Presidência da República, Subchefia para Assuntos Jurídicos [acesso em 2 set 2015]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/1950-1969/L4451.htm. 5. Brasil. Lei n º 6368, de 21 de outubro de 1976. Dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica, e dá outras providências. [Internet]. Presidência da República, Subchefia para Assuntos Jurídicos [acesso 2 set 2015]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/leis/L6368.htm 6. Campos, MS, As percepções dos brasileiros sobre drogas, justiça e saúde. In: Bokany,V,organizadora; Oberling, AF; Kiepper, A: Brites, MC; Menezes, JRL, Torres, JHR et al .Drogas no Brasil : entre a saúde e a justiça: proximidades e opiniões. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2015.[Internet]. [acesso 15 set 2015]. Disponível em: 7. http://www.fpabramo.org.br/publicacoesfpa/wpcontent//uploads/2015/05/DrogasNoBrasil.pdf.

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Vulnerabilidade, guerra contra as drogas: uma abordagem econĂ´mica atual Guilherme da Rocha B. Costa

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Introdução O debate acerca da liberação e/ou descriminalização das drogas está presente entre os economistas há, pelo menos, 30 anos. Durante esse período, os argumentos mudaram pouco, mas a robustez do pleito aumentou consideravelmente, seja a favor ou contra. Optou-se, neste capítulo, por apresentar as principais considerações a favor do fim da guerra contra as drogas; as principais falhas do modelo atual de combate ao tráfico de drogas; e, finalmente, sugestões, tanto para aprimorar o modelo atual, como para mudá-lo completamente. Entretanto, cabe deixar claro que essa perspectiva não está fundamentada no conceito de vulnerabilidade individual, mas, sim, em questões de vulnerabilidade de países, já tratada no primeiro capítulo deste livro. Ademais, cabe definir racionalidade nos termos da ciência econômica, mais precisamente da ortodoxia econômica (mainstream), segundo a qual ser “racional significa que indivíduos maximizam utilidade consistentemente ao longo do tempo, e um bem é potencialmente viciante se aumentos no consumo passado aumentam o consumo corrente”1. Finalmente, “a justificativa-padrão para a intervenção governamental em interesses privados requer que esses interesses ou atividades privadas produzam externalidades: em uma perspectiva econômica neoclássica, política pública deve intervir somente se o setor privado age de tal forma a gerar custos ou benefícios que são impostos sobre ou capturados por outro que não o agente original da decisão ou ação”2 . Tendo essas considerações em mente, cabe agora revisitar alguns momentos históricos importantes no combate às drogas em uma perspectiva histórico-econômica, para, então, tecer comentários sobre políticas alternativas ao status quo. O início do século XX nos Estados Unidos da América (EUA) e o álcool É sabido que alguns produtos que podem ser classificados como “drogas” são considerados legais, ou lícitos, como o tabaco e o álcool. Entretanto, nem sempre foi assim. Nos primeiros anos do século XX, nos Estados Unidos, existia crescente preocupação de grupos conservadores com o alcoolismoa . A preocupação foi tamanha que alguns estados implementaram legislações proibitivas à comercialização do álcool, chegando ao ápice em janeiro de 1920, com o ato Volstead, que proibia a venda, manufatura e transporte do álcool. Foi a implementação da conhecida “Lei Seca”, que durou quase 14 anos, tendo sido revogada em dezembro de 1933. Essa lei falhou, pois simplesmente não era obedecida: as pessoas continuaram a consumir álcool. Na época, estima-se que 1/3 da população norte-americana consumia álcool. Fazer cumprir a lei tornou-se um grande problema, já que expressiva parcela da população era “criminosa”. A Lei Seca, então, acabou por ter efeitos ruins e absolutamente opostos aos seus objetivos: estimular o tráfico de álcool e aumentar os gastos com o combate ao tráfico. Segundo Hampshire3, para atender a essa demanda por álcool, a Lei Seca norte-americana “foi o elemento mais importante no desenvolvimento do crime organizado na América”. Já o custo para fazer cumprir a legislação proibitiva foi elevado. É estimadob que os gastos do governo e da justiça norte-americana tenham elevado em 500%, em um comparativo entre antes (em 1913 gastavam-se US$ 3 milhões) e depois da lei (em 1922 gastavam-se a b

Para mais sobre o tema, ver Hampshire (1993). Fonte: Historical statistics of the United States, Bicentennial Edition. U.S. Department of Commerce, 1976.

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US$ 14 milhões). Comparando também o período final da lei, houve queda de 50% dos gastos federais da justiça norte-americana, caindo de US$ 31 milhões em 1932 para US$ 15 milhões em 1934. A guerra contra as drogas nos EUA (The War on Drugs) Em junho de 1971, o então presidente norte-americano Nixon declarou “guerra às drogas”. Desde então, Presidente após Presidente nos EUA reafirmou o compromisso do governo em eliminar o tráfico de drogas. Nas palavras de George W. Bush, “esse flagelo irá acabar”. O Presidente Ronald Reagan (1981-1989) iniciou um longo período de aumento acentuado no encarceramento, fundamentalmente advindo da guerra contra as drogas. O número de pessoas presas por crimes não violentos relacionados à droga aumentou de 50.000, em 1980, para 400.000, em 1997, crescimento de 800% nesse segmento da população carcerária norte-americanac . Sendo assim, “[...] a guerra contra as drogas é costumeiramente justificada como uma medida de controle da criminalidade. Na verdade, a guerra pode gerar mais crimes do que controlá-los... [...] uma grande maioria daqueles que cometem crimes violentos e crimes de propriedade também são usuários de drogas ilícitas e pequenos traficantes. Entretanto, o contrário não é verdade. A maioria dos usuários de drogas ilícitas não comete crimes violentos ou crimes contra a propriedade... [...] álcool é a única droga consistentemente associada com comportamento violento realizado ‘sob o efeito’. A maioria da violência relacionada às drogas acontece entre os traficantes, por território” 4. Essa diretriz também é seguida por Benson2. Ou seja, para justificar a contínua política de guerra contra as drogas, no arcabouço delineado na introdução deste capítulo, o governo tem que ter criado externalidades positivas substanciais nesses últimos 40 anos de aplicação da política. Em outras palavras, o aumento crescente do orçamento desse programa e o resultado no número de prisões, com redução da violência oriunda das drogas e do consumo de drogas, devem ser justificados economicamented . A guerra contra as drogas no México e no Brasil O aumento da criminalidade fez com que estudos empíricos procurassem os determinantes socioeconômicos desse fenômeno. O drama de países como o Brasil começa pelo que afirmou o Secretário Executivo da Interpol, Robert Kendall: “seria melhor se as forças de polícia não fossem empregadas para caçar consumidores de droga ou os pequenos negociantes e atribuíssem muito mais seus recursos à repressão de grandes traficantes e de lavadores do dinheiro sujo”. Infelizmente, a legislação e, mais ainda, a prática policial em diversos países, incluindo o Brasil, guiam essas forças policiais para a primeira escolha5. A autora tem tal posição por entender que a corrupção institucional, a ineficácia e a discriminação no sistema judiciário no Brasil fizeram crescer a violência urbana a níveis elevados. Ainda segundo Zaluar5, “o que deve entrar em pauta de discussão é como a pobreza Fonte: Federal Bureau of Prisons. Disponível em: http://www.bop.gov/about/statistics/. Cabe mencionar que, hoje, 48,7% da população carcerária norte-americana são compostos de indivíduos que cometeram crimes relacionados às drogas (“drug offences”). c

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e a falta de emprego para os jovens pobres se relacionam com os mecanismos e fluxos institucionais do sistema de justiça na sua ineficácia no combate ao crime organizado”. Segundo Kassouf6: Os resultados [de seu estudo empírico] fornecem evidências empíricas que permitem dar sustentação à hipótese de que o mercado de drogas que se desenvolveu no Brasil é um dos principais responsáveis pela alta criminalidade que atinge a sociedade brasileira... Os resultados fornecem suporte para concluirmos que a desigualdade de renda e a urbanização exercem efeitos positivos sobre a criminalidade brasileira e, também, que as condições do mercado de trabalho podem implicar criminalidade. Ou seja, o que esses autores defendem é que um combate sistemático e sistêmico sobre fatores socioeconômicos seriam medidas eficazes para contribuir para a redução da criminalidade, inclusive, da criminalidade oriunda das drogas. Entre as medidas necessárias, podem-se citar a diminuição da desigualdade de renda e a criação de meios para cessar o processo de urbanização, advindo da migração campo/cidade – o qual ainda ocorre sem planejamento e que causa uma urbanização desorganizada. Adicionalmente, a realidade mexicana também é alarmante. Os níveis de violência no México, segundo Robles, Calderón e Magaloni7, aumentaram significativamente nos últimos anos, pois o conflito entre traficantes na busca por território se intensificou. Segundo os autores 7, três fatores explicam esse aumento na violência: mudanças exógenas no mercado de narcóticos (incluindo, acima de tudo, o sucesso relativo da Colômbia em sua “guerra” contra as drogas); o aumento da fragmentação dos cartéis de drogas; e a militarização da guerra contra as drogas e o tráfico, a qual começou durante a administração do Presidente Felipe Calderón. Esses três autores, inclusive, mencionaram um fato, no mínimo, provocativo: quanto mais se coibiu o tráfico de drogas no México, mais violento se tornou o crime organizado das drogas. Não menos importante, identificou-se que 90% dos homicídios ligados ao tráfico de drogas foram execuções, de tal forma que foi possível inferir que o aumento da violência no México é fundamentalmente associado às rivalidades entre cartéis de drogas. Ademais, o estudo empírico dos autores sobre o México revela que o aumento de 10 homicídios por 100.000 habitantes gera: • queda na proporção de pessoas trabalhando no entorno entre 2 e 3%; • aumento na proporção de desempregados em 0,5%; • redução na proporção de pessoas que possuem negócio no entorno em 0,4%; e • queda no número de trabalhadores autônomos na ordem de 0,5%. Por fim, o aumento de um homicídio por 100.000 habitantes diminui a renda municipal, na média, em 1,2%. Desde 2006, quando se iniciou uma ofensiva mais clara e direta contra os cartéis de drogas no México, focando, principalmente, a prisão dos líderes das famílias e dos grupos dominantes, os crimes comuns aumentaram consideravelmente. Isso se explica pela falta do líder. Na visão desses autores, a ausência do líder, preso ou morto, desencadeia um efeito dominó entre os criminosos de “menor patente” - sem um líder para discipliná-los ou para direcionar suas ações, esses criminosos recorrem à forma de ganhar dinheiro que conhecem – como extorsão, roubo e sequestro -, até que novos líderes, menores e mais fragmentados, surjam.

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Com isso, segundo Robles, Calderón e Magaloni7, “é importante enfatizar que um dos principais problemas que explicam a onda de crimes no México está relacionado com as instituições que fazem cumprir a lei de repressão às drogas no país”. Avaliação do mercado ilegal e possíveis impactos de uma proposta alternativa Becker, Murphy e Grossman8, em estudo de caso acerca das drogas, elucidam os benefícios e malefícios econômicos da proibição/criminalização das drogas e argumentam a respeito de impostos especiais de consumo. No caso, taxas não monetárias na forma de punições criminais para a produção ilegal de produtos. Ou seja, foram analisados os efeitos normativos e positivos de punições que fazem cumprir a lei que torna ilegais a produção e o consumo de drogas. O ponto de partida foi determinar como o preço das drogas é formado. Becker, Murphy e Grossman8 afirmam que: “[...] a demanda por drogas, presume-se, depende do preço de mercado por drogas, que é afetado pelos custos impostos aos traficantes através de punições e aplicações da lei, tais como o confisco das drogas e prisão. Bem como a demanda também depende do custo imposto pelo governo sobre os usuários”. Adicionalmente, cabe destacar que a demanda por drogas ilícitas é inelástica ao preço. Isso significa dizer que variações no preço geram reduzido impacto no volume do consumo. Ou seja, é necessário acentuado aumento nos preços para que a diminuição da demanda por drogas seja significativa. Dessa forma, os autores passam a simular/modelar dois cenários, um com o atual modelo de proibição às drogas e outro no qual existe taxação sobre produtos legalizados. Um dos objetivos é simples, descobrir em qual caso o preço das drogas será mais elevado e, dessa forma, tornará essa indústria menos viável/rentável. Ademais, ressalta-se que as tentativas de reduzir a oferta de drogas a partir de leis coercitivas têm consequências qualitativas, como o aumento da violência e da influência de gangues de rua e cartéis da droga (em outras palavras, fortalece o crime organizado, assim como fez a Lei Seca). Por outro lado, a liberação/descriminalização aumenta os custos com a saúde pública e outros problemas de segurança pública podem surgir. No primeiro cenário, com o atual modelo de proibição às drogas, Becker, Murphy e Grossman8 modelaram o nível de intervenção governamental ótimo, no qual a queda do consumo e o aumento do preço do produto ilegal são mais satisfatórios para o governo. Nesse caso, os autores constataram que o grau de intervenção ideale é nulo, mesmo quando se considera que a demanda é, até certo ponto, elástica. Ou seja, quando são levadas em conta as externalidades, positivas e negativas, da intervenção governamental, o melhor que o governo pode fazer é não intervir no mercado de drogas (também realçando as externalidades positivas e negativas dessa ausência de iniciativa). A conclusão dos autores é de que somente em um cenário com demandas por drogas elásticas ao preço, uma política nos moldes da Guerra contra as Drogas seria bem-sucedida, pois apenas nesse caso um aumento nos gastos em fazer cumprir a lei traria benefícios suficientemente grandes para a sociedade, para justificar seu dispêndio (o custo de coibir o tráfico de drogas geraria externalidades positivas suficientemente grandes). No segundo cenário, das taxas monetárias sobre bens legalizados: e

Para mais detalhes na Matemática envolvida para chegar a essa conclusão, ver Becker, Murphy e Grossman (2004).

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[...] se as receitas fiscais são transferências puras, [a Matemática do modelo] dá o resultado clássico, que o imposto monetário ótimo é igual à diferença entre o valor marginal privado e o social. Com uma transferência pura, a elasticidade da demanda é irrelevante... [...] Nossa análise mostra, além disso, que usar taxas monetárias para desencorajar produção de droga legalizada pode reduzir o consumo de drogas de forma mais acentuada que a mais eficiente das guerras contra as drogas (Becker, Murphy e Grossman8. Dessa forma, os autores reafirmam o trabalho de Becker e Murphy 1, o qual mostra que o consumo de produtos que criam dependências responde menos por mudanças temporárias nos preços do que mudanças permanentes. A conclusão dos autores é de que dependências fortes só são superadas caso os dependentes parem de vez, de forma abrupta e por um período consideravelmente longo de tempo (to go “cold turkey”). Para reforçar o exposto até o momento, o relatório do grupo de experts da London School of Economics and Political Science (LSE), de 2014, tem no seu prefácio a seguinte passagem: A busca pela militarização e aplicação das leis em uma Guerra contra as Drogas global tem produzido grandes resultados negativos e danos colaterais. Estes incluem encarceração em massa nos EUA, uma polícia altamente repressiva na Ásia, ampla corrupção e desestabilização política no Afeganistão e na África Ocidental, imensa violência na América Latina, uma epidemia de HIV na Rússia, uma aguda falta de medicamentos contra a dor e a propagação sistemática de abusos e violações dos direitos humanos ao redor do mundo. A estratégia falhou em seus próprios termos. A mensagem do prefácio continua e foi assinada por muitos economistas de peso, como Kenneth Arrow, Dani Rodrik, Jeffrey Sachs e Oliver Williamson. Como visto até aqui, os argumentos para essa passagem citada já foram elucidados. Entretanto, é importante destacar, assim como fez Felbab-Brown9 no relatório da LSE, que essa contribuição não sustenta a ideia de que, com a legalização, per se, será erradicada a violência. Pelo contrário, mesmo em mercados de commodities de produtos legalizados, a aplicação da lei é fundamental. Ademais, o que é proposto, costumeiramente, quando é proposto o fim da Guerra contra as Drogas, é que a política atual de segurança pública, voltada para a repressão do uso e tráfico de entorpecentes ilícitos, seja substituída por uma política pública de saúde, acompanhada de uma política de segurança pública menos repressiva e, por isso, menos onerosa. Csete10 afirma que: Serviços de saúde para pessoas que usam drogas são importantes em vários níveis. Além dos benefícios clínicos para o indivíduo e dos benefícios para a comunidade de reduzir os malefícios relacionados à droga, como HIV e crimes relacionados às drogas, eles representam uma alternativa à prisão e detenção por alguns crimes e, são, portanto, um começo para o desenvolvimento de políticas de drogas menos repressivas. Apesar de significativa evidência de que os serviços de saúde relacionados à droga são um ótimo investimento para a sociedade, eles continuam lamentavelmente subfinanciados e indisponíveis. Portanto, o que se sugere é uma importante mudança de foco, de algo que já se provou ineficiente (repressão contínua, com externalidades negativas onerosas, tanto econômica, quanto socialmente) para algo que já se provou valoroso para a sociedade (política pública/privada de saúde), que gera externalidades positivas significativas (ressocialização de indivíduos, redução da população carcerária por crimes não violentos relacionados à droga e redução da violência relacionada à guerra por território de tráfico de drogas, para citar algumas). Isso, claro, além da tributação sobre os produtos que se tornaram legalizados.

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Considerações finais “Apesar da ampla ação dos esforços norte-americanos [em coibir a produção e uso das drogas] – e várias outras tentativas em outras nações –, nenhum presidente, ou “czar” da droga, declarou vitória contra ela, nem mesmo a vitória está em vista” (Becker, Murphy e Grossman) 8. Com isso, mas não só por isso, conclui-se que declarar guerra às drogas a partir da legalização do consumo, atrelada a uma política tributária sobre esse produto, pode ser mais efetivo do que continuar proibindo seu uso. Afinal, nem mesmo o preço global das drogas ilícitas se elevou, pelo contrário, os valores caíram substancialmente ao longo dos anosf . Dessa forma, acredita-se que o impacto orçamentário, e inclusive social, da guerra contra as drogas é deletério. As experiências apresentadas, tanto em um país desenvolvido (EUA), quanto em países subdesenvolvidos (Brasil e México), trazem à luz a ineficiência da guerra contra as drogas em reduzir o consumo e a violência. Adicionalmente, também se mostrou ineficaz em aumentar o preço do produto ilegal a patamares que tornassem a indústria da droga pouco atrativa para o crime organizado. A fragmentação vista nos cartéis mexicanos, quando seus líderes são presos ou mortos, pode ser vista em escala global. Quando um grande cartel em um determinado país é “fechado”, a partir da aplicação de leis e medidas rígidas contra as drogas, um cartel, em outro país, emergirá para tomar posse do território que ficou “sem dono”. Portanto, boa parte dos estudos econômicos acadêmicos sobre a indústria dos produtos ilegais recomenda o fim da guerra contra as drogas. Seriam criados tributos sobre os produtos recém-legalizados e substituir-se-ia no orçamento a guerra contra as drogas, hoje uma política de segurança pública, para gastos com políticas de saúde, para o tratamento do viciado em drogas. Contudo, não há consenso quanto à abrangência da liberação/descriminalização. Referências 1. Becker, Gary S.; Murphy, Kevin M. (1988). A Theory of Rational Addiction. Journal of Political Economy, vol. 96, nº 4. 2. Benson, Bruce L. (2008). The War on Drugs: A public bad. Paper presented for a Research Symposium on Bad Public Goods, sponsored by Northwestern University’s Searle Center on Law, Regulation, and Economic Growth. November. 3. Hampshire, (1993). The Social and Economic Feasibility of Sustaining the War on Drugs. In: Charting the Course: Florida Criminal Justice Executive Institute Senior Leadership Program Charter Class. U.S. Department of Justice, National Institute of Justice. 4. Cleveland, Mary M. (2005). Economics of Illegal Drug Markets: What happens if we downsize the drug war? IN: Drugs and Society public policy, Jefferson M. Fish/ Rowman & Littlefield Publishers, Inc. 2005. 5. Zaluar, Alba. (2007). Democratização inacabada: fracasso da segurança pública. Estudos Avançados, 21 (61). 6. Justos dos Santos, Marcelo; Kassouf, Ana Lúcia. (2007). Uma Investigação Econômica da Influência do Mercado de Drogas Ilícitas sobre a Criminalidade Brasileira. f

Para os dados exatos nos preços das drogas, ver Felbab-Brown (2014).

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Revista Economia, Maio/Agosto. 7. Robles, Gustavo; Calderón, Gabriela; Magaloni, Beatriz. (2013). The Economic Consequences of Drug Trafficking Violence in Mexico. Documento de trabajo del BID #IDB-WP-426. Novembro. 8. Becker, Gary S.; Murphy, Kevin M.; Grossman, Michael. (2004). The economic Theory of Illegal Goods: the case of drugs. National Bureau of Economic Research. Working paper 10976. 9. Felbab-Brown, Vanda. (2014). Improving Supply-Side Policies: Smarter Eradication, Interdiction and Alternative Livelihoods – and the possibility of licensing. In: Report of the LSE Expert Group on the Economics of Drug Policy. (2014). Ending the Drug Wars. 2014. 10. Csete, Joanne. (2014). Costs and Benefits of Drug-Related Health Services. In: Report of the LSE Expert Group on the Economics of Drug Policy. (2014). Ending the Drug Wars. 2014.

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Drogas, vulnerabilidades e relacionamentos contemporâneos

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Hugo Monteiro Ferreira José Aniervson Souza dos Santos Ei, menino branco, o que é que você faz aqui Subindo o morro pra tentar se divertir Mas já disse que não tem E você ainda quer mais Por que você não me deixa em paz? (Legião Urbana).

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Introdução Este texto traz reflexões sobre o tema drogas, vulnerabilidade e relacionamentos contemporâneos. Amparado numa reflexão que se fundamenta em aportes filosóficos, sociológicos, antropológicos e pedagógicos, os autores propõem que a instituição do significado das drogas tenha relação com a sustentação paradigmática construída social e historicamente. Ao mesmo tempo, propõem que a vulnerabilidade humana está indiretamente relacionada às relações afetivas engendradas entre os humanos na teia das convivências individuais e coletivas. As instituições de significados e as drogas: algumas reflexões A instituição dos sentidos e os modelos paradigmáticos Conforme explica Doll Jr.1, a sociedade ocidental pode ser subdivida em três grandes modelos paradigmáticos, a saber: Tabela 1: Os modelos paradigmáticos Pré-Moderno

Moderno

Pós-Modernoo

Este paradigma teria ocorrência

Este paradigma teria ocorrência

Este paradigma teria ocorrência

cronológica de V a I a.C. a I a XV d.C.

cronológica de XVI a XIX d.C.

cronológica de XX aos dias hodiernos.

Adaptado de Doll JR., W. E (1997, p. 27).

Para cada modelo paradigmático, ainda segundo o teórico citado, a instituição de sentido ocorre fundamentada nas ideias que sustentam o dado modelo. Dessa maneira, é importante que sejam feitos breves comentários sobre cada um desses modelos nominados, com vistas ao melhor esclarecimento do leitor sobre o que ora é argumentado neste tópico. Modelo Pré-moderno Inicia-se pelo chamado modelo pré-moderno. O paradigma pré-moderno, segundo Doll Jr.1, tem sua emergência circunscrita geograficamente na Grécia e cronologicamente por volta do século I a.C. A principal característica desse paradigma é a tentativa de explicação e compreensão da realidade por meio da razão, visando a um estatuto social individual e coletivo fundamentado na harmonia e no equilíbrio. A razão, segundo explica Will Durand2, foi usada pela filosofia grega como sendo uma faculdade humana capaz de solucionar problemas de compreensão e explicação da realidade. O chamado logos grego inaugura uma era no Ocidente, que entende a Matemática como a disciplina perfeita para materializar, em linguagem de números, aquilo que não se consegue alcançar nem com os sentimentos, nem com os pensamentos nem com as palavras. A Matemática e sua suposta exatidão foram a base que concedeu ao logos grego sua condição de senhor das compreensões e explicações, evitando hermenêuticas místicas e míticas para o cotidiano das vidas humanas. Como bem explica Durand2, os gregos ten-

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taram evitar exageros e extravagâncias, desvios e inexatidões; quiseram sobremaneira a harmonia e o equilíbrio. A Matemática lhes deu uma impressão de que a harmonia e o equilíbrio não estavam no interior do ser humano (endógeno), porém no exterior (exógeno). Em outras palavras, a existência da harmonia e do equilíbrio estava em fatores externos ao pensamento e ao sentimento das pessoas. Não havia relação entre o sentir e o pensar e a verdade que existia para além da condição humana. O modelo pré-moderno, como se tentou explicar antes, baseia-se na ideia de que existe uma realidade equilibrada e harmônica e que a finalidade da vida individual e coletiva das pessoas é alcançar essa realidade e tentar internalizá-la tanto em seus pensamentos quanto em seus sentimentos, desdobrando-se, portanto, em suas ações e em seus procedimentos. Figura 3: Modelo pré-moderno Pré-moderno

Equilíbrio

Harmonia

Matemática

Geometria

Exógeno

Adaptado de Doll JR., W. E (1997, p. 27).

A Figura 3 representa de maneira sucinta o paradigma pré-moderno e sua estrutura. A ideia de harmonia e equilíbrio defendida pelos gregos desdobrou-se durante a Idade Média e, segundo Doll Jr.1, pode ser encontrada nas teorias de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Segundo Russell3, Santo Agostinho (354-430) e São Tomaz de Aquino (1225-1274), cada um a seu modo, retomaram as propostas de Sócrates (469-399), Platão (448-428) e Aristóteles (384-322)a no que diz respeito ao equilíbrio e à harmonia como sendo elementos externos ao desejo e à vontade humana, mas como sendo elementos fundamentais para o desenvolvimento sadio de uma sociedadeb. Modelo moderno No modelo moderno, datado, como visto, de XVI a XIX, a ideia de equilíbrio e harmonia é, de certa forma, substituída pela ideia de avanço e crescimento. O avanço e o crescimento são a base do pensamento do paradigma moderno, entretanto, a Matemática ainda é considerada a linguagem adequada para tal intento e a razão é, mais uma vez, a faculdade humana legítima. Segundo Boaventura de Souza Santos4, o paradigma Moderno tem na razão seu chão e nas ciências racionalistas suas pilastras e seus edifícios, ou seja, a razão, fundamentada na a Importante que se registre a cronologia do período. No caso dos três filósofos gregos, o tempo é a.C., ou seja, antes de Cristo. b De certo modo, já na Modernidade, por volta do segundo quartel do século XIX, o sociólogo francês Emile Durkheim retoma essa discussão quando apresenta sua teoria sobre o funcionalismo social.

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Matemática é considerada pelos modernos - empiristas, iluministas, positivistas, marxistas e mesmo freudianas – como faculdade psíquica fulcral à descoberta da verdade. É sobre o chão dessa lógica que emerge a chamada ciência moderna ou aquela que se fundamenta na recusa ao subjetivo e evidencia a importância do objetivo. A natureza da modernidade é racionalista e ultranacionalista, logo, é intensa e densamente objetivista. Conforme Edgar Morinc,5, a ciência moderna compreendeu e explicou a vida sob a regência da racionalidade matemática. Se o avanço e o crescimento são as matrizes geradoras do paradigma moderno, podese dizer que a obsessão desse modelo de sociedade foi a dominação do conhecimento e a sua proliferação de modo ostensivo. O primeiro e mais importante objetivo dessa forma de compreender e explicar a vida foi, sem dúvida, a proliferação do conhecimento embasado em estudos matemáticos, físicos, químicos e biológicos. Na lógica do paradigma moderno, a ciência – ou o conhecimento científico – deve ser a régua que mensurará todos os tipos de saberes realmente valiosos para o desenvolvimento de uma pessoa tanto no âmbito pessoal quanto no âmbito social. A ciência funcionará como uma espécie de norte que tratará de conduzir o ser humano ora para o avanço ora para o crescimento. Figura 4: Modelo moderno Moderno

Ciência

Razão

Difundir

Conhecer

Proliferar

A instituição de significados numa perspectiva da modernidade tem relação com os interesses que fundamentam tal modelo paradigmático. Nesse sentido, quando se pensa as redes de significações forjadas na e pela modernidade, pensa-se em compreensões e explicações racionais e matemáticas para a vida. Sob a regência de algumas correntes do paradigma moderno, a descoberta da verdade, embora não seja mais oriunda de uma ação meta-humana, ainda é uma descoberta e não uma construção. Isto é, ainda é uma ação exógena à vontade do ser humano, forjada em alguma motivação superior ao desejo do homem ou da mulher. Há expressivas diferenças entre os dois paradigmas até então tratados, mas há também similitudes as quais não podem ser desconsideradas, ainda que numa análise mais simples, como a que ora se faz aqui. A modernidade quis o avanço e o crescimento, mas não conseguiu se libertar de muitos ideais medievais. Edgar Morin é antropólogo, sociólogo e filósofo. Pesquisador emérito do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), formado em Direito, História e Geografia, realizou estudos em Filosofia, Sociologia e Epistemologia. Autor de mais de 30 livros, entre eles: O método (seis volumes), Introdução ao pensamento complexo, Ciência com consciência e Os sete saberes necessários para a educação do futuro. Durante a Segunda Guerra Mundial, participou da Resistência Francesa. É considerado um dos principais pensadores contemporâneos e um dos principais teóricos da complexidade.

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Modelo pós-moderno No modelo pós-modernod , há, de certa sorte, mudanças em relação aos modelos anteriormente apresentados. Numa perspectiva pós-moderna, existem questões que trazem à tona a seguinte pergunta: a verdade tem sua existência deslocada da vontade humana ou a verdade tem sua existência fundamentada na vontade do ser humano? Tal pergunta, se respondida de forma positiva em relação à instituição da verdade como resultado da mente humana, exibirá uma nova noção de verdade, de realidade e de real. A verdade não será mais exógena ao ser humano, mas endógena: advém das interações individuais e coletivas, geradoras de conhecimentos. No modelo pós-moderno, há uma ruptura com a razão como sendo a única faculdade humana capaz de compreender e explicar a verdade, visto que os elementos emocionais passam a ser entendidos como possíveis elementos interpretantes da verdade, da realidade, do real. A Matemática não é mais a única disciplina sustentadora do conhecimento. Figura 5: Modelo pós-moderno Pós-moderno

Verdades

Saberes

Razão/Emoção

Emoção/Razão

Endógeno

A Figura 5 tenta representar o esquema estruturante do paradigma pós-moderno e de sua consequência para a compreensão e a explicação do real, tanto em termos individuais quanto em termos coletivos. A instituição de significados nessa proposta paradigmática tem a incerteza como uma das suas premissas, logo, a exatidão almejada pela modernidade não é exatamente o intento desse novo modelo. Sob a égide dessa nova lógica, emergem várias redes de significação no universo social da civilização ocidental e oriental. A ideia de local e global, nacional e transnacional ganha novos sentidos e a compreensão sobre o que é a vida e todos os seus desdobramentos passa a ter sentido novo e renovado constantemente. De alguma maneira, a era da incerteza toma conta do pensamento e do sentimento dos seres humanos. A instituição da “droga” sob a ótica de um modelo pré-moderno Segundo o dicionário Michaellis6, a palavra droga tem variação conceitual. Ora poderá ser entendida como uma espécie de substância química, ora poderá ser entendida como algo ou alguma coisa de natureza nociva. No primeiro conceito, a palavra “droga” tem a ver com algo externo ao ser humano e no segundo como algo interno. A palavra droga, quando analisada sob a etimologia grega – pharmakon –, possui duplo sentido: remédio ou veneno. No entanto, a palavra droga, se analisada sob o termo holand A expressão pós-moderno nem sempre é acatada por determinadas filiações teóricas, entretanto, em razão do que ora se argumenta, parece pertinente seu uso, ainda que se tenha clareza de sua fragilidade em determinados aspectos epistêmicos e metodológicos.

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dês doog, tem a ver com a ideia de folha seca, de medicamento feito a partir de vegetais existentes na natureza. As drogas, em sentido mais amplo, se consideradas como entorpecentes, têm matrizes étnicas e culturais registradas em diversas cronotopias e em diversas fases da chamada civilização humana, tanto no Ocidente quanto no Oriente. Nesse sentido, quando se pensa na palavra droga, analisa-se o que se quer dizer e o que se está ouvindo alguém dizer. De acordo com a OMS7, droga é qualquer substância que, não sendo produzida pelo organismo, tem a propriedade de atuar sobre um ou mais de seus sistemas, produzindo alterações em seu funcionamento. Talvez o conceito tratado pela OMS tenha a ver com o significado pré-moderno de vida, uma vez que entende a droga como uma substância não produzida pelo organismo, logo, uma substância não viva. A expressão aqui usada “não viva” tem relação com o conceito trazido pelas teorias da complexidade8 que subdividem a realidade em dois grandes blocos: as coisas que são in vivo são aquelas que são produzidas dentro do organismo e como tal funcionam; e as coisas in vitro são aquelas produzidas fora do organismo e como tal existem. Seguindo essa lógica, a droga entendida como uma substância que não é produzida pelo organismo, porém com poderes de atuação sobre ele, poderá ser compreendida e explicada como algo exógeno ao ser humano, como algo que vem de fora para dentro, não é natural, é artificial, não é essencial e é estranha ao ser humano. Nessa lógica, a droga é uma substância in vitro ainda que não seja quimicamente produzida em laboratório. Com essa concepção de droga, a OMS, de certo modo, usa critérios de separatividade, estabelecendo uma espécie de distanciamento entre o que é do ser – aquilo que o organismo produz – e o que lhe é externo, aquilo que não é produzido pelo organismo. A lógica pré-moderna, como dito no tópico 1.1, entende que a harmonia e o equilíbrio são metas que deverão ser alcançadas pelos seres humanos, mas essas condições não existem in vivo, mas in vitro, se se recorrer aos termos da teoria da complexidade morraniana8. Isto é, a harmonia e o equilíbrio estão fora e precisam ser alcançados. A instituição da “droga” sob a ótica de um modelo moderno De verdade, parece acertado dizer que o conceito de drogas tratado pela OMS, para além do paradigma pré-moderno, mantém-se também no moderno, visto que, em ambos, a ideia de exterioridade é predominante. Nesse sentido, se o intento da modernidade são o avanço e o crescimento, o entendimento de droga como psicotrópico talvez tenha aí sentido. Drogas psicotrópicas podem ser entendidas como qualquer substância capaz de afetar os processos mentais (pensamento, memória e percepção). A palavra “psicotrópico” é composta de duas palavras: “psico” e “trópico”. “Psico” relaciona-se a psiquismo, tem origem na etimologia grega; e “trópico” diz respeito ao termo tropismo, que significa ter atração por. Desse modo, psicotrópico significa atração pelo psiquismo e drogas psicotrópicas são aquelas que atuam sobre o cérebro, alterando de alguma maneira o psiquismo. Todavia, essas alterações do psiquismo não são sempre no mesmo sentido e direção, posto que dependerão do tipo de droga psicotrópica ingerida e do contexto em que tal ingestão se deu. Se os grandes objetivos da modernidade foram a difusão e a proliferação do conhecimento científico, amparado nas ciências ditas exatas, oriundas da matemática pitagórica,

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da geometria euclidiana, da metafísica cartesiana, certamente a compreensão e a explicação que a modernidade possui sobre drogas relaciona-se àquilo que o dito saber científico diz sobre essas substâncias usadas pela humanidade desde sempre. Nesse sentido, as drogas modernas, aqui pedindo toda licença poética para o uso do temo “modernas”, possuem significados que tendem a estar mais fundamentados nas chamadas drogas lícitas ou drogas que são utilizadas com finalidades autorizadas pelas ciências, pelas pesquisas médicas, pelas orientações prescritas. As drogas modernas são, nesse sentido, in vitro, mas drogas legais, utilizadas de modo que o usuário não se sente inadequado no seu uso. No ponto de vista sociológico, a modernidade instaurou a utilização das drogas ditas lícitas e fez isso, na medida em que criou a industrialização dos remédios, fazendo distinção conceitual entre o que é remédio – usado para tratar doenças – e o que não é remédio, usado como forma de fuga da realidade, de desvio do equilíbrio, de entorpecimento adoecido. Sob a ótica da modernidade, saúde é diferente de doença e doença é o contrário de saúde. Combater uma doença é proteger a saúde. As drogas modernas foram criadas com o objetivo de combater as doenças, visto que uma sociedade doente nem avança nem cresce, pois morre. A droga na modernidade é autorizada pelas vias oficiais, mas é diferenciada, com vistas a não ser confundida com restritos entorpecentes. A instituição da “droga” sob a ótica de um modelo pós-moderno A instauração de um conceito de “droga” sob a regência de um paradigma cuja principal característica é a incerteza remete às reflexões sobre os fundamentos que tanto a pré-modernidade quanto a modernidade utilizaram na construção do conceito de drogas. Talvez a grande problemática de uma ótica pós-moderna sobre drogas não seja a instituição do conceito em si mesmo, mas a instituição das relações conceituais. Numa perspectiva pós-moderna, as drogas, de certo modo, deixam de ser a grande questão e o uso da droga se torna a temática relevante. Nesse sentido, o que é ou o que deixa de ser droga perde o espaço central na discussão e passa a ser fulcral a discussão de como os seres humanos se relacionam com as drogas e de que modo essa relação tem rebatimento na vida individual e coletiva de uma dada sociedade. Talvez essa seja a problemática que a pós-modernidade tende a enfrentar no campo da instituição das drogas. Se na pré-modernidade e na modernidade os debates em torno do tema versavam sobre a categorização das drogas, classificando-as e estabelecendo licitudes e ilicitudes, as ocorrências contemporâneas põem essa discussão em âmbito secundário e trazem para o centro do palco variáveis que menos têm a ver com conceitos e hierarquizações e mais têm a ver com a maneira como o ser humano decidiu fazer uso do remédio e do veneno. Eis uma questão que, vista de um ângulo meramente matemático, não consegue dar conta da complexidade do fenômeno. O Ministério da Saúde, por intermédio da Coordenação Nacional DST e AIDS, em 2011, lançou um documento cujo teor tratava sobre a política do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogase , a qual reconhece que o problema exige abordagem integral. O problema do uso das drogas e as possíveis motivações para esse uso não conseguem ser compreendidos e explicados, caso a abordagem utilizada esteja centrada numa linha de pensae

Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/pns_alcool_drogas.pdf.

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mento pré-moderna e moderna, visto que essas abordagens paradigmáticas não contemplam necessariamente a utilização das drogas, mas a sua condição se in vivo ou se in vitro. A abordagem integral propõe que o problema do uso das drogas seja tratado não como um fenômeno exógeno ao organismo humano, mas endógeno, uma vez que entende que a separação dentro e fora do organismo pode servir para conceituar as drogas, mas certamente não serve de modo ampliado para entender e explicar como se dão as ocorrências de uso, no tocante a motivações. Em outras palavras, as razões que levam alguém a usar drogas, sejam lícitas ou ilícitas, é uma problemática que exige por parte de quem lida com usuários de drogas capacidade de tentar entender o ser humano como um ser vivo composto de inúmeras dimensões e, portanto, necessário de ser compreendido e explicado – se é que isso é viável – também a partir de uma visão transdisciplinar. A vulnerabilidade e as relações contemporâneas A vulnerabilidade de todas as pessoas Entende-se por vulnerabilidade toda situação, toda circunstância, toda posição que deflagra fragilidade, seja de que natureza essa fragilidade esteja constituída. Ser vulnerável é não ser protegido. Nesse ponto de vista, existem muitos seres vivos vulneráveis em nossos ecossistemas, em nossas biodiversidades. No entanto, é sobre a vulnerabilidade que acomete seres humanos que se irá tratar. Os seres humanos vulneráveis são, de modo geral, aqueles que não possuem um sistema de garantia de direitos que possa ofertar-lhes condição de seres fortalecidos, ou seja, aqueles que são seres desprotegidos, aqueles que são conhecidos como minorias. De modo individual e coletivo, os seres humanos classificados como minorias são vulneráveis, porque têm e/ou podem ter seus direitos aviltados. Na história da formação do pensamento no Ocidente, a infância sempre esteve entre minorias, visto que seus direitos foram, em muitas situações, violados. Os povos negros e os povos indígenas, as mulheres, os homossexuais, os idosos, as travestis, os economicamente pobres e os usuários de drogas talvez sejam efetivamente sujeitos que vivem vulnerabilidades ou transitórias ou prolongadas, em alguns casos, efetivas, porque permanentes. Quando se é vulnerável, também se pode dizer que se está vulnerável. Ser ou estar vulnerável, ao que parece, não é uma questão meramente individual, como sugeriu a Sociologia de Emile Durkheimf , mas uma questão que envolve circunstâncias também coletivas. Logo, não é exclusivamente uma opção, mas, de modo claro, uma condição. Em seu livro A condição humana9, a filósofa judia teuto-americana Hanna Arendt explica que a condição humana é uma situação não necessariamente de natureza restritamente biológica, porém uma conjuntura de elementos que compõem uma dada situação que envolve a vida ativa do ser humano, ou seja, sua condição como sujeito social. A vulnerabilidade das pessoas – de todas elas – tem a ver com a condição humana, ou seja, com a vida ativa em sociedade. Diz-se que se é vulnerável quando não se é seguro nem assegurado. As minorias são vulneráveis sempre que sua condição humana, a sua vida ativa, é posta em xeque e levado à situação de risco, de fragilidade, de insegurança. David Émile Durkheim (Épinal, 15 de abril de 1858 — Paris, 15 de novembro de 1917) foi sociólogo, psicólogo social e filósofo francês. Formalmente criou a disciplina acadêmica e, com Karl Marx e Max Weber, é comumente citado como o principal arquiteto da ciência social moderna e pai da Sociologia.

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Mesmo que se faça distinção conceitual, em termos jurídicos10, entre minorias e grupos de pessoas vulneráveis, uma análise simples, ainda que superficial, mostrará que há uma relação sinonímica entre essas suas condições humanas e entre essas duas situações sociais. Os vulneráveis estão fragilizados em relação aos seus direitos e são ameaçados no sistema de garantia dos seus direitos individuais e coletivos. As minorias, aqui incluídos os grupos vulneráveis, também têm o sistema de garantia de direitos ameaçado constantemente, logo, se se nominar por ameaçados todos que têm inseguranças na garantia de seus direitos, vulneráveis e minorias serão uma só coisa, embora, em determinados aspectos, sejam, de fato, diferentes. Mas nos aspectos que são diferentes, ainda possuem similitudes. Nem sempre as pessoas vulneráveis têm consciência de que são ou estão em condição de vulnerabilidade. Segundo a OMS, o século XXI prima-se por muitas doenças psicológicas que emergem de modo expressivo. De algum modo, a condição de doente psicológico pode ser entendida como uma condição humana vulnerável. A vulnerabilidade, nesse sentido, não se restringe nem a um grupo nem a uma classe. No entanto, para os objetivos com os quais se lida neste texto, o conceito de vulnerabilidade está menos relacionado ao que foi registrado na segunda parte do parágrafo anterior e mais relacionado ao que se vem afirmando ao longo do tópico. Isto é, embora existam diferenças conceituais entre minorias e grupos vulneráveis, de verdade, toda minoria, em razão de sua condição humana, pode ser vulnerável numa sociedade que assim a trate. A vulnerabilidade e as relações humanas Seres humanos, se analisados sob a ótica pré-moderna, nada mais são do que duas coisas: carne e espírito. À carne cabe tudo que disser respeito ao biológico e ao espírito, tudo que disser respeito à moralidade. A condição humana, portanto, terá duas bases fundantes: • A biológica; e • a moral. Ambas não dependentes uma da outra, sem conexão e com pouco diálogo entre suas nuanças. De alguma maneira, as relações humanas, se amparadas numa perspectiva paradigmática pré-moderna-moderna, ignorará a importância das interações e focalizará seus esforços na relevância das dicotomias. Relações humanas separatistas são hierárquicas, dispostas à construção de identidades inspiradas em padrões identitários previamente definidos. Quando se trata de identidades definidas previamente, está-se aludindo a modelos biológicos e morais os quais deverão servir de espelho para a instituição de relações individuais e coletivas. As relações humanas, fundamentadas em paradigmas pré-modernos, tendem a ser individualistas, pois buscam menos a conexão e mais a desconexão entre as bases fundantes da vida. Relações familiares pré-modernas, por exemplo, são provavelmente mais relacionadas à ideia de superioridade de uns em detrimento da inferioridade de outros. O sentimento machista ou o seu duplo - o feminista - tem amparo nessa ordem de superioridade e inferioridade. O machismo, como se sabe, gera uma série de problemas nas famílias humanas. Dados do Instituto Patrícia Galvãog , organização não governamental brasileira que investiga casos de violência contra a mulher, afirma que, a cada oito segundos, no Brasil, em g

Dados para acesso ao endereço eletrônico do Instituto Patrícia Galvão: http://agenciapatriciagalvao.org.br/

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razão do machismo, uma mulher é espancada dentro de sua casa, na frente de seus filhos. O espancamento é feito pelo companheiro dessa mulher e geralmente pai dos filhos que presenciam a agressão. Ainda segundo dados do Instituto, a violência infradoméstica é um problema social que, portanto, não se restringe a uma questão privada. A violência contra a mulher, fundamentada numa sociedade patriarcal e machista, afeta diretamente as relações humanas forjadas dentro das casas. De algum modo, a vulnerabilidade de uma família violentada é ostensiva. Entende-se que as pessoas que estão em estado de vulnerabilidade ostensiva, antes mesmo dos problemas sociais que acometem grupos vulneráveis e/ou minorias, são as que experimentam sérios problemas emocionais oriundos da ausência de experiências amorosas. As vulnerabilidades ostensivas têm a ver com as poucas experiências amorosas dentro das casas, no seio das famílias.

As relações humanas e as experiências amorosas: o dogma da modernidade É evidente que as experiências amorosas a que se refere no tópico anterior e que se pretende discorrer neste tópico propõem reflexões nem sempre acolhidas pelo chamado discurso científico. Nesse sentido, entende-se importante que se faça um esclarecimento: o discurso científico sobre o qual se trata não recusa o amor como uma de suas mais relevantes categorias. No entanto, se se considerar experiências humanas a partir da ótica moderna, tende-se a rejeitar as experiências amorosas como categorias científicas e a considerá-las situações que se relacionam a um nível profundo de subjetividade. Logo, não favorável a análises mais quantitativas, estáticas, matemáticas. Talvez esse tenha sido o modelo de relação que predominou numa perspectiva científica. O que se afirma é que, para uma perspectiva paradigmática fundamentada numa lógica objetivista, experiências subjetivas não são senão obstáculos à descoberta sadia da verdade. A descoberta sadia da verdade, como prevê René Descartesh (1596-1650), é aquela que não se afeta pela miopia dos sentidos subjetivos, que não se imiscui em problemas de ordem simbólica. Sob a ótica do pensamento moderno, diga-se assim, as relações humanas estão menos focalizadas nos afetos e mais focalizadas nas racionalidades. Experiências amorosas, considerando que existam - e existem -, tendem a ser pensadas ainda sob ideias separatistas e dicotômicas. O problema de relações humanas sob essa ótica é ainda a ideia de hierarquia de gênero, de geração, de cultura, de etnia e de nacionalidade. É importante fazer uma distinção entre o que se chama de “modernidade” e os esRené Descartes (La Haye en Touraine, 31 de março de 1596 – Estocolmo, 11 de fevereiro de 1650) foi filósofo, físico e matemático francês. Durante a Idade Moderna, também era conhecido por seu nome latino Renatus Cartesius. Notabilizou-se, sobretudo, por seu trabalho revolucionário na filosofia e na ciência, mas também obteve reconhecimento matemático por sugerir a fusão da álgebra com a geometria - fato que gerou a geometria analítica e o sistema de coordenadas que hoje leva o seu nome. Por fim, foi também uma das figuras-chave na Revolução Científica. Descartes, por vezes chamado de “o fundador da filosofia moderna” e o “pai da matemática moderna”, é considerado um dos pensadores mais importantes e influentes da História do Pensamento Ocidental. Inspirou contemporâneos e várias gerações de filósofos posteriores; boa parte da filosofia escrita a partir de então foi uma reação às suas obras ou a autores supostamente influenciados por ele. Muitos especialistas afirmam que, a partir de Descartes, inaugurou-se o racionalismo da Idade Moderna. Décadas mais tarde, surgiria nas Ilhas Britânicas um movimento filosófico que, de certa forma, seria o seu oposto - o empirismo, com John Locke e David Hume.

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tudos científicos que ocorreram a partir do século XVI no Ocidente. Os estudos ditos científicos estão fundamentados nas teorias filosóficas de Descartes e nas pesquisas mecânicas e físicas de Newton, entretanto, o paradigma social e histórico que se forja, tendo tais pensamentos como base, é uma espécie de dogma. O dogma da modernidade não são necessariamente os estudos dos grandes pensadores modernos, tampouco suas relevantes pesquisas para o avanço e o crescimento da vida na Terra. O dogma da modernidade é uma espécie de ideia oriunda dos princípios e pressupostos modernos e que gera toda sorte de distorção do que seja avanço e do que seja progresso. De verdade, por razões que o espaço e o tempo não permitem analisar aqui, o dogma da modernidade tem adesão intensa dos seres humanos. E é nele que se criam as ideias reacionárias e conservadoras que mantêm as experiências amorosas distantes dos seios das relações entre as pessoas, visto que para esse dogma experiências amorosas são de pouca valia na condução da vida em sociedade. O dogma da modernidade não necessariamente é moderno. Ele, de alguma maneira, se encontra na pré-modernidade e também poderá ser analisado na pós-modernidade. É um jeito, um olhar, uma atitude que tem na razão exacerbada a sua estrada de condução e relega às emoções humanas um lugar secundário na vida e nos desdobramentos que advêm da vida individual e coletiva. Quando se trata, pois, de relações amorosas como sendo essenciais à estruturação mental de uma pessoa, trata-se de ocorrências que se dão entre as pessoas, dentro de suas casas, nas instituições de ensino, nas organizações trabalhistas e nas convivências diárias em diversas situações sociais. As experiências amorosas podem ser sinônimos de questões como acolhimento, escuta, cuidado, atenção, zelo, empatia. As relações humanas e as experiências amorosas: o dialógico e o monológico, o sujeito real e o sujeito abstrato Qualquer relação humana, para ser saudável, precisa acontecer de modo dialógico. O que é dialógico contempla o direito do outro de dizer o que pensa e sente e implica o direito do outro de aderir à escuta do que ouve e do que sente sobre o que ouve. As relações humanas saudáveis são confortáveis para quem as experimenta. Qualquer noção de desconforto pode ser sinal de que algo precisa ser dito. Os interditos de uma relação - nem sempre indicados na linguagem verbal - podem estar ocultos em outras manifestações da mente e do corpo. Nesse sentido, a noção de separação entre mente e corpo, presente nos modelos paradigmáticos pré-moderno e moderno, são desconstruídos numa perspectiva de relação pós-moderna, para a qual o sujeito de direito prevalece sobre a ideia preconcebida de sujeito. A ideia preconcebida de sujeito tem fundamento nas identidades que são forjadas previamente antes da experiência real. A ideia preconcebida de sujeito se choca com o sujeito real que aparece no cotidiano das relações. Na perspectiva monológica de relação humana, não existe espaço para diferenças e contestações. Eis um problema que necessita ser resolvido. As relações humanas amorosas tendem a ocorrer quando existe um processo de empatia, ou seja, uma pessoa se põe no lugar da outra e nesse processo evitam-se a sobreposição de ideias e a hierarquização de opiniões. Numa perspectiva paradigmática dialógica, as relações tendem a ser ampliadas e a sinceridade passa a ser um chão no 86


qual se pisa com mais aceite. Relações amorosas não são idealizadas nem forjadas nas experiências abstratas, mas se dão no concreto, no real, na lucidez mais ampliada sobre o que ocorre entre as pessoas que vivenciam as situações. O sujeito abstrato que criamos em nossa mente e que de fato nunca se materializa na realidade é perfeito ou é imperfeito, mas efetivamente nunca é alguém que pode cometer falhas e cometer acertos, dizer bobagens e ao mesmo tempo alcançar níveis elevadíssimos de ações. O sujeito abstrato ou é ruim ou é bom, ele é maniqueísta, porque nunca é visto como alguém em construção identitária. Não se conseguiu dialogar com a abstração que se faz do sujeito e, por isso, não se constrói, com esse sujeito, uma relação real e válida. De modo geral, é uma relação projetada, idealizada, pensada por um, porém não entendida pelo outro. Quase sempre, essas relações abstratas são fracassadas e simplesmente machucam quem nelas existe. Os machucões, ao contrário de nossas idealizações, são reais, deixam marcas e provocam sérios problemas. As drogas e as rejeições: não me vejo no espelho Não se aguenta muita pressão Num livro chamado Emílio ou quando se nasce com um vulcão ao lado11, apresenta-se a história de um menino que, em razão da rejeição, decide viver com um vulcão escondido dentro dele. A experiência de Emílio é dolorida, visto que o vulcão em si é registro de sofrimento e de agonia, porém o medo de exposição também o faz sofrer. De alguma maneira, a condição ficcional de Emílio é a situação real de muitas pessoas que, em razão de poucas experiências amorosas no cotidiano de suas vidas, em razão de uma tentativa de fugir ao real, de encontrar refúgio, acolhimento e entorpecimento, decide, sem ter controle sobre seu organismo, viver uma vida ao lado das drogas e depois decide escondê-las dentro de si. São pessoas vulneráveis, menos porque, em muitos casos, tenham problemas econômicos e financeiros e, mais porque, em muitas situações, suas trajetórias de vida são traçadas sob o silêncio e a inadequação em relação aos sujeitos abstratos com os quais teriam de ter identificação prévia, porém não têm. As drogas, nesse caso, são um jeito de dizer: Não aguento pressão. Não aguentar pressão é, de todo modo, não se adequar aos modelos previamente estabelecidos. Não se encontrar na imagem posta no espelho. Não se sentir bem com aquilo que se lhe dão como referência. As drogas, para o bem ou para o mal, veneno ou remédio, surgem como espécie de lenitivo a quem não suporta a dor dilacerante de ter de ser o que não se preparou para tal. É sobre essa condição de usuário de droga que se trata aqui. É evidente que existem outras motivações para que um ser humano opte pela experiência com as drogas, porém, acredita-se que as experiências da não identificação com o espectro que lhe impõem no individual ou no coletivo são merecedoras de destaque. Viver sob regência de modelos é um desafio, nem sempre superável. Na contemporaneidade, como já mencionado, entender se existem drogas lícitas ou ilícitas, temática deveras relevante, parece não ser o tom da questão. O tom é outro, é o 87


que se faz quando se está diante de uma pessoa que, por marcas emocionais nem sempre ditas, busca fugir de si no entorpecimento e depois não controla mais o momento de se entorpecer. A problemática é não saber controlar o momento e o local aonde se quer ir na fuga. Eis uma questão difícil para quem não suporta as pressões que a vida lhe confere nos momentos em que se fazem exigências individuais e sociais, pessoais e coletivas no momento em que não se abriram espaços para diálogos sinceros, verdadeiros, legítimos, nos quais os sujeitos possam dizer suas coragens e seus medos. Talvez as drogas entrem nas vidas de pessoas que não encontram na relação com o outro o barco no rio que o leve à outra margem. As vozes silenciadas nas relações humanas não são excluídas, mas, como bem explicou Jean Piaget12, são introjetadas e passam a fazer parte de uma espécie de voz interior. A voz interior, como analisa Freud (1856-1939)i , pode ser fantasmagórica. “Essa voz interior”, explicou Raulj , um dos usuários de drogas ilícitas com o qual conversamos em 2011/2012, época em que foram realizadas 100 escutas com adolescentes evadidos escolares e moradores de rua, é muito forte na minha cabeça e “ela” sempre me diz uma coisa que não consigo entender: Raul, você é forte. Mas sou fraco. Sou fraco igual caldo de cana com água. Raul, assim como quase todos os sujeitos que responderam várias perguntas, não se identificava com a imagem que lhe diziam ser ele: um sujeito forte, capaz de vencer desafios, de superar obstáculos e de cumprir sua trajetória na escola e na vida. Raul, caso pudesse ter sido frágil, inofensivo, não estudioso, pouco corajoso, pudesse também ter sido mais genuíno. O que se chama de “genuíno” é uma condição de sinceridade que relações forjadas em idealizações não alcançam. Os adolescentes evadidos da escola também eram “fugitivos” de relações familiares bastante difíceis, nas quais a violência havia sido uma linha de conduta para os membros da família. A violência experimentada dentro de casa refletia-se na necessidade de refúgio fora de casa. Na construção de uma relação saudável Os adolescentes com os quais conversamos ao longo de nossa experiência de pesquisador levaram a acreditar que, embora não seja fácil nem simples, há possibilidades de reabilitação. A reabilitação, todavia, talvez seja a compreensão sobre a inadequação de sujeitos inadequados ao sistema de identificação proposto. Ou seja, não se deve querer que uma pessoa - usuária na experiência das drogas - se torne um ser sociável nos moldes previstos pela sociedade monológica. É imprescindível para quem está em processo de reabilitação que suas novas experiências não sejam a revisão daquilo que já experimentou com identificações projetadas, com projeções i Sigmund Schlomo Freud (Freiberg in Mähren, 6 de maio de 1856 — Londres, 23 de setembro de 1939), mais conhecido como Sigmund Freud, foi médico neurologista e criador da Psicanálise. Freud nasceu em uma família judaica, em Freiberg in Mähren, na época pertencente ao Império Austríaco. Atualmente a localidade é denominada Příbor, na República Tcheca. j Raul é um nome fictício para um dos 100 jovens que participaram de uma coleta de dados realizada em 2011/2012, com vistas à elaboração de material para a pesquisa “Os que não respondem - presente, Professora!”. Projeto acadêmico cujo objetivo geral era investigar, a partir de pesquisa teórica e empírica, as razões que levavam adolescentes à evasão escolar e ao mesmo tempo ao confinamento das ruas.

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não cumpridas. A reabilitação passa pela revisão do que é viver em sociedade para uma pessoa que não se sente feliz sendo cobrada de modo veemente. Em outras palavras, está-se dizendo que entre os adolescentes pesquisados, cerca de 90% estavam dispostos a não continuarem utilizando as drogas como recurso de fugas, mas, ao mesmo tempo, não queriam ter de olhar no espelho. Olhar no espelho dói, tio. Essa frase dita por Rebeca, uma das adolescentes escutadas, revela o grau de sofrimento que alguém sente por não se adequar ao modelo social que lhe é imposto. É urgente que se passe a compreender que nem todas as pessoas são fortes ou devem sê-lo; são ágeis ou devem sê-lo; são maravilhosas ou devem sê-lo. As pessoas são diferentes umas das outras, meu caro. Essa frase com a qual se encerrou o parágrafo nos foi dita por Demétrio, adolescente que tinha mania particular de ler livros de literatura numa biblioteca localizada no bairro onde já havia morado. Demétrio era dependente químico, porém reabilitado e que costumava, em razão de sua religião, ir tentar “salvar” vidas. Ele se “salvou”, porque se “identificou”. A identificação certamente não é a solução, talvez seja um equívoco terapêutico. Num processo de busca pela volta à escola, muitos adolescentes disseram que não queriam encontrar na sala de aula tudo o que eles viam antes. No entanto, eles viam o que os demais alunos viam, mas, para eles, aquilo visto não tinha o mesmo sentido. A construção do sentido de quem se machuca emocionalmente não é a mesma construção de quem não vivencia essa experiência de dor. Alcançar o retorno daqueles adolescentes à escola, embora não fosse esse o objetivo central desta investigação, só se daria se a escola, no lugar de querê-los enquadrados em identidades estabelecidas previamente, fosse capaz, antes de tudo, de ouvi-los. Ouvir uma pessoa em estado de reabilitação é algo que a escola - a família nem se fala - precisa saber fazer. A escuta, nesse caso, é sinônimo de empatia, de acolhimento, de compreensão e de respeito. O respeito implica a capacidade de entender que as pessoas possuem idiossincrasias específicas e não podem ser classificadas de modo padronizado. A padronização é um dos maiores obstáculos à reabilitação. Quando alguém não se identifica com a imagem que lhe é dada como espelho, a ação mais saudável que se tem a fazer é compreender que, não havendo identificação, não precisa haver retaliação e, por conseguinte, rejeição. A rejeição é uma maneira perversa de jogar dentro do poço quem não sabe andar com as próprias pernas por estradas desconhecidas. Na construção de uma relação saudável, é imperioso que não haja palavras de comando dadas por um e obedecidas por outro. A mente de alguém que busca acolhimento numa experiência de amor é frágil e precisa ser amada como ela é: frágil. Não se deve querer dicotomizar a fragilidade em oposição da fortaleza. Isso porque, numa relação saudável, o forte é fraco e o fraco é forte e a fragilidade é excelente e a fortaleza é excelente. Não se sabe o que é o que não é. A dialética necessária para a boa convivência entre todos também precisa ser exercitada na convivência com quem não se encontra na mesma sintonia - seja qual seja essa sintonia. Os adolescentes, das mais diversas formas, disseram o tempo todo: Aqui, 89


na rua, é bom. Melhor aqui. Na escola, tem obrigação. Em casa, tem briga. Na rua, local onde todos pensam existir o ruim, para os adolescentes ouvidos havia o bom. O bom a que eles se referiam estava indiretamente relacionado à possibilidade de não viver abstrações projetadas e identificações construídas. Aqueles adolescentes declaravam, por meio de seus interditos e - às vezes - de seus dizeres explícitos: não somos o que esperam que sejamos. Eis algo muito importante na instituição de sentido: a liberdade. É muito importante que nós, seres humanos, no lugar de termos medo, tenhamos liberdade. No entanto, a liberdade não é senão o direito da genuína verdade. A genuína verdade não é senão o direito a ser o que sentimos e o que pensamos. Assim mesmo: o que pensamos e o que sentimos. Não é preciso ir muito além disso. Eles inventam que a gente tem de ser médico, advogado, engenheiro, professor, artista, pianista, sei lá. Eu quero é ser só Raul. Saca, tio? Então, nós achamos que sacamos, Raul. No entanto, é uma longa jornada até que a sua fala, do jeito que ela é, ressoe por entre os muros dessa instituição que habilmente soubemos construir chamada sociedade humana. Referências 1. DOLL JR., W. E. Currículo: uma perspectiva pós-moderna. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. 2. DURAND, Will. A História da Filosofia. São Paulo, Editora Companhia Nacional, 1998. 3. RUSSELL, Bertrand. História do Pensamento Ocidental. São Paulo, Saraiva Editora, 2005. 4. SANTOS, B.S. Um discurso sobre as ciências. 7° Ed. São Paulo: Cortez, 2010. 5. MORIN, Edgar. A Cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2010. 6. MICHAELIS: moderno dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Companhia Melhoramentos, 2015. 7. OMS - Organização Mundial de Saúde. Site consultado em junho de 2015. http://portalsaude.saude.gov.br/. 8. MORIN, E. Os sete saberes necessários para a educação do futuro. 2a ed. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2000. 9. ARENDT, Hanna. A condição humana. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2012. 10. SÉGUIN, Elida. Minorias e grupos vulneráveis, uma abordagem jurídica. Rio de Janeiro, Forense, 2002. 11. FERREIRA, Hugo Monteiro. Emílio ou quando se nasce com um vulcão ao lado. Rio de Janeiro, Escrita Fina, 2013. 12. PIAGET, Jean. Desenvolvimento da inteligência na criança. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 2010.

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Sessão 2: Populações vulneráveis


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Vulnerabilidade clínica em pacientes com dependência química: quando a vulnerabilidade é o corpo Maila de Castro Lourenço das Neves Felipe José Nascimento Barreto Juliana Rodante Nádia de Souza Las Casas Nathália Didoné Poppi Paula Alves Pinheiro

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Introdução A prevalência de doenças clínicas não psiquiátricas é maior entre indivíduos com o diagnóstico de dependência química do que na população em geral. Nos pacientes dependentes químicos, as doenças clínicas podem ser resultantes, direta ou indiretamente, do uso recorrente de substâncias psicoativas ou mesmo se constituírem em comorbidades. O surgimento de uma doença adicional é capaz de alterar a sintomatologia preponderante, interferindo no diagnóstico, tratamento e prognóstico de ambas¹. Além disso, comorbidades psiquiátricas e déficits cognitivos também são mais comuns em pacientes que fazem uso de substâncias, que por sua vez constituem ainda grupo especialmente vulnerável a distúrbios nutricionais e metabólicos. Observou-se que, durante a prática clínica, muitos profissionais de saúde têm dificuldade em diagnosticar e manejar as comorbidades clínicas e psiquiátricas nos portadores de dependência química. Uma hipótese plausível para explicar essa dificuldade seria o fato da existência de algum grau de preconceito contra esses pacientes. Esse preconceito não é só fruto do estigma que circunda o “paciente psiquiátrico”, mas também de julgamentos morais arraigados socialmente de que se trata de pacientes “manipuladores” ou que, por terem escolhido tais “desfechos desfavoráveis de vida”, não “mereceriam” cuidado, mas sim a responsabilização pelos seus atos. Quando os fatores supracitados somam-se às dificuldades de adesão ao tratamento, de mudança e adoção de hábitos de vida saudáveis e com a ruptura dos laços sociais em um portador de dependência química, tem-se um cenário de pior prognóstico para as doenças clínicas comórbidas e, consequentemente, para o próprio indivíduo. Trata-se, então, de paciente com corpo vulnerável, possuidor de cicatrizes do estigma social que denota o preconceito por trás da dependência química. O presente capítulo tem por objetivo discutir as principais dificuldades do diagnóstico e manejo das comorbidades clínicas em pacientes portadores de dependência química, bem como levantar fatores que possam contribuir para que tal população se torne especialmente vulnerável a prognósticos desfavoráveis. Comorbidades clínicas e dependência química O uso de uma droga ou de um conjunto de drogas provoca danos diretos e indiretos, alguns destes de natureza crônica e irreversível, em múltiplos sistemas do organismo humano. O conhecimento e a precisa avaliação das consequências clínicas da dependência química têm muita importância na prática clínica. Álcool O álcool é fator causal de cerca de 60 doenças e contribui como cofator causal em outras duzentas. A OMS, em publicação de 2011², estimou que o uso do álcool é responsável por 2,5 milhões de mortes por ano em todo o mundo, ou seja, 4% das mortes no mundo em um ano. O estresse oxidativo decorrente do metabolismo do álcool leva à produção de alto nível intracelular de espécies reativas de oxigênio e de nitrogênio. Esses dois metabólitos estão fortemente associados à patogênese de uma série de complicações clínicas relacionadas ao álcool, entre elas a hepatopatia, a pancreatite, a miocardiopatia e as alterações

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hematológicas. A peroxidação de lipídios, formando ácidos graxos, também contribui para as lesões orgânicas advindas do metabolismo do álcool. O álcool também interfere no metabolismo de macromoléculas celulares, como os ácidos nucleicos, na cascata de sinalização intra e extracelular e na integridade de organelas celulares como mitocôndrias e ribossomos³. A injúria orgânica causada pelo uso crônico do álcool também está relacionada à deficiência nutricional, como déficit de vitaminas, em especial àquelas do complexo B, e de aminoácidos como metionina-colina4. Na Tabela 1, a seguir, estão listadas as principais complicações clínicas associadas ao uso abusivo de álcool e/ou sua dependência. Tabela 1: Complicações clínicas associadas ao uso abusivo e/ou dependência de álcool Sistema

Doenças Associadas

Digestivo

Esteatose hepática, hepatite alcoólica, cirrose hepática, carcinoma hepatocelular; pancreatite aguda ou crônica, adenocarcinoma pancreático, carcinoma epidermoide, esofagite de refluxo, câncer esofágico, gastrite erosiva, adenocarcinoma gástrico; diarreia crônica.

Cardiovascular

Miocardiopatia dilatada, arritmias cardíacas, hipertensão arterial, doença coronariana.

Endocrinometabólico

Hipoglicemia; diminuição de hormônios masculinos e femininos, acarretando disfunções sexuais, infertilidade e alterações no ciclo menstrual

Pulmonar

Pneumonia aspirativa

Neurológico

Demência, síndrome de Wernicke-Korsakoff, polineuropatia periférica motora e sensitiva, disfunção autonômica, degeneração cerebelar

Psiquiátrico 1

Depressão, ansiedade, síndrome psicótica secundária

Osteomuscular

Osteoporose

Pele

Pelagra, micoses

Miscelânea

Acidentes e traumatismos, Síndrome alcoólica fetal, ação imunossupressora - mais risco de infecções bacterianas (pneumonia, tuberculose) e virais (hepatites B e C, HIV)

1 - Transtornos mentais podem estar correlacionados com o alcoolismo e/ou serem causa de uso abusivo de álcool. (Adaptado de Campana AAM et al., 2011)5

Nicotina O impacto do tabagismo na saúde humana é largamente difundido e atualmente reconhecido como um problema de saúde pública6. Todas as formas de consumo do tabaco, produtoras ou não de fumaça, têm ação nociva à saúde, além de favorecer a instalação de dependência à nicotina. A fumaça do tabaco é uma mistura de gases e partículas, totalizando mais de 4.700 substâncias tóxicas, responsáveis por 55 doenças associadas ao consumo ativo do tabaco e outras doenças relacionadas à exposição passiva à fumaça ambiental do tabaco6. O risco e a gravidade dessas enfermidades estão diretamente relacionados à idade de início do tabagismo, duração e número de cigarros fumados diariamente. No mundo, a mortalidade anual relacionada ao tabaco compreende 6 milhões de pessoas, sendo 23 óbitos por hora e uma morte a cada 10 adultos, dos quais 70% ocorrem em países em desenvolvimento. No Brasil, apesar de ter havido redução na proporção de fumantes de 34,8% para 14,8% entre 1989 e 2011, na população com idade igual ou maior

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de 18 anos, 200 mil óbitos ao ano são associados ao tabagismo, sendo 3.000 de fumantes passivos6. O fumante inala uma mistura tóxica com cerca de 60 componentes cancerígenos7. Evidências revelam relação de nexo causal entre tabagismo e cânceres de pulmão, laringe, cavidade oral, faringe, esôfago, pâncreas, bexiga, rins, colo uterino e estômago e leucemia mieloide aguda8. A exposição à fumaça do tabaco pode danificar o endotélio vascular, levando a mais vulnerabilidade a eventos tromboembólicos. A mortalidade por doença isquêmica coronariana aumenta em razão direta com o aumento do número de cigarros fumados por dia9. Há comprovação de associação entre a exposição à fumaça ambiental do tabaco e o risco de acidente vascular encefálico10. As substâncias químicas produzidas pela queima do tabaco podem causar inflamação no tecido bronquiolar, reduzindo a capacidade pulmonar para efetuar trocas gasosas, podendo levar, com o tempo, ao desenvolvimento de doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC)11. Outras doenças também associadas ao tabagismo são: tuberculose pulmonar, histiocitose, úlcera péptica, doença de Crohn, doenças hepáticas, diabetes mellitus, doença de Graves, hipertireoidismo, osteoporose e periodontite8,12. O tabaco também pode ser fator de risco para não adesão ou ainda agravante para o controle de uma doença de que o indivíduo fumante já seja portador11,13. Isso ocorre, por exemplo, entre a população portadora do HIV, na qual a prevalência do tabagismo é alta e representa fator de pior prognóstico14. Cocaína A cocaína é uma substância estimulante do sistema nervoso simpático; inibe a recaptação de catecolaminas, estimulando o fluxo simpático central e aumentando a sensibilidade das terminações nervosas adrenérgicas à noradrenalina. A cocaína pode provocar alterações estruturais irreversíveis no cérebro, coração, pulmão, fígado e rins, sendo vários os mecanismos envolvidos na gênese desses danos15. Alguns efeitos são produzidos pela hiperestimulação do sistema adrenérgico, mas a maioria dos efeitos tóxicos diretos é mediada pelo estresse oxidativo e pela disfunção mitocondrial. Existe uma infinidade de complicações cardiovasculares relacionadas ao uso de cocaína, incluindo infarto agudo do miocárdio (IAM), acidente vascular encefálico, arritmias, morte súbita, miocardite, cardiomiopatia, hipertensão arterial, ruptura da aorta e endocardite. No entanto, a dor torácica é o mais frequente problema médico associado ao uso de cocaína15. O consumo de cocaína aumenta 24 vezes o risco de infarto agudo miocárdio (IAM) durante os primeiros 60 minutos após o consumo de cocaína em doentes de baixo risco. O IAM é encontrado em 0,7 a 6% dos pacientes que chegam à urgência com dor no peito associada ao consumo de cocaína. Não se deve esquecer de que os IAMs secundários à cocaína se devem ao vasoespasmo oclusivo focal, à disfunção endotelial, à vasoconstrição difusa ou à trombose das artérias coronarianas. A aterosclerose coronariana prematura tem sido relatada em usuários de cocaína jovens, e doença arterial coronariana foi observada em 35 a 40% daqueles que se submetem à angiografia por causa de dor no peito associada ao uso de cocaína16. A disfunção endotelial associada à aterosclerose precoce é resultado de hipersensibilidade aos efeitos vasoconstritores da liberação de catecolaminas induzida por cocaína. Nos locais com aterosclerose o vasoespasmo coronariano associado à cocaína é elevado16.

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A cocaína pode produzir agregação plaquetária por meio de mecanismos alfa-adrenérgicos e potencialização da produção de tromboxano. Evidências experimentais mostram que a cocaína altera a integridade do endotélio vascular a partir da redução da produção de prostaciclina, reduzindo, então, a vasodilatação. Assim, o endotélio danificado no local da constrição arterial torna-se propício à agregação plaquetária seguida por adesão e trombose16. No sistema respiratório, as alterações decorrentes do uso de cocaína dependem do modo de administração (fumado, inalado, intravenoso) ou de alterações na regulação central da função pulmonar15. Outras alterações documentadas resultantes do abuso de cocaína são insuficiência renal e, em estudos com animais, alta incidência de malformações cardiovasculares e cerebrais congênitas em crias nascidas de mães com histórico de abuso de cocaína17. Maconha A Cannabis sativa (marijuana ou maconha) é usada em todo o mundo, sendo que a inalação da fumaça oriunda da queima dos componentes secos da planta é a sua forma de uso mais comum. O uso crônico e não medicinal de maconha está associado a alto risco de cânceres, como os tumores nasofaríngeos (independentemente do consumo de tabaco), elevado risco de câncer de pulmão (embora o consumo de tabaco possa ser considerado um potencial fator de confusão deste achado) e tumores de cabeça e pescoço. Há na literatura científica, ainda, evidências de consequências no sistema reprodutor de usuários de maconha, tais como irregularidades no ciclo menstrual, redução do número de espermatozoides e impotência nos homens. Recém-nascidos de mulheres expostas à maconha durante a gravidez apresentaram peso mais baixo ao nascer, mais chances de nascimento pré-termo e mais risco de necessitar de unidade de terapia intensiva neonatal do que os filhos de mulheres sadias18. Adesão ao tratamento A adesão a um tratamento compreende o uso dos medicamentos ou outros procedimentos prescritos ao menos 80% das vezes previstas na prescrição, considerando horários, doses e tempo de tratamento. Representa a fase final do que se conceitua como “uso racional de medicamentos”19. A adesão é um ponto fundamental para que o tratamento seja resolutivo. A não adesão medicamentosa é produto de diversos fatores relacionados aos profissionais de saúde, ao tratamento, à doença e ao próprio paciente. O uso de drogas é um fator condicionador de má-adesão a tratamentos para doenças clínicas. Estudo transversal realizado na cidade de Recife revelou que o uso de crack/cocaína estava relacionado à má-adesão a medicamentos antirretrovirais em portadores do HIV20. Noutro estudo norte-americano, com 557 adultos HIV-positivo com 50 anos ou mais, na cidade de Nova York, também identificou que o uso de álcool, maconha, cocaína/crack, opioides, nitrito de amila e outras drogas estava associado à má-adesão medicamentosa aos antirretrovirais21. Dessa forma, antes de se pensarmos em aumento de dose, resistência ou refratariedade

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à terapêutica, deve-se sempre considerar a possibilidade de não adesão ao tratamento da comorbidade clínica em pacientes dependentes químicos. Essa simples afirmativa pode mudar o prognóstico desses pacientes. Sempre que possível, decisões clínicas personalizadas devem ser consideradas, como posologias simplificadas, incentivo ao retorno às consultas, uso de recursos como agentes comunitários de saúde ou visitas domiciliares ou mesmo indicação de tratamento hospitalar quando necessário. Além, é claro, do diagnóstico e manejo da própria dependência química. Mudanças de hábitos de vida Um dos pilares do tratamento e prevenção de comorbidades clínicas é a adesão a hábitos de vida saudáveis, como dieta equilibrada, melhoria do sono e a prática de atividade física. A experiência clínica indica que a implementação de tais mudanças em pacientes com dependência química é difícil e muitas vezes não se consegue obter resultados favoráveis. Tais pacientes por vezes não apenas não aderem às propostas de mudanças em tais áreas como também apresentam padrões nutricionais e de sono muito prejudiciais à saúde e relacionados a prognósticos desfavoráveis nessa população22,23,24. Comportamento de risco em pacientes com dependência química Comportamento de risco pode ser definido como a participação em atividades ou atitudes que podem comprometer a saúde física ou mental do indivíduo, levando a consequências inesperadas e indesejadas, frequentemente graves ou fatais. Trata-se de um termo abrangente que envolve desde aspectos relacionados ao crescimento e desenvolvimento do indivíduo até atitudes mais próximas de um desfecho desfavorável, como atos violentos. A dependência química é uma doença complexa, multifatorial e estigmatizante, muitas vezes associada a comportamentos de risco. Por ora, citaremos os comportamentos de risco sexuais devido à sua alta prevalência e importância de suas consequências para a população geral e para dependentes de substâncias psicoativas. Comportamento de risco sexual A associação entre doenças sexualmente transmissíveis (DST), como a infecção pelo HIV e o uso de drogas injetáveis, encontra-se bem-descrita, sendo o risco de contrair o patógeno associado à frequência do uso da substância, número de pessoas com os quais as agulhas são compartilhadas, frequência do compartilhamento de agulhas e outros instrumentos, além do uso de cocaína injetável. Usuários de drogas injetáveis (UDI) apresentaram comportamento de risco para transmissão de HIV a não usuários por meio do ato sexual desprotegido, troca de sexo por drogas ou dinheiro e múltiplos parceiros sexuais. O risco de contrair o HIV e outras DSTs também é maior entre UDIs devido à prática sexual com outros usuários potencialmente contaminados. Não só para drogas injetáveis: a intoxicação aguda pelo crack também esteve relacionada a algum grau de promiscuidade, troca de sexo por drogas/dinheiro e sexo desprotegido, sendo o risco significativamente maior entre os usuários que injetam e fumam do que nos que só o injetam ou fumam. Três variáveis independentes foram associadas ao não uso de preservativo durante as relações sexuais: uso de álcool, presença de um parceiro sexual usuário de drogas injetá-

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veis e troca de sexo por drogas/dinheiro. Conclusão importante foi que usuários de crack reportaram mais uso de álcool do que outros UDIs, o que aumenta a probabilidade de comportamentos sexuais de risco entre aqueles usuários21. Outro estudo também reafirmou a relação entre o comportamento sexual de risco e o uso de drogas, principalmente cocaína/crack. Tal estudo relatou, ainda, que a associação entre HIV e cocaína/crack é mais frequente nas mulheres, principalmente jovens e desabrigadas, mais propensas a realizarem a troca de sexo por drogas25. As mulheres também são mais propensas que os homens a iniciarem o uso do crack por influência dos parceiros26. Esses dados citados endossam a relação entre dependência química e comportamentos sexuais de risco. Contudo, é importante ressaltar que nem sempre o comportamento de risco ocorre em decorrência da dependência química, podendo ocorrer simultaneamente. Transtornos psiquiátricos como personalidade antissocial e transtorno bipolar foram associados tanto a alto risco de dependência química quanto a comportamentos de risco em geral. Estigma e dependência química Um dos primeiros estudos sobre estigma foi o de Erving Goffman, autor do livro “Estigma: notas sobre a manipulação de uma identidade deteriorada”. Ele definiu o estigma como a desumanização do indivíduo com base na sua identidade social, participação negativa na sociedade ou categoria social indesejável que ocupa27. Segundo o modelo psicossocial, o estigma é observado em três aspectos do comportamento social: estereótipos, preconceito e discriminação. Estereótipos são aprendidos pela maioria da população e representam um acordo geral sobre o que caracteriza determinado grupo de pessoas. Quando esses estereótipos são disseminados e aplicados, o preconceito social é manifestado, expressando-se por meio de atitudes e valores que resvalam na efetiva discriminação28. Atualmente, considera-se estigmatizante qualquer característica, não necessariamente física ou visível, que não se harmoniza com o quadro de expectativas sociais acerca de determinado indivíduo. Tipos de estigma Recentemente foram propostos vários tipos de estigma, incluindo público, percebido, decretado e autoestigma27. Estigma público: corresponde à aprovação, pelo público, de preconceito contra um grupo estigmatizado específico que se manifesta em discriminação contra os indivíduos pertencentes a esse grupo. Estigma percebido: refere-se a um processo em que pessoas estigmatizadas acham que a maioria das pessoas acredita que é comum estereótipos negativos sobre indivíduos pertencentes à mesma categoria estigmatizada. Estigma decretado: descrito como uma experiência direta de discriminação e rejeição pelos membros da sociedade em geral. Autoestigma: definido como pensamentos, sentimentos negativos e diminuição da autoimagem, resultantes de identificação com o grupo estigmatizado e antecipação da rejeição pela sociedade.

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Estigma relacionado à dependência química A dependência química é definida pela 10ª edição da Classificação Internacional de Doenças (CID-10), da Organização Mundial da Saúde (OMS), como um conjunto de fenômenos comportamentais, cognitivos e fisiológicos que se desenvolvem após o uso repetido de determinada substância. Fatores como quantidade e frequência de uso da substância, a condição de saúde do indivíduo e fatores genéticos, psicossociais e ambientais auxiliam no seu desenvolvimento. Trata-se de uma condição altamente estigmatizada pela população em geral, um comportamento que interfere tanto na integração social do indivíduo quanto no desenvolvimento de outros problemas psicossociais decorrentes da exclusão social. O uso de tabaco, maconha, cocaína, heroína e álcool é o comportamento mais negativamente julgado29, sendo os usuários de drogas ilícitas mais propensos à discriminação do que aqueles que somente usam drogas lícitas30. Aqueles usuários experimentam diversas formas de discriminação que podem variar de acordo com o tipo de droga utilizada e com o modo de administração (por exemplo: injetáveis e não injetáveis). Usuários de cocaína em pó são menos propensos a experimentar a estigmatização e consequente tratamento negativo dela decorrente, quando comparados aos usuários de crack e de heroína. Esse fenômeno pode estar relacionado a alguns fatores: implicações sociais do uso da cocaína inalada são menos graves, visto se tratar de uma droga ainda considerada de pessoas abastadas; sua forma de usar e manifestações físicas e comportamentais decorrentes da intoxicação costumam ser mais facilmente dissimuladas pelos usuários; e diferenças nas punições legais para crack e heroína podem influenciar as percepções do público30. Entre os vários aspectos do comportamento social em que o estigma é observado, a generalização do estereótipo e a atribuição moral de certos comportamentos merecem destaque. A moralização envolve a concepção de algo como um “problema” indesejável a ser tratado, logo, tanto o problema quanto o indivíduo que o possui são vistos como indesejáveis nesse processo, influenciando negativamente no planejamento, comunicação e responsabilização pela doença. A dependência química é amplamente considerada uma questão de responsabilidade individual, fruto do modelo moral de percepção sobre problemas de saúde. Essa responsabilização pelo vício exacerba sentimentos morais não só da população, mas também dos profissionais da saúde. Entre a população, as pessoas com mais baixos níveis educacionais e com pouco ou nenhum contato prévio com alguém que usa drogas são os que mais julgam negativamente os usuários27. Profissionais que demonstram elevado grau de moralização são auxiliares de enfermagem e agentes comunitários de saúde, enquanto os médicos exibiram os mais baixos graus. As idades dos profissionais também tiveram correlação positiva diretamente proporcional ao julgamento moral sobre os dependentes químicos29. Pesquisa realizada por Fortney (2004) referiu que quanto maior a sensação de estigmatização percebida por usuários de álcool por parte dos profissionais de saúde, menos adesão e qualidade de serviços prestados a esses usuários, uma vez que o diagnóstico e o tratamento da dependência muitas vezes são influenciados por sentimentos morais de provedor31. Isso é comum de ser observado em ambientes não familiarizados com abordagem de dependentes químicos, como enfermarias de hospitais gerais e unidades básicas de saúde. Todavia, Corrigan (2004) salienta que, mesmo oferecendo intervenção adequada, muitas pessoas que poderiam se beneficiar de serviços de atenção à saúde mental, como seria o caso de dependentes químicos, optam por não buscá-los ou, quando o fazem, não cumprem o tratamento conforme preconizado. Para evitar o rótulo de “doente mental” e os

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danos associados, muitos usuários deixam de frequentar ou até mesmo de procurar ajuda nesses serviços. O estigma pode não apenas afetar negativamente sua autoestima, como também reduzir suas possibilidades de inserção social32. Esse isolamento dos usuários de drogas pode reduzir o acesso à prevenção de diversas doenças comórbidas, ao tratamento e aos serviços sociais. Os efeitos nocivos do estigma sobre o bem-estar psicológico e social dos usuários de drogas ressaltam a importância de ir além do indivíduo, sendo necessário abordar o estigma tanto na população quanto, principalmente, entre os profissionais de saúde. Além do esclarecimento da população frente aos transtornos que podem ser desenvolvidos pelos usuários de drogas e os malefícios que essa estigmatização traz tanto para o doente quanto para a própria sociedade, a implementação de estratégias para formação adequada de profissionais de saúde é fundamental para a mudança de atitude em relação aos dependentes químicos e para melhorar tanto a qualidade do serviço quanto a qualidade de vida desse grupo. Comorbidades psiquiátricas e dependência química Pacientes usuários de drogas que apresentam comorbidade psiquiátrica, principalmente as de mais gravidade, exibem elevadas taxas de agressividade, detenção por atos ilegais, suicídio, recaídas, gastos com tratamento, falta de moradia, reinternações, longos períodos de hospitalização e mais utilização de serviços médicos. A evolução social desses pacientes tende a ser pior, causando mais impacto financeiro e sobre a saúde do cuidador33. Pessoas com algum transtorno mental podem sofrer uma série de efeitos negativos no seu bem-estar, adaptação e integração social, apenas pelo fato de receberem a conotação de “doentes mentais”. Por essa razão, pode-se dizer que, assim como outras condições humanas - raça, sexo ou orientação sexual -, a condição de ser acometido por uma doença mental também envolve processo de estigmatização34. Os doentes acometidos por transtornos mentais na sociedade ocidental são frequentemente vinculados a algum grau de periculosidade ou relação com atos violentos e imprevisíveis, à responsabilização deles como causadores da própria doença e à sua incapacidade de se tratar, a uma fraqueza de caráter e a incompetência e incapacidade de lidar com questões fundamentais como o autocuidado34. Essas crenças podem produzir comportamento de medo, preocupação e desconfiança por parte da população “sadia”. Como consequência, evidencia-se que os portadores de transtorno mental enfrentam dificuldades para conseguir um emprego ou a casa própria. Eles encontram limitações na esfera socioafetiva e convivem cada vez mais somente com pessoas que também tenham problemas psiquiátricos. Sem mencionar a precarização de seu acesso ao sistema judicial e de saúde. O processo de estigmatização coloca, muitas vezes, o doente em situações de exclusão social, que podem estar associadas a outros riscos psicológicos tais como comportamento de autoexclusão, problemas cognitivos, comportamento autopunitivo, comportamento de risco, etc28. Estudo espanhol mostrou que 30% das pessoas tinham preconceitos e comportamentos discriminatórios dirigidos a portadores de doença mental no ambiente de trabalho e no acesso à habitação, de modo que o acesso dessa parcela da população ficou diminuído nessas áreas28. O estudo também demonstrou que essas pessoas têm moderado conhecimento sobre como é realizado o tratamento da doença mental, das capacidades laborativas que os portadores de doença mental possuem e das causas e dos níveis de

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acometimento pela doença. As pessoas também não sabem ao certo sobre a capacidade desses doentes em gerir sua herança. O fato mais revelador sobre o conhecimento da doença mental foi o elevado grau de confusão entre o transtorno mental e retardo mental na população em geral, provavelmente devido à falta de conhecimento adequado sobre o significado das duas expressões28. Atitudes estigmatizantes têm foco especialmente sobre a disposição em ajudar a pessoa a se tratar até mesmo coercivamente, além do sentimento de piedade. Demais percepções como necessidade de segregação, raiva e os estereótipos de responsabilidade e periculosidade não foram questões fortemente evidenciadas no estudo28. Usuários de cocaína e HIV-positivo experimentaram nível mais alto de estigmatização quando comparados aos portadores de um câncer ou de depressão28. Observa-se também alguma percepção de contaminação ou influência da condição mental e sentimentos de piedade para com os familiares do doente mental, significativamente associado ao estigma sofrido pelo doente28. Existe, portanto, a necessidade de ampliar a atenção às pessoas com doença mental, considerando-se não só os sintomas como também suas necessidades sociais. Conclusão Diante de um paciente com diagnóstico de dependência química, deve-se estar sempre atento à possibilidade de comorbidade clínica. O manejo de tais doenças exige abordagem individualizada e desafia o profissional de saúde. É importante ter em mente todos os fatores que podem contribuir para que o corpo do dependente químico seja especialmente vulnerável a doenças clínicas e prognósticos desfavoráveis, para que, como profissionais de saúde, possamos fazer a diferença no tratamento e qualidade de vida de tais pacientes. Referências 1. ALVES H, KESSLERB F, RATTO LRC. Comorbidade: uso de álcool e outros transtornos psiquiátricos. Rev Bras Psiquiatr 2004;26(Supl I):51-53. 2. WORLD HEALTH ORGANIZATION[Internet].Geneva: The global status report on alcohol and health 2011. Geneva (http://www.who.int/substance_abuse/publications/ global_alcohol_report/en/, acessado em 24 de Maio de 2015). 3. MANZO-AVALOS S, SAAVEDRA-MOLINA A. Cellular and mitochondrial effects of alcohol consumption. Int J Environ Res Public Health 2010;7(12):4281-4304. 4. MELLION M, GILCHRIST JM, DE LA MONTE S. Alcohol-related peripheral neuropathy: nutritional, toxic, or both? Muscle Nerve 2011;43:309-316. 5. CAMPANA AAM, DUAILIBI SM, STEIN AT, CAMPANA AAM, ZALESKI M, ZAGO- GOMES MP et al. Abuso e Dependência de Álcool. Projeto Diretrizes Associação Médica Brasileira. (http://www.projetodiretrizes.org.br/diretrizes11/abuso_e_dependencia_ de_alcool.pdf, acessado em 24 de Maio de 2015). 6. MIRRA AP, REICHERT J, SILVA CAR, MARTINS SR, MEIRELLES RHS, ISSA JS et al. Evidências Científicas sobre Tabagismo para Subsídio ao Poder Judiciário. Projeto Diretrizes Associação Médica Brasileira. (http://www.projetodiretrizes.org.br/diretrizes12/tabagismojudiciario.pdf, acessado em 28 de Maio de 2015). 7. INTERNATIONAL AGENCY FOR RESEARCH ON CANCER. IARC monographs on the evaluation of carcinogenic risks to humans: tobacco smoke and involuntary smoking.

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As vulnerabilidades associadas às minorias sexuais que usam substâncias psicoativas Alessandra Diehl Denise Leite Vieira

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Introdução Vulnerabilidades variadas, estigmas, preconceitos, comprometimentos físicos, psíquicos, cognitivos e emocionais, dificuldades sociais, culturais, educacionais, jurídicas e familiares fazem parte da complexidade vivenciada por usuários de álcool e outras drogas da comunidade de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros e Intersexuais (LGBTI). Em especial para essa comunidade, a vergonha e o medo do preconceito podem afastar ou prolongar a busca de tratamento adequado1,2,3. Assim, ser gay, lésbica, bissexual ou transgênero pode significar o desejo de ser amado e ter aspirações e objetivos como qualquer outra pessoa no mundo. Mas pode também significar ter de enfrentar desafios sociais diferentes de outros indivíduos, grupos e/ou minorias. Pode significar ambivalência quanto ao valor pessoal devido a mensagens pouco afirmativas da sociedade em relação à identidade e à aceitação. E finalmente pode significar o enfretamento de barreiras para vencer a discriminação no trabalho, a rejeição familiar, agressão ou o assédio4. Portanto, a compreensão das variações da orientação sexual humana, das diferentes identidades de gênero e das vulnerabilidades individuais e coletivas que a orientação homoafetiva e a transexualidade têm na sociedade em geral é tão importante quanto compreender a influência e a relevância da cultura, etnia, idade, genética, nível socioeconômico e do meio em que as pessoas residem no desenvolvimento de ajustamentos individuais a diferenças que nem sempre são bem toleradas e, sobretudo, respeitadas pela maioria das pessoas, quer seja por falta de esclarecimento, preconceitos, mitos ou por tabus1,2,5. A maneira como o abuso e a dependência de álcool e outras drogas expressam-se na população LGBTI vem sendo foco de muitos estudos transculturais na área da dependência química1,6,7. Especialmente nas últimas duas décadas, tem crescido o interesse de pesquisadores em avaliar aspectos emocionais, exposição ao vírus da imunodeficiência humana (HIV, do inglês, human immunodeficiency virus) e a infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), comportamentos sexuais de risco, abordagens clínicas e a epidemia do uso de metanfetamina (Crystal, Meth) correlacionados à extensão do abuso e dependência de substâncias psicoativas entre indivíduos dessa comunidade1,8. Alguns estudos mostram que o uso de substâncias psicoativas, especialmente o álcool e as club drugs - drogas sintéticas obtidas por meio da manipulação laboratorial (particularmente após a explosão do uso da metanfetamina em meados dos anos 90) - têm exercido relevante papel quanto a prejuízos na vida de muitos gays e lésbicas ao redor do mundo7,8. Parece existir um “mito cultural” de que gays e lésbicas, por utilizarem drogas recreativas e por frequentemente estarem em situações sociais, teriam padrão de consumo de álcool e drogas mais problemático, multifacetado e “desviante” do que indivíduos heterossexuais, dando ênfase a um comportamento estereotipado que, certamente, não pode ser generalizado9. Estudos sobre o uso de álcool e drogas nessa população historicamente sempre foram mais escassos e com várias limitações metodológicas. Entre essas limitações, cita-se o viés de seleção, uma vez que foram conduzidos em locais de mais concentração de consumo de álcool e outras drogas como, por exemplo, as boates e bares10. Outra questão metodológica importante dessas pesquisas é a ausência de questionamento sobre a orientação afetivo-sexual em grandes levantamentos epidemiológicos sobre abuso e dependência

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de substâncias psicoativas. Isso reflete poucos dados de representatividade populacional. No Brasil, por exemplo, os grandes levantamentos domiciliares nacionais sobre o uso de substâncias psicoativas na população brasileira, realizados tanto pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID) em 2002 e 2005 quanto os dois últimos levantamentos Nacionais sobre o Consumo de Álcool e Drogas (LENAD) de 2006 e 2012 pelo Instituto Nacional de Políticas para o Álcool (INPAD), não contêm qualquer dado sobre orientação afetivo-sexual11,12. Diehl (2009) conduziu revisão da literatura sobre esta temática cuja busca de artigos baseou-se na seleção de estudos de abuso e/ou dependência de álcool e/ou drogas ilícitas na população geral (ex. estudos de base populacional) ou em amostras selecionadas representativas (ex. todos os estudantes de uma cidade) e na qual a orientação sexual foi relatada. Dos nove estudos incluídos nessa revisão, pelo menos seis mostraram claramente o risco ou prevalência de altas taxas de abuso de substâncias psicoativas, particularmente o álcool, entre lésbicas e mulheres bissexuais10,13. Portanto, a melhor compreensão de questões relativas ao universo de vulnerabilidades e especificidades da população LGBTI no que concerne ao abuso e dependência de substâncias psicoativas tem implicações importantes para o planejamento de políticas de saúde (tratamento e prevenção), para a adequada condução de pesquisas científicas e para o treinamento de profissionais nos serviços de saúde geral e equipamentos de atenção ao tratamento da dependência de substâncias psicoativas onde essas pessoas são atendidas1,14. Assim, é objetivo deste capítulo fazer uma revisão narrativa das questões que envolvem estes dois universos: a dependência química e a população LGBTI, principalmente com foco em suas vulnerabilidades. Homossexualidade não é doença “Eu sou um gay alcoólatra. Esses dois rótulos têm informado a minha vida. Quando eu tinha 15 anos eu fui à biblioteca da nossa cidade natal e procurei todos e quaisquer catálogos e títulos que forneciam alguma referência sobre a homossexualidade. E sabem o que eu acabei aprendendo sobre mim? Sim, que eu era psicologicamente anormal, que eu era ilegal, que eu era imoral e que eu era inaceitável”3. Parece claro que as pessoas não escolhem sua orientação sexual, pois de alguma forma ela é “built in”, ou seja, algo inato15. O que “causa” a orientação sexual das pessoas permanece alvo de pesquisas. Aliás, muito poucas pesquisas de fato vêm sendo conduzidas para descobrir por que, por exemplo, a maioria da população (aproximadamente 90%) é heterossexual. A literatura científica recente tem se preocupado em focar mais os efeitos da homofobia e na homofobia internalizada de indivíduos com orientação sexual homoafetiva. Esse campo de pesquisa e documentário cultural assume frequentemente uma perspectiva construtivista social. Estudos biológicos também têm aumentado, tentando se distanciar da frequente confusão gerada entre orientação sexual e identidade de gênero1. A orientação sexual não pode ser explicada por um único fator. Acredita-se que existe uma base genética que fundamenta as influências biológicas, componentes bioquímicos, familiares e sociais que se moldam para o desenvolvimento da expressão da orientação sexual no adulto masculino e feminino1. Cabe aos profissionais da saúde diminuir estigmas e preconceitos e trabalhar a aceitação numa perspectiva mais afirmativa para indivíduos

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com orientação homoafetiva ou bissexual6. Podem-se observar também diversas manifestações sociais e algumas manobras legislativas que se apoiam nas remanescentes categorias pouco definidas da Classificação Internacional das Doenças, atualmente na sua 10ª versão (CID 10) em relação à orientação sexual para propor tratamentos de “conversão” para a heterossexualidade. Nessas perspectivas de entendimento da orientação sexual é que o grupo de trabalhos da Organização Mundial da Saúde (OMS) propôs a necessidade de revisar a atual Classificação Internacional das Doenças em relação a essa categoria15. A proposta desse grupo de trabalho é a total eliminação de todas as categorias do código F66 (transtornos psicológicos e comportamentais associados ao desenvolvimento sexual e à sua orientação) existentes na CID-10, os quais incluem: F66.0, transtorno da maturação sexual; F66.1 orientação sexual egodistônica; e F66.2 transtorno do relacionamento sexual15. Isso porque essas categorias não apresentaram relevância ou utilidade clínica. Além disso, há o intuito de eliminar qualquer “brecha” que permita a interpretação de uma resposta normal do desenvolvimento como doença, pois a patologização gera estigma, discriminação social e idiossincrasias terapêuticas16. Um breve olhar para o “terceiro gênero” das travestis Travestis são pessoas que mantêm sua identidade de gênero em referência tanto à masculinidade quanto à feminilidade. A característica marcante da travesti é sua reivindicação no sentido de androgenia, e não apenas o reconhecimento social como gênero feminino, distinto do sexo atribuído à nascença. Uma travesti apresenta-se como uma mulher, sustentando uma identidade de gênero feminino, mas pode vir a assumir práticas sexuais masculinas (por exemplo, com a penetração e uso do seu pênis)17. No Brasil, uma travesti é um homem em sentido anatômico e fisiológico, mas refere-se ao mundo como uma mulher, seu corpo progride para formas e contornos femininas (com o uso de hormônios feminilizantes e/ou aplicações de silicone). Muitas podem entender que se “encaixam“ melhor como um terceiro gênero, ou seja, alguém com uma posição entre o homem e a mulher17. Cenas de prostituição em geral tendem a emergir como espaços significativos para a formação de sociabilidade entre as travestis18,19. Principalmente no Brasil, as travestis têm sido historicamente patologizadas, criminalizadas, mortas e ridicularizadas. Desta feita, muitas delas têm buscado projetos de vida na prostituição, os quais trazem o aprendizado desde muito cedo de como se pratica o viver entre diferentes espaços e a construção de uma vasta rede de sociabilidade que pode fornecer-lhes o direito de viver uma “vida travesti”. Não raro existe o relato de terem sido expulsas de casa ao assumirem a sua travestilidade e acabam por buscar referências e proteção na afiliação a uma travesti mais velha, que as ensina os ”truques”, as estéticas e os jogos eróticos que garantem seu poder de sedução e os mecanismos de proteção e resistência em contextos potencialmente de risco para violência e discriminação20. A prostituição entre as travestis está bastante associada à prática de comportamentos sexuais de risco, incluindo o não uso ou uso esporádico de preservativo, consumo de substâncias psicoativas com os clientes e, consequentemente, mais chances de contaminação pelo HIV e aquisição de infecções sexualmente transmissíveis21,22.

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Saúde e população LGBTI Apesar da escassez de estudos populacionais voltados para a comunidade LGBTI no Brasil e no mundo e das várias limitações metodológicas dos mesmos, podem-se observar alguns indicadores de saúde física e mental preocupantes para este grupo quando comparadas à população geral ou aos seus pares heterossexuais, como, por exemplo: Homens gays estão sob grande risco de tentativas de suicídio e suicídio completo quando comparados à população geral23. A depressão afeta gays em taxas mais elevadas que a população geral e frequentemente com mais problemas graves para aqueles gays que permanecem “no armário”, ou seja, aqueles que não conseguiram assumir a sua orientação homoafetiva para seus pares, seus familiares e para a sociedade em geral. Homens e mulheres bissexuais relatam consistentemente níveis mais elevados de depressão e ansidedade23. Lésbicas estão sujeitas a maior risco de desenvolverem câncer de mama do que as mulheres heterossexuais. Fatores de risco para câncer de mama entre as lésbicas incluem baixas taxas de gravidez, menos realização de mamografias e/ou exames clínicos da mama e excesso de peso24. Estudos têm mostrado que tanto as mulheres lésbicas quanto homens gays relatam ter sofrido assédio ou violência física de membros da própria família devido à sua orientação sexual. Quando comparados com os adultos heterossexuais (17,5%), uma porcentagem significativamente mais alta de adultos gays ou lésbicas (56,4%) e adultos bissexuais (47,4%) relatou ter sido vítima de violência por parceiro íntimo25,26. Problemas com a imagem corporal são mais comuns entre os homens homossexuais do que entre seus pares heterossexuais. Além disso, os homens homossexuais são muito mais propensos a ter um transtorno alimentar como bulimia ou anorexia nervosa27. Mulheres que possuem parcerias sexuais do mesmo sexo têm taxas mais altas de depressão maior, fobia simples e estresse pós-traumático que a população geral28. Lésbicas são entre 1,5 e duas vezes mais propensas a fumar do que as mulheres heterossexuais. As lésbicas são significativamente mais propensas a beber em binge do que as heterossexuais. Mulheres bissexuais, por sua vez, relatam beber de forma mais nociva do que as heterossexuais ou lésbicas29. Alguns estudos mostram que homens gays usam substâncias psicoativas, incluindo o álcool e as drogas ilícitas em taxas mais altas do que a população geral. Muitos estudos também indicam que os homens gays usam tabaco em taxas muito mais elevadas do que os homens heterossexuais30. Adultos bissexuais apresentam taxas significativamente mais elevadas de consumo excessivo de álcool (22,6%) do que seus pares heterossexuais (14,3%). Essa diferença do padrão de consumo de álcool foi significativa somente entre as mulheres bissexuais (23,7%)26. Bissexuais têm taxas de tabagismo 30% e 40% maiores do que a população geral. Novos estudos têm mostrado que as diferenças nas taxas de tabagismo são mais significativas entre mulheres bissexuais (39,1 %) e mulheres heterossexuais (19,4 %)31. Alguns estudos têm demonstrado que a maconha, o crack e álcool são as drogas mais comumente usadas por pessoas transexuais. Outros autores também encontraram índices alarmantes de consumo de metanfetaminas (4-46%) e uso de drogas injetáveis (2 a 40%). Algumas pesquisas revelam que as taxas de uso do tabaco entre as pessoas transexuais

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podem variar de 45-74%. Os estudos também sugeriram que as barreiras aos serviços de tratamento de abuso de substâncias para essa população muitas vezes incluem discriminação, hostilidade e insensibilidade do prestador de serviço, rigor no binarismo de gênero (feminino/masculino), segregação no âmbito dos programas e falta de aceitação em grupos de recuperação destinados a gênero específico32,33. O fato de que homens que fazem sexo com homens (HSH) têm risco aumentado de infecção por HIV tem sido bem documentada. A eficácia de práticas de sexo seguro para reduzir a taxa de infecção pelo HIV é uma das grandes histórias de sucesso da comunidade gay. O sexo seguro (quando o preservativo é usado em todos os tipos de relações sexuais - oral, vaginal e anal) mostrou-se eficaz na redução do risco de receber e transmitir o HIV. No entanto, estudos ao longo dos últimos anos evidenciaram o retorno de muitas práticas sexuais inseguras. Os profissionais devem estar cientes de como aconselhar seus pacientes a apoiarem a manutenção de práticas sexuais mais seguras30. Alguns trabalhos também têm ressaltado que lésbicas, gays e bissexuais têm maiores taxas de fumantes do que seus pares heterossexuais. No entanto, faltam estudos empíricos sobre por que existem essas disparidades. Muitos tratados internacionais indicam também que os homens gays usam tabaco a preços muito mais elevados do que os homens heterossexuais, atingindo quase a diferença de 50% em alguns casos. Estudos americanos que coletaram dados sobre tabagismo a partir de inquéritos populacionais encontraram taxas 30 a 40% maiores entre bissexuais que na população geral. Outras pesquisas têm mostrado que as diferenças nas taxas de tabagismo são mais significativas entre mulheres bissexuais (39,1%) do que em mulheres heterossexuais (19,4%)31,34-37. Portanto, o tabagismo parece permanecer uma questão importante entre os gays, lésbicas e bissexuais, apesar dos esforços globais para reduzir o consumo de tabaco35,36,38. Pesquisa de documentos da indústria do tabaco têm revelado que campanhas de mídia foram direcionadas para impulsionar o tabagismo entre lésbicas e gays no mercado. A indústria do tabaco entendeu há muito tempo o papel que a orientação sexual pode exercer na aceitação do tabagismo e do marketing direcionado de determinadas marcas39. Vulnerabilidades Muitas vulnerabilidades interagindo entre si podem contribuir para o uso, abuso e consequente dependência de substâncias psicoativas em indivíduos LGBTI1,40. Entre essas vulnerabilidades citam-se: Homolesbotransfobia Trata-se o medo irracional, aversão ou discriminação de pessoas com orientação homossexual, comportamentos homossexuais e identidade de gênero41,42. Preconceito é definido como qualquer opinião ou sentimento, quer favorável ou desfavorável, concebido sem exame crítico; enquanto fobia é um medo exagerado, falta de tolerância. Partindo-se da definição de fobia, cabe perguntar de que é que se tem medo em relação à homossexualidade. E, ainda, sendo a homossexualidade uma expressão normal da sexualidade, qual é a “ameaça” que ela representa? Do que e por que se tem medo, afinal? Uma das hipóteses que se pode aventar, utilizando um conceito da Psicologia, é a projeção, um mecanismo de defesa psíquico em que o indivíduo que tem pouca consciência ou tolerância em relação

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às próprias características projeta no outro o que não aceita em si próprio, ou seja, se perturba tanto, pode ser que haja algo mal resolvido. Assim, em relação à orientação sexual, a homofobia internalizada, o não se aceitar homossexual, também pode contribuir para a expressão da intolerância em relação aos outros. Estudo realizado na Universidade da Geórgia, nos Estados Unidos, em 1996, sugere que a homofobia pode estar relacionada à excitação homossexual, ou seja, aqueles que se dizem homofóbicos podem, segundo este estudo, não estar cientes disso ou negar a excitação homossexual43. As várias faces do preconceito e discriminação contra os homossexuais muitas vezes tomam proporções avassaladoras e chegam ao extremo da violência, resultando em mortes. A homofobia definida como rejeição ou aversão a homossexuais e a homossexualidade são protagonistas e molas propulsoras de muitos crimes, crimes estes que são classificados como crimes de ódio. Como a orientação sexual ou etnia, crença, origem, classe social pode “justificar” um crime? Com que direito alguém discrimina, humilha, persegue, agride, mata outra pessoa devido à orientação sexual? Em nome de quê? O Brasil tem a vergonhosa liderança internacional em crimes de homofobia: a cada 28 horas um indivíduo com orientação sexual não heterossexual é assassinado no país por crime de ódio. Além disso, 40% de todos os assassinatos do mundo contra indivíduos LGBT ocorrem no Brasil44. Várias são as formas de preconceito que a população LGBT sofre no Brasil. A seguir, algumas são relacionadas segundo documento publicado pelo Grupo Gay da Bahia, intitulado “Violação dos Direitos Humanos dos Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais no Brasil: 2004”: agressões e torturas; ameaças e golpes; discriminação em órgãos e por autoridades governamentais; discriminação econômica, contra a livre movimentação, privacidade e trabalho; discriminação familiar, escolar, científica e religiosa; difamação e discriminação na mídia; insulto e preconceito anti-homossexual; lesbofobia: violência antilésbica; e travestifobia. Homofobia, lesbofobia, travestifobia, transfobia, tantas fobias que talvez fosse mais apropriado o termo “diversofobia”, intolerância ao diferente. Resultados do estudo realizado pela Fundação Perseu Abramo em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo Stiftung, em 150 municípios brasileiros, em 2008, que teve como objetivo identificar o quanto as pessoas têm aversão ou intolerância a diversos grupos sociais: pessoas que não acreditam em Deus, usuários de substâncias, garotos de programa, transexuais, travestis, prostitutas, lésbicas, bissexuais, gays, gente muito religiosa, pessoas que estiveram em situação carcerária, gente muito rica, ciganos e pessoas com AIDS. Os resultados desse estudo (“Diversidade sexual e homofobia no Brasil: intolerância e respeito às diferenças sexuais”) mostram que um em cada quatro brasileiros tem preconceito contra pessoas LGBT. Além disso, um grupo que tem uma das maiores taxas de repulsa é o de usuários de drogas. Com base nestes resultados, vale ressaltar que lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros usuários de substâncias sofrem ainda mais preconceito, haja vista que sofrem com os dois estigmas45. É dever do Estado combater a discriminação e garantir os direitos de seus cidadãos. No Brasil, o Projeto de Lei 122/2006, que transformaria em crime a discriminação de pessoas em razão da orientação sexual foi arquivado, mas o tema foi incluído para ser discutido pelo Projeto 236/2012 sobre a reforma do Código Penal Brasileiro, ainda em tramitação. Enquanto isso, outras intervenções têm sido feitas para garantir os direitos do público LGBT. Exemplo disso é o Decreto 51.180, assinado pelo Prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, que prevê que transexuais e travestis utilizem o nome social (nome que escolheram e não o de nascimento) na administração municipal, ou seja, “órgãos e entidades da

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Administração Municipal Direta e Indireta devem incluir e usar o nome social das pessoas travestis e transexuais em todos os registros municipais relativos aos serviços públicos sob sua responsabilidade, como fichas de cadastro, formulários, prontuários, registros escolares e outros documentos congêneres”. Cumprir essa medida, dirigir-se a alguém pelo nome social, é simples e importante para evitar constrangimentos desnecessários. No caso de serviços de saúde e de tratamento para uso de substâncias, por exemplo, além de evitar constrangimentos, o uso do nome social possibilita a criação do vínculo com o profissional e com o serviço com mais facilidade e aumenta adesão ao tratamento46. Outros municípios também já adotaram essa iniciativa. Atualmente, no país, ainda não existe uma lei federal que regule o uso do nome social por indivíduos transgênero, travestis e transexuais e que permita a alteração do prenome de registro de forma simples e rápida. Sendo assim, têm sido desenvolvidas estratégias para que o nome social seja incorporado e reconhecido em instituições públicas. Por exemplo, o Ministério da Educação já reconhece esse direito desde 2011 a partir da Portaria no 1.612/2011. É importante ressaltar que em 2014, pela primeira vez no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), travestis e transexuais puderam usar o nome social47. No sistema prisional brasileiro, travestis e transexuais têm o direito de usar o nome social, conforme Resolução Conjunta 01/2014 do Conselho Nacional de Combate à Discriminação de LGBT (CNCD/LGBT)48. Sociais Gays e lésbicas continuam a encarar grande sofrimento social proveniente de fatores como a discriminação, baixa aceitação social, lutas contínuas para reconhecimento de relacionamentos, casamento e proteção no trabalho. Somam-se o risco de ataques verbais e físicos e o efeito do diagnóstico do HIV5,14. Heterossexismo Trata-se de um sistema ideológico que ignora, denigre e estigmatiza qualquer forma de expressão emocional, afetiva, comportamental, atividade sexual, relacionamento ou identidade social de um não heterossexual41. Homofobia internalizada Refere-se à resistência e autoaceitação de si mesmo em relação à sua própria orientação homossexual. Relaciona-se a vergonha e conceito negativo de si mesmo. Essa negação pode acarretar níveis diferentes de sofrimento, podendo culminar, muitas vezes, em suicídio1,10. Coming out Essa expressão em inglês adaptada para o nosso idioma quer dizer “sair do armário”. Refere-se à experiência de alguns, mas não de todos os gays e lésbicas, quando exploram ou assumem o seu status homossexual atual, tentando conciliá-lo com a socialização anterior49. Esse parece ser um dos momentos mais difíceis e propícios ao uso de substâncias psicoativas, com riscos de mais possibilidade de manutenção desse uso ao longo da vida14.

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Drogas podem servir como um alívio “mais fácil”, promovendo a aceitação da sexualidade e, mais importante, fornecendo conforto que muitas vezes não existe na família ou na sociedade. O uso de substância psicoativa pode auxiliar o processo de socialização e a realização daquilo que se acha ser “proibido”. Muitos gays têm suas primeiras experiências sexuais sob a influência de álcool e outras drogas. Para muitos gays e lésbicas, essa associação entre abuso de substâncias psicoativas e sexualidade persiste e pode tornar-se parte do processo de “sair do armário” e da formação pessoal e social da identidade1. Adolescência “Sair do armário” - assumir para si e para os outros uma identidade sexual diferente da maioria - pode não ser um processo fácil, principalmente durante a adolescência, quando a aceitação pelo grupo é tão almejada. Não é preciso muito esforço para compreender que adolescentes LGBT enfrentam mais desafios que seus pares heterossexuais, pois além daqueles inerentes à própria adolescência, esses indivíduos ainda lidam com intolerância, rejeição, provocações e violência provenientes da homofobia, inclusive dentro da própria família e na escola. Muitos sofrem com a falta de contato e de relacionamentos de apoio com adultos ou pares; falta de oportunidade para socializar com outros gays e lésbicas, exceto em clubes e bares; falta de acesso a uma modelagem positiva ou maneiras alternativas de vivenciar a diferença. Por isso, muitos desses adolescentes podem se sentir envergonhados e com problemas de autoaceitação e acabam vivendo em segredo, evitam exposição de muitas de suas características, opiniões e sentimentos, o que pode levar ao isolamento social, prejuízos de suas relações e repercussão na sua saúde mental50. A palavra-chave é inclusão. Quanto mais esses adolescentes se sentirem incluídos e acolhidos por seus pares, familiares, amigos e professores, menos dificuldades eles terão para se aceitarem. Retirar o foco da sexualidade e propiciar que deem atenção a outras áreas importantes da vida e papéis sociais possibilita a percepção de que a orientação sexual é apenas uma das características de uma pessoa e não o que a define como indivíduo50. A abordagem de tratamento do adolescente deve ser mais abrangente, especialmente para aqueles com mais vulnerabilidades. Além da homofobia internalizada, muitos adolescentes sofrem ameaças, incluindo de familiares e amigos que podem rejeitá-los. Alguns, inclusive, podem acabar em situação de rua (por terem sido expulsos ou por terem fugido de casa) e podem começar ou intensificar o uso de substâncias, além de muitas vezes acabarem se prostituindo para sobreviver50. Culturais Existe uma tendência entre gays e lésbicas a terem mais convivência entre o chamado “gueto gay”, por questões de autopreservação da comunidade, proteção e suporte dos iguais e também por apropriação do sentimento de pertencimento51. O mundo social é repleto de bares, clubes, boates, turismo gay e saunas onde o álcool e outras drogas estão também muito presentes e amplamente disponíveis1,52. Tentativas de suicídio e suicídio A ideação, tentativa e suicídio estão entre as maiores preocupações em relação às

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pessoas que abusam de álcool e drogas. Vários estudos têm mostrado que existe tal associação entre uso de substâncias psicoativas e comportamento suicida. Na pesquisa conduzida por Diehl e Laranjeira (2009), que avaliou tentativas de suicídio em uma amostra de pronto-socorro, todos os que preenchiam critérios para dependência química já haviam tido pelo menos uma tentativa prévia. A incidência e prevalência de tentativa de suicídio e suicídio na população LGBT, em especial entre adolescentes e adultos jovens, é maior em comparação aos heterossexuais. Extensa revisão sobre prevenção, tratamento e suicidologia foi conduzida em 2012 na população LGBT. Os principais achados de prevalência revelam ampla variação, dependendo da amostra estudada (10% a 63%), com taxa de tentativas claramente maior em indivíduos com orientação homoafetiva e/ou bissexual do que exclusivamente heterossexual. A transexualidade e o serviço de saúde Visitar um profissional de saúde pela primeira vez para um indivíduo transgênero pode ser uma experiência extremamente estressante e ameaçadora. Mesmo em retorno de consulta esses sentimentos podem novamente emergir, pela simples possibilidade de ter que lidar com outros membros da equipe de saúde que não são previamente conhecidos. Para transgêneros, visitas a profissionais de saúde geralmente envolvem algum grau de outing, ou seja, necessidade de ter que se revelar perante os outros sobre sua transexualidade, o que pode ser assustador principalmente para aqueles que frequentemente enfrentam discriminação e estigmatização dentro e fora dos serviços de saúde53. Medo e desconforto em relação a pessoas cuja identidade de gênero ou sua expressão não está em conformidade com as normas culturais de sexo de determinada sociedade são geralmente referidos como transfobia. Preocupações acerca da transfobia podem levar alguns transgêneros a não procurarem ajuda médica ou revelarem o seu status transgênero para o profissional de saúde, o qual, por sua vez, pode levar a um insatisfatório ou desastroso desfecho53. Indivíduos transgêneros também têm medo de rejeição oriunda não somente de profissionais da saúde, mas também de suas famílias de origem, de sua igreja e de outras redes sociais de sua comunidade. Dessa forma, transgêneros necessitam ter mais esperança, uma vez que “ser diferente” não é tarefa fácil de lidar no dia a dia, principalmente quando essa noção de se perceber transgênero emerge em idade bastante precoce, em geral entre os dois e 14 anos. No entanto, a maioria dos indivíduos transgêneros que procuram por tratamento psicoterápico pela primeira vez em suas vidas está entre 26 e 68 anos. A discrepância de idade revela, na verdade, a demora dessa população em estar pronta para buscar ajuda psicoterápica para lidar com todas as questões que envolvem esse universo (Samons, 2008). Na verdade, os transgêneros podem ter qualquer problema psicológico ou de ordem emocional tanto quanto outro paciente. O importante é o profissional de saúde ter habilidades para reconhecer e diferenciar a disforia de gênero de um sintoma de outros transtornos comórbidos54. É importante ressaltar que, de forma geral, indivíduos transgêneros procuram assistência de saúde pelos mesmos motivos que os não transgêneros - exceto se o motivo da busca for por profissional da saúde especializado em questões ligadas ao processo transexualizador. No entanto, qualquer profissional da saúde deve ter habilidades técnicas e culturais

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para reconhecer algumas particularidades dessa comunidade53,54. A escolha de tratamento deve estar baseada na necessidade do indivíduo em combinação a diversos fatores, tais como: sexo biológico, status cirúrgico, declaração de gênero, uso passado ou corrente de terapia hormonal, idade, histórico familiar de doenças, uso de silicone, etc.53. É necessária atenção para algumas situações, por exemplo, o fato de a terapia hormonal aumentar as chances de risco de desenvolver certos tipos de câncer de mama. O uso de estrógenos por mulheres trans pode aumentar o risco de formação de coágulos sanguíneos, como o uso de testosterona por homens trans pode aumentar nível de colesterol e de enzimas hepáticas e levar ao aparecimento de acne e predispor a doenças cardíacas55. Transgêneros (mulheres trans) que ainda não fizeram a cirurgia de transgenitalização podem ter necessidade, dependendo da idade, de continuar a fazer exames de rotina para doenças prostáticas. Outra preocupação é o fato de muitas pessoas trans recorrerem a uma prática inadequada e perigosa, que é a utilização de silicone industrial ou adulterado para transformação corporal (aumento dos seios, nádegas, maçãs do rosto, etc.), geralmente aplicado pelas chamadas “bombadeiras” (gíria utilizada para designar as pessoas que aplicam o silicone de má-qualidade e sem condições adequadas de higiene e assepsia), o que acarreta uma série de complicações à saúde e até mesmo morte14,53. Boas práticas Um grande entrave - não somente nos serviços de saúde como em qualquer lugar em que um transgênero se apresente - é a exibição de documentos o qual gera algum grau de desconforto, pois em geral o nome do registro geral de nascimento não é compatível com a vestimenta que o indivíduo usa. É boa prática então, perguntar a essa pessoa como ela deseja ser chamada, assim como com qual prenome (masculino ou feminino) se sente mais confortável. Muitos transgêneros indicarão sua preferência, mas alguns podem querer que você tenha liberdade de tratá-lo como queira, desde que haja respeito2. É importante ter em mente que a presença de uma pessoa transgênero em um local de tratamento qualquer não significa sempre uma “oportunidade de formação” para outros prestadores de cuidados em saúde. Muitos indivíduos transgêneros podem se sentir desconfortáveis quando o seu cuidador chama outras pessoas, como residentes ou estagiários, para observar os seus corpos ou as interações entre um paciente e o profissional da saúde. No entanto, como em outras situações em que um paciente tem achado raro ou incomum, pedir permissão ao paciente é o primeiro passo necessário antes de convidar um colega ou estagiário para participar da consulta. Além disso, perguntas desnecessárias que visem satisfazer apenas a curiosidade do profissional da saúde e, sem relevância clínica devem ser totalmente evitadas55. Outra boa prática é estabelecer uma política eficaz para lidar com comentários e comportamentos discriminatórios nos ambientes de saúde em geral, tanto pelos prestadores de cuidados quanto por parte dos usuários desse serviço de saúde. Outra atitude é assegurar que todos os profissionais do estabelecimento possam receber transgêneros com treinamento e competência cultural para que não exista um sistema de conduta inadequada, principalmente vexatória. Estar acessível, com “mente aberta”, numa atmosfera acolhedora e de não julgamento, disponibilizar cartazes sobre campanhas relacionadas a essa comunidade e ter a possibilidade de banheiros de neutralidade de sexo nos serviços podem ser estratégias que auxiliam nesse processo55. Em outras palavras, não há necessidade de criar

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ou aumentar constrangimento tanto para os indivíduos transgêneros quanto para seus familiares, que muitas vezes se veem desamparados54. Os profissionais da saúde estão, sem dúvida, em posição bastante privilegiada quando reconhecidos como autoridades e formadores de opinião e têm a valiosa possibilidade (e incumbência) de informar, esclarecer dúvidas, usar terminologias adequadas e desconstruir crenças inapropriadas, principalmente no atendimento a pacientes e seus familiares55. Relacionamentos É importante lembrar que a participação da família e parcerias afetivas no tratamento de abuso e dependência de substâncias é essencial para o processo de recuperação de todo e qualquer usuário. Isso, certamente, não é diferente para a população LGBT. Portanto, a equipe deve estar preparada para sensibilizar e encorajar o paciente a trazer a família (parcerias afetivas, namorado, filhos e pais) para o âmbito do tratamento, assim como mobilizar a família a participar do processo de tratamento4. Dessa forma, também vale mencionar que às vezes o paciente LGBT pode contar apenas com as chamadas “famílias de escolha”, ou seja, aqueles amigos mais próximos que residem com o paciente ou que fornecem suporte e integram uma rede positiva e saudável de apoio, os quais devem ser considerados e integrados ao processo de tratamento. Isso porque a família de origem pode inicialmente não estar disponível, haja vista que os laços foram quebrados quando o paciente assumiu a sua identidade sexual e/ou sua orientação sexual para seus familiares4. Além disso, é importante que os profissionais da saúde estejam atentos ao fato de que as configurações familiares atuais mudaram, de acordo com o último censo no Brasil: hoje, 50,1% das famílias são constituídas por “famílias mosaicos”, cuja constituição clássica de pai, mãe e filhos já não é mais a predominante56. As técnicas de terapia de família e casal são as mesmas utilizadas para todos os pacientes, independentemente da orientação sexual. O profissional que conduz o grupo de família deve ter habilidade para lidar com as possíveis diferenças e estigmas no grupo devido aos conceitos heteronormativos4. Violência Como já mencionado, a violência dirigida à população LGBT varia desde agressões verbais e ataques físicos até assassinatos por crimes de ódio motivados pela homofobia. A violência doméstica é também uma realidade entre casais gays, apesar de ser sub-relatada. Todos esses fatores contribuem tanto para o uso (experimentação ou aumento) de substâncias psicoativas, quanto representam um fator de risco para recaídas e devem ser considerados em programas de reabilitação4. Infecções sexualmente transmissíveis/vírus da imunodeficiência humana/síndrome da imunodeficiência adquirida (IST/HIV/AIDS) A prevenção de infecções sexualmente transmissíveis (IST), incluindo o vírus da imunodeficiência humana (HIV), sempre deve estar integrada ao programa de tratamento e orientação para todos os usuários de substâncias psicoativas, pois embora as pessoas saibam sobre sexo seguro e uso de preservativo, muitas não têm essa prática. Esse fato é reforçado

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pelos recentes dados do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS) de 2014, que revelam que enquanto no mundo todo se observou diminuição de 27,6% nas taxas de novas infecções pelo vírus HIV de 2005 a 2013, no Brasil houve aumento de 11% de novos casos. Entre as populações mais vulneráveis estão os usuários de drogas e os homens que fazem sexo com homens (HSH)57. Há evidências científicas de que indivíduos sob o efeito de álcool e drogas têm o julgamento prejudicado e se expõem a mais riscos, como compartilhar seringas, alto número de parcerias sexuais, assim como práticas sexuais sem proteção. Devido à vergonha, homofobia internalizada, depressão e baixa autoestima, alguns gays, consciente ou inconscientemente, podem se expor a mais riscos de contágio de IST. Outro desafio é fazer com que aqueles que já estão em terapia antirretroviral continuem tomando a medicação da maneira e horários corretos, pois com o abuso ou recaída ao uso de drogas pode haver negligência do esquema medicamentoso2. Gênero e identidade sexual A identidade sexual é uma questão que pode gerar confusão e constrangimento para transgêneros nos serviços de tratamento para usuários de substâncias psicoativas devido aos conceitos heteronormativos e da “dicotomia” de gênero: masculino e feminino. Uma questão, por exemplo, é a utilização de espaços comuns nos centros de tratamento, como banheiros, enfermarias e acomodações: uma travesti usaria qual banheiro, de homens ou mulheres? Uma pessoa que é transexual quando internada ficaria na enfermaria masculina ou feminina? Profissionais de serviços de tratamento para dependentes químicos sempre se deparam com a polêmica questão dos banheiros e das acomodações/leitos separados por binarismo de gênero em seus serviços. Pergunta-se, por exemplo, se deveriam ter banheiro “neutro” ou se transgêneros/travestis se adaptariam em enfermarias/unidades onde o tratamento é misto, ou seja, para homens e mulheres. O fato é que não existe ainda uma política clara sobre essa questão para equipamentos de saúde de internação binários. E frequentemente vários equívocos são cometidos em nome da tão sonhada preservação de direitos. Infelizmente, sabe-se, de forma anedótica, que muitos transgêneros sequer são aceitos em comunidades terapêuticas para tratamento para dependência química. Novamente, a palavra-chave parece ser a inclusão e o bom senso e respeito do acolhimento e da aceitação da diferença, os quais deveriam prevalecer. Não existe uma regra, cada serviço deverá se adaptar dentro de suas realidades e, sobretudo, perguntar ao maior interessado, o paciente transgênero, como ele ou ela se sentiria melhor nesse serviço2. Nome social Todos nós temos nomes e atendemos, quando chamados, pelo nome que nos identifica, que nem sempre é o nome de registro. Às vezes, é um apelido e que, de tão identificado com o mesmo, é integrado ao registro original (p. ex., Lula). No caso de travestis e transgênero, as pessoas escolhem ser chamadas por um nome diferente da carteira de identidade; uma travesti elege um nome feminino e apresenta-se e identifica-se com o gênero feminino. O mesmo acontece com as pessoas que desejam e/ou realizam a cirurgia de transgenitalização. Um caso famoso no Brasil é o da Roberta Close, que passou boa parte de sua vida com o nome com que foi registrada ao nascer (Luiz Roberto). Realizou a cirurgia de

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transgenitalização e, embora já se identificasse com o gênero feminino e se apresentasse como Roberta muito antes da operação, apenas conseguiu alterar seu nome no registro civil depois de muita luta e constrangimento2. As pessoas têm o direito de serem chamadas pelo nome que desejarem e pela identidade de gênero com que se reconhecem. Geralmente, os próprios pacientes (travestis e transgêneros) fazem uma ressalva em relação a como querem ser chamados quando se apresentam nos serviços de saúde. Então, por que provocar constrangimentos ao chamar pelo nome que consta na carteira de identidade uma pessoa que se apresenta com um nome (e gênero) diferente do registro? Dirigir-se à pessoa pelo nome com o qual ela não se sente confortável, além de gerar um mal-estar desnecessário, interfere negativamente no vínculo desse paciente com o serviço e/ou profissional e dificulta a adesão ao tratamento, além de prejudicar a qualidade de atendimento. Considerações finais Como qualquer outra comunidade, a população LGBT é formada pela sua própria história, costumes, valores e normas comportamentais e sociais. Tem claramente identificados seus festivais, feriados, rituais e símbolos, heróis, linguagem, arte, música e literatura. Intervenção efetiva na prevenção do abuso de substâncias psicoativas, tratamento e recuperação deve ao mesmo tempo mobilizar e refletir essa cultura. Prevenção e tratamento que não sejam afirmativos e positivos em relação às pessoas LGBT não são somente improdutivos, mas podem também aumentar os problemas. Referências 1. CABAJ RP. IN: Gay Men and Lesbians. Galanter M& Kleber HD. The American Psychiatric Publishing Textbook of Substance Abuse Treatment. Fourth Edition. pp. American Psychiatric Publishing, Inc. Washington, DC, 2008, 623-638. 2. DIEHL A, VIEIRA DL, SANTORO GOMES L. Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros. In: Diehl A, Cordeiro DC, Laranjeira R. Dependência Química: Prevenção, Tratamento e Políticas Públicas. Editora Artmed, Grupo A, 2011. 401-414. 3. Substance Abuse and Mental Health Services Administration. (2012). Building Bridges: LGBT Populations: A Dialogue on Advancing Opportunities for Recovery from Addictions and Mental Health Problems. HHS Pub. No. (SMA 13-4774. Rockville, MD: Substance Abuse and Mental Health Services Administration. 4. LEVOUNIS P, DRESCHER J, BARBER ME. O Livro de Casos Clínicos GLBT. Editora Artmed, Porto Alegre, 2014. 5. HARVEY, D. B. (2009). Sexual health in drug and alcohol treatment: group facilitator’s manual. New York: Springer Publishing Company.Hequembourg AL, Brallier SA. An Exploration of sexual minority stress across the lines of gender sexual identity. J Homosex. 2009; 56(3):273-98. 6. CABAJ RP, STEIN TS (eds): Textbook of Homosexuality and Mental Health. Washington, DC, American Psychiatric Press: 1996.p.978. 7. BRYAN N, COCHRAN K. MICHELLE PEAVY, JENNIFER S. ROBOHM. Do Specialized Services Exist for LGBT Individuals Seeking Treatment for Substance Misuse? A Study of Available Treatment Programs. Substance Use & Misuse, Volume http://www. informaworld.com/smpp/title~content=t713597302~db=all~tab=issueslist~bran-

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Os desafios enfrentados pelos filhos no convívio com pais usuários de substâncias psicoativas Neliana Buzi Figlie Daniele da Silva Gonçalves Pompeu de Camargo

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Introdução Um levantamento inglês estimou que 30% (3,3-3,5 milhões) das crianças menores de 16 anos que moram no Reino Unido convivem com um dos pais que usa álcool de forma nociva, 8% com pelo menos dois bebedores nocivos1. Outro levantamento sobre morbidade psiquiátrica nacional indicou que, em 2000, 22% (2,6 milhões) viviam com um bebedor de risco e 6% (705 mil) com um dependente1. O British Crime Survey (2004) e MPN (2000) indicaram que 8% (até 978.000) de crianças viviam com um adulto que tinha usado drogas ilícitas naquele ano: cerca de 335.000 crianças viviam com um dependente de drogas, 72.000 com um usuário de drogas injetáveis, 72.000 com um usuário de drogas em tratamento e 108.000 com um adulto que teve overdose1. Infelizmente não há estimativas nacionais e não é raro deparar-se com profissionais da área de saúde e politicas públicas no Brasil que desconhecem os danos sofridos pela população de filhos de dependentes químicos. Crescer em uma família que possui um dependente químico é sempre um desafio, principalmente quando se fala do contato direto de crianças e adolescentes com essa realidade. Esse desafio pode atuar desenvolvendo competências para lidar com situações estressantes e soluções de problemas, bem como desestruturar o crescimento saudável de uma criança e adolescente, podendo levar ao desenvolvimento do alcoolismo e de outros quadros psiquiátricos como depressão, ansiedade e transtorno de conduta. Além disso, pode desencadear problemas físico-emocionais, como baixa autoestima, dificuldade no relacionamento, ferimentos acidentais, abuso físico e sexual2. Daí a necessidade de um trabalho preventivo que almeje condições para um desenvolvimento mais estável e saudável e que busque a ampliação da capacidade de resolução de problemas e de habilidade de enfrentamento e relacionamento inter e intrapessoal. Este capítulo procura trazer informações sobre filhos de dependentes químicos que, apesar de serem vítimas indiretas do consumo de álcool e outras drogas, acabam sofrendo diretamente as consequências desse envolvimento, uma vez que não teve livre arbítrio para dizer “sim” ou “não” frente às consequências geradas pela dependência química na família. Aspectos emocionais, cognitivos e comportamentais A convivência com um dependente químico pode trazer diversos prejuízos, sendo grande fator de risco para criança e adolescente que pertence a essa família. Uma em cada quatro crianças está exposta ao abuso de álcool no ambiente familiar3. Esse dado alarmante traz muita inquietação, pois pesquisas têm mostrado que os filhos de alcoolistas estão em desvantagem quando comparados a filhos de não alcoolistas e costumam ter mais predomínio de problemas, tais como: déficit cognitivo, baixa autoestima, dificuldades acadêmicas, problemas de comportamento e dificuldades emocionais e de relacionamento4,5,6,7. Além disso, podem apresentar algumas características psicológicas que têm sido citadas como precursoras no desenvolvimento do alcoolismo e de distúrbios psicológicos, que são: insegurança, impulsividade, agressividade, baixa tolerância às frustrações, transtorno de conduta6,8. Belsky, Steinberg e Draper9 identificam alguns fatores como os maiores estressores para as crianças, são eles: baixos níveis de coesão familiar, discórdia matrimonial, emprego instável, insensibilidade, rejeição, incongruência e comportamento imprevisível dos pais.

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Pode-se afirmar que esses estressores estão mais presentes nas famílias de alcoolistas, quando comparadas a famílias de não alcoolistas10,11,12. Devido às problemáticas apresentadas e outras situações de vulnerabilidade, foi realizado estudo por Figlie et al.4, que avaliou amostra de crianças assistidas no Centro Utilitário de Intervenção e Apoio a Filhos de Dependentes Químicos (CUIDA) e observou que 59% dos filhos de dependentes químicos necessitaram de algum tipo de tratamento, evidenciando consequências no desenvolvimento infantil. Por outro lado, 58% dos cônjuges apresentaram risco para o surgimento de distúrbios mentais, dificuldades no relacionamento familiar e agressividade. Nas crianças percebeu-se a predominância de sentimentos de insegurança e inadequação associados à depressão, apatia e repressão, rebaixamento de autoestima, alto índice de carência afetiva, empobrecimento na capacidade de solucionar problemas, isolamento e maturidade precoce. Os pais são considerados as principais referências e a forma como se relacionam com os filhos é fundamental para a saúde mental deles, podendo algumas interações trazer sérios prejuízos para o desenvolvimento infantil13. No aspecto cognitivo, têm sido encontradas diferenças no desempenho em avaliações cognitivas e desempenho acadêmico inferior. Crianças e adolescentes filhos de dependentes de álcool frequentemente têm mais problemas acadêmicos14,15. Estudo sobre autoconceito e desempenho escolar comparando filhos de dependentes de álcool com filhos de não dependentes demonstrou que filhos de dependentes tendem a ter autoconceito mais negativo e desempenho escolar inferior nas tarefas de leitura e aritmética16. Em idade pré-escolar, mostram linguagem e raciocínio mais precários que os filhos de não alcoolistas e o mau desempenho dos filhos de alcoolistas é previsto, pela qualidade inferior do estímulo presente em casa. Além disso, filhos de alcoolistas têm mais dificuldade de abstração e de raciocínio conceitual. Essas funções cognitivas desempenham importante papel na solução de problemas, sejam eles acadêmicos ou de situação relacionada à vida. Portanto, os filhos de alcoolistas poderiam necessitar de explicações e instruções mais concretas e aprofundadas17. Relações familiares e o impacto da dependência química Vários estudiosos concordam que as relações familiares são modificadas quando um membro manifesta algum problema de saúde, por exemplo, alcoolismo, anorexia nervosa, depressão e outros18,19. Sendo assim, os prejuízos associados à dependência química afetam também os familiares20 cuja inclusão no tratamento tem levado à melhora do paciente e das relações entre os membros19. Essas intervenções diminuem o estresse e encorajam a interação positiva21. A convivência dos familiares com o usuário é afetada na medida em que a dependência química evolui e se desenvolve. Estudos evidenciam que esposas de maridos dependentes de álcool exibem sofrimento e apelo para uma vida de resignação e sacrifícios acompanhada por sentimentos de solidão, frustrações e tristezas em virtude da deficiência desses maridos no exercício do papel de pai e esposo22. Além disso, podem ter sinais de ansiedade, depressão, agressividade e prejuízos cognitivos devido ao alto estresse psicológico23. Pesquisas informam que há diferenças quando o membro dependente químico é o pai ou a mãe. Segundo Carter e McGoldrick24, as mulheres sempre tiveram papel central no funcionamento da família, pois cabia a elas assumir a responsabilidade emocional por todos os relacionamentos. Este dado revela que o funcionamento familiar, nos aspectos

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afetivos, é mais prejudicado quando a mãe tem algum transtorno psiquiátrico25. O impacto também pode variar dependendo da substância consumida. Estudo realizado com 305 famílias apurou que o ambiente envolvido com drogas ilícitas prejudica mais o desenvolvimento da criança do que o ambiente envolvido com álcool, a destacar: retraimento, queixas somáticas, problemas de contato social, problemas de pensamento e comportamento delinquente. Já os filhos de pais dependentes de álcool sofrem maior impacto na aprendizagem, depressão e ansiedade. Também foi constatado que quanto menor a idade da criança, maior a incidência dos fatores de risco em seu desenvolvimento26. O fato de na família alguém se envolver com bebidas alcoólicas ou outras drogas aciona nos demais membros uma série de reajustes, na qual cada membro tenderá a agir de uma forma, uns com melhores recursos, outros não27. Levando em consideração as reações negativas dos membros que convivem com o dependente químico, há mecanismos que podem aumentar o risco de uso e abuso de drogas dos filhos e são descritos por Ellis, Zucker e Fitzgerald28 (Tabela 1). Tabela 1: Fatores de risco familiares que afetam no desenvolvimento de Psicopatologias entre os filhos de alcoolistas comparados com filhos de não-alcoolistas Fator de risco

Resultado de Pesquisas: Influências familiares alcoólico-específicas*

Modelo de comportamento em relação ao consumo de bebidas alcoólicas

Filhos de alcoolistas estão mais familiarizados com um ambiente que envolve grande exposição de bebidas alcoólicas em idade precoce e desenvolvem esquemas do uso do álcool (crenças baseadas na experiência) mais precocemente.

Expectativas quanto ao uso do álcool

Filhos de alcoolistas têm expectativas mais positivas sobre o valor do álcool (mais chances de esperar que o álcool os faça sentir bem).

Etnia e hábito de ingestão de bebidas alcoólicas

Filhos de alcoolistas de certos grupos étnicos apresentam risco aumentado de abusarem do álcool em decorrência de expectativas relacionadas ao álcool e etnia.

Psicopatologia Status socioeconômico (SES)

Psicopatologias gerais da família

Certos subgrupos de filhos de alcoolistas são criados em famílias nas quais os pais têm transtornos psiquiátricos, tais como transtorno de personalidade ou depressão, acrescido da dependência alcoólica. Filhos de alcoolistas são mais prováveis nas casas de baixo SES nas quais as famílias estão expostas ao estresse financeiro. Famílias de alcoolistas são caracterizadas por baixa coesão (falta de proximidade entre os membros da família), alta taxa de conflito e pouca habilidade na solução de problemas. Filhos de alcoolistas são mais prováveis em lares desestruturados.

Agressão/violência familiar

Filhos de alcoolistas são mais prováveis de terem sido alvo de abusos físicos e violência familiar.

Prejuízo cognitivo dos pais

Filhos de alcoolistas são mais prováveis de terem sido criados por pais com habilidades cognitivas empobrecidas e em ambiente sem estimulação.

Miscelânea

Acidentes e traumatismos, Síndrome alcoólica fetal, ação imunossupressora - mais risco de infecções bacterianas (pneumonia, tuberculose) e virais (hepatites B e C, HIV)

*Influências alcoólico-específicas seletivamente prognosticam o abuso e dependência do álcool, ao passo que influências familiares alcoólico não específicas prognosticam toda uma variedade de problemas psiquiátricos, incluindo o alcoolismo. Reilly29 descreveu uma série de padrões interacionais presentes em famílias que convivem com a dependência química em seus lares: Negativismo: comunicação negativa, queixas, críticas e expressão de desconforto. De

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modo geral, o humor do cônjuge que não abusa de substâncias é decisivo na interação familiar. Inconsistência parental: o ambiente de regras familiares geralmente mostra-se errático, inconsistente e com estrutura familiar inadequada. Geralmente as crianças mostram-se confusas frente ao que é certo ou errado, acarretando comportamentos inconsistentes. Negação parental: apesar dos sinais óbvios, os dependentes químicos afirmam não haver problemas, gerando com isso insegurança na perceção das crianças que convivem com essa realidade. Falha na expressão de raiva: crianças e adolescentes que convivem com a dependência química em suas famílias mostram-se temerosos em expressar seus sentimentos e pensamentos, uma vez que podem desencadear escândalos ou atrocidades na expressão de raiva por parte do dependente de substâncias. Automedicação: tanto um familiar quanto uma criança passam a usar substâncias ou bebidas alcoólicas para lidar com sentimentos, podendo acarretar quadros de ansiedade ou depressão. Expectativas parentais irreais: crianças expostas frente a expectativas irreais ou baixas expectativas tendem a se tornar inseguras e com a sensação de fracasso. Apesar de seu estado de risco, é importante salientar que grande parte dos filhos de dependentes químicos é acentuadamente bem ajustada e, por tal, uma abordagem preventiva de caráter terapêutico pode ser de vital importância no desenvolvimento dessas crianças e adolescentes. Dessa forma, nem sempre “filho de peixe, peixinho é!”. Prevenção e fatores de proteção A condição emocional e psicológica do cuidador, no caso o membro não dependente, pode contribuir como fator de proteção, uma vez que este é o responsável e preocupado em manter a rotina familiar e o dia a dia da criança e adolescente de modo saudável. A união entre irmãos também pode colaborar de forma positiva e diminuir o impacto do alcoolismo parental30. Altos níveis de organização familiar e comportamento de coping podem deter ou diminuir a iniciação do jovem no uso de substâncias. Além disso, se o adolescente percebe sua família como organizada, ele próprio sente que tem controle pessoal31. É importante que os pais invistam no tratamento dos filhos, permitindo e atuando de forma positiva no processo de mudança, e que o terapeuta tenha expectativas de que a família colabore para boa evolução no tratamento32,33. Um ponto a ser ressaltado é o papel do irmão mais velho. Estudo brasileiro revelou características de algumas famílias, nas quais a participação dos irmãos mais velhos em atividades domésticas foi considerada essencial para a manutenção da família. Foram descritos como competentes agentes socializadores, capazes de orientar, estimular e facilitar a participação dos irmãos menores nas atividades familiares e comunitárias34. Esse estudo chama a atenção, no entanto, para fatores sociais e econômicos que interferem na dinâmica familiar e nas práticas educativas das crianças. Bolsoni35 investigou a relação entre empatia e o número de irmãos, bem como avaliou se o número de irmãos consistia em um elemento de proteção ou de risco ao desenvolvimento. Observou que crianças que tinham muitos irmãos podiam estar em situação de risco no caso de famílias muito pobres, que dividiam entre tantos filhos os poucos recursos

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de que dispunham. No entanto, o cuidado entre irmãos, mesmo nessas famílias numerosas, foi considerado importante fator de proteção. O estudo salienta, ainda, que crianças que têm irmãos apresentam mais desenvolvimento emocional e social, especialmente em relação à empatia. Diante disso, a implementação de programas de intervenção junto a esses grupos de crianças em situação de risco pode potencializar e favorecer o desenvolvimento da resiliência, sendo este um importante fator de proteção. A resiliência pode ser vista como o resultado da interação entre aspectos individuais, contexto social, quantidade e qualidade dos acontecimentos no decorrer da vida e os chamados fatores de proteção encontrados na família e no meio social36. A ideia em torno da resiliência é a capacidade de desenvolvê-la na saúde coletiva, conectando o individual e o coletivo. As ações institucionais só são entendidas como propiciadoras de resiliência desde que efetivadas por meio de um vínculo com a criança e o adolescente. E este talvez seja um dos grandes ganhos que a resiliência traga para o campo da saúde, ou seja, propõe uma nova práxis pautada em ações personalizadas, nas quais a interação entre sujeitos realmente se estabeleça como vínculo de confiança, como espaço de acolhida e escuta. Logo, a resiliência não pode ser vista como uma nova panaceia para a saúde, uma saída mágica aplicável inadvertidamente a qualquer situação. A questão que se estabelece é uma mudança de olhar em relação às crianças que vivenciam situações adversas. Tal mudança pode significar para o próprio sujeito uma aposta de emancipação diante de um estigma, como o dos maus-tratos37. Pelos aspectos expostos, torna-se clara a importância das abordagens interventivas que sustentem, ainda num período de prevenção, o desenvolvimento e o crescimento de filhos de dependentes químicos. No próprio contexto da dependência química, a abordagem familiar revela-se um importante recurso para o tratamento38. No âmbito da prevenção, investir em programas que ofereçam assistência aos filhos, bem como aos familiares, também é relevante para assegurar laços afetivos, cuidados básicos e promover recursos que ampliem os fatores de proteção39. O contexto de risco no qual uma criança se desenvolve deve ser foco de extrema atenção. Prevenir-se significa se antecipar, esse mesmo ambiente deve ser avaliado, acolhido e monitorado pelos profissionais, como forma de assegurar um olhar diferenciado aos filhos de dependentes químicos. Os serviços, tanto no campo da saúde como da educação, precisam buscar alternativas preventivas, psicoeducacionais e de assistência para garantir a essa população oportunidades de se proteger do meio em que vive. Uma proposta de intervenção: CUIDA, uma iniciativa pioneira no Brasil Na periferia de São Paulo, em um dos bairros mais violentos da cidade, foi criado o serviço Centro Utilitário de Intervenção e Apoio a Filhos de Dependentes Químicos (CUIDA), idealizado por Neliana Buzi Figlie, em parceria com a ONG Sociedade Santos Mártires e com o apoio técnico da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (UNIAD), pertencente ao Departamento de Psiquiatria da UNIFESP/EPM33. O CUIDA funcionou de setembro de 2001 até setembro de 2011, inicialmente com financiamento do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e Adolescente, posteriormente com o da Secretaria Municipal da Saúde. Nesse período, 1.109 crianças e adolescentes

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(não incluindo o atendimento de familiares) foram, assistidas. Infelizmente, o CUIDA teve suas atividades interrompidas devido corte de financiamento, deixando vulnerável aproximadamente 200 assistidos. A missão do CUIDA é diminuir os fatores de risco que interferem no desenvolvimento biopsicossocial de crianças e jovens que convivem com a dependência química em seus lares e aumentar os fatores de proteção, capacitando-os para uma integração social e comunitária que lhes facilite a realização de seu potencial como cidadão, com saúde e dignidade33. Da experiência do serviço foram realizados alguns estudos sobre essa população, descritos a seguir: estudo inicial, desenvolvido com 63 familiares, 54 crianças e 45 adolescentes, demonstrou em relação ao perfil familiar que 67% pertenciam à categoria socioeconômica D; na maioria das famílias o pai é o dependente químico (67%), tendo como principal substância de escolha o álcool (75%); 59% dos cônjuges que não eram dependentes químicos apresentaram risco de distúrbios em saúde mental e 73% dos pais declararam que a gravidez não foi planejada. Nas crianças foram observados timidez e sentimento de inferioridade; depressão; conflito familiar; carência afetiva e bom nível de energia, o que é indicativo de equilíbrio emocional e mental. Nos adolescentes, foi detectado alto índice de problemas nas seguintes áreas: desordens psiquiátricas, sociabilidade, sistema familiar e lazer e recreação. É importante destacar que a área de uso de substâncias foi considerada fora do ponto de corte4. Um dos maiores desafios encontrados nesse serviço foi a adesão dos adolescentes. Foi realizado então outro estudo com 791 crianças e adolescentes para identificar quais eram os fatores determinantes que impediam a adesão ao tratamento, tendo sido encontrados: mudança frequente de moradia, baixo grau de escolaridade do pai e situação socioeconômica desfavorável, nessa ordem. Vale ressaltar que na população estudada tais características eram extremamente frequentes40. A proposta de tratamento era de um ano, focada na prevenção do uso de substâncias e de transtornos na área de saúde mental com avaliação constante dos fatores de risco, de modo a reduzir danos e favorecer os fatores de proteção. Como se deparava com alta rotatividade e difícil adesão dos casos devido à situação socioeconômica, que se apresentava como um fator importante tanto para a gravidade da situação familiar quanto para a possibilidade de conclusão do tratamento, e consequentemente com o prognóstico das crianças e adolescentes assistidos no serviço, optou-se por uma intervenção breve, pautada na resolução de problemas dentro do referencial da terapia cognitiva. A solução de problemas nessa proposta é compreendida como um processo autodirigido cognitivo-comportamental, no qual a pessoa tenta identificar ou descobrir soluções eficazes ou adaptativas para os problemas da vida cotidiana. É representada pelos três componentes hipotéticos do pensamento meios-fins: 1. Capacidade de conceituar os passos sequenciais ou meios necessários para alcançar determinado objetivo na solução de problemas 2. Capacidade em antecipar possíveis obstáculos que possam interferir na obtenção do objetivo; 3. Capacidade em estimar que a solução de problemas leva um tempo determinado, que pode ser essencial para a implementação bem-sucedida da solução41. A abordagem de atendimento utilizada era a terapia cognitiva, que enfatizava os efei-

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tos de crenças e atitudes mal-adaptativas ou disfuncionais no comportamento atual, partindo do pressuposto de que a reação de um familiar, criança ou adolescente é influenciada pelos significados atribuídos ao fato. Isso implica que as respostas emocionais e comportamentais a fatos diários decorrem da forma como esses eventos são percebidos e relembrados, das atribuições que são feitas, da causa desses eventos, das formas como esses eventos afetam a percepção que a pessoa tem de si própria e da forma como busca atingir seus objetivos. Esses esquemas são considerados moldes que guiam a percepção, o processamento, as recordações e a análise de informações42. Mediante respostas comportamentais inadequadas – quando prejudicam a adaptação social e escolar dos assistidos –, a proposta era reestruturar crenças disfuncionais e atuar na resolução de problemas, por meio de monitoramento de pensamento, identificação de distorções e erros cognitivos, avaliação de pensamento e desenvolvimento de processos cognitivos alternativos e treinamento de habilidades de enfrentamento42. Vale destacar que em nossa prática clínica as crenças disfuncionais mais prevalentes nesse grupo eram de incapacidade, principalmente com familiares que não eram dependentes químicos; baixa auto-estima associada a transtornos de conduta e crianças de casa -abrigo; e inadequação, mediante a existência de algum transtorno psiquiátrico. A postura da equipe era de fundamental importância para a adesão ao tratamento. Nesse sentido, a utilização da entrevista motivacional visava auxiliar os atendidos em seus processos de mudança de comportamento. Faz parte da essência da entrevista motivacional reconhecer que o cliente tem competência, recursos e força própria para construir uma mudança em sua vida. Dessa forma, quando o profissional vê o seu cliente como “capaz”, torna-se mais fácil para o profissional utilizar os princípios essenciais da entrevista motivacional - de colaboração, autonomia e evocação. Essa diferente visão a respeito do cliente torna mais fácil ao profissional entender a diferença entre essa abordagem e os outros tipos de aconselhamento43. Nessa ótica, a postura do profissional e a intervenção passam a ser compostos pela parceria, aceitação, compaixão e evocação. A mudança aqui é compreendida em amplo aspecto do comportamento, possibilitando que o indivíduo se decida, tome atitudes e se resolva. Nessa nova proposta, a parceria do profissional é bastante significativa, sendo reforçada nas bases relacionais da entrevista motivacional, que inclui, além do engajamento, do foco e da evocação, o planejamento como condição para a mudança de qualquer tipo de comportamento43. Considerações finais As habilidades parentais de responsividade às necessidades físicas e emocionais das crianças sob a influência de substâncias psicoativas mostram-se prejudicadas, bem como a saúde mental do cônjuge que não consome substâncias. Os estudos nacionais sobre os danos nos filhos associados ao abuso de substâncias por parte dos pais ainda são limitados. A realidade brasileira ainda é muito curativa e fazem-se necessários a necessidade de intervenções preventivas que garantam acesso imediato ao tratamento eficaz, avaliação das necessidades familiares e apoio intensivo aos pais e aos filhos, com vistas a trabalhar a problemática antes que ela se cronifique. Faz-se mister também propiciar condições de proteção para que a criança e/ou adolescente possa ter um desenvolvimento mais próximo do saudável.

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Vulnerabilidade nas mulheres usuรกrias de droga Luisa Zamagna Maciel Saulo Gantes Tractenberg Breno Sanvicente-Vieira Luisa Fernanda Habigzang Rodrigo Grassi-Oliveira

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Introdução O envolvimento com álcool e drogas vem sendo, ao longo dos anos, identificado como um comportamento predominantemente masculino. Entretanto, recentes estudos epidemiológicos revelam crescimento substancial do consumo de substâncias psicoativas na população feminina1,2. Como consequência do aumento desse consumo, pesquisadores têm se dedicado a investigar os possíveis fatores associados à progressão e ao risco do uso de drogas entre as mulheres. Tendo em vista as distinções biológicas, psicológicas e comportamentais entre homens e mulheres, alguns estudos se propuseram a investigar os fatores de risco e vulnerabilidade que levam ao início do uso, bem como as diferenças de sexo que poderiam estar envolvidas no curso do desenvolvimento do transtorno por uso de substâncias (TUS). Sabe-se, por exemplo, que existem diferenças significativas vinculadas às razões e motivações para o primeiro uso, bem como especificidades na progressão e desenvolvimento do TUS. Além disso, a adesão ao tratamento também tem particularidades ligadas ao sexo3-8. Além dos aspectos subjacentes às diferenças entre homens e mulheres, alguns autores defendem a ideia de que o uso de drogas entre as mulheres representa um rompimento dos padrões sociais e das expectativas do papel feminino. Situações da esfera social e emocional que acompanham a dependência, como marginalização e abandono da família, são exemplos de comportamentos que não correspondem ao papel culturalmente idealizado da mulher9,10. O estigma social, desta forma, aparece como um dos possíveis motivos responsáveis por distanciar as mulheres dos serviços de saúde. O medo de julgamento e a vergonha são aspectos que fazem com que essas mulheres procurem menos auxílio especializado para tratar o TUS. Em paralelo, muitos profissionais responsáveis pelo atendimento de tal demanda possuem uma visão estereotipada em relação ao papel feminino e, por consequência, mesmo que não explicitamente, demonstram preconceito contra as usuárias de drogas2,11. A invisibilidade da população feminina com TUS coloca-as em mais vulnerabilidade e situação de agravo social e de saúde5. Estudar a mulher usuária de drogas desconsiderando as expectativas sociais implícitas no papel feminino impossibilita compreender os motivos e circunstâncias do uso de drogas. Também dificulta a construção de estratégias de saúde mais efetivas para atender essa população. Embora os estudos com mulheres usuárias de drogas ainda sejam incipientes, as evidências reforçam a importância de se pensar em um atendimento particularizado, uma vez que, atualmente, a realidade nos serviços de saúde é prioritariamente baseada em protocolos de tratamento desenvolvidos e testados em populações masculinas, negligenciando as especificidades inerentes às mulheres. Neste sentido, este capítulo tem por objetivo apresentar conceitos e fatores de risco e de vulnerabilidade específicos para a população feminina, que devem ser considerados ao pensar em uma avaliação e em um plano de tratamento especializado. Ao final deste capítulo será possível identificar: • Papel da desigualdade de gênero no cenário de álcool e outras drogas. • Fatores de risco e vulnerabilidade em mulheres usuárias de drogas. • Fatores que interferem no desenvolvimento e curso do uso de drogas. • Aspectos que dificultam a busca por serviços especializados e adesão aos tratamen-

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tos ofertados para álcool e drogas. Construção e desconstrução do papel feminino: mulheres usuárias de drogas A construção da imagem da mulher é pautada por aspectos históricos e vem sofrendo transformações ao longo dos anos. Desde a década de 70 investiga-se a aplicação de estereótipos para homens e mulheres, visando entender a construção de ambos os papéis, assim como suas distinções. Estereótipos são entendidos como características pessoais ou sociais que servem para classificar um grupo de maneira taxativa. Inicialmente, percebeu-se que atributos femininos eram menos valorizados e as mulheres eram associadas a figuras amistosas, prestativas e servis12. Uma vez consolidada a existência dos estereótipos de gênero, na década de 90 alguns estudos buscaram entender de que maneira tais estereótipos interferiam, de forma consciente ou inconsciente, na percepção das mulheres em relação às suas próprias capacidades. O papel laboral da mulher, por exemplo, era visto como inferior ao papel do homem, sendo suas tarefas desqualificadas perante aquelas correspondentes aos homens. Essa percepção fez-se presente ao longo do processo de inserção das mulheres no mercado de trabalho, reforçando a insegurança em relação ao sucesso e êxito profissional, bem como o temor da rejeição social13. Sabe-se que o ingresso da mulher no mercado de trabalho colaborou para uma luta por direitos igualitários e a aquisição de inúmeros direitos civis, políticos e sociais9. É considerado um marco na luta pelos direitos das mulheres, entre outros avanços. Em contrapartida, ainda se verificam a desigualdade salarial e a expectativa social relacionada ao papel feminino, na qual ser mulher se encontra vinculado à imagem frágil, boa mãe, cuidadora e esposa9,10,14. O uso de álcool e drogas também vem sendo atrelado à existência de estereótipos. Os indivíduos com TUS são frequentemente julgados moralmente de forma negativa. Nesse sentido, usuários de álcool e drogas, historicamente, são taxados como: “mau-caráter”, “fracos”, “sem força de vontade” e “vagabundos”. Essas características ainda permanecem presentes na sociedade e, muitas vezes, mesmo que não intencionalmente, são estendidas aos profissionais prestadores de serviços de saúde e assistência social15. Esses estereótipos foram identificados por estudo que buscou capacitar os profissionais da saúde para diagnóstico e intervenção breve no transtorno por uso de álcool (TUA)16. A presença de estereótipos mostrou-se prejudicial para o tratamento do usuário que deixa de receber intervenções adequadas ao seu problema. Por outro lado, foi identificado prejuízo também para o profissional que pode não utilizar, de maneira apropriada, o seu conhecimento. Como consequência, foi verificada menos motivação para atender esses usuários15,16. Unindo essas duas realidades – ser mulher e ser usuária de álcool e drogas – o estigma e o preconceito tornam-se ainda mais marcantes e revelam-se um fator de risco social significativo5. O uso de drogas representa uma quebra brusca do papel socialmente esperado das mulheres. A gravidade do TUS compromete tarefas consideradas inerentes ao papel feminino, sendo o abandono de filhos, comportamentos sexuais de risco e envolvimento com atos ilegais alguns dos exemplos de comportamentos desviantes do que se é esperado9,10.O não cumprimento das expectativas sociais contribui para sentimentos como vergonha, culpa e medo de serem julgadas. Além disso, esses sentimentos podem ser considerados fatores emocionais que interferem na busca por atendimento nos serviços de saúde e de assistên-

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cia social2,11. Aspectos emocionais vinculados à baixa autoconfiança, irritabilidade e tristeza estão associados à maior vulnerabilidade ao uso abusivo de substâncias por mulheres5,17-20. Mulheres, uso de drogas e fatores de risco e vulnerabilidade biopsicossociais No âmbito da saúde da mulher, explorar as particularidades relacionadas ao TUS permite que haja identificação dos fatores de risco e de vulnerabilidade. Por se tratar de uma temática abrangente e que envolve aspectos sociais, desenvolvimentais e de saúde, a presente sessão será abordada em tópicos independentes. Contudo, os tópicos não devem ser entendidos como fatores isolados, pois na prática encontram-se inter-relacionados. Início e desenvolvimento do transtorno por uso de substâncias O início de uso de drogas é motivado no indivíduo por diferentes razões. Alguns achados sugerem que os motivos que levam homens e mulheres ao primeiro contato com uma substância psicoativa podem ser distintos. Além disso, etapas sensíveis do desenvolvimento do indivíduo podem favorecer a experimentação, da mesma forma que o contexto social e familiar em que estão inseridos2-5,8. A adolescência, por exemplo, é considerada um período de vulnerabilidade, uma vez que contempla um conjunto de transformações orgânicas, físicas e psicológicas no indivíduo21. A busca de identidade e autonomia, a necessidade de aceitação pelos pares e a busca de separação emocional dos pais são características psicossociais do adolescente que podem estar associadas à experimentação de drogas em comparação às demais faixas etárias. A maioria dos quadros de TUS diagnosticados na vida adulta possui histórico de uso de drogas durante o período da adolescência22. O início do uso de álcool por mulheres é descrito em idades mais precoces. Os dados brasileiros referentes ao início de uso de substâncias em adolescentes mulheres apresentados no II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas mostraram que, no ano de 2006, 1% das adolescentes tinha experimentado álcool com idade inferior a 11 anos. Em 2012, no entanto, esse número quadriplicou. Isso demonstra início de uso de álcool cada vez mais precoce entre meninas brasileiras. Ainda nesse mesmo levantamento, observou-se que, em 2006, 7% das adolescentes entre 12 e 14 anos bebiam regularmente, enquanto em 2012 a estimativa foi de praticamente o dobro, atingindo os 13%23. Apesar do uso precoce vir sendo indicado como um dos fatores de vulnerabilidade para o TUS, percebe-se que existem também outros fatores influenciando esse início de uso. Entre algumas razões reconhecidas que podem predispor a adolescente ao primeiro uso, percebe-se forte influência das experiências amorosas. Tanto na adolescência quanto na vida adulta, o cônjuge tem sido citado como um dos principais membros da família que influenciam o início do uso de drogas de sua parceira24. Nesses casos, o companheiro normalmente já é um usuário ou possui envolvimento com tráfico de drogas. Tal característica não é observada em populações masculinas, uma vez que a família tem pouca influência para o primeiro uso, sendo o grupo de amigos um dos principais motivos que levam jovens homens a experimentar qualquer tipo de substância psicoativa6. Além dos aspectos sociais, estudos mostram que o histórico de diagnóstico psiquiátrico ou mesmo sintomas de humor e ansiedade são condições capazes de motivar o uso de drogas entre as mulheres. A motivação para o uso de drogas parece estar associada à busca

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pelo alívio do desconforto subjacente às experiências negativas, sendo também utilizada como forma de automedicação. Isso não se verifica de igual maneira entre os homens, uma vez que os fatores que motivam seu uso devem-se pela busca do reforço positivo associado aos efeitos da droga ou pela curiosidade em experimentar determinadas sensações8,17-20. O início de uso de determinada substância pode estar relacionado à sua progressão e desenvolvimento do TUS. Sugere-se que a primeira droga de uso, mesmo que não leve à dependência, pode ser considerada um potencial de risco para a experimentação de outras drogas e, consequentemente, desenvolvimento de dependência25. Tal hipótese é conhecida como “hipótese da porta de entrada” e sugere uma sequência de acontecimentos nos quais o uso de drogas como álcool e a maconha pode conduzir ao uso de outras drogas, incluindo a cocaína, crack, heroína e meta-anfetamina. Assim, o uso precoce de tabaco ou álcool, que geralmente está associada à influência de um ambiente familiar ou de grupo de amigos, aumenta a probabilidade de usar maconha e, consequentemente, segundo a hipótese da porta de entrada, passar para o uso de outras drogas como a cocaína e o crack. Embora a maioria dos estudos que investigaram essa hipótese incluíram participantes de ambos os sexos, achados específicos com amostras de mulheres sugerem que usuárias de crack possuem um comum histórico de uso de álcool e/ou maconha antecedentes ao início de uso de crack, confirmando essa hipótese24,26,27. O curso e a progressão do uso evidenciam diferenças biológicas entre mulheres e homens. Observa-se que mulheres manifestam sintomas de abstinência, tolerância e fissura em um período de tempo de uso inferior ao dos homens7,15. Em usuárias de crack, por exemplo, isso pode ser exemplificado pela diferença significativa em comparação aos usuários homens no que se refere à quantidade da droga consumida. Percebe-se que mulheres consomem maior quantidade de pedras de crack do que os homens dentro do mesmo período de uso3, o que sugere a maior necessidade em usar a droga possivelmente em resposta aos sintomas de abstinência experienciados. Além disso, do ponto de vista neurobiológico, mulheres parecem ter mais reatividade cerebral quando estimuladas pelo uso de drogas em comparação a homens28,29. A influência dos hormônios, como a progesterona e o estrógeno, bem como os respectivos níveis desses hormônios nas diferentes fases do ciclo menstrual, parecem desempenhar papel importante tanto para uma diferente ativação cerebral, quanto para a intensidade dos sintomas decorrentes do uso da droga28,30. Dreher et al.31 investigaram essa relação, demonstrando que sintomas de fissura e maiores ativações de regiões cerebrais do sistema de recompensa (área fundamental para a motivação ao uso de drogas) estavam associados à fase folicular do ciclo menstrual feminino. O fato de a experiência com a droga ter papel distinto para homens e mulheres faz com que seja necessário entender o curso da dependência como um aspecto que envolve desde as motivações iniciais até as questões envolvidas na vulnerabilidade para a progressão e desenvolvimento da dependência. Compreender essas questões pode possibilitar a construção de propostas preventivas na área da saúde5,8. Experiências adversas de vida ao longo do desenvolvimento Situações potencialmente estressoras e traumáticas que ocorrem ao longo do desenvolvimento, principalmente na infância e adolescência, podem interferir de forma significativa na saúde dos indivíduos e ter consequências duradouras e de longo prazo. Maus-

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tratos (MT) na infância referem-se a situações na qual a criança ou adolescente é exposto de forma repetida ou continuada a eventos que incluem situações de abuso sexual, físico, emocional e negligência de cuidados básicos de saúde, higiene e afeto32. Observa-se crescente número de estudos que reforçam os achados de que tais situações poderiam estar associadas ao aumento da vulnerabilidade, bem como do risco de desenvolver condições psiquiátricas, sendo o TUS um dos transtornos mais prevalentes32-34. Figura 6: Impacto de experiências traumáticas e idade de início do uso de cocaína e crack (A) Observa-se a ocorrência de algum trauma no ínterim do primeiro uso de maconha e o primeiro uso de cocaína, indicando que um desfecho da experiência traumática pode ser a busca por cocaína e posteriormente pelo crack. (B) Comparação entre grupos de usuários de cocaína-crack com trauma precoce e trauma na idade adulta quanto à idade do primeiro uso de diferentes drogas. *: p<0,05.

A

B *

*

Álcool Maconha Trauma Cocaína Crack

Álcool Maconha

Cocaína Crack

Adaptado de Tractenberg27.

No que diz respeito ao prognóstico, alguns estudos têm revelado que mulheres expostas aos MT apresentam elevados níveis de ansiedade, depressão e fissura no processo de desintoxicação quando comparadas às mulheres sem exposição aos MT33,40. Nesse sentido, é possível observar que mulheres usuárias de drogas com histórico de situações adversas na infância manifestam sintomas psiquiátricos mais intensos que mulheres usuárias sem o mesmo histórico. A vitimização também implica prognóstico clínico mais reservado33. Não somente diferenciações no curso e prognóstico do tratamento têm sido identificadas em mulheres que passaram por situações adversas, alguns estudos mostram alterações relacionadas à visão de si e de mundo. Mulheres vítimas de MT têm baixo autoconceito, sentimentos de desvalia e visão negativa em relação ao mundo e sua perspectiva32,41. Além disso, essas mulheres estão mais propensas a mostrar diminuída expectativa de que receberão o apoio necessário, bem como acentuada dificuldade de regulação emocional frente a situações estressoras42. Além do histórico de MT na infância presente em muitas mulheres usuárias de drogas, identificam-se outras situações de violência ao longo do desenvolvimento. Estudos ressaltam que mulheres usuárias de álcool e outras drogas ilícitas, tais como maconha, cocaína e crack, possuem histórico de revitimização na vida adulta, vivenciando situações de violência conjugal43,44. Uma das hipóteses para a revitimização é a dificuldade das mulheres em reconhecerem as situações de violência como tal, devido à “normalização” que ocorre quando se vive recorrentemente situações dessa ordem45.

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A reexposição a situações de violência acentua a baixa autoestima dessas mulheres, sentindo-se menos valorizadas e vulneráveis. Aliado a isso, o sentimento de vergonha presente em usuárias de drogas contribui para a subnotificação das situações de violência sofridas na vida adulta na rua ou no contexto familiar. Em estudo qualitativo que buscou avaliar a percepção de mulheres em tratamento para TUS sobre a violência, identificou-se que para essas mulheres a violência que sofriam estava associada à sua condição socioeconômica e com a sua maior “disponibilidade” sexual quando intoxicadas pelo uso de crack46. No que diz respeito à violência sofrida na rua, estudos com usuárias de crack mostram que mulheres que praticam a prostituição como forma de sustentar o vício sofrem ameaças e situações de violência física e sexual com mais frequência quando comparadas aos homens47,48. Outros achados reforçam a importância de investigações que relacionem tais aspectos. Por exemplo, mulheres que sofrem violência conjugal têm risco dobrado para o abuso de álcool e cocaína comparada com mulheres que não foram expostas a esse tipo de violência49,50. O uso de álcool e drogas pode surgir como uma tentativa de alívio ao sofrimento advindo do cenário de violência51. Percebe-se que a violência é um fator presente na realidade de mulheres usuárias de drogas. Entende-se que essas questões devem ser contempladas no atendimento e plano de tratamento individualizado, pois potencializam o risco para a recaída do uso de substâncias. Terapias integrativas desenvolvidas para abarcar concomitantemente os problemas relacionados ao uso de substância e os sintomas pós-traumáticos, bem como as alterações cognitivas e de regulação emocional subjacentes à coocorrência de ambos os diagnósticos, constituem uma proposta promissora52. Aspectos socioeconômicos Na vida adulta, as dificuldades econômicas e sociais, como o desemprego e falta de recursos financeiros, também são fatores ligados ao início de uso de drogas. Sabe-se que mulheres tendem a fazer uso de drogas quando confrontadas com cenários de isolamento social, pressão profissional ou familiar. Identifica-se que as condições de vulnerabilidade social relacionadas à pobreza, exploração e aspectos culturais interferem de maneira significativa na dinâmica familiar53. Nesse panorama, percebe-se aumento de famílias que são chefiadas por mulheres. Essa mudança na estrutura da família tem consequências, uma vez que essa situação pode se configurar como uma vulnerabilidade econômica. A mulher se torna provedora, além de assumir funções domésticas, cuidado com os filhos e engajamento em trabalhos mal remunerados e informais, gerando dificuldades para garantir o sustento da família e sobrecarga de responsabilidades. Significativa parcela dessas mulheres possui histórias de gravidez precoce, instabilidade familiar, uso de drogas e abandono do cônjuge. Algumas também relatam histórico de violência conjugal53. Apesar de o uso de drogas não estar limitado a determinada classe socioeconômica, reconhece-se significativa parcela de indivíduos com TUS entre populações de baixa renda. Sugere-se que ambientes desfavoráveis e com poucas condições e oportunidades para o sustento podem levar o indivíduo a desenvolver estratégias de enfrentamento inadequadas para lidar com as adversidades e, por consequência, tornar-se mais suscetível ao desenvolvimento de TUS54. Entre as diferentes substâncias psicoativas, o consumo de crack está relacionado a uma série de condições socioeconômicas que favorecem a manutenção do uso. Por ser um

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derivado da cocaína, possuir alto potencial de dependência e ter baixo custo e fácil acesso, o crack ganhou mais visibilidade e destaque no Brasil55. Por essa razão, estudos nacionais têm dado mais ênfase aos aspectos socioeconômicos relacionados ao uso de crack56,57. Indicadores socioeconômicos revelam distinções entre mulheres que fazem uso de crack em comparação a homens, como também em relação a mulheres que fazem uso de cocaína. Por exemplo, foi identificado que a proporção de mulheres usuárias de crack que vivem em situação de rua é maior em comparação a homens (51,61% e 27,67%, respectivamente); a média de escolaridade é baixa, 50% das usuárias de cocaína possuem ensino médio completo, porém 76,6% das usuárias de crack possuem apenas o ensino fundamental; 74,9% não têm vínculo empregatício devido à incompatibilidade do uso de crack com as exigências das atividades laborais, ao passo que 25% se encontram na mesma situação; o envolvimento em atividades ilegais como forma de sustento é prevalente, sendo a prostituição e os serviços de entrega de droga (aviãozinho) as atividades mais recorrentes entre as usuárias de crack24,58. No que diz respeito à constituição familiar, grande parte das mulheres usuárias de drogas possui histórico de saída da casa dos pais ainda jovens. Estudos que buscaram avaliar a situação familiar anterior ao uso de drogas sugerem vínculos familiares complicados. Evidencia-se histórico de desentendimentos com a família – anterior ou posterior ao início de uso de drogas – bem como situações de maus-tratos10,24,27. O casamento surge em idade prematura, assim como a primeira gravidez. A justificativa do casamento deve-se pela vontade de sair de casa ainda na adolescência. Após a dependência de crack, mulheres tendem a engravidar por manter relações sexuais com diferentes parceiros e com prática não segura, isto é, sem preservativo. Os filhos, em geral, são provenientes de pais diferentes e, em muitas situações, desconhecidos pelas próprias mulheres24. Tendo em vista que os estudos exibem um perfil de usuária de crack caracterizado por fatores socioeconômicos específicos, é possível perceber que essas condições contribuem para mais vulnerabilidade dessa usuária no que diz respeito ao uso e à manutenção do consumo de crack. O contexto ambiental torna-se, portanto, um facilitador para o acesso e uso dessa substância. Comorbidades clínicas e psiquiátricas O uso de drogas é considerado um comportamento com consequências negativas para a saúde. Diversas evidências mostram complicações clínicas e psiquiátricas decorrentes do uso4,5. Estudos com usuários internados em unidades de desintoxicação indicam que mulheres manifestam mais comorbidades psiquiátricas quando comparadas aos homens. Mulheres com TUS são mais propensas a apresentar critérios diagnósticos para transtornos de humor e de ansiedade, transtornos alimentares, transtornos relacionados a trauma e estresse, além de transtorno de personalidade borderline59,60. Esses transtornos psiquiátricos também parecem ter associação com o início de uso de drogas, uma vez que são considerados antecedentes ao desenvolvimento de TUS61, embora essa relação causal não possa ser afirmada5,62. Estudo demonstrou que mulheres com episódio depressivo maior (EPM) têm risco sete vezes maior de desenvolver TUA no período de dois anos quando comparadas com mulheres sem EPM. A mesma relação não foi evidenciada nos participantes homens60. Outros achados revelaram que entre 30% e 50% das mulheres usuárias de drogas relatavam histórico de eventos traumáticos e/ou sintomas de transtorno do estresse pós-traumático

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(TEPT)63,64. Prevalências superiores são encontradas quando avaliados apenas sintomas de humor e ansiedade sem necessariamente um diagnóstico associado27. Além disso, esses sintomas refletem mais impacto global de saúde em mulheres em comparação a homens65. A escolha do tipo de droga para lidar com sintomas psiquiátricos também é um aspecto que deve ser considerado. A escolha por determinada droga quando o indivíduo é acometido por comorbidades psiquiátricas pode ter associação com seu mecanismo de ação farmacológico66, indicando a hipótese de automedicação. Tal hipótese sugere que a dependência por determinada substância pode ser motivada pela tentativa de aliviar o sofrimento subjacente aos sintomas psiquiátricos experienciados. Não somente o uso de drogas ilícitas é identificado quando se refere à hipótese da automedicação. No Brasil, o consumo de medicamentos entre mulheres, principalmente estimulantes, benzodiazepínicos e analgésicos, é superior em comparação a homens, sendo seu uso justificado como uma tentativa de solucionar problemas de ordem física e mental que afetariam a saúde da mulher14. Ainda, algumas condições clínicas crônicas, como doenças cardiovasculares, respiratórias e diabetes, entre outras, têm sido associadas ao uso crônico de drogas32. Mulheres usuárias de tabaco, por exemplo, apresentam prejuízos acentuados no sistema imunológico que podem predispor o aparecimento de câncer de pulmão, ovário, mama, colo do útero e bexiga quando comparadas a homens fumantes67. Os danos na saúde global tendem a aparecer mais rapidamente entre as mulheres. Em usuárias de álcool têm sido identificadas taxas mais elevadas de cirrose hepática, hipertensão arterial, anemia, desnutrição, úlceras gastrintestinais e cardiopatias em comparação a homens que ingerem álcool em excesso4,10. Outras drogas como cocaína, maconha, tranquilizantes e estimulantes também revelam efeitos clinicamente mais prejudiciais em mulheres4. Como o uso de drogas tem relação direta com mais exposição a comportamentos de risco, como sexo sem proteção e prostituição, observa-se ainda uma relação entre tais comportamentos e o surgimento de doenças infeccionas como HIV e hepatite45,46. Portanto, as evidências indicam que a mulher com TUS não somente se encontra em vulnerabilidade para a manifestação de transtornos psiquiátricos adjacentes, como também apresenta efeitos deletérios sobre sua condição de saúde global. Ao pensar em uma avaliação geral da mulher usuária de droga, esses aspectos devem ser contemplados, uma vez que são agravantes que devem receber acompanhamento e tratamento adequado. Prostituição e HIV Quando se fala em comportamentos de risco deve-se considerar o uso de drogas, por si só, como um comportamento dessa natureza. Mesmo que não leve a quadro clínico de dependência, o usuário encontra-se exposto a diversas situações de risco em potencial, incluindo envolvimento com tráfico, criminalidade, situações de vitimização, prostituição e risco de contrair doenças sexualmente transmissíveis (DSTs). Sabe-se que o uso de substância é capaz de alterar a capacidade do indivíduo para avaliar o risco frente a uma situação. Para tal avaliação, é necessário o funcionamento íntegro de determinadas funções cognitivas essenciais para a inibição de comportamentos, percepção e processamento da informação e tomada de decisão que podem estar prejudicadas pelo efeito das substâncias68. As mulheres usuárias de drogas, diferentemente dos homens, possuem mais propensão a comportamentos sexuais de risco. Tanto o sexo sem proteção quanto os comportamentos

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promíscuos estão presentes entre as mulheres em igual ou maior grau em comparação aos homens usuários. Somado a isso, a prostituição é vista pelas usuárias como uma forma de sustento para a dependência por drogas e pode potencializar situações de risco10,47. Em estudo realizado em São Paulo, 75 mulheres usuárias de crack foram entrevistadas e os resultados revelaram que a maioria delas não se recordava de quando havia iniciado a prática da prostituição. No entanto, recordavam que iniciaram com o objetivo de sustentar o uso do crack. Para manter o consumo diário, as mulheres relataram um a cinco programas, em média, por dia. A prostituição é percebida por muitas usuárias como um meio mais seguro (do ponto de vista legal) e rentável para garantir seu sustento quando comparada a alternativas ilegais, tais como assaltos e furtos24. Os comportamentos sexuais de risco explicam a associação entre consumo de drogas como o crack e a infecção pelo HIV. Na prática de prostituição, não há uma conscientização sobre a necessidade de uso de preservativos para prevenir a contaminação de DSTs, em especial o HIV24,58. O principal argumento para a não utilização de preservativos após a dependência do crack é o maior valor cobrado pelo programa24. É possível observar que o número de parceiros, a baixa escolaridade e o transtorno por uso de crack constituem-se como fatores de risco para a infecção pelo HIV. Em relação à saúde, por exemplo, a prevalência do HIV em usuário de crack é de 5%, o que representa oito vezes mais do que é encontrado na população geral, sendo uma das principais complicações relacionadas às altas taxas de mortalidade nessa população24. Adesão ao tratamento e desigualdade de gênero Recentemente percebe-se mais conscientização dos profissionais e pesquisadores da área da saúde em relação à importância de se considerar questões de gênero nos planos para tratamento de saúde. O reconhecimento das diferenças biopsicossociais entre homens e mulheres e de suas implicações sobre a prevalência, comorbidades e tratamento de usuários de drogas fez com que o número de estudos com mulheres usuárias aumentasse nos últimos 15 anos69. Apesar disso, ainda são encontradas dificuldades na adesão e manutenção do tratamento de usuárias com TUS, principalmente em programas de tratamento especializados para atender tais populações. Sabe-se que mulheres possuem menos probabilidade de ingressarem em programas de tratamento para TUS em comparação a homens69. Em vez de ingressarem em serviços especializados, o que se percebe é uma tendência entre essas mulheres a buscar tratamentos voltados para a saúde mental ou cuidados clínicos primários, salientando a importância de investigações sobre histórico pregresso e atual de uso de substância nesses serviços70. Uma das razões que podem influenciar a reduzida adesão entre mulheres com TUS em unidades de tratamento específicas refere às lacunas existentes na saúde pública nacional. As estratégias de intervenção planejadas especificamente para a mulher usuária de drogas, bem como políticas públicas voltadas para o atendimento e melhoria do bem-estar da mulher, ainda são incipientes. As usuárias que desejam realizar um tratamento na rede pública, por exemplo, precisam enfrentar vários desafios durante o processo. Entre os desafios, pode-se destacar que não há núcleos de atendimento exclusivamente para a população feminina4, o que faz com que essas usuárias sejam obrigadas a compartilhar o espaço com usuários homens (sendo muitos deles responsáveis por expor essas mulheres

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à violência física e sexual). Além disso, o atendimento prestado pelos profissionais muitas vezes revela déficits de capacitação71. Identifica-se também que o estigma social por parte dos profissionais é um fator que colabora para a desistência dessas mulheres à adesão ao tratamento, bem como dificulta o vínculo dessas mulheres com os serviços de saúde9. Os fatores de risco e vulnerabilidade apresentados ao longo deste capítulo contribuem para a baixa taxa de ingresso em unidades de tratamentos. Fatores socioculturais (estigma social, falta de apoio do companheiro e da família), familiares (cuidados com os filhos), gravidez, aspectos legais (problemas em relação à guarda dos filhos) e as complexidades frente a vários diagnósticos psiquiátricos acabam por afastar as mulheres de tratamentos adequados para o TUS5,58. Não incluir tais aspectos secundários ao TUS interfere na continuidade do tratamento. Assim, pesquisas que visam promover alternativas para proteger a usuária de drogas, compreendendo o fenômeno de vulnerabilidade psicossocial e de gênero, podem contribuir para um planejamento mais preciso de intervenções em saúde eficazes para essa população. Conclusão Este capítulo teve como objetivo explicitar os avanços do conhecimento científico sobre a dependência química e o cenário desse transtorno aplicado à população feminina. Percebe-se que ser mulher, por si só, já pode ser considerado um fator de risco e de vulnerabilidade para o início de uso e progressão para a dependência de drogas. Os aspectos que contribuem para isso são inúmeros, desde os sociais e culturais até diferenças biológicas e psicológicas inerentes ao sexo. Entender os TUS na população feminina ainda se mostra como um desafio para os estudiosos da área, pois se apresenta como um campo de investigação em potencial. Estudos voltados para a questão de gênero possibilitam melhor compreensão desse fenômeno e, mais que isso, permitem o desenvolvimento de estratégias de tratamento eficazes para atender a população feminina. O impacto da lacuna de conhecimento em relação ao tratamento de usuárias de drogas é percebido diretamente nas dificuldades em lidar com tal população tanto no que se refere ao tratamento quanto à manutenção da abstinência. Compreender os fatores de risco e vulnerabilidade que expõem as mulheres ao uso drogas torna-se fundamental. É preciso avançar o conhecimento sobre esses fatores para desfechos clínicos, bem como para o prognóstico do transtorno e adesão ao tratamento. Diversos aspectos foram abordados ao longo deste capítulo, elucidando uma fragilidade psicossocial relacionada ao sexo feminino. Por fim, é importante ressaltar que existe um número limitado de estudos nacionais que contemplam mulheres e TUS. A literatura internacional possibilita mais acesso a informações relacionadas às especificidades relacionadas ao sexo, principalmente nos aspectos biológicos e psicológicos. Nesse sentido, mesmo que haja respaldo da comunidade cientifica internacional, é importante fomentar estudos nacionais capazes de proporcionar um panorama mais fidedigno sobre os fatores de risco e vulnerabilidade de nosso contexto sociocultural, bem como a realidade de tratamento e melhorias necessárias para essa população. Referências 1. UNODC. World Drug Report. Vienna: United Nations Office on Drugs and Crime,

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Gestação e vulnerabilidade Monica Zilberman Cynthia Wolle

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Introdução O consumo excessivo de álcool e de outras substâncias tornou-se um problema global de saúde pública. Ele está relacionado a diversas doenças, lesões e envolvimento em situações de violência, como agressões, violência doméstica e acidentes automobilísticos. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), aproximadamente 3,3 milhões de pessoas morrem todo ano devido a problemas relacionados ao álcool. Além disso, o consumo prejudicial de bebidas alcoólicas está relacionado a mais de 200 doenças1. Historicamente, o consumo excessivo de álcool e de outras substâncias é considerado um hábito masculino, sendo incompatível com o papel doméstico tradicional da mulher. Pode-se notar significativa transformação dos papéis femininos na sociedade a partir da Segunda Guerra Mundial, quando houve expressiva entrada das mulheres no mercado de trabalho. Além disso, os movimentos feministas subsequentes trouxeram reivindicações pelos mesmos direitos e escolhas entre homens e mulheres, o que favoreceu a adoção de novos comportamentos femininos, como o de frequentar bares, aumentando as oportunidades de beber. Consequentemente, houve aumento na prevalência de mulheres com problemas relacionados ao uso do álcool e de outras substâncias, como o tabaco2. Os primeiros estudos sobre os transtornos relacionados ao consumo de bebidas alcoólicas e outras substâncias foram realizados em amostras compostas prioritariamente de homens, o que prejudicou a compreensão do uso abusivo no universo feminino. Contudo, nas últimas décadas foram publicadas pesquisas abordando as taxas de incidência e de prevalência do consumo de substâncias entre as mulheres, além dos fatores físicos e psíquicos específicos dessa população. Infelizmente, os resultados das pesquisas têm sido preocupantes. Nota-se aumento do consumo de bebidas e outras substâncias entre as mulheres, levando à convergência entre os padrões de consumo entre os sexos, principalmente entre os adolescentes3. Este artigo visa revisar os principais fatores associados aos transtornos relacionados ao uso de substâncias entre as mulheres, incluindo os aspectos biológicos, psicossociais e de intervenção, além das complicações na gestação e consequências ao feto. Fatores Biológicos Quando se comparam homens e mulheres no que se refere ao consumo de substâncias, notam-se várias diferenças. Em relação ao álcool, essas diferenças são explicadas, em parte, por fatores biológicos. As mulheres apresentam menos volume de água no corpo, levando à maior concentração de álcool no sangue. Além disso, elas possuem menos quantidade da enzima metabolizadora do álcool (álcool desidrogenase), contribuindo para o metabolismo mais lento da bebida e efeitos mais intensos4. A concentração do álcool no sangue também varia de maneira mais instável nas mulheres5. Portanto, mesmo ingerindo a mesma quantidade de bebida, as mulheres serão mais vulneráveis aos efeitos do álcool quando comparadas aos homens, com mais probabilidade de elas sofrerem reações desagradáveis e colaterais com a ingestão da mesma dose. Substâncias lipossolúveis, como o diazepam, também têm meia-vida mais duradoura nas mulheres6. Pode-se encontrar na literatura o “efeito telescópio”, fenômeno que descreve a tendência feminina a desenvolver a dependência do álcool de forma mais rápida e progressiva do que os homens, mesmo que elas comecem a beber em idade mais avançada do que eles7.

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Além da dependência propriamente dita, a maior sensibilidade ao álcool pode acarretar o desenvolvimento de doenças relacionadas ao uso abusivo (doenças cardíacas, gástricas, hepáticas, entre outras) de forma mais rápida nas mulheres, com mais morbidade e mortalidade do que as dos homens8. Em relação ao tabaco e outros estimulantes, as mulheres também desenvolvem a dependência de maneira mais rápida do que os homens. Alguns autores sugeriram haver relação entre os níveis de cortisol e os sintomas depressivos em usuários de cocaína e heroína, sendo essa associação mais pronunciada em mulheres, já que elas exibem maior concentração de cortisol9. A depressão é o transtorno afetivo mais encontrado nas mulheres usuárias. Também há evidências de efeitos de gênero na ação da metanfetamina, sendo as mulheres mais suscetíveis aos efeitos da substância na atividade locomotora. Essa diferença possivelmente ocorre devido à função receptora de dopamina, que se manifesta de forma distinta em homens e mulheres10. Fatores Psicossociais Os fatores psicológicos estão fortemente associados ao consumo de álcool e drogas. A preocupação com a imagem e os sentimentos de ansiedade e timidez são alguns dos principais fatores relatados pelas mulheres usuárias. Entre as adolescentes, pode-se enfatizar o papel dos padrões de beleza impostos pela sociedade, contrastando com o momento de mudanças no corpo e de insegurança pelo quais elas passam. A preocupação com o peso induz ao aumento do uso de tabaco e de pílulas para emagrecer. O próprio medo de voltar a engordar pode ser um entrave à interrupção do uso. Os meninos, por sua vez, tendem a iniciar o uso por influência dos amigos e pelo sentimento de curiosidade11. A família também exerce papel importante em relação ao uso de substâncias entre os adolescentes. Famílias disfuncionais, com problemas de comunicação e de imposição de regras e limites favorecem o consumo de substâncias, enquanto as famílias mais estruturadas e afetivas geralmente são um fator de proteção contra o uso, principalmente entre as meninas; elas tendem a buscar nas famílias o apoio emocional diante de suas dificuldades pessoais, enquanto os meninos geralmente buscam apoio em seus pares12. Já as mulheres adultas podem aumentar o consumo de substâncias por influência do parceiro amoroso, principalmente quando se trata de usuário de substâncias. O apoio do parceiro e da família é preponderante ao sucesso do tratamento, assim como a sua oposição pode levar a mulher a desistir do tratamento13. As meninas também tendem a se automonitorar mais quando bebem, com menos envolvimento em situações de violência, como brigas e atos de vandalismo, comparadas aos meninos. Além disso, elas geralmente expressam mais sentimentos de vergonha, culpa e depressão do que os seus correspondentes do sexo masculino após beber11. A vitimização é relatada com mais frequência entre as mulheres e está intimamente relacionada ao consumo de substâncias entre elas. No Brasil, foi demonstrado que há mais incidência de abuso emocional, físico e sexual nas mulheres dependentes de álcool. De acordo com os autores, a dependência de drogas em geral está mais associada ao abuso sexual do que à dependência de álcool14. Além disso, mulheres sob o efeito de álcool e/ ou substâncias muitas vezes são vistas como promíscuas, tornando-se mais vulneráveis ao abuso sexual e situações de violência, o que evidencia o julgamento moral ainda existente em relação ao consumo de álcool e outras drogas. Quando bebem, as mulheres tendem ao comportamento autoagressivo e a tentativas de suicídio, contrastando com a maior

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propensão ao comportamento agressivo e altas taxas de homicídios observadas entre os homens11. Em relação aos idosos, as mudanças corporais, tornando-os mais vulneráveis a fraturas e quedas, e a “síndrome do ninho vazio” podem aumentar os quadros de depressão e, consequentemente, o aumento do consumo de álcool e do abuso de medicações (benzodiazepínicos), principalmente entre as mulheres15. Em países latinos como o Brasil, Peru, México e Colômbia, o uso de álcool está significantemente associado à relação sexual sem proteção. No Brasil, homens e mulheres exibem taxas semelhantes de relação sexual sem proteção quando estão sob o efeito do álcool. Entre as adolescentes brasileiras, podem-se notar associações significantes entre o uso de álcool e gravidez, além de mais probabilidade de contrair DSTs16. Em relação às comorbidades psiquiátricas, as mulheres usuárias de substâncias relatam taxas mais altas de transtornos do humor (por exemplo, mania e depressão), transtornos de ansiedade (por exemplo, fobias e transtorno do estresse pós-traumático) e transtornos alimentares, além de uso abusivo de tranquilizantes4,5. Mulheres usuárias de cocaína tendem a ter mais problemas psicológicos (e físicos) do que os homens17. Elas geralmente apresentam mais reatividade subjetiva e maiores escalas de estresse, nervosismo e dor do que homens usuários de cocaína, sugerindo possível especificidade de sexo quanto à reatividade de estresse17. O uso de cocaína foi identificado como um dos principais fatores relacionados ao início da prostituição18. Tanto as meninas como as mulheres estão mais propensas a ter transtornos psiquiátricos primários com dependência de substâncias secundária, em oposição à tendência masculina a apresentar dependência de substâncias como transtorno psiquiátrico primário4. As situações traumáticas também podem desencadear o consumo abusivo de substâncias entre as mulheres, eventos esses que podem envolver violência sofrida, separação, perda de filhos ou mesmo a sua saída de casa, perda de emprego, entre outros que envolvam sofrimento emocional exacerbado13. Consequências à saúde O uso abusivo de álcool e de outras drogas pode trazer consequências nocivas à saúde das mulheres. Conforme descrito anteriormente, as mulheres usuárias de álcool estão em alto risco de desenvolver doenças cardiovasculares, hepáticas, gástricas, cognitivas e oncológicas. Com o comprometimento do fígado, aumenta a conversão de androstenodiona em testosterona, elevando seus níveis plasmáticos. As funções reprodutivas e sexuais ficam mais prejudicadas, com ausência da ovulação, diminuição dos ovários e infertilidade, além de diminuição na intensidade do orgasmo2. As mulheres usuárias de tabaco têm mais riscos de danos ao sistema imunológico, doenças cardiovasculares e câncer. A nicotina também pode interferir no ciclo menstrual e na produção de hormônios7. O uso de cocaína e de crack foi relacionado a alterações nos hormônios femininos, no ciclo menstrual e na fertilidade. As mulheres usuárias, em sua maioria, queixam-se de dores de cabeça, enquanto os homens usuários costumam relatar paranoia e agressividade7. Em relação ao uso de esteroides19, geralmente observado em adolescentes, os efeitos são diferentes entre os sexos. Mulheres tendem ao engrossamento da voz, irregularidade

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menstrual e aumento do clitóris, sendo esses efeitos irreversíveis, mesmo com o cessar do uso. Já nos homens, os efeitos fisiológicos compreendem a diminuição da produção de esperma, a atrofia testicular e o aumento do busto. A saúde emocional das mulheres usuárias frequentemente é prejudicada, pois elas podem perder a guarda dos filhos e sofrer rejeição dos familiares e amigos. A busca pelo tratamento se torna mais difícil, considerando o preconceito ainda bastante evidente em relação a elas13. Gestantes O consumo de álcool e de outras substâncias na gestação traz malefícios tanto à mulher gestante como ao feto. As substâncias mais consumidas no Brasil, como álcool, tabaco, maconha e cocaína, têm alto potencial de passagem pela barreira placentária, atingindo o feto em níveis séricos semelhantes aos da mãe. Além de prejuízos no desenvolvimento intrauterino e perinatal, a mãe também sofre danos decorrentes do uso abusivo de substâncias, como aumento da pressão arterial, alterações no comportamento e no humor e prejuízo na produção do leite materno20. Os dados epidemiológicos sobre o consumo durante a gravidez são mais difíceis de serem coletados, uma vez que a mulher geralmente omite as informações por vergonha de usar algo proibido ou medo das consequências legais decorrentes do uso. A falta desses estudos prejudica a elaboração de estratégias efetivas de prevenção e tratamento. Um dos fatores de risco mais importantes é o status socioeconômico; as mulheres que vivem em contextos mais pobres, com falta de recursos e acesso mais fácil às drogas são mais propensas a usar substâncias durante a gravidez. A chance de recaída após o nascimento é grande e pode prejudicar o vínculo entre a mãe e o bebê. Entre as substâncias mais consumidas durante o período gestacional, o tabaco e o álcool são as mais relatadas21. Tabaco O consumo de tabaco durante a gestação aumenta o risco de nascimento prematuro, retardo no crescimento, aborto espontâneo, síndrome da morte súbita do recém-nascido, além de complicações respiratórias na criança após o seu nascimento e déficit intelectual e de atenção. A nicotina possui efeitos cardiovasculares e vasoativos que interferem na liberação de oxigênio no tecido fetal, prejudicando o feto. Deve-se lembrar que o fumo passivo também prejudica a mãe e o recém-nascido, evidenciando a importância de se orientar tanto a gestante como seus familiares22. Álcool Em relação ao álcool, não há consenso sobre qual o nível seguro para ingestão de bebidas durante a gestação. Contudo, há relatos de prejuízos ao feto mesmo com o consumo baixo. Algumas vezes, a mulher ainda não sabe que está grávida nas primeiras semanas, conferindo mais riscos à criança devido ao consumo mais elevado. Mulheres dependentes tendem a se manter abstinentes no início da gravidez, mas com recaídas no evoluir da gestação22. Os efeitos danosos ao recém-nascido incluem peso baixo ao nascimento, retardo do crescimento intrauterino, prematuridade e aborto espontâneo23, além de prejuízo cognitivo.

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A principal consequência adversa do consumo de álcool durante a gestação é o transtorno do espectro alcoólico fetal, condição clínica que abrange a síndrome alcoólica fetal (SAF), a SAF parcial, transtornos do neurodesenvolvimento e defeitos congênitos relacionados ao álcool. A SAF é caracterizada por: • Retardo no crescimento tanto no útero como após o nascimento; • características físicas típicas, incluindo fissura palpebral curta, prega epicântica, nariz curto, microcefalia, lábio superior fino, entre outros; e • alterações no sistema nervoso central, com deficiência intelectual, retardo no desenvolvimento neuropsicomotor e comportamento irritadiço na primeira infância, prejudicando a amamentação e o vínculo entre a mãe e o recém-nascido24. As pessoas com SAF podem apresentar prejuízo nas áreas do controle emocional, coordenação, desempenho acadêmico, socialização e manutenção do emprego. Além disso, elas geralmente têm dificuldade em tomar decisões acertadas, repetem os mesmos erros, confiam nas pessoas erradas e não entendem as consequências dos seus atos25. Além da quantidade, da frequência e do estágio da gestação em que a mulher bebe, podem-se citar outros fatores de risco que influenciam a forma como a SAF irá afetar as crianças: o status socioeconômico baixo e a nutrição insuficiente, viver em cultura na qual o consumo de álcool em binge é comum e aceito, o cuidado pré-natal inadequado, o isolamento social e a exposição a altos níveis de estresse26. Maconha No tocante à maconha, há relatos envolvendo principalmente prejuízos cerebrais ao feto, levando a déficit cognitivo, transtornos de conduta e distúrbios do sono. Já a cocaína, pelo seu alto potencial de transpor a barreira placentária, pode trazer efeitos adversos à mãe e ao recém-nascido. A gestante pode sofrer crises hipertensivas, aumentando o risco de pré-eclâmpsia. Também pode haver parto prematuro, aborto espontâneo e retardo no crescimento intrauterino. O uso de algumas substâncias, como a cocaína e os opioides, pode levar à síndrome de abstinência no recém-nascido durante os primeiros dias de vida, caracterizada por dificuldade de amamentação, problemas respiratórios, peso baixo ao nascimento, irritabilidade, hipertonia e óbito22,27. Intervenção Quanto mais cedo forem detectados os problemas relacionados ao consumo de substâncias, melhores serão as chances de bons resultados. Infelizmente, até hoje esse problema ainda permanece subdiagnosticado entre as mulheres. Apesar de a busca pelos centros de tratamento ter começado a partir da segunda metade do século XX, até hoje as mulheres usuárias de drogas buscam menos o atendimento especializado do que os homens; essas dificuldades envolvem desde o preconceito social e o sentimento de vergonha e de culpa até as dificuldades de não ter com quem deixar os filhos e a falta de recursos financeiros2. Além disso, muitas mulheres acabam recorrendo ao atendimento de saúde mais generalizado e sendo atendidas por profissionais de saúde pouco preparados em relação ao consumo de substâncias, deixando o problema subdiagnosticado7.

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A detecção das diferenças entre os sexos em relação ao uso de substâncias pode melhorar a eficácia do tratamento. Alguns autores sugerem a criação de serviços especializados para as mulheres usuárias, considerando as diferenças na etiologia e no curso da dependência. Além disso, nos grupos de tratamento, detectou-se que os homens priorizam os assuntos legais e empregatícios, enquanto as mulheres priorizam os assuntos familiares e de saúde7,13. Preditores do sucesso do tratamento Há elementos que possivelmente estão ligados à falha ou ao sucesso do tratamento: gravidade do caso; motivação do paciente e apoio que ele recebe; qualidade do corpo clínico e programa do tratamento. No caso das mulheres, algumas barreiras prejudicam o sucesso do tratamento, contribuindo para as elevadas taxas de abandono do tratamento: fatores sociodemográficos (pobreza e idade mais nova), gravidade do uso e implicações legais severas e pior funcionamento psicológico. Por outro lado, as mulheres que recebem apoio da família e do seu parceiro amoroso tendem a mais adesão e ao sucesso do tratamento13. Profissionais do sexo feminino frequentemente são mais bem aceitas entre as mulheres usuárias, que se sentem mais confiantes e as recebem como um modelo positivo para a internalização de novos papéis. As adolescentes podem se beneficiar de tratamentos que promovam o envolvimento positivo dos pais e a integração com atividades das quais elas participem, como na escola e os esportes, e que reconheçam a importância das relações com os pares. O apoio dos amigos e dos familiares é fundamental para o sucesso do tratamento e os serviços de apoio e orientação à família são essenciais. O questionário Tweak para avaliação do uso de álcool e outras substâncias em mulheres A investigação sobre o uso de álcool e de outras substâncias é fundamental para que esse problema seja detectado o quanto antes. Uma ferramenta simples, mas extremamente útil, é o questionário TWEAK (acrônimo de tolerance, worry, eye-opener, amnésia e cut-down)28, composto de cinco questões, sendo uma quantitativa e as demais com resposta do tipo sim/não. O Quadro 1 ilustra as questões e método de pontuação. Quando o entrevistado atinge dois ou mais pontos, ele é considerado possível de ter problemas relacionados ao consumo de álcool.

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Quadro 1: Ferramenta de triagem para uso de álcool – Questionário TWEAK Fator de risco

Resultado de Pesquisas: Influências familiares alcoólico-específicas*

Você ingere bebidas alcoólicas?

Se sim, por favor, responda

Tolerance

Quantas doses você bebe até começar a sentir os primeiros efeitos do álcool?

Worry

Parentes e amigos têm se preocupado/reclamado de sua forma de beber?

Eye Opener

Você bebe logo pela manhã, às vezes?

Amnesia

Às vezes, após beber, não consegue lembrar o que falou ou fez?

K Cut Down

Você às vezes sente que precisa controlar seu consumo de álcool?

Escores

T: 2 pontos para 3 ou + doses; W: 2 pontos; E, A, K: 1 ponto. Dois ou mais pontos indicam potencial problema com álcool.

Prejuízo cognitivo dos pais

Filhos de alcoolistas são mais prováveis de terem sido criados por pais com habilidades cognitivas empobrecidas e em ambiente sem estimulação.

Fonte: adaptado de Russel et al.28.

Uma vez detectado o problema, a mulher poderá passar por intervenção breve caracterizada por orientação de médio e longo prazo. A avaliação dos problemas clínicos e de comorbidades psiquiátricas faz-se fundamental, bem como se deve evitar a prescrição de medicamentos com potencial de dependência (por exemplo, benzodiazepínicos) e a ingestão de grandes quantidades de medicação13. O primeiro passo do tratamento é a desintoxicação, realizada em nível ambulatorial ou de internação, dependendo da gravidade do caso. Nesse período em que deve ser promovida a motivação do paciente, técnicas como a entrevista motivacional, abordagens psicoeducativas e psicoterapia individual podem auxiliar. Temas como os principais transtornos decorrentes do uso, fatores de risco e de proteção, sintomas de abstinência, gatilhos para a recaída e técnicas para a sua prevenção devem ser abordados. A mulher muitas vezes terá de encontrar novas formas de lazer, recursos de enfrentamento e novos grupos de amigos. A autoimagem e a autoestima devem ser promovidas, pois muitas vezes estão prejudicadas nessa fase29. Os grupos de mútua ajuda para mulheres Os grupos de apoio, como Alcoólicos Anônimos (AA – www.aa.org.br) e Narcóticos Anônimos (NA – www.na.org.br), já contam com grupos exclusivos para as mulheres em muitas cidades, além de haver grupos também voltados para os familiares. Ainda nesta fase, é comum haver recaídas e deve-se propiciar uma reflexão sobre as possíveis causas, para que sejam traçadas estratégias de prevenção. Caso as recaídas tornem-se muito frequentes, deve-se considerar tratamento mais intenso29. A última fase do tratamento envolve a manutenção da abstinência, ou seja, o tratamento de longo prazo. A mulher terá de aplicar todo o seu aprendizado, incluindo as novas formas para lidar com as situações adversas e adoção de um plano de emergência em caso de alguma mudança brusca. O apoio dos familiares e das pessoas próximas continua importante, principalmente nos momentos de crise13,29.

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Infância e vulnerabilidade Nina Roth Mota Sérgio de Paula Ramos Ângelo Americo Martinez Campana Claiton Henrique Dotto Bau

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Introdução Quando, em 1895, Freud1 postulou sua primeira teoria sobre a natureza das neuroses, sustentou que elas eram decorrentes de possível somatório da constituição do indivíduo, suas vivências infantis e a existência de fator precipitante. A consolidação da genética quantitativa, ainda na primeira metade do século XX, trouxe a representação matemática das inter-relações entre os múltiplos fatores de risco, explicando como genes e ambientes atuam de maneira complementar e não determinista. Percebe-se hoje que o progresso das neurociências a cada dia revela mais e mais não só a exatidão da assertiva freudiana, como avança na explicação dos mecanismos moleculares que permeiam o processo. O presente capítulo irá discorrer sobre os fatores de vulnerabilidades (e de resiliência) para o desenvolvimento (ou não) de dependência química. Para tanto, em nome da didática, será dividido em (1) fatores constitucionais, aqueles herdados ou que nasceram com o indivíduo e (2) fatores que incidem na infância e adolescência, onde será examinado tanto o impacto de determinadas experiências infantis e sua associação com o ulterior envolvimento com drogas, quanto a existência ou não de comorbidades. Como o álcool é a droga mais usada no país, a ênfase recairá sobre ele. Fatores constitucionais Genéticos Ao longo de décadas de pesquisa, acumularam-se evidências de que a suscetibilidade aos diferentes tipos de transtornos por uso de substâncias (TUS) resulta de influências genéticas e do ambiente. Quanto ao componente genético, parte dele é comum a várias substâncias, mas também há fatores genéticos de risco que são substância-específicos2-3. Os mais estudados quanto ao aspecto genético são os transtornos por uso de álcool (TUA) e por uso de tabaco, daqui em diante referidos como alcoolismo e tabagismo, respectivamente. Os estudos em famílias demonstram aumento de três a quatro vezes na prevalência do alcoolismo em parentes de primeiro grau de dependentes quando comparado a indivíduos da população geral4-5. Esse risco é aumentado mesmo quando a criança não foi criada pelos seus pais biológicos dependentes de álcool, tendo sido adotada por uma família em que não havia alcoolismo6. Além disso, as taxas de concordância de dependência de álcool (ou alcoolismo) são maiores em gêmeos monozigóticos do que em gêmeos dizigóticos7-8. A metanálise mais recente sobre herdabilidade estima a contribuição genética para a variação da suscetibilidade ao alcoolismo em torno de 50%9. Da mesma forma, pessoas adotadas têm probabilidade duas a cincos vezes maior de se tornarem fumantes se os irmãos biológicos (mesmo criados em ambientes separados) forem fumantes. Observou-se também que homens adotados têm mais probabilidade de se tornarem fumantes se sua mãe biológica for fumante10. No caso do tabagismo, a herdabilidade foi estimada em 75%11, enquanto para a dependência de cocaína, as estimativas variam entre 65 e 79%12-13. Os estudos com gêmeos e pessoas adotadas, embora demonstrem a existência de um componente genético, não permitem a identificação do mecanismo fisiopatológico e dos genes predisponentes aos TUS. Vale destacar que, no caso de proble-

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mas multifatoriais, presume-se que existam muitos genes participantes, a maioria deles com pequeno efeito. Esse fato, aliado à grande heterogeneidade clínica, representa grande desafio para a identificação dos genes envolvidos. Apesar disso, os estudos genéticos de associação têm revelado resultados cada vez mais promissores. Estudos de associação com genes candidatos Os primeiros resultados robustos de associação genética com o alcoolismo vieram há mais de quatro décadas14, com variações nas enzimas responsáveis pelo metabolismo do álcool relacionadas a diferenças interpopulacionais na prevalência do alcoolismo. A enzima aldeído-desidrogenase (ALDH) converte o acetaldeído, o primeiro produto do metabolismo do álcool, em ácido acético. A deficiência dessa enzima provoca aumento no nível sérico de acetaldeído, composto tóxico, após o consumo de álcool. Indivíduos com variações genéticas afetando a ALDH tendem a beber menos, já que esse aumento do acetaldeído provoca uma reação desagradável, que inclui vasodilatação periférica, náusea, cefaleia e taquicardia. Metanálise sobre o papel dos genes ALDH2 e ADH1B incluiu 15 estudos, somando aproximadamente 2.000 casos e 2.500 controles chineses, japoneses, coreanos e tailandeses. O maior fator de proteção contra o alcoolismo foi uma variante do gene ALDH2, que em homozigose torna as pessoas nove vezes menos suscetíveis a desenvolver o TUA15. Também são muito importantes as variações genéticas nos genes responsáveis pela enzima álcool-desidrogenase (ADH), em especial o gene ADH1B. A partir de 1990, ampliou-se a investigação de variações em outros genes candidatos, sobretudo aqueles expressos no cérebro. Uma das variantes genéticas mais estudadas na genética psiquiátrica, principalmente em relação ao TUS, é o polimorfismo de nucleotídeo único (SNP) Taq1A (T/C; rs1800497)16. Identificou-se pela primeira vez a associação do SNP Taq1A, identificado então como polimorfismo do gene do receptor de dopamina D2 (DRD2), com o alcoolismo. Essa foi a primeira evidência da associação entre genes de receptores de neurotransmissores e suscetibilidade ao TUS. Após esse achado inicial, centenas de outros estudos investigaram não só o papel desse polimorfismo em relação ao TUS e outros transtornos, mas também o seu possível efeito neurofisiológico para explicar tais associações. Estudos de neuroimagem têm consistentemente indicado que indivíduos com TUS (incluindo dependentes de álcool, nicotina, cocaína, heroína, entre outros) apresentam diminuição significativa da disponibilidade de receptores de dopamina D2 na região estriatal do cérebro, a qual persiste mesmo após meses de desintoxicação17. Há também forte conjunto de evidências indicando que portadores do alelo A1 (T) do Taq1A têm a função dopaminérgica reduzida. Diversos estudos indicam que a presença desse alelo confere significativa redução (entre 10% e 40%) do número de receptores D2 em diferentes áreas cerebrais relacionadas ao estriado18-21. Esses achados sugerem que essa possa ser uma característica neurobiológica de predisposição ao TUS e que alterações relacionadas ao gene DRD2 poderiam estar associadas a processos comportamentais específicos que conferem vulnerabilidade ao abuso de drogas em geral. Acreditava-se, até 2004, que o SNP Taq1A situava-se em uma região não traduzida a 3’ do gene DRD2. Revelou-se, posteriormente, que o polimorfismo Taq1A na verdade está situado em um gene próximo do DRD2, o ANKK1, desconhecido até então. Ainda que não esteja situado no DRD2, mas sim em sua vizinhança, há quatro metanálises corroborando a

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associação entre Taq1A e o alcoolismo22-25. A mais recente metanálise incluiu dados de 61 estudos publicados entre 1990 e agosto de 2012, totalizando 9.590 casos e 9.140 controles25. Em relação ao tabagismo, três metanálises avaliando o papel do Taq1A obtiveram resultados conflitantes26-28, sugerindo que outros fatores podem influenciar essa associação. Uma característica recorrente das metanálises em TUS é a evidência de heterogeneidade significativa entre os estudos incluídos. Diferenças quanto a sexo, idade, histórico familiar, gravidade da dependência, comorbidades e características de personalidade entre as amostras dos diferentes estudos são alguns dos fatores que podem estar contribuindo para tais achados. Outro fator importante identificado por Wang et al.25, que pode levar a tal heterogeneidade, é o efeito de possíveis interações gene-gene e gene-ambiente envolvendo o gene DRD2 (ou mesmo o ANKK1). Além do sistema dopaminérgico, outros sistemas e genes candidatos também têm sido implicados. Merece destaque no TUA o gene que codifica a subunidade alfa 2 do receptor de ácido gama-aminobutírico (GABRA2), tendo uma metanálise recente apurado resultado significativo29. Na dependência de nicotina, há metanálises implicando os genes da proteína transportadora de serotonina (5-HTT/SLC6A4), da enzima de metabolização da nicotina CYP2A627 e do receptor nicotínico CHRNA530 . Estudos de associação por varreduras genômicas Nos últimos anos, o surgimento de novas tecnologias de análise genética permitiu o desenvolvimento dos estudos de associação por varredura genômica (GWAS – do inglês Genome-Wide Association Study). Essa tecnologia permite a análise simultânea de centenas de milhares a milhões de SNPs, favorecendo, assim, estudos em larga escala. Entretanto, por realizar número tão alto de testes estatísticos, as varreduras genômicas precisam de uma interpretação muito conservadora e convencionalmente adota-se um limiar de significância de p<5 x 10-8. Vários GWAS já foram conduzidos na tentativa de identificar fatores genéticos associados à suscetibilidade ou a medidas quantitativas relacionadas ao alcoolismo31. Novamente aqui os principais achados envolvem genes relacionados a enzimas metabolizadoras de álcool, corroborando resultados prévios de estudos por genes candidatos. Associações significativas implicando o gene ADH1B no alcoolismo foram encontradas ao investigar tanto o diagnóstico de dependência de álcool em coreanos32 quanto medidas quantitativas baseadas no número de sintomas do transtorno em descendentes de europeus e de africanos33. Outro estudo indicou associação significativa com polimorfismos da região entre os genes ADH1B e ADH1C em amostra de homens alemães34. Além disso, GWAS conduzido em pequena amostra de homens chineses identificou associação significativa de dois SNPs do gene ALDH2 com o alcoolismo35. Além desses resultados relacionados às enzimas metabolizadoras de álcool, o primeiro GWAS de alcoolismo revelou associação significativa com SNPs na região cromossômica 2q35, a qual já havia sido implicada no transtorno por estudos tradicionais de ligação36. Os GWAS para tabagismo também têm corroborado os resultados de estudos prévios de associação por genes candidatos, especialmente em relação aos genes de receptores nicotínicos e com CYP2A6. A região cromossômica 8p11.21, onde se situam os genes de receptores nicotínicos CHRNB3 e CHRNA6, tem sido implicada no tabagismo por GWAS devido a associações significativas com dependência de nicotina37 e com a quantidade de ci-

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garros consumidos por dia38. Diversos outros GWAS identificaram associações entre o agrupamento de genes de receptores nicotínicos CHRNA5-CHRNA3-CHRNB4, situado na região cromossômica 15q25.1, com dependência de nicotina39 e com quantidade de cigarros40,41. A associação do gene CYP2A6 no tabagismo também foi replicada em dois GWAS 40-42. Além destes, GWAS relacionados ao tabagismo já implicaram outros genes, como, por exemplo, o BDNF (fumantes vs. nunca-fumantes)40, o DBH (fumantes vs. ex-fumantes)40; e mesmo uma região do cromossomo X em mulheres (Xp11.21; fumantes vs. nunca-fumantes)43. Exposição às drogas durante a gestação Está bem documentado na literatura o impacto do uso de drogas durante a gravidez, ou seja, o seu efeito teratogênico. A síndrome fetal pelo álcool44, o baixo peso dos recémnascidos associado ao uso de tabaco, a inquietação e a irritabilidade associados ao uso de estimulantes e heroína são exemplos disso45. Trabalhos dos últimos 20 anos tentam esclarecer, no entanto, se a exposição a drogas durante a gravidez funcionaria como fator de risco para o desenvolvimento de dependência química no futuro. Foltran et al.46, em sua revisão sistemática sobre exposição ao álcool durante a gravidez, concluíram que a mesma se associa a aumento de TUA na adolescência, possivelmente por ser capaz de “programar o cérebro” [as aspas são dos autores] na circuitaria do sistema cerebral de recompensa. Provavelmente fruto dessa “programação”47, encontraram que crianças de 11 anos, que foram expostas ao álcool durante a gravidez, tinham mais transtornos mentais, principalmente transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH), e menos desempenho acadêmico que os controles. Mesmo em se tratando de ingestão baixa a moderada de álcool durante o período pré-natal48, encontraram aumento do risco de consumo regular de álcool e de usar drogas ilícitas em adolescentes de 11 a 17 anos (idade média=14,3). Lester et al.49, ao estudar o uso de cocaína durante a gestação, sugerem três vias de ação: a) a toxicidade da droga sobre o sistema nervoso central do feto; b) a vasoconstrição das artérias placentárias; c) a alteração da expressão gênica que levaria à exposição do feto ao aumento de catecolaminas. Este acarretaria uma alteração do funcionamento do eixo hipotálamo-pituitária-adrenal (HPA), resultando em aumento nas taxas de cortisol, redundando dessa ocorrência crianças com dificuldade em se controlar, portadoras de transtornos externalizantes que são fatores de risco para o uso precoce de drogas. Nessa mesma linha, Accomero et al.50 encontraram que crianças que tinham sido expostas à cocaína durante a gestação apresentavam menos controle sobre seu comportamento, aos sete anos, do que as demais. Min Mo et al.51 corroboram que a exposição à cocaína durante a gravidez associa-se ao ulterior desenvolvimento de transtornos externalizantes e, em meninas, ao início precoce da vida sexual; ambos, fatores de risco para o uso de drogas. O panorama desses achados indica que a exposição, durante a gestação, ao álcool e outras drogas acarretaria impacto sobre o funcionamento do eixo HPA. Isso facilitaria o surgimento de crianças com baixo poder de controle, portadoras de transtornos externalizantes, tais como TDAH, transtorno de oposição desafiante e transtorno de conduta, os

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quais são, por si sós, fatores de risco tanto para o consumo de álcool precoce, quanto para o uso de drogas. Fatores que incidem na infância e na adolescência Cuidados parentais A psicologia psicanalítica teve o mérito do pioneirismo ao chamar a atenção sobre a relevância das funções maternas e paternas no desenvolvimento infantil. Assim, Freud52, ao descrever o complexo de Édipo, destacou tanto a importância da mãe quanto do pai. Klein53 aprofundou essa investigação enfatizando o estudo das relações primitivas da mãe com seu recém-nascido, enquanto Winnicott54 e Mahler55 sistematizaram os diferentes papéis de cada figura parental e a complementaridade entre eles. É prudente, entretanto, enfatizar que o desempenho de tais papéis é independente de sexo/gênero do indivíduo, podendo assim, em princípio, tanto homens quanto mulheres desempenhar funções maternas e paternas. Trabalhos das últimas décadas têm se concentrado em investigar o efeito de traumas ocorridos na infância e sua associação com o surgimento de doenças mentais. O modelo desse tipo de investigação compara crianças que foram negligenciadas ou mesmo abusadas, com crianças que não passaram por tais situações. Na maioria, os achados sinalizam tanto para associações com dependência química quanto com outras doenças mentais56. Crianças separadas de suas mães ao nascer tiveram prejuízo em seu desenvolvimento psicológico e mais associação com subsequente consumo de drogas57. Do mesmo modo, percebeu-se que pacientes dependentes de cocaína e heroína apresentaram altos níveis de negligência na infância, sintomas depressivos e níveis elevados de hormônio adrenocorticotrófico (ACTH) em relação ao grupo-controle. No mesmo estudo concluiu-se que tais resultados sugerem a possibilidade de que a experiência de negligência na infância e vínculo malconstruído mãe-bebê pudessem ter efeito persistente na função do eixo HPA, contribuindo para o desenvolvimento de dependência química58. Nessa mesma direção foram Lukasiewicz et al.59 e Gerra et al.60, que também encontraram associação entre negligência na infância e dependência de drogas ilícitas na vida adulta. Molina et al.61, acompanhando crianças em famílias com alcoolismo presente em sua genealogia, concluíram que há associação entre densidade de alcoolismo na família e conduta externalizante dos filhos, tais como TDAH, transtorno de controle de impulso e de conduta e agressividade. Também conseguiram evidenciar que tais desfechos são mediados pelo tipo de maternagem e paternagem. Cuidados ativos por parte dos genitores reduziram a prevalência de alcoolismo nos filhos, neutralizando parcialmente o impacto de fatores de risco genéticos. Além disso, Gerra et al.62 demonstraram que a percepção, por parte das crianças, de baixo cuidado materno associou-se ao uso de drogas ilícitas. Já Bohnert et al.63 encontraram que melhor monitoramento, por parte dos pais, na infância resultou em menos experimentação de maconha na adolescência. Ryan et al.64, em revisão sistemática em que foram avaliados 77 trabalhos, verificaram que a redução do consumo de álcool por adolescentes é mediada pelo adequado monitoramento parental (disciplina e acolhimento caloroso), limitação na disponibilidade de álcool para a criança e desaprovação familiar para o beber na adolescência.

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Portanto, há robusta evidência na associação existente, por um lado, entre crianças negligenciadas/abusadas e o ulterior envolvimento com drogas lícitas e ilícitas. Por outro, que o monitoramento adequado por parte dos pais, na infância, funciona como fator de proteção contra esse desfecho. Transtornos externalizantes Agrupam-se sob o título de transtornos externalizantes, na infância e na adolescência, aqueles evidenciados por determinadas características do comportamento em relação ao meio capazes de serem percebidas por um observador. Seu espectro varia desde um incremento da impulsividade e agressividade, passando por TDAH até transtorno de oposição desafiante e de conduta. Ruiz et al.65 demonstraram, examinando 66 trabalhos em sua metanálise, que há robusta associação, em crianças e adolescentes, entre os transtornos externalizantes e o envolvimento ulterior com drogas. Posteriormente, Griffith-Lendering et al.66 comprovaram também que os transtornos externalizantes estão associados ao aumento do risco de se envolver com maconha na adolescência. E Storr et al.67 enfatizaram que problemas de conduta, em sala de aula, predizem uso de maconha na adolescência. Bayrami et al.68 propõem que crianças com TDAH manifestam mais tendência ao uso de drogas na adolescência que os controles. E Harty et al.69, por seu turno, encontraram o mesmo, mas a associação foi mais forte entre aquelas com transtorno de conduta. Além disso, van Emmerik-van Oortmerssen et al.70, em metanálise, encontraram prevalência de 23,1% de TDAH em pacientes com TUS. O que esses achados têm em comum são deficiências no autocontrole emocional de seus portadores. Wilens et al.71 conseguiram demonstrar que tais crianças são mais propensas ao abuso de drogas. Por outro lado, Copeland et al.72, em estudo acompanhando indivíduos desde a infância até o início da vida adulta (até os 24-26 anos, aproximadamente), indicam que a presença de transtornos psiquiátricos em geral na infância levam a um aumento significativo do risco de desenvolver TUS na vida adulta (razão de chances = 5,1)72. Vão na mesma direção tanto os trabalhos que avaliam prevalência de TUS entre os portadores de outros diagnósticos psiquiátricos, como os que verificam taxas de outros diagnósticos psiquiátricos em portadores de TUS. Cerullo et al.73 haviam encontrado prevalência de 40% de TUS entre os bipolares. E Goldstein et al.74, em metanálise, constataram que as crianças com diagnóstico de transtorno bipolar, quando chegam à adolescência, passam a apresentar prevalência de TUS que varia conforme a amostra, de 16 a 39%. Confirmando, Frias et al.75, em recente trabalho, encontraram 31%. O transtorno de ansiedade potencializa os de humor na associação com TUS. Assim, Wolitzky-Taylor et al.76 encontraram que ter transtorno de ansiedade relacionou-se, no seguimento, ao TUS numa razão de chance de 1,98 e a ter transtorno depressivo unipolar em 2,35. Quando ambos estão presentes, Boschloo et al.77 registraram que a razão de chance para que jovens com transtorno depressivo e ansioso tenham um TUS é de 2,69. A precocidade do primeiro uso de álcool (antes dos 13 anos) e sua consequência Zucker et al 56, em revisão sistemática sobre o tema, sintetizaram que o uso precoce de álcool está associado a prejuízo nos cuidados parentais, transtornos externalizantes, deficiências nas habilidades sociais, pertencimento a grupos de colegas com conduta des-

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viante, uso de drogas por parte deles, uso de drogas pelos pais e morar com apenas um dos genitores. A precocidade da experimentação de álcool, é um dos principais fatores de risco para o alcoolismo78, mesmo quando controlamos para outros fatores de risco. Isso provavelmente ocorre porque o álcool e as demais drogas, agindo sobre um cérebro imaturo, são capazes de promover alterações nos sistemas frontolímbico e frontoestriatal, que se relacionam ao controle de impulsos78,79. Esse fato explica por que o início precoce do uso de álcool (antes dos 13 anos) tem sido considerado forte preditor de TUA aos 16 anos81. E também por Hingson et al.82 terem identificado praticamente cinco vezes mais alcoolismo em indivíduos que tiveram sua primeira experiência com álcool antes dos 14 anos (48%) se comparados com os que o fizeram depois dos 21 anos (9%). Tais achados foram confirmados por uma variedade de outros estudos que também relacionaram uso precoce de álcool a ulterior transtorno por uso de álcool, tabaco e cannabis83-85. Conclusão A vulnerabilidade para o desenvolvimento de TUS se dá por uma inter-relação complexa entre fatores genéticos e do ambiente, desde o período pré-natal, perdurando até a vida adulta. Os fatores de risco abordados neste capítulo atuam de maneira probabilística, e não determinística. Ou seja, em qualquer situação existe espaço para a prevenção ou, tendo o problema já se instalado, tratamento. Merecem destaque a necessidade de limitar a exposição precoce ao álcool, na infância e na adolescência, além do monitoramento dos pais e manejo de transtornos externalizantes.

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População em situação de rua e vulnerabilidade Michelle Ralil da Costa Marianne Leal Nathalie Fantoni Leonardo Alves Ferreira Almeida Frederico Garcia

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Introdução O Decreto nº 7.053 de 23 de dezembro de 2009 definiu a população em situação de rua como: O grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento ara pernoite temporário ou como moradia provisória1.

Apesar de a situação de rua ser um fenômeno multicausal, é em parte um reflexo da negligência e do abandono estatais. Além da questão dos meios de vida, as pessoas em situação de rua possuem, muitas vezes, vínculos familiares rompidos e a ausência de moradia convencional regular – dado que vivem nas ruas, em albergues, em abrigos, em casas de acolhida provisória, etc2. A discriminação e a estigmatização agravam ainda mais as dificuldades vividas por essa população. A somatória de todos estes pontos torna essa população extremamente vulnerável a problemas sociais, jurídicos e de saúde, entre eles destacam-se os transtornos relacionados ao consumo de álcool e outras drogas. A vulnerabilidade e a vulnerabilidade social Vulnerabilidade é um conceito utilizado em diversas áreas do conhecimento. E as ciências sociais, humanas, jurídicas, naturais e da saúde têm suas próprias definições e particularidades acerca da conceituação do “sujeito vulnerável”. A vulnerabilidade pode ser entendida como a suscetibilidade à deterioração do funcionamento diante do estresse, qualquer que o seja3. Tal suscetibilidade pode ser observada em consumidores, trabalhadores, mulheres, crianças e adolescentes ou idosos. De certa forma, todos os indivíduos, em algum grau, são vulneráveis em dado contexto. O termo vulnerabilidade traduz certa propensão de um indivíduo, população ou sistema a sofrer com os impactos negativos dos perigos e dos desastres aos quais venham a ser expostos e possui relação com as habilidades de recuperação do indivíduo frente a esses perigos. Compreender, caracterizar e descrever a vulnerabilidade permite a identificação das características que aumentam ou diminuem a sua capacidade de ação para responder e se recuperar de um acontecimento perigoso ou desastroso das populações vulneráveis4. O conceito de vulnerabilidade social, por outro lado, é definido como a escassez de recursos materiais e imateriais (ou “ativos”) que um indivíduo ou grupo poderá sofrer diante de eventuais e expressivas mudanças em suas condições de vida5. Nesse sentido, esse modelo, que realça a presença de estruturas de oportunidades que possibilitam o enfrentamento de condições adversas e a ascensão a melhores níveis de vida, pode ser também utilizado para a população em situação de rua. A população em situação de rua é, assim, considerada socialmente vulnerável, visto que a situação de rua impõe a insuficiência de ativos. Essa insuficiência corresponde, de maneira grosseira, a pobreza extrema, fragilidade de vínculos familiares, ausência de moradia convencional regular e também à falta de oportunidades. Indiretamente, essa deficiência de ativos também se refere à impossibilidade do exercício dos direitos, da cidadania e da

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inexistência de políticas públicas e redes de apoio social (Figura 7). Figura 7: Ilustração do modelo de vulnerabilidade social na população em situação de rua

Fonte: adaptado de Katzman5.

Quantificando a vulnerabilidade social em pessoas em situação de rua No conceito de vulnerabilidade surge uma importante aplicação que consiste na possibilidade de se quantificar e qualificar o problema, permitindo o aprofundamento das discussões e do planejamento de políticas sociais. A quantificação e qualificação da vulnerabilidade são feitas com ferramentas que mensuram o grau de suscetibilidade de um grupo populacional ou região. No Brasil, muitos indicadores sociais, conhecidos como índices de vulnerabilidade social (IVS), foram desenvolvidos em âmbitos federal, estadual e municipal. Esses índices utilizam dados censitários para fornecer informações aos modelos estatísticos e, por isso, muitas vezes não conseguem contemplar a população em situação de rua. Acredita-se que, em parte, a falta de indicadores sobre essa população contribui para a manutenção da invisibilidade e estigmatização dessa população. Várias iniciativas municipais e federais contribuíram para a ampliação da informação sobre a população de rua. Essas iniciativas contribuíram para minorar o desconhecimento e a invisibilidade das pessoas em situação de rua. Desde o ano 2000 as grandes metrópoles têm realizado pesquisas censitárias da população de rua. Nossa equipe realizou em 2013/14 o Terceiro Censo de População de Rua de Belo Horizonte6 e em 2015 o Censo de População de Rua de Sete Lagoas7 (disponíveis em: crr.medicina.ufmg.br). Essas pesquisas vêm contribuindo para a discussão das políticas públicas já existentes e para o planejamento das ações voltadas para essa população. Essas duas pesquisas inovaram na metodologia, visto que conseguiram realizar a coleta de dados em apenas um dia, minimizando perdas e maximizando a representatividade da população em situação de rua do município. O Terceiro Censo de População em Situação de Rua e Migrantes6 revelou que a população em situação de rua de Belo Horizonte é composta predominantemente de homens (86,8%), na sua maioria entre 31 e 50 anos, pardos e negros (79,5%) e cuja maioria completou o segundo grau (Figura 8).

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Figura 8: O perfil do indivíduo em situação de rua conforme o Terceiro Censo de População em Situação de Rua e Migrantes de Belo Horizonte

Fonte: Garcia et al. Terceiro censo de população em situação de rua do município de Belo Horizonte. Viçosa. Suprema, 2014.

No Brasil, o último censo nacional realizado foi a Pesquisa Nacional Sobre a População em Situação de Rua8, do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, em parceria com a UNESCO, desenvolvida entre agosto de 2007 e março de 2008 e divulgada em abril de 2008, feita em 71 cidades brasileiras, refletindo, portanto, um retrato incompleto e desatualizado dessa população. A pesquisa identificou 31.922 pessoas maiores de 18 anos em situação de rua, a maioria homens (82%). A faixa etária predominante estava compreendida entre 25 e 44 anos (53%) e 67% se declararam negros (pretos ou pardos). A maioria exercia alguma atividade remunerada (70,9%), formal ou informal. Dos entrevistados, 29,7% relataram apresentar algum problema de saúde, sendo que 6,1% tinham algum problema psiquiátrico e 5,1% informaram serem portadores de HIV/AIDS. A hipertensão foi a condição mais prevalente, observada em 10,1% dos entrevistados. Apesar de existirem albergues e abrigos nas cidades pesquisadas, 69,6% dos entrevistados costumavam dormir na rua. Mesmo que 51,9% possuíssem algum parente na cidade em que se encontram, 38,9% destes não tinham contato com esses familiares. Esses dados sugerem que a população em situação de rua está submetida às mais diversas vulnerabilidades, sobretudo a vulnerabilidade social e de saúde. A seguir apresentam-se alguns fatores de vulnerabilidade presentes nessa população. Idade O perfil etário da população em situação de rua tem mudado nos últimos anos. Quando comparadas às pirâmides etárias dos censos de população em situação de rua de Belo

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Horizonte de 19989 e 20136, observa-se que a transição demográfica também está acontecendo nessa população (Figura 9). Figura 9: Pirâmide etária da população em situação de rua de Belo Horizonte de 1998 e 2013

Fonte: Garcia et al. Terceiro censo de população em situação de rua do município de Belo Horizonte. Viçosa. Suprema, 2014.

Se, por um lado, estes dados indicam redução da entrada crianças e jovens na população em situação de rua, por outro pode-se observar o aumento do número de adultos que passam a compor os estratos etários acima de 30 anos. Esses dados mostram que, muito provavelmente, nos próximos anos o número de idosos em situação de rua irá crescer. Os dados do estudo também revelam que esses adultos têm tido pouco acesso às medidas básicas de prevenção em saúde e que eles continuam expostos a importantes fatores de risco, como o consumo de álcool, tabaco, a desnutrição e situações de negligência e violência. A somatória de todos esses fatores provavelmente criará uma população ainda mais vulnerável do que conhecemos hoje, nomeada de “população de idosos na rua”. Além disso, a falta de vínculos familiares fará com que o estado tenha que investir em meios para proteger, acolher e acompanhar esses idosos, conforme preconiza o Estatuto do Idoso10. Isso demandará que o Poder Público se prepare para lidar com mais essa população vulnerável, pois além da situação de rua, que por si só é um forte fator de vulnerabilidade, esses adultos estão envelhecendo sem qualidade (Figura 10). Corroboram esses resultados os dados da Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, que revelam aumento de 26% do número de idosos em situação de rua no Brasil entre 2010 e 201111.

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Figura 10: Fatores de vulnerabilidade que contribuem para a formação da população de idosos em situação de rua

O uso de drogas pela população em situação de rua O consumo de drogas é um grave problema social e de saúde pública, com consequências individuais e sociais expressas nas diversas interfaces da vida cotidiana, seja no seio familiar, comprometendo vínculos afetivos, seja no trabalho ou na saúde12. Estima-se que a prevalência de consumo e de transtornos relacionados ao uso de drogas na população em situação de rua seja maior que na população geral. Por essa diferença entende-se que existem fatores que tornam as pessoas nessa situação mais vulneráveis à experiementação, ao abuso/dependência e aos impactos causados pelo consumo de drogas do que os demais da população. O Terceiro Censo de População de Rua de Belo Horizonte, em conformidade com estudos prévios, detectou que o abuso de substâncias é um fator precipitante e também uma consequência da situação de rua6. A prevalência de experimentação, uso, abuso/dependência é maior nessa população do que na população em geral12. Entre os fatores adversos que podem propiciar o uso de álcool e outras drogas pela população em situação de rua, pode-se pensar em exposição ao frio, tentativa de compensação do estresse da vida de rua e da degradação advinda dessa situação, e mesmo a sociabilização com outras pessoas na mesma situação por questões de sobrevivência e segurança. O abuso de drogas, nesse contexto, pode ser considerado um mecanismo para lidar com as dificuldades enfrentadas. Indivíduos que vivem nas ruas raramente apresentam o abuso/dependência de substâncias psicoativas como único agravo à saúde. Eles também têm antecedentes de traumas e outros transtornos mentais. Apesar desse quadro de comorbidades psiquiátricas ser tão frequente, menos de um quarto da população de rua adulta informa já ter tido acesso a um tratamento para dependência química12, conforme mostrou o Terceiro Censo de População de Rua e do Migrante de Belo Horizonte. Nesta pesquisa a prevalência de doenças mentais é maior em mulheres (36,1%) do que em homens (20,5%) e o consumo de álcool foi relatado por 69,5% dos participantes. O uso de tabaco foi mencionado por 74,7% e o de drogas ilícitas por 51,5%. As drogas mais utilizadas foram, na sequência, maconha, crack e cocaína (Figura 11). Além disso, 77,2% dos entrevistados que relataram o consumo de drogas faziam uso de mais de um tipo de substância (Figura 12).

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Figura 11: Drogas mais utilizadas pela população em situação de rua

Fonte: Garcia et al. Terceiro censo de população em situação de rua do município de Belo Horizonte. Viçosa. Suprema, 2014.

Figura 12: Uso de substâncias químicas pela população em situação de rua

Fonte: Garcia et al. Terceiro censo de população em situação de rua do município de Belo Horizonte. Viçosa. Suprema, 2014.

Saúde Além dos maus indicadores de saúde mental13, infelizmente a população em situação de rua também apresenta piores indicadores de saúde. A morbimortalidade dessa população é superior à dos demais moradores de uma mesma região, sendo a situação de rua um considerável fator de risco para mortalidade13. Desde os anos 80, estudos realizados em diversos países - sobretudo nos Estados Unidos, no Canadá, na Austrália - mostraram que a população em situação de rua tem mortalidade três a 13 vezes maior que a população em geral13-16. Possivelmente, esse mau prognóstico se deva às taxas mais elevadas de morbidade por doenças clínicas quando comparada à população em geral, sobretudo as doenças infecciosas17. Entre estas, as mais prevalentes são a tuberculose, a hepatite C e a infecção por

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HIV18,19. As taxas de mortalidade são quatro vezes maiores na população em situação de rua, quando comparada à população em geral16. No Brasil, a Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua6, realizada em 2008, constatou prevalência de hipertensão de 10,1%, de transtornos mentais de 6,1%, de HIV/AIDS de 5,1% e de problemas de visão/ cegueira de 4,6% (Figura 13). Figura 13: Doenças mais prevalentes na população em situação de rua

Fonte: Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua, 2008.

Em relação à natureza das doenças, aquelas de etiologia infecciosa têm relação direta com a pobreza20: países em desenvolvimento têm mais mortes por essas doenças que países desenvolvidos; e regiões mais pobres dentro de um mesmo país são mais vulneráveis que regiões mais desenvolvidas16,19. Além disso, sabe-se que a desnutrição também prejudica muito a saúde da população em situação de rua e ela é quase que ubíqua nessa população. A desnutrição é responsável por pior prognóstico nos casos de doenças e aumenta muito o risco de complicações e a demanda de gastos com saúde. Colaboram para mais vulnerabilização às doenças infectoparasitárias: • Higiene precária; • Exposição a agentes nocivos; • Alimentação deficiente; • Uso de tabaco, álcool e drogas ilícitas; e • Comportamento sexual de risco A população de rua, além de ser vítima de fatores de exposição e agravo de doenças, não usufrui de adequada assistência à saúde, muitas vezes não realizando controle periódico de doenças crônicas, culminando em baixa adesão ao tratamento, quando tem acesso a este. Renda Pessoas que se encontram em situação de rua têm mais desafios de inserção no mercado de trabalho. Isso se deve, sobretudo, à falta de ativos, como uma rede social que os ajude

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a encontrar trabalho, à estigmatização e ao preconceito. Além disso, os agravos de saúde, o uso de drogas e os problemas jurídicos também prejudicam o acesso ao trabalho regulamentado11,14,21. A situação de rua priva os indivíduos do aceso às atividades básicas diárias, como higiene pessoal, alimentação adequada e transporte seguro16. Também está associada ao abandono escolar, sendo que a baixa escolaridade é um dos empecilhos para a obtenção de emprego21. O que se observa é a precarização das atividades profissionais exercidas pelos indivíduos em situação de rua. Tal precarização os expõe a mais vulnerabilidade a acidentes de trabalho, às atividades perigosas e extenuantes. Por consequência, tais atividades influem negativamente na saúde e na percepção de autoeficácia das pessoas em situação de rua. Violência Por violência serão abrangidas não somente a violência física, como também verbal, a discriminação e o preconceito. A violência física tem mais efeitos no estresse emocional e menos chances de recuperação do que a não física14. Em rigor, a violência está presente na vida de todas as pessoas em situação de rua e é um risco constante. A situação de rua torna os indivíduos vulneráveis aos mais diversos tipos de violência, seja preconceito, violência verbal, violência física e sexual. Quando se fala em população em situação de rua, esse é um ponto importante, levando-se em consideração que essa população é composta, em sua maioria, de homens6,8,22. O gênero está associado ao envolvimento em situação de violência e ao tipo de violência. Estudos revelam que homens têm mais envolvimento em questões policiais do que as mulheres e são mais comumente aprisionados por atos violentos22,23. Além disso, história pregressa de encarceramento e de abuso sexual foi associada a mais chances de aprisionamento23,24. As mulheres em situação de rua são mais vulneráveis que os homens em relação a serem vítimas de violência22. Além da violência sexual, que foi reportada por 36% das respondentes do Terceiro Censo de População em situação de Rua de Belo Horizonte, todas as outras formas de violência são mais prevalentes em mulheres6. História de violência sexual, abuso de substâncias e doença mental são os principais fatores que determinam essa condição de vulnerabilidade25. Conclusão O uso de substâncias e seus transtornos associados exercem importante papel em relação à vulnerabilidade da população em situação de rua. São indivíduos que vivem em condições de extrema pobreza e, muitas vezes, faltam-lhes assistências médica e social. Com isso, há o cenário de uma série de deficiências em várias esferas da vida dessa população, sobretudo na saúde. Seja quanto à saúde mental, principalmente a dependência de substâncias, seja quanto à saúde física, em especial a suscetibilidade à violência nas ruas, a população em situação de rua é irrefutavelmente mais vulnerável do que a população em geral.

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Referências 1. – BRASIL. Decreto nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para População em Situação de Rua. Brasil, 2009. 2. _______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Política Nacional para a Inclusão Social da População em Situação de Rua. Brasil, 2008. 3. MASTEN A & GARMEZY N. Risk, vulnerability, and protective factors in developmental psychopathology. In: Lahey B, Kazdin A, editors. Advances in clinical child psychology. Vol. 8. Plenum Press; New York: 1985. pp. 1–52. 4. CUTTER S. The Vulnerability of Science and the Science of Vulnerability. Annals of the Association of American Geographers, 93(1), 1 12; 2003. DOI : 10.1111/1467-8306.93101. 5. KAZTMAN, R. (Coord.). Activos y estructura de oportunidades: estudios sobre las raíces de la vulnerabilidad social en Uruguay. Uruguay: PNUD-Uruguay e CEPAL-Oficina de Montevideo, 1999. 6. GARCIA et al. Terceiro censo de população em situação de rua do município de Belo Horizonte. 1. ed. Viçosa: Suprema, 2014. v. 1. 168p. 7. GARCIA et al. A população em situação de rua do município de Sete Lagoas: estudo censitário. 1. ed. Belo Horizonte: Lase Plus, 2015. v. 1. 76p. 8. BRASIL, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Rua: aprendendo a contar: Pesquisa Nacional sobre População em Situação de Rua. Brasília: Meta/MDS, 2008. 9. SECRETARIA MUNICIPAL DE PLANEJAMENTO DE BELO HORIZONTE. 1º Censo de população de rua de Belo Horizonte, Belo Horizonte, 1998. 10. BRASIL. Estatuto do idoso: lei federal nº 10.741, de 01 de outubro de 2003. Brasília, DF: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2004. 11. BRASIL. Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos. Dados sobre o envelhecimento no Brasil. Brasília, 2012. http://www.sdh.gov.br/assuntos/ pessoa-idosa/dados-estatisticos/DadossobreoenvelhecimentonoBrasil.pdf. 12. CRIVES & DIMENSTEIN. Sentidos produzidos acerca do consumo de substâncias psicoativas por usuários de um programa de saúde publica. Saúde e Sociedade, v.14, n.2, p.60-68, 2003. 13. NIELSEN et. al. (2011), Psychiatric disorders and mortality among people in homeless shelters in Denmark: a nationwide register-based cohort study’, The Lancet, 377(9784): 2205-2214. 14. CAUCE et al. The characteristics and mental health of homeless adolescents: age and gender differences. J Emotional Behav Disord. 2000;8:230–239. 15. MCMURRAY-AVILA. Homeless veterans and healthcare: A resource guide for providers, 68p. 2011. http://www.nhchc.org/wp-content/uploads/2011/10/HomelessVetsHealthCare.pdf. 16. NORDENTOFT & WANDALL-HOLM. Ten year follow up study of mortality among users of hostel for homeless people in Copenhagen,British Medical Journal 327 (7406): 81; 2003. http://homeless.samhsa.gov/Resource/10-year-follow-up-study-of-mortality-among-users-of-hostels-for-homeless-people-in-Copenhagen-37893.aspx. 17 RAOULT et al. Infections in the homeless. Lancet Infect Dis 2001;1:77–84.

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O Sistema Prisional - Droga, criminalidade e seus efeitos: aspectos de vulnerabilidade Vilene EulĂĄlio de MagalhĂŁes Rodrigo Ribeiro de Souza Ana Maria de Carvalho

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Introdução As pesquisas sobre criminalidade violenta no Brasil revelam que determinados sujeitos são mais propensos a cometer crimes. Essa propensão é um dos elementos que constituem um dos conceitos de vulnerabilidade, conforme foi apontado por Garcia e Costa1, no capítulo “Conceito de vulnerabilidade e sua aplicação aos transtornos do uso de drogas”. Vulnerabilidade corresponde à capacidade de uma pessoa, grupo ou sistema se reorganizar após sofrer um impacto negativo. Propensão relaciona-se às “circunstâncias que aumentam ou diminuem a capacidade de um indivíduo, população ou um sistema enfrentar ou responder e se recuperar de uma ameaça”. É interessante notar que uma política de segurança pública voltada para a prevenção à criminalidade, lançada em Minas Gerais em 20032, trata de dois termos conceitualmente muito próximos do de propensão: fatores de risco e fatores de proteção. Fatores de risco são elementos que aumentam a possibilidade de alguém cometer um crime. Os fatores de proteção operam no sentido oposto, ou seja, diminuem as chances de um crime ser cometido. No Brasil, as estatísticas indicam que negros e pobres estão mais propensos a cometerem crimes violentos, a serem vítimas desses mesmos crimes e a sofrerem a penalização do sistema judicial. Outro elemento integrante do conceito de vulnerabilidade é o de exposição ao risco. No Brasil, boa parte dos homicídios ocorre em função do tráfico de drogas, pelos motivos mais variados. O tráfico de drogas é a base de sustentação do tráfico de armas, sendo as armas o principal instrumento causador de letalidade. Essa dinâmica criminal costuma estar presente em determinadas comunidades, habitadas majoritariamente por pretos e pardos, com baixa renda e baixa escolaridade. Nessas comunidades, a exposição ao risco faz parte do cotidiano dos moradores2,3. O terceiro e último elemento pertencente ao conceito de vulnerabilidade é o de resiliência, que é a capacidade do indivíduo em se recuperar de alguma ameaça infringida a ele. A resiliência é também um fator de proteção, relacionado, por exemplo, à capacidade de recuperação de um dependente químico ou à saída do tráfico. Sobre esse último aspecto, pesquisa feita por Meirelles e Gomez4 detectou vários empecilhos que acompanham aqueles que tentam recomeçar suas vidas longe dessa atividade ilegal. Entre essas dificuldades destacam-se: 1. A proximidade com os antigos colegas – que tentam seduzir o dissidente constantemente, propondo seu retorno, ou temem sua ida para uma facção rival; 2. a incredulidade de algumas pessoas da comunidade quanto à real quebra de vínculo com o tráfico; e 3. o dissidente passa a ser o principal suspeito em episódios de roubo na comunidade. Vulnerabilidade e criminalidade são conceitos indissociáveis se se considerar a estrutura sociopenal do Brasil na atualidade. Encontra-se no Brasil uma estrutura social que empurra determinados grupos para a marginalidade. Estando à margem da sociedade, esses grupos acessam cotidianamente situações consideradas ilegais e são, muitas vezes, “seduzidos” pelo crime. A vulnerabilidade situa-se na ameaça constante de sedução pelas atividades criminosas que acabam suprindo as necessidades simbólicas e econômicas desses grupos. Uma vez como usuário de drogas, as possibilidades de associação com outras atividades criminosas são iminentes e as chances de ser morto ou de responder a um

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processo penal aumentam significativamente. Tavares e Almeida (2010, p. 546)5 concordam que o uso abusivo de drogas, o tráfico de substâncias ilícitas, a disponibilidade de armas de fogo e as desigualdades sociais são fatores de risco que ocasionam consequências desastrosas no âmbito social, psicológico, político e econômico. Criminalidade: ampliando a visão A criminalidade é um fenômeno dinâmico, demasiadamente complexo, que envolve diversas questões e que requer discussões muito bem elaboradas. Wacquant (2009)6 entende que existe uma conjuntura social que tem permanecido ao longo de alguns séculos, apesar de manifestar-se de maneiras díspares. Para Wacquant6, existe uma estrutura de subordinação impetrada pelas classes dominantes. Em alguns períodos históricos essa dominação era mais evidente, como no período feudal ou no sistema escravocrata, por exemplo. Com as revoluções do século XIX esses modelos simplistas de dominação foram substituídos por uma estrutura mais moderna e sutil, porém não menos violenta. A ascensão do Estado Neoliberal colocou em voga temas como a responsabilidade pessoal irrestrita cuja contrapartida é a irresponsabilidade coletiva e, portanto, política. Assim, o foco prevalece sobre o sujeito enquanto a coletividade abstém-se de suas incumbências. Entende-se que as responsabilidades devem ser partilhadas e percebidas em contextos mais específicos de acordo com a situação de cada caso. Criminalidade no Brasil No caso do Brasil, depois do regime imperialista/escravocrata, ensaia-se a entrada no regime democrático, mas houve impedimento, pelo medo excessivo de uma revolução marxista. O país enfrentou então uma violenta ditadura militar que prevaleceu de 1964 a 1985. Depois de grande pressão popular iniciou-se o processo de redemocratização do Brasil. Vários segmentos das políticas públicas compuseram pautas de discussões políticas a fim de implementar, de maneira estruturante, os direitos sociais. Soares7 e Zaluar3 chamam a atenção para um segmento que não entrou no leque dos debates que constituíram as bases da Constituição Federal de 19888: a segurança pública. De acordo com esses autores, o modelo de segurança pública que se tem hoje é proveniente diretamente da ditadura militar. E, se por um lado, se abstém de tratar da segurança pública, alicerçando-a principalmente sobre os princípios que norteiam os diretos humanos, por outro lado viu-se eclodir no país a violência juvenil, amparada principalmente pelo tráfico/ uso de drogas. Zaluar (2007)3 entende que a pobreza e a exclusão social propiciaram uma interação perversa entre grupos organizados internacionais e jovens pobres, favorecendo a emergência daquilo que é chamado hoje de estado paralelo. Esses grupos muniram as comunidades carentes com armas e drogas e com uma questionável sensação de poder. O tráfico de drogas tornou-se o grande aporte financeiro dessas comunidades que não conseguiram se adequar ao modelo neoliberal proposto. Zaluar3 ainda afirma que “o mercado ilegal de drogas é hoje um dos maiores setores econômicos do mundo”. O dilema desse mercado é que sua manutenção se dá pelo aumento estratosférico dos índices de criminalidade. Ainda tratando da criminalidade, no nível acadêmico existem várias pesquisas que se

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propõem a explicar esse fenômeno de maneira didática. Em 2004, Cerqueira e Lobão9 fizeram uma compilação das principais linhas teóricas que abordam esse tema. Ao final de seu trabalho esses autores fizeram um resumo dessas abordagens, replicada na íntegra no Quadro 1: Quadro 1: Resumo das várias abordagens teóricas sobre as causas da criminalidade9 Teoria

Abordagem

Variáveis

Desorganização social

Abordagem sistêmica em torno das comunidades, entendidas como um complexo sistema de rede de associações formais e informais.

Status socioeconômico; heterogeneidade étnica; mobilidade residencial; desagregação familiar; urbanização; redes de amizades locais; grupos de adolescentes sem supervisão, participação institucional, desemprego; e existência de mais de um morador por cômodo.

Aprendizado social (associação diferencial)

Os indivíduos determinam seus comportamentos a partir de suas experiências pessoais em relação a situações de conflito, por meio de interações pessoais e com base no processo de comunicação.

Grau de supervisão familiar; intensidade de coesão nos grupos de amizades; existência de amigos com problemas com a polícia; percepção dos jovens sobre outros envolvidos em problemas de delinquência; jovens morando com os pais. E contato com técnicas criminosas

Escolha racional

O indivíduo decide sua participação em atividades criminosas a partir da avaliação racional entre ganhos e perdas esperadas advindos das atividades ilícitas vis-à-vis o ganho alternativo no mercado legal.

Salários; renda familiar per capita; desigualdade da renda, acesso a programas de bem-estar social, eficiência da polícia, adensamento populacional; magnitude das punições; inércia criminal; aprendizado social; e educação.

Controle social

O que leva o indivíduo a não se enveredar pelo caminho da criminalidade? A crença e a percepção do mesmo em concordância com o contrato social (acordos e valores vigentes) ou o elo com a sociedade.

Envolvimento do cidadão com o sistema social; concordância com os valores e normas vigentes; ligação filial; amigos delinqüentes; e crenças desviantes.

Autocontrole

O não desenvolvimento de mecanismos psicológicos de autocontrole na fase que segue dos 2 anos à pré-adolescência, que gera distorções no processo de socialização, pela falta de imposição de limites.

Frequentemente eu ajo ao sabor do momento sem medir consequências; e raramente deixo passar uma oportunidade de gozar um bom momento.

Anomia

Impossibilidade de o indivíduo atingir metas desejadas por ele. Três enfoques: a) diferenças de aspirações individuais e os meios disponíveis; b) oportunidades bloqueadas; e c) privação relativa.

Participa de rede de conexões? Existem focos de tensão social? Eventos na vida negativos; sofrimento cotidiano; relacionamento negativo com adultos; brigas familiares, desavenças com vizinhos, e tensão no trabalho.

Interacional

Processo interacional dinâmico com dois ingredientes: a) perspectiva evolucionária, cuja carreira criminal se inicia aos 12-13 anos, ganha intensidade aos 16-17 e finaliza aos 30 anos; e b) perspectiva interacional que tende à delinquência como causa e consequência de um conjunto de fatores e processos sociais.

As mesmas daquelas constantes nas teorias do aprendizado social e do controle social.

Ecológico

Combinação de atributos pertencentes a diferentes categorias condiciona a delinquência. Esses atributos, por sua vez, estão incluídos em vários níveis: estrutural, institucional, interpessoal e individual.

Todas as variáveis anteriores podem ser utilizadas nessa abordagem.

Tabela adaptada de Cerqueira 2004.

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Observa-se que as teorias ora focam questões macrossociais (status socioeconômico, heterogeneidade étnica, desigualdade de renda, etc.), ora questões relacionadas às relações interpessoais (família, vizinhança, pares, etc.), ora questões relacionadas ao desenvolvimento psicológico. Gronde et al.10 comentam que a agressão violenta, como todas as formas de comportamento, se desenvolve tanto sob condições ambientais e psicológicas como também genéticas, apesar do modelo biológico ter sido recorrentemente negligenciado pelos estudiosos da área. Entretanto, sabe-se que há uma inter-relação entre esses fatores, assim, considera-se o modelo ecológico mais abrangente e mais condizente com a ideia de criminalidade de que se trata neste trabalho. Vulnerabilidade, criminalidade e homicídios As drogas podem ser estímulos mediadores de comportamentos sociais violentos. Seja pelos efeitos diretamente relacionados ao sistema nervoso, seja pelas consequências do comércio ilegal, contextos com drogas aumentam significativamente a probabilidade de ocorrências de eventos violentos. Cabe ressaltar que “a relação drogas-violência é muito complexa, podendo ter suas origens em fatores como personalidade, antecedentes familiares de dependência, fatores genéticos, características de temperamento, relacionamento familiar fragilizado, transtornos de personalidade e todas as circunstâncias sociais que predisporiam ao crime e à dependência química”5. Outros estudos relacionam aos homicídios a existência de mercados de drogas ilícitas, de demanda por bebidas alcoólicas e por armas de fogo. Esses estudos indicam que, por volta da década de 90, houve significativo crescimento no número de homicídios ocasionados pelo consumo de drogas ilícitas. Concomitantemente, houve aumento na demanda por armas, já que o mercado de drogas necessita da violência para garantir seus contratos. Constatou-se, por fim, que o aumento da demanda por armas e drogas era seguido nos anos seguintes pelo aumento expressivo no número de homicídios11. Esses autores trataram de outros temas como desigualdade social e taxas de efetivo policial, os quais não serão aqui abordados por não serem objeto deste trabalho. Ainda sobre homicídios no Brasil, o Mapa da Violência12 indicou que as vítimas mais comuns de mortes por armas de fogo são do sexo masculino, representando 94% na população total e 95% entre os jovens. Quando se trata exclusivamente de homicídios e considerando a cor da pele, têm-se quase três vezes mais homicídios de negros (28,5 homicídios por 100 mil habitantes) do que brancos (11,8 homicídios por 100 mil habitantes). Cabe ressaltar que esse estudo agrupou pretos e pardos na categoria negro. Os instrumentos letais que ocasionam tantas mortes são, em grande parte, provenientes do tráfico de armas, conforme já mencionado, que caminha emparelhado com o de drogas. De comum nesses contextos tem-se novamente o jovem negro. Em um trabalho de 2005 denominado Cabeça de Porco13, que reuniu o rapper MV Bill, seu produtor Celso Athayde e o antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares, emergiu a compilação de vários elementos que levam a uma reflexão bem apurada do universo da criminalidade, dessa vez sob o olhar do jovem, especialmente o jovem negro. Observe-se o trecho a seguir: “Um jovem pobre e negro caminhando pelas ruas de uma grande cidade brasileira é um ser socialmente invisível. Como já deve estar bastante claro a essa altura, há muitos modos de ser invisível e várias razões para sê-lo. No caso desse nosso personagem, a invisibilidade decorre principalmente do preconceito ou da indiferença. Uma das formas mais eficientes de tornar

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alguém invisível é projetar sobre ele ou ela um estigma, um preconceito. Quando o fazemos, anulamos a pessoa e só vemos o reflexo de nossa própria intolerância. Tudo aquilo que distingue a pessoa, tornando-a um indivíduo; tudo o que nela é singular, desaparece. O estigma dissolve a identidade do outro e a substitui pelo retrato estereotipado e a classificação que lhe impomos”13. Esse tema já havia sido tratado por Soares, em 20037. Nessa época ele afirmou que quando um traficante cede uma arma a esse jovem, a invisibilidade se converte numa visibilidade perversa. Isso porque o jovem, outrora invisível, que não suscitava alguma emoção, agora desperta o medo. Mesmo ruim, o medo ainda é um sentimento. E além do ganho simbólico, a arma também pode proporcionar acesso aos bens materiais, seja a partir dos recursos financeiros provenientes do tráfico, seja pelos crimes contra o patrimônio. Outros resultados nefastos desse processo de reconhecimento perverso foram observados. Na experiência de Minas Gerais2, o aumento do número de homicídios a partir de 2003 teve como cenário principal as disputas entre grupos juvenis sustentados pelo tráfico e que eram vizinhos. Assim, as vítimas e algozes partilhavam dados semelhantes: eram jovens, do sexo masculino, negros, com baixa renda e baixa escolaridade e moradores de alguns aglomerados urbanos14. E 10 cidades do estado concentravam mais de 50% dos crimes violentos15. A experiência mineira demonstrou que o uso/abuso de drogas, tráfico, cor da pele, sexo, dados socioeconômicos, conflitos interpessoais e local de moradia constituíramse em fatores de vulnerabilidade. Vulnerabilidade, criminalidade e população carcerária Assim como os homicídios, o número de presos no Brasil evoluiu consideravelmente nas últimas décadas. Dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) processados pelo Instituto Avante Brasil16 indicam que em 1990 essa população era de aproximadamente 90.000 presos. Em 2012 esse número superou os 548.000 presos, representando crescimento de mais de 500%. Figura 14 – Evolução da população carcerária no Brasil entre 1990 e 201216

Fonte: Instituto Avante Brasil, 201216

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Ainda segundo os dados do DEPEN16, a maior parte da população de presos tem entre 18 e 29 anos (55%), possui escolaridade até o ensino fundamental incompleto (63,2%); 60% dos presos são negros e pardos; e o tráfico de entorpecentes é o segundo crime mais cometido, representando ¼ dos crimes atribuídos à população carcerária total. Os crimes contra o patrimônio somaram 43,9% (19% roubo qualificado; 9,8% roubo simples; 7,7% furto qualificado; 7,4% furto simples). Os crimes contra a vida foram 5,3% (homicídio qualificado); 4,0% (homicídio simples) e 2,5% (latrocínio). Conforme Zaffaroni e Pierangeli17, existe no Brasil um processo de criminalização seletiva que cria condicionamentos que tornam pessoas ou grupos mais vulneráveis ao sistema penal. Esses mesmos condicionamentos, ou vulnerabilidades, impõem a essa mesma parcela da população índices consideráveis de mortes trágicas. Vulnerabilidade, uso de drogas e dependência química O envolvimento de usuários de drogas e dependentes químicos na criminalidade é tema que merece atenção. Dados da United Nations Office on Drugs and Crime18 evidenciam que mundialmente estima-se que em 2012 cerca de 243 milhões de pessoas, ou seja, aproximadamente 5,2% da população mundial, com idade entre 15 e 64 anos tinham usado uma droga ilícita pelo menos uma vez no ano anterior. Já a população mundial que apresenta transtorno do uso ou dependência química corresponde a 27 milhões de pessoas. Embora não existam dados específicos e detalhados acerca do uso de drogas por parte da população carcerária brasileira, é recorrente o relato do uso de drogas por parte significativa da população privada de liberdade. Conforme apresenta a UNODC18, o uso de drogas é altamente prevalente nessa população. A instituição informa que em estudo realizado com a população carcerária europeia ficou evidente que em 11 países os sujeitos privados de liberdade apresentaram níveis de consumo de drogas 20% maior ou superior quando comparados à população geral. Notadamente tais dados variam quanto às legislações de cada país, fatores culturais e quanto aos métodos de pesquisas utilizados. Os crimes relacionados ao uso e tráfico de drogas são vistos hoje como um dos crimes mais recorrentes no Brasil. Segundo a UNODC18, a criminalidade relacionada à droga, registrada pelas autoridades, tanto em relação ao uso pessoal quanto ao tráfico, quando avaliadas separadamente, revelaram aumento no período de 2003-2012, em contraste com a tendência geral de declínio da criminalidade relacionada aos crimes contra a propriedade e aos crimes violentos. O uso de substâncias ilícitas por si só se enquadra como atividade ilegal prevista na Lei 11.343/2006 no art. 2819, que estabelece que “quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido [...]” às penas que variam de advertências, prestação de serviços comunitários e inscrição em programas educativos. Em nossa experiência profissional de atendimento psicológico no sistema prisional de Minas Gerais observou-se que significativa parte dos sujeitos privados de liberdade, usuários de substâncias ilícitas e dependentes químicos relata ter cometido crimes diversos que variam quanto ao tipo e gravidade, em função do consumo de drogas. É comum o relato dos reclusos acerca do cometimento de crimes como tráfico de drogas, furtos, roubos, assaltos, crimes sexuais, agressões físicas e homicídios, tendo como motivador

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direto e/ou indireto o uso de entorpecentes. Tal envolvimento em crimes diversos, muitas vezes, relaciona-se à manutenção da dependência. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM IV TR já corrobora a existência da relação entre uso de drogas e criminalidade ao listar como um dos critérios diagnósticos para abuso de substância os problemas legais recorrentes relacionados ao uso da substância20. Como citado anteriormente, a população carcerária brasileira cresceu muito na última década. Assim como houve aumento da população privada de liberdade, houve também elevação da prática de crimes relacionados ao uso e tráfico de drogas. Segundo o Departamento Penitenciário Brasileiro, os crimes relacionados a entorpecentes são a segunda modalidade pela qual a população carcerária masculina mais responde e a primeira tipologia de crime mais praticado pela população carcerária feminina21. Entre 2008 e 2009 houve aumento de aproximadamente 18% da população brasileira em situação de privação de liberdade que respondem por crime relacionado às drogas. Entretanto, como já citado, para além dos crimes diretamente relacionados a entorpecentes, como uso e tráfico, encontramse os demais crimes cometidos direta e indiretamente em função do uso ou dependência das drogas. Considerando o exposto, há necessidade de pesquisas com a população carcerária brasileira que salientem os motivadores para a prática de diversos crimes. Isso porque a experiência no sistema prisional tem evidenciado a mudança do público encarcerado, em que é gritante a jovialidade deste e sua relação direta com as drogas, quer seja pelo tráfico ou pelo uso, revelando a existência de uma relação entre diversos crimes cometidos e o envolvimento com drogas que merecem atenção. Diante desse cenário emerge a busca por explicações acerca do que pode tornar o usuário e o dependente químico mais vulnerável à prática de delitos. Baltieri25 objetivou em sua pesquisa, entre outros, avaliar problemas com o consumo de álcool e outras drogas entre agressores sexuais custodiados na Penitenciária II de Sorocaba, no estado de São Paulo. Foram avaliados 198 apenados por crimes sexuais violentos. Os dados encontrados revelam que 40,9% dos sentenciados têm problemas com o álcool e 20,7% com outras drogas. No tocante ao uso da droga no momento do delito, a pesquisa indica que 47,4% haviam consumido álcool e 12,62% haviam usado outras drogas. De acordo com o V Levantamento Nacional sobre o Consumo de Drogas Psicotrópicas28 entre estudantes do Ensino Fundamental e Médio da rede pública de ensino nas 27 capitais brasileiras em 2004, a idade média de início de uso das diversas substâncias ilícitas variou entre 12 e 14 anos, aproximadamente. Em revisão bibliográfica sobre o risco preditivo para o uso e abuso de drogas, evidenciou-se que o estresse é um fator marcante. Esta pesquisa revelou, ainda, que adolescentes em situação de risco para o abuso de substâncias quando em contato com vários estressores são mais propensos a mostrar diminuição do controle emocional e comportamental29. O National Institute on Drug Abuse (NIH)30 informa que o uso precoce de drogas é tido como um forte indicador de problemas no curso da vida, incluindo a dependência. O NIH identifica como fatores de riscos para a dependência, além do uso precoce, o insucesso escolar, ambiente doméstico propício, transtornos mentais, fatores genéticos, a forma de administração da droga que permite maior potencial (fumar e injetar), influência de colegas, entre outros. Acerca da influência de colega, os adolescentes são especialmente mais suscetíveis à pressão para agir conforme o grupo age e essa pressão pode levar o sujeito,

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nessa etapa do desenvolvimento, mais facilmente ao comportamento delinquente31. O desenvolvimento ainda imaturo do cérebro do adolescente o torna mais propenso a agir impulsivamente e sem considerar totalmente as consequências, a fazer escolhas insensatas e a ter explosões emocionais e comportamentos de riscos32. Vulnerabilidade, criminalidade e o sistema judiciário brasileiro Mesmo diante de dados tão estarrecedores quanto a criminalidade e o uso de drogas, que evidenciam as múltiplas vulnerabilidades às quais nossa juventude está sujeita, ainda não se dispõe de mecanismos capazes de conter o avanço desse processo nefasto. Conforme já indicado, adota-se regularmente a responsabilização individual nos processos de criminalização, ou seja, foca-se o olhar no sujeito e ignora-se o cenário no qual se desenvolve o “espetáculo da criminalidade”. Nesse processo de individualização da culpa, o que resta como alternativa é encaminhar o sujeito ao sistema judiciário e, consequentemente, à penalização via encarceramento. Cabem, contudo, algumas indagações: será que a sociedade quer de fato que o sistema penitenciário funcione e ressocialize o sujeito? Afinal, se isso acontecer, quem serão os culpados dos malogros da sociedade? Os criminosos do colarinho branco? Esses são tratados pelas camadas dominantes da sociedade brasileira da mesma forma que os desfavorecidos social e economicamente? Veronese33 e Soares7 entendem que não. Segundo esses autores, o Código Penal brasileiro é tendencioso aos interesses de grupos e classes detentoras do poder político-econômico. Assim, as penas mais árduas serão destinadas aos menos prestigiados. Assis34 entende que o sistema penitenciário brasileiro aplica não somente a pena de encarceramento, mas o apenado é submetido a várias outras penas transversais à sua condenação, tais como: precarização da saúde, perda da capacidade laborativa, violência sexual, exposição a situações degradantes, etc. E apesar dessa condição aterradora, esse autor levantou a hipótese de que a taxa de reincidência criminal no Brasil é de 90%. Assis destaca que não se dispõe de números precisos a esse respeito, mas a crítica à capacidade de ressocialização do sistema penitenciário é nítida em seu trabalho. E Veronese33 expõe ainda outro tipo de violência que acentua ainda mais o processo de criminalização, qual seja a aculturação, definida como processo pelo qual o detento assimila e assume valores e métodos criminais dos demais reclusos. Ao analisar o sistema judiciário brasileiro, observam-se diversas irregularidades, que levam inevitavelmente a graves injustiças. Não é segredo a falta de imparcialidade do judiciário nos julgamentos e procedimentos, já que prevalecem as condenações de negros, pobres e pessoas com baixo nível de escolaridade. Esses fatos são ainda mais comprometidos pela falta de acesso à defesa judicial pelo cidadão economicamente desfavorecido no Brasil, uma vez que a Defensoria Pública fica sobrecarregada e não consegue atender com presteza todos os necessitados, não por falta de vontade ou de comprometimento dos profissionais, mas pela impossibilidade de dedicação ao processo de forma pontual em decorrência da quantidade excessiva de trabalho. Se se considerar os índices de reincidência após o cumprimento das penas, certifica-se de que os mecanismos subjacentes ao sistema judiciário brasileiro se constituem como fatores que elevam a vulnerabilidade dos sujeitos aos processos de criminalização e que, consequentemente, podem elevar a vulnerabilidade dos sujeitos ao uso de drogas ou dependência química.

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Vulnerabilidade e desenvolvimento humano Pesquisas têm revelado que a entrada do sujeito para a criminalidade e o uso de drogas/ dependência química tem ocorrido cada vez mais prematuramente. Entretanto, observa-se que a fase de desenvolvimento humano que mais marca essa inserção é a adolescência. No Estatuto da Criança e Adolescente35, o adolescente é compreendido como o indivíduo que tem entre 12 e 18 anos de idade. De acordo com os estudiosos de desenvolvimento humano36,37, para entender a adolescência deve-se levar em consideração que o sujeito nessa fase está em processo de construção de valores que firmarão sua identidade. Para Piaget38, o desenvolvimento cognitivo do adolescente é caracterizado pela capacidade deste em raciocinar em um nível científico e abstrato. A partir dessa fase o indivíduo é capaz do raciocínio hipotético-dedutivo e a experiência desempenha importante papel para se chegar a esse estágio. Entretanto, o desenvolvimento cerebral imaturo leva a mais interferência das emoções no pensamento racional. Para Piaget, o desenvolvimento cognitivo e afetivo é útil para a compreensão de muitos aspectos do comportamento do adolescente. Elkind, citado por Papalia31, descreveu atitudes e comportamentos imaturos que podem ser provenientes das incursões dos jovens no pensamento abstrato: tendência a discutir; indecisão; encontrar defeitos na figura de autoridade; hipocrisia aparente; autoconsciência; suposição de invulnerabilidade. Assim, o período da adolescência caracteriza-se por ser uma fase de aumento das vulnerabilidades comportamentais e psiquiátricas39 e corresponde a uma complexa interação entre processos de desenvolvimento físico, cognitivo e psicossocial, resultando em mais exposição a situações de risco e busca por novidades40. A suposição de invulnerabilidade acaba por tornar o adolescente e os jovens, de modo geral, mais vulneráveis às influências do meio. O adolescente é capaz de criar hipóteses, mas tem dificuldade em flexibilizar seus pensamentos/ideias, considerando as perspectivas de terceiros. O pensamento é diretamente influenciado pelo desenvolvimento biopsicossocial do indivíduo e esses aspectos podem tanto ampliar como limitar os pensamentos e as ações do adolescente. Diante da necessidade de afirmação de sua identidade, o adolescente apresenta certa rigidez de pensamento, o que o impede de ponderar outras possibilidades. É na adolescência que o sujeito vivencia de forma marcante e estruturante a chamada “crise de identidade” em que, na tentativa de apropriar-se de sua identidade, o sujeito cria uma série de rupturas com os valores até então estabelecidos, dando lugar a outros que emergem a partir do contato desse sujeito com os novos grupos nos quais se insere36. Aberastury e Knobel37 sugerem que na “síndrome da adolescência normal” uma das principais características é a “tendência grupal” em que o grupo de amigos, e não mais o familiar, adquire significativa importância como uma forma de obter segurança e estima pessoal. Assim, o adolescente transfere para os pares parte da dependência que mantinha com a família, tornando-se dependente dos valores do grupo, na medida em que se julga conforme a sua aceitação exterior. Nesse sentido, o grupo constitui uma transição necessária no mundo externo para se alcançar a individuação adulta. Estudo realizado com objetivo de avaliar a associação entre comportamento de risco e status socioeconômico (SES) no período da adolescência concluiu que os comportamentos de risco nesse período estão associados a níveis mais baixos de SES41. A partir desses da-

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dos pode-se inferir que talvez a maior exposição ao risco esteja diretamente relacionada ao risco de perdas e quem tem pouco a perder (afetiva, social e emocionalmente) tende a se expor ao risco mais frequentemente. Segundo os dados levantados pela Pesquisa Nacional da Saúde do Escolar42 realizada com 60.973 escolares brasileiros do 9º ano do ensino fundamental, 8,7% desses afirmam ter usado algum tipo de substância ilícita (maconha, cocaína, crack, cola, loló, lança-perfume e ecstasy). E como já mencionado anteriormente, a idade média de início de uso das diversas substâncias dos escolares da rede pública de ensino varia entre 12 e 14 anos. A faixa etária de maior concentração de menores infratores é de 16-17 anos, o que corresponde a 54% dos adolescentes que cumprem medidas socioeducativas43. Tal dado sugere uma faixa etária aproximada acerca da idade inicial do envolvimento na criminalidade, considerando a escassez de pesquisas que contemplem tais informações. Diante do exposto, percebese que por suas características de desenvolvimento humano a adolescência evidencia a vulnerabilidade do sujeito em relação ao uso de drogas/dependência química e à criminalidade e que o nível socioeconômico pode potencializar ainda mais tais vulnerabilidades. Compartilhando saberes: o atendimento a indivíduos privados de liberdade e a recorrência das vulnerabilidades Lidar com a realidade do sistema prisional brasileiro significa deparar-se com a dura realidade de encontrar seres humanos oriundos de famílias desestruturadas, marcados pela vivência de violência doméstica e onde a ausência paterna é imperativa, delegando à mulher a responsabilidade, de sozinha, educar, moralizar, prover, além de ser o apoio emocional dos filhos. Essa tarefa está um tanto impossibilitada, já que, para prover economicamente esse lar, a mulher tem de se ausentar, deixando os filhos sozinhos e apoiando-se somente uns nos outros, o que os tornam presas fáceis de agentes da criminalidade e do uso de drogas. Nesse cenário, a experiência revela que é comum observar-se alto índice de abandono escolar, bem como um ambiente social hostil na medida em que as crianças e jovens não têm acesso igualitário à educação de qualidade, assistência médica adequada, lazer, apoio emocional familiar, referências sociais positivas e significativas dentro do seu grupo social. Isso possibilita que a figura do tráfico e seus representantes confiram o status social almejado pelo jovem. O uso de drogas passa, então, a compensar a carência afetiva e a suprir a ausência de um Estado comprometido com o bem-estar social do cidadão. No atendimento psicológico a 68 homens condenados ou em cumprimento de prisões preventivas no presídio de Vespasiano-MG, entre os meses de maio e junho de 2015 verificou-se que, deste total, 57 relataram uso de drogas ilícitas. Entre os 11 homens atendidos que negaram o uso de drogas ilícitas, dois declararam uso recorrente de drogas lícitas: um usuário de bebidas etílicas e o outro de psicotrópicos. Dos usuários de drogas ilícitas, a maconha foi a droga mais consumida entre os sujeitos privados de liberdade. A maconha também é a substância ilícita mais consumida pela população geral (representando 8,8%), segundo os dados de 2005 do II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil44. Quanto às razões para iniciar o uso de drogas, a “influência de amigos” esteve presente em todos os argumentos, ainda que apenas três tenham citado também a relação desse aspecto à curiosidade e um relacionou o início do uso de drogas a conflitos familiares e emocionais. Do total de homens atendidos em acompanhamento psicológico, oito associa-

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ram a sua entrada na criminalidade ao uso de drogas. Entretanto, o uso de drogas quase sempre foi anterior ao início da prática de atos delituosos, ou seja, em 30 casos o consumo de drogas antecedeu a prática de crimes; em oito casos o consumo de drogas e a prática de crimes ocorreram na mesma época; em 10 casos os sujeitos não souberam informar a idade com que cometeram seu primeiro ato delituoso; e apenas em nove casos os sujeitos depuseram que a prática de crimes foi anterior ao uso de drogas. Estudo realizado numa população sueca identificou significativa correlação entre características familiares psicossociais na infância e comportamento criminoso posterior e mortalidade45. Nessa pesquisa, as características familiares psicossociais avaliadas foram: criminalidade do pai, abuso de álcool e/ou drogas do pai, problemas de saúde mental dos pais e classe ocupacional do pai. Os autores reportam que 2% dos casos de criminalidade entre os homens poderiam ser evitados se o abuso de álcool do pai fosse tratado. E concluíram que a conexão entre características familiares psicossociais, comportamento criminoso e mortalidade parece ser mediada por fatores de riscos individuais, principalmente pelo uso de álcool e/ou abuso de drogas. Este dado corrobora a experiência em acompanhamento psicológico de homens e mulheres privados de liberdade, que cumprem pena em unidades prisionais do estado de Minas Gerais, em que é frequente o relato de vivência de violência doméstica na infância e adolescência, bem como o histórico familiar de criminalidade e uso de drogas. Verifica-se também que após o seu ingresso no sistema prisional o sujeito se vê com dificuldade ou impossibilitado de acessar as drogas para consumo próprio. É comum, porém, que os usuários de drogas/dependentes químicos encarcerados frequentemente passam a usar psicotrópicos durante o aprisionamento. Queixas de insônia, ansiedade, alterações de humor são recorrentes nessa população, o que leva o profissional de saúde (psiquiatra) a prescrever psicotrópicos, que muitas vezes são consumidos em larga escala. Nesse sentido, ocorre a substituição das drogas ilícitas por drogas lícitas nos estabelecimentos prisionais. Conclusão Ante o exposto, pensar em vulnerabilidade e criminalidade remete à interação das múltiplas vulnerabilidades (biológica, social, ambiental, desenvolvimental, histórica, cultural e econômica), conforme mencionado anteriormente. Diversos fatores são intrínsecos à criminalidade e relacionam-se diretamente ao cenário atual do uso de drogas. Algumas questões podem ser exploradas em maior profundidade, tais como: seria a dependência química um fator que predispõe o sujeito à criminalidade, ou seja, a dependência química promove mais vulnerabilidade à criminalidade? Ou seria a criminalidade o desencadeador da dependência química e fator de vulnerabilidade a esta? O Brasil ainda é um país marcado por grande desigualdade social, cultural e econômica, onde a ascensão do tráfico de drogas é cada vez mais evidente. Esse fato tem sido discutido e pesquisado como um dos fatores, talvez o mais relevante, que têm colaborado para o aumento da criminalidade no Brasil, uma vez que diversos crimes (homicídios, roubos, furtos, sequestros, etc.) estão diretamente relacionados ao tráfico de drogas, sendo, inclusive, considerados uma consequência direta do tráfico. Embora não se tenha dados específicos e detalhados acerca do uso de drogas por parte da população carcerária brasileira, é recorrente o relato do uso de drogas por parte significativa da população privada de liberdade. Como já referido no decorrer deste trabalho, ve-

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rifica-se que a população carcerária brasileira é constituída predominantemente de jovens pardos ou negros, com baixo nível cultural, socioeconômico e de escolaridade, oriundos de famílias desestruturadas. Ao coletar a história de vida dessas pessoas, fica evidente que a sua entrada na criminalidade e a inserção no mundo das drogas está, quase sempre, relacionada ao grupo social e à influência deste sobre a vida do indivíduo. Não se pode deixar de ressaltar que, se por um lado é possível observar que o nível socioeconômico, cultural e a cor da pele são aspectos que podem influenciar a dependência química, em decorrência da desigualdade de acesso dessa população na participação da vida social, por outro as características individuais (personalidades e aspectos genéticos) também podem ser decisivas. E esses mesmos aspectos podem ser determinantes da criminalidade, apesar de serem pouco discutidos e pesquisados no Brasil. Em comum têm também a multiplicidade e entrelaçamento de fatores, tornando o sujeito mais vulnerável tanto à criminalidade quanto à dependência química. Conforme já afirmado neste trabalho, a condição ímpar de desenvolvimento dos jovens e adolescentes faz com que eles sejam mais suscetíveis às influências do meio em que estão inseridos. Assim, ao ter contato com as possibilidades simbólicas e materiais que o tráfico proporciona, boa parte dessa parcela da população é seduzida por esse mercado. Além disso, os efeitos das substâncias entorpecentes contribuem ainda mais no processo de “satisfação pessoal”. Alguns sujeitos conseguem manter certo controle sobre o uso. Outros não dispõem de uma estrutura psíquica tão eficaz e tornam-se dependentes químicos. Em muitos casos, essa dependência se constituirá no maior desafio no que se refere ao processo de restauração desses jovens. Percebe-se, então, que a condição peculiar de desenvolvimento associada às influências do meio é fator que torna os jovens mais vulneráveis ao tráfico de drogas e às diversas composições e formatos. Contudo, é o uso e, principalmente, a dependência química, que parecem tornar o jovem muito mais vulnerável à permanência no estado de autodegradação causado pelo uso contínuo de drogas. À medida que se pensa na vulnerabilidade social e na dependência química versus criminalidade, evidenciam-se os fatores de risco, listados no decorrer deste capítulo, como aspectos predisponentes à dependência química e também à criminalidade, tais como: idade, sexo, cor da pele, desestruturação familiar, local de moradia, incompletude do processo de redemocratização, a fragilidade do sistema de justiça no Brasil, a incapacidade de ressocialização do sistema prisional, o modelo econômico, as especificidades do desenvolvimento dos adolescentes e jovens, o tráfico de armas e de drogas, entre outros. A agremiação dinâmica desses aspectos cria não somente uma atmosfera favorável à emergência da criminalidade e da dependência química, mas contribui efetivamente para sua manutenção. Enquanto não houver ampliação do olhar sobre o cenário da dependência química e criminalidade, trazendo à luz a responsabilidade não só do indivíduo, mas também a responsabilidade do Estado, objetivando-se uma reformulação estrutural e verdadeiramente participativa da sociedade, corre-se o risco de ficar replicando “ad eternum” os dados encontrados neste trabalho que não deixam dúvidas de que a dependência química e a criminalidade trazem em sua essência a mesma complexidade associada à vulnerabilidade. Referências 1. GARCIA, F. D.; COSTA, M. R. Conceito de Vulnerabilidade e Sua Aplicação aos Transtornos do Uso de Drogas. Capítulo 1. Vulnerabilidade.

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Vulnerabilidade em profissionais de saúde Monica Maria de Oliveira Melo Vinícius Sousa Pietra Pedroso Marco Túlio de Aquino Enio Roberto Pietra Pedroso

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Introdução A interação entre as condições biológicas, psicológicas, sociológicas, culturais e espirituais na vida da pessoa, de sua família e da comunidade é o que determina o bem-viver, o bem-estar, a sua saúde. Expressa-se por intermédio da forma como a pessoa interage consigo e com as outras pessoas; pela reflexão sobre suas dúvidas, impressões, atitudes e preocupações, o que permite entender sobre seu corpo, seus sentimentos e sua expectativa social1-4. A obtenção deste bem-estar biopsicossocial, cultural e espiritual depende de muitos fatores, desde a percepção crítica, transformadora e transgressora do ser humano sobre si mesmo e a natureza, até o entendimento do limite expresso na dinâmica planetária em reciclar-se e permitir as condições propícias para a manutenção do equilíbrio desejável para a vida. Isto é, na homeostasia implícita nas necessidades de todos os seres vivos e da disponibilidade limitada da Terra na obtenção da matéria. A vida humana caracteriza-se, na contemporaneidade, pelas incertezas crescentes e a sensação de fragilidade diante dos fatores de risco e vulnerabilidade aos quais todas as pessoas e a sociedade, direta ou indiretamente, estão expostas. Essas características repercutem-se no trabalho de cada pessoa e, especialmente, em relação aos profissionais da saúde, pela exposição usual a múltiplos e variados agentes químicos, físicos, biológicos, psicossociais e ergonômicos5,6. O conceito epidemiológico de risco representa a possibilidade de grupos populacionais modificarem a sua relação entre saúde e doença e se tornarem doentes, mas também de se prevenirem apropriadamente e impedirem o adoecimento, de forma que o seu bem-estar e de sua comunidade sejam obtidos e mantidos. O risco representa o cálculo da probabilidade e das chances maiores ou menores de grupos populacionais adoecerem ou morrerem por algum agravo de saúde. O risco ocupacional pode ser ou estar oculto em decorrência de ignorância, desconhecimento ou desinformação; situação em que o trabalhador nem suspeita da sua existência. Pode permanecer latente ou se manifestar e provocar lesão em momento especial ou de estresse; ou, ainda, ser real, conhecido de todos, mas impossível de controle, dado o custo para a instituição ou por falta de vontade política7,8. A vulnerabilidade permite entender as práticas de saúde em sua trajetória históricosocial e atuar inter e transdisciplinarmente para conhecer as condições que deixam cada pessoa exposta ao adoecimento pela soma do seu comportamento individual e coletivo, pelas condições socioambientais em que se situa, pelas formas como as políticas públicas apresentam soluções para as suas necessidades de saúde. Pode estimular a determinação da prevenção e de cuidado eficaz e seu encaminhamento para a recuperação plena de seu bem-estar. Pode ser compreendida como o conjunto de fatores que aumentam ou diminuem o risco de se expor ao adoecimento em todas as situações da vida, mas também como a forma de avaliar as chances de que cada pessoa possa contrair doenças. Essas chances variam e dependem de fatores biológicos, sociais e culturais e envolvem os do ambiente de trabalho e de cada atividade profissional. A vulnerabilidade compreende a perspectiva: a) profissional - que se refere à quantidade e qualidade da informação que cada pessoa dispõe sobre sua atividade, à sua capacidade de elaborar informações e as aplicar em sua vida prática;

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b) social - que se constitui nos fatores sociais que determinam o acesso às informações, serviços, bens culturais; nas restrições ao exercício da cidadania, exposição à violência, nível de prioridade política ou de investimentos dados à saúde e condições de moradia, educação e trabalho; c) programática - depende das ações, do compromisso, dos recursos, da gerência e do monitoramento dos programas nos diferentes níveis de atenção à saúde, que o estado, a iniciativa privada e as organizações da sociedade civil empreendem para o enfrentamento das condições que proporcionam o adoecimento e diminuem as chances de ocorrência das enfermidades9-13. A intervenção sobre todos esses fatores deve considerar não só o trabalhador, mas também as situações que interferem em seus comportamentos privados, políticos, econômicos, culturais e dos gestores das instituições de saúde, que podem determinar mais proteção e considerar que o cuidado do outro significa também o cuidado de si mesmo14-29. Qual é a percepção dos profissionais de saúde sobre o risco e a vulnerabilidade a que estão afeitos? Quais estratégias podem ser empreendidas visando à adoção de práticas seguras no trabalho em saúde? Intervenção para a busca de melhores condições de saúde É preciso atuar em vários níveis para modificar as condições pessoais e sociais que impedem o bem-estar1-4,9,10,28,29. A educação representa o ponto central em que a informação e sua transformação em conhecimento, de forma crítica, reflexiva e libertária, alteram o padrão de comportamento e sua ação sobre as transformações pessoais e sociais. A educação para a saúde amplia o conhecimento sobre o bem-viver, a consciência individual e social e incita o desenvolvimento de ações preventivas, o reconhecimento de doenças prevalentes e o equilíbrio com a natureza, impedindo a exploração do trabalhador16-21. É necessário respeitar as diferenças individuais determinadas pelos valores culturais sobre a doença, a saúde, a tolerância à dor e a legitimidade de reações ao mal-estar e perceber que a dimensão dos incidentes e eventos críticos que influenciam a vida de cada pessoa pode predizer a probabilidade de início de doenças físicas e mentais13,29-31. A intervenção para obtenção de bem-estar, portanto, constitui-se em missão de cidadania e pode ser realizada em todos os seus níveis de complexidade do sistema hierarquizado de saúde16-19. Risco e vulnerabilidade em educação e saúde O conceito de vulnerabilidade em saúde relaciona-se ao esforço de superar as práticas preventivas apoiadas no conceito de risco. O risco constitui-se em instrumento de quantificação das possibilidades de adoecimento de pessoas ou populações, a partir da identificação de possíveis relações entre eventos e condições patológicas e não patológicas. As aplicações desse conceito às práticas de saúde pública associaram-se à sua operacionalidade, à ampliação da capacidade preditiva e de controle ou eliminação de determinados fatores de risco e redução de probabilidade da ocorrência de agravos e danos. No entanto, quando a interpretação das variáveis selecionadas não leva em conta a variabilidade e a dinâmica de seus significados sociais reais e o risco aferido passa de uma análise abstrata

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para a intervenção prática sem as mediações necessárias para que ganhe significado real, a sua contribuição para orientar a prática preventiva é insuficiente ou até prejudicial, ao reduzir os fenômenos de adoecimento a alguns de seus componentes que podem ser isoladamente mensuráveis. Os estudos de risco de adoecimento determinam, em geral, decomposição do todo em partes, associadas entre si por relações lineares e fixas de causa-efeito e lidam com a positividade que abstrai a variabilidade, a complexidade e a dinâmica dos significados e das práticas sociais em que as possibilidades de adoecer são vivenciadas e experimentadas. Essas relações de causa-efeito explicam, em parte, as chances de adoecimento e permitem, quando aplicadas ao comportamento relacionado à saúde, determinar o risco devido à ignorância, irresponsabilidade ou livre-arbítrio13,16,17,27-29. É essa compreensão que orienta os modelos educativos que visam a convencer a pessoa a agir de modo diferente com base em estratégias educacionais dirigidas ao alerta e à transmissão de informações técnico-científicas. Esses modelos orientam também o domínio dos profissionais de saúde, priorizam a sabedoria técnico-científica e desprezam a vivência do cuidado popular e tradicional, que não tem a pretensão de universalidade da ciência, nem de reprodutibilidade da técnica, mas que utiliza juízos que associam aprendizado e experiência, de valor para a construção do processo educacional de cada grupo populacional. É importante, portanto, incorporar aos projetos educativos em saúde a dimensão do processo saúde-doença, considerando sua complexidade e sua multiplicidade de interferências, como é a proposta do estudo de vulnerabilidade. Isto é: considerar a chance de exposição das pessoas ao adoecimento como o resultado de condições individuais, coletivas e contextuais implicadas na maior suscetibilidade ao adoecimento e, concomitantemente, na maior ou menor disponibilidade de recursos de proteção e, portanto, reconhecendo a vulnerabilidade de alguém, de quê e de quais circunstâncias ou condições1-8. Os componentes da vulnerabilidade também agem sobre os profissionais da saúde e pode-se considerar que dependem das características: a) profissional-individuais - decorrentes de seu desenvolvimento i) cognitivo, devido à quantidade e qualidade de informação disponível e em sua transformação em conhecimento; ii) comportamental, na capacidade, habilidade e interesse em transformar a informação e o conhecimento em atitudes e ações de proteção contra o adoecimento, no controle de comportamentos que criam oportunidades para o adoecimento. O comportamento de mais vulnerabilidade não decorre, necessariamente, da ação voluntária das pessoas, mas relaciona-se, especialmente, às condições ambientais, culturais e sociais em que o comportamento ocorre e à consciência das pessoas sobre seu comportamento e à sua efetiva capacidade de modificá-lo; b) sociais - envolve o acesso e a possibilidade de refletir sobre a informação e de sua capacidade de provocar mudança que melhore sua vida, o que se associa ao acesso aos recursos materiais, à escola e ao serviço de saúde, ao poder de influenciar decisões políticas e à possibilidade de enfrentar barreiras culturais e de estar livre de todas as coerções; c) programático-institucionais - associam os componentes individual e social ao grau e à qualidade de compromissos e recursos; gerência e monitoramento de programas nacionais, regionais ou locais de prevenção e cuidado; que são decisivos para definir necessidades, orientar e otimizar o uso dos recursos sociais existentes. Depende do entendimento da presença, multiplicidade, interconexão, instabilidade e inconstância, momento, história,

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dos fatores profissional-sociais e programáticos que determinam a possibilidade de adoecer10-13.

Determinantes da saúde A busca do bem-estar biopsicossocial cultural e espiritual, e não apenas a ausência de doença, constitui-se no conceito contemporâneo de saúde e revela a busca por esse bem -estar, que se constitui no bem maior do ser vivo, portanto, do ser humano. É fácil ser definido? Não. Depende de cada um, da percepção sobre si e o outro, sobre a natureza e a vida. Os fatores biopsicossociais culturais e espirituais promovem e, ao mesmo tempo, protegem a pessoa de doença e dependem, essencialmente, da forma como a pessoa se comporta, como comporta sua família, como a sociedade atua, considera e valoriza a saúde e a educação e da forma, portanto, como todos exercem a cidadania e distribuem bens sociais com equanimidade e justiça social, direitos e deveres1-4,12,13. Determinantes da doença Vários fatores podem desencadear modificações da relação saúde-doença com predomínio maior de uma sobre a outra e da possibilidade da perda do equilíbrio entre elas, como se observa com: a) Mudanças ecológicas e relacionadas às alterações que acompanham o tempo geológico, não modificáveis pela ação humana, ao desenvolvimento econômico e uso da terra, devidas ao manejo da agricultura e irrigação da terra e transposição da água, represamento de rios para a construção de represas e geração de eletricidade; às mudança nos ecossistemas hídricos, com des e reflorestamentos de monoculturas. Essas intervenções podem resultar em enchentes, secas, fome e mudança climática e favorecer esquistossomose e outras zooparasitoses, febre hemorrágica, expansão da leishmaniose, disseminação de arbovírus (mayaro, oropouche, rócio, sabiá), catástrofes, inundações de cidades; b) Demografia e comportamento humano - devido ao crescimento e migrações populacionais, às guerras, conflitos civis e étnicos, deterioração de centros urbanos, adensamento populacional, modificações no comportamento sexual, uso de drogas ilícitas (venosas ou não), pobreza e miséria, fome e perda de perspectiva de vida para muitas tribos e nações que permitem a introdução e disseminação do vírus da imunodeficiência humana e outras doenças sexualmente transmissíveis, de dengue e ressurgência da tuberculose, cólera, febre tifoide, ebola e vírus hemorrágicos e o agravamento das condições de nutrição, educação, imunidade, controle social, disputa por trabalho e poder, com resultados catastróficos e desencadeadores de ansiedade, tensão, agonia, depressão, insônia, intolerância e desajuste de atitudes, e guerras; c) Comércio e viagens internacionais - que possibilitam o movimento de bens e pessoas, a sua rapidez permitida pelas viagens aéreas, o que contribui para a disseminação da malária e influenza, mosquitos vetores, introdução de cólera e dengue em regiões desprotegidas de vigilância sanitária adequada; d) Indústria e tecnologia: responsáveis pela globalização em relação à oferta de alimentos, com mudanças em seu processamento e empacotamento, à técnica de transplan-

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tes de órgãos e tecidos, ao uso de imunossupressores, à antibioticoterapia irracional em seres humanos e em animais fontes de alimentos, que se relacionam a encefalite bovina, síndrome hemolítica urêmica (E. coli), doenças transfusionais (hepatites virais, chagas), infecções em imunossuprimidos e hospitalares; e) Adaptação e mudança de agentes - que demarcam a evolução de microrganismos, a pressão seletiva e desenvolvimento de resistência aos antibacterianos e antivirais e que determinam variações naturais e mutações em vírus (vírus da imunodeficiência humana, vírus influenza), bactérias (febre purpúrica brasileira por H. influenzae, infecções hospitalares) e resistência a antibióticos, antivirais, antimaláricos, pesticidas e herbicidas e impulsionam o desenvolvimento de transgênicos e as suas possibilidades de interferirem no equilíbrio da natureza; f) Colapso de medidas de saúde pública que determinam a inadequação do saneamento e do controle de vetores, cortes em programas de prevenção de doenças e que se relacionam a cólera, dengue, difteria, desnutrição, supernutrição, aterosclerose e doenças degenerativas32,33. O modelo econômico baseado na exploração do trabalho, competição, solidão, menos capacidade afetiva, estresse, ação predatória sobre o meio, desvios da nutrição (sub e supernutrição), desemprego, condições insalubres de moradia, urbanização sem planejamento, saneamento inadequado, em detrimento da solidariedade e distribuição justa e digna de bens sociais aliado à falta de financiamento para a educação e a saúde favorece a variabilidade de comportamento de vetores e do ser humano. Essa variabilidade abrange fome, tuberculose, tuberculose multirresistente, hanseníase, cólera, febre amarela, dengue, imunodeficiência adquirida, hantavirose, hepatites virais, papilomavirose, leishmaniose, doença de Chagas, malária, estresse, esquistossomose, violência, pesticidas, uso indevido de antibióticos e de herbicidas, desequilíbrio ecológico, infecção pelo H. pylori e Chlamydia, exploração inadvertida de nichos ecológicos, uso de transgênicos, saúde e educação não priorizadas nas políticas públicas e uso de drogas lícitas e ilícitas. O neoliberalismo tecnocratiza decisões, centraliza riquezas, justifica o desemprego e a desigualdade social, exclui o cidadão do destino de seu país e incita o consumismo e a competição excessiva, que desagregam e promovem pressões psíquicas insuportáveis. Observa-se na trajetória humana que a prevalência da ganância e a luta pela manutenção do poder e do dinheiro associam-se à acentuada possibilidade de desequilíbrio social e à insensibilidade na percepção do outro. Esse comportamento, ou modelo, possui grande probabilidade de promover onipotência, desconfiança, paralisia afetiva, intolerância, incapacidade em lidar com a realidade, vazio existencial, individualismo, violência, delinquência, falta de moradia, indefinição de políticas sobre a terra e sobre a produção de alimentos, ausência de água potável e esgotos, deficiência de imunizações, descaso com a saúde, destruição planetária, desenvolvimento falacioso, temporário, limitado, busca de poder e manipulação social. O que adoece e mata são menos os microrganismos e mais a criminalidade, violência, acidentes, solidão, angústia, depressão, estresse, deterioração ambiental, intoxicantes químicos, drogas lícitas e ilícitas, sedentarismo, má-alimentação, ignorância, miséria, desonestidade, fisiologismo e impunidade. O que faz, portanto, o adoecimento ocorrer? Em quase dois terços das vezes, o comportamento humano, o que significa como a pessoa e a sociedade agem, seja em relação

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ao que alimenta e bebe, o que respira e aspira, como exercita ou se mantém sedentário e, especialmente, no que pensa e como age! Este é um assunto contemporâneo? Não; eterno, desde sempre. Simples? Não; complexo e da própria existência humana. Fácil de resolução? Não; depende de vontade, coragem e cidadania. Está relacionado aos valores sociais da contemporaneidade? Sem dúvida, especialmente de ganância, da busca de patrimônio rápido, de juventude, de eternidade, da estética, do poder e da incapacidade do estado em garantir bens sociais equânimes e de valorizar com justiça e dignidade a vida humana32,33. Saúde e sua transdisciplinaridade A interação entre as condições biológicas, psicológicas, sociológicas, culturais e espirituais na vida da pessoa, de sua família e da comunidade é o que determina o bem-viver, o bem-estar, a sua saúde. Essa interação se expressa por intermédio da forma como a pessoa interage consigo e com as outras pessoas, na reflexão sobre suas dúvidas, impressões, atitudes e preocupações e que permite entender seu corpo, seus sentimentos e sua expectativa social e se resume na forma como se comporta. Esse bem-estar biopsicossocial cultural e espiritual, que define o estado de bem-estar ou de saúde, depende, portanto: da percepção crítica, transformadora e transgressora do ser humano sobre si mesmo e a natureza; do autoconhecimento; do entendimento do seu limite vital, o que inclui o da sociedade em que está inserido e o do próprio planeta; do sentimento de finitude material e de como se interpreta em relação à morte e ao mistério da transcendência e como lida com suas limitações e a sua finitude1,2,32,33. A saúde pressupõe, portanto, estabelecer projetos de cidadania, harmonia com a natureza, solidariedade com tudo e todos, que potencializa o afeto e distribui equanimente bens sociais renováveis, que reconhece a importância dos ecossistemas para a vida e promove dignidade e prazer, com justiça social e paz32,33. Visão dos profissionais da área da saúde sobre seu papel profissional e a vulnerabilidade em seu exercício O trabalho dos profissionais envolvidos na área da saúde, na maioria das vezes, representa desafio que não se limita ao diagnóstico e à abordagem terapêutica, mas implica perceber a pessoa em sua total dimensão, o que extrapola a objetividade e pressupõe a percepção subjetiva e integrada da pessoa na família e sociedade, plena e em intercâmbio com implicações resultantes de sua opinião, atitude e crença1-5,34-37. A visão unilateral e restrita em relação ao ser humano determina o que se observa quando se fixa algum parâmetro como variável dependente ou apenas independente, no estudo de um fenômeno físico-químico, o que incita ao risco de transformar o ser humano em objeto ou peça; e aferir o paciente e a comunidade a partir de partes e não como pessoa ou de seu todo “corpo e alma”. Esse risco pode considerar que a saúde humana depende eminentemente da tecnologia, o que implica a possibilidade de reducionismo e de expressar parte da matéria, e não necessariamente o seu todo. A ampla visão da pessoa, sem limites de órgãos ou sistemas, do corpo e alma, indivíduo e coletivo, permite transgredir e ultrapassar conhecimentos

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e habilidades técnicas e ampliar a capacidade de criar relacionamento consigo e com o outro e como valoriza sua vida e a dos outros e se percebe coletivamente capaz de trocas de tolerância e complacência com o improvável, o erro, o desafio, a solidariedade, a justiça e a equanimidade34-37. A capacidade que todos os profissionais que atuam na área da saúde têm de entender o seu próprio potencial de intervenção em busca do bem-estar e de utilizá-lo com juízo, equilíbrio e sem aproveitar da boa-fé das pessoas constitui-se na chave de todo relacionamento com a pessoa doente e com sua família, com respeito, confidência e esperança. Isso beneficia a motivação, aliança e enlevo, de forma integral, em que o paciente se integra como espécie respeitosa com as outras em seu contexto planetário. Não é a tecnologia que impõe confiança e confidência, mas a ação empreendida pelos profissionais da área da saúde em sua capacidade de ausculta e ação. “A tecnologia não é boa ou ruim, mas boa ou ruim é a sua forma de aplicação”. O profissional da área da saúde, por isso mesmo, deve aprender a se conhecer o suficiente para impedir que seus preconceitos e problemas naturais perturbem sua relação com a pessoa doente, sua família e a sociedade e se aplique na obtenção de relacionamento adequado para evitar que essa interação conduza a erros que decorram de sua visão unilateral e preconceituosa32,33,37. A dimensão completa da vida e do trabalho dos profissionais da área da saúde, portanto, desdobra-se em todos os níveis em que é vivida, desde o compromisso irrestrito com a inovação, que pressupõe a coragem de criar e transformar o seu trabalho cotidiano, até se envolver e participar em movimentos e lutas justas e necessárias ao desenvolvimento humano. Constitui-se na procura de meios de atingir, pelo exercício profissional, lugares e experiências que se espalham e recriam por onde se encontram com as pessoas. Por isso mesmo, requer participar efetivamente do seu encontro com a experiência humana que puder acumular e entender, que se realiza em todos os momentos e locais, em sua interação com a vida e com as coisas. É preciso perscrutar a alma em todos os seus recônditos para reconhecer os limites próprios e de cada um. Esse processo busca entender a singularidade de cada pessoa e de sua harmonia com a própria natureza, em cada momento. A interação e o papel dos profissionais da área da saúde são perceptíveis na busca pelo bem-estar de todos e caracteriza-se pela percepção de que para cada 1.000 problemas de saúde que ocorrem usualmente no ambiente doméstico, 750 são resolvidos no próprio ambiente domiciliar, por medidas populares milenares, como observação, repouso, limpeza, banho, ventilação, tomar sol, dormir; ou uso de água, chá ou compressa. Dessa forma, a própria natureza se encarrega de resolver adequadamente e revelam-se observação e vigilância, tradição, vivência, impressão, cujo cuidado principal é não impedir que a natureza cuide de si ou que seja maltratada. O restante dos problemas recorre à atenção primaria à saúde sem influência de ato médico, recebendo medidas como hidratação oral, limpeza de feridas, orientação dietética, exercício adequado, sendo, desses pacientes, 100 encaminhados para consulta médica. Entre os pacientes sob avaliação médica, em 10 eventualidades a primeira consulta é suficiente para identificar o problema e ajudar na sua resolução; em 35 é necessário retorno para controle e vigilância, sem a necessidade de exame complementar; e em 40 o acompanhamento médico ocorre por mais de seis meses, sendo 14 encaminhados para a observação de especialista e um para a internação hospitalar. Na atenção primária à saúde com resolubilidade médica de quase 85%, ocorrem, em geral, oito grupos nosológicos,

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sendo necessários 11 exames complementares e 14 medicamentos para a sua abordagem. Essa observação decorre, em sua essência, de que “o que é raro é raríssimo, e o comum é comuníssimo”. Revela que há na prática a necessidade de ruptura com o consumismo e a valorização de bens sociais para qualidade de vida, aliadas da saúde, como: educação, trabalho, seguridade social; e da atenção e cuidado com a pessoa e sua família. É preciso entender que os avanços da biologia molecular-estrutural, imunologia, genética não podem impedir o valor da Psicologia, Antropologia e Sociologia sobre o entendimento da vida e da morbimortalidade32,33,37. A ciência requer muito mais do que aplicar o conhecimento do último segundo, é preciso conhecer e aplicar o padrão do pensamento científico, desenvolver mente inquisitiva, crítica, independência; projetar experimentos; obter dados; analisar sua validade e especificidade; questionar e responder no limite da precisão definida; estabelecer medidas de limite do que é adequado ou não, sem decisão fútil ou inútil, e ajuizar com equilíbrio o que deve e não deve ser feito. Os resultados falso-positivos podem sujeitar-se a algum procedimento desnecessário. O exame complementar que confirma o diagnóstico já feito constitui desperdício de recursos. É preciso avaliar se o exame complementar pode modificar a escolha da estratégia de tratamento. A compreensão da alma, entretanto, ultrapassa todos esses dados objetivos, e sem a sua perscrutação não se consegue perceber o pedido de ajuda, de auxílio, do encontro com o ser que está em cada pessoa. A obtenção de saúde nem sempre significa diagnóstico ou tratamento no sentido de que é preciso aplicar alguma fórmula físico-química industrializada. Muitas vezes caracteriza-se por aliviar o impacto da enfermidade, ajudar a pessoa a se integrar nela mesma, em sua família e comunidade; por perceber o esforço da pessoa em se adaptar à perda de sua saúde e a conviver com limitações; e pelo compromisso com o bem-estar biopsicossocial cultural e espiritual. As enfermidades tendem a ocorrer em situações de excessiva exigência pessoal ou diante de necessidade de vida não resolvida de forma satisfatória. As doenças incuráveis inspiram desesperança, sofrimento e angústia. A morte pode devastar o paciente e sua família, o que inclui ansiedade, medo, pânico, enigma sobre o futuro, responsabilidade pela família, trabalho, dívidas. É preciso ajudar a pessoa doente a entender o correto para si, sentir-se valorizado, assumir com esperança recursos existentes para reduzir sofrimento, cooperar para a cura e o controle da doença. É preciso, portanto, conhecer-se para impedir que a primeira impressão, não adequadamente reflexiva, afete a relação ou promova erros na interação com o paciente. O interesse e o bem-estar do paciente devem superar os de qualquer dos profissionais da área da saúde e impulsionar a transcender a capacidade técnica, o conhecimento científico e o interesse e distinguir o que é ou não supérfluo, a atingir a compaixão. A cura orgânica não significa, necessariamente, sentir-se satisfeito; e a tecnologia aplicada não representa melhor assistência e pode inclusive descaracterizar e despersonalizar o profissional da área da saúde ou torná-lo minimizador da tensão social. É preciso respeito, confidência, solidariedade desde o nascer até experimentar-se, ajuizar a experiência, entender a existência, viver a sabedoria do juízo, buscar bem-estar na própria essência, conscientizarse da própria morte, transcender a matéria, ajudar a pessoa doente a se sentir melhor com ou sem a doença e perceber o seu limite ou a doença em paz1-4,12,13,32,33,37.

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Perspectivas atuais do trabalho dos profissionais da área da saúde e sua influência sobre o estado de saúde A impressão de que a tecnologia pode deixar o profissional da área da saúde mais disponível para se dedicar ao seu paciente não se confirmou. O pressuposto de atuação de todo profissional da área da saúde, entretanto, baseia-se na sensibilidade do cuidado das pessoas. A luta pela sobrevivência incita à competição desenfreada, à perda da solidariedade, à concessão de uso de todo artifício para a manutenção de vantagens pessoais que mantenham a sua posição social e econômica, com prevalência do individualismo que nega a solidariedade, a espontaneidade, o respeito, a confiança, pressupostos essenciais para o acolher e cuidar de pessoas37-41. A sensibilidade de olhos, ouvidos, mãos, sentidos, sentimentos, coração, como a essência para a compreensão da pessoa não pode ser substituída pela razão, racionalidade, evidência, programa, protocolo e técnica, que veem a pessoa doente como doença, peça, órgão, sistema, técnica cirúrgica, protocolo computadorizado. A complexidade da atuação de todos os profissionais da área da saúde e a responsabilidade implícita em seu trabalho exigem, portanto, formação humanística e humanitária que requer também que tenha reconhecimento justo, condições de trabalho adequadas, educação continuada e proteção em sua função de forma a propiciar condições dignas para sua execução. É isso que se observa em sua prática? Não; ao contrário, as condições de trabalho são precárias, sendo o Brasil o país que menos aplica recursos em saúde, proporcionalmente a outras economias semelhantes em todo o planeta. Os profissionais da área da saúde são deixados ao seu próprio destino e sua dignidade exige múltiplos empregos, muitos sob sistema de produtividade, sob regime de trabalho exaustivo e sob tensão imensa. Esse ambiente é por si salutar? O exercício profissional que não privilegia a pessoa passa a se resguardar por guias, regras e diretrizes definidas muitas vezes por conflito de interesse, medo de demanda judiciária e de ser considerado obsoleto. Esse comportamento conduz à solicitação de mais exames complementares, em confiança mais em equipamentos do que na própria sensibilidade e capacidade de discernimento, o que mantém o lucro das indústrias, distanciando o profissional da área da saúde da pessoa32,33,42. Busca de melhores condições de saúde É preciso atuar em vários níveis para modificar as condições pessoais e sociais que impedem o bem-estar. A educação é essencial, em que a informação e o conhecimento consequentes, reflexivos, críticos e libertários, aliados à experiência, ajudam a estabelecer melhor o padrão de comportamento frente às prerrogativas pessoais e sociais transformadoras e a obter a sabedoria que amplifica a vida humana. A educação para a saúde amplia o conhecimento sobre o bem-viver, a consciência individual e social, incita às ações de prevenção, ao reconhecimento de doenças prevalentes, ao equilíbrio com a natureza e impede a exploração do trabalhador.1-4,9,10,12,13. É necessário respeitar as diferenças individuais determinadas pelos valores culturais sobre a doença, a saúde, a tolerância ao sofrimento, a legitimidade de reações ao mal-estar

221


e perceber que a dimensão dos eventos de influência sobre a vida de cada pessoa pode predizer, com muita certeza, a probabilidade de ocorrência de doenças físicas e emocionais32,33,37,42. A intervenção para obtenção de bem-estar é tarefa de cidadania e pode ser feita em todos os seus níveis de complexidade. A transferência de responsabilidades de serviços básicos para o setor privado, sem garantia de equidade na sua oferta; a instituição do usuário-consumidor, na lógica do custo-benefício, não no cidadão que possui um bem, a saúde; a competição pela lucratividade, não como benefício para as pessoas e o planeta; a centralização da conceituação de saúde na doença e no indivíduo, baseada na tecnologia, sem favorecer o uso ajuizado de serviços adequados ou apropriados; os gastos indevidos com a atenção médica, medicamentos, exames, equipamentos; tornam impossível pensar em preservar a pessoa e o planeta. A lógica do individualismo não preserva o planeta para todos, nem privilegia o equilíbrio e a harmonia do corpo e da alma e de sua interação com a natureza, que é dinâmica e materialmente finita! A decisão política de privilegiar o ser humano e não o capital como o substantivo de todas as decisões, portanto, significa como pressuposto de bem-estar da humanidade: educação para todos; financiamento adequado para o cuidado com as pessoas e o meio ambiente; valorização do trabalho como princípio fundamental da organização social; estrutura social com oportunidades igualitárias para todas as pessoas, incluindo a reflexão sobre estigmas; condições físicas dos serviços de atenção à saúde e à doença, em especial, para o setor saúde, como tipo de consultório, privacidade do paciente; proximidade do médico e de outros profissionais de saúde com o paciente e sua família, incluindo atendimento domiciliar, noturno, nos fins-de-semana e feriados; disponibilidade de recursos diagnósticos, terapêuticos e de reabilitação20-23,42. Essa perspectiva profissional requer visão interdisciplinar e multiprofissional, com respeito não só entre os vários profissionais que compõem a equipe de saúde, mas com a pessoa doente, que é o substantivo de todas as ações, na preservação da sua dignidade e de seus familiares. É possível, diante da complexidade das relações biopsicossociais culturais e espirituais o trabalho solitário dos profissionais da saúde? O trabalho transdisciplinar e multiprofissional é a base da atenção completa à saúde. A interação dos vários profissionais que compõem a equipe de saúde diminui algum dos seus membros? A participação da Medicina, Enfermagem, Fisioterapia, Terapia Ocupacional, Nutrição, Serviço Social, Psicologia e tantas quantas forem as profissões e as ações cidadãs são bem-vindas na tarefa de proteger a vida e o planeta. De que dependem as relações profissionais? Dependem da discussão do processo de trabalho, da organização do conhecimento a ser alcançado e da participação de cada um, do limite que se associa ao convívio com respeito e confiança. Da integração em busca da plenitude de todos e da obtenção do pressuposto de cada atividade profissional é que conflui a busca do bem-estar que todos almejam e merecem. A distinção das ações na área da saúde diz respeito especialmente a: amizade, respeito, e solidariedade, em que – “tudo vale a pena se a alma não for pequena”. A saúde é dos bens mais significativos da expressão humana e da vida. Ela vale o esfor-

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ço, gana e trabalho para a busca do bem-estar que todos merecem32,33,37,42. Preparo para a prática A prática dos profissionais da área da saúde depende das condições que moldam a todos para a sua missão compartilhada e se relacionam ao estilo de vida, ao local escolhido para o trabalho, ao tamanho e às características da comunidade escolhida para o exercício profissional de cada um. Não é tarefa fácil. O conceito de vulnerabilidade contém algumas especificidades que abrangem: o indivíduo ou a compreensão do comportamento pessoal à qualidade da informação de que cada pessoa dispõe sobre os problemas de saúde, sua reflexão e a aplicação na prática; o social, que avalia a obtenção das informações, o acesso aos meios de comunicação, a disponibilidade de recursos cognitivos e materiais, o poder de participar de decisões políticas e em instituições; e os programáticos, estabelecidos para responder ao controle de enfermidades, o nível e qualidade de compromisso das instituições, dos recursos, da gerência e do monitoramento dos programas nos diferentes níveis de atenção12,32,33,37. Esses objetivos têm sido obtidos? A vulnerabilidade do profissional da área da saúde Observam-se, no Brasil, algumas características que são comuns a todos os profissionais da área da saúde, como: grande aumento do número de graduados em todas as áreas; concentração predominante nas áreas metropolitanas e região Sudeste; aumento da participação feminina; rejuvenescimento da força de trabalho, mais intensa entre os profissionais de nível universitário e na terceira década de vida; aumento de absorção de empregos no setor privado; extensão da jornada de trabalho de 46% dos médicos para mais de 50 horas por semana. O trabalho nunca é neutro em relação à saúde do trabalhador, isto é, pode favorecer em maior ou menor grau a doença, influenciar ou não a sua autorrealização e satisfação, determinar relacionamentos que podem ser conflituosos, que requerem desenvolvimento de inter e intrassubjetividades e seu reconhecimento e valorização social1,34-37. A Constituição Federal de 1988, no Capítulo II, determina a necessidade de redução dos riscos próprios do trabalho por intermédio de normas de saúde, higiene e segurança; de forma equânime, independentemente da área de atuação do trabalhador. A proteção aos riscos que o trabalho pode determinar à saúde do trabalhador é inerente a cada tipo de atividade, o que requer vigilância para a sua insalubridade potencial e a instituição de controle, prevenção, tratamento e recuperação das situações em que o trabalho submete o trabalhador à instabilidade e à perda de sua integridade individual, coletiva, orgânica e psíquica. Os trabalhadores da área da saúde são continuadamente expostos a riscos que rompem com sua estabilidade biopsicossocial cultural e espiritual e que requerem atenção, reconhecimento e propostas decisivas para que sejam impedidos de exercerem influência deletéria sobre a sua vida. Todos são afetados pelo sofrimento psíquico próprio de seu trabalho, sendo que em algumas delas se soma a predominância da população feminina, o que adiciona ao desgaste profissional a superposição da dupla jornada de trabalho e a desvalorização do trabalho feminino.

223


A hegemonia médica pode também exercer efeito intimidador nas relações interdisciplinares e multiprofissionais, com o risco de desencadear dificuldades de relacionamentos, o que requer o entendimento do limite pessoal e o respeito com cada uma das profissões que compõem a equipe de saúde. É essencial que as políticas públicas em relação ao Sistema Único de Saúde (SUS) sejam consequentes, dignas com o cidadão e com seus trabalhadores, como pressuposto para que seja eficiente e capaz de atender ao desejo das Assembleias Nacionais de Saúde que lutaram por décadas para que a saúde se transformasse em direito de cidadania e dever do estado. O SUS, em verdade, não é único, nem igualitário, nem democrático e com incoerências e desigualdades que representam desafios a serem resolvidos em sua construção e desenvolvimento. Esses fatores exercem efeito devastador sobre profissões que cuidam diretamente do descaso ao cidadão brasileiro, o que é aplicado a todos os profissionais da saúde. As profissões que são predominantemente exercidas por mulheres têm acrescido ao desgaste profissional a dupla jornada de trabalho e a pouca valorização do trabalho feminino na sua família; e as mulheres médicas ainda sofrem preconceitos, obstáculos familiares e sociais para o seu exercício profissional. O risco da transmissão da síndrome de imunodeficiência adquirida, nos Estados Unidos da América, foi mais comum, em ordem decrescente, em: enfermeiros, técnicos de laboratório e médicos não cirurgiões1-9,12-20. Vulnerabilidade do profissional de saúde do hospital das clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais nos anos de 2010 a 2014 Foram analisados dados disponibilizados pelo Departamento de Atenção à Saúde do Trabalhador (DAST) referentes às condições que favoreceram o adoecimento dos servidores do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC/ UFMG) no quinquênio compreendido entre 2010 e 2014, por meio dos registros de afastamentos por motivo de saúde e dados de acidentes de trabalho notificados. Foram analisados dados de assistentes sociais, enfermeiros, farmacêuticos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, médicos, nutricionistas, psicólogos, técnicos e auxiliares de enfermagem e terapeutas ocupacionais, totalizando 10 categorias profissionais. Observou-se que, nesses cinco anos analisados, em média, 66,5% dos profissionais de saúde do HC/UFMG tiveram algum afastamento por motivo de saúde, incluindo afastamentos devidos a algum problema clínico ou psiquiátrico e de durações variadas. Apesar do alto percentual de servidores afastados em cada ano, a subnotificação dos dados ainda é realidade em serviço hospitalar onde, por motivos diversos, muitas vezes o servidor recorre a folgas ou trocas de plantão sem comunicar oficialmente sobre o seu adoecimento (Tabela 1).

224


Tabela 1: Número total de servidores ativos do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais afastados do serviço por motivo de adoecimento no período entre 2010 e 2014 Ano

Servidores afastados (%)

Servidores ativos do HC/UFMG Valor Absoluto Total

Afastados

Motivo do Afastamento (Número Absoluto e %) Psiquiátrico

Clínico

2010

1208

790

95 (12%)

695 (88%)

65,30%

2011

1193

807

106 (13,1%)

701 (86,9%)

67,60%

2012

1243

794

93 (11,7%)

701 (88,3%)

63,80%

2013

1223

847

108 (12,7%)

739 (87,3%)

69,20%

2014

1216

813

111 (13,7%)

702 (86,3%)

66,80%

Fonte: Departamento de Atenção a Saúde do Trabalhador (DAST) da Universidade Federal de Minas Gerais.

Os afastamentos por motivo clínico corresponderam a 87% do total de absenteísmos nos cinco anos analisados, sendo o motivo psiquiátrico responsável por 13%, em média, dos adoecimentos, com destaque para as doenças osteomusculares entre os motivos de adoecimento clínico (Tabela 2). Tabela 2: O número total de afastamentos em relação às diversas categorias profissionais ativas anotadas no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais no período entre 2010 e 2014 Profissional

Número (absoluto/%) Total de Afastamentos (ano) 2010

2011

2012

2013

2014

Total

Assistente Social

11/1,4%

12/1,5%

16/2%

13/1,5%

6/0,7%

58/1,4% 469/11,5%

Enfermeiro

83/10,5%

95/11,8%

90/11,3%

103/12,2%

98/12%

Farmacêutico

20/2,5%

19/2,3%

18/2,2%

19/2,2%

17/2%

73/1,8%

Fisioterapeuta

9/1,1%

13/1,6%

17/2,1%

15/1,7%

14/1,7%

68/1,7%

Fonoaudiólogo

1/0,1%

1/0,1%

2/0,2%

0/0%

3/0,3%

6/0,14%

Médico

55/7%

57/7%

74/9,3%

68/8%

77/9,4%

331/8,1%

Nutricionista

7/0,8%

9/1,1%

9/1,1%

8/1%

9/1,1%

42/1,0%

Psicólogo

4/0,5%

1/0,1%

7/0,8%

12/1,4%

9/1,1%

33/0,8%

T/A Enfermagem

595/75,3%

597/74%

552/69,5%

603/71,1%

574/70,6%

2921/72,1%

TO

5/0,6%

3/0,3%

6/0,7%

6/0,7%

6/0,7%

26/0,6%

Total

790/100%

807/100%

794/100%

847/100%

813/100%

4051/100%

T/A: técnico/auxiliar; TO: terapeuta ocupacional

O número total de afastamentos, no período de cinco anos, foi em ordem decrescente de frequência relacionado aos técnicos e auxiliares de enfermagem (2.921/72,1%), seguidos pelos enfermeiros (469/11,5%) e médicos (331/8,1%), correspondendo a 91,7% do total. A análise do afastamento do trabalho entre os servidores ativos dessas três categorias

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profissionais que mais requereram esse benefício, nos últimos cinco anos, revela: a) técnicos e auxiliares de enfermagem, com 72% do total de afastamentos, representaram, respectivamente, em 2010, 2011, 2012, 2013, 2014; o afastamento de 80,6%, 82,4%, 73,9%, 81,1% e 77,7% da força de trabalho em sua própria categoria; b) enfermeiros, com 11,5% do total de afastamentos, representaram, respectivamente, em 2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 62%, 72,5%, 64,7%, 76,2% e 73,6% da força de trabalho em sua própria categoria; c) médicos: com 8,1% do total de afastamentos, representaram, respectivamente, 23,3%, 24,1%, 30%, 27,6% e 31,5% da força de trabalho em sua própria categoria (Tabela 3). Tabela 3: A análise do afastamento do trabalho entre os servidores ativos das categorias profissionais que mais requereram esse benefício, nos últimos cinco anos, no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais no período entre 2010 e 2014 Ano

Técnico/Auxiliar de Enfermagem Total

Afastamento

Enfermeiro Total

%

N Absoluto o

Médico

Afastamento N Absoluto

Total

Afastamento

%

o

No Absoluto

%

2010

738

595

80,6

134

83

62

236

55

23,3

2011

724

597

82,4

131

95

72,5

236

57

24,1

2012

746

552

73,9

139

90

64,7

246

74

30

2013

743

603

81,1

135

103

76,2

246

68

27,6

2014

738

574

77,7

133

98

73,6

245

77

31,5

Fonte: Departamento de Atenção a Saúde do Trabalhador (DAST) da Universidade Federal de Minas Gerais.

Tabela 4: Análise do número de dias e duração dos afastamentos do trabalho entre os servidores ativos das categorias profissionais, nos últimos cinco anos, no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais no período entre 2010 e 2014. Ano

Total de Afastamentos Causa Psiquiátrica Absoluto/%

Dias no Ano/%

Causa Clínica Absoluto/%

Total

Dias no Ano/%

No Ano

Dias no Ano

Média Dias/ Ano

2010

95/12

4160/21

695/88

15684/79

790

19844

25,1

2011

106/13,1

4822/20,6

701/86,9

18529/79,4

807

23351

28,9

2012

93/11,7

3697/19,2

701/88,3

15630/80,8

794

19327

24,3

2013

108/12,7

3284/17,5

739/87,3

15562/82,5

847

18846

22,2

2014

111/13,7

4934/27,3

702/86,3

13157/72,7

813

18091

22,2

A análise dos dias e duração dos afastamentos dos profissionais de saúde lotados no HC/UFMG (Tabela 4) revela que as licenças por adoecimento clínico, apesar de corresponderem a quase 90% do número total de afastamentos em todos os anos, foram responsáveis por cerca de 80% dos dias de afastamento. E as licenças por adoecimento psíquico, apesar de corresponderem a pouco mais de 10% dos afastamentos anuais, foram respon-

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sáveis por cerca de 20% dos dias de trabalho perdidos, atingindo quase 30% dos dias de afastamento em 2014. Isso realça a influência do adoecimento mental, com licenças mais prolongadas em relação aos afastamentos por doenças clínicas. Na duração média dos afastamentos (número total de dias de afastamento no ano/número total de afastamentos), observa-se que o adoecimento dos profissionais de saúde gerou licenças prolongadas, de 24 dias por ano, em média, o que significa que a cada ano um mês é consumido pela ausência do trabalhador em seu posto de trabalho em decorrência de alguma doença. Esses dados são altamente relevantes e exigem a reflexão sobre como o trabalho, que representa a sustentação do indivíduo e sua família, a idealização da missão de cada pessoa, sua participação social e, especialmente na área da saúde, que cuida e acolhe o próximo, retorna com o adoecimento do seu trabalhador de forma constante e significativa. É possível conviver com essas questões sem serem avaliadas e enfrentadas em sua origem e convenientemente prevenidas? Aspectos relacionados à vulnerabilidade do profissional de saúde em cada categoria profissional Assistentes sociais Os assistentes sociais convivem continuadamente com questões que envolvem a marginalidade e transgressão sociais, associadas à ausência no SUS e privado de estrutura que acolha pacientes em várias situações de riscos e vulnerabilidades individuais e sociais. Inclui a desorganização do Estado para o atendimento de pacientes com limitações socioeconômicas, insuficiência familiar, no limite da vida, sob cuidados paliativos, com dificuldades de cognição ou doença mental e que perderam a autonomia e não conseguem viver sozinhos, com crianças e adolescentes sem família e sem encontrar alternativas dignas para todos. Seu envolvimento emocional é intenso e por vezes não resolutivo, o que obriga os assistentes sociais a conviver com ineficiência institucional, que é introspectada, e gera sentimentos de incapacidade, depressão, angústia e vazio existencial. A maioria nessa profissão é exercida por mulheres, o que adiciona as questões próprias de jornada dupla de trabalho, o cuidado da própria família, os salários depreciados e a dificuldade de sobrevivência pessoal. Esse conjunto de fatores possui elevado poder de promover adoecimento psicossocial deletério e que pode impedir a perspectiva de vida de bem-estar12. Agentes comunitários de saúde Os agentes comunitários de saúde (ACS) apresentam importante vulnerabilidade ao sofrimento, determinada, especialmente, pela tensão entre o seu ideário profissional e a real prática de sua missão e que inclui as limitações do modelo assistencial determinado pelo Programa de Saúde da Família (PSF) na Atenção Básica à Saúde (ABS)1,2,13,29,35,36,40,41. O trabalho na ABS no Brasil baseia-se, predominantemente, em modelo relacionado à doença e à intervenção médica individual. A equipe básica do PSF é constituída por um médico generalista, um enfermeiro, dois auxiliares de enfermagem e cinco a seis ACS e, dependendo do município e sob regime referencial, com profissionais de saúde bucal, mental e de reabilitação. O PSF propõe a assistência integral, com ações preventivas, de

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promoção da saúde e curativas. E a busca da qualidade de vida e da cidadania em cada etapa do processo de sua atenção, com visão interdisciplinar, e de seu trabalho baseia-se na supervisão contínua do ACS pelo enfermeiro. O PSF enfatiza a universalização e descentralização de suas ações, com a participação da comunidade; a substituição do modelo de atenção primária centrado na relação médico-paciente e no atendimento individual; a integralidade e hierarquização da atenção à saúde, com referência e contrarreferência interdisciplinar e multidisciplinar; a territorialização na atenção a todas as pessoas; e a ação de equipe multiprofissional36,38,39. Os cidadãos buscam, inicialmente, diante de sua necessidade, o ACS para informação, reclamação ou solução de um problema de saúde e dele esperam a resposta em relação às cobranças e exigências, nem sempre obtida de forma simples. Espera-se que o trabalho do ACS seja bem-aceito pela comunidade e consiga ultrapassar preconceitos e sigilo, com ética, comunicação fácil e capacidade de se integrar à equipe interdisciplinar para a obtenção da vigilância à saúde, de forma organizada e planejada. Sua função inclui a identificação e observação contínuas dos problemas que afetam a saúde de cada pessoa e da população em geral, em sua região de trabalho, inclusive por intermédio da visita domiciliar; com a supervisão individual, coletiva e contínua de grupos especiais de vulnerabilidade, para entender a sua necessidade, implícita ou não, e ajudar a superar essas dificuldades em busca de condições adequadas de saúde; além de esclarecer sobre educação para a saúde; envolvendo em todas as suas ações a participação do indivíduo e sua comunidade e de toda a equipe de saúde, desde a identificação dos problemas até propostas para sua resolução e o controle adequado dos fatores que desencadeiam a morbimortalidade reconhecida. É necessário, em sua função, o desenvolvimento das ações básicas, como incentivo ao aleitamento materno, acolhida precoce das gestantes ao pré-natal, prevenção das doenças prevalentes, busca ativa de portadores de doenças crônico-degenerativas sem acompanhamento de seu estado de saúde, identificação precoce de doenças de notificação compulsória, além do desenvolvimento do conceito de participação popular como corresponsável nas ações e controle da qualidade da assistência à saúde. Espera-se que o ACS em sua missão seja capaz de realizar: observação, identificação, difusão de conhecimentos, integração, incorporação de valores, juízo profissional, iniciativa e produtividade. Esses objetivos nem sempre são obtidos, o que faz o ACS buscar esforços para se superar e se mostrar capaz, para a sua equipe e a comunidade, de que é útil na missão do PSF. Esse processo resulta em apreensão e sofrimento para o ACS, com riscos de depressão, angústia, frustração e desamparo32,40,41. O modelo de supervisão do ACS, sob responsabilidade do enfermeiro, foi se adaptando às condições precárias de sua implementação e condução, sendo hoje fundamental que supere o desafio de obter capacitação, educação continuada e resolução das suas demandas psicoafetivas. O cumprimento da excepcional missão do ACS requer o comprometimento de políticas públicas com os pressupostos constitucionais do SUS, a começar pelo seu financiamento adequado; valorização e o respeito pelo trabalho de todos os membros do PSF; e a participação multi e interdisciplinar na ABS dentro do limite de atuação de cada profissional de saúde. A sociedade brasileira permanece sob condições precárias de educação baseada na domesticação, sem a perspectiva de libertação; atrelada à dependência colonialista e com economia dependente das potências industriais, mantida pelos produtos gerados pela agricultura e criação de gado e aves; submetida ao mercado sob pouca influência dos seus

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interesses; com corrupção em todos os seus níveis de organização; com políticas públicas imediatistas e sem projeção para o desenvolvimento sustentável e sem comprometimento com a preservação da natureza; com as relações sociais valorizadas constituídas na ganância, rápida obtenção de patrimônio, estética e juventude. Esses fatores geram isolacionismo, tensão, violência, uso de drogas lícitas e ilícitas, tráfico de influências de toda natureza, desagregação social, guerra civil velada. É nesse contexto que se situa o trabalho do ACS. O trabalho do ACS apresenta-se, portanto, com características que determinam riscos: a) Biológicos: representados pelo uso de material perfurocortante e contato com fluidos corpóreos; b) físicos e organizacionais: dependentes de várias circunstâncias que ultrapassam a sua capacidade de controle, como: vinculação direta e diária com cada pessoa e a população, o que pode gerar conflitos devidos à imposição de normas e regras para a proteção da saúde individual e coletiva, sem a natural discussão de sua utilidade e limites; questões administrativas devidas ao distanciamento entre o projeto do PSF e seus objetivos originais; o modelo de supervisão do seu trabalho relacionado ao enfermeiro; as relações intraequipes e interdisciplinares inadequadas, que podem desgastar o trabalho; c) emocionais: devidos ao desgaste emocional, violência e irresolutividade do trabalho. A vulnerabilidade à violência na UBS depende do processo de trabalho, da necessidade de saúde das pessoas e da comunidade, da exposição à agressão e ao agressor, da gestão em saúde; das condições sociais, econômicas e culturais da realidade em que o trabalho está inserido. A vulnerabilidade relaciona-se à probabilidade de atuação do ACS criar e desencadear conflitos baseados, especialmente, na incoerência e no confronto com a realidade, isto é, se autodelega defensor da comunidade que assiste, com a tomada de decisões que podem ser desafiadoras para as pessoas e a comunidade. A carga psíquica envolvida no trabalho do ACS, portanto, decorre da dificuldade em: i) atingir os pressupostos do PSF, em sua totalidade, e quanto à responsabilidade que possui em sua área de atuação, o que provoca, em geral, sentimento de culpa, de isolamento e tomada de decisões sem apoio de sistema de referência e contrarreferência; ii) relacionar-se adequadamente, de forma interdisciplinar e multiprofissional, à equipe do PSF; iii) responder, sem dificuldades, aos questionamentos da comunidade em que atua e em estabelecer as reais necessidades de cada pessoa; iv) entender o seu papel no PSF, que se constitui na porta de entrada para o SUS1,7,34,37,39. Enfermeiro, auxiliares e técnicos de enfermagem A enfermagem é profissão com muita responsabilidade, devido à sua natural atuação caracterizada pelo cuidar do ser humano doente e que apresenta, usualmente, instabilidade orgânica e mental, sofrimento e agonia, no limite da sua existência. Suas tarefas incluem o trabalho assistencial, de ensino e pesquisa; administrativo geral, em relação ao gerenciamento de serviço, assistência, ambiente, maquinários e equipamentos; planejamento das ações do cuidado de enfermagem; e de recursos humanos (gerenciamento de funcionários); condições que interferem decisivamente na sua qualidade de vida, por exigir contínuo esforço físico e mental; além de equilíbrio, juízo, retidão de conduta, equilíbrio

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emocional e conflitos diretos em sua equipe de trabalho. Essas responsabilidades exigem conhecimento científico para a prática, atenção, destreza, raciocínio rápido para planejamento e tomada de decisões, equilíbrio emocional e exigência de doação pessoal ao paciente mesmo diante de situações pessoais críticas, sem receber condições favoráveis, incluindo salariais e de regime de trabalho, para o desenvolvimento de suas atividades38,42,43. A equipe de enfermagem torna-se vulnerável em função de ser o maior grupo individual da saúde prestador de assistência ininterrupta, por executar cerca de 60% das ações de saúde, realizar o maior volume de cuidado direto por intermédio de contato físico com o doente e executar rotineiramente procedimentos invasivos, principalmente administração de medicação injetável. Os acidentes de trabalho ocorrem devido ao uso inadequado ou resistência ao uso de equipamentos de proteção individual (EPI), mas, especialmente, em decorrência de sobrecarga de trabalho, autoconfiança, autodescuido, falta de capacitação e insuficiência de medidas de prevenção e reduzido número de caixas coletoras para material perfurocortante. A vulnerabilidade da equipe de enfermagem decorre também da organização do trabalho, dos conflitos e ambiguidades nos papéis da equipe que gerencia, da falta de participação da equipe nas decisões administrativas superiores; de longas jornadas de trabalho, do rodízio de horários (perda de contato familiar e social), da sobrecarga de trabalho; do número insuficiente de pessoal e de recursos materiais; da mudança constante das regras do trabalho e excesso de burocracia; de conflitos com a equipe médica e da falta de reconhecimento profissional; da alta competitividade, dos baixos salários, da pressão por mais produtividade, da falta de confiança e companheirismo. Alguns fatores físicos podem ser realçados, como os que decorrem de trabalho em que existem riscos relacionados aos produtos químicos (para a limpeza hospitalar, medicamentos, produtos para limpeza de equipamentos, antiblásticos), biológicos (bactérias, fungos, vírus, resistência microbiana), físicos (ruídos, radiações, radiosótopos), mecânicos (transporte e/ou movimentação de pacientes; acondicionamento e preparo de materiais), psicossociais (pacientes agitados, descontrolados, agressivos, com contaminação pelo contato ou pela via aérea). Na UBS, os riscos e vulnerabilidades relacionam-se à deficiência de recursos para o trabalho, à violência física e ao desgaste emocional. No contexto hospitalar, destacam-se os acidentes com material biológico relacionados ao seu uso inadequado e não adesão às medidas de proteção, a sobrecarga de trabalho e a autoconfiança de que é capaz de fazer todas as tarefas43-46. O trabalho do enfermeiro suscita, em relação aos pacientes, sentimentos intensos e contraditórios, como: piedade, compaixão e amor, culpa e ansiedade e ódio e ressentimento. E podem ter, em relação e às instituições onde trabalham, angústia e dúvidas sobre seus objetivos. O paciente e seus familiares podem também expressar em relação ao enfermeiro: apreço, gratidão, afeição, respeito, solidariedade e preocupação; e ao hospital, a crença de que funciona bem. O paciente relata, usualmente, dependência, má-vontade em relação à disciplina imposta pelo tratamento e rotina hospitalares e inveja o enfermeiro pela sua saúde e competência, sendo exigentes, possessivos e ciumentos. Os baixos salários obrigam o enfermeiro a ter mais de um emprego, o que multiplica sua sobrecarga de trabalho, seu esforço físico e mental; a simultaneidade de múltiplas funções, o tempo exíguo para o planejamento de suas ações; as condições inadequadas do ambiente de trabalho (iluminação, temperatura, ruído), de maquinário e equipamentos. Esses problemas promovem: insatisfação, improdutividade, absenteísmo e abandono da sua tarefa, acidentes, doenças ocupacionais, sentimento de fracasso e exaustão, alto grau

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de tensão, angústia e ansiedade, mudanças de emprego. Observa-se que até cerca de 50% dos enfermeiros de hospital-escola apresentam distúrbios psicoemocionais, com repercussões sobre a qualidade do serviço prestado, a sua rotina de trabalho e a sua vida pessoal e social46-52. É preciso reconhecer esses problemas para repensar as práticas de forma crítica e transformadora, para a busca de mudanças políticas, culturais, cognitivas e tecnológicas, capazes de influenciar as mudanças que proporcionem melhores condições de trabalho e de vida50-52. Médico As qualidades do médico dependem de sua formação moral e ética e do equilíbrio emocional que desenvolve em sua experiência de vida. É demonstrável pelo interesse real e que expressa pelo paciente. Depende do conhecimento da natureza humana, da equanimidade de que trata as questões em que participa, sem preconceitos nem interesse pessoal (conflito de interesse), do entendimento e envolvimento com as lutas justas e necessárias para solução dos complexos problemas individuais e sociais, que marginalizam e subjugam o ser humano. Torna-se mais exigente a tarefa médica quando se sabe que toda pessoa, quando sente a perda da saúde delega, como em pacto, ao seu médico a luta em defesa de sua vida, com todas as suas forças. Os riscos representados pelos médicos refletem a luta histórica profissional em vencer as doenças e a morte dos pacientes7,32,33,37,53-56. No Brasil, são mais de 200.000 médicos, sendo que em torno de 65% vivem nas regiões metropolitanas das grandes capitais (vocação urbana); 50% têm parentes médicos, o que revela estreita relação entre escolha matrimonial e profissões da saúde (linhagem médica e afinidade profissional); 75% são adultos jovens (têm menos de 45 anos de idade); apresentam aumento rápido do contingente feminino (32,8%), revelando sua feminização; remuneração assalariada e diminuição da sua atividade liberal e da sua autonomia profissional (50% possuem três a quatro atividades; 50% são plantonistas; 80% dos que trabalham em consultório particular possuem convênio); com formação baseada em 71% na residência médica; sendo 57,6% especialistas, especialmente 14% em Pediatria, 12% em Ginecologia-Obstetrícia, 8% em Clínica Médica, 6% em Cirurgia Geral, 4% em Cardiologia; 80% consideram sua atividade desgastante; e suas perspectivas de incerteza e pessimismo. O exercício profissional está sob intensa influência de novos recursos diagnósticos e terapêuticos, da indústria farmacêutica e de equipamentos e da presença das empresas compradoras de serviços médicos, o que tem repercutido com perda da autonomia e da remuneração profissional, comprometimento do estilo de vida médico tradicional, grande influência no estado de saúde do médico e comportamento ético nas relações médico-pacientes e seus familiares. O tratamento jornalístico insistente e sensacionalista das agruras relacionadas à obtenção de assistência médica pela população brasileira, com pouca reflexão sobre as suas reais causas, incita a impressão negativa da atuação médica. A divulgação de informações sobre os avanços tecnológicos em Medicina também ajuda a produzir intensa influência emocional, sendo considerado, em geral, que os novos recursos tecnológicos resolvem todos os problemas, o que os torna desejados e buscados pelos pacientes e familiares, muitas vezes baseado em perspectivas irrealistas ou tendenciosas. As leis (código de defesa do consumidor), normas e regulamentações que acompanham o desenvolvimento da bioética e o exercício da cidadania têm levado, muitas vezes, pa-

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cientes e seus familiares a processarem juridicamente, e de forma indevida, médicos e hospitais por imperícia, imprudência e negligência. Todos esses fenômenos tornaram o relacionamento médico-paciente, médico-médico, médico-organizações públicas ou privadas permeado de desconfiança e tornando a Medicina atividade desgastante, defensivista, não espontânea e com elevado risco de não ter vínculo. Os principais fatores de desgaste são: • excesso de trabalho; • baixa remuneração; • más-condições de trabalho; • responsabilidade profissional; • relação médico-paciente-família; • conflito-cobrança da população e perda da autonomia. O grau de idealização da profissão pode gerar elevadas expectativas que, se não correspondidas, tendem a produzir decepções e frustrações, com repercussões na saúde dos estudante, dos residentes e dos médicos32,33,60,61. O caráter altamente ansiogênico da profissão associa-se ao contato contínuo com: dor, sofrimento, intimidade corporal e emocional; cuidado de pacientes terminais, de difícil relacionamento, rebeldes, não aderentes ao tratamento, hostis, reivindicadores, autodestrutivos e cronicamente deprimidos, associado à incerteza e limitação do conhecimento médico e do sistema assistencial que se contrapõe às demandas e expectativas dos pacientes e familiares que desejam certeza e garantia de que se tornarão saudáveis. A síndrome do estresse profissional surge nesse âmbito e se caracteriza por: embotamento emocional, isolamento social, exaustão, fadiga, cefaleia, distúrbios gastrintestinais, dispneia, humor depressivo, irritabilidade, ansiedade, rigidez, negativismo, ceticismo, desinteresse, realização de consultas rápidas e rótulo depreciativo a todos os pacientes, evitando os pacientes e, inclusive, o contato visual com eles. Na residência médica, o estresse atinge o seu máximo e decorre de responsabilidade profissional, isolamento social, fadiga, privação do sono, sobrecarga de trabalho, pavor de cometer erros, depressão, ideação suicida, consumo excessivo de álcool, adição às drogas lícitas ou ilícitas, raiva crônica, desenvolvimento de ceticismo amargo e humor irônico. O resultado é a alta prevalência de suicídio, depressão, uso de drogas, distúrbios conjugais, disfunções profissionais62-65. Observam-se, em Minas Gerais, algumas características que prenunciam a vulnerabilidade médica e que incluem: quase a metade é jovem (48%), possui menos de 40 anos de idade; com formação pós-graduada (96,2%), baseada na residência médica (74%), mestrado (7,7%), doutorado (3,7%) e no exterior (10,8%); concentra-se nas regiões metropolitana de Belo Horizonte e na Zona da Mata; com mais de dois empregos; e melhor remuneração entre 41 e 60 anos de idade; e atividade realizada principalmente em consultório (84,4%), sendo 66,2% no setor privado e 58,7% no setor público. Os médicos com menos de 30, entre 30 até 40, mais de 40 até 60 e mais de 60 anos de idade possuem, em sua maioria, respectivamente: residência médica, trabalho em instituição pública, dois a três empregos, remuneração entre 20 e 40 salários mínimos; residência médica, trabalho em hospital privado, dois a três empregos remuneração entre 20 e 40 salários mínimos; residência médica, trabalho em consultório e em hospital privado, remuneração de mais de 40 salários mínimos; formação por outros meios que não a residência médica, trabalho em consultório e em hospital privado e remuneração de mais de 40 salários mínimos32,33,37,66.

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Registram-se, entre os estudantes de Medicina, riscos especiais, como: a prevalência de acidentes de 27,4%, sendo que 47,5% deles ocorrem ao cursarem o oitavo período, especialmente devido à perfuração de pele íntegra. Em 349 acidentes de trabalho acompanhados no início da década de 2010, foram verificados aumentos progressivos dos acidentes em sua prática, de 33,9 para 52,3% entre o quinto e o 11o períodos, sendo 63% deles determinados por agulhas ou objeto cortante, 18,3% afetando mucosas, 16,6% a pele e 17% pele e mucosa. Os principais contaminantes foram: sangue (88,3%) e secreção vaginal (1,7%). As regiões mais afetadas foram: mãos (67%), olhos (18,9%) e boca (1,7%). Os procedimentos no momento do acidente eram a realização de sutura (34,1%), administração de anestesia (16,6%), participação em cirurgia como observador (8,9%), punção de veia com agulha (8,6%) e observação de parto (6,3%). O setor de biossegurança foi procurado em 49% dos casos, o que representa como o acidente foi banalizado, pois de todos os estudantes, 29,2% não receberam assistência médica, 87% receberam antirretrovirais, 86% descontinuaram os antirretrovirais após determinação de que a sorologia do paciente-fonte era negativa para o vírus da imunodeficiência humana, 6,4% não conseguiram tomar a medicação e 16% completaram o tratamento30,32,33,39,67,68. Todos esses fatos revelam a vulnerabilidade da atividade médica, inclusive de alunos de Medicina, e como, mesmo se tratando de profissional de elevado nível intelectual e de sensibilidade e que se submetem à seleção árdua e formação intensa e demorada, estão expostos a sérios riscos em seu trabalho que podem resultar em várias consequências, inclusive graves e irreversíveis31,69,70. Dentistas e técnicos de laboratório odontológico A prática odontológica associa-se, especialmente, aos riscos associados ao ruído excessivo determinado pelo uso de motores com altíssima frequência; às posturas incorretas e duradouras, em pé ou assentada, à rotação da coluna, aos movimentos dos membros superiores dos punhos e dedos das mãos; e à transmissão de doenças infecciosas pelo contato com saliva e sangue. O trabalho individualizado, usualmente presente entre os dentistas, propicia solidão e estresse em relação à incerteza do futuro, ao desgaste físico e à competitividade do mercado de trabalho. Os acidentes de trabalho, por intermédio de material biológico, são mais frequentes entre profissionais de nível médio, mais frequentes com técnicos de laboratório7,34,71. A síndrome do túnel carpal (STC) tem incidência maior em dentistas, principalmente periodontistas, endodontistas, exodontistas e em higienistas dentais. As mulheres são mais suscetíveis, em proporção variável de 3:1 a 10:1 em relação aos homens. A STC é a principal responsável pela perda de horas de serviço de trabalhadores que desenvolvem movimentos repetitivos ou que submetem as mãos à vibração contínua, sendo mais incidente na faixa etária entre 39 e 40 anos. O desconforto musculoesquelético é notado em até 81% dos dentistas, com mais intensidade nas regiões da coluna cervical, ombro, pescoço, mão (dedos polegar, indicador médio e anular em ordem decrescente) e punho. Decorre da compressão do nervo mediano, no nível do canal do carpo, formado por rígidas e estreitas estruturas por onde passa o nervo mediano, na altura do punho. O nervo mediano é, nessa região, vulnerável à compressão e lesão. Manifesta-se, em geral, depois de trabalho intensivo e repetitivo, com queixas desde vagas até associadas a dor difusa, adormecimento e fadiga muscular; e evolução para alterações sensitivas, motoras ou tróficas limitadas ao

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território do nervo mediano. O adormecimento e a parestesia geralmente localizam-se na porção distal do braço ou punho, com irradiação para os dedos médios (indicador, médio e metade radial anular) e polegar, mais frequentemente o indicador. É comum determinar, à noite, hiopoestesia nas mãos. A dor ou desconforto pode se irradiar até o ombro e ser contínua, intermitente ou paroxística e exacerbada pelo movimento, força ou uso excessivo da mão. É comum ocorrer transtornos do tato superficial ou discriminação tátil defeituosa, entretanto, raramente, provoca transtornos tróficos. Em casos mais graves pode haver hipotrofia ou atrofia tenar. O primeiro sinal de alteração motora é a lentidão de movimentos tenares pela manhã, que pouco a pouco melhoram durante o dia. À medida que evoluem a hipotrofia e a parestesia, os movimentos de coordenação do polegar e do indicador tornam-se débeis, rígidos e entorpecidos; e a força de preensão fica cada vez menor7,34,71-78. Fisioterapeutas Os distúrbios musculoesqueléticos (distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho ou lesões por esforço repetitivo) podem ocorrer em todos os profissionais de saúde, durante a sua prática laboral. Os fisioterapeutas constituem profissão, especialmente exposta aos riscos de distúrbios musculoesqueléticos ocupacionais, havendo necessidade de conscientização sobre a utilização adequada do próprio corpo, dos riscos da profissão com objetivo de prevenir futuras limitações físicas73,79,80. A sobrecarga do sistema musculoesquelético associa-se a: condições ergonômicas, muitas vezes precárias no local de trabalho; movimentos repetitivos de suas atividades; esforço em realizar a transferência de pacientes; postura estática e os movimentos repetitivos das mãos durante as práticas fisioterapêuticas; e frequente exposição à sobrecarga mental81-83. Os distúrbios musculoesqueléticos são relatados por 85,4% dos fisioterapeutas, especialmente por: 80,5% das mulheres, 41,4% daqueles com 24-30 anos de idade; com cinco ou menos anos de profissão; 70,7% e 63,4% dos que trabalham em hospitais e em clínicas, respectivamente. A ocorrência desses distúrbios parece relacionada à carga de trabalho e ao número de atendimentos diários. As lesões localizam-se predominantemente na coluna cervical e lombar e membros superiores (punhos, mãos e dedos)83-87. Em 65,7% dos fisioterapeutas acometidos pelos distúrbios musculoesqueléticos observa-se modificação da sua prática, desde a adoção de preocupação com a biomecânica corporal até o abandono da profissão. Entretanto, ressalta-se, em alguns, a falta de autocuidado e prevenção. É importante o conhecimento das possíveis repercussões da prática profissional sobre a qualidade de vida, de forma a permitir ações de prevenção, o que inclui medidas ergonômicas e de valorização profissional79,81,82,86,87. Fonoaudiólogos Os principais fatores de desgaste são: excesso de trabalho, baixa remuneração, más condições de trabalho, responsabilidade profissional, relação conflituosa com o paciente e sua família. O grau de idealização profissional pode gerar elevadas expectativas e, caso não sejam correspondidas, tendem a produzir decepções e frustrações com repercussões em sua saúde e dificuldades de relacionamento multiprofissional7,88.

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O caráter ansiogênico profissional associa-se à convivência que desenvolve ao lidar com a dor, sofrimento, intimidade corporal e emocional; cuidado de pacientes terminais, de difícil relacionamento, rebeldes, não aderentes ao tratamento, hostis, reivindicadores, autodestrutivos, cronicamente deprimidos, em uso de sondas nasogástricas, nasoentéricas ou ostomias. São aspectos que impedem a vida de relacionamento dos pacientes e o prazer do sabor dos alimentos associado à dificuldade de resposta de seus pacientes às manobras usadas para lhes dar alívio, que se contrapõem às demandas e expectativas dos pacientes e familiares que desejam certeza e garantia de que se tornarão saudáveis88. Os seus riscos são semelhantes, potencialmente, aos de médicos com embotamento emocional, isolamento social, exaustão e fadiga. Farmacêuticos Os farmacêuticos que trabalham em ambiente de laboratório convivem com os riscos, que podem ser físicos e químicos, variados, que refletem a contaminação bioquímica, radioisotópica e radiológica. E os que trabalham na prática clínica, seja ambulatorial ou hospitalar, sofrem toda a agonia de receberem os reflexos da dificuldade social de seus pacientes como da dificuldade das instituições em oferecerem condições adequadas de trabalho. Sofrem ainda a pressão representada pela influência do poderoso sistema econômico-financeiro representado pelas indústrias químico-farmacêuticas e de equipamentos médico-hospitalares para que seus produtos sejam mercadologicamente viáveis e recompensem seus investimentos. Todos esses fatos podem repercutir de forma deletéria sobre o relacionamento individual e social que precisa enfrentar em sua atividade e a conduta ética e solidária, isenta e digna com seu paciente7. Assim como ocorre com os médicos, sofrem potencialmente o desgaste de excesso e más-condições de trabalho, baixa remuneração, responsabilidade profissional, conflito-cobrança da população, perda da autonomia. O grau de idealização da profissão pode gerar expectativas não correspondidas que podem produzir decepções e frustrações com repercussões na sua saúde7,89. Psicólogos O grau de idealização da profissão pode gerar elevadas expectativas que devem ser avaliadas em sua realidade ao tratar da complexidade profissional que remete ao comportamento humano. A profissão pode assumir caráter altamente ansiogênico, como ocorre com os médicos, e decorre do contato contínuo com: dor, sofrimento, intimidade emocional; cuidado de pacientes de difícil relacionamento, rebeldes, não aderentes ao tratamento, hostis, reivindicadores, autodestrutivos, cronicamente deprimidos, associado à incerteza e limitação do conhecimento e do sistema assistencial, que se contrapõem às demandas e expectativas dos pacientes e familiares que desejam garantia de que se tornarão saudáveis7. A síndrome do estresse profissional pode assumir proporções de adoecimento intenso, em que prevalece: embotamento emocional, isolamento social, exaustão, fadiga, distúrbios psicofuncionais, irritabilidade, ansiedade, ceticismo, desinteresse.

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Estratégias para adoção de práticas seguras no trabalho em saúde A compreensão dos riscos e da vulnerabilidade profissional começa com a educação formal, desde o ensino fundamental, pelo conhecimento sobre as profissões, e seu aprofundamento no ensino médio, para que a opção profissional seja feita não só pela vocação e talento, mas também pelo entendimento de seu limite pessoal no seu enfrentamento e pela forma mais adequada de exercê-la no futuro, com a real compreensão de seus deveres e dificuldades7,14,90,91. É preciso também que as representações sociais dos profissionais da área da saúde, como sindicatos, associações e conselhos, exerçam seu papel de forma a que as leis de exercício profissional atuem em seu propósito de ordenar de forma ética o trabalho e defendam a profissão e seus profissionais quanto ao bem social que exercem de forma digna, com condições de organização e estrutura que permitam o acolhimento e a consideração, de forma respeitosa, das pessoas que buscam seus serviços45,57,92,93. É fundamental que os profissionais da área da saúde tenham a possibilidade de discussão de sua condição de trabalho desde a graduação e possam se manter atualizados por intermédio de reciclagem instrucional e reflexiva sobre seu propósito de trabalho em toda a sua vida profissional, de forma institucionalizada, em instituições públicas ou privadas e com participação de seus órgãos representativos. As ações de educação permanente ou de capacitação são essenciais como estratégia para a adoção de boas práticas em seu trabalho. Essas atividades contribuem para que os trabalhadores tenham consciência das consequências de suas práticas para a saúde e da importância das precauções e medidas de biossegurança no exercício profissional, entre as quais se incluem a prevenção de acidentes com material perfurocortante, a prevenção de doenças infecciosas, o entendimento das dificuldades de seus pacientes e de sua família e como lidar com a frustração e o limite da ciência. A educação continuada (treinamentos, seminários temáticos, reuniões clínicas) deve ocorrer regularmente, no próprio horário de trabalho, com a participação de toda a população e de todos os profissionais na definição dos temas a serem discutidos, assim como nas campanhas para o autocuidado, com importância especial para a higienização das mãos e adoção e uso de equipamento de proteção individual22,25,66. As instituições de saúde precisam mostrar para toda a sociedade os riscos de seus profissionais, para que sejam valorizados em seu comprometimento com o serviço que prestam. É um desafio para todos os profissionais de saúde a adoção de medidas que visam a mudanças de comportamento e à ampliação de estratégias para a prática segura de trabalho. Essa mudança não é tarefa fácil e requer esforços conjuntos dos serviços de saúde e dos próprios trabalhadores na promoção da saúde e prevenção de seus agravos. Na busca pela adoção de mudanças para evitar exposições ocupacionais, o enfermeiro, elo da equipe e formador de opinião, pode desempenhar importante papel, pois suas ações são referenciadas em toda a sua equipe14,90,91. A prevenção da saúde precisa ainda ser considerada de responsabilidade não só do Estado e do setor privado, mas de toda a sociedade, para que as mudanças necessárias sejam obtidas diante da realidade sanitária do Brasil. Torna-se relevante o fortalecimento de ações interdisciplinares e intersetoriais em relação ao planejamento e às ações, em respeito aos direitos humanos, individuais e sociais, para que sejam obtidas mudanças de valor nas práticas de cuidado à saúde. A implementação de medidas de prevenção de acidentes

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de trabalho e promoção à saúde do trabalhador deve ser institucionalizada e trabalhada em conjunto com o serviço de Engenharia, Medicina e Segurança do Trabalhador, das Comissões Internas de Prevenção de Acidentes, assim como de todas as demais estruturas organizacionais que se encarregam de educação e vigilância em saúde. Algumas medidas que podem tornar as condições de trabalho mais seguras são: estabelecimento de plano de gerenciamento de resíduos com critérios bem-definidos, de forma a contemplar todos os requisitos das legislações vigentes; imunização adequada dos trabalhadores; estabelecimento de protocolos de uso de EPI; planejamento de estruturas físicas que favoreçam a adoção de práticas corretas, como, por exemplo, lavatórios com recursos necessários para higienização das mãos e com acionamento de pedal, caixas de descarte de agulhas em locais de fácil acesso e não somente nos postos de enfermagem; utilização de dispositivos e agulhas com mecanismos de segurança. É importante estabelecer o fluxograma para atendimento do trabalhador vítima de acidentes de trabalho e que permita conhecer as suas características epidemiológicas. A avaliação da maneira como o trabalho é dividido e organizado também é fundamental para a adoção de práticas seguras, especialmente para os acidentes de trabalho típicos envolvendo trabalhadores que desempenham funções sujeitas aos altos riscos profissionais. É preciso conhecer a forma de inserção social do trabalhador e como os processos de trabalho provocam desgastes. A gama de variáveis que compõem o trabalho hospitalar exige a preservação e promoção da saúde daqueles que se dedicam a cuidar da saúde de outros, e por isso não pode perder a sua própria situação de higidez22,25,90,91. As estratégias para a adoção de práticas seguras relacionadas a riscos ocupacionais, acidentes de trabalho e vulnerabilidade vão além de medidas de segurança, de mudanças estruturais e organizacionais. Requer de todos a postura voltada para a complexidade do problema, de forma a conscientizar todos sobre a importância do seu autocuidado. A educação em saúde é a essência do problema, com posicionamentos interdisciplinares e intersetoriais, envolvendo gestores, profissionais, estudantes, sociedade, de forma a olhar para o autocuidado, cuidado do outro e do ambiente de trabalho22,25. É preciso incluir a compreensão da dimensão psicológica na formação de todos os profissionais da saúde, o que inclui: a motivação para a profissão, a idealização do seu papel e de suas reações vivenciais durante a graduação, para a reflexão e trocas de experiências; a criação de serviços de orientação psicopedagógica para estudantes e de serviços de orientação psicológica e psiquiátrica. Considerações finais Os riscos e a vulnerabilidade presentes na prática dos profissionais de saúde são variáveis de acordo com a categoria profissional e a forma de sua atuação. Os riscos ocupacionais associam-se, entre os médicos, à responsabilidade que têm para com seus pacientes em relação à vida e à morte, o que pode desencadear desajustes psicossociais; entre enfermeiros, em relação ao risco de contaminação biológica, além do contato contínuo com o sofrimento e agonia de seus pacientes; entre cirurgiões-dentistas, pelo risco de contaminação biológica e isolacionismo; entre todos os profissionais de saúde, pelos sentimentos de angústia, solidão e reflexão sobre sua capacidade de resolutividade e a recepção psíquica de toda a agonia de seus pacientes para a obtenção de higidez e para a compreensão da finitude da vida.

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Acrescem aos fatores pessoais aqueles relacionados à estrutura organizacional do sistema de saúde, predominando na atenção ambulatorial aqueles relacionados, principalmente, à deficiência de recursos para realização do trabalho, à violência física e moral e ao desgaste emocional presente no contexto socioeconômico-cultural em que se insere. E no ambiente hospitalar destacam-se os acidentes de trabalho com material biológico. Acrescentam-se em todos os locais de trabalho o uso inadequado ou resistência de EPI, a sobrecarga de trabalho e a autoconfiança. Percebe-se baixa adesão às medidas de proteção à saúde, apesar do conhecimento, pelos trabalhadores, sobre a prevenção ao risco biológico37,91,92. A estratégia para o trabalho mais seguro requer educação permanente visando à capacitação e à conscientização para a boa prática profissional. E ressalta-se a necessidade de ampliar a discussão sobre os riscos ocupacionais, os acidentes de trabalho e a vulnerabilidade nas práticas profissionais, com o objetivo de elaborar políticas de saúde para o trabalhador que tornem adequadas as suas condições de trabalho e mais satisfação profissional. É preciso, portanto, a promoção de avaliações seguras sobre os processos de trabalho e o conhecimento sobre a subjetividade do trabalhador para identificar resistências e possibilitar a adesão às medidas de autoproteção. O exercício da autonomia em forma de decisões ativas pode diminuir os riscos ao evidenciar a vulnerabilidade dos profissionais da área da saúde como ser humano, seja ela estrutural, individual ou social; e a necessidade de que respondam à transformação das práticas no sentido pessoal, mas também com a sua responsabilidade social. Agradecimento: ao Departamento de Atenção a Saúde do Trabalhador (DAST) da Universidade Federal de Minas Gerais, que forneceu dados atuais sobre a saúde dos profissionais da área da saúde do Hospital das Clínicas e que enriqueceram a discussão aqui apresentada. Referências 1. ADAY LA. Economic and nom-economic barriers to the use of neede medical services. Med. Care, 13: 447, 1975; 2. AMESTOY SC, SCHVEITZER MC, MEIRELLES BHS, BACKES VMS, ERDMANN AL. Paralelo entre educação permanente em saúde e administração complexa. Rev Gaucha Enferm.2010;31(2): 383-87. 3. AYRES JRCM. Sobre o risco: para compreender a epidemiologia. São Paulo: Hucitec; 2002. 4. BARROS IP, TIPPLE AFV, SOUZA ACS, PEREIRA MS. Resíduos biológicos nos Institutos de Medicina Legal de Goiás: implicações para os trabalhadores. Rev Eletr Enferm 2006; 8(3): 317-25. 5. CAIXETA RB, BARBOSA-BRANCO A. Acidente de trabalho, com material biológico, em profissionais de saúde de hospitais públicos do Distrito Federal, Brasil, 2002/2003. Cad Saude Publica. 2005; 21(3):737-46. 6. CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. 2ª ed. Rio de Janeiro. Forense Universitária, 1978: 270 pág. 7. CIORLIA LAS, ZANETTA DMT. Hepatite C em profissionais da saúde: prevalência e associação com fatores de risco. Rev Saude Publica.2007;41(2):229-35. 8. CODO W. Um diagnóstico integrado do trabalho com ênfase em saúde mental. In: JACQUES MG, CODO W, organizadores. Saúde mental e trabalho. Petrópolis: Vozes;

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A interface da vulnerabilidade abordada pela atenção básica na saúde e na assistência Telmo Mota Ronzani Pedro Henrique Anthunes da Costa Fernando Santana de Paiva Erica Cruvinel Taynara Dutra Batista Formagini Amata Xavier Medeiros

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Introdução Ao debater sobre o tema drogas e suas repercussões na sociedade, é importante definir como se percebe a questão do uso e qual o papel que elas têm na sociedade. Afinal, assume-se aqui que a maneira como se percebe a questão influenciará diretamente na forma como se posiciona e age na sociedade. É notório que o uso de drogas é parte integrante da história humana e com diferentes funções e finalidades. Algumas delas religiosas ou ritualísticas, outras recreativas e até mesmo terapêuticas1. Porém, ao ampliar um pouco mais a questão, partindo de uma perspectiva individual para uma visão sociocultural, pode-se observar que existem aspectos socioeconômicos e geopolíticos a serem considerados, seja no nível social ou até mesmo no ponto de vista da saúde pública2. Como exemplos, podem-se citar os dados apresentados pela Organização das Nações Unidas para Drogas e Crimes (UNODC), que demonstram que o tráfico de drogas se constitui em uma das atividades ilícitas mais lucrativas do mundo. Essa mesma organização argumenta que em função do tráfico de drogas e de toda a cadeia de lucro envolvida nesse poderoso e potente mercado, surgem impactos diretos sobre questões geopolíticas, tais como a formação de bases militares nos chamados países produtores de drogas e demais consequências, como o impacto do mercado ilegal de drogas para países, cidades e comunidades3. Portanto, apesar da literatura demonstrar os possíveis impactos do uso de álcool, tabaco e outras drogas no organismo, o enfoque apenas nos aspectos biológicos limita o entendimento de um problema tão complexo como este4. Mesmo no campo da saúde especificamente, observam-se importantes mudanças na concepção sobre o uso de drogas, que deixa de ser visto meramente como uma “doença”, com enfoque na dependência, e passa a ser permeado por uma visão de saúde pública, que procura ultrapassar a esfera individual para uma abordagem comunitária e integrada, indo além, inclusive, do setor saúde5,6. Nesse sentido, o consumo de drogas, no campo da saúde, tem sido considerado uma condição crônica que, como quaisquer outras, como hipertensão e diabetes, são condições passíveis de prevenção e que evoluem ao longo do tempo relacionadas ao “modo de vida” das pessoas e condicionadas aos aspectos sociais e culturais em que vivem. Portanto, devem-se levar em consideração ações contínuas, de base individual e coletiva e o contexto em que tais pessoas estão inseridas7, o que justifica a adoção de uma lógica interdisciplinar e intersetorial, baseada no trabalho integrado de diversas categorias profissionais e setores, como o Sistema Único de Saúde (SUS) e Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Seguindo o raciocínio aqui exposto, o enfoque tradicional de saúde na área de dependência, limitado ao entendimento das funções neurológicas e farmacológicas para entender a questão de drogas, torna-se bastante restrito. Não se trata aqui de negar a compreensão e o avanço do conhecimento nessa área, mas de procurar trazer aprofundamento e ampliação da questão, não como antítese, mas como complemento. Logo, assume-se neste capítulo uma visão psicossocial do consumo de drogas, por entender que a esfera do cuidado inclui a compreensão da história de uso de substâncias e a relação de indivíduos e grupos com as drogas em determinado cenário sociocultural. O consumo de drogas, então, passa a ser entendido em uma interação entre droga-indivíduomeio, o que dá o real sentido dos problemas relacionados a esse consumo8. Por essa razão,

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é estéril falar sobre temas como vulnerabilidade e atenção integral no campo da saúde ou da assistência social se não se adota uma perspectiva psicossocial. O próprio conceito de vulnerabilidade, bem como a caracterização e os princípios dos cuidados primários em saúde e assistência social, como será visto a seguir, leva a um aspecto sistêmico e ampliado da questão9. Nessa linha, torna-se importante a compreensão de que o uso de substâncias também se refere não necessariamente a uma relação simples e direta de causa e efeito, mas a uma série de determinantes sociais. A ideia de se compreender o consumo de drogas a partir dos determinantes sociais pressupõe que, mesmo o uso de drogas estando presente em diversas classes sociais e em vários contextos, alguns determinantes tornam ainda mais pesada a carga social ou de doença em relação a tal comportamento. Exemplos de determinantes sociais conhecidos na literatura em relação ao uso de drogas são: pobreza, raça, gênero, desemprego, moradia, escolaridade, desnutrição, entre outros10. A compreensão de tais fatores ajuda a compreender a vulnerabilidade social vinculada ao consumo de substâncias para um cuidado e planejamento de ações mais adequadas. De forma prática, pode-se fazer o seguinte questionamento: as abordagens ou intervenções seriam as mesmas entre pessoas de classe média e as de classe socioeconômica mais baixa, sem moradia ou condições adequadas de alimentação?11,12. Outro aspecto importante a se considerar quando se assume a perspectiva psicossocial e se considera os determinantes sociais é o que se chama de “ciclo vicioso do uso de drogas”. Como já mencionado, alguns determinantes aumentam a vulnerabilidade social de usuários de drogas, que por sua vez deixam de procurar ajuda por receio do estigma associado ao uso e ao usuário, levando ao agravamento da condição de saúde e de outros problemas sociais1. A não procura por ajuda está associada, entre outros aspectos, às barreiras de acesso aos serviços - sendo elas geográficas ou de disponibilidade - ou à vergonha e ao receio dos usuários em procurar ajudar por serem alvos de estigmas e preconceitos oriundos de percepções sociais degradantes da sociedade em geral, mas também de profissionais de diferentes áreas que abordam a temática (saúde, assistência social, entre outras). Há impacto do estigma na abordagem aos usuários de forma aprofundada, mas sabe-se que tal condição leva ao distanciamento dos mesmos aos serviços, agravando ainda mais suas situações e gerando um ciclo vicioso1,13. Na mesma direção, acrescenta-se nessa linha argumentativa um dos grandes desafios com que se depara na linha de cuidado às pessoas, em especial em países em desenvolvimento e com grandes desigualdades sociais, que são as disparidades em saúde. Tem sido preocupação entre organismos internacionais, como a Organização Mundial de Saúde (OMS), que algumas populações específicas apresentam acessos comprometidos de cuidados em saúde, o que afeta sua qualidade de vida e suas atividades sociais de forma geral. As disparidades em saúde estão diretamente relacionadas aos determinantes sociais e apresentam forte recorte de classe social, raça e gênero14. Tem sido um grande desafio melhorar o acesso, qualidade e cobertura de saúde para alguns grupos, em especial negros, mulheres e pobres, uma vez que a visão de saúde como mercadoria ganha força e as políticas baseadas na universalização do direito à saúde encontram barreiras para sua efetivação15. Como se pode perceber, a intervenção junto aos usuários de substâncias requer um olhar para além dos efeitos das drogas em si e dos sinais e sintomas individuais comuns para se diagnosticar a síndrome de dependência. É preciso entender que, para uma inter-

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venção integral, deve-se compreender a dinâmica e os sistemas complexos por trás dessa temática. Por essa razão, o primeiro passo no presente capítulo foi contextualizar e definir como é compreendido o consumo e como tal comportamento está associado a outros aspectos contextuais. A partir dessa breve introdução pode-se apresentar uma discussão sobre vulnerabilidade social e uso de drogas e discutir pressupostos para uma atuação ampliada sobre a temática, enfatizando o trabalho integrado entre atenção primária à saúde (APS) do SUS e proteção básica do SUAS. Por fim, será apresentada a experiência dos autores deste capítulo de como se planejar uma ação integrada entre serviços, baseado no modelo psicossocial do uso de drogas. Uma perspectiva de análise sobre vulnerabilidades sociais e o consumo de drogas As transformações ocorridas nas últimas décadas no âmbito econômico com expressões nos planos político e sociocultural têm sido caracterizadas pela agudização das desigualdades historicamente existentes em meio à sociedade. Expressões como a pobreza e miserabilidade, processos de opressão relativos à raça, etnia, orientação sexual, sexo, idade e território têm sido constantemente observadas em diferentes partes do globo. Fruto das contradições que conformam nossa realidade social, tais expressões de desigualdade contribuem para a constituição de grupos sociais marginalizados no tocante à garantia de direitos sociais e, por conseguinte, impossibilitados de se constituírem como atores políticos emancipados e agentes fundamentais na concretização de um ideário democrático com vistas à efetivação de uma cidadania plena16. Convive-se em um cenário composto de sujeitos e grupos sociais imersos em um conjunto de vulnerabilidades sociais que têm relação direta com a emergência e/ou reconfiguração de questões que estão presentes na agenda política e social: o uso e abuso de drogas, as diferentes expressões da violência e criminalidade, a contaminação pelo HIV, etc.17 Indubitavelmente que para analisar e intervir adequadamente sobre tais questões, na ordem da sociedade moderna, é imperioso que se considerem as dimensões socioeconômicas sob as quais estamos assentados, o que significa partilhar da seguinte concepção: a realidade social conforma quadros de opressão e marginalização, os quais, por sua vez, estão estreitamente relacionados às expressões de vulnerabilidades em que determinados sujeitos se inscrevem e constituem suas subjetividades e identidades. A partir dessa linha argumentativa, acredita-se que pensar sobre a categoria “vulnerabilidade” implica considerar um conjunto de determinações sociais como elementos que explicitam os constrangimentos pelos quais inúmeros grupos sociais são interpelados em seu processo de constituição como sujeitos políticos, ativos e proponentes de suas histórias. Portanto, de maneira articulada e não isolada, as posições de classe social, sexo, raça, etnia, idade e território devem ser entendidas como categoriais presentes em nossa constituição como seres sociais, que potencializam quadros de vulnerabilidades sociais em razão das relações de poder existentes entre os diferentes grupos que conformam nossa realidade social. Partindo dessas considerações, cabe questionar acerca do tema central do presente texto: a questão da vulnerabilidade! Pois bem, quem são os vulneráveis? Como se constituem como sujeitos ou grupos vulneráveis? Por que alguns são considerados vulneráveis e outros não? Qual a matriz de compreensão que se pode empregar a fim de minimamente construir um argumento inteligível sobre essa questão? Uma matriz individual/biológica

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(como apreciam alguns)? Uma matriz social, que procura compreender a vulnerabilidade como resultado de um processo histórico, que expressa as contradições da sociedade vigente e conforma sujeitos individuais e coletivos em condições de vulnerabilidade? É preciso sinalizar que os autores deste breve manuscrito se aproximam da segunda opção: compreendem a vulnerabilidade a partir de uma dimensão social. Isso não significa romper ou negar as dimensões biológicas, tampouco as riquíssimas contribuições advindas das ciências médicas para pensar sobre a intrincada relação do homem com a sociedade. Trata-se de compreender que as práticas humanas (como o uso de drogas) não ocorrem em um vazio histórico e social e que, portanto, sua análise deve buscar compreender a relação que se constitui entre sujeito e realidade, considerando as determinações sociais que incidem sobre ele e, portanto, sobre suas práticas. Nessa direção, ao buscar responder à questão “quem são os vulneráveis?”, pode-se arriscar que são todos e todas que se apresentam em posições subalternas no âmbito da sociedade vigente. Aqueles que são classificados (no plano objetivo e simbólico) como subcidadãos que perfilam no tecido social urbano e rural do país18. Especificamente ao tratar a respeito do uso e abuso de drogas, em meio ao debate sobre vulnerabilidade, vale registrar as importantes contribuições que vêm sendo dadas a partir do entendimento acerca dos processos de saúde-doença que têm passado por intensas reformulações, em especial a partir das mudanças decorrentes da transição epidemiológica vivenciada ao longo das últimas décadas19. Atualmente, o uso e abuso de drogas contribuem para a formatação de um novo perfil epidemiológico no Brasil e em todo o mundo, no qual as doenças relacionadas a agentes etiológicos externos têm sido progressivamente substituídas pelo aumento da prevalência de morbidades crônico-degenerativas. Essa mudança tem sido a tônica dos debates sobre como formular políticas públicas mais adequadas e resolutivas. Cumpre salientar que compreender o uso e abuso de drogas exige amplos esforços para a conformação de novas modalidades de enfrentamento e modelos alternativos de atenção à saúde, priorizando políticas de redução dos quadros de vulnerabilidades e danos associados ao uso dessas substâncias, em detrimento das abordagens de cunho reducionistas e discriminatórias20,21. Dessa maneira, analisar o uso de drogas como uma prática manifesta por diferentes sujeitos tem sido um desafio, haja vista as explicações muitas vezes reducionistas, regadas a moralismos e preconcepções que não colaboram para uma reflexão ampliada acerca do tema. A culpabilização do sujeito tem sido comumente observada a partir dos discursos e práticas impetradas por instituições como a mídia, segmentos religiosos, aparato judicial e políticos conservadores, assim como por tradicionais alas da Psiquiatria que preferem o caminho da medicalização e individualização da questão em detrimento de uma análise mais abrangente e compreensiva. Essas análises não têm conseguido avançar no cuidado e, tampouco, no enfrentamento adequado da questão. Ao se privilegiar uma matriz individualista (biologicista e psicologizante) da problemática das drogas, perde-se de horizonte a referência da dinâmica social, bem como o aspecto das vulnerabilidades decorrentes dos determinantes sociais anteriormente sinalizados. As vulnerabilidades sociais dizem respeito às condições de existências das pessoas, em suas variadas possibilidades e/ou impossibilidades de se desenvolverem com liberdade e autonomia22. Acredita-se que essa delimitação é importante para tentar analisar como o uso e abuso de substâncias psicoativas são potencializadores de quadros de vulnerabilidade socialmente constituídos (pobreza, miséria, opressões de raça, sexo e etnia). Assim, se

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aceitar-se que o consumo de drogas é uma prática historicamente presente na cultura humana (conforme dito anteriormente), depreende-se que o uso e abuso (bem como os graus/ efeitos sentidos nos sujeitos usuários) estarão relacionados aos determinantes sociais que expressam quadros de vulnerabilidade socioculturais e político-econômicos. Por conseguinte, a relação que se estabelece entre o uso, abuso e tráfico de drogas e vulnerabilidade é de contradição, uma vez que as vulnerabilidades (decorrentes dos determinantes sociais acima mencionados) podem favorecer o uso e abuso, bem como potencializar os impactos e prejuízos na saúde e na constituição das identidades pessoais e sociais dos usuários. Dessa maneira, pressupõe-se que o uso de drogas não conforma quadros de vulnerabilidades, uma vez que os processos de opressão já fazem parte da realidade social na qual nos inscrevemos. Por outro lado, o uso abusivo de drogas pode contribuir para a constituição de quadros de marginalização mais agudos, não sendo ética a mera patologização, punição e encarceramento dos sujeitos usuários, tampouco a criminalização arbitrária, uma vez que se corre o risco de obscurecer a realidade e legitimar padrões de desigualdades históricos em nossa sociedade. Ou seja, não se trata de estabelecer uma relação de causa e efeito entre “uso de drogas” e “vulnerabilidades”, mas sim de favorecimento para que determinados sujeitos apresentem maiores problemas (especialmente no âmbito médico e jurídico) em virtude de recortes de classe, raça e sexo, e menos em função do uso das drogas. Em suma, pode-se considerar que a relação que se estabelece entre tais categorias é de um ciclo de exclusão já em processo, a partir do momento em que o enfrentamento (pelos sujeitos, gestores e profissionais) das vulnerabilidades sociais será cada vez mais limitado em razão do uso abusivo de substâncias psicoativas, bem como das intervenções sociais moralistas, limitadas e condizentes com a manutenção do status quo. A partir desse prisma, considera-se mais produtivo e abrangente entender que a vulnerabilidade é socialmente construída e que o uso abusivo e o tráfico de drogas podem se configurar como elementos que potencializam os problemas já vivenciados por inúmeros grupos sociais, localizados em posições sociais hierarquicamente subalternas com reduzido poder de ação. Indubitavelmente que se se partir desse princípio, os dispositivos de atenção à saúde e assistência social se constituem como espaços extremamente importantes na construção de sociedades menos desiguais e, portanto, com menos propensão à constituição de sujeitos em situações de sofrimento ético-político23. A seguir será apresentado um panorama da política de atenção básica no âmbito da saúde e assistência social, indicando suas contribuições na oferta de políticas sociais sintonizadas com a garantia de padrões de cidadania em nosso país. Portanto, a discussão feita até aqui serve para que se tenha em mente que nossas ações devem ultrapassar simplesmente os procedimentos técnicos e protocolares, partindo para uma ação-visão crítica de nosso cotidiano. Atenção Básica nas Políticas de Saúde e Assistência Social no Brasil: breve delimitação Visando abranger a complexidade do uso de drogas a partir da visão psicossocial, as políticas brasileiras sobre drogas revelam a necessidade de um trabalho integrado, a partir de redes de atenção intersetoriais20,24. Nessas redes, os níveis de atenção básicos (ou pri-

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mários) do SUS e SUAS aparecem como elementos-chave para o estabelecimento de um continuum de cuidado, com base em ações de promoção de saúde, prevenção e tratamento. Para entender esses níveis de atenção, será abordada a estruturação do SUAS e do SUS, de modo que esses níveis, juntamente com os dispositivos que lhes conformam, sejam entendidos de forma abrangente. Ressalta-se que tanto a saúde quanto a assistência social são direitos de todo cidadão e dever do Estado, previstas pela Constituição Federal de 1988. Dessa forma, esses direitos são geridos por políticas públicas que, em conjunto com leis e Normas Operacionais Básicas (NOBs), definem e regulamentam os processos, mecanismos e instrumentos de sua descentralização e operacionalização25,26. O Sistema Único de Assistência Social Conforme sinalizado anteriormente, a política de assistência social brasileira é materializada pelo SUAS, implementado no ano de 2005, que se caracteriza como um sistema público não contributivo, descentralizado, participativo e organizado por meio de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública que visam garantir o atendimento às necessidades básicas do cidadão25. Entre as principais características do SUAS está a centralidade no atendimento às pessoas e famílias, de forma territorializada e disponibilizada por níveis de proteção social25. Dessa forma, o SUAS implica uma perspectiva de integralidade e complementaridade, materializando a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e estabelecendo um novo modelo de gestão com enfoque na proteção social. Dessa forma, o SUAS é estruturado de acordo com as condições de vida e necessidades sociais das pessoas e, consequentemente, o nível de complexidade das ações, tendo dois níveis de atuação: a proteção social básica e a proteção social especial. Especialmente no que diz respeito à temática das drogas, observa-se que a complexidade do problema demanda ações integradas de ambos os níveis e com diferentes setores, como saúde, educação, entre outros. Por essa razão, a política de assistência social é então fundamental, especialmente no que se refere à prevenção e inserção social. Em relação à prevenção, a proteção social básica desempenha importante papel, já que seu objetivo é prevenir situações de riscos por meio do desenvolvimento de potencialidades e do fortalecimento de vínculos familiares e comunitários, sendo destinada a famílias e indivíduos em situação de vulnerabilidade social. Sua principal estratégia é a oferta territorializada de serviços socioassistenciais, por meio dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), que são unidades públicas que devem garantir o acesso e a oferta de serviços destinados à prevenção e promoção de melhores condições de vida. Os CRAS disponibilizam serviços e ações para a comunidade, de acordo com as necessidades sociais, tais como: atendimento e acompanhamento integral à família, gestão de benefícios, vigilância social, encaminhamento, entre outros27. Por outro lado, a proteção social especial atua de forma protetiva, sendo destinada a famílias e indivíduos que tiveram seus direitos violados ou ameaçados, que necessitam, portanto, de atenção especializada. O uso de drogas pode ser visto como um dos fatores dessa conjuntura, podendo impactar na condição de vida do usuário e de sua família, exigindo atenção especializada no trabalho social, que contemple diversas questões de forma integrada, tanto relativas ao acesso à renda, quanto ao apoio à família e fortalecimento das possibilidades de enfrentamento das situações de risco pessoal e social, promoção de autonomia e inserção social.

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Cabe destacar que a proteção especial está organizada em dois níveis de complexidade: média e alta. Em relação à média complexidade, é oferecido acompanhamento a indivíduos em situação de risco pessoal e social, por violação de direitos. O Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) é o principal dispositivo na oferta de serviços especializados para tais indivíduos e suas famílias. Entre os serviços ofertados pelo CREAS, estão: programas de proteção e atendimento especializado a famílias e indivíduos, serviços especializados em abordagem social, entre outros, além do trabalho em rede com os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e os CAPS voltados para usuários de drogas (CAPSad). Além do CREAS, o Centro POP (Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua) exerce papel fundamental na proteção especial, visto que tal equipamento atua junto à população adulta em situação de rua na realização de atendimento socioassistencial e construção gradativa do processo de saída das ruas28. Na alta complexidade é disponibilizado atendimento de forma integral a pessoas afastadas do núcleo familiar e/ou comunitário, isto é, em situações de vulnerabilidade social acentuada e/ou exclusão social. Para atingir esses objetivos é organizada a partir de quatro tipos de serviços, sendo eles: serviço de acolhimento institucional, serviço de acolhimento em república, serviço de acolhimento em família acolhedora e serviço de proteção em situações de calamidades públicas e emergências28. O Sistema Único de Saúde No âmbito da saúde, o SUS consolidou-se, no Brasil, no início dos anos 80, impulsionado pelo movimento da Reforma Sanitária. À época, a maior parte da população não tinha direito à saúde, uma vez que tal direito era privilégio dos trabalhadores que contribuíam com o Instituto Nacional de Previdência Social, órgão até então responsável pela assistência em saúde26. Nesse contexto, as críticas feitas ao modelo biomédico/curativo aliadas à necessidade de redução de gastos abriram espaço para a emergência de um novo paradigma em saúde, uma vez que a proposta até então vigente vinha apresentando altos custos ao Estado e baixa resolutividade. Trata-se, portanto, de uma proposta de democratização do acesso à saúde. Dessa forma, surge uma nova estratégia de organização do sistema de saúde, a qual pretende responder melhor às demandas da população por meio de um modelo descentralizado, integrado, contínuo e hierarquizado. Nesse novo cenário, em consonância ao estabelecido na Declaração de Alma-Ata (1978) e com a Constituição Federal de 1988, regulamentado pela Lei Federal 8.080, surge o SUS, baseado nos princípios da universalidade, equidade e integralidade da atenção à saúde. Sendo assim, o sujeito não deve ser abordado a partir de uma ótica fragmentada, pelo contrário, os serviços devem estar articulados de maneira a permitir um tratamento integral e contínuo, com promoção de saúde, prevenção e diversas formas de tratamento29. Nesses princípios, a construção do modelo de atenção à saúde tem se baseado nas redes de atenção à saúde (RAS). Estas são entendidas como arranjos de ações, serviços de saúde e profissionais, de diferentes modalidades e níveis de atenção, que integradas por meio de sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão buscam o cuidado integral30. Nesse modelo, a APS é o centro de comunicação entre os dispositivos da rede, sendo também a principal porta de entrada do SUS e a responsável por regular o fluxo. Além disso, três elementos são responsáveis pelas diretrizes das redes de atenção à saúde, sendo eles a

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população, a estrutura operacional e o modelo de atenção à saúde30. Especificamente sobre o cuidado a usuários de drogas, é necessário incorporar a rede de atenção psicossocial (RAPS). Ela é formulada para ampliar e articular os pontos de atenção à saúde para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas31. A RAPS divide-se em sete níveis de atenção, sendo eles: atenção básica em saúde, atenção psicossocial especializada, atenção de urgência e emergência, atenção residencial de caráter transitório, atenção hospitalar, estratégias de desinstitucionalização e reabilitação psicossocial31. A atenção básica é formada por: 1. Unidades básicas de saúde (UBS) e equipes da Estratégia de Saúde da Família (ESF), responsáveis pela organização da APS e por ações de promoção à saúde, prevenção de agravos, diagnóstico, reabilitação e manutenção da saúde; 2. equipes de consultório na rua (CR), atuando de forma itinerante e ofertando ações de cuidado em saúde às pessoas em situação de rua; 3. Os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), com equipes interdisciplinares que atuam de forma integrada com as equipes da ESF, ampliando as ações em saúde; e 4. centros de convivência, que são unidades que oferecem à população em geral espaços de socialização e produção cultural31. A partir desse panorama inicial sobre os níveis de atenção básica na saúde e na assistência social, a seguir serão subsidiadas possíveis articulações entre os setores na abordagem ao uso de álcool e outras drogas, considerando o cenário de vulnerabilidades sociais no âmbito da sociedade vigente. Pressupostos da abordagem à vulnerabilidade e o uso de drogas: integrando atenção primária e proteção básica A partir dessa caracterização inicial sobre o SUS e SUAS, é cabível o seguinte questionamento: como realizar a abordagem ao uso de drogas e seus determinantes sociais na atenção primária e proteção básica? De antemão, cabe ressaltar que não existem receitas prontas e únicas, principalmente levando em consideração a complexidade e dinamicidade do problema. Contudo, isso não significa que não se possam estabelecer alguns pressupostos gerais para as ações, utilizar ferramentas disponíveis de acordo com os contextos e necessidades ou inspirar-se em boas práticas. Dessa forma, um primeiro aspecto importante a ser considerado é que, apesar da importância do trabalho articulado e intersetorial, entende-se que as redes de atenção aos usuários de drogas não são somente meras “articulações” de serviços, sem que se reflita sobre o que isso significaria. Tampouco é um amontoado de dispositivos. Apesar de fundamental, de que valem os serviços estarem articulados se a visão empregada à problemática, ou seja, o modelo de atenção, ainda é reducionista, voltada somente para os aspectos biológicos ou psicológicos? É possível abordar de forma efetiva, mesmo com todos os recursos e serviços à disposição, os determinantes sociais e a vulnerabilidade social, se minha atuação não contempla os usuários e seus contextos de vida? O que se pretende com esses questionamentos é refletir sobre o discurso retórico sobre as redes que acabam gerando dois aspectos negativos: 1. A ideia de rede como panaceia, que resolverá todos os problemas; e 2. que as redes se explicam por si sós, não sendo necessário pensar sobre o que são,

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suas características, obstáculos e potencialidades32,33. Ou seja, não importa quantos recursos possui se você não sabe como usá-los ou se os emprega sem considerar os cenários e atores envolvidos, eles nunca serão suficientes34. Essas reflexões também valem para as próprias políticas sobre drogas, que devem ser problematizadas e não tomadas como construções inquestionáveis. Por exemplo, onde está a intersetorialidade, quando a RAPS desconsidera os dispositivos do SUAS? Ou onde estão os direcionamentos específicos das políticas, para além do generalismo, referentes a setores como o SUAS e seus dispositivos na abordagem ao problema?33 Ademais, as reflexões são pertinentes também para o modelo de atenção psicossocial que, conforme ressalta Traverso-Yépez35, apesar de ser muito falado, “observa-se que se continua privilegiando a etiologia biologicista, a concepção fragmentada de saúde [...], esquecendo-se a relevância dos aspectos sociais, psicológicos e ecológicos como mediadores dos processos saúde-doença”. Todos esses fatores indicam que não é somente a inserção de mais setores e diferentes categorias profissionais que trarão essa perspectiva ampliada. Deve-se refletir constantemente sobre os modelos de atenção que, por sua vez, estão relacionados à visão que se tem de homem e do processo saúde-doença35. Nessa direção, os níveis de cuidados primários, como a APS no SUS e a proteção básica no SUAS, possuem papel fundamental na abordagem às questões relacionadas ao uso de drogas. Isso se deve não somente à capacidade resolutiva, mas principalmente por serem dispositivos com inserção comunitária, em que, a partir do trabalho territorializado com as equipes interdisciplinares, possuem a capacidade de prestar atenção contínua (promoção, prevenção e tratamento) e centralizada na população36,37. Mesmo com uma série de insuficiências (recursos, estrutura, etc.) auxiliando no aumento da demanda e sobrecarga de trabalho, é possível pensar em formas de assistência ampliadas e integrais. Da mesma forma que a rede, apesar de perpassada por isso, não se restringe aos serviços existentes, o trabalho em rede deve ir além, embasado pelos seguintes questionamentos: o que tenho em minha disposição para abordar o problema? O que é possível ser feito? Como mobilizar novos recursos? Como envolver os atores responsáveis? Como construir coletivamente alternativas para os problemas enfrentados? Um primeiro aspecto da resposta é o próprio usuário. Isso significa que ele deve ser implicado no tratamento, não como um mero recebedor de ordens e/ou ações, mas como um ator participativo, sendo, portanto, considerado o elemento central da rede. Ademais, o saber teórico-técnico do profissional deve fundir-se com o saber popular e sobre a sua própria vida dos usuários, numa abordagem participativa, afastando-se do modelo prescritivo, centrado no profissional38. Parte-se do entendimento de que o usuário é sua própria rede e possui capacidades e ferramentas dentro de si que podem ser potencializadas para o enfrentamento da questão. Consequentemente, deve-se pensar na necessidade de abarcar, de forma participativa, a comunidade e seus recursos para maior abrangência e contextualidade do trabalho. Ora, se se procura realizar ações que estejam de acordo com os âmbitos e pessoas que as conformam, deve-se considerar essas mesmas pessoas e cenários para ação. Afinal, quem sabe mais sobre si e, por conseguinte, sobre seus cenários de vida, saúde, possibilidades, etc. se não as próprias pessoas e comunidade? Adianta dispor de extensa gama de serviços se eu não considero os usuários, suas redes sociais, os contextos nos quais vivem e se constituem como pessoas, bem como a comunidade e recursos comunitários? A última parte da resposta está relacionada à atuação dos próprios serviços. Ou seja, é

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suficiente a existência dos serviços se eles próprios não atuam internamente de forma articulada? Eu trabalho de forma integrada com o profissional que está sentado ao meu lado? Ou a relação que ocorre é entre profissional e as partes do sujeito, independentemente do sujeito dessas partes? Em suma, como é possível integrar diferentes níveis de atenção, setores etc. se dentro dos próprios serviços não se trabalha em rede? Acredita-se que, negligenciar essas reflexões e partir diretamente para as ações, estáse desvirtuando a ordem do processo, pois as ações, técnicas e procedimentos devem ser consequências dessas problematizações, e não o contrário. Tendo isso em mente, adentram-se nos dispositivos das políticas e possibilidades na abordagem aos usuários de drogas e seus determinantes sociais, considerando a vulnerabilidade social. Em relação às UBS, equipes de ESF na atenção primária do SUS e os CRAS na proteção básica do SUAS, trata-se de construir caminhos em conjunto, em vez da fragmentação dos sujeitos em aspectos sociais e de saúde. Apesar das insuficiências estruturais e na formação, os sujeitos de ação e o território, em grande parte, são os mesmos para ambos os serviços. Assim, por mais que os enfoques possam ser diferentes, ambos dizem respeito ao sujeito como um todo, devendo, então, buscar compreender a relação dessas pessoas com seus quadros socioculturais e como a droga emerge como um desses elementos. Trata-se, portanto, de romper com o modus operandi tradicional das políticas públicas de polarização e criação de diferentes frentes. Isso significa ser capaz de abarcar a necessidade de linhas-guia de cuidados que indiquem as possibilidades de tratamento e cuidado compartilhado de acordo com características gerais dos usuários e serviços, em conjunto com as particularidades e necessidades de cada caso, a partir de projetos terapêuticos singulares. Assim, o fluxo de cuidado estabelecido entre serviços, níveis e setores não permanece somente no plano das subjetividades e/ou das particularidades, devendo ser subsidiado por uma lógica organizacional. Entretanto, também deixa de ser mero receituário, enquadrando as pessoas em modelos pré-datados e, possivelmente, descontextualizados. O encaminhamento, nessa perspectiva, deve ser visto como uma operação (entre outras) que possibilita o cuidado compartilhado e não uma transferência de responsabilidades. Apenas encaminhar alguém para algum serviço não significa trabalhar em conjunto39. Dessa forma, podem ser úteis o mapeamento dos serviços existentes no município e bairros, a criação de mecanismos de comunicação e trocas contínuas, assim como a criação e compartilhamento de instrumentos unificados. Além disso, algumas ferramentas acessíveis e fáceis de utilizar como o ecomapa e o genograma podem ser integrados no cotidiano de trabalho, ao possibilitarem visão ampliada sobre o problema, mapeando a vida do usuário, identificando vulnerabilidades que podem ser minimizadas ou revertidas e aspectos positivos para dar suporte ao tratamento, como sua rede social (amigos, familiares, trabalho, etc.)40,41. Além desses dispositivos, destacam-se dois arranjos relativamente recentes: os CRs e os NASFs. Quanto ao primeiro, sua inclusão na RAPS e ampliação do escopo de atuação para além da saúde mental e transtornos relacionados ao uso de drogas indicam a necessidade de ver as pessoas em situação de rua em sua totalidade, efetivando seus direitos não só à saúde, mas à vida. Assim como observado por Londero, Ceccim e Bilibio42, os sujeitos necessitam de cuidados ampliados, decorrentes da situação de rua, sendo o uso de drogas uma das facetas desse cenário de vulnerabilidade social. Em concordância com Santana43, para superar essas vulnerabilidades, é preciso potencializar a autonomia individual e cole-

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tiva, o que é possível a partir de um trabalho integral e integrado entre profissionais, serviços e setores. Dessa forma, apesar de constar na atenção básica da RAPS, esse dispositivo pode ser utilizado como uma forma de aproximação entre SUS e SUAS. Assim como o CR, o NASF, apesar de prestar suporte na APS às equipes de Estratégia Saúde da Família (ESF), trata-se de um dispositivo composto por equipes interdisciplinares, que poderiam potencializar e aprofundar a atuação de dispositivos como os CRAS. Essa proposição diz respeito à necessidade de se ampliar o apoio matricial dos dispositivos especializados (como o NASF, mas também o CAPS, o CAPSad, etc.) a todos os serviços não especializados, incluindo os CRAS do SUAS, entre outros. Por mais que isso possa esbarrar na formação profissional inadequada, insuficiência de serviços, alta demanda e sobrecarga44, é possível pensar em ações que utilizem o que já existe, mas expandindo-as, como: englobar profissionais e serviços do SUAS nas reuniões de supervisão com a APS, e vice-versa; grupos de trabalho intersetoriais para planejamento e acompanhamento das ações; discussão de casos clínicos que perpassam ambos os níveis e setores, etc. Afinal, se está-se falando de intersetorialidade e integralidade, as práticas não devem ser discutidas por todos os profissionais e serviços que as conformam? Nesse sentido, é necessário adentrar na dinâmica de trabalho, problematizando o papel das diferentes categorias profissionais. Tanto as UBS e equipes de ESF na atenção primária quanto os CRAS na proteção básica devem atuar de forma prioritária na promoção de saúde e prevenção, indo para além da droga e do uso, prevenindo também outras condições de saúde, situações de vulnerabilidade e risco social, desenvolvendo potencialidades individuais e fortalecendo vínculos familiares e comunitários31,37. Para isso, devem-se considerar as potencialidades de todos os profissionais que compõem as equipes interdisciplinares, em vez de estabelecer uma hierarquização das ações, com o planejamento concentrado nos profissionais de nível superior e as decisões sobre a concepção do trabalho não sendo partilhadas por todos, o que compromete a construção de projetos comuns45. Assim, agentes comunitários de saúde (ACS) e os profissionais de nível técnico dos CRAS aparecem como atores-chave para o cuidado territorializado, centralizando a atenção na comunidade, a partir de seu conhecimento local ampliado, não devendo estar relegados somente a orientações gerais aos usuários e familiares e à realização de serviços administrativos (encaminhamento dos usuários aos serviços, agendamento de consultas e exames, etc.)46. A oferta dos serviços de atenção primária e proteção básica deve integrar-se aos demais níveis, serviços, programas e projetos (sejam eles dos SUS, SUAS, educação e também da comunidade), tendo como norte a atenção territorializada. Apesar da ênfase dada no presente capítulo aos serviços de cuidados primários, é necessário pensar na articulação com os demais níveis e seus respectivos serviços, tendo em mente que a ideia de redes de atenção pressupõe uma organização horizontal não hierarquizada, visando minimizar a fragmentação entre esses níveis de cuidado30. Na seção seguinte apresenta-se um pouco da experiência do Centro Regional de Referência sobre Drogas de Juiz de Fora (CRR-JF), que vem desenvolvendo uma metodologia de trabalho direcionada pela abordagem colaborativa e contextualizada à realidade do município.

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Possibilidades para o trabalho integrado: a experiência do Centro Regional de Referência Sobre Drogas de Juiz de Fora (CRR-JF) O CRR-JF busca em sua metodologia de trabalho priorizar uma atenção integral dos usuários de drogas levando em consideração as vulnerabilidades sociais e as possibilidades para uma atuação ampliada sobre a temática, enfatizando o trabalho integrado entre atenção primária à saúde do SUS e proteção básica do SUAS. Para isso, desde sua implantação, que ocorreu no ano de 2011, a equipe vem intensificando o diálogo entre a universidade, gestores locais e profissionais para diagnóstico das necessidades de formação e planejamento das capacitações, viabilizando a interlocução com recursos importantes da rede de assistência, tais como o Conselho Municipal de Políticas Integradas Sobre Drogas (COMPID), com o plano municipal integrado sobre crack, álcool e outras drogas (JF + Vida) e também com o Comitê Intergestor do Programa “Crack, é possível vencer”. A partir do diálogo inicial estabelecido com a gestão municipal, foram definidas duas regiões prioritárias para abrangência inicial do CRR-JF no ano de 2015. As regiões foram escolhidas considerando-se os seguintes aspectos: • suas extensões territoriais; • seus índices de vulnerabilidade social; • a quantidade de profissionais já capacitados pelo CRR-JF nas edições anteriores; e • disponibilidade da rede de proteção básica do SUAS, representados por intermédio dos CRAS. Após conhecimento das áreas prioritárias, a equipe do CRR realizou diversos contatos com os serviços, bem como visitas para familiarização com o território, na tentativa de conseguir o envolvimento de ampla representatividade dos recursos públicos disponíveis nas duas regiões. Foram envolvidos os seguintes dispositivos: CRAS, CREAS, UBS, CAPS, CAPSad, CR, residências terapêuticas, recursos comunitários, escolas municipais e estaduais das regiões. Posteriormente, esses serviços foram convidados a participar dos processos formativos (oficinas ampliadas), realizados a cada dois meses, com o objetivo de planejar e acompanhar a execução de atividades conjuntas. Além dessa ação, a equipe do CRR pactuou atividades de campo (denominadas oficinas no território) realizadas no próprio espaço dos serviços envolvidos. A cada encontro, os profissionais estabelecem atividades que devem ser trabalhadas no intervalo entre as reuniões e mapeiam prioridades e necessidades para as oficinas ampliadas bimestrais. Essas ações vêm contribuindo não só para se pensar propostas direcionadas para álcool e outras drogas, como também para que os serviços reflitam sobre sua forma de trabalho como um todo. As primeiras oficinas formativas reuniram vários dispositivos assistenciais, já mencionados anteriormente. Um dos objetivos principais desses encontros foi estimular os profissionais a refletirem sobre os vínculos (fortes ou frágeis) estabelecidos entre cada serviço e os demais setores presentes no encontro, tendo em vista a necessidade de se olhar o trabalho conjunto para além da lógica do referenciamento de pacientes. Conforme descrito, os níveis de cuidados básicos (ou primários) do SUS e SUAS aparecem como elementos-chave para o estabelecimento de um continuum de cuidado, com base em ações de promoção de saúde, prevenção e tratamento. No entanto, a continuidade do cuidado e a apropriação

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adequada de novos arranjos organizacionais, tal como dos CRs e NASFs, exigem a incorporação de uma nova forma de organização do trabalho em saúde que muitas vezes não é vivenciada pelos profissionais envolvidos nos diferentes dispositivos da rede de assistência. As novas estratégias de gestão e estruturas organizacionais já vêm sendo há algum tempo discutidas com um novo olhar para as concepções de saúde. Essas reflexões foram incorporadas nas discussões referentes à estratégia da clínica ampliada e exemplificada por meio dos projetos terapêuticos em saúde mental. Os projetos terapêuticos foram pensados de tal forma que fossem planejados a partir da atuação integrada das equipes de saúde e com a finalidade de se considerar outros aspectos, além da medicação e diagnóstico no cuidado. Nesse sentido, destaca-se a pactuação e construção de diálogo como aspecto primordial para a elaboração coletiva de propostas adequadas às necessidades dos contextos e pessoas. Além disso, o vínculo dos membros da equipe com os usuários, família e comunidade passa a ser fundamental47. A discussão da reestruturação do trabalho e dos modelos para atenção ampliada aos usuários de drogas segue as exigências citadas anteriormente, com o desafio de envolver não só a rede SUS, como também o SUAS, no plano terapêutico. No entanto, mesmo não sendo recentes as discussões sobre a reorganização do trabalho, ainda persistem os limites do trabalho coletivo vivenciado nos níveis microrganizacionais. Isso chama a atenção para a necessidade de os serviços trabalharem a articulação interna e também com os recursos disponíveis no próprio território, e não apenas restringir as discussões à insuficiência de dispositivos. Nesse sentido, o CRR-JF vem adequando sua metodologia de trabalho para uma atuação cada vez mais próxima dos serviços e territórios, utilizando ferramentas para mediar esse diálogo e ampliar a compreensão do que se constitui como rede de assistência para os usuários de drogas. Conclusões Este capítulo teve como propósito refletir sobre o modelo psicossocial no entendimento e abordagem às questões relacionadas ao uso de drogas, compreendendo os determinantes sociais - entre eles a vulnerabilidade - como construções sociais, sendo o uso abusivo de drogas um dos elementos que se inserem nessa conjuntura vivenciada por inúmeras pessoas e grupos. Dessa forma, perpassa-se pela estruturação dos níveis de atenção básica na saúde e assistência social como arranjos possíveis para a articulação de ações abrangentes sobre a temática, conforme exemplificado pela experiência do CRR-JF. Destaca-se a necessidade de se considerar os usuários e seus contextos de vida como eixos centrais no cuidado integral e para a construção das redes de atenção intersetoriais aos usuários de drogas, ultrapassando o entendimento restrito às “articulações” de serviços ou referenciamento de pacientes. Portanto, espera-se que a discussão apresentada neste texto contribua para que se tenha em mente que nossas visões e ações devem ultrapassar lógicas reducionistas ou focadas meramente na implementação de procedimentos técnicos e protocolares, partindo para ações que envolvam o reconhecimento dos aspectos contextuais, como os determinantes sociais, de cada território ou usuário. Referências 1. RONZANI TM, NOTO AR, SILVEIRA PS. Reduzindo o estigma entre usuários de dro-

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SessĂŁo 3: Abordagem da vulnerabilidade e do uso de drogas


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A vulnerabilidade dos agentes de segurança pública Wellington Eustáquio Ribeiro

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Introdução A delicadeza que envolve a temática da violência, o uso de drogas e a segurança pública é amplificada quando se discute a vulnerabilidade dos agentes de segurança pública, principalmente pelas expectativas depositadas nesses sujeitos. Deve-se ter em mente que há significativa variabilidade das perspectivas do conceito de vulnerável, visto que as organizações voltadas para a segurança têm campos distintos de atuação e, por consequência, são influenciadas de modos distintos pelos fenômenos sociais, em especial no que diz respeito à sua atuação no campo das drogas. Portanto, é necessário distinguir os termos “risco” e “vulnerabilidade”. É importante que se analise a estrutura das organizações responsáveis pela provisão da segurança pública e quais são as pressões a que estão submetidos os seus agentes nos diferentes níveis de atuação em que estes estão inseridos. Agentes de segurança pública e vulnerabilidade parecem ser termos que seguem em caminhos opostos. Em um primeiro momento, considerando o treinamento qualificado e a meticulosa seleção desses profissionais. Mas é importante estar atento aos antagonismos a que esses sujeitos são submetidos no seu cotidiano, já que os riscos inerentes à sua prática de repressão à criminalidade e à violência contrastam de modo significativo com as novas filosofias de prevenção à violência, principalmente quando se fala do trabalho de polícia comunitária. Essas variações de práticas e condutas, os papéis institucionais e de relação com as comunidades, a relação entre agentes de segurança e a população têm provocado acentuadas mudanças na estrutura das organizações e, consequentemente, nas identidades desses agentes. Outro aspecto que chama a atenção são as relações de poder que envolvem o universo da segurança pública e que não podem ser desconsideradas, pois estão diretamente ligadas às condutas dos agentes e às causas da vulnerabilidade. A discussão sobre a vulnerabilidade dos agentes de segurança pública passa pela análise de alguns aspectos da política nacional para a atenção integral ao uso de álcool e outras drogas e como essa política, originária da área de saúde, reflete a importância da integração intersetorial. Investiga, ainda, como políticas públicas de segurança influenciam os processos de organização da estrutura de segurança pública de estados e municípios. Essa análise é primordial para que se observe o papel dos órgãos de segurança pública e se suas atuações são condizentes com o que preconizam os seus regimentos e códigos de conduta. Um ponto relevante para a nossa investigação é a perspectiva e a política do governo federal no tocante à política de segurança em relação às drogas. Pautados pela estrutura do programa “Crack, é possível vencer”a, atuação descrita no eixo autoridade é de que os operadores de segurança atuem junto às comunidades, estimulando a sociedade a construir soluções conjuntas para a resolução dos problemas de criminalidade e violência locais. A interação entre os agentes de segurança e a população local, chamada de polícia de proximidade, é a filosofia a que subjaz esse eixo. Na perspectiva do programa, essa filosofia atribui uma característica mais preventiva da segurança pública, afinal, os agentes de segurança deverão conhecer os problemas locais e focar a sua atuação na resolução desses problemas. É uma proposta cunhada de tal forma que inverte a prática difundida até então, de uma polícia desvinculada da realidade do território de atuação. O programa “Crack, é possível vencer” é um plano do governo federal com vistas à atuação integrada entre a União, os Estados e o Distrito Federal em ações de enfrentamento ao crack e outras drogas, nos termos do Art. 5º-A do Decreto 7.179, de 20 de maio de 2010.

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Essa característica diferenciada de policiamento e da atuação dos agentes de segurança pública traz novos paradigmas no que diz respeito ao papel dos agentes e da relação que estes profissionais estabelecem com a população assistida pelas suas ações. Há tentativa de aproximar saúde e segurança. O agente de segurança não terá o usuário de drogas como o inimigo a ser combatido, mas como um sujeito de interações cotidianas, o que, inevitavelmente, desconstrói a distância entre o mundo do enfrentamento e o mundo do consumo. O objetivo que norteia a presente discussão é compreender os fatores que fazem com que os agentes de segurança pública apresentem altas taxas de letalidade em suas ações e a relação dessas ações com a chamada guerra às drogas, bem como a associação com as taxas de letalidade relacionadas ao consumo de drogas. Buscam-se encontrar nessa trajetória alguns pontos de confluência e divergência que colocam os agentes de segurança pública em um lugar de conflito entre a sua prática profissional e as suas relações sociais. As representações sociais sobre as drogas, sobre os usuários de drogas e sobre os agentes de segurança pública usuários de drogas são muito variáveis e, assim, a abordagem e o tratamento a ser dado à questão da drogadição envolvendo agentes de segurança pública precisa ser observado com especial atenção. Estamos em guerra? Quem é o inimigo? Quando se utiliza o termo “agentes de segurança pública”, está-se referindo aos profissionais pertencentes aos quadros dos órgãos responsáveis pela segurança pública descritos no Artigo 144 da Constituição da República Federativa do Brasil, que são as polícias federais: Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal; as polícias estaduais: Polícias Civis, Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares; e, ainda, os agentes municipais, que são as Guardas Civis Municipais1. Os cenários de atuação das forças de segurança pública e o papel de seus agentes sofreram alterações significativas ao longo da história e continuam em constante mudança. Os critérios para o uso moderado da força fazem parte de discussões recorrentes nas instituições de segurança, mas essa não é uma temática recente e, por esse motivo, será feito breve percurso histórico para contextualizar o quadro de risco e a vinculação deste com a vulnerabilidade dos agentes de segurança pública. No período compreendido entre a Primeira e a Segunda Grande Guerra Mundial, a Liga das Naçõesb organizou uma troca de correspondências entre intelectuais da época para a reflexão dos mais variados assuntos, sendo que em 1931 o físico Albert Einstein é convidado a se corresponder e sugere o nome de Sigmund Freud para ser o seu interlocutor. O tema escolhido por Einstein dá título à sua carta e se torna um texto muito interessante na obra de Freud. A pergunta de Einstein é “Why war? (Por que a guerra?)”. Um fragmento da resposta de Freud2 é significativo para nossa reflexão: “A partir do momento em que as armas foram introduzidas, a superioridade intelectual já começou a substituir a força muscular bruta; mas o objetivo final da luta permanecia o mesmo: - uma ou outra facção tinha que ser compelida a abandonar suas pretensões ou suas objeções, por causa do dano que lhe havia sido infligido e pelo desmantelamento de sua força. Instalada em janeiro de 1919, pelo Tratado de Versalhes, o mesmo que colocava termo à Primeira Guerra, sua sede era Genebra, cidade suíça. A Liga das Nações era organizada de uma maneira bem semelhante à da atual ONU, sendo composta de um Secretariado, Assembleia Geral, e um Conselho Executivo (semelhante ao Conselho de Segurança atual da ONU). Disponível em: http://www.infoescola.com/historia/liga-das-nacoes/ acesso em 02/06/2015.

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Conseguia-se esse objetivo de modo mais completo se a violência do vencedor eliminasse para sempre o adversário, ou seja, se o matasse”. c A introdução desse discurso de Freud deve ser contextualizada ao se considerar que os combatentes de guerra são as Forças Armadas, são os exércitos os encaminhados para o campo de batalha e com objetivos claros e bem-definidos: avançar no terreno, tomar posições estratégicas, eliminar o inimigo. Entretanto, os agentes de segurança pública têm se envolvido cada vez mais em guerras urbanas, que são travadas em terreno hostil, onde há população civil, onde os inimigos não são bem-definidos, o alvo não é claro e, portanto, os riscos são muito altos. Há risco de identificação do combatente com o inimigo, pois o campo de batalha é o mesmo lugar das relações cotidianas dos agentes de segurança, é onde este vive e onde estão a sua família e amigos. A chamada Guerra às Drogas expõe a face mais cruel de uma batalha urbana. Não se luta contra drogas, pois são apenas objetos, matéria inerte, o alvo droga é personificado na figura do usuário e/ou do traficante. Esse usuário (ou traficante) normalmente não é o produtor da droga, também não é o grande distribuidor, o senso comum atribui a ele características gerais, tais como classe social (baixa), cor da pele (negra), idade (jovem) e endereço (favela). É este o grande inimigo, é contra esse sujeito que a guerra é deflagrada, este é o alvo. Entretanto, essas características atribuídas ao inimigo da guerra urbana são majoritárias na população brasileira, inclusive, pertencem à maioria dos nossos agentes de segurança pública. Um primeiro ponto para reflexão é que se está lutando contra os pares, que a luta é violenta, inglória e que, paradoxalmente, não se consegue identificar vencedores, apenas os vencidos. Cotidianamente, contabilizam-se os mortos e feridos, que a mídia insiste em afirmar serem vítimas das drogas, mas será mesmo a droga o grande matador? Os sujeitos são vítimas de uma violência estrutural ou de uma violência midiática que reforça a necessidade de consumo? Os sujeitos precisam corresponder a um imperativo moral dominante e este se encontra corrompido na sociedade contemporânea3. O imperativo que se apresenta para que os sujeitos se constituam socialmente é o do consumo. A Guerra às Drogas declarada pelo Presidente norte-americano Richard Nixon, em 1971, de modo explícito, propunha altos investimentos financeiros e militares para o combate ao tráfico e aos grandes cartéis, porém, implicitamente, o que se vê é a estigmatização de grupos étnicos e de repressão a movimentos contraculturais surgidos na década de 1960 nos Estados Unidos da América4 . Porém, a virulência dessa guerra é aterradora, atravessou fronteiras e se tornou discurso prevalente em quase todo o mundo. Era uma guerra que combatia os questionamentos contra o consumo bélico. Em outro texto, este de 1915, Freud5 chama a atenção para a intolerância às diferenças e sobre o que sustenta um estado belicoso entre as nações (ou entre uma nação e seus cidadãos). “Já se disse, a nós mesmos, sem dúvida, que as guerras jamais podem cessar enquanto as nações viverem sob condições tão amplamente diferentes, enquanto o valor da vida individual for tão diversamente apreciado entre elas e enquanto as animosidades que as dividem representarem forças motrizes tão poderosas na mente” .d c FREUD, Sigmund, Por que a guerra? (1933[1932]), Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, volume XXII p. 191-210 – Rio de Janeiro: Imago, 1996a.

FREUD, Sigmund, Reflexões para tempos de guerra e morte. (1915), Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, volume XIV p. 285-310 – Rio de Janeiro: Imago, 1996b.

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Mesmo que existam nações que possuam em sua constituição populacional uma preponderância quase absoluta de determinada etnia, não serão encontradas as “raças puras”, talvez apenas entre algumas tribos primitivas que não tiveram contato com outras civilizações. Mas estas são cada vez mais raras e, assim como são diversas as civilizações, os valores da vida de seus indivíduos também têm apreciações diversas, como sustenta Freud. São esses valores distintos que promovem a violência entre grupos e tornam uns ou outros alvos vulneráveis de guerras que objetivam destruir ideologias e culturas e não um inimigo comum, como as drogas, por exemplo. As condições diferentes a que Freud se refere são comumente encontradas nas grandes cidades brasileiras e essas condições compõem o quadro principal da presente investigação. Estamos em estado de guerra, ou melhor, o Brasil vive uma guerra civil não declarada. A história brasileira nega a presença de guerras civis em função de uma postura ufanista que prega a ordem e o progresso presentes apenas no lema da nossa bandeira. A Balaiada, a Sabinada e Canudos são exemplos de guerras civis que foram conceituadas como movimentos revolucionários, apesar da morte de centenas de civis. Todas essas guerras tinham caráter de resistência a culturas impositivas e buscavam o reconhecimento de uma organização social e de um modo de vida próprio de um povo. Se essa organização social não se enquadra nas normas vigentes, ela é exterminada. É uma imposição necessária para que a lógica de consumo prevaleça. Waiselfisz6 destaca no mapa da violência de 2015 que o Brasil encontra-se no 11º lugar no ranking das mortes por armas de fogo, organizado pela ONU entre 90 países. Apesar do mapa se pautar pela proporcionalidade e pelo número de pessoas mortas por 100 mil habitantes, o que chama a atenção é que em nenhum dos outros 89 países a quantidade de pessoas mortas se aproxima dos números do Brasil. Diante desse quadro de alta letalidade e considerando que essa mortalidade está diretamente ligada à violência urbana, tendose que os agentes de segurança pública estão diretamente envolvidos com essas mortes, sendo vítimas e autores, é inegável que esses agentes encontram-se em situação de extrema vulnerabilidade. Assumir a gravidade do momento histórico em que nos encontramos possibilita um planejamento mais elaborado das ações de segurança. Drogas e sociedade Cabe ressaltar que o tráfico e o consumo de substâncias psicoativas se dão em todas as esferas sociais e que, em grande parte, o combate desorganizado às drogas é o que expõe usuário e agentes de segurança a situações de risco e mais vulnerabilidade. O que difere a prática dos agentes é a representação social sobre os traficantes e os usuários em cada uma dessas esferas sociais. A representação social, assim como definida por Spink7, auxilia na compreensão de que: “Sendo socialmente elaboradas e compartilhadas, contribuem para a construção de uma realidade comum, que possibilita a comunicação. Deste modo, as representações são, essencialmente, fenômenos sociais que, mesmo acessados a partir do seu conteúdo cognitivo, têm de ser entendidos a partir do seu contexto de produção. Ou seja, a partir das funções simbólicas e ideológicas a que servem e das formas de comunicação onde circulam” 7. As representações sociais sobre drogas e violência no Brasil estão fortemente vinculadas à pobreza e às favelas, mesmo que não existam indicativos de que violência e

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drogas estão circunscritas a determinado local ou a um nicho populacional. O estigma se encarrega de consolidar essa percepção e de difundir socialmente a tríade violência-drogas-pobreza. A própria política nacional sobre drogas8 afirma que a pauperização do país, que atinge em maior número pessoas, famílias ou jovens de comunidades já empobrecidas, apresenta o tráfico como possibilidade de geração de renda e medida de proteção. É uma renda que propicia a entrada no ciclo do consumo. Esses apontamentos são muito coincidentes com as reflexões de Freud9 sobre a guerra e as desilusões que o afligiam, especialmente quando o autor destaca a baixa moralidade dos estados e “a brutalidade demonstrada por indivíduos que, enquanto participantes da mais alta civilização humana, não julgaríamos capazes de tal comportamento”5. A violência e a resposta dada às condições de enfrentamento a que estão submetidos os agentes de segurança pública podem proporcionar reações brutais e inesperadas, em situações de grande tensão. O fenômeno do consumo de drogas As drogas sempre estiveram presentes na história da humanidade, os padrões de consumo variavam conforme o tipo de substância, o objetivo do consumo, a época histórica, a cultura, a religião... O consumo coletivo, quando vinculado à cultura ou à religião, traz consigo algumas fundamentações, mas não é tarefa simples explicar as motivações subjetivas para o consumo de substâncias entorpecentes. Freud atribui à dureza da vida uma das justificativas, segundo ele9. “A vida, tal como a encontramos, é árdua demais; proporciona muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. A fim de suportá-la, não se pode dispensar as medidas paliativas. “Não podemos passar sem construções auxiliares” - diz Theodor Fontane. Existem talvez três medidas desse tipo: derivativos poderosos, que fazem extrair luz da desgraça; satisfações substitutivas, que a diminuem; e substâncias tóxicas, que nos tornam insensíveis a ela. Algo desse tipo é indispensável”9 Então, parece que uma inferência bastante plausível como uma das justificativas para o consumo de drogas seja a busca pelo prazer, ou mesmo a diminuição do sofrimento. Entretanto, o que interessa em especial é o que torna alguns sujeitos, principalmente os agentes de segurança pública, mais vulneráveis ao consumo e à dependência das drogas. A política nacional sobre drogas destaca que o consumo de drogas não atinge de maneira uniforme toda a população e sua distribuição é distinta nas diferentes regiões do país, apresentando, inclusive, diferenças significativas em uma mesma região, tanto nos aspectos sociais quanto nas vias de utilização e na escolha do produto8. Vulnerabilidade, Drogas e os agentes de segurança pública Existem inúmeras vertentes que indicam o uso de drogas lícitas ou ilícitas como resultante de problemas de autoestima, autoconfiança, falta de habilidades para enfrentar situações adversas, ansiedade, fragilidade emocional e sofrimento psíquico10. Mas há uma característica específica que vincula o uso de drogas aos agentes de segurança pública? É importante salientar que o uso de armas de fogo no exercício de suas funções é um dos

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fatores que chamam a atenção sobre esses profissionais e a sua vulnerabilidade no que concerne ao uso de drogas. Agentes de segurança pública estão expostos cotidianamente a situações de violência estrutural, que oferece um marco à violência do comportamento e se aplica tanto às estruturas organizadas e institucionalizadas da família como aos sistemas econômicos, culturais e políticos que conduzem à opressão de grupos, classes, nações e indivíduos, aos quais são negadas conquistas da sociedade, tornando-os mais vulneráveis que outros ao sofrimento e à morte. Esse contato permanente com a violência e com situações de risco produz um quadro de vulnerabilidade e sofrimento naqueles profissionais e a resposta se dá na replicação da violência contra grupos também vulneráveis ou numa das medidas paliativas descritas por Freud para reduzir o desconforto, o sofrimento e o consumo de substâncias tóxicas9. O que se observa é que a presença cada vez mais intensa de drogas nas estruturas sociais contemporâneas tem fomentado novas discussões sobre os padrões de consumo e dos usuários. Um ponto relevante e que tem chamado a atenção é o consumo de drogas no ambiente de trabalho. Alguns países vêm adotando medidas de controle sobre o uso de drogas nos ambientes de trabalho. Costa pesquisou sobre o uso de drogas em 12 unidades da Polícia Militar do Estado de Goiás11. Esse estudo destacou de modo pormenorizado quais as substâncias psicoativas mais usadas pelos militares e traz ainda a confirmação de que o uso de substâncias psicoativas não seleciona o consumidor. Estudo realizado por Souza12 junto ao Centro de Perícias Médicas Militares (CPMM) constatou que entre os anos de 2001 e 2008 cerca de 1% do efetivo da Polícia Militar do Estado da Bahia foi afastado em caráter definitivo em razão de transtornos mentais e comportamentais. Esses militares tinham entre 35 e 45 anos de idade, portanto, encontravam-se em idade produtiva para o exercício de suas funções. Souza12 ainda destaca que em 2007, entre os meses de janeiro e outubro, a unidade de assistência psicológica da Polícia Militar da Bahia registrou 45 internações em estado grave de policiais militares em decorrência do uso abusivo de substâncias psicoativas lícitas e ilícitas. O autor atribui esse cenário a uma vulnerabilidade psicoestrutural para o uso de substâncias psicoativas, causada pelo enfrentamento da violência nas ruas, em suas casas, baixos salários e, ainda, pela violência institucional praticada nos quartéis 12. Segundo Souza12, em 1999 31 policiais militares do estado de São Paulo foram a óbito em decorrência do uso abusivo de substâncias psicoativas, o que denota não ser uma realidade exclusiva da Polícia Militar da Bahia. Estudo realizado por De Souza et al. 10 revela a necessidade de elaboração de políticas públicas voltadas para o cuidado em saúde e com as condições de trabalho da Polícia Militar e da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro. Este estudo corrobora a afirmativa de Souza (2009) de que o uso de substâncias psicoativas por agentes de segurança não é exclusividade de um ou outro estado12. Os atos de mediação de conflitos e todas as demais ações do exercício profissional dos policiais são particularmente cercados de um estado de tensão, pois lidam com as mais obscuras facetas dos seres humanos, o que exige desses profissionais um esforço físico e mental extremo12. Os níveis de estresse e de frustração são, normalmente, elevados e isso faz com que se busquem saídas para o alívio dessas tensões, o que deixa os agentes de segurança extremamente vulneráveis ao consumo de drogas, principalmente às drogas lícitas. O uso regular de álcool não é tão estigmatizante como o uso de drogas ilícitas, o que dá a sensação de aceitação social. De Souza et al. 10 destacam que cerca de 50% dos

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policiais que participaram de sua pesquisa faziam uso regular de álcool (uso diário ou pelo menos uma vez por semana), a maioria do sexo masculino, com idade entre 36 e 45 anos, casados, com filhos. Outro dado que parece relevante é que os policiais lotados em unidade operacional, ou seja, que vivenciam cotidianamente a guerra urbana, são os maiores consumidores de drogas. Um ponto também relevante é que quase 60% desses profissionais exercem outra atividade remunerada fora de suas corporações. Além de confrontar com os regimentos internos das instituições que proíbem esse tipo de prestação de serviço, isso é um indicativo da carga de trabalho estressante e de como o lazer e o repouso são negligenciados. Uma consideração importante é que aproximadamente 80% dos policiais que fazem uso pesado de álcool se consideram expostos a riscos constantes 10. Riscos e implicações Ciente dos riscos a que está submetido e da vulnerabilidade em relação ao consumo de drogas, o que leva um agente de segurança pública a enfrentar o julgamento social e até a possibilidade de exclusão da corporação? Os agentes de segurança podem ser submetidos a tratamento diferenciado e estigmatizado por parte da sociedade e por parte de seus colegas de profissão. O que se espera de um agente de segurança pública é colocado em dúvida, considerando-se que os efeitos das substâncias psicoativas podem produzir comportamentos destoantes daqueles que se espera de um agente da lei. Para Goffman, o indivíduo estigmatizado se define como não diferente de qualquer outro ser humano, embora ao mesmo tempo ele e as pessoas próximas o definam como alguém marginalizado. É essa marginalização, nem sempre percebida nitidamente pelo sujeito estigmatizado, que catalisa os processos de adoecimento, pois há um estranhamento na relação desse sujeito com o mundo que o cerca. Os sentimentos, temores e crenças oriundos desse processo de marginalização causam a alienação do sujeito com a sua atividade profissional, pois há uma fragmentação da identidade do agente de segurança. Há um dado momento em que o uso de drogas e os seus efeitos se tornam tão latentes na vida do profissional que não se pode mais distinguir qual o momento de atuar como agente da lei13. Em seu estudo sobre o uso de drogas por policiais militares do estado da Bahia, Souza12 destaca como objetivo central a reflexão sobre o tratamento dispensado aos policiais dependentes de substâncias psicoativas legais e ilegais pela instituição da qual fazem parte e da representação social que se constrói pelos seus comandantes e pares. O abandono, o estigma e o sofrimento mental decorrentes do trabalho policial comprometem de modo significativo a saúde dos agentes de segurança e, segundo Souza (2009), esse cenário de abandono e estigmatização é condição inexorável para que o policial militar busque nas drogas uma forma de minimizar esse sofrimento. É necessário que se faça uma observação ao partir do estudo de Souza (2009), que apesar da aceitação do uso de drogas lícitas em determinado uso e padrão que não exponha a instituição, o uso das drogas ilícitas entre os policiais militares não é aceito socialmente, devido à sua associação com a marginalidade13.

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Diante do cenário atual sobre o consumo de drogas e da sua estreita relação com as condições de trabalho dos agentes de segurança pública, é necessário pensar a implementação de políticas de saúde específicas para esse público. É importante que se leve em consideração as condições de trabalho a que esses profissionais são submetidos. Essas políticas não dependem somente de decisão política, mas também, e principalmente, de arranjos organizacionais constituídos de recursos humanos, recursos materiais e financeiros. Conclusão O cenário atual sobre o uso de substâncias psicoativas no Brasil não se circunscreve a espaços específicos, a cerimônias religiosas, ao uso farmacológico, não distingue classes sociais ou a idade dos consumidores, tampouco categorias profissionais. Tratar da vulnerabilidade dos agentes de segurança pública deveria ser pauta em todas as instituições, mas sem conotação punitiva ou depreciativa. Esses profissionais, pelos encargos e atribuições a que estão sujeitos, encontram-se em situação de extrema vulnerabilidade. Não só pela carga de trabalho, mas pela facilidade de acesso a todo tipo de substâncias psicoativas. As fontes de pesquisa que tratam sobre adoecimento profissional não abordam com profundidade a questão da drogadição nas instituições militares e de órgãos responsáveis pela segurança pública, mas os estudos que trataram dessa temática demonstraram que é necessária atenção especial sobre as corporações. Os riscos a que estão sujeitos os agentes de segurança pública são potencializados se se levar em conta os índices de profissionais em sofrimento mental decorrente do uso abusivo de drogas lícitas ou ilícitas. Negar que os agentes de segurança estão sujeitos às vicissitudes comuns à população em geral, principalmente no que concerne aos quadros de sofrimento mental decorrentes do uso de substâncias psicoativas, é negligenciar a necessidade de elaboração de políticas públicas de saúde e de segurança que garantam direitos, protejam esses profissionais e também a população que, pretensamente, está sob os cuidados desses. Enfim, analisar os aspectos promotores de quadros de vulnerabilidade em diversos grupos sociais é partir do pressuposto de que há fatores específicos que afetam grupos distintos. Considerar os fenômenos que colocam os agentes de segurança pública em situação de risco e vulneráveis às drogas perpassa uma gama de vertentes que nos suscita olhares mais cuidadosos sobre cada uma dessas vertentes. A Guerra às Drogas, as representações sociais, as violências institucionais e as condições de trabalho são aspectos que foram considerados brevemente, mas que comportam em si fatores causadores de quadros de sofrimento mental e, consequentemente, uma exposição fragilizada ao consumo de drogas. Vale salientar que não há uma apologia na tentativa de justificar condutas indevidas ou críticas a qualquer instituição. O objetivo que conduziu este estudo foi constatar que há um cenário preocupante e que merece atenção e cuidado por parte dos órgãos de segurança e de saúde. Os agentes de segurança pública são sujeitos passíveis às vicissitudes que atingem a qualquer indivíduo, mas com o agravante de estarem submetidos a riscos e a pressões sociais intensas e para a implementação de políticas públicas que assistam a essa categoria de profissionais, é essencial que essas especificidades sejam observadas.

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Referências 1. BRASIL. Constituição. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasil, DF: Senado; 1988. 2. FREUD, S, Por que a guerra? (1933[1932]), Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira– Rio de Janeiro: Imago, 1996ª; volume XXII p. 191-210BALESTRERI, Ricardo. Direitos Humanos: Coisa de Polícia. Revista Dhnet, 2004. 3. LIPOVETSKY, G. A era do vazio: ensaio sobre o individualismo contemporâneo. Barueri, São Paulo: Manole;2005. 4. DA SILVA, J. Guerra às Drogas: Violência, mortes, Estigmas e Marginalização. Rio de Janeiro, : Revista EMERJ; 2013 dez; v. 16, n. 63 (Edição Especial), p. 38 - 45, out.. 5. FREUD, S, Reflexões para tempos de guerra e morte. (1915), Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, Rio de Janeiro: Imago, 1996b; volume XIV p. 285-310. 6. WAISELFISZ, J J. Mapa da violência : mortes matadas por arma de fogo. Disponível em www.juventude.gov.br/juventudeviva;2015. 7. SPINK, M. J. P. The Concept of Social Representations in Social Psychology.Rio de Janeiro: Cad. Saúde Públ.; 1993; 9 (3): 300-308, jul/set,. 8. BRASIL. Ministério da Saúde. A Política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas / Ministério da Saúde, Secretaria Executiva, Coordenação Nacional de DST e Aids. – Brasília: Ministério da Saúde; 2003. 9. FREUD, S, O mal-estar na civilização. (1930), Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996c; volume XXI p. 73-148 – 10. DE SOUZA, E R et al. Consumo de substâncias lícitas e ilícitas por policiais da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revista Ciência & Saúde Coletiva;2013 v. 18, n. 3,. 11. COSTA, S H N. Uso de drogas psicotrópicas por policiais militares de Goiânia e Aparecida de Goiânia, Goiás, Brasil. Goiânia: Tese (doutorado em ciências da saúde) – Universidade Federal de Goiás; 2009. 12. SOUZA, R. Representação social dos policiais militares da Bahia: dependentes de substâncias psicoativas – Universidade Federal da Bahia: Disponível em: http:// twiki.ufba.br/twiki/bin/viewfile/PROGESP/Formacao3?rev=&filename=A_representa%E7%E3o_social_dos_policiais_militares_da_bahia.2009. 13. GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro/RJ:Ed. Zahar Editores – 1978.

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Práticas em prevenção Juliana Joni Parada Antônio Augusto Bastos Alvim

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Introdução Diante dos conhecimentos atuais sobre as consequências clínicas, psicológicas, laborativas, sociais e econômicas dos transtornos por uso de substânciasa (TUS), das dificuldades inerentes ao tratamento e da alta taxa de mortalidade, o ditado popular “é melhor prevenir do que remediar” torna-se inquestionável. Embora seja clara a necessidade de prevenção, a melhor maneira de como fazê-la ainda não é. Pelo fato de os TUS serem crônicos, com causas inter-relacionadas e multidimensionais, sua prevenção é similarmente complexa. A identificação e a avaliação de quais fatores são suscetíveis a intervenções preventivas é igualmente difícil. Entretanto, mensura-se que para cada dólar investido em prevenção pelo menos 10 podem ser economizados em custos futuros com saúde, programas sociais e crime1. No passado, as medidas preventivas limitavam-se à distribuição de folhetos impressos que alertavam os jovens sobre os perigos das drogas, com pouco ou nenhum impacto sobre seu comportamento. Nos últimos 20 anos a ciência da prevenção apresentou inúmeros progressos. Contudo, a maior parte dos estudos de qualidade e com resultados “eficazes” foi realizada em países desenvolvidos, em contextos controlados, pequenos e bem amparados de recursos, diferentes do “mundo real”. Análises econômicas sugerem que essas intervenções de prevenção são custo-efetivas, pois os benefícios no decorrer da vida são substanciais, mesmo diante de pequenas reduções das prevalências de uso precoce de álcool e drogas2. Embora existam lacunas na ciência, basear os esforços preventivos nas evidências disponíveis é certamente melhor atitude que usar iniciativas pautadas apenas em suposições e boa vontade. Este é o caso particularmente de intervenções voltadas para vulnerabilidades que são expressivas em todas as culturas – como fatores genéticos, negligência parental e violência, entre outros. Além disso, conhecer abordagens que falharam ou que impactaram negativamente os resultados evita que medidas candidatas ao fracasso ou a iatrogenia sejam adotadas. Governantes e profissionais da área de prevenção às drogas devem sempre levar em consideração tais exemplos. O objetivo deste capítulo é discorrer sobre os fatores relacionados ao risco e à proteção quanto ao uso de substâncias psicoativas (SPA) e sobre aspectos importantes da prevenção. Apresentam-se de forma sucinta os achados científicos sobre quais estratégias têm produzido resultados satisfatórios, bem como quais não demonstraram bons resultados ou mesmo apresentam desfechos negativos, em diferentes faixas etárias e contextos. Fatores relacionados ao risco e à proteção ao uso de drogas Uma vez que o abuso de drogas tem se iniciado cada vez mais precocemente, com pico na adolescência3, o grupo considerado mais importante para prevenção é formado por adolescentes e adultos jovens. É difícil prever quais adolescentes, entre os que experimentam drogas, se tornarão dependentes, mas é certo que os futuros dependentes estão inevitavelmente entre eles. Até certo ponto, a experimentação de drogas na adolescência pode ser considerada natural, assim como é natural que o adolescente busque novas sensações e experiências em inúmeras esferas da vida, como, por exemplo, na sexualidade. De fato, a maior parte dos adolescentes que tem contato com SPAs irá permanecer apenas na fase experimental e abandonará esse comportamento, a depender de suas vulnerabilidades. Estas são observaa Os unitermos “drogas”, “substâncias” e “substâncias psicoativas” (SPAs) serão usados neste capítulo como sinônimos e referem-se a todas as drogas, lícitas e ilícitas.

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das nas esferas individual, biológica, psicológica, familiar, escolar e social e se inter-relacionam de forma bastante complexa e multidirecional. No âmbito individual, a hereditariedade é um fator bastante relevante, que confere um risco biológico/genético para o desenvolvimento de dependência química (DQ). A prevalência de dependência entre familiares de dependentes pode ser até quatro vezes maior do que na população geral, inclusive em estudos de adoção4. Do ponto de vista biológico, idade precoce de início do uso, mais tolerância aos efeitos da substância e doenças psiquiátricas concomitantes acarretam mais riscos. Algumas características de personalidade podem predispor o jovem ao abuso de SPAs, sendo algumas delas: • timidez excessiva; • baixa autoestima; • baixo limiar a frustrações; • baixo nível de resiliência; • pouca responsabilidade e autonomia; • agressividade e busca por sensações novas. No âmbito familiar, riscos mais altos são observados quando há uso de drogas e permissividade pelos pais, falta de supervisão, falta de clareza com regras e tolerância a infrações. Ambientes familiares com conflitos conjugais, violência doméstica, falta de expressão de afeto e padrão de comunicação negativo podem igualmente contribuir para o risco. A escola tem papel crucial no risco ou proteção em relação às substâncias, sendo recomendadas regras bem-estabelecidas e fiscalização do uso, envolvimento entre professores e alunos e estímulo ao desenvolvimento das potencialidades do estudante. Baixo rendimento, defasagem e evasão escolar trazem riscos maiores do uso de SPAs. O padrão de uso (ou não uso) de drogas pelos amigos é uma fonte de importante influência, tanto pelas pressões sociais que estes exercem sobre o adolescente, quanto pela necessidade deste de se sentir parte integrante de um grupo com o qual se identifica. Fatores sociais determinantes incluem leis e políticas públicas sobre drogas. A ampla tolerância social com as drogas lícitas, facilidade de acesso à aquisição e ao uso de substâncias, falta de fiscalização e baixa percepção de risco (por exemplo, a crença de que a maconha é uma droga inofensiva) colocam o jovem em posição de mais vulnerabilidade. Outros fatores sociais, tais como criminalidade na vizinhança, empregabilidade, acesso a opções de lazer, acesso e qualidade dos serviços de saúde também exercem influência. O uso de drogas em idade precoce está relacionado a uma série de consequências negativas que serão determinantes para os desfechos da vida adulta e que podem retroalimentar a manutenção do consumo: • Risco de desenvolver dependência ou outros quadros psiquiátricos; • complicações clínicas; • acidentes e mortes precoces (sobretudo por causas violentas, incluindo homicídios e suicídios); • doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) /AIDS; • gestações indesejadas; • violência sexual;

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• perda de produtividade; • envolvimento com criminalidade5. No mais, a neurotoxicidade das drogas pode limitar o desenvolvimento cerebral e as potencialidades do indivíduo. No âmbito acadêmico, o uso de SPAs traz dificuldades de aprendizagem, queda no desempenho e evasão escolar. Estudo realizado com 2.410 estudantes no Rio Grande do Sul demonstrou associação entre o uso de drogas e maior número de faltas e reprovações escolares6. Inalantes, comumente usados por crianças em situação de rua7, são altamente neurotóxicos e com consequências devastadoras. Outro exemplo é o da maconha. Grande estudo prospectivo neozelandês identificou claramente a associação entre o consumo precoce de maconha e uma série de desfechos negativos em termos acadêmicos e profissionais aos 25 anos: índices até quatro vezes menores de conclusão do nível superior, taxas até três vezes maiores de desemprego, recebimento de benefícios de auxílio-doença até cinco vezes maior, baixa renda pessoal e menos satisfação com a vida8. De forma geral, pode-se constatar que as mudanças de valores sociais e culturais (valorização do lucro crescente e incessante, busca do alívio imediato de situações desprazerosas e do prazer rápido e intenso a qualquer custo, competitividade, individualismo, fragilidade dos arcabouços religiosos e morais, em conjunto à apologia da mídia e à tolerância social ao uso de drogas lícitas) também contribuem para o uso de SPAs. Ou seja: ao mesmo tempo em que a sociedade combate e repudia as drogas, também incentiva, ainda que involuntariamente, o adolescente a procurar saídas imediatas que são facilmente nelas encontradas9. Se o uso de drogas não pode ser de todo evitado, medidas de proteção às crianças e adolescentes necessitam urgentemente ser tomadas na esfera preventiva. Considerações gerais sobre prevenção A prevenção é um dos principais componentes de um sistema de saúde focado na abordagem da questão das drogas, conforme as três Convenções Internacionais existentes10,11. O objetivo principal da prevenção é evitar ou adiar o primeiro uso de drogas e, caso este uso já ocorra, evitar ou minimizar o desenvolvimento de transtornos relacionados, como a dependência química e outras comorbidades clínicas e psiquiátricas. Adotando uma perspectiva mais ampla, pode-se compreender que o objetivo global da prevenção é: • favorecer o desenvolvimento seguro e saudável dos indivíduos; • fortalecer suas habilidades e potenciais; • incentivar seus talentos, contribuindo para que se tornem membros positivamente atuantes nos ambientes familiar, escolar, comunitário e de trabalho. A prevenção da toxicodependência é uma parte integrante de um esforço maior para que crianças e jovens se tornem menos vulneráveis e mais resilientes. Em todos os níveis de prevenção é fundamental o controle estatutário da disponibilidade de drogas, bem como um arcabouço legal relacionado à posse e distribuição de SPAs. Ainda, a política de drogas deve objetivar também o bem-estar a partir da promoção de saúde individual e coletiva, da coesão familiar e comunitária, da segurança dos espaços públicos e da redução da criminalidade2 – tópicos que fogem ao escopo deste capítulo. Entretanto, por si sós tais medidas não são suficientes, uma vez que seria utópica a possibilidade de erradicar o fornecimento e o consumo de drogas. Dessa maneira, concomi-

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tantemente se faz necessária a redução da demanda populacional e individual pelo uso dessas substâncias. Ressalta-se que medidas eficazes de prevenção devem estar inseridas em um sistema de saúde que responda de maneira contundente ao tratamento das dependências químicas, à prevenção e ao tratamento das complicações clínicas (HIV, overdoses, abstinências, doenças clínicas secundárias) e à prevenção das consequências sociais e outros comportamentos de risco associados (acidentes, violência, abuso sexual, gravidez indesejada, DSTs, por exemplo)12. Ainda, um sistema de prevenção eficaz requer um conjunto integrado de políticas e ações múltiplas baseadas em evidências científicas, com avaliações diagnósticas e situacionais dos resultados e da qualidade das estratégias implementadas para tal fim. Deve abranger diferentes contextos, focando faixas etárias, níveis de risco e vulnerabilidades, com recursos financeiros e técnicos adequados e com manutenção a longo prazo. Definições e conceitos Leavell e Clark13 operacionalizaram um construto teórico sobre diferentes níveis de prevenção (Quadro 1), que incluem: Prevenção primária Consiste em evitar que uma doença se instale, dirige-se a um público que ainda não foi afetado pela doença. No caso dos TUS, envolve evitar que o uso de drogas se inicie. São exemplos: reduzir a disponibilidade de drogas, concomitantemente a estratégias de promoção de saúde e intervenções em populações de risco e vulneráveis. Prevenção secundária Consiste na identificação precoce do abuso de drogas e medidas para evitar a instalação da dependência. Prevenção terciária Consiste na redução do prejuízo funcional ou a manutenção do equilíbrio, sem deterioro adicional. Ou seja, reduzir as consequências clínicas e sociais ou o agravamento de uma dependência já instalada. Quadro 1. Níveis de Prevenção Prevenção Primária

Promoção da saúde Proteção específica

Prevenção Secundária

Diagnóstico e tratamento precoces Limitação da invalidez

Prevenção Terciária

Reabilitação

Adaptado de Leavell&Clark, 196513

Outro sistema de classificação, que considera mais amiúde a determinação social dos processos de saúde e doença, conceitualiza a prevenção nas seguintes esferas (Quadro 2):

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Intervenção Universal Ações destinadas à população geral, sem fatores de risco identificados. Intervenção Seletiva São ações voltadas para grupos sociais com fatores de risco já identificados. Intervenção Indicada São intervenções para populações e indivíduos identificados como abusadores ou dependentes com alterações comportamentais e prejuízos físicos já instalados. Quadro 2. Intervenções direcionadas para públicos-alvo diferentes (adaptado de SENAD, 2010)14 O Que é?

Onde se Aplica?

Intervenção universal ou global – são programas destinados à população em geral, supostamente sem qualquer fator associado ao risco.

Na comunidade, em ambiente escolar e nos meios de comunicação.

Intervenção seletiva ou específica - são ações voltadas para populações com um ou mais fatores associados ao risco de uso de substâncias.

Grupos como filhos de dependentes químicos, jovens com início precoce do contato com SPAs.

Intervenção indicada - são intervenções voltadas para pessoas identificadas como usuárias (abuso ou dependência) ou com comportamentos de risco relacionados direta ou indiretamente ao uso de substâncias, como, por exemplo, alguns acidentes de trânsito.

Em programas que visem diminuir o consumo de SPAs, mas também a melhora de aspectos da vida do indivíduo, como, por exemplo, desempenho acadêmico e reinserção escolar.

A importância da classificação do tipo de prevenção fica mais nítida quando se planeja intervenções e políticas públicas. É impossível pensar em prevenção de forma desconectada dos processos decisórios políticos. A alocação de recursos está diretamente conectada ao processo político envolvido no estabelecimento de prioridades. Para tal, estudos de prevenção, bem como de custo-efetividade e diagnósticos epidemiológicos e situacionais do uso de SPAs, devem embasar a implementação de medidas preventivas. Inicialmente, é importante perceber que a abrangência das intervenções caminha em sentido oposto ao da eficácia individual destas. Portanto, a escolha de estratégias populacionais comumente resulta em menos impacto para cada indivíduo beneficiado isoladamente. Ainda assim, é essa a melhor abordagem para a prevenção primária ou universal, que comumente constitui os programas de melhor custo-eficácia. Vale lembrar que programas de prevenção primária e promoção da saúde têm múltiplos alvos de profilaxia, reduzindo não apenas o impacto social do uso de SPAs, mas também outros agravos de relevância para as comunidades. De âmbito mais amplo ainda são as políticas de controle social relacionadas à entrada e oferta de SPAs no mercado. No caso das drogas lícitas, o controle evidencia diferença nas taxas de prevalência do uso de substâncias e também dos TUS. Aí se incluem as drogas de prescrição, cujo controle de receitas e aviamentos não pode ser negligenciado. Quando se considera o mercado de drogas ilícitas, o controle

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estatutário reclama igual atenção. A restrição à entrada e venda de insumos específicos relacionados à produção de drogas sintéticas, assim como a identificação e dissolução de laboratórios clandestinos, representa resposta inteligente e eficaz no controle desse mercado. Na prevenção secundária e terciária, as medidas ganham mais impacto individual, também requerendo mais esforço individual do cidadão. O custo-efetividade diminui, embora a visibilidade de resultados isolados seja maior. Tais medidas também devem fazer parte da decisão ética e responsável em relação à sociedade. Entretanto, seu maior impacto só se faz presente quando o manejo do uso problemático das SPAs encontra-se intimamente conectado com as medidas de base populacional. Os vários setores da sociedade precisam agir conjuntamente. Esse é o caso de sistemas bem-sucedidos em que, por exemplo, serviços de saúde e o Judiciário colaboram entre si no manejo da delinquência relacionada à drogadição (Figura 15). Figura 15. Eficácia de políticas de drogas em resultados populacionais e individuais (adaptado de Strang, 2012)2 Maior Efeito Populacional

Serviços Sociais e de Saúde ao Usuário de drogas

Maior Efeito Individual

Prevenção Secundária

Prevenção Primária

Controle da Entrada e Oferta de Substâncias

Modelos de Prevenção em diferentes etapas do desenvolvimento Intervenções na gestação Como o uso de SPAs na gestação é prejudicial ao binômio mãe-feto, medidas preventivas são prioritárias nas gestantes. A fase, de profundas transformações, pode tornar a mulher mais suscetível às intervenções. Após fornecimento de tratamento integrado de pré-natal, TUS e eventuais transtornos psiquiátricos adicionais às gestantes, com foco também nos vínculos dos pais com a criança, resultados positivos foram observados no aprimoramento de habilidades parentais e no desenvolvimento, comportamento e respostas emocionais das crianças15,16. Programas de visitas domiciliares pré e pós-natais de rotina em gestantes com TUS não encontram sustentação em evidências até o momento17, embora alguns estudos sugiram que pode haver bom custo-benefício no bem-estar e custos médicos18,19.

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Primeira infância ou idade pré-escolar Os objetivos principais nessa etapa são o desenvolvimento de um vínculo seguro com os cuidadores, competências linguísticas apropriadas à idade, funções cognitivas e executivas, como o autocontrole, atitudes e habilidades pró-sociais. A aquisição desses objetivos é facilitada por um contexto familiar afetivo, responsável e provedor e por um ambiente comunitário solidário e favorável. Possíveis riscos relacionados ao uso de substâncias ocorrem precocemente, ainda durante a gestação. A ingestão materna de álcool, nicotina ou drogas afeta negativamente os fetos em desenvolvimento, gerando dificuldades na aquisição de competências que podem trazer comportamentos negativos no futuro. Acessos de raiva, desobediência, atitudes disruptivas ou destrutivas podem se manifestar precocemente e devem ser adequadamente conduzidas, sob o risco de se tornarem problemáticos ao longo da vida. Ambientes familiares caóticos, inabilidades parentais, uso de drogas pelos pais ou outros transtornos psiquiátricos igualmente representam riscos. Intervenções educacionais na primeira infância A educação precoce promove o desenvolvimento de habilidades de linguagem, sociais e cognitivas de pré-escolares, contribuindo para promover inclusão social, saúde mental, autoeficácia acadêmica e para reduzir comportamentos de risco20. Intervenção seletiva no cenário da educação em crianças de comunidades carentes demonstrou redução do tabagismo, do uso de maconha e de outras drogas no futuro21. Infância Nessa fase a família continua sendo o principal agente de socialização, entretanto, a convivência com colegas passa a ser mais intensiva. Assim, normas da comunidade e qualidade da educação adquirem cada vez mais importância, assim como as habilidades sociais, que serão importantes fatores de proteção. Os objetivos do desenvolvimento na infância incluem linguagem adequada para a idade, habilidades matemáticas, aquisição de autocontrole e comportamentos com objetivos definidos, progressiva capacidade de tomada de decisões e resolução de problemas. Transtornos mentais que se iniciam nessa fase (como transtorno de ansiedade, de controle de impulsos ou de conduta) podem prejudicar o desenvolvimento de vínculos saudáveis. Filhos de famílias desestruturadas podem começar a se associar a “más companhias”, acarretando alto risco de escolhas negativas, incluindo o uso de drogas e atividades ilegais. Programas eficazes na infância não são voltados especificamente para a questão das drogas, mas sim para o aprimoramento de habilidades e fortalecimento dos fatores de proteção2. Intervenções baseadas no aprimoramento de competências parentais São programas que proporcionam o fortalecimento do vínculo familiar e podem ser usados também em outras etapas, como em famílias de pré-adolescentes. Incluem orientações de apoio aos pais sobre educação afetiva e segura, como assumir posições mais ativas na vida dos filhos, estabelecer regras para comportamentos aceitáveis, aplicar disci-

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plina de maneira positiva e adequada e servirem de modelo para os filhos. Monitorar suas atividades, acompanhar de perto o tempo livre e supervisionar os padrões de amizades são atitudes que ajudam a criança a adquirir condições para tomar decisões informadas. Esses princípios têm demonstrado ser os fatores de proteção mais fortes contra o abuso de drogas e outros comportamentos de risco e se aplicam também a faixas etárias mais avançadas22. Programas universais com trabalho focado nas famílias parecem ser os mais eficazes, proporcionando reduções no abuso de substâncias a longo prazo. Favorecem também melhor funcionamento familiar e ajustamento emocional e comportamental das crianças. Embora alguns estudos não tenham demonstrado resultados significativos, de maneira geral há evidências de custo-eficácia e já foram implementados em diversos países20,23-28. As características que parecem estar associadas a resultados positivos incluem intervenções realizadas em grupos de sessões, com organização que facilite a adesão dos pais (horários não comerciais), por profissionais treinados e com a participação ativa e envolvimento de toda a família nas atividades. Por outro lado, é importante ressaltar que algumas características não se associam a resultado algum e podem ser até mesmo negativas: utilizar como método apenas palestras, pessoal responsável malcapacitado, atividades focadas apenas na criança, subestimar a autoridade dos pais e fornecer informações sobre drogas para que os pais possam conversar com os filhos. Intervenções baseadas no aprimoramento de habilidades sociais São intervenções universais aplicadas na escola por professores capacitados. Visam ao desenvolvimento de habilidades para lidar com situações cotidianas difíceis de forma segura e saudável, competências sociais para o bem-estar mental e emocional, autocontrole, habilidades de dizer “não” e abordagem de normas e atitudes sociais. Os resultados têm demonstrado redução do uso de SPAs no futuro e contribuem para o fortalecimento de outros fatores de proteção, como compromisso com a escola, desempenho escolar, autoestima e habilidades de resistência20, 25, 26, 29-38. Os programas que demonstram ser eficazes costumam ser realizados a partir de sessões estruturadas subsequentes promovidas por profissionais treinados, por vezes ao longo de anos. A participação das crianças é ativa e interativa, com momentos de imersão. Palestras e informações específicas sobre substâncias não só não produzem resultados, como podem piorar a situação22. Pré-adolescência Programas para pré-adolescentes apresentam resultados muito favoráveis, inclusive melhores do que aqueles aplicados em crianças mais jovens ou mais velhas22. A maioria das evidências é encontrada nos programas universais, que em alguns casos parecem favorecer também grupos de alto risco. Redução no uso de todas as SPAs e de comportamentos inapropriados, bem como diminuição do absenteísmo e evasão escolar, tem sido observada. Alguns programas proporcionam efeitos no uso de substâncias também a longo prazo. Os programas com resultados favoráveis são interativos, com 10 a 15 sessões semanais, aplicados a facilitadores treinados. Abordam habilidades pessoais e sociais e lidam com situações cotidianas, tomada de decisões, aumento de resistência, sobretudo quanto à pressão para o uso de SPAs, e discussão de normas e crenças sociais acerca das drogas

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(incluindo desfazer expectativas equivocadas sobre uso e ampliar a percepção dos riscos e consequências imediatas do consumo). Métodos de certa forma “populares” no nosso país não têm apresentado resultados ou podem até ser prejudiciais: estes incluem palestras, fornecimento de informações por policiais ou ex-usuários e entrega de informações sobre drogas que despertem medo. Sessões não estruturadas de diálogos, programas pautados apenas na construção de autoestima e educação emocional ou aqueles que abordam tomada de decisões baseada apenas em valores éticos ou morais também não têm apresentado resultados22. Adolescência À medida que a idade avança, as medidas preventivas devem ganhar novos ambientes, como, por exemplo, trabalho, lazer e comunidade. As intervenções descritas nas seções anteriores também são válidas para os adolescentes e não serão aqui repetidas. Intervenções breves São sessões limitadas de identificação do problema, aconselhamento e encaminhamento para tratamento, quando necessário. Têm duração de 5 a 15 minutos e são aplicadas por profissionais da saúde ou educação treinados, geralmente valendo-se de técnicas motivacionais. São direcionadas a indivíduos com risco de uso de drogas, mas que não procuraram tratamento. Há evidências de custo-benefício e apresentam tamanho de efeito forte imediatamente após a intervenção e que pode se manter por períodos prolongados39-43. Mesmo uma única sessão pode gerar resultados positivos e duradouros2. Um exemplo é a intervenção ASSIST44, da Organização Mundial de Saúde. Existem estudos que observam eficácia de intervenções realizadas on-line45,46. Exemplos de abordagens focadas no indivíduo estão sumarizados no Quadro 3. Quadro 3. Intervenções focadas no indivíduo (adaptado de United Nations ESCAP, 2005)47 Problema específico

Intervenção sugerida

Mudanças de vida na adolescência (puberdade)

Informação, aconselhamento, apoio de pares, apoio familiar

Situações precárias (pobreza, violência, pressão por pares)

Serviços de suporte e fornecimento de recursos, alimentação, recreação, educação informal, sobrevivência e treinamento de habilidades. Apoio comunitário.

Problemas cotidianos (pressão por pares, atividades escolares, relacionamentos familiares)

Treino de habilidades sociais, planejamento financeiro, orientação vocacional, esportes e teatro, aprender sobre responsabilidade, centros juvenis comunitários, estabelecimento de valores, informações sobre o uso de substâncias, tutorias.

Falta de suporte familiar

Programas de adoção e abrigamento, centros juvenis comunitários, treino de habilidades sociais, tutorias e educação em saúde.

Falta de estratégias de enfrentamento

Treino de resolução de problemas, autoestima e habilidades de comunicação, treinamento vocacional e de emprego, habilidades de sobrevivência, educação informal, fortalecimento do vínculo com os recursos comunitários, tutorias.

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Programas de prevenção em diferentes ambientes Escolas Alguns programas universais capacitam professores na gestão de sala de aula, para aplicação de recursos não pedagógicos que ensinam aos alunos comportamentos prósociais, reduzindo comportamentos inapropriados, disruptivos ou agressivos. Eles proporcionam melhorias no ambiente da escola, favorecem habilidades acadêmicas e socioemocionais, fortalecendo esses fatores de proteção. Participação ativa dos alunos é um dos elementos necessários para a obtenção de bons resultados48. Dada a importância da frequência e vínculo escolar, obtenção de linguagem adequada e habilidades matemáticas, uma série de políticas tem sido experimentada em países de baixa e média renda, para reforçar a adesão e os resultados escolares. Construção de escolas, fornecimento de refeições no local e incentivos econômicos condicionados para a família têm demonstrado resultados satisfatórios. Entretanto, não há clareza do prazo de sustentabilidade desses resultados49,50. Na pré-adolescência e adolescência, é ainda mais importante que a escola adote políticas claras sobre as drogas. As análises de evidências obtêm bons resultados51-53 e os correlacionam com algumas características: estímulo à atitude escolar positiva (comprometimento e participação), participação ativa de todas as partes interessadas (alunos, professores, funcionários e pais), regras claras e aplicadas a todos, abordagem consistente e rápida das infrações com sanções positivas e não punitivas (aconselhamento, encaminhamento, tratamento e outros equipamentos de suporte psicossocial), reforço positivo ao cumprimento da política e redução da disponibilidade de nicotina, álcool e outras drogas. Trabalho Os TUS são frequentes entre trabalhadores e os expõem a riscos ocupacionais e de segurança, diminuição da produtividade, absenteísmo, alta rotatividade, significativos gastos com saúde, dificuldades nos relacionamentos com colegas de trabalho, entre outros. O estresse laborativo é um fator que aumenta o risco de DQ entre jovens adultos que fazem uso de drogas. Ações no local de trabalho podem prevenir o uso de nicotina e álcool53,54. Ações eficazes abarcam múltiplos componentes: políticas locais, testes de álcool e drogas inseridos em um programa abrangente, aconselhamento e encaminhamento para tratamento, preservando a confidencialidade e com caráter não punitivo. Cursos de gerenciamento de estresse e abordagem preventiva à DQ incorporados a outros programas relacionados à saúde e bem-estar associam-se a resultados positivos de prevenção. Locais de entretenimento São locais de alto risco para comportamentos prejudiciais, como uso abusivo de álcool e drogas, agressões e condução de veículos após intoxicação. Intervenções favoráveis incluem treinamento de gerentes e funcionários sobre a responsabilidade de vender ou servir bebidas alcoólicas a menores de idade ou clientes embriagados, gestão desses clientes,

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mudanças de leis e políticas sobre venda ou em relação a beber e dirigir, entre outros55,56. Mídia As campanhas de sensibilização por meio da mídia muitas vezes são a primeira ou única intervenção governamental, por serem visíveis e atingirem facilmente elevado número de pessoas. Estas podem reduzir a iniciação do tabaco, em conjunto com outros componentes preventivos. Entretanto, análises não encontraram resultados significativos para o álcool ou outras drogas. A ineficácia de táticas meramente educativas ou amedrontadoras representa um desafio para as abordagens via mídia2. Campanhas mal-elaboradas devem ser evitadas, pois podem até mesmo piorar a situação, despertar curiosidade de experimentação ou tornar os jovens resistentes ou indiferentes a outras intervenções29,57,58. Além das campanhas específicas e da restrição à publicidade, é relevante o impacto indireto que a mídia exerce nas percepções, conceitos e comportamentos das pessoas acerca das drogas. É fundamental, portanto, que esses canais de comunicação adotem atitudes que não idealizem o uso de drogas. Equipamentos de saúde Abuso e dependência de SPAs são extremamente prevalentes na população geral e em particular entre pacientes que procuram serviços de saúde. O contato com um serviço de saúde é uma importante oportunidade para identificar esses casos. Todos os pacientes admitidos em qualquer nível de cuidado devem ser investigados para o uso de álcool, nicotina e outras drogas. O momento no qual o paciente procura um serviço com uma queixa clínica abre uma oportunidade para motivá-lo ao tratamento relacionado ao uso de substâncias. Apenas com a identificação correta do quadro subjacente relacionado ao uso de drogas é possível antecipar condutas mediante a possibilidade de síndromes de abstinência, abordar e aconselhar o paciente em relação ao uso de substâncias e encaminhá-lo para tratamento adequado após a alta, representando estratégias de prevenção secundária e terciária59. Evidências consistentes demonstram a efetividade de programas para a redução do consumo inadequado de substâncias aplicados em settings clínicos não especializados (atenção primária, hospitais gerais, salas de emergência, entre outros). O contato dos pacientes com esses serviços representa uma oportunidade para intervenções precoces em pacientes com uso abusivo de substâncias antes que consequências mais graves se desenvolvam e para intervenção e encaminhamento adequado de pacientes que já apresentam quadros de dependência instalados. Para tanto, deve haver triagem universal sobre o uso de SPAs em todos os pacientes, intervenções breves e encaminhamentos para tratamento em serviços adequados quando indicado. Todas as etapas da abordagem podem ser feitas por qualquer profissional de saúde treinado (médicos, enfermeiros, psicólogos, fisioterapeutas, nutricionistas, assistentes sociais, agentes de saúde) de forma eficaz2,60. O Quadro 4 sugere intervenções para problemas específicos, em diferentes settings.

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Quadro 4. Intervenções focadas em problemas específicos realizadas em diferentes settings (adaptado de United Nations ESCAP, 2005)47 Problema Específico

Intervenção Sugerida

Falta de conhecimento nas famílias e comunidades sobre o uso de drogas.

Programas comunitários e em instituições religiosas de tomada de consciência e informativos. Reuniões com professores e pais.

Falta de sistemas de suporte social.

Campanhas de alerta em clínicas, albergues para jovens, acesso fwacilitado em serviços comunitários aos jovens, incluindo serviços de saúde. Áreas recreativas reservadas a jovens no espaço público.

Falta de controle de oferta de insumos de nicotina, álcool e outras drogas.

Alerta sobre a necessidade de uma política de acesso e disponibilidade de substâncias. Encorajamento da restrição ao acesso a substâncias por parte de jovens.

Medo da polícia e autoridades.

Sensibilizar a polícia e autoridades sobre as necessidades dos jovens, encorajar a realização de palestras em escolas e centros comunitários, sobre o papel da polícia, esclarecendo sua premissa de “amiga dos jovens”, e não pessoas a serem temidas por eles.

Falta de estratégias de enfrentamento

Treinamento em resolução de problemas, autoestima, habilidades sociais, vocacional e de emprego, habilidades de sobrevivência e educação informal. Fortalecimento da ligação com recursos comunitários, tutorias.

Políticas do Álcool e Tabaco A carga global de doenças e a prevalência de TUS e suas complicações associados ao álcool e ao tabaco são muito maiores do que das demais drogas. O uso na pré-adolescência, quando o cérebro ainda está em desenvolvimento, aumenta consideravelmente a probabilidade de desenvolver dependência a estas e a outras drogas na vida adulta. É por isso que os esforços para prevenir e reduzir o tabagismo e uso de álcool pelos jovens são relevantes para a elaboração de uma estratégia de prevenção de drogas universal, além de serem cruciais em qualquer política de saúde pública. Estratégias incluem aumento dos preços, proibição de publicidade, aumento da idade mínima para comercialização a menores, treinamento dos varejistas e fiscalização adequada22. Estratégias de prevenção que requerem investigação adicional Prevenção do uso não médico de medicamentos controlados O uso crônico de medicamentos que potencialmente causam dependência pode ser visto como um evento amplamente disseminado. Quando a dependência se desenvolve, ela é de certa forma “socialmente aceita” e cursa com algumas características diferenciadas e específicas em relação à dependência de outras drogas. Como exemplos, podem-se citar os benzodiazepínicos (tranquilizantes “faixa preta”), as anfetaminas (inibidores do apetite, “rebites”) e os opioides. Esse fenômeno pode ser compreendido como resultado de prescrições excessivas e recorrentes sem indicações clínicas precisas e sem esclarecimentos claros sobre seu potencial dependogênico. E também como um reflexo da medicalização da vida, da busca por soluções rápidas e imediatas, da dificuldade em mudar hábitos e comportamentos em busca de uma vida mais saudável, assim como da tendência e tolerância cultural ao compartilhamento social de medicamentos, sem indicação médica. O uso desses fármacos, com ou sem prescrição, pode ser instrumental (por exemplo, “para

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dormir”, “para conseguir estudar melhor”, “para controlar uma dor”) ou recreativo e abusivo (em geral, em doses maiores, para obter efeitos psicotrópicos mais acentuados, como desinibição, “ficar acordado numa balada”, “conseguir dirigir a noite toda”, “anestesia emocional” para praticar crimes). Ao longo do último século, o desenvolvimento de regimes de prescrições com exigências peculiares – como receituários específicos e notificações e melhor controle farmacêutico e da logística de distribuição – configuram tentativas de estabelecer maior grau de controle sobre a situação2. Entretanto, por si sós, não são medidas suficientes para conter plenamente o uso inadequado e excessivo dessas medicações. Fraudes de prescrições, roubo de receituários e carimbos, desvio institucional de medicamentos (estabelecimentos de saúde, asilos, prisões), venda no “mercado negro”, “doctor shopping” (consultas em múltiplos médicos para obtenção de prescrições duplicadas, relato de queixas que tenderiam a gerar aumento das doses prescritas) e obtenção junto a familiares e amigos - são alguns exemplos de fontes que sustentam o uso inadequado dessas medicações. Uma vez que o aporte desses medicamentos requer prescrição, a melhor capacitação dos médicos ainda durante sua formação poderia ser uma forma de reduzir a circulação e disponibilidade deles para os casos em que não sejam indicados. Um exemplo seria o treinamento incisivo para basear a decisão clínica das prescrições em critérios positivos (critérios diagnósticos claros e bem-definidos, com metas estabelecidas, planejamento do tratamento e sua duração, uso de doses, prescrição de recursos adicionais não farmacológicos como adjuvantes, psicoeducação), e não em critérios negativos (para aliviar sintomas inespecíficos que não preenchem critérios de transtornos mentais propriamente ditos, para amenizar sofrimentos decorrentes de circunstâncias sociais crônicas, para responder ao paciente conforme suas expectativas de alívio imediato, para casos em que sabidamente não haverá benefício clínico – como no uso de hipnóticos em pacientes com insônia crônica). Capacitação para uso e recomendação de estratégias não farmacológicas (técnicas de relaxamento, comportamentais, aconselhamento, mudança de hábitos alimentares, exercícios físicos, higiene do sono, etc.) seria igualmente importante12. Ainda assim, mesmo com cuidados adequados e em contextos controlados, evoluções desfavoráveis podem acontecer. Nestes casos, quando existem indícios do desenvolvimento de dependência ou de complicações secundárias (quedas, acidentes, alterações do humor, entre outros), reconhecimento e medidas precoces são necessários. Para tanto, não apenas médicos, mas também outros profissionais, como farmacêuticos e enfermeiros, necessitam de capacitação12. Além disso, a abordagem dos generalistas especificamente voltadas para o tema, como intervenções durante as consultas de rotina ou o envio de cartas, pode reduzir o uso excessivo de benzodiazepínicos2. Estratégias que parecem interessantes, mas precisam de mais embasamento, incluem psicoeducação às famílias, melhor treinamento e aconselhamento legal aos médicos, aprimoramento logístico do sistema de farmácia e medidas práticas na comunidade para eliminar medicamentos controlados fora do prazo de validade ou que não estão mais sendo utilizados pelo paciente22. Esportes Não há evidências de que os esportes por si sós contribuam para reduzir o uso de SPAs22.

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Intervenções para crianças e jovens em situações de risco Revisão de literatura não encontrou análises aceitáveis ou boas ou estudos básicos sobre como prevenir o uso abusivo de SPAs nessa população. Esse grupo inclui, por exemplo, crianças e jovens fora da escola, meninos de rua, adotados e de orfanatos e crianças cumprindo medidas socioeducativas22. Conclusões Baseado na compreensão de que a DQ é uma doença crônica, recidivante, que afeta o cérebro, causada por uma interação complexa entre as vulnerabilidades individuais com fatores do meio ambiente, pode-se compreender o quão complexa é sua prevenção. Não é possível, portanto, esperar resultados consistentes com intervenções isoladas, dirigidas a apenas uma vulnerabilidade, limitadas em seu campo de alcance e cronograma. Um sistema de prevenção eficaz deve ser articulado em diferentes níveis (nacional, estadual, municipal e local), amparado por um sistema de políticas púbicas e por um anteparo jurídico, com recursos financeiros e técnicos suficientes e adequados, mantido a longo prazo ou mesmo permanentemente. As crianças e jovens devem ser apoiadas em todo seu desenvolvimento e particularmente em fases importantes de transições. As intervenções devem abranger toda a população e também, de maneira diferenciada, os indivíduos que se encontram em alto risco, com abordagem de fatores individuais e ambientais que geram vulnerabilidade e resistência. Os contextos para intervenção devem ser múltiplos, como nas famílias, comunidades, escolas, trabalho, mídia, lazer, serviços sociais e sistema de saúde. Todo planejamento deve iniciar a partir de pesquisas diagnósticas que permitam compreensão ampla da realidade da situação, identificação de aspectos-alvo a serem trabalhados e definição de metas a curto, médio e longo prazo. As intervenções devem ser ordenadas a partir de evidências científicas que deem suporte à sua aplicabilidade e eficácia. Deve haver, concomitantemente, monitoramento contínuo da qualidade das intervenções e dos resultados obtidos, se possível com avaliações de custo-benefício, procedendo a ajustes e reformulações, quando necessário. Não só a redução da oferta e da demanda populacional e individual deve ser abarcada, mas também a prevenção de consequências sociais e de saúde, oferecimento de cuidados e tratamentos adequados aos dependentes e às eventuais complicações clínicas – com atuações nos níveis primário, secundário e terciário de prevenção. Deve haver incentivo à mobilização e participação comunitária. Tudo de maneira integrada a esforços maiores em todos os âmbitos e esferas, visando, em última análise, ao desenvolvimento seguro e saudável de nossas crianças e jovens. Referências 1. SPOTH RL, CLAIR S, SHIN C, REDMOND C. Long-term effects of universal preventive interventions on methamphetamine use among adolescents. Arch Pediatr Adolesc Med. 2006;160(9):876-82. 2. STRANG J, BABOR T, CAULKINS J, FISCHER B, FOXCROFT D, HUMPHREYS K. Drug policy and the public good: evidence for effective interventions. Lancet. 2012;379(9810):71-83. 3. NIDA – National Institute on Drug Abuse. Drugs, Brain and Behaviour – The Science of Addiction. 3. ed. United States of America; 2010.

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Abordagem da família no cenário de vulnerabilidades Roberta Payá

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Introdução O diálogo entre a terapia familiar e o tratamento de substâncias é atualmente mais bem considerado. Autores1-3 que vêm estudando sobre o tema enfatizam que para compreender a complexidade do impacto de uma substância é preciso buscar alternativas interventivas no contexto social ou familiar do usuário. Abordar e incluir os familiares no processo de tratamento ou em intervenções preventivas vai além de uma reunião de grupo. Por isso que compreender a família como um sistema vivo e aberto e como o cenário para formação de vínculos de afeto, de cuidado, proteção e promoção de educação é pré-requisito para intervenções familiares. Esse sistema é dinâmico, composto de forças interfamiliares e intrafamiliares. E a partir desse dinamismo a família constrói e reconstrói um estado de desequilíbrio mediante as mudanças sociais4. Nos dias de hoje não existe um único modelo familiar, as famílias são definidas muito mais pelos laços afetivos do que por consanguinidade e as mudanças sociais trouxeram várias formas de convivência e configurações familiares. No campo de tratamento da dependência química considera-se o significado que o paciente dá à sua família, relativo à rede social. Embora se tenha que considerar a subjetividade do construto de família, vale ressaltar o entendimento de Salvador Minuchin5 como sendo um grupo de pessoas conectadas por emoções e/ou sangue, que viveram juntas tempo suficiente para terem desenvolvido padrões de interação e histórias que justificam e explicam esses padrões de interação. Em suas interações padronizadas, os membros da família constroem uns aos outros – pertencimento e individualização. Dessa forma, a constituição familiar e a definição de família dependem de aspectos advindos dos movimentos históricos, do contexto cultural, gênero, religião, etnia e tempo. Aspectos que são modeladores de papéis e regras familiares e que afetam e influenciam diretamente cada indivíduo e seu sistema. A seguir serão abordados aspectos do funcionamento familiar, codependência, fatores de risco familiar como vias a saber para a redução da vulnerabilidade familiar, bem como aspectos que potencializam a promoção de saúde no sistema familiar como fatores de proteção específicos, religião, crenças e mitos, a importância da rede social e resiliência familiar. Aspectos que ampliam o cenário vulnerável Funcionamento familiar As intervenções familiares, de maneira geral, são conjuntos de procedimentos que envolvem uma equipe mínima capacitada para diagnosticar, orientar e tratar de diferentes formas tanto a pessoa que faz uso como o sistema como um todo. Vários estudos evidenciam problemas no funcionamento familiar de dependência de drogas, entretanto, esses resultados não devem ser encarados de maneira linear e/ou casual, na tentativa de justificar uma “tipologia de família” com pessoas dependentes de drogas, reforçando um estigma de que as famílias são “sempre problemáticas e difíceis”. A compreensão do funcionamento familiar deve estar respaldada na história intergeracional da família e no diagnóstico individual e familiar. A competência da família, sua resiliência, assim como as habilidades para lidar com o estresse, são fatores importantes de se

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levar em consideração nas intervenções que envolvem os dependentes e seus familiares3. Quanto ao funcionamento da família, padrões de organização, crenças familiares e processos de comunicação são aspectos importantes a serem observados, sendo que as relações familiares são modificadas quando um de seus membros torna-se dependente de drogas6. Compreender a dinâmica familiar do dependente químico possibilita o entendimento que o sintoma exerce sobre seus membros e propicia um direcionamento de intervenção mais adequada de acordo com a dinâmica predominante na mesma. Com isso, identifica aspectos que favorecem e perpetuam a sintomatologia intrínseca no sistema familiar no qual o dependente está inserido, permite que novos caminhos possam ser traçados para reestruturação desse sistema e, consequentemente, contribui para melhor qualidade de vida de ambos. Ressalta-se que o sintoma que regula é o mesmo que denuncia a dificuldade da família no enfrentamento da crise7. A dependência química pode emergir para resolver um conflito familiar, levando a família a uma estagnação em seu funcionamento. A problemática da dependência química contribui para a estabilidade do sistema familiar como sendo parte do seu funcionamento. Referindo-se ao filho dependente químico, Orth8 salienta que, quando o mesmo consegue tirar a droga do lugar privilegiado em que ocupa e usar dos próprios recursos para alcançar êxitos na vida, a família se desestabiliza, por ter, então, que se haver com suas próprias questões como casal. E este, ainda que inconscientemente, mata o filho nesse lugar, impedindo, dessa forma, seu progresso e a possível saída da drogadição. Moreira9 observa que, em famílias nas quais há vários membros dependentes, existe alternância do “dependente identificado” onde o comportamento próprio desses circulam entre si. É característico dessas famílias manter um sistema fechado, impossibilitando seus membros de alcançarem autonomia. Limites muito rígidos e falta de confiança por parte da família levam, de acordo com estudos feitos com o dependente, a sentimentos de estigmatização, isolamento social, estresse, aumento de risco de recidiva e exacerbação do sintoma. Daí a importância de que a família, a partir da orientação, venha adquirir habilidades para mudar sua dinâmica, já que, por falta de informação ou flexibilidade para mudar, a prevalência da droga continua a comprometer o sistema familiar10. Codependência como parte do processo de vulnerabilidade O comportamento codependente manifesta-se no familiar do dependente químico por meio do sofrimento, do adoecimento físico e psíquico. No desenvolver desse processo notam-se vários sentimentos como medo, culpa, controle, cuidado excessivo por parte do familiar que crê ser responsável pelas atitudes do membro usuário, inclusive por seu destino. Evidencia-se, assim, um equívoco da não percepção de que o cuidado diferencia-se da obsessão; o que seria um cuidar natural torna-se doentio e prejudicial a ambos. A codependência expõe o familiar a uma série de sintomas como tristeza, ansiedade, baixa autoestima, cansaço físico e mental, comportamento letárgico e até mesmo pensamentos suicidas. É imprescindível, então, que se amplie o olhar da apreensão fragmentada do dependente, uma vez que a dependência é uma sintomatologia que reflete uma intricada rede de relações na qual o indivíduo se insere11. Não raras vezes, o mecanismo da negação contribui para a manutenção da condu-

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ta adicta, sendo desencadeado pelo acobertamento de sentimentos, tais como vergonha, medo e culpa. E também, pela distorção do significado e da complexidade que o uso abusivo de drogas representa dentro e fora do contexto familiar. De acordo com pesquisa realizada por Dias et al.12 na América Latina, estudos revelaram que a população reconhece como ineficientes os serviços de saúde no que concerne à prevenção e ao tratamento, tanto para o dependente quanto para a família. Esta se sente perdida e desamparada em sua codependência, embora haja sensibilização para que saia desse lugar e busque ajuda externa. Pesquisa feita com participantes recrutados em um grupo de autoajuda “Amor Exigente”, na cidade de São Paulo, constatou que o tempo que o familiar leva para descobrir o envolvimento do membro com drogas é, em média, de 3,7 anos. Desses, 42% procuraram ajuda imediatamente e os outros 58% demoraram, em média, 2,6 anos para buscar apoio. Entre as razões mais indicadas para a demora está a crença de que o uso indevido da droga iria passar ou que poderiam lidar com a situação sem ajuda externa. Alguns relataram não saber onde buscar ajuda, antes de conhecer o grupo que tem por objetivo oferecer apoio às famílias com membros dependentes químicos13. Ter como lente de compreensão sobre a disfuncionalidade familiar pela codependência é uma das possibilidades. Não se pode deixar de mencionar que, além das características que compõem a qualidade da relação entre familiar e usuário, estudos com visão diagnóstica do codependente compararam determinados comportamentos de acordo com a CID-10 e DSM 5. Segundo a CID-10, a presença persistente de quatro dos primeiros critérios e ao menos três entre os demais determinariam o diagnóstico: • Tendência excessiva de cuidar e/ou controlar alguém. • Tolerância com o outro. • Atração por pares emocionalmente instáveis. • Grande dificuldade em impor e respeitar limites. • Tendências a guardar rancores e a interpretar como traições as ações neutras. • Sentimento de estar sempre lesado nos direitos pessoais. • Oscilação frequente na autoimagem. • Sentimento de autopiedade. • Dificuldade de demonstrar e receber afetos. • Dificuldades sexuais. • Hipersensibilidade a criticas. Segundo DSM 5, aspectos como o investimento contínuo da autoestima na capacidade de controlar a si mesmo e a “outros” diante de sérias consequências adversas; ansiedade e distorções de limite em relação a si próprio e ao “outro”; assumir a responsabilidade de satisfação das necessidades do “outro”, com a exclusão do conhecimento e satisfação das próprias necessidades; e envolvimentos em relacionamentos com personalidades perturbadas ou quimicamente dependentes ou com outro codependente e/ou impulsos por indivíduos desajustados expressariam os critérios diagnósticos. Mas é fundamental ampliar a visão sobre o entrejogo das vulnerabilidades familiares. E também não esquecer que muito do que se apresenta na literatura é denominado como codependência. Em alguns casos esse termo até se apresenta de modo generalizado ou

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até mesmo banalizado. Por isso, deve-se compreender como uma das condições de enfrentamento do familiar. Entre outros comportamentos encontram-se diversos aspectos de gatilho familiar. E, para tal, serão abordados os fatores de risco desse contexto. Fatores de Risco Familiares Dados de pesquisa revelaram que existem alguns fatores que colocam as pessoas e grupos em mais vulnerabilidade, e essa maior propensão pode ser chamada de fator de risco4. Por outro lado, existem características pessoais ou sociais que diminuem a probabilidade de as pessoas consumirem ou abusarem de substâncias, no caso então seriam os fatores de proteção14. Foquemos os fatores de risco do âmbito familiar para reflexão. Segundo Santana e Ronzani15, a falta de apoio familiar representa um fator de risco em evidência para o uso ou abuso de alguma substância, assim como o monitoramento familiar indica ser um fator de proteção em potencial. Payá e Figlie11; Merikangas et al.,16; Furtado 17; Loukas et al. 18 e outros descreveram o que se pode compreender como características comuns e fatores de risco presentes nas famílias mais vulneráveis para o comportamento de uso ou abuso. De modo geral, são eles no Quadro 1. Quadro 1: Fatores de Risco Familiares como Sinais de Intervenção • Presença de um membro ou mais usuário; • Presença de problemas psiquiátricos em um dos cuidadores; • Conflitos familiares; • Desorganização familiar; • Alta freqüência de crises ou repentinas; • Discussões e desentendimentos constantes; • Falta de suporte parental; • Educação autoritaria associada a pouco zelo e afetividade nas relações; • Atitudes permissivas dos pais perante o consumo; • Incapacidade dos pais de controlar os filhos; • Baixo suporte social; • Envolvimento dos pais com a policia; • Separação; • Perdas; • Doenças graves ou processos de internação e desamparo; • Baixo poder aquisitivo; • Baixo acompanhamento escolar por parte do cuidador; • Prejuízo cognitivo dos pais - criados com habilidades cognitivas pobres e um ambiente com falta de estímulo. • Fase do ciclo de vida familiar, por exemplo: a adolescencia pode ser bastante vulnerável; • Super envolvimento do filho nas questões do casal.

Adaptado de Payá e Figlie 1; Merikangas et al.16; Furtado 17; Loukas et al.18.

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Os fatores familiares de risco devem ser detectados e abordados pelos profissionais sob a perspectiva da saúde coletiva, evitando visões deterministas, moralistas e/ou culpabilizadoras na família. Tais fatores podem ser trabalhados, quando identificados por diferentes áreas de atuação. No entanto, na fase infantil, a escola e locais como o posto de saúde, por exemplo, exercem papéis cruciais. Pois serão esses profissionais, muitas vezes, os primeiros a terem contato com os cuidadores ou então a perceberem a existência de um ou mais desses fatores. A ordem em que os fatores são apresentados também não estabelece prevalência ou prioridade. O pensamento a ser mantido deve ser na combinação desses fatores em determinado momento de vida familiar. • conflitos e desorganização familiares; • fases do ciclo familiar; • dependência de um ou mais de um membro e comorbidades. Aspectos que favorecem as intervenções familiares A partir da disfuncionalidade, codependência, fatores de risco e o cenário de desamparo que as famílias sofrem diante da escassez de ajuda e formas de auxilio, pensa-se agora sobre se alguns aspectos podem favorecer tipos de intervenções familiares. A visão sistêmica da família Pressupõe-se que a pessoa, apesar de sua complexidade, não está isolada do contexto sociofamiliar. Ao contrário, está conectada e interagindo com as outras pessoas que lhe são familiares. A família, apesar da diversidade cultural, social e afetiva, é o lugar onde as expectativas são construídas, transformadas ou repetidas, dependendo da qualidade das interações. Nessa visão, o uso indevido de drogas pode ser concebido como um sintoma ou expressão de crise. Desse modo, o comportamento desviante de um filho adolescente, por exemplo, representa uma função dentro do sistema familiar 19-20. Para Ausloos21, o sintoma já era discutido como uma tentativa de o sistema mostrar mudança, sem que de fato alguma mudança ocorra. É um sinal de advertência de que não há soluções nas modalidades habituais de interação que o sistema apresenta. Stanton e Todd22 e Stanton et al.23 reconhecem três fases distintas no decorrer do abuso de drogas. A primeira seria o uso de drogas legais, como no caso do álcool que ocupa um espaço importante nesse cenário por poder ser compreendida como um fenômeno social. A segunda estaria representada pela maconha, que é marcada pela grande influência dos pares, do grupo. E a terceira etapa seria atingida quando o adolescente passa a fazer uso de outras drogas ilegais, fase esta entendida pelos autores como sendo uma questão intimamente ligada a questões familiares, principalmente entre pais e adolescentes. Particularmente sobre este último, é importante abrir um comentário, pois não se pode esquecer do quanto a substância crack pode de fato se opor a qualquer protocolo de entendimento familiar, já que atualmente tornou-se a substância mais desafiadora da nossa prática clínica e institucional e que com certa frequência “invade” diversas configurações e composições familiares, de qualquer condição econômico-social. Mas de acordo com os autores que foram apresentados por Guimarães et al.24 a drogadição pode ser entendida como parte de um processo cíclico que envolve três ou mais indi-

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víduos, normalmente o adolescente em situação de uso de drogas e seus pais. Essa relação triangular ocuparia uma função homeostática: reduzir a ansiedade do sistema quando esta alcança níveis muito elevados. Miller e Wilbourne3 ressaltaram como melhor proposta de tratamento aquela que inclui algum componente social. E nesse âmbito a família pode ser uma peça-chave para o início do processo de mudança do usuário, para a redução de problemas da dependência e de problemas familiares e para a prevenção de outros membros que correm elevados riscos de desenvolver outros transtornos. Edwards e Steinglass25 e Stanton e Shadish26 concluíram, por estudos de metanálise, que a terapia familiar contribui no engajamento do cliente e na manutenção desse engajamento em tratamento; proporciona a melhora de resultados quanto ao uso da substância relacionada e do funcionamento familiar; e permite a redução do impacto da dependência e seus danos (psicológicos e/ou físicos) nos membros familiares, incluindo filhos. A família, assim como a rede social do membro dependente, exerce também papel de relevância. Atualmente tem-se como aspecto bem-estabelecido a convivência direta do membro usuário com seus familiares. Na configuração da família brasileira, certamente essa realidade não é diferente. Os novos arranjos e composições familiares retratam acordos familiares em que cada vez mais, ora pelas necessidades econômicas e sociais ora por circunstâncias da história familiar, a permanência dos filhos dentro de casa estende-se. Isto leva o sistema como um todo a compor-se em várias pequenas famílias em momentos de vida diferentes. Tais configurações refletem uma arena de negociações de papéis, de intercâmbios de gerações, de sexo e culturas em que, muitas vezes, não há a efetivação das adaptações esperadas para uma convivência harmoniosa ou na promoção de relações interdependentes entre os membros surge o problema do abuso de substâncias. Numa perspectiva sistêmica, a reconstrução da rede social tanto para a família como para o membro usuário de substâncias, poderá ser a via de fortalecimento do processo. A rede é, também, uma estratégia de gestão de riscos aos quais estão expostos os setores mais vulneráveis da sociedade, e neste caso o dos usuários de substâncias. Ela pode funcionar como um instrumento para o conjunto das políticas de controle e de ordenação social. Famílias com mais vulnerabilidade ao abuso e dependência expressam um “debilitamento” da rede social e este alimenta um ciclo de modo que segredos, isolamento, indiferença e esquecimento das próprias raízes familiares se perpetuem. Nesse desencadeamento de laços afetivos e sociais, há o que Sudbrack27 referiu como sendo o desenraizamento de códigos que impedem as famílias de conhecerem com quem se pode contar, de quem se pode receber ajuda, com quem é possível juntar-se para resolver um problema comum. A compreensão dessa perspectiva condiz com resultados encontrados em estudo comparativo entre 310 famílias com pais dependentes de álcool, famílias com membros dependentes de substâncias ilícitas e famílias sem dependência; famílias com problemas de dependência revelaram ter menos apoio de sua rede social quando comparadas com o grupo familiar sem dependência1. Alguns familiares e amigos naturalmente se distanciam devido ao uso. Esposas, maridos ou parceiros tendem a se separar quando estão convencidos de que o membro da família usuário de substâncias não vai mudar, o que acarreta a quebra da rede

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de amigos – e uma curiosidade observada é o fator de sexo presente no tempo de convívio, uma vez que esposas tendem a permanecer por mais tempo numa relação como membro de apoio, em comparação com os maridos de mulheres dependentes. Ao longo do tempo, usuários transitam em outras redes de usuários e amigos não usuários tornam-se estranhos. Dependentes de álcool tendem a formar rede com outros dependentes de álcool, assim como dependentes de drogas tendem a formar rede com outros dependentes de droga. Mulheres, com certa frequência, são apresentadas às drogas pelos seus parceiros e, geralmente, maridos de mulheres dependentes de álcool têm elevado consumo alcoólico. Usuários oriundos de famílias com mais facilidade para mudanças tendem a ter melhores desfechos. Indivíduos com melhores condições de enfrentamento e reduzidas condições de estresse têm propensão a uma rede social maior. A inabilidade de oferecer suporte por parte dos usuários tende a restringir o tamanho da rede social, logo, indica situação mais acentuada de isolamento. Explorar crenças e mitos familiares e a promoção de condutas assertivas devem ser frequentemente focados Sob o aspecto familiar, para avaliar e tratar a dependência química “sistemicamente”, é necessário levar em conta as expectativas familiares. Reforçar a quebra de preconceitos e trabalhar com crenças moralistas e culpas quanto à questão da dependência proporciona o resgate da autonomia de cada um dos membros, buscando, principalmente, a mudança de padrões familiares estabelecidos. Além disso, os problemas com bebida alcoólica normalmente se desenvolvem gradualmente. Porém, eles podem ser exacerbados significativamente a partir do acúmulo de eventos estressantes ou pela identidade familiar construída ao longo das transições no ciclo de vida, pois ampliam o cenário de vulnerabilidade familiar. Resiliência familiar A resiliência caracteriza-se pela capacidade de o ser humano responder de forma positiva às demandas da vida cotidiana, apesar das adversidades que enfrenta ao longo de seu desenvolvimento. Trata-se de um conceito que comporta valioso potencial em termos de prevenção e promoção da saúde das populações. Segundo Silva28, autores que utilizam o conceito de família resiliente partilham da ideia de que essa característica se constrói numa rede de relações e de experiências vividas durante o ciclo vital. Ao longo das gerações, emerge então a capacidade da família reagir de forma positiva às situações potencialmente provocadoras de crises, superando essas dificuldades e promovendo sua adaptação de maneira produtiva ao próprio bem-estar. De modo geral, esses autores ressaltam que tal conceito tem como foco a família como um todo, em vez de se restringir ao indivíduo dentro da família - mesmo que as facetas da resiliência individual sejam incorporadas à noção de família resiliente, como a ênfase em um processo desenvolvimental e não em um fenômeno estático e a importância do momento em que o sujeito e a família se encontram quando se deparam com a adversidade29-30. Outro aspecto importante a destacar é que o conceito de resiliência pressupõe circunstâncias de vida adversas quando o ser humano é confrontado a desafios, os quais colocam à prova sua capacidade de enfrentá-los. Nesse sentido, refere-se a um paradoxo, uma vez

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que é justamente na vigência de situações adversas que o ser humano revela potencialidades extraordinárias. Nesse ponto de vista, resiliência traduz uma dimensão de positividade inserida nas reações dos sujeitos frente aos desafios que, inegavelmente, aportam uma perspectiva promissora em termos da saúde e do desenvolvimento humano, principalmente junto às populações que vivem em condições psicossociais desfavoráveis. No tocante ao contexto de abuso e dependência de alguma substância, a resiliência estaria representando um importante fator de proteção para a família, para a criança e para o usuário. Investigar tal conceito em famílias com e sem alguma substância foi um dos objetivos de estudo nacional31 com 305 famílias entrevistas no serviço de prevenção já mencionado anteriormente. Resultados desse estudo revelaram que famílias que vivenciam a problemática do álcool são mais resilientes que famílias que não têm algum tipo de problema com a substância. Quanto mais resiliente a família for, menos vulnerável a criança ou adolescente estará para desenvolver algum tipo de problema emocional ou de comportamento. Conforme as dimensões da escala familiar de resiliência, foi possível observar que tanto as famílias com problemas da dependência do álcool como aquelas com problemas de substâncias psicoativas revelaram ter índices mais elevados de tensões familiares e desconforto familiar. Desta forma, foi possível compreender que o abuso de uma substância já remete o sistema familiar a mais instabilidade, o que cria um cenário de adversidade, logo, tornando-os mais resilientes. Desconforto e tensões familiares são importantes fatores de risco para o sistema, segundo a amostra estudada, mas como Walsh30 ressaltou, um sistema saudável não é isento de problemas, e sim aquele que tem potencial suficiente para encontrar alternativas que tragam soluções para os conflitos e que reduzam comportamentos nocivos. Considerar a resiliência familiar como um aspecto que desafia o impacto do uso e abuso de substâncias psicoativas reforça o enfoque nas habilidades familiares e nas competências dos sistemas familiares, indo contra medidas que focam os déficits ou que reforçam um sistema público como um todo que perpetua na institucionalização de crianças e de adolescentes, sistema este que contraditoriamente reforça a não competência familiar. Religião A religiosidade tem sido considerada um dos mais importantes fatores do ambiente familiar que favorece a redução do risco de uso ou abuso da dependência. Estudos longitudinais com adolescentes mostraram que a religiosidade pode ser um fator de proteção para o comportamento de beber demasiadamente e para o problema de abuso de outras substâncias. Trata-se das práticas interventivas implicarem a questão da fé e das crenças como um meio protetor aos riscos inerentes do panorama social. Tal aspecto também pode fortalecer laços e vínculos entre os membros e famílias, ampliando o recuso de rede32-33. Tradições, rituais e hábitos culturais A mesma relação que o adolescente tem com sua escola, a família tem com sua vizinhança e comunidade. Os desafios presentes são disponibilidade de substâncias, criminalidade, isolamento social, etc. Os fatores socioculturais podem tornar as pessoas vulneráveis ao desenvolvimento da dependência na medida em que algumas culturas apoiam níveis ainda mais elevados de consumo de bebida alcoólica ou toleram o uso de determinada

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droga do que outras. Por exemplo, um nível elevado de consumo de bebida alcoólica é tolerado nos países nórdicos e não nos países orientais. Fatores no sistema social mais amplo, como os altos níveis de estresse e baixos níveis de apoio advindos de limitações básicas de saúde, educação de determinada região também podem tornar as pessoas mais vulneráveis ao desenvolvimento de problemas com bebida alcoólica. Principalmente se a distribuição e venda de alguma substância estiver associada a meio de sobrevivência. Dessa forma, a combinação desses aspectos pode alimentar os fatores de proteção na família, sendo esses aspectos essenciais para segurança e saúde no desenvolvimento da criança e do adolescente, reduzindo as chances de vulnerabilidade. O quadro 2 sintetiza esses fatores: Quadro 2: Fatores de Proteção Familiares como Recursos de Intervenção • Experiência positiva paternal; • Pai / mãe não dependente; • Percepção das necessidades da criança; • Condição econômica - social da família; • Estabilização Familiar – ambiente harmônico, com diálogos... • Relação com a comunidade – Suporte social; • Convivência com membros não usuários; • Participação em centros comunitários, escolas, posto de saúde... • Resiliência Familiar; • Perpetuação dos hábitos e rituais familiares; • Religião; • Definição de regras claras; • Entendimento de que os pais compreendem os problemas dos filhos; • Relação afetiva entre pais e filhos; • Monitoramento dos pais em relação às atividades dos filhos. Adaptado de Payá e Figlie 1; Merikangas et al.16; Furtado 17; Loukas et al.18.

Conclusão O ponto-chave de toda discussão com famílias é reconhecer que seu trabalho traz benefícios e contribui positivamente para a mudança no padrão de abuso ou dependência de substâncias e para a qualidade de vida da família. Os ganhos de qualquer intervenção familiar devem ser vistos no contexto de vida do paciente e de sua família, além de terem que ser analisados em um processo, o que significa que mudanças não serão imediatas, e sim construídas conforme a realidade de cada sistema familiar. Sozinhas essas famílias não conseguem resolver uma questão que não é só delas, mas parte de uma sociedade que produz o desamparo em vários níveis. Por isso, torna-se imprescindível ampliar o entendimento do sistema familiar, perceber quais regras e valores

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regem seu funcionamento. E reconhecer que a codependencia é uma das formas de lidar com a problemática, mas que não reduz a possibilidade de membros da família buscarem outras formas de enfrentamento. Neste capítulo foi evidenciada a combinação dos fatores de risco inerentes às famílias. Importante reconhecê-los no âmbito escolar, nas unidades básicas de saúde e não obrigatoriamente em serviços especializados. Pois esses fatores, quando identificados, podem redirecionar o tipo de ajuda que a família requer. Sobretudo, vale ressaltar que a vulnerabilidade familiar precisa ser compreendida entre suas relações internas, entre os membros, mas também nas conexões externas de que o sistema faz parte. Daí a relevância das condições protetoras da comunidade e do meio para suprimirem necessidades paralelas ao problema da dependência ou abuso de substâncias, assim como também potencializarem melhores condições de enfrentamento familiar. Referências 1. PAYÁ R, FIGLIE NB. Família e dependência química. In: Figlie et al: Aconselhamento em Dependência Química. São Paulo: Roca; 2013. 2. SILVA EA. Abordagens familiares. J. Bras. Dep. Quím. 2001; 2, supl. 1:21-24. 3. MILLER WR, WILBOURNE PL. Mesa Grande: A methodological analysis of clinical trials of treatment for alcohol use disorders. Addiction. 2002;97(3):265-277. 4. SILVA EA, DE MICHELI D. (Orgs). Adolescência uso e abuso de drogas – uma visão integrativa. São Paulo: Ed. UNIFESP, 2011. 5. MINUCHIN S. Famílias: funcionamento e tratamento. Porto Alegre: Artmed, 1990. 6. SELEGHIM MR, OLIVEIRA MLF. Influência do ambiente familiar no consumo de crack em usuários. Acta paul Enferm. 2013: 26(3):263-268. 7. PAZ FM, COLOSSI, PM. Aspectos da dinâmica da família com dependência química. Estud. psicol. Dez 2013; 18(4):551-558. 8. ORTH APS. A dependência química e o funcionamento familiar à luz do pensamento sistêmico. [Dissertação de mestrado]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2005. 9. MOREIRA MSS. A dependência familiar. Rev. SPAGESP. Dez 2004;5(5):83-88. 10. ENGLANDKENNEDY ES, HORTON S. Everything that I thought that they would be, they weren’t: Family systems as support and impediment to recovery. Social Science & Medicine. 2011;73(8):1222-1229. 11. MORAES LMP et al. Expressão da codependência em familiares de dependentes químicos. Rev Min Enferm. 2009;13(1):34-42. 12. DIAZ C, BOLÍVAR J et al . El consumo de drogas y su tratamiento desde la perspectiva de familiares y amigos de consumidores: Guatemala. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2009;7:824-830. 13. SAKIYAMA HMT et al. Family members and alcohol dependence, v. affected by a relative’s substance misuse looking for social support: Who are they? Drug Alcohol Depend. 2015;147:276-279. 14. POLETTO M, KOLLER SH. Resiliência: uma perspectiva conceitual e histórica. In: DELL’ANGLIO DB, KOLLER SH, YUNES MAM. Resiliência e Psicologia Positiva – interfaces do risco à proteção. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2006. 15. SANTANA FP, RONZANI TM. Estudos Parentais e Consumo de Drogas entre Adolescentes – revisão sistemática. Psicol Estud. 2009;14,(1):177-183.

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Como as comunidades terapĂŞuticas abordam a questĂŁo da vulnerabilidade Carolina Couto da Mata

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Introdução Entende-se que as relações desiguais de poder possuem papel central nos processos de vulnerabilização experimentados por diferentes grupos sociais, ampliando o alcance das abordagens que se restringem à responsabilidade individual como determinante desses processos. Estar colocado em situação de desigualdade por motivos socioeconômicos, religiosos, de sexo, de raça, de idade, de saúde, de opção sexual, de etnia, de cor da pele, por deficiência física ou mental, pelo uso de substâncias psicoativas, entre outras, configuram situações que vulnerabilizam os sujeitos, em processos e práticas sociais e históricas1. Nesse sentido, pode-se dizer que a desigualdade econômica e a desigualdade de sexo têm, historicamente, vulnerabilizado os pobres e as mulheres; que a população LGBT é vulnerabilizada pelo preconceito sexual e pelas práticas homofóbicas; que a deficiência cognitiva e mental vulnerabiliza os sujeitos, por torná-los mais dependentes; que os pacientes que sofrem doenças contagiosas são vulnerabilizados pelo temor da contaminação que possam provocar; que os doentes crônicos são vulnerabilizados por serem dependentes de tratamentos contínuos e, muitas vezes, incapacitantes; e, igualmente, os sujeitos dependentes químicos, vulnerabilizados pelo “pânico moral”2 induzido por campanhas e matérias midiáticas. Em todos esses casos, a situação de vulnerabilidade potencializa o perigo de serem desconsiderados, explorados, injustiçados, discriminados, excluídos, agredidos e segregados. Isso ocorre na medida em que, em uma sociedade segregacionista e violadora, tais grupos têm reduzidas suas capacidades de proteger seus interesses nas relações de poder. Por isso, faz-se necessária a criação de dispositivos institucionais de defesa, proteção e atenção, com vistas ao acolhimento, tratamento e garantia de seus direitos sociais, civis, políticos, econômicos e culturais - seus direitos humanos. Essa perspectiva é importante, pois retira tais grupos do campo assistencialista de tutela dessas pessoas - que reforça uma percepção de incapacidade pessoal, individual - e reconhece a capacidade criadora e de resistência desses sujeitos na busca de superação das condições de sua vulnerabilização. Considera, assim, tanto a dimensão relativa ao indivíduo e ao local social por ele ocupado, quanto os aspectos coletivos e contextuais que os tornam suscetíveis às violações. Tal concepção indica o conceito de vulnerabilidade, significando grupos ou indivíduos fragilizados jurídica ou politicamente na promoção, proteção ou garantia dos seus direitos de cidadania3. Nessa mesma perspectiva analítica, o conceito de vulnerabilidade social pode ser relacionado aos processos de exclusão, discriminação ou enfraquecimento dos grupos sociais4 e à sua capacidade de reação5. A Comunidade Terapêutica da Terra da Sobriedade pauta sua atuação nessa perspectiva ampliada do conceito de vulnerabilidade, colocando o sujeito dependente químico no centro de relações e determinações que condicionam sua existência e a dependência, buscando ajudá-lo a compreender a situação na qual se encontra e a se apropriar de sua história de vida. Isto é, entende a vulnerabilidade dos sujeitos em uma perspectiva transdisciplinar e complexa, relacionada às determinações de ordem individual, coletiva, contextual, geográfica, política e econômica, ultrapassando abordagens que primam por análises de multifatorialidade. Nesse contexto, entende o risco presente nas situações de vulnerabilidade pelas rupturas que pode provocar, tanto das garantias individuais quanto dos vínculos sociais e familiares, sem desconsiderar seus impactos na integridade física e psíquica e na perda de autonomia. Considera-se que a proposta de vida em comunidades terapêuticas (CT) pode ser um importante instrumento na abordagem da dependência química e dos processos de vul-

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nerabilização que dela fazem parte. Para fundamentar esse ponto de vista, neste capítulo pretende-se apresentar os elementos essenciais do modelo de atenção denominado “comunidade terapêutica”, suas distorções e limites, bem como interrogar seus impactos no processo de vulnerabilização que sofrem os dependentes químicos e seus familiares. Inicia-se por uma breve discussão sobre as comunidades terapêuticas, seus fins, normatizações e distorções. Em seguida, apresenta-se um histórico do modelo de atenção das comunidades, seu método de tratamento e, finalmente, a experiência da Terra da Sobriedade. As comunidades terapêuticas: usos e abusos Entre os recursos atualmente disponíveis para o tratamento da dependência química, grande parte da população brasileira tem buscado ajuda nas comunidades terapêuticas. O termo “comunidade terapêutica” tem sido utilizado na literatura especializada para se referir a uma abordagem que está centrada no uso de atividades e dos relacionamentos entre os dependentes e a equipe de funcionários, em um ambiente comunitário, residencial ou não, tecnicamente preparado para promover mudanças psicológicas e sociais6. O enfoque dessa abordagem está, assim, na interação contínua entre o sujeito e a comunidade, na convivência e na formação de vínculos entre os participantes, com o objetivo de favorecer a avaliação e a modificação do modo de vida. No Brasil, desde junho de 2011, a Resolução da Diretoria Colegiada da Agência de Vigilância Sanitária (ANVISA) RDC n° 29a regulamenta o funcionamento das comunidades terapêuticas para dependentes químicos. Essa normativa orienta a organização do serviço, ao se referir às atividades terapêuticas a serem desenvolvidas, à formação do responsável técnico e demais membros da equipe de atendimento, ao tempo máximo e ao caráter voluntário da permanência no serviço e quanto aos mecanismos de encaminhamento para outros serviços de saúde, nos casos de intercorrências; estabelece a importância de critérios de elegibilidade para a admissão no tratamento e para o uso de medicamentos; enfoca os direitos dos admitidos e as responsabilidades do serviço, assim como orienta quanto à gestão da infraestrutura e das instalações físicas. Há ainda a Portaria nº 3.088 de 23 de dezembro de 2011, do Ministério da Saúde, que institui a rede de atenção psicossocial (RAPS) para pessoas com transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Este, por sua vez, prevê a participação das comunidades terapêuticas no oferecimento de cuidados contínuos de saúde de caráter residencial transitório, de forma articulada com a atenção básica e com os centros de atenção psicossocial (CAPS). Tais normas estabeleceram um marco legal rumo à organização e regulamentação das comunidades terapêuticas que já atendiam dependentes químicos no Brasil desde a década de 70. Além disso, estabeleceram uma referência mínima para que esses serviços possam ser implantados e fiscalizados. Apesar disso, essas exigências não parecem ser suficientes para garantir o monitoramento e a fiscalização dos serviços; explica-se o porquê. Historicamente, o movimento das comunidades terapêuticas no Brasil tem sido alvo de críticas por uma parcela dos grupos envolvidos com a reforma psiquiátrica brasileira. Isso porque muitos serviços que se autodenominam “comunidades terapêuticas” têm sido ”A partir de agosto de 2016, as Comunidades Terapêuticas terão como normatização o Marco Regulatório n°01/2015, do Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas”.

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implantados de maneira irregular no país, com práticas que contrariam a proposta original de CT e a legislação, constituindo-se muitas vezes em violações de direitos. A esse respeito, em 2011, o Conselho Federal de Psicologia divulgou documento no qual apresenta denúncia de práticas que violam os direitos humanos e desrespeitam as demais normativas jurídicas que regulamentam os serviços de saúde e de assistência social. A realidade apresentada configura situações de violência e opressão que contrariam os princípios de dignidade humana e evidencia a necessidade de fiscalização constante por parte do poder público, visando inibir e impedir o funcionamento de tais programas ditos de tratamento. A identificação dessas práticas com o modelo de comunidades terapêuticas demonstra o desconhecimento de parte da sociedade sobre a real proposta metodológica das CTs, sobre seu modo de funcionamento, bem como sobre seus resultados. De fato, essas práticas denunciadas são inassimiláveis e muitas comparações equivocadas e descontextualizadas historicamente, por desconhecimento do modelo de reabilitação proposto, têm prejudicado a articulação, o fortalecimento e o avanço na implantação de uma rede de atenção psicossocial, como a que é proposta pelo Ministério da Saúde. Um breve histórico sobre o modelo de atenção das comunidades terapêuticas Desde o seu surgimento, o modelo das comunidades terapêuticas vem sendo adaptado a diferentes públicos (homens e mulheres adultos, mulheres com seus filhos, adolescentes, dependentes químicos com outros transtornos psiquiátricos), em diferentes ambientes (prisões, abrigos para pessoas em situação de rua, setores de hospitais, permanência-dia), sofrendo a influência do desenvolvimento das profissões e suas técnicas de atendimento (psicanálise francesa, prevenção da recaída, etc.) ao ampliar sua equipe de profissionais. Além disso, sua abordagem sofre a influência da cultura, do momento histórico e, consequentemente, da política de saúde, assistencial e educacional de cada país onde a CT está localizada. Todo esse contexto tem como resultado a heterogeneidade dos serviços prestados e a necessidade de consenso na definição dos elementos essenciais e dos princípios específicos desse modelo de atenção, para garantir sua efetividade. Historicamente, dois grandes campos do saber científico direcionaram a proposta clínica das CTs: a Psiquiatria social e a dependência química. No primeiro campo, as CTs, denominadas democráticas, têm sua origem no pós-guerra, na reabilitação de soldados por meio de grupos terapêuticos. Essa proposta foi desenvolvida por Maxwell Jones, psiquiatra do exército inglês, no Hospital Belmont (mais tarde chamado Henderson), na segunda metade da década de 1940. De Leon define essas comunidades do campo psiquiátrico como “unidades e instalações inovadoras destinadas ao tratamento psicológico e à guarda de pacientes psiquiátricos socialmente desviantes dentro (e fora) de ambientes hospitalares de tratamento de transtorno mentais”7. Como alternativa ao tratamento manicomial vigente na época, essa proposta questionava a desconsideração dos efeitos socializantes da cultura grupal para a terapêutica do modelo hospitalocêntrico, por compreender que esses efeitos possibilitariam uma vida social e de trabalho fora da própria instituição de tratamento8. O trabalho de Jones fundamentava-se nos seguintes pressupostos: 1) na comunicação de mão dupla em todos os níveis; 2) na tomada de decisão por todos os níveis, a partir do consenso;

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3) na liderança compartilhada; e 4) na aprendizagem social a partir das interações no “aqui e agora”9. Outro diferencial do trabalho de Jones: cabia ao profissional ajudar o paciente a descobrir o conhecimento que ele adquiriu na experiência grupal, atuando como um facilitador no processo de aprendizagem social - contrariando a prática de transmitir um novo conhecimento de modo professoral7. No segundo campo do saber científico, o da dependência química, De Leon afirma ser a CT um “programa de tratamento residencial, baseado na comunidade de dependentes de álcool e drogas”7. A CT é definida como um programa de tratamento, um conceito que sugere algo mais do que um espaço físico diferenciado onde um grupo de pessoas permanece por determinado período, como pode parecer para quem desconhece o modelo de reabilitação. O autor argumenta que, cronologicamente, as CTs da Psiquiatria Social antecedem - em 15 anos - aquelas voltadas para a dependência química na América do Norte, mas que não é possível determinar com clareza qual a influência de uma experiência sobre a outra. Considera, entretanto, que, gradualmente, houve uma aproximação entre os modelos e métodos da CT psiquiátrica e da CT para dependentes químicos7. No Quadro 1 são descritas as características da comunidade terapêutica psiquiátrica, a partir da proposta de Maxwell Jones. Quadro 1 - Características da comunidade terapêutica psiquiátrica a partir da proposta de Maxwell Jones7 1. Considera-se a organização como um todo responsável pelo resultado terapêutico; 2. a organização social é útil para criar um ambiente que maximize os efeitos terapêuticos, em vez de constituir mero apoio administrativo ao tratamento; 3. um elemento nuclear é a democratização: o ambiente social proporciona oportunidades para que os pacientes participem ativamente dos assuntos da CT; 4. todos os relacionamentos são potencialmente terapêuticos; 5. a atmosfera qualitativa do ambiente social é terapêutica no sentido de estar fundada numa combinação equilibrada de aceitação, controle e tolerância com respeito a comportamentos irruptivos; 6. atribui-se um alto valor à comunicação; 7. o grupo se orienta para o trabalho produtivo e para o rápido retorno às atividades sociais; 8. usam-se técnicas educativas e a pressão do grupo para propósitos construtivos; 9. a autoridade difunde-se entre os funcionários responsáveis e os pacientes.

Tendo como referência o momento histórico no qual estava inserido, a proposta de comunidade terapêutica de Maxwell Jones trouxe inegáveis avanços para a assistência de sua época, inspirando outros movimentos mundialmente influentes, como a reforma psiquiátrica francesa e a italiana de Franco Basaglia, que também influenciou a reforma brasileira. Contudo, as novas configurações sociais e culturais, além das experiências clínicas ao longo dos anos, evidenciam que é preciso avançar teoricamente e melhorar continuamente as práticas clínicas. As primeiras comunidades terapêuticas para dependentes químicos surgiram inicialmente na América do Norte e, posteriormente, na Europa, nas décadas de 60 e 70. Os primeiros programas de tratamento norte-americanos foram influenciados pelas experiências do Grupo Oxford, dos Alcoólicos Anônimos, do Modelo Minnesota e do Modelo de Sy-

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nanon7. Com o desenvolvimento de outras abordagens de cuidado, esses modelos iniciais inspiradores da primeira geração de comunidades foram aperfeiçoados. As comunidades terapêuticas norte-americanas As CTs norte-americanas foram fundadas por dependentes químicos, ao assumirem papéis de liderança e administrarem alguns serviços. Pela própria experiência no tratamento, fundamentado na mútua-ajuda, e pelo reconhecimento de um saber-técnico desenvolvido empiricamente num contexto de reflexão e aprendizagem, alguns dependentes se qualificaram profissionalmente, encontrando no papel social de ajudador um caminho viável para a própria inserção social7. Por isso, ainda hoje, uma das características dos serviços é ter em suas equipes de ajudadores pacientes que já se trataram nesse modelo. As CTs contemporâneas, por sua vez, sob a influência de outros modelos de atenção e diante do aperfeiçoamento das técnicas dos profissionais de saúde, da assistência social e de outras áreas do saber, passaram a oferecer atividades dirigidas por especialistas, sejam eles ex-pacientes das próprias comunidades ou profissionais com outras experiências de vida. Institucionalmente, a disseminação dos serviços para dependentes químicos no mundo, com o apoio dos governantes de cada país, resultou na criação das Comunidades Terapêuticas da América (TCA) - uma organização de programas norte-americanos de CTs, em 1975, e na Federação Europeia de Comunidades Terapêuticas em 19787. Desde então, os serviços estão organizados numa federação mundial subdividida em regionais que sediam os países membros. O Brasil é membro da Federação Latino-Americana de Comunidades Terapêuticas (FLACT), por intermédio da Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (FEBRACT), fundada em 16 de outubro de 1990, com sede em Campinas-SP. Existem, também, outras federações de CTs no Brasil, como a Federação de Comunidades Terapêuticas Evangélicas do Brasil (FETEB), fundada em janeiro de 1994; a Cruz Azul no Brasil; a Federação Nacional das Comunidades Terapêuticas Católicas (FNCTC) e Instituições Afins; e a Federação Norte e Nordeste de Comunidades Terapêuticas (FENNOTE) e a Confederação Nacional de Comunidades Terapêuticas (CONFENACT). A “vida em comunidade” como método de tratamento A comunidade terapêutica como modelo de atenção considera que o transtorno mental e comportamental devido ao abuso de substâncias psicoativas traz impactos em diferentes áreas da vida do sujeito, colocando-o em um contexto de vulnerabilidade, uma vez que afeta “a pessoa inteira”7. Isso significa que, independentemente da substância consumida, traz consequências cognitivas, emocionais e psíquicas, impacta os relacionamentos interpessoais, provoca perdas financeiras, laborativas, entre outros tipos de agravos. As consequências físicas e orgânicas são consideradas um dos elementos desse cenário e precisam ser cuidadas, mas não são o foco principal do modelo nem seu único objetivo. Outro aspecto destacado pelo modelo refere-se à complexidade das situações vividas pelos dependentes, às consequências psicossociais do uso abusivo, continuado e progressivo que devem receber atenção integral. Nesse caso, ressaltam-se os conflitos familiares com violência psicológica e física devido ao abuso de álcool, por exemplo; o furto e o roubo para sustentar o consumo abusivo de substâncias; o envolvimento com o tráfico de drogas para pagar dívidas do consumo abusivo ou da dependência; a prostituição como

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meio para conseguir mais drogas, entre outras práticas que acarretam rupturas socioafetivas e outros danos como a prisão, ampliando o grau de sofrimento. Assim é que a comunidade terapêutica é indicada para pessoas com dependência química moderada ou grave já inseridas em uma espiral de vulnerabilização – apresentando comprometimento da saúde, da vida familiar, laborativa e social - que podem se beneficiar de uma proposta de reabilitação psicossocial, quando o gerenciamento do uso de álcool e outras drogas e da doença já não é mais possível nem desejado pelo próprio paciente. Nesse modelo de atenção, na tentativa de deslocar o sujeito dessa espiral, todas as atividades terapêuticas buscam favorecer ao sujeito a avaliação da maneira como ele administra suas próprias emoções, como interage e se comunica, como percebe e vive seu cotidiano a partir de suas condições materiais de vida e, recursivamente, como essas experiências afetam sua subjetividade e seu modo de vida. Nas diferentes modalidades de atendimento e tratamento - permanência-dia ou residencial, em meio urbano ou rural, o objetivo é oferecer aos sujeitos novas oportunidades para ressignificarem a própria existência e para encontrarem e produzirem um novo sentido para a vida, por meio de atividades orientadas pela liberdade e criatividade. Assim se configura a abordagem terapêutica das comunidades: o “viver em comunidade”, que se faz em um setting ético e tecnicamente preparado para proporcionar outras experiências, diferentes das que o sujeito em dependência estava inserido e que o motivaram a procurar por ajuda. Nessa proposta, o paciente assume um lugar ativo, de sujeito e protagonista das ações, em uma participação democrática na organização social da vida comunitária. Além de desenvolver sua responsabilidade e autonomia no enfrentamento de suas dificuldades pessoais - processo denominado como “autoajuda” - ele é estimulado a colaborar com os outros membros da CT – processo denominado como “mútua-ajuda”. Ao oferecer suporte aos demais no desenvolvimento das atividades propostas e no cuidado das próprias dificuldades e vulnerabilidades, busca-se promover a solidariedade, o sentimento de pertença e o vínculo entre esses sujeitos, ultrapassando os relacionamentos propostos dentro da CT, fomentando a formação de outras redes e a experiência de coesão social. Ao participar ativamente da rotina de atividades, decidindo e compartilhando a responsabilidade pela manutenção da vida em comunidade e por todas as consequências que essa convivência proporciona, o sujeito cuida de si mesmo, reorganizando-se quanto aos procedimentos básicos e saudáveis para seu organismo (abstinência, autocuidado, sono, higiene, exercícios físicos, alimentação adequada, espiritualidade); cuida do “bem comum” e descobre intenções e habilidades (organização, limpeza e manutenção dos ambientes coletivos: quarto, banheiro, cozinha, casa, quintal, jardim, horta, etc.); e amplia sua atuação, participando dos programas educativos, produtivos, culturais, religiosos, esportivos e de lazer, disponíveis na CT e na sociedade em geral (atividades extramuros). Não se trata aqui de etapas, mas ações concomitantes e dinâmicas10. Nesse contexto comunitário, cada paciente pode aprender com os diferentes papéis sociais que desempenha, ao conviver em uma rede social que incentiva a comunicação, o enfrentamento dos problemas e dos conflitos e que busca o equilíbrio entre a necessidade individual e a coletiva. Essa abordagem exige que os programas de tratamento sejam flexíveis às necessidades, possibilidades e limitações de cada um, possibilitando a todos construírem alternativas que respeitem e valorizem a diversidade de respostas às situações de vulnerabilidades vividas, conferindo dinamicidade ao processo terapêutico. Para que a terapêutica comunitária seja possível, durante o período de tratamento intensivo o sujeito é convidado a interromper o uso de substâncias psicoativas e das demais

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atividades ligadas ao consumo de drogas, lançando mão de todo o suporte e acompanhamento terapêutico oferecido pelo serviço. A abstinência faz-se necessária para a avaliação precisa da extensão dos comprometimentos orgânicos e psíquicos decorrentes do consumo abusivo de álcool e outras drogas e para seu devido tratamento. Afinal, nesses casos graves, o transtorno mental e comportamental apresentado pelos dependentes não se resume àqueles envolvidos na administração do uso de substâncias psicoativas e de seus danos diretos, mas também ao sofrimento psíquico, às perdas cognitivas, à dificuldade de administrar os relacionamentos familiares, às perdas financeiras, educacionais e laborais e, considerando a complexidade dessa realidade, a todas as situações que alimentam e as que são consequências desse contexto de vulnerabilização. Durante o tratamento, um dos aspectos que são trabalhados pelo sujeito é o papel ou o lugar, em sua história de vida, do consumo de substâncias e da experiência objetiva, subjetiva, familiar, social, cultural e política desse uso de álcool e outras drogas. Em uma perspectiva profissional e ética, caberá ao profissional que o atende alertá-lo e orientá-lo quanto aos riscos e possíveis consequências da retomada do uso de qualquer substância psicoativa, deixando ao sujeito a decisão de como será esse consumo em sua vida. Essa proposta de interrupção do uso de substâncias durante o tratamento é polêmica, tendo sido considerada como vinculada ao proibicionismo em oposição à abordagem de redução de danos, proposta pelo Ministério da Saúde11. Há ainda os que afirmam, na tentativa de sustentar a efetividade da política de redução de danos, que a metodologia das CTs tem como pretensão “definir campos de normalidade e anormalidade” ou “desconsiderar os arranjos pessoais construídos pelos próprios sujeitos para lidar com seu uso (algumas vezes abusivos) de drogas”12. No entanto, a política de redução de danos não é contrária à abstinência. Respeitar a especificidade de cada caso implica considerar a história de vida de cada sujeito, acreditando em seu potencial de autonomia, de enfrentamento e reconhecendo seus limites. Cabe ao profissional de saúde, tecnicamente preparado, oferecer as informações e os instrumentos necessários para que o sujeito decida sobre a condução de sua vida - que não está restrita ao tempo de permanência na CT nem pode ter como premissa a posição de que cada um tem o direito de realizar seus desejos sem restrições ou consequências de diferentes naturezas – e desenvolva sua condição de saúde, que significa autonomia para viver, construir suas próprias normas13. Além disso, a vida comunitária é tecnicamente organizada para que essa experiência em coletividade promova a reflexão crítica de sua condição material de vida e instrumentalize esses sujeitos a serem ativos na vida social e política nos territórios dos quais eles fazem parte. A restrição ao consumo de substâncias dentro da CT é necessária e um dos aspectos essenciais do método das CTs. Nos casos graves de envolvimento, como nos elegíveis para o tratamento com esse método, a experiência clínica mostra que a busca e o consumo podem se tornar prioritários em relação às demais atividades terapêuticas propostas, impedindo o envolvimento dos sujeitos com a vida comunitária e, consequentemente, prejudicando o alcance dos objetivos do tratamento voluntariamente buscado. Um ambiente protegido do consumo de substâncias psicoativas é um importante fator de segurança psicológica para que a comunidade possa alcançar o nível de agregação e vínculo entre seus membros7. O objetivo dos relacionamentos entre os participantes na convivência em comunidade é criar uma cultura de mudança no modo de viver e de lidar com os problemas cotidianos, o que deve ser compreendido por eles. Para tal, é preciso que os sujeitos percebam a relação entre a maneira como expressam seus sentimentos e o próprio uso de substâncias psi-

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coativas. Essa aprendizagem é possível quando o sujeito não está sob o efeito de drogas7, o que reforça a importância de um ambiente acolhedor, favorecedor da fala e da escuta, da compreensão do outro, uma vez que os conflitos serão tratados de forma condizente com a cultura de paz e solidariedade proposta10. Tais premissas são estranhas aos sujeitos recém-admitidos nos serviços da comunidade, que precisam ser instruídos sobre o método utilizado e o que se espera. Fica a cargo dos membros veteranos e dos profissionais a responsabilidade de continuamente criar um ambiente de convivência fraterna e tolerante entre os participantes, livre do consumo de álcool e outras drogas, dialogando e intervindo nas situações que possam comprometer a convivência entre os sujeitos. Tal conduta tem como objetivo garantir o caráter terapêutico e a credibilidade da proposta da comunidade. Os profissionais também são considerados membros da CT e, portanto, espera-se que tenham comportamento coerente com as concepções de tratamento e de convivência. Atuam clinicamente como facilitadores do processo de criação comunitária de um ambiente de interação, escuta e aprendizagem através da experiência, do envolvimento e do crescimento individual e coletivo. Como o elemento terapêutico essencial do processo de mudança é a relação entre os dependentes, ou seja, é a COMUNIDADE, o profissional tem como objetivo promover e aperfeiçoar a aliança indivíduo-comunidade e mediar o processo de construção conjunta de uma ética da convivência, com a participação ativa dos sujeitos. Além de atuar como facilitadores do vínculo comunitário, a equipe clínica administra e cuida da qualidade do programa de tratamento, como autoridade última no gerenciamento clínico dos casos e das instalações7. Participar ativamente na vida comunitária significa propor aos sujeitos que se envolvam em atividades voltadas “para a vida prática, para a produção de utilidades, para a rotina doméstica e para o autocuidado”14. O caráter terapêutico das atividades está na possibilidade de esses sujeitos serem ativos no preenchimento de um espaço de negociação entre as pessoas, onde se busca conciliar os direitos e os deveres como membros da CT14. O objetivo principal não está no produto, resultante do trabalho, ou nos serviços realizados, nem nas capacidades desenvolvidas. Além do seu caráter expressivo - por ser a atividade laborativa reveladora dos problemas pessoais – na participação ativa da vida comunitária, o paciente lida com as rotinas de outra forma e constrói alternativas para seus problemas. Por isso, considera-se que a CT oferece um cenário de aprendizagem pessoal e social e de enfrentamento de suas vulnerabilidades. As situações cotidianas promovem oportunidades experienciais ricas, desafiadoras e estimulantes para o autoconhecimento e o desenvolvimento de novas maneiras de lidar com as dificuldades emocionais e de relacionamento7,9,10. A organização social da vida comunitária é um aspecto fundamental do serviço. A divisão de trabalho entre os membros da comunidade e as responsabilidades correlatas às funções se dá pelo tempo de tratamento, de assimilação da proposta do programa e pelas características pessoais, ocupacionais e clínicas de cada caso. Geralmente divide-se o processo de tratamento em fases ou estágios que refletem: a maneira como cada paciente entende, aceita, participa e valoriza as atividades da CT e a forma como desenvolve o próprio programa de tratamento; o nível de compromisso com a proposta e de confiança que exibe; o grau de liderança e de facilitação do processo de tratamento de outros dependentes; e a espontaneidade do relacionamento que estabelece com a equipe clínica. A determinação do tempo necessário para que o indivíduo alcance os resultados esperados tem sido um grande desafio, diante da gravidade do comprometimento biopsicossocial

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apresentado por aqueles que têm buscado ajuda. O modelo e a metodologia das CTs propõem o respeito à diversidade cultural, política, de sexo, social, racial e religiosa como uma de suas principais diretrizes. A aceitação voluntária do tratamento pelos homens e mulheres que buscam por ajuda está prevista nas normativas jurídicas que regem seu funcionamento. O cuidado integral do sujeito e não dos sintomas da intoxicação ou da desintoxicação isoladamente e a possibilidade de participação ativa do ajudado na terapêutica, como “sujeito” de suas escolhas, ativo no processo de entendimento dos diferentes fatores que influenciam seu modo de vida e no enfrentamento de suas dificuldades e vulnerabilidades são igualmente diretrizes importantes do método. Discorda-se de que as CTs sejam “ilhas isoladas do resto do mundo, nas quais os conflitos da sociedade são esquecidos” 15. As dificuldades e problemas de diferentes naturezas enfrentados nas CTs não diferem dos que acontecem em outros contextos e práticas sociais. Os processos propostos para o trato dessas situações também não são diferentes daqueles desenvolvidos pela humanidade para lidar de maneira digna com as adversidades – diálogo, cooperação mútua, compromisso com o bem comum, respeito e acolhimento das dificuldades e diferenças, entre outros. Os conflitos sociais vividos na comunidade e seus entrelaçamentos intersubjetivos são o conteúdo da terapêutica. Todas as contradições e ambiguidades da vida social e da condição humana fazem parte dessa realidade e muitas vezes são a matéria-prima para a construção de outras possibilidades de vida. Justamente por se tratar de um espaço temporário de tratamento, a CT tem como um de seus objetivos levar o sujeito a realizar uma reavaliação do seu modo de vida ao ser atuante na construção de uma experiência de fraternidade e solidariedade, sustentada numa perspectiva ética de cooperação mútua para a superação dos dilemas inerentes a qualquer vida comunitária, dentro ou fora da comunidade terapêutica. Apesar da riqueza das experiências resultantes da utilização da comunidade como instrumento terapêutico, sintetizadas no Quadro 2, a CT não considera que sua metodologia atenda à necessidade de todos os casos de dependência química. Diante de uma realidade complexa como a que atualmente se enfrenta e considerando todo o contexto histórico, cultural, econômico, político, além das particularidades de cada um dos envolvidos com a dependência química e suas consequências, seria ingênuo propor uma única saída. Isso exige que o projeto terapêutico e o lugar da CT na rede assistencial sejam reavaliados continuamente.

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Quadro 2 – Síntese das principais particularidades da abordagem da comunidade terapêutica7,16 • Tem como enfoque o cuidado de diferentes aspectos da vida, afetados pela dependência química: saúde em geral, psicológicos, interpessoais, sociais e existenciais. • A terapêutica se dá em um ambiente organizado para a realização de atividades coletivas, para a comunicação constante entre todos, gerando um sentimento de pertencimento a uma rede de apoio comunitário. Estimula-se a compreensão do processo de adoecimento e suas consequências para si mesmo e para outras pessoas e a responsabilização pelo autocuidado, pelo desenvolvimento emocional e pela cooperação mútua entre os membros da comunidade no enfrentamento das dificuldades. • O programa de tratamento é organizado em fases que consideram o processo de desenvolvimento das mudanças pretendidas ao longo de um tempo planejado para a intervenção. • A vida comunitária é organizada em funções rotineiras a serem desempenhadas por cada membro, de acordo com o nível de comprometimento psicossocial e experiência de vida de cada dependente e com o entendimento que ele demonstra do programa de tratamento. Essa compreensão depende do tempo de envolvimento do paciente com o tratamento. • Os funcionários e profissionais são membros da CT e são facilitadores da aliança do dependente com a comunidade. • Os dependentes participam ativamente da terapêutica, cuidando e ocupando-se de si mesmo e da vida em coletividade. • O planejamento, o encaminhamento e o acompanhamento da adesão do paciente a uma rede de assistência, de acordo com suas necessidades biopsicossociais, que favoreçam sua inclusão e integração familiar, educacional, profissional e social.

A comunidade terapêutica da Terra da Sobriedade: relato de uma experiência O tratamento de dependentes químicos e de seus familiares no modelo de CT é uma das ações desenvolvidas pela Terra da Sobriedade. Como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), essa instituição foi constituída em 31 de agosto de 2002. Além do tratamento, oferece atividades de cunho preventivo ao uso de álcool e outras drogas e de integração social: realiza semanalmente reuniões comunitárias de mútua ajuda, para usuários, familiares, crianças e adolescentes; oferece formação continuada para seus voluntários e multiplicadores; realiza palestras, cursos e eventos comunitários; desenvolve seminários clínicos e administrativos, além de construir parcerias comunitárias para o desenvolvimento de políticas públicas de atenção à causa. Todas as ações acontecem nas mesmas instalações físicas onde se dão as atividades de tratamento e pretendem favorecer a consciência dos significados que o uso e abuso de álcool e outras drogas possuem na história de cada um dos envolvidos e na nossa cultura contemporânea. As ações da instituição são mantidas por doações e parcerias com pessoas físicas, empresas e com os governos municipal, estadual e federal. Especificamente no que se refere ao tratamento, a Comunidade Terapêutica da Terra da Sobriedade atende dependentes químicos de ambos os gêneros, a partir dos 18 anos de idade. É um serviço aberto e urbano – localizado na região norte de Belo Horizonte que oferece hospedagem (assistência 24 horas) masculina e permanência-dia (um ou dois turnos) para ambos os sexos, 13 e 15 vagas, respectivamente. Sua equipe clínica é multidisciplinar, formada por assistente social, psicóloga, terapeutas ocupacionais, enfermeira,

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monitores, professor de ciclismo e músico. Os casos que precisam de acompanhamento médico, odontológico ou de outra especialidade não oferecida na instituição são encaminhados para a rede pública de saúde ou para outros serviços, conforme a possibilidade do paciente e de sua família. O projeto terapêutico é individualizado e prevê o aumento gradativo das responsabilidades de cada paciente, partindo daquelas relativas aos cuidados com a vida na CT e seguindo em direção ao desenvolvimento de atividades que dizem respeito ao ser cidadão. As atividades do cronograma semanal proposto no programa de tratamento incluem: espiritualidade; atividade física e esportiva; terapia ocupacional grupal e individual; participação diária, efetiva e rotativa na rotina de manutenção da CT; oficina de cinema comentado e de música; educação para saúde; atendimento social; atividades pedagógicas e didático-científicas; grupos de mútua ajuda (Alcoólicos Anônimos, Narcóticos Anônimos e Amor-Exigente); assembleia da CT e orientações familiares. O Quadro 3 descreve a dinâmica de tratamento proposta quanto aos seus objetivos e quanto à metodologia utilizada. Quadro 3: Dinâmica de tratamento da Comunidade Terapêutica da Terra da Sobriedade10 Objetivos

Metodologia

Busca de conscientização da dependência química

Intervenção, educação para saúde, grupos de mútua ajuda e consultas ambulatoriais.

Ambientação do recém-chegado à comunidade terapêutica

Acolhimento, apresentação do espaço físico e das acomodações da Terra da Sobriedade, dos líderes e colaboradores.

Desintoxicação

Avaliação clínica. Alimentação balanceada, exercício físico sistemático, organização dos hábitos e retirada do meio facilitador ou propiciador do uso de SPA.

Ressensibilização e integração

A partir da convivência, da participação diária e paulatina nas atividades de vida pessoais e comunitárias, ou seja, do cronograma de atividades da Comunidade da Terra da Sobriedade.

Conscientização das perdas vividas no processo de dependência; conscientização do tempo necessário para refazer processos de maturação que foram atrofiados pelo uso da droga; reflexão dos conteúdos da personalidade, principalmente aqueles relacionados à finitude da vida, à dependência ou apego às coisas e às pessoas, à compreensão da dualidade do ser humano e à necessidade de transcendência

Terapêutica dinâmica. Privilegia-se a Terapia Ocupacional como modo terapêutico de eleição para o tratamento dos adictos, por atuar na elaboração dos conteúdos simbólicos, expressos concretamente, pela manipulação de materiais - naturais e artificiais. A partir da ação, busca-se, com o paciente, ampliar incessantemente a compreensão da realidade, no sentido de apreendê-la na sua totalidade como ideia e processo, fundamentada no movimento originário do homem em face do mundo: criador e criado.

Descoberta de intenções, habilidades e vocações

A partir das experiências de vida diária, atividades de manutenção da comunidade, oficinas terapêuticas, produtivas e de orientação vocacional.

Integração e inclusão social

Manutenção do vínculo com a família de origem e estruturação de novos. Utilização de programas culturais, religiosos, esportivos, etc., para a descoberta de novas formas de divertimento, trabalho, estudo e entretenimentos. Adesão em um grupo de mútua ajuda, nos moldes de Alcoólicos Anônimos e Narcóticos Anônimos, Amor-Exigente ou similares. Engajamento numa atividade de produção de bens, com remuneração, de acordo com o interesse do paciente.

Quanto ao tratamento, seja no regime de hospedagem, permanência-dia ou ambulatorial, desde a admissão o paciente é convidado a planejar e a realizar um projeto pessoal, que deverá ser definido por ele a partir do seu desejo. Para a elaboração desse projeto, o

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paciente é orientado, inicialmente, a propor a realização de uma atividade na CT. Gradativamente, ele é incentivado a ampliar sua proposta para fora do serviço, ou seja, para que seu projeto inclua atividades que serão realizadas em outros contextos sociais (escolas, empresas, igrejas, praças, parques, na casa de familiares e amigos, etc.). As atividades a serem realizadas na CT, as funções e as responsabilidades de cada um são escolhidas por cada paciente a partir do seu interesse e de suas possibilidades físicas e mentais. As necessidades da CT e os projetos pessoais são discutidos nas reuniões diárias e nas assembleias semanais10. Semanalmente, as atividades de manutenção da CT são escolhidas pelos pacientes em reuniões coordenadas pela equipe. A organização e a hierarquia das funções são definidas também pelos pacientes, não tendo qualquer relação direta ou obrigatória com o tempo de tratamento. Tudo isso se dá a partir da descoberta que o paciente faz de seus interesses e habilidades, pois quando está na CT assume a responsabilidade pela manutenção da vida em comunidade, conforme discutido anteriormente10. Ainda, nas assembleias semanais é que todos os membros da comunidade - pacientes, equipe clínica e administrativa e demais funcionários – discutem os temas relevantes ao funcionamento da vida comunitária, sejam eles relativos à convivência entre os indivíduos, ao planejamento das atividades externas de cada paciente, ao funcionamento administrativo do serviço que implique a participação coletiva ou à filosofia do modelo de tratamento. Todos os problemas da comunidade, de qualquer natureza, são tratados no coletivo. Nas assembleias, os pacientes recém-admitidos apresentam-se e dizem qual o objetivo de sua estadia na CT, assumindo formalmente um compromisso com os demais. As recaídas no uso de drogas ou o não cumprimento de qualquer outra regra básica - no que se refere aos atos de violência, por exemplo, assim como as evasões, os desligamentos e a alta, também são avaliados, discutidos e/ou planejados nas assembleias10. A proposta é que todos os membros da comunidade se sintam participantes ativos desse processo, contribuintes e beneficiários do seu progresso. Dessa forma, mais do que um usuário do serviço, o sujeito é protagonista nas ações terapêuticas. O tempo de permanência voluntária na CT é flexível, pretendendo-se sempre o menor prazo possível, determinado segundo cada caso, variando de acordo com o nível de adesão e manutenção no tratamento, considerando o comprometimento biológico, psíquico, social e legal e o suporte familiar à reabilitação e à reintegração social. O acompanhamento pós-alta se dá por período mínimo de um ano nos grupos de mútua-ajuda, no ambulatório e nos eventos festivos. Considerações Finais O modelo de comunidade terapêutica tem sido considerado, por seus críticos, contrário à política pública de álcool e outras drogas brasileiras, fundamentada na redução de danos. Apesar da participação das CTs na RAPS proposta pelo Ministério da Saúde, as diretrizes estabelecem que essa parceria se dá entre o poder público e os serviços não governamentais, reforçando essa pretensa distância entre a política pública de álcool e outras drogas do país e o modelo proposto pelas CTs, mantendo-se, dessa forma, o modelo comunitário de tratamento numa posição marginal. Além disso, a definição da RAPS não reconhece o caráter terapêutico das CTs nem a capacidade do modelo comunitário de promover mudanças psicológicas e sociais, restringindo seu enfoque ao abrigamento protegido, o que

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parece um equívoco. É preciso disposição para um diálogo franco que, por considerar sua complexidade, amplie e aprofunde o debate sobre a temática do abuso de álcool e outras drogas, suas consequências e suas múltiplas abordagens, se a pretensão é avançar na organização de serviços comprometidos com o cuidado integral dessa população. Um dos grandes desafios para as CTs é capacitar sua equipe de ajudadores para atuarem em um modelo comunitário de tratamento. Muitos dos profissionais “tradicionais” não foram formados para usarem tecnicamente a convivência com os sujeitos nos mais diversos contextos da CT de forma terapêutica. O modelo comunitário de tratamento lhes propõe que ultrapassem a pretensa proteção do setting dos consultórios e que desenvolvam atividades no refeitório, na cozinha, na sala de estar, na lavanderia, no jardim, na horta, no cinema, no clube, na escola, na empresa, na igreja e nas praças, ensinando os sujeitos a usarem a “comunidade como método” de mudança do seu modo de vida. Além disso, é preciso que os profissionais compreendam que, apesar de intensa e rica em experiências significativas, a permanência do sujeito na CT é provisória e suas experiências nesse âmbito são artificiais, não como se “artificial” fosse sinônimo de uma experiência “não verdadeira”, mas no sentido de serem tecnicamente preparadas para serem terapêuticas. Dessa forma, a experiência de estudo dentro da CT, apesar de válida e muito útil ao sujeito, não equivale à experiência natural de estudo na Faculdade, por exemplo. A similitude do contexto da comunidade com o espaço doméstico não substitui a residência na própria casa e a convivência com os próprios familiares. A experiência da vida em uma CT, além de provisória, não tem a pretensão nem o objetivo de substituir ou responder às demandas do curso natural da vida social cotidiana. O modelo de CT está centrado na relação sujeito-comunidade. Diferentemente do que era feito nos manicômios, a proposta não é de “ambientoterapia”, ou seja, de uma mudança externa no ambiente que provoque mudanças internas nos sujeitos. A terapêutica não está resumida ao cumprimento de determinados procedimentos de recuperação, atendendo ao programa de tratamento e às expectativas de um regimento interno do serviço, por um determinado período de tempo, desconsiderando a necessidade e a demanda dos sujeitos. Essa lógica da produção capitalista, que organiza o tempo do trabalho na nossa sociedade e determina o cumprimento de determinadas prescrições, não pode ser a referência para o uso da experiência de uma vida comunitária que se pretende terapêutica. A lógica do tempo regida pelo capital não permite o respeito à dinamicidade e à variação do processo de constituição da vida comunitária. Afinal, quanto tempo e quais experiências um sujeito precisa ter para avaliar, ressignificar e modificar o seu modo de vida? O que o modelo comunitário de tratamento pretende é que esse processo de longo prazo tenha início na CT e não que ele seja o resultado das intervenções propostas, contrariando a expectativa social de que o tempo dedicado ao tratamento é o responsável por “recuperar o sujeito de sua dependência química”, para que ele, enfim, retorne à sociedade. A Terra da Sobriedade tem adotado um marco referencial diverso e mesmo oposto às diferentes modalidades de CTs ilegalmente disseminadas no país. Enfrenta grandes desafios, entre os quais resistir às tentativas de sucateamento de sua proposta de tratamento, pelo fato de as fontes financiadoras terem como referência outras abordagens mais generalizantes. Os resultados conseguidos ao longo de sua história demonstram que a perspectiva metodológica adotada pela Terra no acolhimento e tratamento da dependência química pode ser considerada importante instrumento de ajuda aos sujeitos dependentes e a seus

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familiares. Sua proposta pretende ajudá-los a romper com o ciclo de vulnerabilizações que o abuso de álcool e demais substâncias psicoativas pode mergulhá-los, levando-os a construir posições mais autônomas na vida cotidiana. Além disso, a Terra da Sobriedade preserva a existência de uma proposta de tratamento verdadeiramente comunitária que, ao que parece, está se perdendo.

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Terapia comunitária integrativa: saúde comunitária na prevenção e atenção ao uso e abuso de drogas Adalberto de Paula Barreto Doralice Oliveira Gomes

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Introdução A temática do uso de drogas e as questões implicadas nesse assunto é alvo da atenção de vários atores sociais, constituindo-se em um desafio para governos e sociedades, pois diz respeito a um universo múltiplo, no qual coabitam posicionamentos diversos. Há registro do uso de drogas nas mais diferentes culturas ao longo da história. Trata-se de um tema constante, que acompanha a evolução da própria humanidade, estando seu uso presente há milhares de anos1. O uso de drogas possui diferentes significados e finalidades ao longo da história, desde a cura de doenças, o alcance da transcendência e do êxtase religioso, a associação a delitos, o confronto com regras e limitações, entre muitos outros2. A classificação em lícitas e ilícitas não possibilita uma relação direta com uso devido ou prejudicial de uma substância, em que as drogas lícitas poderiam ser compreendidas como necessariamente seguras3. Pesquisas nacionais e internacionais revelam o uso abusivo do álcool como problema de saúde pública, com repercussões na vida pessoal, familiar e social4. Trata-se, portanto, de uma droga lícita e de fácil acesso. Há usos de drogas que não ocasionam problemas, sendo, em alguns casos, necessário o consumo, como é o caso dos medicamentos psicotrópicos prescritos. Todavia, qualquer utilização de drogas implica risco, independentemente de serem lícitas ou ilícitas5. Diante da multiplicidade de questões que se apresentam sobre o uso de drogas, o desafio que surge é: como lidar com o uso das drogas considerando as questões pessoais, familiares, culturais, econômicas, legais e sociais que estão presentes nesse fenômeno e que são inter-relacionadas? Abordar o uso de drogas implica apreciar uma questão polêmica. No presente capítulo parte-se da premissa de que é impossível conceber uma sociedade sem uso de qualquer droga. Fundamental analisar: qual droga? Em que contexto social, político, econômico, cultural esse uso está sendo feito? Por quem? Com qual finalidade? Refletir sobre o uso de drogas requer uma visão abrangente que contemple da melhor forma possível a complexidade do fenômeno. Nesse sentido, Claude Olievenstein propôs a tríade sujeito-substância-ambiente6. Essa tríade numa leitura encontrada em Albertani (2006) pode ser mais bem visualizada como vértices de um triângulo em que em um deles está a pessoa, em outro o contexto e noutro a droga. Os vértices do triângulo contribuem para reflexões numa perspectiva ampla, por meio da qual se busca inter-relacionar os diferentes aspectos envolvidos. Há uma inter-relação de fatores para que ocorra o uso de determinada droga, num sistema em que um fator influencia e é influenciado pelos outros6. Existe uma cultura alarmista presente em mídias diversas que podem influenciar o olhar da sociedade ao tratar do uso das substâncias numa perspectiva distorcida e tendenciosa1. Essa perspectiva está presente em expressões como: Drogas matam! Diga não às drogas! Essas expressões estão equivocadas? Depende. Fundamental responder às seguintes questões. Qual droga? Quem faz uso? Em qual contexto? Com qual finalidade?5. O consumo pode ocorrer num âmbito controlado e limitado, a exemplo de celebrações e uso medicamentoso. No entanto, problemas os mais diversos podem surgir nos casos de consumo prolongado ou em quantidades excessiva, mesmo numa única ocasião. Esses problemas podem impactar tanto no cenário social, como no da saúde física ou mental, a exemplo de episódios de violências, acidentes de trânsito, intoxicações, prática do sexo sem uso de preservativo, entre outros7. Há diferentes tipos de uso, seja pela droga em si, frequência, quantidade, contextos, motivações. Os usos podem ser classificados em: uso experimental (contato inicial com

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a substância, com poucos episódios de uso, havendo interrupção no consumo); uso recreativo (uso ocasional, presente em circunstâncias sociais, tendo os riscos ampliados caso haja continuidade e o aumento de intensidade); uso médico (o uso da droga obedece à prescrição e acompanhamento médico, sendo o uso indevido se ocorrer sem prescrição e acompanhamento médico); uso ritual (consumo em cerimônias religiosas ou sociais, com significado contextual); uso indevido/abusivo (apresenta consequências prejudiciais ao usuário de ordem orgânica, psicológica ou social); dependência (o usuário perde o controle do uso, há necessidade do aumento da quantidade da droga consumida, forte desejo de consumo)8. O uso de drogas está envolto num universo de preconceitos, ditos, não ditos, que impactam sobremaneira a visão dos profissionais sobre o fenômeno e orientará suas práticas e, principalmente, sua relação com o usuário de determinada substância. Faz-se primordial que o profissional conheça suas próprias posturas, revisite-as, questione-as para, a partir daí, estabelecer o que é essencial quando o foco é a busca da melhoria da qualidade de vida e da relação das pessoas consigo e com os outros. Nessa etapa introdutória do capítulo objetivou-se suscitar uma reflexão sobre o uso de drogas, pois está presente em diversas culturas e classes sociais, seja em panoramas vulneráveis e de risco social ou em comunidades com melhores condições de vida. Pode-se vislumbrar um círculo vicioso no qual dificuldades relacionadas ao acesso ao mercado de trabalho, condições precárias nas áreas de saúde, educação, habitação e segurança pública e entraves no acesso a políticas públicas sociais favorecem o aumento do consumo de drogas. Ao passo que o aumento no consumo pode ocasionar problemas na vida das pessoas, famílias, comunidades e países4. Drogas: prevenção, tratamento e reinserção social Há diversos tipos de drogas, uso, motivações, contextos a serem considerados frente a esta questão. Diante disso, as intervenções podem ocorrer no âmbito da prevenção, tratamento e reinserção social. Atuar na prevenção ao uso de drogas implica fazer algo para evitar, impedir, retardar, reduzir ou minimizar o uso, abuso ou a dependência e os prejuízos relacionados. Nesse sentido, a literatura especializada orienta para intervenções em níveis3,9. Prevenção universal: dirige-se à população em geral, a todos, independentemente de serem usuários ou não de drogas. Prevenção seletiva: nos grupos em que há fatores de risco para o abuso de alguma droga ações de prevenção seletiva são utilizadas, pois o planejamento será focado no grupo específico. Por exemplo, ações de prevenção com filhos de alcoolistas. Prevenção indicada: direcionada para usuários que já sinalizem abuso ou problemas de comportamento relacionado a esse consumo. O tratamento é indicado para pessoas com uso problemático de drogas. Há diversas modalidades de tratamento, desde abordagens médicas, psicológicas, grupos de ajuda mútua, atendimentos ambulatoriais, internações e intervenções comunitárias. As pessoas se beneficiam diferentemente das modalidades de tratamento, ou seja, as abordagens possuem limitações e requerem, em geral, uma combinação entre elas10. A reinserção social é considerada um componente do tratamento e visa à superação do modo de vida instalado pelo uso problemático. Trata-se de disponibilizar apoio tanto

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ao usuário como às pessoas da sua rede de convívio, pois estas exercem importante papel nesse percurso de superação11. Possibilidade de atuação: visão da saúde comunitária Neste capítulo propõe-se a pensar a questão do uso de drogas a partir de uma visão da saúde comunitária, compreendida como atividades realizadas na e com a comunidade em prol da saúde das pessoas a partir da mobilização de diferentes segmentos de uma comunidade. De forma coletiva, as pessoas refletem sobre suas vidas, expressam necessidades e conhecimentos desenvolvidos no lidar com as demandas de seu cotidiano. A abordagem de saúde comunitária desafia os profissionais a realizarem, também, trabalhos em espaços não institucionais, com um olhar para as competências e potencialidades das comunidades12. O trabalho comunitário contribui para a criação e o fortalecimento de redes sociais, pois possibilita a aproximação entre as pessoas da comunidade por meio das trocas de experiências, de aprendizados e da construção de soluções coletivas. Nessa abordagem, o foco está na promoção da saúde, extrapolando a questão específica das drogas12. Terapia comunitária integrativa: saúde e trabalho social comunitários A terapia comunitária integrativa (TCI) é uma abordagem de atenção à saúde comunitária, criada pelo Prof. Dr. Adalberto Barreto da Universidade Federal do Ceará em 1987, no Pirambu, bairro de periferia do município de Fortaleza-CE. Surgiu em um contexto pontual e ganhou capilaridade por meio da constituição de uma rede integrada de 35 polos de formação em TCI em todas as regiões do país, com aproximadamente 33.000 terapeutas comunitários capacitados no Brasil13. A TCI incentiva, por meio de encontros comunitários, a partilha de experiências de vida, possibilitando que as dificuldades vivenciadas possam ser compartilhadas, bem como as estratégias de superação que foram desenvolvidas. Considera que qualquer pessoa, independentemente da sua condição social, econômica e cultural, possui recursos e saberes úteis a si e aos outros14. A TCI é um recurso que promove a formação de redes sociais solidárias de apoio para lidar com o sofrimento e mobilizar os recursos e as competências das pessoas nos níveis individual, familiar e comunitário15. A TCI favorece o estabelecimento de uma relação de cuidado e de acolhimento entre as pessoas, na medida em que elas podem se relacionar num contexto de ajuda mútua, num espaço que assegura a fala e a escuta respeitosa. A TCI não é uma terapia individual em um espaço coletivo, e sim um espaço de acolhimento comunitário do sofrimento apresentado por um indivíduo e escolhido pelo grupo16. A essência dessa abordagem terapêutica está presente na etimologia das palavras terapia, comunidade e integrativa. Terapia, do grego therapeia, significa acolher, ser caloroso, servir. Nesse sentido, a TCI é um espaço de acolhimento, de cuidado e atenção para com o outro; e neste caso quem é terapêutico é a comunidade. É ela que acolhe de maneira calorosa. Comunidade tem como um de seus sentidos o que há de comum entre as pessoas, suas questões afins: desemprego, abuso de drogas, exclusão...; e integrativa refere-se à integração de saberes e culturas que ampliem e reforcem as redes solidárias de promoção da saúde e da cidadania14. Os objetivos da terapia comunitária integrativa são:

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• reforçar a autoestima individual e coletiva; • valorizar o papel da família e da rede de relações que ela estabelece com seu meio; • suscitar, em cada pessoa, família ou grupo social seu sentimento de união e identificação com seus valores culturais; • promover e valorizar as instituições e práticas culturais tradicionais que são detentoras do saber fazer e guardiãs da identidade cultural; • estimular a participação como requisito fundamental para dinamizar as relações sociais, promovendo a conscientização e estimulando o grupo, por meio do diálogo e da reflexão, a tomar iniciativas e ser agente de sua transformação; • contribuir com o indivíduo, família e rede de relações para que possam descobrir seus valores, suas potencialidades, favorecendo sua autonomia; • favorecer o desenvolvimento comunitário, prevenindo e combatendo as situações de exclusão dos indivíduos e das famílias por meio da restauração e fortalecimento dos vínculos sociais e de encaminhamentos socioeconômico-educacionais; • tornar possível a comunicação entre as diferentes formas de “saber popular” e “saber científico”; • intervir nos determinantes sociais da saúde, em especial na redução do estresse e ampliação do apoio social; • criar espaços de partilha dos sofrimentos, digerindo uma ansiedade paralisante que traz riscos para a saúde dessas populações; e • promover a saúde em espaços coletivos. Bases teóricas da TCI A TCI possui cinco bases teóricas que a alicerçam: pensamento sistêmico, teoria da comunicação, antropologia cultural, resiliência e pedagogia de Paulo Freire14. Na TCI, o pensamento sistêmico possibilita compreender o indivíduo e a comunidade numa rede de relações e, com isso, a ampliação do foco ao incluir o contexto e sua dinamicidade. Conscientes da rede em que estamos inseridos, compreendendo a relação de interdependência que existe entre as várias partes desse todo, fica mais fácil compreender os mecanismos de autorregulação, proteção e crescimento, dos quais somos todos corresponsáveis14. A TCI tem na teoria da comunicação humana outra base teórica, por meio da qual se compreende que os comportamentos, individuais e/ou coletivos, os atos verbais e não verbais têm valor de comunicação com múltiplas possibilidades de significados e sentidos17. Pela comunicação, a troca de experiências e a formação de vínculos podem ocorrer e, com isso, favorecer a criação e o fortalecimento das redes sociais de apoio. Na TCI, a comunicação é um dos elementos essenciais, pois a base do encontro é a comunicação estabelecida entre as pessoas, o que oportuniza àqueles que expuseram suas vivências de sofrimento e/ou de superação vislumbrar novas leituras e posturas diante de sua experiência18. A valorização da cultura configura-se como um dos elementos estruturantes da TCI e, para tanto, baseia-se na ciência da antropologia cultural. Para essa ciência, as pessoas são resultantes de suas crenças, costumes, mitos, valores, rituais, religião, língua e do que fazem a partir de sua história de vida. Há um referencial histórico e sociocultural na construção da identidade individual e coletiva. A partir da cultura desenvolvem-se habilidades e competências para pensar, avaliar, discernir valores e fazer opções no cotidiano. Com base

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na identidade individual e coletiva, as pessoas podem se afirmar, se aceitar, assumir uma identidade como cidadãos, romper com relações de dominação e exclusão social pautadas em culturas que desvalorizam outras. A diversidade cultural é rica de fonte de saberes, sendo um recurso a ser reconhecido, valorizado e mobilizado na busca de resolução de problemas coerentes com as necessidades e realidades culturais das comunidades19. A resiliência é outro importante conceito na compreensão teórica da TCI. Na Física, esse conceito é utilizado para descrever materiais que se dilatam e contraem a depender das condições ambientais, em especial da temperatura. Ao transpor esse conceito para as ciências humanas, a resiliência é associada à capacidade de superação de adversidades, relacionada ao aprendizado de repertórios no contexto individual ou coletivo para lidar com situações adversas20. A TCI tem, igualmente, como referência a pedagogia de Paulo Freire, na medida em que reconhece as contribuições da experiência de vida para o processo educativo. A TCI e a pedagogia de Paulo Freire partilham de princípios comuns, como a autonomia das pessoas, a horizontalidade do saber, a educação como prática libertadora e a incompletude do ser humano. Como autônomas, as pessoas são autoras de suas histórias e detêm a capacidade de reconduzi-las, ou seja, de escrevê-las e reescrevê-las, inclusive numa perspectiva emancipatória. A horizontalidade do saber reconhece, valida e valoriza os saberes que cada um possui e desenvolve ao longo de sua vida21. A qualidade libertadora da prática educativa refere-se ao apropriar-se da própria experiência de vida, numa perspectiva de autoconhecimento e postura proativa, com escolhas e posicionamentos e não como vítimas das circunstâncias. A TCI e o método de abordagem A prática da TCI é realizada num encontro em que as pessoas se acomodam numa configuração de roda. Trata-se de um encontro coordenado por um terapeuta comunitário e um coterapeuta, pessoas habilitadas por uma formação específica em TCI para desempenhar essa função, que ficarão responsáveis por conduzir ou facilitar o encontro22. Uma roda de TCI tem característica de um ritual e possui um ciclo que inicia e termina em si, em cada encontro. A TCI possui uma metodologia bem-definida, sendo conduzida em etapas e seguindo regras de convivência que possibilitam que o encontro ocorra de forma respeitosa e com seu potencial promotor de saúde e fomentador de redes sociais solidárias otimizado. As etapas de uma roda de TCI são: acolhimento, escolha do tema, contextualização, problematização, ritual de conotação positiva e avaliação13,14,23. No acolhimento, os terapeutas buscam contribuir para que todos os participantes estejam bem-acomodados, sentados em círculo, de modo que seja possível uma escuta respeitosa e mais entrosamento do grupo. Nessa etapa, o coterapeuta explica o que é a TCI, apresenta as regras, comemoram-se os aniversários e as datas importantes para os participantes13,14,23. As regras na TCI são estabelecidas para que haja um ambiente de cuidado mútuo. São quatro as regras básicas: uma pessoa fala por vez e as demais devem escutar com atenção; deve-se falar na primeira pessoa do singular (eu) e a partir da própria experiência de vida; não são permitidos aconselhamentos e discursos, sermões ou julgamentos; e podem ser propostos recursos culturais durante os encontros, tais como músicas, poesias, ditados populares relacionados ao tema abordado13,14,23. Após o acolhimento, tem-se o momento da escolha do tema, quando os participantes

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apresentam algo que esteja gerando sofrimento ou outro assunto que queiram compartilhar, e o tema é democraticamente escolhido. Em seguida, o proponente do tema expõe sua vivência com mais detalhamento e o grupo pode fazer-lhe perguntas que contribuam para ampliar sua compreensão. Essa etapa é chamada de contextualização13,14,23. A contextualização finaliza no momento em que o terapeuta agradece ao protagonista por apresentar seu sofrimento e o solicita para ficar em silêncio escutando o que será partilhado nessa próxima etapa. Nesse momento o terapeuta apresenta ao grupo uma questão gerada com o aprofundamento do tema escolhido. A pergunta básica é “quem já viveu uma situação parecida e o que fez para superá-la?”. Nessa etapa da problematização, os participantes falam de suas vivências relacionadas ao tema do encontro13,14,23. A etapa seguinte constitui-se do momento em que os participantes compartilham os aprendizados pela participação na roda, a partir da escuta das histórias de vida. É a etapa da conotação positiva. Após a conotação positiva, o grupo se despede e os terapeutas fazem a avaliação da terapia13,14,23. Pelo exposto, viu-se que a realização das etapas da TCI possui uma simplicidade inerente à proposta inclusiva da mesma. Todavia, cabe ressaltar que a descrição da TCI não abarca o quão impactante, acolhedora e terapêutica é a abordagem24. Ao final do capítulo apresenta-se uma roda de terapia comunitária integrativa a fim de facilitar a compreensão das etapas apresentadas. A simplicidade, um dos méritos da TCI, não pode ser compreendida como simplista. A TCI possui arcabouço teórico e requer conhecimentos para a prática e manejo de grupos. O terapeuta irá facilitar o encontro e cabe a ele estruturar a condução do encontro, pressupondo que o terapeuta tenha sensibilidade para a escuta e atenção para com todos os participantes. A TCI não é um modelo para uso indiscriminado, sendo necessárias a capacitação e a supervisão para a sua execução16. A formação de terapeutas comunitários para aplicar a TCI As formações em TCI no Brasil são realizadas pelos 35 polos de formação em terapia comunitária integrativa existentes no país. Os polos de formação são pessoas jurídicas, organizações não governamentais (ONGs), organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP), empresas privadas, órgãos públicos federais, estaduais ou municipais. Possuem corpo docente especializado para o desenvolvimento de capacitações e intervisões em terapia comunitária integrativa e estão vinculados à Associação Brasileira de Terapia Comunitária25. Para fazer a formação em TCI, é necessário estar de acordo com um perfil. Os critérios de seleção para a formação em TCI são18: • Idade acima de 21 anos; • ser escolhido dentro de sua área de abrangência territorial ou institucional; • ter conhecimento sobre a rede de apoio de sua comunidade; • ter interesse e disposição para trabalho em equipe; • ser alguém engajado em trabalhos comunitários; • estar consciente de que o trabalho realizado não traz alguma remuneração financeira; • ter disponibilidade mental/emocional para participar de práticas vivenciais durante o curso; • disponibilidade para participar das aulas do curso, conforme o formato de desenvolvimento da programação; e

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• ter disponibilidade para realizar uma terapia comunitária integrativa semanal. O curso de formação em terapia comunitária integrativa é organizado em turmas, as quais podem ser particulares, ou seja, custeadas diretamente pelos próprios alunos ou financiadas pelo poder público ou pela iniciativa privada13. O curso em TCI possui carga horária mínima de 240 horas/aula, assim distribuídas13: 80h/a de intervisão ao longo da formação; 100h/a teórico-vivenciais (50h/a para teoria, 50h/a para vivências terapêuticas); e 60h/a de estágio prático, correspondendo à condução de 30 rodas de TCI (2h/a para a roda e apreciação). As intervisões são realizadas com um grupo de cursistas e uma dupla de terapeutas mais experientes. São momentos de encontro entre formadores em TCI e os cursistas para esclarecimento de dúvidas e trocas de experiências entre os terapeutas em formação. A terminologia intervisão assinala uma diferenciação da supervisão tradicional, haja vista que constitui uma busca de horizontalidade pela escuta e respeito ao saber do outro. Nos encontros, busca-se criar uma rede de ajuda mútua entre os cursistas, aprofundar conteúdos teóricos de necessidade do grupo e ser um espaço de cuidar de quem cuida13. Os alunos que cumprem com todas as exigências recebem certificação de curso de extensão universitária pela Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal do Ceará ou pelo polo formador13. Terapeuta comunitário O principal aspecto do perfil do terapeuta comunitário é ser alguém envolvido e comprometido com a comunidade, não sendo requerida educação formal, o que permite, inclusive, que pessoas com baixa escolaridade façam a formação14,18. A função do terapeuta comunitário não é resolver problemas, e sim favorecer o diálogo respeitoso e a criação de uma rede social de apoio pela valorização do saber produzido pela experiência de vida. Cabe ao terapeuta estimular questionamentos, discussões para que o grupo seja um agente terapêutico14. Os valores da TCI A TCI, embora tenha esboço definido com eixos teóricos, é muito mais uma postura do que uma técnica a ser aplicada. Na formação em TCI, prioriza-se o trabalho exaustivo das histórias de vida de cada um, para que os cursistas possam incorporar os valores indispensáveis para quem quer ser terapeuta comunitário. A TCI é um espaço de desenvolvimento emocional para o próprio terapeuta. • Ser acolhedor: o terapeuta comunitário é um agente de acolhimento na comunidade e isso requer alguém que saiba se acolher, aceitar-se como é, estar aberto às diferenças, aos valores tradicionais e modernos e estar atento à linguagem corporal e às emoções de cada um. Cabe ao terapeuta ser uma presença acolhedora, autêntica, simples e disponível. • Ser simples: resgatar a simplicidade de linguagem e de postura e se livrar do lugar do especialista que sabe, para aceitar aprender com o outro. A simplicidade permite abandonar a postura de poder sobre os outros para poder ser com os outros, permite resgatar o essencial. É preciso o reencontro com a criança interior que há em cada um, esse mestre interno, resgatar a sabedoria tradicional dos antepassados. • Valorizar as emoções: as emoções são o ponto de partida para a construção das iden-

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tificações que vão tecer as redes de apoio social. Trata-se de identificar, nomear a sensação presente no corpo. Uma vez que essas sensações são identificadas, elas podem ser pensadas, gerando consciência e possibilitando as mudanças. É pelas emoções que as pessoas se unem, descobrem que são iguais e vivenciam sua humanidade independentemente das diferenças. • Ser ousado: na TCI o animador pode falar também de seus sofrimentos. Para chegar lá deve se permitir falar em público e ser ele mesmo, sabendo que a TCI é um espaço de acolhimento e não julgamento. A responsabilidade do animador/facilitador é garantir um ambiente acolhedor que deixe as pessoas à vontade para se permitirem desvelar o que estava silenciado. • Gerar dúvidas nas certezas: toda certeza é uma prisão. Compete ao terapeuta comunitário, por meio de perguntas, semear a dúvida na certeza, perguntas que abram perspectivas das diferentes opções de encarar a realidade. O terapeuta comunitário deve se esforçar para ser um especialista em fazer perguntas que geram dúvidas, num clima de confiança e serenidade. • A horizontalidade: a experiência de uma pessoa não é mais importante do que a de outra, é apenas diferente. Não existe um saber superior ao do outro, mas um saber a compartilhar, pois todos são aprendizes. O que existe é um saber coletivo. A horizontalidade remete ao valor humildade. É ter consciência de suas competências e de seus limites, aceitando a competência dos outros como complementares. •Ver o outro como um recurso: o outro, por sua singularidade, é propulsor de mudanças, de crescimento e de resiliência. A fim de que cada um possa se beneficiar dos recursos de todos, é fundamental acolher as diferenças. A TCI na atenção ao uso de drogas A TCI é uma abordagem que amplia a rede de recursos comunitários por meio de ações de prevenção e promoção da saúde, em encontros nos quais são disponibilizados às comunidades espaços de partilha de sofrimentos e superações dos desafios do cotidiano, o que lhes possibilita encontrar alternativas para lidarem com os problemas relacionados ao uso de drogas26. Outro destaque para a TCI está em seu caráter inclusivo. De maneira geral, as rodas de terapia comunitária integrativa estão disponíveis para as populações com baixo poder aquisitivo e em contextos vulneráveis ao uso de drogas. Nas rodas, as questões relacionadas ao uso de drogas podem ser compreendidas e trabalhadas no contexto da vida das pessoas, contemplando as dimensões emocionais, sociais, econômicas e políticas. Na comunidade, essas dimensões estão entrelaçadas e são trabalhadas no coletivo, podendo beneficiar o indivíduo e a coletividade27. Os benefícios obtidos pela participação em grupo de apoio comunitário como a TCI em relação ao uso de drogas estão, sobremaneira, na possibilidade de as pessoas refletirem e ampliarem seu conhecimento sobre si mesmas, suas dificuldades e potencialidades, bem como dos recursos comunitários que dispõem em diferentes dimensões da vida, como no trabalho, na família, na comunidade, entre os amigos e consigo mesmas27. Nas rodas de TCI, são acolhidos usuários, não usuários, familiares, dependentes e não dependentes, o que torna o âmbito rico em possibilidades de trocas de experiências de vida e, consequentemente, de apoio social para a prevenção, apoio ao tratamento e reinserção social, pois disponibiliza aos usuários e famílias espaço para a criação de vínculos positivos e para encaminhamentos26.

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Nos encontros as pessoas são estimuladas a falarem de seu sofrimento, sem riscos de serem julgadas ou condenadas. Poder expressar seus sofrimentos, seus conflitos, medos e dúvidas, valorizando e respeitando as diferenças individuais e as experiências de vida de cada um, o que favorece a prevenção, o tratamento e a reinserção social de usuários14. A TCI é uma abordagem terapêutica promissora em relação aos problemas relacionados ao abuso de drogas, por incentivar o exercício do autocuidado, valorizar os recursos culturais e possibilitar que estratégias de resolução sejam compartilhadas, o que contribui para o empoderamento dos participantes e para a promoção da saúde numa perspectiva de busca de autonomia28. A TCI tem se tornado um espaço de interconexão das diversas redes de apoio não governamentais, como os Alcoólicos Anônimos, Narcóticos Anônimos, Pastoral das diversas igrejas e entidades governamentais, a exemplo das escolas, centros de apoio psicossocial e justiça. São recursos que precisam ser reconhecidos e valorizados em todo programa de prevenção e atenção ao uso de drogas18. A terapia comunitária integrativa funciona como uma primeira instância de atenção básica em saúde pública. Ela acolhe, escuta, cuida e direciona melhor as demandas e permite que só afluam para os níveis secundários de atendimento as que não foram resolvidas nesse primeiro nível de atenção. Ela não tem a pretensão de ser uma panaceia, nem de substituir os outros serviços da rede de saúde, e sim complementá-los. O fator determinante é o acolher indiscriminadamente, disponibilizando o suporte comunitário18. A promoção de redes de apoio social constitui um fator de proteção dos mais importantes a serem incrementados pelos programas de prevenção ao uso indevido de drogas, nas esferas federal, estadual e municipal. É nesse sentido que a metodologia da TCI foi qualificada como uma estratégia eficaz de prevenção do uso indevido de drogas e de promoção da saúde, sendo inserida em ações da Política Nacional Sobre Drogas13. A inserção da terapia comunitária integrativa em ações de políticas públicas nacionais O reconhecimento da TCI como abordagem de saúde comunitária favoreceu sua inserção em ações de políticas públicas nacionais, estaduais, municipais e do DF. Esse reconhecimento é expresso pela capacitação de terapeutas comunitários em todo o país com financiamentos públicos13. Em âmbito federal, a TCI foi inserida nas ações da Política Nacional Sobre Drogas por meio do Convênio nº 16/2004 firmado entre a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, o polo formador Movimento Integrado de Saúde Mental Comunitária do Ceará (MISMEC) e a Universidade Federal do Ceará (UFC), o que possibilitou a capacitação em TCI, com ênfase nas questões relativas ao uso de álcool e outras drogas, de 780 lideranças comunitárias em 12 estados brasileiros14,18,26. As contribuições da TCI para a prevenção ao uso de drogas nas comunidades indígenas foram outro projeto desenvolvido de 2009 a 2012, na parceria SENAD, Fundação Cearense de Pesquisa e Cultura (FCPC), UFC e Fundação Nacional do Índio (FUNAI) (Convênio nº 16, de 2009). O projeto compreendeu a realização de três cursos: Terapia Comunitária Indígena Integrativa, Massoterapia e Técnicas de Resgate da Autoestima Indígena, sendo concluídos por 85 indígenas, de 13 etnias, de todas as regiões do país e a implantação da sede do polo de formação em Terapia Comunitária Indígena Integrativa e Ações Complementares para as Comunidades Indígenas Brasileiras na aldeia Pataxó de Coroa Vermelha, em Santa Cruz Cabrália, BA13.

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A inserção da TCI em ações da Política Nacional de Atenção Básica e da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares ocorreu pelos convênios 3363/2007 e 2397/2008, que proporcionaram a capacitação de 2.105 profissionais da Estratégia Saúde da Família e rede SUS de todo o país em TCI18. A articulação da TCI com a Política Nacional de Saúde Mental se deu pelo convênio 101/2014, que teve como foco a capacitação em terapia comunitária integrativa em cenários de calamidade pública de 560 profissionais do SUS de municípios dos estados de Alagoas, Ceará, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Rondônia, Santa Catarina e São Paulo. Todos os convênios foram firmados entre o Ministério da Saúde, Universidade Federal do Ceará e Fundação Cearense de Pesquisa e Cultura13,18. Nas formações, os cursistas realizaram rodas de TCI e as registraram em formulário predefinido. Os dados levantados foram sistematizados e estão apresentados na Figura 16, que ilustra os temas mais frequentes em rodas realizadas de 2004 a 2014. Figura 16 – Temas mais frequentes apresentados nas rodas de TCI

A Figura 16 sinaliza que a temática álcool e drogas foi um tema frequente em rodas de TCI no Brasil, estando na quarta posição dos temas. Destaca-se que os demais temas, embora não tratem diretamente das drogas, fazem uma interface com essa questão, a exemplo dos conflitos familiares, estresse, depressão e violência. Cenas do cotidiano: a temática de drogas na roda da TCI A seguir será apresentada uma roda de terapia comunitária integrativa coordenada pelo Prof. Dr. Adalberto Barreto, tendo como coterapeuta o líder comunitário Sr. José Lopes (Seu Zequinha). A roda foi realizada no Projeto 4 Varas em Fortaleza-CE e teve como tema: a droga, a família, a prisão e a reconquista de uma vida. Estavam presentes 68 participantes.

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O vídeo da roda de TCI que foi parcialmente degravado neste capítulo integra a coleção “Terapia comunitária e a prevenção do uso de álcool e outras drogas”. Esse material pedagógico em audiovisual foi produzido no convênio 16/2004 (SENAD/MISMEC/UFC)13,14,18,26. E é transcrito em sic. Etapa 1 – Acolhimento – coordenada pelo coterapeuta Coterapeuta (Seu Zequinha): “pessoal, o nosso cordial boa tarde e os votos de boasvindas a cada um de vocês. Quem está vindo aqui pela primeira vez?”. Grupo canta: “seja bem-vindo, olê lê. Seja bem-vindo, olá lá. Paz e bem pra você que veio participar”. Coterapeuta (Seu Zequinha): “hoje, como sempre, na terapia nós vamos falar de coisa boa, de vida. Na terapia nós falamos não só de coisas ruim, mas falamos de coisas boa. Ela acontece para eu descobrir. Cada um fala de si, as coisas que está me incomodando. O que é que me incomoda? Falta de sono? Falta de emprego? Falta de relacionamento em casa? Com os meus vizinhos? Com o meu trabalho? Nas terapias nós não damos conselho e nem se faz discurso. A intenção de perguntar é para compreender. Porque, se a gente não buscar compreender o outro, o que se faz? Julgar? E aqui não se pode julgar. Durante a terapia se você se lembrar de uma música, de uma estoriazinha, de uma piada é só dá sinal para quem tiver coordenando a terapia e a pessoa dá o espaço para você. Todos tem direito de falar. Eu queria saber se tem alguém aniversariando esse mês”. Dinâmica de integração e aquecimento: brincadeira em grupo Etapa 2 – Escolha do tema – coordenada pelo terapeuta Terapeuta (Adalberto): “chegou a hora da gente escolher o tema que vamos discutir hoje. Porque é importante a gente falar com a boca? Quando a gente não fala com a boca a gente vai falar com depressão, com insônia, com dor nas costas, com gastrite. Quando a boca cala, os órgãos falam. E quando a boca fala, os órgãos saram. Por isso é que é importante a gente falar com a boca daquilo que a gente tá sentindo. A gente escolhe a hora errada, a pessoa errada e aquilo vira uma intriga, vira uma futrica, e a gente vai fechando o coração e dizendo nunca mais vou confiar em ninguém. Tem um outro ditado que diz: quem guarda azeda, quando azeda estoura e quando estoura fede. Essa é uma terapia pra gente não andar com cara de azedo e estourar nos horários inconvenientes com as pessoas que não têm nada a ver com a nossa história. O que falar? A gente fala daquilo que tira o sono, das preocupações do cotidiano, da educação dos filhos, da relação familiar, do emprego, do desemprego. Quem tem segredo não traga pra terapia. Aqui não é espaço pra partilha de segredos. Aqui a gente fala das preocupações do cotidiano. Aqui a gente fala sem medo de ser julgado e de ser mal-interpretado ou de virar fofoca, porque aqui a gente fala com o coração em busca de compreender a si próprio. Como nós somos muitos, quem gostaria de compartilhar uma preocupação? Uma angústia. Qual é o seu sofrimento atual?”. Participante 1 (sexo masculino, 30 anos): “o sofrimento atual é que eu passo por muitas dificuldades, perdi a família, fiz coisas que eu não gostaria de ter feito. Hoje em dia eu me arrependo do que eu fiz. Hoje estou vivendo na rua, mendigando como se eu fosse um cachorro, mas tudo tem sua provação”. Terapeuta (Adalberto): “uma musiquinha – ‘Eu não sou cachorro não...’” Participante 2 (sexo masculino, 32 anos): “porque minha irmã é assistente social e

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conheceu um médico lá no interior e ela propôs dele morar lá em casa. A minha primeira resposta foi não. Hoje em dia ele tá lá com a gente. Quando ele entra eu saio, quando ele sai eu entro”. Grupo cantou “quando eu ia ela voltava, quando ela voltava eu ia”. Participante 3 (sexo feminino, 29 anos): “mora três irmãos lá em casa e a responsabilidade está toda nas minhas costas. E isso tá me incomodando”. Terapeuta (Adalberto): “sentimento de burro de carga?” (participante 3 concorda fazendo gesto com a cabeça). “Nós temos aqui três situações problema e nós vamos poder escolher apenas uma dessas três. É aquela que mais me toca, que tem a ver com a minha história. Não tem aquela escolha objetiva não. São três temas importantes que têm a ver com o cotidiano. Não tem nenhum maior do que o outro. Agora gostaria que vocês se pronunciassem”. Participante 4 (sexo feminino, 38 anos): “escolheu o tema da participante 3. Eu tenho cinco filhos e durante um tempo da minha vida eu me senti também muito sobrecarregada”. Participante 5 (sexo feminino, 51 anos): “escolheu o tema do participante 2. Não era conviver com estranho, mas com dificuldade de relacionamento em casa”. Coterapeuta (S. Zequinha): “escolheu o tema do participante 1. Deve ser muito amargoso a pessoa perder a família. Eu acho uma qualidade a pessoa reconhecer o erro. E eu acho que ele precisa de uma ajuda”. Terapeuta (Adalberto): “agora a gente vai votar. Só pode votar uma vez, levantando a mão”. O terapeuta reapresenta os temas e o grupo vota. Tema do participante 1 – 40 votos Tema do participante 2 – 12 votos Tema do participante 3 – 16 votos. Etapa 3 – Contextualização Terapeuta (Adalberto): dirigindo-se ao Participante 1 – “você vai falar um pouco do seu sofrimento. Eu queria lembrar que todo mundo pode fazer pergunta. Só pergunta por enquanto”. Participante 1: “eu me sinto totalmente um cachorro arrasado. Sem ninguém. Só Deus por mim. Porque sem ele nós não somos ninguém”. Terapeuta (Adalberto): “o que tu tem feito pra reconquistar a tua paz interior?”. Participante 1: “fazer mais amizade, mas por outro lado as pessoas olham assim como se tivesse medo de mim. Como se eu tivesse coragem de fazer aquilo que eu tinha feito algum tempo atrás e com isso eu tô me sentindo muito arrependido do que eu fiz. Se eu soubesse que isso ia acontecer eu jamais tinha feito isso”. Coterapeuta (S. Zequinha): “você ainda tá usando ou já parou?” Participante 1: “Parei. Graças a meu bom Deus. Depois que eu comecei a andar na igreja as coisas melhorou pra mim”. Coterapeuta (S. Zequinha): “e onde é que tu tá dormindo?” Participante 1: “assim debaixo de teto, beira de calçada, pracinha...” Terapeuta (Adalberto): “e do que tu te arrepende?” Participante 1: “primeiramente foi usar drogas, porque esse crack só faz desgraçar sua vida, só pra perder família, mãe e pai. Eu aconselho quem usa isso sai fora enquanto é tempo”.

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Terapeuta (Adalberto): “tu parou com o crack?” Participante 1: “parei, graças a Deus”. Terapeuta (Adalberto): “e tu botou o que no lugar?” Participante 1: “nem cachaça, nem bebida. Só Deus”. Coterapeuta (S. Zequinha): “como você tá ganhando o pão de cada dia? Trabalhando com o quê?” Participante 1: “eu no momento não tô trabalhando com nada, mas eu tô atrás. Se fosse outra pessoa no meu lugar, se tivesse passando pelo que eu tô passando, eu acho que já tinha feito uma loucura. Porque o crack é o seguinte, quando a pessoa consome ela você não quer só um, dois, três... você quer mais. Eu tirava coisas de casa. É a coisa mais horrível. Não presta. Aí eu saía. Ia pelo meio da rua, não podia ver um casal fora de hora e eu chegava e era um assalto... ia pra bocada, comprava mais pra consumir. E assim ia levando...” Terapeuta (Adalberto): “e qual foi a reflexão que você fez que levou você a dizer que se eu continuar eu vou morrer e eu não quero morrer? Se você lembra do momento, da circunstância que você disse que agora vou parar mesmo”. Participante 1: “foi desde o dia em que eu caí na cadeia. Nem bicho era pra tá preso”. Terapeuta (Adalberto): “o que passava na tua cabeça quando tu tava lá dentro? Que filme passou na sua cabeça?” Participante 1: “muita loucura, arrependimento”. Terapeuta (Adalberto): “quer dizer que essa tua prisão foi um mal necessário?” Participante 1: “justamente, porque você pensa... tu tá no xadrez, aquele negócio apertadinho, só um quadradinho, sem poder se levantar, sem andar, com um bocado de macho ao seu redor, fedorento e suado”. Participante 6 (sexo feminino, 60 anos): “e seus pais te abandonaram?” Participante 1: “me abandonaram”. Participante 7 (sexo feminino, 25 anos): “agora que você já reconheceu tudo o que você fez, qual o teu maior desejo?” Participante 1: “meu maior desejo, moça, é que seu eu pudesse recuperar minha família de volta, de novo”. Terapeuta (Adalberto): “então eu queria te agradecer por ter aberto seu coração, feito um streep tease existencial. Mostrou sua alma de gente sofrida, mas que tá buscando sair dessa situação. A partir de agora ninguém vai mais te azucrinar fazendo perguntas e eu pediria que você ficasse só prestando atenção no que nós vamos conversar entre nós”. Etapa 4 – Problematização Terapeuta (Adalberto): “agora que nós ouvimos a história dele, que perdeu a família, fez besteira na vida, chegou a ir pra cadeia, mas se arrependeu do que fez. Quem de nós, também, já se arrependeu de alguma coisa que fez? E o que que eu fiz pra superar?” Participante 8 (sexo feminino, 47 anos): “há poucas horas atrás eu me sentia assim perdida, sem nome, sem lenço, sem documento, desmoralizada porque eu sou alcoólatra. Não posso, não devo ingerir nada que venha a conter álcool. Por conta do meu alcoolismo muitos viraram as costas pra mim. É o padrão normal, ninguém quer levar tapa. Todo mundo de preferência quer carinho. Mas eu tô admirada com o que eu ouvi aqui porque eu bebi demais, fui de cair nas calçadas, fui de urinar em via pública, enfim, tudo aquilo que faz que acha que embriagado tem direito. O que me admirou aí na história é que sem autoajuda...” Terapeuta (Adalberto): “o que se chama de autoajuda?”

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Participante 8: “uma terapia de grupo pra conseguir sair de uma situação dessa. Nós temos três irmandades paralelas, né? Nós temos o NA, que é um problema com drogas. Nós temos a irmandade de alcoólicos anônimos, que é o meu problema. Nós temos ALANON, que é para os familiares compreender e passar pelo menos a conviver com o problema do alcoolismo. Alguém perguntou ao rapaz o que levou ele a parar. Ele insistiu, insistiu na fé. O que me levou a parar não foi a fé, foi meu fundo de poço”. Terapeuta (Adalberto): “como assim?” Participante 8: “expulsa de casa, desmoralizada, sem trabalhar, sem produzir, me tornei um bicho. Embriagado era um monstro. Quer dizer, as coisas todas se viraram contra mim. E eu cheguei no meu fundo de poço quando um dia eu tava numa churrascaria. Tava com várias pessoas bebendo e na hora da confusão eu fui a única que fui espancada, a única que fui presa e fui a única que paguei pelo assunto. Aquilo começou a me chamar a atenção. Meu fundo de poço foi poder nem olhar, nem abrir a porta da minha casa. O que me levou a superar vários problemas da minha vida em primeiro lugar foi Deus, a irmandade de alcoólicos anônimos e, sem sombras de dúvidas, essa caloria, esse abraço, esse aperto, esse sorriso, tudo o que existe aqui dentro, até por ser totalmente natural, que nunca vi nada igual na minha vida que se chama Projeto 4 Varas”. Participante 9 (sexo masculino, 59 anos): inicia uma música e o grupo acompanha. “Eu sou feliz é na comunidade, é na comunidade eu sou feliz”. Terapeuta (Adalberto): “quem mais já se arrependeu do que fez? Já chegou no fundo do poço, não interessa as razões, pode ser por outras razões, por outros caminhos...” Participante 4 (sexo feminino, 38 anos): “o fundo do poço lhe obriga a ir pra frente, não tem mais pra onde descer. E me obrigou a subir. E o fundo do poço foi uma relação. Eu era muito nova, 17 anos, primeiro namorado, primeiro amor, projeto arrojado de ter muitos filhos, desenvolvi quase que uma obsessão pelo marido. O que eu sei que tudo passa, tudo acaba e as relações não são eternas. Então ele deu um ponto final. Ele deixou muito claro há muito tempo, há mais de dez anos atrás que não me amava mais, mas eu não me conformava. Nunca aceitei. Parecia uma droga, um vício. Eu corria atrás, me rebaixava, me humilhava. Eu hoje olho pra trás e vejo que eu tinha tudo, bom emprego, dinheiro. Nunca precisei de marido pra pagar minhas coisas, tinha tudo. Carro bom. Mas tinha essa ânsia, essa falta, esse desespero por alguém que não me queria. À medida que eu insistia, mais ele me maltratava, me humilhava era degradante...” Terapeuta (Adalberto): Inicia uma música e o grupo acompanha. “Quem eu quero não me quer, quem me quer mandei embora, o que será me mim agora?” Participante 4: “e foi numa dessas de humilhação que eu cheguei no fundo do poço e falei pra mim...” Terapeuta (Adalberto): “então tem hora que chegar no fundo do poço termina sendo uma boa coisa porque dá um impulso pra vida?” Participante 4: “só resta subir. Foi interessante que o fundo do poço foi como se tivesse um espelho e eu disse pra mim mesma que eu não precisava disso. Aí eu comecei a resgatar. Tu é uma mulher nova, cheia de energia, trabalha, é querida, tem afeto, não tem afeto desse marido, mas tem afeto de tantas pessoas que te querem bem. Vai à luta. Deixa ele. Deixa esse troço pra lá”. Coterapeuta (S. Zequinha): “hoje em dia ele tá atrás de você?” Participante 4: “não sei. Só sei que eu arranjei um amor”. Grupo bate palmas e canta: “chorei, não procurei esconder. Todos viram, fingiram, não precisava. Ali onde eu chorei qualquer um chorava. Dar a volta por cima que eu dei quero

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ver quem dava... reconhece a queda e não desanima. Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”. Etapa 5 – Encerramento O grupo fica de pé em circulo, uma pessoa abraçada à outra formando uma roda. Fazem um leve balanço. Grupo canta “Tô balançando, mas não vou cair”. Terapeuta (Adalberto): “esse é um pouco o movimento da vida. A gente vai pra um lado, quando pensa que vai cair pra direita, aí o da esquerda puxa e da mesma forma para o outro lado. E assim a gente vai saindo da rigidez das nossas ideias, das nossas convicções, porque toda convicção é uma prisão. E a vida passa a ser uma caminhada mais suave. Quero agora agradecer ao [participante 1], que contou sua história de vida, por causa da droga perdeu a sua família, perdeu o amor próprio. Antes de perder o juízo caiu no fundo do poço e você disse que pra você a sua espiritualidade foi uma coisa importante. Encontrou uma igreja que te deu apoio e que hoje você já tá dois meses sem usar crack e que tá querendo recuperar sua família, sua dignidade. Então queria lhe agradecer e dizer que a sua história é uma história muito bonita. E que você tá no processo. Já driblou vários, mas que é muito importante fazer gol. Não basta só driblar. Ainda tem muitos gols para serem feitos. E se você continuar nesse pique a gente tem certeza de que você vai fazer alguns gols. Quero lembrar se você lembrarem de alguma música, estória, poesia, vocês podem propor. O que eu tô levando da terapia de hoje? O que eu tô levando do [participante 1] ou das outras pessoas?” Participante 10 (sexo masculino, 45 anos): propõe uma música e o grupo acompanha. “Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia...” Participante 10 (sexo feminino, 65 anos): “eu quero dizer pra você [participante 1] que você não está só. Parabéns pela coragem de ter vindo, por ter parado com esse vício e conte conosco e volte aqui, às terapias. Você vai vencer. Já deu o primeiro passo”. Participante 11 (sexo feminino, 42 anos): “eu vou levando daqui a coragem dele de ter parado com o vício da droga e já tá com dois meses sem usar”. Participante 2 (sexo masculino, 32 anos): “eu vou levando a conversão dele [participante 1]. Ele se propôs a se converter a uma vida sem estar no mundo das drogas”. Participante 7 (sexo feminino, 25 anos): “ouvindo a história do [participante 1], eu fiquei me perguntando o que passa na televisão quando a pessoa faz alguma coisa errada na sociedade, é um bandido, né? E aqui a gente foi tratando a história dele, cada um que tem sua dificuldade, como ser humano. Eu acho que o Projeto 4 Varas nos ajuda a mudar a mentalidade, a vida e a nossa linguagem. A nossa linguagem pesa nas pessoas. Pesa na gente. Nosso modo de pensar. E eu acho que hoje com a história dele creio que ninguém viu ele como um bandido, como um drogado, mas como um ser humano que quer se reerguer”. Conclusão A terapia comunitária integrativa é uma abordagem de saúde comunitária que contribui para a prevenção, tratamento e reinserção social de usuários de drogas e familiares. Trata-se de um recurso reconhecido em ações de políticas públicas e, também, de lideranças comunitárias. A TCI propõe muito mais uma postura do que uma técnica a ser aplicada. Postura de respeito e valorização das diferenças, acolhimento e fortalecimento das redes de apoio social.

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A prática do consultório de rua na abordagem da vulnerabilidade associada ao uso de drogas Antônio Nery Filho Patrícia von Flach Andréa Leite Ribeiro Valério Adriana Prates Sem a real dimensão da aventura a que se propunha, o consultório de rua orientava-se pela certeza dos efeitos que podem produzir os encontros plenos entre humanos, sustentados em princípios éticos: responsabilidade, vulnerabilidade, autonomia e justiça.

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Introdução Na vida, tudo parece determinado pelo acaso. Mas, se se atentar melhor, pode-se perceber que há certa organização no caos. Tomemos o consultório de rua: seu aparecimento exigiu 10 anos de trabalho do Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas (CETAD), atividade ambulatorial especializada, inaugurada em 1985 como extensão da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia e apoiada pelo governo estadual. Para esse centro acorriam todos os que, fracassando ou não na relação com uma ou mais substância psicoativa, desejavam encontrar algum acolhimento que não os julgassem e, menos ainda, os considerassem doentes ou criminosos, destinados à exclusão em alguma unidade psiquiátrica ou prisional. Aliás, o próprio centro havia surgido inspirado na experiência de trabalho de um dos autores deste texto, em hospital judiciárioa . Para lá eram, por força da antiga Lei 6.368/76, dita Lei de Tóxicos do Brasil, encaminhadas todas as pessoas flagradas em um ou mais dos verbos constantes no rol das proibições (portar, transportar, guardar, etc.)1, tendo em vista definir a condição de dependente ou traficante e suas consequências, isto é, tratamento compulsório ou encarceramento. Isso não pareceu ao autor uma medida justa. Aliás, considerando os danos causados à maioria dos adolescentes submetidos a essas avaliações, podia-se afirmar que não só eram injustas como gravemente danosas à vida física, psíquica e social daquela população de jovens, cujo uso preponderante de maconha (Canabis sativa) representava um ritual ordálico, de passagem da adolescência para a vida adulta. Ou era o recurso mais comum na prática transgressora que marcava e afirmava, subjetivamente, o lugar do jovem no mundo. Deve-se ter presente, ainda, que a maconha estava, àquela época, impregnada da história hippie e, mais tarde, dos festivais, em que a paz, o amor e a recusa de uma sociedade orientada pelo e para o consumo eram tidos como fundamentais para uma nova ordem que se propunha mais justa, menos excludente e mais humana. Desse modo, movido pelas discussões no ensino da Psiquiatria Forense, parte do conteúdo da disciplina Medicina Legal, um dos autoresb concebeu o CETAD, apoiado em três princípios: o anonimato, a gratuidade e a busca voluntária pelo tratamento. Este último assegurava ao paciente o direito de recusar tratamentos impostos pela família ou pelo Estado, posto que, em geral, estava fadado ao fracasso em razão da ausência de adesão ou envolvimento com a proposta terapêutica. No decorrer do tempo, o CETAD/UFBA sempre se orientou pelo respeito à decisão do paciente de permanecer ou não em tratamento, quando conduzido à sua revelia. Nesse sentido e de sua experiência foi pensado o consultório de rua, prática clínica voltada para os mais desvalidos ou vulneráveis e apoiada nos conhecimentos da redução de danos e das práticas do campo socioantropológico. Um pouco de história Até meados dos anos 90, em que pese o conhecimento largamente difundido entre médicos e acadêmicos de Medicina, particularmente nos serviços de urgência e emergência, o CETAD/UFBA, em Salvador, não registrava o uso de drogas injetáveis entre seus pacientes. a Antonio Nery Filho, psiquiatra, trabalhou no então Manicômio Judiciário (1970-1973), hoje Casa de Custódia e Tratamento, instituição da estrutura da Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Estado da Bahia. b A Em julho de 1985, o Prof. Antonio Nery Filho apresentou ao Departamento de Anatomia Patológica e Medicina Legal da Faculdade de Medicina da UFBA a proposta de criação de serviço especializado para cuidado, estudo, pesquisa e ensino, relacionado às substâncias psicoativas e seus usos. Inicialmente como atividade de extensão, localizado no Centro Social Urbano da Caixa D’água, desde 1993 o Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas (CETAD) transferiu-se para o Canela, no campus universitário.

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O motivo provavelmente estava relacionado à condição socioeconômica e à marginaliza ção envolvendo os consumidores de drogas injetáveis que dificilmente buscavam tratamento pelo uso de drogas2. Ademais, era muito restrito o conhecimento da prevalência da contaminação pelo HIV naquela população. A primeira pesquisa sobre o assunto foi realizada em 1996 por Andrade, apesar das primeiras abordagens terem ocorrido por volta de 1992, a partir do Programa de Redução de Danos3, iniciativa pioneira do centro, inspirada nas atividades desenvolvidas pelos Médecins du Monde, em Paris. No Brasil as experiências foram implantadas em Santos algum tempo antes. Em consequência das informações obtidas envolvendo usuários de drogas injetáveis e HIV em outras regiões do Brasil4,5, foi inaugurada em 1999 no CETAD/UFBA a atividade denominada pontos móveis de prevenção, constituída por equipe multidisciplinar, qualificada segundo os princípios da redução de danos, atuando em diferentes locais da cidade. Essa atividade buscava alcançar os mais excluídos e fragilizados, usuários de drogas injetáveis (ou seus parceiros), incapazes de cuidarem dos diversos agravos à saúde e voltados quase, se não exclusivamente, para a sobrevivência no dia a dia. Naquele mesmo ano, 1999, outra iniciativa foi posta em marcha no CETAD/UFBA e designada pelo seu idealizador como consultório de rua. Na verdade, anos antes (1989), técnicos do CETAD/UFBA se indagaram sobre a ausência de assistência aos meninos e meninas encontrados nas mais diversas regiões de Salvador, lavando para-brisas de carros, mendigando, roubando ou cheirando cola de sapateiro. Chamava a atenção a ausência dessas crianças e adolescentes no centro e, mais ainda, a possível inadequação técnica para seu atendimento, constatado na baixíssima adesão dos poucos encaminhados para tratamento por instituições religiosas ou de proteção à infância e adolescência. Parecia indispensável olhar mais de perto por essas crianças e o mundo da rua em que viviam. Era necessário compreender “onde as coisas se passavam”, dar significação aos gestos, ouvindo os atores sem a preocupação de contá-los ou de convencê-los a abandonar o uso de drogas, mas de compreendê-los por meio de suas histórias, não raro escritas no real de seus corpos. A rua havia ganhado, segundo DaMatta6, estatuto de “categoria sociológica”, “como conceito que pretende dar conta de noções a partir das quais uma sociedade pensa ela mesma e define como códigos de ideias e valores sua cosmologia e seu sistema de classificação das coisas do mundo e, também, para traduzir aquilo que a sociedade vive e faz concretamente”, na medida em que “não designa simplesmente espaços geográficos ou coisas físicas mensuráveis, mas, sobretudo, entidade moral, área de ação social, espaço ético dotado de positividade, domínio cultural institucionalizado, reações, leis, rezas, músicas e imagens esteticamente enquadradas e inspiradas”. As expressões “fora”, “já pra rua”, “coisas da rua”, “no olho da rua”, “gente de rua”, “rua”, pronunciadas com as mais diversas tonalidades afetivas, em português, como em muitas línguas, dão a dimensão desse lugar onde tudo é, ou deveria ser, transitório7. Nessa perspectiva, durante dois anos, pesquisadores do CETAD/UFBA desenvolveram intensa e produtiva observação de uma área central da cidade de Salvador (Praça da Piedade), a que chamaram de “banco de rua”c. Esse trabalho mostrou que uma criança (ou adolescente) não é igual à outra simplesmente porque são crianças. Do mesmo modo, c Entre 1990 e 1991, Antonio Nery filho, Gey Espinheira, Nívea Chagas, Margareth Leonelli e Jane Montes denominaram de “banco de rua” a observação socioantropológica e clínica das crianças, adolescentes e adultos vivendo na Praça da Piedade, região central de Salvador. Este trabalho foi fundamental para a compreensão do que se passava na rua, envolvendo o consumo de drogas e as posteriores atividades desenvolvidas pelo CETAD/UFBA.

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a presença de um pai, de uma mãe e de um filho não faz uma família igual à outra. Elas diferem por seu patrimônio material, cultural; por suas histórias e raízes; por seu passado, presente e possibilidades futuras. As famílias diferem em sua vida cotidiana a partir da qual se organizam e se estruturam, marcando o destino de seus filhos. A presença de crianças na rua denunciava, com base em suas vidas, a miséria, a crise, os desvios, a marginalidade. Crianças e adolescentes que não eram iguais às outras crianças e adolescentes porque haviam envelhecido pela vida. Homens e mulheres em corpos infantis. Homens e mulheres pelo saber, pelo amor e pelo sofrimento. Esse fato não era novo, nem na Bahia, nem em outras regiões do Brasil, mas se reatualizava no dia a dia da observação de suas estratégias de sobrevivência na rua e nas significações sociais que portavam, sem esquecer as oposições que marcam as famílias, as crianças e a rua, a ação do Estado por intermédio das instituições oficiais e suas interpenetrações7,8. O consultório de rua: primeiros anos Quase uma década separou a experiência do “banco de rua” e a implantação do “consultório de rua”. A epidemia de AIDS, como já mencionado, colocou em evidência, numa cidade em plena “metropolização”, crianças e adultos em situação de rua, em geral considerados usuários de drogas, atraindo a ira e a repulsa, como “sujeira humana”, no dizer de Gey Espinheira9, ou “lixo do progresso econômico”, no dizer mais recente de Bauman, ao analisar contingente de trabalhadores e não trabalhadores nas novas formas de produção capitalista10. Impunha-se ao Poder Público, àquela época, intervir junto a essa população de rua. Contudo, a prática perpetuada ao longo dos anos consistia em verdadeiras “operações de guerra” conduzidas sem qualquer critério contra crianças, adolescentes e adultos vivendo da e na rua. Aliás, poucos distinguiam aqueles que estavam “na rua” daqueles “de rua”. Dito de outro modo, “na rua” designava as pessoas cuja relação com o espaço público seria transitória, de circulação, de trabalho, mantendo outras referências de pertencimento; enquanto que “de rua” significava a apropriação e transformação do espaço público em espaço privado, de permanência, sem outras referências11. Em 1998, iniciativa relevante patrocinada pela então Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social, da prefeitura de Salvador (SETRADS), denominada “Projetos Nossos Filhos”, buscava atender as crianças em situação de rua, perambulando pelo centro histórico da cidade (Pelourinho), em geral sob o efeito de drogas ilícitas. A fim de qualificar seus técnicos, a SETRADS buscou junto ao CETAD/UFBA os conhecimentos necessários ao desenvolvimento de novas estratégias, longe das antigas práticas repressoras e excludentes. Contudo, por motivos político-administrativos, o projeto foi interrompido, mantendo-se a relação técnica e o aporte financeiro necessários para que o consultório de rua fosse implantado pelo CETAD em 1999. Selecionados os técnicos sob a condução da psicóloga Mirian Gracie Plena de Oliveira, cuja experiência anterior no trato com populações em situação de grave vulnerabilidade social foi de extrema importância12, teve início o trabalho de campo, marcado pelas constantes e inquietantes indagações sobre o que fazer? Como fazer? Onde se queria chegar? Qual a importância do consultório de rua no cenário das novas alternativas do cuidado em saúde? A redução de danos poderia ser considerada uma estratégia clínica posta em prática pelo consultório de rua? Os recursos humanos disponíveis estariam qualificados

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para o atendimento a uma população cujas demandas eram tão específicas e especiais? Em que medida experiências como esta poderiam contribuir para a melhoria da formação acadêmica dos futuros profissionais da saúde?12. Vale lembrar que a equipe inaugural do consultório de rua era multidisciplinar, constituída por uma psicóloga (de orientação psicanalítica), um médico psiquiatra, um antropólogo, um acadêmico de Medicina (5º ano) e um motorista (capacitado como agente de saúde/redutor de danos). Na primeira reunião do idealizador do consultório de rua com esta equipe, foi posta a seguinte questão: o que se deve fazer na rua? A resposta foi: destituírem-se de seus olhares e observarem a rua com os olhos de seus pares, de modo que possam viver a experiência dos “olhares cruzados”. Ao longo do trabalho esta equipe foi sendo modificada pelas exigências da prática, chegando a uma equipe mínima constituída por: psicólogo, médico generalista, pedagoga/educadora social, assistente social, redutor de danos e o motorista, também capacitado como agente de saúde. Essa experiência durou de 1999 a 2006, quando foi interrompida por ausência de suporte financeiro, posto que durante sete anos a contratação dos técnicos (à exceção da coordenadora) se deu graças aos convênios estabelecidos com a prefeitura de Salvador e com o estado da Bahia, por intermédio da Associação Baiana de Apoio ao Estudo e Pesquisa Sobre o Abuso de Drogas (ABAPEQ), Organização Não Governamental de Utilidade Pública, apoiadora do CETAD/UFBA. As pesquisas desenvolvidas no Brasil13,14 mostraram que a maioria dos jovens em situação de rua buscava atendimento em razão de problemas de saúde relacionados ao consumo de drogas, prioritariamente em uma instituição específica para essa população. Entretanto, apenas 0,7% dos entrevistados buscava atendimento em uma unidade de saúde, indicando “a enorme distância entre a situação de rua e os serviços de saúde”, provavelmente em razão da “descrença dos jovens em relação aos profissionais de saúde [...] e “preconceitos dos profissionais em relação à situação de rua”13,14. Pesquisa Nacional Sobre a População de Rua realizada entre agosto de 2007 e março de 2008, publicada em 2009, mostrou que 18% da população entrevistada haviam sido impedidas de receber atendimento na rede de saúde15,16, associando-se a esses fatores o despreparo das equipes de saúde: “Os serviços públicos de saúde não estão adequados à realidade e às necessidades das pessoas em situação de rua. Não existem condições de acolhimento e as pessoas que vivem nas ruas não procuram tais serviços, por conhecerem as limitações de acesso e por sentirem-se discriminadas. [...]. É necessário, assim, o desenvolvimento de ações especiais na área do atendimento de saúde, abrangendo a capacitação dos profissionais de saúde, a alteração da atual cultura sobre a população em situação de rua e a mudança de regras e procedimentos adotados no funcionamento dos hospitais e centros de saúde”17. Vulnerabilidade e população de rua O reconhecimento da vulnerabilidade dessas populações em situação de rua sempre foi de domínio comum e, geralmente, mencionado como fator relevante na frágil relação com as diversas instâncias públicas. Entretanto, quase nunca essa vulnerabilidade é considerada em sua dimensão adjetiva. Patrão Neves chamou recentemente a atenção para a dimensão que essa expressão ganhou no campo da bioética, quer na sua significação substantiva, própria de todos os seres vivos como capazes de serem feridos (do latim vulnus,

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ferida), quer na sua dimensão adjetiva, isto é, relacionada às circunstâncias especiais ou particulares que tornam os indivíduos mais suscetíveis de serem atingidos18. Firmin Schramm, por sua vez, distingue a potencialidade genérica de populações e indivíduos serem vulneráveis (vulnerabilidade), de uma efetiva vulneração, condição que define os vulnerados, propondo para estes uma bioética de proteção que pode ser entendida como: Uma caixa de ferramentas – teóricas e práticas – para poder compreender a conflitualidade na saúde pública, descrever os conflitos de interesses e de valores nela envolvidos e tentar resolvê-los, tendo em conta as assimetrias existentes entre quem tem os meios – e o poder (indicado pelo termo empowerment ou “empoderamento”) que o capacite para uma qualidade de vida pelo menos razoável e quem de fato não os tem. Por isso, nesses casos de conflitos entre “empoderados” e “não empoderados”, os conflitos só podem ser resolvidos “protegendo” os afetados “não empoderados”, pois estes não possuem os meios necessários para se protegerem sozinhos, [necessitando de recursos] fornecidos pelo Estado Protetor contra ameaças e danos que prejudicam sua qualidade de vida e suas existências19,20. Nesse sentido, o consultório de rua pode ser reconhecido em sua prática junto aos vulnerados, em particular àqueles vivendo em situação de rua e usuários de drogas (lícitas e ilícitas), como efetivamente inseridos na dimensão de uma bioética de proteção, na medida em que os alcança em seus espaços de vulneração e lhes possibilita a indispensável assistência no campo da saúde mental e geral, pelo reconhecimento de sua cidadania, tornando -os visíveis socialmente e capazes de buscar outros recursos disponíveis e indispensáveis a uma vida minimamente digna, ainda que – reconheça-se – seja difícil estabelecer de que mínimo se está falando. O consultório de rua: “o caminhar faz o caminho” A despeito do tempo decorrido desde sua primeira implantação em Salvador (Bahia), o consultório de rua continua sendo um dispositivo potente e inspirador, cuja metodologia permanece praticamente a mesma. Contudo, suas estratégias mereceram constantes revisões e adaptações em razão da variabilidade dos contextos sociais, urbanos e políticos. Sem a profundidade e consistência necessárias a outros textos, podem-se lembrar, aqui, as alardeadas transformações na sociedade brasileira – e nordestina em particular – oriundas da implantação de duas estratégias: o “Fome Zero”d e o “Bolsa Família”d. Por outro lado, há de se considerar os fluxos migratórios e as intervenções urbanas que modificam, sem cessar, a paisagem das cidades. A bem da verdade, a iniciativa de ir para as ruas cuidar dos despossuídos e vulnerados não levou em consideração as dificuldades relacionadas ao espaço e lugar como conceitos diversos e complexos. Segundo Yi-Fu Tuan, “o espaço é um símbolo comum de liberdade no mundo ocidental. O espaço permanece aberto; sugere futuro e convida à ação. Do outro lado negativo, d O Programa “Fome Zero” foi criado em 2003 e coordenado pelo Ministério Extraordinário da Segurança Alimentar e Combate à Fome. A partir desse Programa foi formulada a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Programa Bolsa Família. Legislação e Instruções. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l10.836.htm. Acesso em: jul. 2015.

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espaço e liberdade são uma ameaça [...]. Ser aberto e livre é estar exposto e vulnerável. O espaço aberto não tem caminhos trilhados nem sinalização. Não tem padrões estabelecidos que revelem algo, é como uma folha em branco na qual se pode imprimir qualquer significado. O espaço fechado e humanizado é lugar. Comparado com o espaço, o lugar é um centro calmo de valores estabelecidos. Os seres humanos necessitam de espaço e de lugar. As vidas humanas são um movimento dialético entre refúgio e aventura, dependência e liberdade”21. A rua, como lugar (às vezes entendida como espaço), apresenta diferentes dinâmicas: é um ambiente instável, sujeito a várias interferências, à sazonalidade e a mutações contínuas, além de, sempre, poder surpreender por acontecimentos inusitados. O consultório de rua insere-se, portanto, nesse espaço/lugar, territórios psicotrópicos, definidos, segundo Luís Fernandes e Alexandra Ramos, como “lugares de concentração de atividades drug, onde uns chegam, partem e regressam, onde outros estão em permanência, mas em condições precárias, que asseguram a logística para as necessidades do consumo de drogas no imediato”22. Os territórios psicotrópicos, que equivalem ao que se costuma chamar de “cenas de uso”, têm como característica “sua grande mobilidade. Constituem-se, quando e onde reúnem uma série de condições ecossociais específicas, e deslocam-se quando estas são alteradas”. Esses territórios também costumam sediar atividades ilegais, especialmente o tráfico, o que atrai a polícia, tornando o cenário ainda mais tenso. Em alguns locais onde tem estado presente, o consultório de rua de Salvador tem se deparado com diferentes cenas de uso, possuidoras de diferentes especificidades. Naquelas formadas por pessoas em situação de rua, a atividade é geralmente bem aceita e consegue atuar na perspectiva da saúde e da redução de danos. Porém, cenas compostas, frequentadas por indivíduos com alguma inserção social, são geralmente menos permeáveis. A experiência acumulada ao longo dos anos permite, hoje, reconhecer, inspirada na prática de redução de danos, algumas “regras” fundamentais para a implantação e o desenvolvimento das atividades do consultório de rua23,24, como se segue: Abordagem de uma nova área: a escolha de uma área de atuação do consultório de rua orienta-se pela presença de usuários de drogas em determinado território/lugar. Contudo, cabe observar de modo detalhado a dinâmica que os envolve e, sobretudo, identificar os possíveis aliados locais (pessoas, equipamentos sociais ou de saúde, comércio, etc.). A abordagem deve tomar como norte a saúde, compreendida em sentido ampliado e não como ausência de doença(s), deixando o mais claro possível seu distanciamento de propostas repressoras, higiênicas ou “salvadoras”. A equipe deve ser constituída por pessoas destituídas de preconceitos quanto ao consumo de drogas, bem formadas tecnicamente - guardadas suas respectivas qualificações -, identificada com o difícil trabalho nas ruas, percepção clara de seus objetivos e, mais ainda, seus limites humanos, técnicos e administrativos, conhecendo os códigos e linguagens que variam de uma região para outra. Cuidar da sua própria saúde: a equipe do consultório de rua (como de qualquer equipe trabalhando na rua) está sujeita a muitas das circunstâncias que envolvem sua clientela, tais como contaminações por agentes infecciosos, acidentes, violência relacionada ao tráfico ou à repressão policial e, sobretudo, ao sofrimento psíquico inerente ao próprio trabalho. Há de ser garantido, além do tempo necessário à formação técnica permanente, o tempo indispensável ao acolhimento das dificuldades próprias a cada um e à equipe, a partir de supervisão permanente.

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Deve-se lembrar que a atuação do consultório de rua não se sustenta sem articulação com a rede de saúde - atenção básica e especializada -, além das imprescindíveis parcerias com outras instâncias formais (educação, assistência social) e informais (ONGs e lideranças comunitárias). À exceção do veículo adaptado para as suas atividades, que garante a visibilidade, identidade e transporte dos técnicos do consultório de rua, os demais recursos materiais são variáveis e devem atender às necessidades do(s) campo(s). Os demais “dispositivos utilizados são secundários ao encontro e devem servir apenas como apoio para o favorecimento das relações interpessoais (transferenciais), a exemplo da música, oficinas lúdicas e/ou artísticas. Os objetos servem como apoio ao encontro e não como condição para o encontro”25. Todos esses fatores, de diferentes modos, influenciam o trabalho na rua, por afetarem os espaços e mobilizarem os usuários de diversas maneiras. As modificações na dinâmica da rua, quer longitudinais, quer pontuais, demandam adaptações nas estratégias de atuação da equipe, tal como a pesquisa constante de novas cenas de uso, que têm se tornado de acesso cada vez mais difícil, sobretudo por conta de contínuas ações de “reordenamento urbano” e “limpeza pública”, relacionadas às políticas imediatistas e superficiais que buscam atender a interesses nacionais ou não, geralmente determinados pela ordem econômica, consumista. O consultório de rua: uma clínica do cuidado A rua pode ser assumida como espaço clínico, como campo de possibilidades. Constatamos em nossas andanças que “o seu olhar melhora o meu”e. Pode-se falar, então, de uma clínica marcada pela transformação de sujeitos - sujeitos usuários e sujeitos técnicos, em uma relação intersubjetiva, dialógica e dialogada. Uma clínica do encontro entre humanos, em movimento, ampliada, da escuta sensível, do olhar que vê, que torna visível, que cuida e que ampara. Uma clínica poética e estética que, por ser ética e política, se faz tecendo redes de pessoas vivas, usuários, cidadãos, militantes ou, simplesmente, pessoas voltadas para a construção de novas redes de significados/existências. Uma clínica que acontece no “entre” humanos suscitando humanidades. Uma clínica de/na rua! Espaço de liberdade, mas também de aprisionamento. De encontros e desencontros. De guerra e de paz. Certamente, a rua pode representar um lugar de risco à saúde, mas pode, também, ser uma via de reafirmação de existências negadas, de organização e de relação com o mundo. Pode ser o único lugar cabível para alguns sujeitos que trazem em si a solidão, imposição da exclusão social, e que encontram, nos bons encontros, uma saídaf, o apaziguamento para uma vida marcada pelo sofrimento, pela falta, pela miséria que embrutece, pela violência que dilacera, pelo abandono que desampara, pela negligência que desprotege, pela exploração que denuncia a falta do Estado. Da violação de direitos à proteção, o certo é que a rua é intensa, é o espaço do inusitado e das mil e uma possibilidades. O que encontramos quando nos permitem (e nos permitimos) “entrar” no mundo da rua é uma rede de pessoas e relações com importante função afetiva e potencial de solidariedade, de compartilhamento que nos afeta e nos transforma na relação com “esse mundo”, com “esse outro”. e Referência à música de Arnaldo Antunes, “O seu olhar”. Disponível em: http://musica.com.br/artistas/arnaldo-antunes/m/o-seu-olhar/letra.html.

Os bons encontros referidos por Espinosa são aqueles que aumentam nossa força de existir, nossa potência de agir, nossa alegria. Nos encontros da vida cotidiana vamos aprendendo a fazer acontecer os bons encontros, fazendo!

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A rua é sempre coletiva. Nela, não há lugar para o privado. Na rua, entretanto, podem-se viver múltiplas identidades simultâneas, pode-se ser até simulacro. Nela se foge das “tiranias da intimidade” que formulam, modelam, violentam. A rua é amparo coletivo, o lugar dos desamparados26. A rua como lugar para os desamparados, um “lugar para onde ir”! E, como reiteradamente dizia Gey Espinheira , todo humano precisa de um lugar para onde ir, uma referência, uma casa. A rua, para muitos, tem sido essa casa. E a forma de se apropriar desse espaço também será a expressão da trajetória de vida de cada um, ainda que modificada ou potencializada a partir da relação que estabelecer com os outros da/na rua. Com a afirmação das possibilidades da rua e dos usuários nesse contexto, não se está negando ou deixando de reconhecer o caráter desumano, que marca e faz marcas nessas existências: a falta de dignidade, a privação de direitos humanos básicos, os estigmas, preconceitos, abusos, desproteção e, principalmente, todo o sofrimento subjetivo consequente às vivências objetivas de injustiças sociais cotidianas. Mas, também, não se quer reforçar essa rua estigmatizada (e estigmatizante) como lugar de marginais, dos drogados, da “sujeira humana” depositada nos guetos, esgotos e lixões das cidades. Quando nos envolvemos com esse “lixo”, quando o tocamos, quando nos responsabilizamos por ele, quando o tornamos “objeto de nosso desejo”, constatamos sua transformação diante dos nossos olhos e desvendamos toda a humanidade, antes escondida sob o efeito do discurso social que desumaniza e condena sujeitos à morte social. É importante considerar, então, que viver e existir não são a mesma coisa, pois que existir implica o reconhecimento do Outro e, conforme Bourdieu, citado por Bauman, “talvez não exista pior privação, pior carência que a dos perdedores da luta simbólica por reconhecimento, por acesso a uma existência socialmente reconhecida, em suma, por humanidade”27. Se se considerar que as identidades se constroem a partir do reconhecimento do outro, ser identificado como o marginal ou o “sacizeiro” da rua tem como resultados o estigma, o preconceito, a desqualificação, a desmoralização. Nessa perspectiva, as atividades do consultório de rua iniciam-se na relação com os usuários, com a desconstrução dessa identidade marcada pela negatividade, na alienação mantenedora das relações de dominação, pois “a desmoralização, no sentido mais comum do termo, dos usuários de crack, requer, como prevenção ou intervenção, a moralização desse sujeito tornado “sujeira humana”9. O trabalho no consultório de rua ensinou a enxergar possibilidades e fazê-las existir, fazendo: dali, de onde nada se esperava, quando se passa a desejar e a cuidar, a vida brota. Essa potência de vida que se reafirma cotidianamente na rua pode ser entendida “[...] como uma potência de resistência que se afirma na contramão à desqualificação da vida, que se expressa nos ressentimentos, nos julgamentos morais, nas indiferenças, nos ódios, nas vinganças”28. A prática clínica do consultório de rua é, também e principalmente, ético -política, pois que, na sua dimensão terapêutica, busca sempre produzir mudanças, desvios, nunca acomodações. O consultório de rua é uma tecnologia de produção de saúde que acontece lá onde a vida flui sem roteiro, inusitada, intensa e aberta à invenção de outros modos de existência, em um eterno por vir. Uma clínica do e no mundo da vida, aberta e disponível aos sentidos que dela emanam – os medos, as insônias, as depressões, a fissura, mas, também, a alegria, o amor, a felicidade, a solidariedade, a generosidade. Exige que se esteja atento a tudo aquilo que se estabelece como campo de expansão e de expressão. Propõe a invenção e a reinvenção cotidiana da vida, a pactuação em rede de novos fluxos, de outros percursos, de outras formas de caminhar pelos espaços da cidade, de outros movimentos produtores de

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atos revolucionários, de transformação social. Dessa forma, as drogas não ocupam, no fazer do consultório de rua, espaço privilegiado. Nessa clínica de rua ocupam lugar privilegiado “os humanos e suas vicissitudes”29, na qual “as drogas não podem ser tomadas como um mal em si mesmas, como causas, senão de modo enviesado ou como avesso da causa”f. Nesse sentido, o cuidado com os usuários, em nenhum contexto, visa separá-los da(s) droga(s), mas, junto com ele, trilhar os caminhos dos sentidos e responsabilizações em relação ao seu uso. “A clínica é o lugar aonde ir quando se sofre, quando se precisa ser acolhido”30. A clínica é o lugar do “encontro”, que é inseparável da vida social, da convivência, das conversações e que, assim, nos convoca a sair do lugar, a experimentar, a sentir, a problematizar nosso próprio eu, imagem do Outro. A direção clínica será, então, fomentar o desejo do cuidado de si, como propõe Foucault31. O cuidado de si que é ético consigo mesmo. Que implica uma relação com os outros, que é uma prática social, construída na e em relação ao outro. Uma ação que implica uma reflexividade e que não está dada, mas a ser construída cotidianamente. Esse “cuidar de si” implica, também, e principalmente, o cuidador, no reconhecimento de seus preconceitos, suas limitações, suas verdades, seus desejos, pois “[...] pensar num plano ético é pensar/intervir, antes de tudo, sobre nós mesmos, na vida, no viver” 28. Essa clínica, marcada por preconceitos e estigmas, não é simples. Exige de cada técnico coragem e reconhecimento de sua impossibilidade para mudar o mundo. Por isso a consideramos uma clínica ético-política e, como tal, exige militância e participação social. Aqui vale lembrar Goffman32 quando cita a militância como uma ação de contraestigmatização. Mas pode-se complementar, entendendo a militância como resultado da incorporação de um senso crítico de realidade a ser construído com e por nós, a partir do reconhecimento de que: O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço33. A clínica desenvolvida no consultório de rua “abre espaços” ao praticar o cuidado para o cuidado de si. O cuidado como atitude orientadora das ações de saúde e que é mais do que intervir sobre “a doença”. Para cuidar, há que se considerar e construir projetos de vida, sendo necessário, então, conhecer qual o projeto de vida/futuro está ali na relação terapêutica. A atitude “cuidadora” é complexa e exige expansão, continuidade, movimento, liberdade para voar junto em busca de sonhos de felicidade34. Boff35 lembra que “[...] cuidar é entrar em sintonia com, auscultar-lhes o ritmo e afinar-se com ele” (p. 96). O ato cuidador, então, implica acolhimento, disponibilidade, escuta sensível e qualificada, respeito e envolvimento com o outro. O cuidado somente acontece quando esse outro é importante para o cuidador que se torna importante para ele. O cuidado se dá entre sujeitos, em um espaço intercessor no qual se produz uma relação de “afetamento” mútuo, que produz laço e também responsabilização e, por consequência, compromissos, que darão a direção das intervenções no sentido da construção, considerando o que é estar melhor na vida para o usuário36. A questão que abre um campo de possibilidades para os sujeitos é a “questão” sobre o seu próprio fazer, que reflete o ser. Fazer do técnico e fazer do usuário. Realidade e sujeito se construindo na relação. Então, não há

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um caminho prévio, um cuidado bom ou mau, mas apenas narrativas polifônicas que, entre os encontros e desencontros, podem fazer vir à tona o si mesmo. “Mas se não pode ainda instalar o ‘si mesmo’ (percebido como insuportável), se a implicação não se inscreve, fica então um trabalho a ser feito”37. Afinal, o cuidado se faz fazendo. Por uma conclusão inconclusiva A título de conclusão deste capítulo, retoma-se o relato de Oliveira e Messeder38 quando das primeiras avaliações do consultório de rua, aqui revisitado pelo tempo e experiências acumuladas: o trabalho do consultório de rua se realiza ao lado das mais diversas intervenções próprias da liberdade das ruas: caminhantes, carros, religiosos movidos pela “salvação das almas”, agentes da polícia e do Judiciário; pesquisadores das mais diversas orientações, programas de saúde e social, entre outros. Em geral, as ações na rua visam “retirar da vista” aquilo que se considera quase indecente, ofensivo e degradante, tornando feias as passarelas, as praças, os jardins das cidades pelo Brasil mais e menos desenvolvido. Nesse contexto, trabalha o consultório de rua, buscando estabelecer vínculos com quem vive desvinculado e desconfiado das ofertas transitórias. Uma das forças do consultório de rua está na sua permanência e disponibilidade, na construção de relações sem exigências nem promessas. Entendido, inicialmente, como um consultório médico especial, ambulante - marcado por seu próprio nome -, vai muito além disso. Pequeno curativo atrai gente que costuma ter uma relação bastante descuidada com o corpo. Diversos males crônicos são levados até os serviços de saúde, cujas portas estão, geralmente, fechadas para esses despossuídos. Reiterado apelo para que usem preservativos e façam uso de drogas em condições menos arriscadas ou protegidas é quase um mantra! Essas “relações transicionais” permitem estreitar os laços que levam a lugares menos acessíveis, inalcançáveis anteriormente. Em diversas ocasiões surge a demanda por alimentos ou vestuários. A visão caritativa é muito comum. Já disse o cancioneiro do Baião, Luiz Gonzaga: [...] Mas doutor, uma esmola para um homem que é são/ Ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão [...]g O consultório de rua busca provocar “no invisível” o reconhecimento de sua própria cidadania, pelo reconhecimento de sua existência humana, estampada no reconhecimento que lhe faz a equipe. Contudo, reconheça-se, este é o caminho mais árduo. A própria identidade do consultório de rua está sempre por se fazer, na constante transitoriedade dos encontros na rua. Apesar da pouca clareza sobre o papel do consultório de rua nos espaços em que atua, há uma confiança construída pela regularidade da presença e por sinais que asseguram sua postura ética: não repressão ao consumo de drogas, aliada ao lugar assegurado para a palavra. Tudo isso sinaliza a aproximação de mundos diferentes, o mundo dos que nada têm e o mundo dos que supõem ter. Aqui, aproximação quer dizer que “supõe-se a compreensão daquilo que ainda se especula”. Espaço para a dúvida, na construção de uma prática que se configura, de início, como uma sensibilização dos nossos sentidos e dos deles. Desse encontro de sentidos, que se complica pelos olhares de uma equipe multidisciplinar, vislumbram-se novos horizontes. A questão central pode ser entendida como sendo a relação com pessoas privadas de estruturas básicas de sobrevivência, para as quais o consultório de rua oferece o cuidado relacionado ao uso de drogas, visando proteger a vida, cujo uso tem, não raro, o efeito de amenizar as dores do viver, permanentemente, na antecipação da morte. Estar na rua posg

Vozes da Seca. Zé Dantas e Luiz Gonzaga. 1953.

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sibilita a construção de pontes passíveis de levarem a algum lugar, a uma transformação qualquer, que pode redefinir trajetórias, reacender sensibilidades, produzir novas emoções e novos desejos. O lugar do consultório de rua não é o da caridade, nem da pena. Um dos seus princípios é o da dignidade humana e os caminhos que empreende são do diálogo sem ilusões. Referências 1. CASTILHO NETO A de. Entorpecentes. Brasília, Ministério da Justiça, 1983. (Col. Textos Legais 4) 2. ANDRADE TM. Drogas injetáveis na Bahia: usos e usuários. In: Mesquia, F & Seibel,S. (Orgs) Consumo de Drogas: desafios e perspectivas. São Paulo: Hucitec, 2000. –(Saúde Loucura [textos] 14) 3. ANDRADE TM. Condições psicossociais e exposição ao risco de infecção pelo HIV entre usuários de drogas injetáveis, em uma comunidade marginalizada de Salvador-Bahia. Tese de Doutorado em Medicina. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 163 p., 1996 4. BUENO RC, BASTOS FI, ANDRADE TM, MORENO I, ALBUQUERQUE JI. Estudo comparativo de soroprevalência para HIV e fatores de risco entre UDI nas cidades de Santos, Rio de Janeiro, Salvador, Campo Grande e Itajaí – Projeto Brasil. Instituto de Estudos e Pesquisas em AIDS de Santos/CN-DST/AIDS-MS, 26 p., 1993 5. BUENO R de C. A experiência de Santos no trabalho com UDIs. In: Fábio Mesquita e Francisco Inácio Bastos (Orgs.). Drogas e Aids-Estratégias de redução de danos. Editora HUCITEC. São Paulo. 1994. Pp.205-212 6. DaMATTA R. A casa e a rua. Guanabara Koogan. Rio de Janeiro. 1991. Pp. 16-17. 7. ESPINHEIRA G. À guisa de introdução: uma abordagem socioantropológica das drogas. In: NERY FILHO A. Prevenção sem medos e terapia sem estigmas. Salvador. Inédito (s.d.) 8. NERY FILHO A. La vie dans la marginalité ou la mort dans l’institution. Tese de Doutorado. Faculté de Sociologie et Sciences Sociales de l’Université Lumière lyon 2. Lyon. França, 1993. 9. ESPINHEIRA G. Os tempos e os espaços das drogas. In: ALMEIDA AR; NERY FILHO A; MACRAE E; TAVARES LA (Orgs). Drogas: tempos lugares e olhares sobre seu consumo. Salvador: Edufba; 2004. p. 11-26 10. BAUMAN Z. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004 (Apud Oliveira, 2009, p.12) 11. NERY FILHO A. Prevenção sem medos e terapia sem estigmas. Salvador, s.d. Inédito. 12. OLIVEIRA MGP de. Consultório de Rua: relato de uma experiência. Dissertação de Mestrado-Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia. 2009. Salvador. 151 p. 13. NOTO AR; GALDURÓZ JCF; NAPPO AS; FONSECA AM; CARLINI, EA. Levantamento nacional sobre o uso de drogas entre crianças e adolescentes em situação de rua nas 27 capitais brasileiras. Escola Paulista de Medicina, São Paulo, (CEBRID/SENAD), 2003 14. NOTO AR. Catálogo de instituições que assistem crianças e adolescentes em situação de rua em 27 capitais brasileiras. São Paulo: CEBRID, 2004 15. BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Rua: aprendendo a contar – Pesquisa Nacional Sobre a População de Rua.—Brasília, DF: MDS; Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação, Secretaria Nacional de Assistência

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117-20, 2000. 35. BOFF L. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. 15ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. 36. MERHY EE. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde. In: Merhy EE, Onocko R, organizadores. Agir em saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec, 1997. p. 71-112. 37. REGO, M. Toxicomania: movimentos de uma clínica. In: NERY FILHO A; MACRAE E;TAVARES LA; RÊGO M. (Orgs.) Toxicomanias: incidências clínicas e socioantropológicas. Salvador: EDUFBA: CETAD, 2009. p. 207-20. (Coleção Drogas: Clínica e Cultura).

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A visita domiciliar motivacional em situaçþes de vulnerabilidade Edilaine Moraes Geraldo Mendes de Campos

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Introdução O uso abusivo de substâncias e a dependência química são condições que, quase sempre, caminham lado a lado com as vulnerabilidades. Isso, pelo fato de já o início do uso de substâncias se dar, invariavelmente, pela exposição do sujeito a alguma situação de vulnerabilidade, seja ela ambiental, psíquica ou biológica. De forma semelhante, a continuidade do uso de substâncias e uma possível progressão ao abuso e à dependência se favorecem da exposição do sujeito a essas situações. Frente a essa realidade, surge a necessidade de intervenções que possam priorizar a identificação de tais vulnerabilidades, até mesmo atuando no desenvolvimento e fortalecimento de fatores protetivos essenciais para a modificação de tal cenário. Atualmente, várias intervenções na área dos transtornos pelo uso de substâncias (TUS) procuram compreender e intervir nessas situações. Neste capítulo, aborda-se uma dessas intervenções já evidenciadas como eficaz: a visita domiciliar motivacional (VDM)1. A assistência domiciliar (AD), da qual a visita domiciliar é uma das modalidades, é uma prática que vem sendo utilizada desde o século XVIII para os mais diversos fins, como sociais, religiosos, caridosos e também por questões relacionadas à saúde2. Embora seja uma prática utilizada há bastante tempo (exemplo: médicos da família), a criação “oficial” da AD no Brasil remete a um serviço de visitas realizadas por enfermeiras, no Rio de Janeiro, em 1919. Esse serviço visava, principalmente, à prevenção de doenças infantis3. Daí em diante, grande número de ações fortaleceu a prática da AD em nosso país2. Diversos estudos demonstram a gama de possibilidades e contribuições da AD para os mais diversos segmentos nas áreas social e de saúde, inclusive, mais recentemente, na área da dependência química (DQ)3. Especificamente relacionando a AD à DQ, Moraes (2010) revela bons resultados propiciados pela VDM tanto aos pacientes (alcance e manutenção da abstinência; aumento da motivação e adesão ao tratamento; melhoria nas relações familiares; resgate de papéis familiares; reinserção no mercado de trabalho e em atividades sociais), quanto aos familiares (melhor compreensão das especificidades da DQ; mudança de atitude em relação ao paciente; participação nos grupos de orientação familiar; melhoria da dinâmica familiar; resgate de vínculos afetivos; etc.)1. Como intervenção que se propõe a atuar na complexidade do tema TUS, a VDM surge objetivando, entre outros, identificar e intervir tanto nos fatores preditivos (fatores de risco e vulnerabilidades), quanto nos problemas decorrentes. De forma sucinta, este capítulo procurará apresentar a práxis da VDM, seus principais fundamentos e outros aspectos importantes a serem considerados durante as visitas. Será proposta, também, uma reflexão sobre possíveis contribuições da VDM diante de situações de vulnerabilidade. Além disso, estará incluído, no final do capítulo, o Protocolo das Visitas Domiciliares Motivacionais4, elaborado para a realização de uma pesquisa concluída em 2007, para que possa ser adaptado e utilizado por outros profissionais, conforme seus objetivos e realidades. A visita domiciliar motivacional (VDM) A VDM é uma estratégia terapêutica cujo diferencial é agregar aspectos motivacionais às visitas domiciliares que já vinham sendo realizadas anteriormente, embora com obje-

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tivos outros que não o engajamento que aqui se propõe. Para isso, a VDM utiliza técnicas da entrevista motivacional5, uma intervenção com eficácia já reconhecida na área da DQ. Entende-se a VDM não como uma modalidade de tratamento independente, mas como uma estratégia que deva ser aliada às intervenções já praticadas pelos serviços de atenção aos usuários de substâncias. Pode ser utilizada por quaisquer propostas de ação que busquem a prevenção, tratamento e promoção de saúde nessa área, sejam elas públicas, privadas ou não governamentais. Aspectos importantes a serem considerados Uma das principais características da VDM é sua adaptabilidade às condições de trabalho, à disponibilidade de recursos materiais e financeiros e aos objetivos dos serviços que a utilizarão. Sendo assim, serão apresentadas algumas peculiaridades dessa intervenção, importantes de serem compartilhadas, pelo fato de já terem sido avaliadas e consideradas custo-efetivas em estudo clínico randomizado1. Trata-se, portanto, da utilização da VDM com um propósito específico (aumento da adesão ao tratamento), em um contexto específico (tratamento ambulatorial para dependentes de álcool). Daí a utilização de termos como pacientes, tratamento, adesão, etc. Ressalta-se, porém, que os itens abordados a seguir não configuram a totalidade das possibilidades da VDM, mas apenas algumas delas. Esse modelo pode – e deve – ser adaptado às propostas de ação nas quais será inserido. Objetivos principais Estabelecer ou fortalecer um bom vínculo com as pessoas que receberão a visita - a qualidade do vínculo estabelecido é um forte preditor do sucesso – ou fracasso – da intervenção. Por intermédio dessa relação de confiança que se estabelece, torna-se possível mais comprometimento entre terapeuta, paciente e familiares, permitindo maior engajamento de todos no processo terapêutico. Favorecer e incentivar a adesão de pacientes e familiares ao tratamento - a presença dos profissionais na residência dos pacientes, por si só, provoca um sentimento de importância e valorização nos visitados, que favorece maior engajamento e aceitação das propostas terapêuticas sugeridas. Possibilitar acesso a informações específicas sobre a dependência química - muitas vezes, tanto o paciente quanto seus familiares não possuem informações confiáveis sobre esse transtorno. Muitos mantêm, ainda, o entendimento da DQ apenas como um desvio de caráter, falta de força de vontade, de vergonha na cara, etc. O entendimento adequado, livre de preconcepções, pode modificar a imagem que se tenha criado do usuário. Observar e intervir em possíveis vulnerabilidades percebidas - profissionais capacitados, em visita ao ambiente do paciente, poderão identificar e intervir, in loco, em vulnerabilidades importantes que possam estar favorecendo o comportamento aditivo; Fortalecer fatores de proteção (FP) já existentes - da mesma forma que é possível a identificação de fatores de risco e vulnerabilidades, pode ocorrer também com os FPs. Pessoas significativas, atitudes assertivas, recursos disponíveis na comunidade, etc. podem se transformar em facilitadores da adesão ao tratamento, da melhoria da qualidade de vida, do alcance e manutenção da abstinência, entre outros.

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Questionar discrepâncias percebidas entre comportamentos atuais e metas futuras - auxiliar paciente e familiares a perceberem as divergências que possam existir entre seus comportamentos atuais e metas almejadas, possibilitando mudanças em aspectos importantes para o alcance dos objetivos. Provocar mudanças de crenças e atitudes “defensivas” - não raro, pacientes e familiares apresentam uma visão distorcida de si, do outro e de suas relações com as realidades que os cercam. A VDM procura reconhecer e modificar crenças e atitudes que surgem como escudos nas relações interpessoais. Estabelecer planos de ação - estratégia muito importante no tratamento da DQ, o plano de ação terá mais validação se for pactuado junto ao paciente e seus familiares. Como “cúmplices” nesse processo, obtém-se mais comprometimento de todos. Fortalecer o compromisso de todos - a presença dos profissionais na residência demonstra, subjetivamente, seu comprometimento com o processo de recuperação do paciente. Essa percepção, por parte do paciente e seus familiares, propiciará mais compromisso com o tratamento e com as mudanças propostas no plano de ação. Quantidade de visitas O número de visitas irá variar de acordo com os objetivos propostos. Para os objetivos listados, considerou-se a realização de quatro visitas como sendo o ideal. Essas visitas foram semanais e consecutivas, com duração aproximada de uma hora. Assim, a intervenção se deu de forma bastante intensiva, visto que ocorreu em aproximadamente um mês. Vale ressaltar que o número de visitas poderá variar, também, de acordo com a dimensão dos fatores de risco e vulnerabilidades identificadas. Agendamento Recomenda-se que a primeira visita seja agendada com aproximadamente uma semana de antecedência, de acordo com a conveniência do paciente e de seus familiares. É importante ser enfatizada a necessidade da presença de todas as pessoas que fazem parte do convívio familiar; não só moradores, como também de outras pessoas significativas para o paciente. As demais visitas poderão ser agendadas nesse primeiro encontro, a fim de facilitar a participação e implicação de todos os envolvidos. Mostrou-se ser mais produtivo manterse o mesmo dia da semana e horário para os demais encontros. Profissionais Caso seja possível, a VDM deve ser realizada por, no mínimo, dois profissionais com formações distintas, porém ambos atuantes na área da dependência química. A ação em dupla favorece a pluralidade de olhares, a troca de informações sobre o que foi observado e compreendido por cada um, o manejo das intervenções necessárias e a própria segurança dos profissionais. É importante e desejável que também estejam capacitados e treinados para utilizar os princípios e estratégias da entrevista motivacional5, atuando com sensibilidade, empatia, flexibilidade e escuta reflexiva. Dessa forma, estarão aptos a apresentar, de forma acessível ao paciente e familiares, aspectos importantes para a compreensão do contexto no qual estão inseridos e dos processos de mudança propostos durante as VDMs.

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O ambiente O ambiente é revelador, por si só! Os visitadores precisam ter a clareza de que a visita domiciliar motivacional começa antes mesmo de adentrarem na residência visitada. Pode parecer estranho, mas o trabalho já deve começar com a atenção aos arredores da casa, à vizinhança, aos equipamentos (sociais, de saúde, educacionais, culturais, etc.) localizados no bairro, às possibilidades de lazer nas proximidades, aos pontos de venda de álcool, tabaco e outras drogas, etc. Essa observação apurada poderá auxiliar na identificação de vulnerabilidades ambientais e comunitárias, assim como de possíveis fatores de proteção, o que será de muita valia na elaboração de propostas de intervenção mais efetivas. A quem beneficia? A VDM já se mostrou capaz de propiciar benefícios não apenas para aquele que tenha gerado a demanda pela visita, mas também para outros integrantes dos contextos familiar e comunitário4. Há múltiplos desdobramentos e implicações que podem atingir fortemente todos os envolvidos em casos de TUS, sejam eles os próprios familiares ou outras pessoas de convívio, vizinhos, uma vez que a maioria dos usuários de substâncias reside com familiares, mantendo, ainda, certos vínculos familiares, afetivos e financeiros6. Essas pessoas, então, precisam ser consideradas como elementos-chave na progressão da DQ, seja por atuarem como mantenedoras do comportamento de uso ou pela sua modificação. Geralmente, sentem-se sozinhas, desamparadas e impotentes diante da situação em que se encontram. Além disso, são facilmente percebidos sentimentos como angústia, culpa, raiva, medo, desmotivação, desvalorização de si e do outro e angústia, entre outros7. Quando bem conduzida, a VDM pode se tornar uma intervenção capaz de propiciar atenção e cuidado a essas pessoas, contribuindo para a modificação de um ambiente disfuncional já estabelecido. É possível propiciar, a todo o grupo familiar, um espaço de diálogo em que seja “permitido” falar sobre angústias, queixas, inseguranças e outros temas por vezes evitados, dando oportunidades – talvez as primeiras – para que os demais integrantes “olhem”, também, para suas próprias questões. Além disso, por diversas vezes já foram percebidos, durante as visitas, conflitos familiares originados na crença distorcida de que o consumo de substância se dá apenas pela fraqueza de caráter, pela falta de vergonha na cara, etc. Nessas situações, os esclarecimentos prestados pelos visitadores possibilitaram o enfraquecimento dessas crenças e o surgimento de novos entendimentos sobre o fenômeno, menos enraizados no senso comum. Tenha-se em mente que qualquer ação que vise à melhoria das relações familiares e do ambiente comunitário trará benefícios, também, a outros envolvidos. Atenção Um cuidado a ser tomado refere-se a uma possível “invasão de privacidade” dos visitados, devido a atitudes que possam ser consideradas invasivas. É necessário pedir autorização, buscar consentimento, estabelecer parcerias e cumplicidades, não “tomar partido”, defendendo alguns e acusando outros e buscar estabelecer vínculos pela empatia e acei-

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tação. Algumas atitudes podem ser mal-interpretadas e colocar tudo a perder. Possíveis contribuições da VDM em diversas situações de vulnerabilidade Não é novidade para as pessoas envolvidas com o universo da DQ - sejam os profissionais de saúde, os agentes sociais, os familiares e até o próprio usuário – a existência de diversos fatores ou situações capazes de facilitar o desenvolvimento da DQ e dos problemas associados a ela. Esses facilitadores podem ser aqui considerados como as vulnerabilidades a que algumas pessoas ficam expostas. Uma vez que essas vulnerabilidades podem ser identificadas e “abordadas” de forma profissional e competente, suas consequências podem se tornar passíveis de mudança. Nesse sentido, a VDM pode ser um instrumento utilizado por profissionais e equipes de saúde na identificação de vulnerabilidades e promoção de mudanças, uma vez que se propõe, entre outros objetivos, a verificar, no próprio ambiente dos visitados, situações de risco para o surgimento e/ou agravamento de problemas relacionados ao uso de substâncias psicoativas (SPAs). Assim sendo, pretende-se, a seguir, sugerir possibilidades de utilização da VDM diante de situações de vulnerabilidade, aliando conhecimentos já adquiridos dessa prática a novos objetivos e realidades de atuação, com a intenção de facilitar a compreensão e provocar, no leitor, uma reflexão sobre a viabilidade dessa intervenção em suas práticas profissionais. Embora não seja intenção deste capítulo a descrição de situações de vulnerabilidade a ponto de esgotar suas possibilidades, considera-se importante mencionar algumas delas, quer pela frequência com que aconteçam, quer pela força que possuam ou pela complexidade de suas interações com o uso problemático de substâncias. Situações de vulnerabilidade psíquica Características individuais, em certos casos, podem contribuir para o desenvolvimento de vulnerabilidades na área psíquica. A literatura referencia algumas delas como sendo fortes indicadores de que cuidados precisam ser tomados para a prevenção da experimentação precoce. Sem pretender citar grande número delas, veem-se a ausência de habilidades sociais e os comportamentos antissociais precoces como dois eixos de grande importância, capazes de tornar algumas pessoas mais vulneráveis que outras ao uso de SPAs8. A falta – ou deficiência – de habilidades sociais costuma provocar diminuição na estima, na confiança, no controle e, consequentemente, na autoeficácia de algumas pessoas, favorecendo a busca pelas substâncias psicoativas. Da mesma forma, também favorecem essa busca os comportamentos antissociais precoces (agressividade, mentiras, roubos e furtos, etc.), dificuldades escolares, falta de interesse por questões familiares, comunitárias, religiosas, etc. Tanto quanto timidez excessiva, vergonha de si e sentimentos de não pertencimento, também hiperatividade, arrojo em demasia e excesso de confiança podem aumentar os riscos para o início do uso. A identificação dessas características durante as VDMs, em tempo de serem “trabalhadas”, poderá facilitar o desenvolvimento de fatores protetivos capazes de contraporem as

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vulnerabilidades provocadas. Por exemplo: • O desenvolvimento de habilidades sociais - como assertividade na externalização de sentimentos, desejos, opiniões e direitos; manejo adequado de pensamentos e emoções; habilidades de fazer e receber elogios ou críticas; de resolução de problemas, etc. - poderá favorecer a elevação da autoestima e autoeficácia, possibilitando outros sentimentos positivos em relação a si mesmo; • O fortalecimento de vínculos com instituições sociais (família, escola, instituições comunitárias, esportivas, religiosas) e de crença nos valores sociais; • a adequação de competências emocionais, como empatia, bom humor, autonomia, autoexigência e disciplina para atingir suas próprias metas. A correta identificação de características individuais relevantes e o bom direcionamento das demandas que possam surgir farão com que os resultados esperados se tornem possíveis de serem atingidos. Situações de vulnerabilidade biológica Além das questões psíquicas, vulnerabilidades genéticas e biológicas podem estar relacionadas tanto a uma predisposição hereditária ao desenvolvimento da DQ, quanto aos efeitos e danos causados ao organismo, devido ao uso e abuso de substâncias. A identificação dessas vulnerabilidades pelos visitadores poderá propiciar orientações adequadas às particularidades percebidas, seja na questão genética ou nas questões dos efeitos das substâncias e suas consequências para determinado organismo, em específico. Mas cabe ressaltar que os transtornos pelo uso de substâncias já deixaram de ser vistos como fenômenos exclusivamente individuais e muito se tem debatido sobre a importância do contexto socioambiental como facilitador da experimentação e progressão do uso. Situações de vulnerabilidade ambiental Normas implícitas, cultura local, condições de convivência, desemprego e discriminação de várias formas são aspectos que também precisam ser considerados pelos visitadores. Sabe-se que a disponibilidade de substâncias e a permissividade do uso existentes em diversos ambientes comunitários tornam-se facilitadores da experimentação de SPAs. Da mesma forma, a ausência de alternativas de lazer, culturais e esportivas e oportunidades de atuação social e comunitária também podem tornar seus moradores mais vulneráveis ao uso9. Diante da identificação de tais situações, os visitadores poderão provocar, entre os visitados, uma discussão sobre essas questões e a possível influência que estes acreditam poder existir em suas vidas. Essa discussão visa, inicialmente, mais conscientização sobre a influência do ambiente na vida das pessoas, podendo resultar, até, em mobilização para a busca de alternativas viáveis junto às lideranças comunitárias e o Poder Público. Da mesma forma, o próprio ambiente familiar pode tornar seus membros mais vulneráveis ao uso de SPAs, principalmente diante do uso ou permissão do uso por pais e irmãos; da fragilidade ou inexistência de laços familiares; da falta de envolvimento dos pais na vida dos filhos; entre outros. Como visto, a presença no ambiente pelos visitadores permite:

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• a identificação de situações de vulnerabilidade que poderiam ficar despercebidas, se outro fosse o setting; • a intervenção imediata em algumas situações; • o correto encaminhamento, quando necessário. O Quadro 1 demonstra, de forma resumida, as possibilidades de atuação dos visitadores durante as VDMs: • Identificar refere-se ao olhar atento e seletivo dos visitadores, com o claro propósito de verificar a existência de situações de vulnerabilidade; • orientar, como código específico, está relacionado às situações em que a correta orientação possa ser a intervenção suficiente para se obter os resultados esperados; • encaminhar diz respeito às possibilidades de apoio e atenção percebidas pelos visitadores, que poderiam ser prestadas por outros serviços ou profissionais. É muito importante que esses encaminhamentos sejam feitos de forma responsável e comprometida, mediados pelos visitadores junto ao serviço/profissional referenciado; • intervir nas ações que possam ser executadas pelos visitadores após a identificação das situações de vulnerabilidade. Também contempla as orientações verbais e os encaminhamentos específicos, mas permite outras possibilidades de atuação, como a proposta de discussões sobre conteúdos percebidos, planos de ação, comprometimento com mudanças consideradas importantes e possíveis pelos visitados, etc. Quadro 1: Atuação da VDM nas situações de vulnerabilidade Situações de vulnerabilidade

Possibilidades

O que fazer?

Resultados esperados

psíquicas (escolhas, preferências, experiências e características individuais)

- identificar; - intervir; - encaminhar.

- observação dos moradores; - questionamentos; - orientações; - avaliações dirigidas (escalas); - encaminhamentos.

- prevenção ao uso de substâncias; - conscientização; - motivação; - aceitação de cuidados e/ou encaminhamentos; - redução de danos.

biológicas (efeitos fisiológicos do uso de substâncias)

- identificar, - orientar, - encaminhar.

- observação dos moradores; - questionamentos; - orientações; - encaminhamentos.

- prevenção do uso de substâncias ou de seus agravos

ambientais (cultura, localização e condições de moradia, contexto familiar, idade, sexo, escolaridade, etnia e outras necessidades especiais)

- identificar; - intervir; - encaminhar

- observação do ambiente e das relações familiares; - questionamentos; - orientações; - intervenções breves e pontuais; - encaminhamentos.

- prevenção ao uso de substâncias; - conscientização; - motivação; - melhoria das relações familiares; - aceitação de cuidados e/ou encaminhamentos; - redução de danos.

Considerações finais A proposta deste capítulo foi apresentar a VDM como uma intervenção eficaz na identificação e atuação em situações de vulnerabilidade, no contexto dos transtornos pelo uso de substâncias psicoativas. Essa eficácia se deve, em parte, à aproximação que a VDM

373


propicia entre os profissionais de saúde e os âmbitos vividos por aqueles aos quais prestam algum tipo de atenção e cuidado - realidades estas que, muitas vezes, só podem ser realmente compreendidas “se” e “quando” observadas in loco. Contudo, ao mesmo tempo em que se considera fundamental a aproximação entre os profissionais e seus “pacientes”, também se faz necessária a aproximação entre as intervenções propostas e as realidades de atuação desses profissionais. Ou seja, a intervenção que se pretende aplicar necessita ser adequada aos serviços e profissionais que a utilizarão. De pouco adiantaria uma intervenção clinicamente eficaz que não fosse passível de aplicação, no cotidiano dos profissionais e dos serviços. Por isso, a VDM se propõe a ser adaptável às mais distintas realidades de trabalho, sem que se perca - ou se confunda - sua finalidade. A VDM busca intervir nos contextos, nas relações que os visitados estabelecem. E, para isso, treinamento e capacitação das equipes são condições primordiais. Não se trata de intervenção domiciliar cuja justificativa seja a impossibilidade de o visitado ir até o serviço, como no caso da assistência aos acamados. Tampouco a visita investigativa ou de comprovação, como em alguns casos assistenciais. Em nossa prática clínica, já se puderam verificar modalidades de visitas sendo feitas por psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, enfermeiros, médicos, agentes comunitários de saúde, conselheiros, acompanhantes terapêuticos, educadores sociais e outros, com os mais diferentes fins; embora, geralmente, com objetivos únicos e rígidos. Acredita-se que esses profissionais, se devidamente capacitados para as questões do TUS e da entrevista motivacional, serão capazes de agregar esses conceitos às visitas que já fazem, ampliando objetivos e maximizando resultados. Outros pontos que, percebe-se, merecem consideração são: o número de profissionais presentes nas visitas e a quantidade de visitas. Embora, neste capítulo, se tenha apresentado uma experiência de quatro visitas semanais e consecutivas, feitas por dupla de profissionais (psicólogo e assistente social), ressalta-se que esse modelo deve ser adaptado de acordo com as possibilidades e necessidades dos serviços que a utilizarão. Sabe-se que a disponibilidade de transporte para o trabalho externo de profissionais é muito diferente de um serviço para o outro: alguns têm veículos próprios, exclusivos; outros só podem contar com veículos do mantenedor (prefeituras, secretarias, universidades, institutos, projetos, etc.), mesmo assim, esporadicamente. Há também aqueles que não têm possibilidade alguma de acesso a veículos, dependendo exclusivamente da improvisação, criatividade e abnegação de seus profissionais. Se realizar uma visita já pode ser tarefa bastante complicada – devido à logística necessária -, quanto mais realizar quatro, semanais e consecutivas. Fica evidente que esse aspecto precisa ser adaptado à realidade dos serviços que irão utilizar a VDM. Da mesma forma, percebe-se, em muitos serviços, uma importante defasagem entre a quantidade “existente” de profissionais e a quantidade “necessária”. Isso faz com que muitos deles trabalhem com carência de pessoal, sendo obrigados a reduzir cuidados ou limitar suas atividades. Evidente que, nessas circunstâncias, uma exigência de visitas em dupla poderia inviabilizar a intervenção, tornando-a impraticável. Por fim, sabe-se que visitas ao domicílio já vêm sendo feitas por diferentes profissionais e que a VDM é uma intervenção custo-efetiva10 que já se mostrou viável nos mais diferentes quadros de tratamento e prevenção do abuso de substâncias. O que aqui se propõe é que gestores e profissionais da saúde percebam que poderão dispor da VDM como mais uma ferramenta de trabalho, bastando iniciativa, capacitação e um pouco de criatividade. Não se trata apenas de mais tarefas a serem executadas, mas

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sim de melhores resultados a serem alcançados. Referências 1. MORAES E, CAMPOS GM, FIGLIE NB, FERRAZ MB, LARANJEIRA R. Home Visit in the Outpatient Treatment of Alcohol Dependents: randomized clinical trial. Addictive Disorders & Their Treatment, 2010; 9:18-31. 2. MORAES E, CAMPOS GM. Visita Domiciliar: uma intervenção motivacional no tratamento da dependência química. In Figlie NB, Bordin S, Laranjeira R. Aconselhamento em Dependência Química. 3.ed. - São Paulo: Roca, 2015. 3. MORAES E. Visita Domiciliar: Avaliação do Impacto Clínico e Econômico em um Tratamento Ambulatorial para Dependentes de Álcool. Tese de doutorado – Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica – Universidade Federal de São Paulo, 2007. 4. MORAES E; CAMPOS GM, LARANJEIRA R. Visita Domiciliar Motivacional. In: Diehl A, Cordeiro DC, Laranjeira R e cols. Dependência Química: prevenção, tratamento e políticas públicas. Porto Alegre: Artmed; 2011. 5. MILLER WR, ROLLNICK S. Entrevista Motivacional: preparando as pessoas para a mudança de comportamentos adictivos. Porto Alegre: Artes Médicas, 2001. 6. STANTON M, TOOD TC. Terapia Familiar del Abuso y Adiccion a las Drogas. Barcelona: Gedisa, 1985. 7. KAUFMANN EF. The family therapy of drugs and alcohol abuse. New York: Gardner, 1982. 8. CAMPOS GM, FIGLIE NB. Prevenção ao uso nocivo de substâncias, focada no indivíduo e no ambiente. In: DIEHL A, CORDEIRO DC, LARANJEIRA R e cols. Dependência Química: prevenção, tratamento e políticas públicas. Porto Alegre: Artmed; 2011. p. 481-494. 9. CAMPOS GM; MORAES E. Como planejar um projeto de prevenção. In: DIEHL A, FIGLIE NB e cols. Prevenção ao uso de álcool e drogas: o que cada um de nós pode e deve fazer? Porto Alegre: Artmed; 2014. p. 167-182. 10. MORAES E, CAMPOS GM, FIGLIE NB, LARANJEIRA R, FERRAZ MB. Cost-Effectiveness of Home Visits in the Outpatient Treatment of Patients with Alcohol Dependence. Eur Addict Res. 2010; 16:69-77.

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ANEXO I Protocolo de Visita Domiciliar Motivacional (Edilaine Moraes, 2007) Identificação do paciente e seus familiares (nome, parentesco e idade) Frequência durante as visitas: sim (s) /não (n) 1ª 2ª Paciente:_______________________________________ idade:_________ ( ) ( ) Residem na casa ____ pessoas (especifique): Nome: ____________________________ parentesco: _____________________ idade:_____ Nome_______ parentesco: ________________ idade:_____ ( ) ( ) Nome_______ parentesco: ________________ idade:_____ ( ) ( ) Nome_______ parentesco: ________________ idade:_____ ( ) ( ) Nome_______ parentesco: ________________ idade:_____ ( ) ( ) Nome_______ parentesco: ________________ idade:_____ ( ) ( ) Nome_______ parentesco: ________________ idade:_____ ( ) ( ) Nome_______ parentesco: ________________ idade:_____ ( ) ( ) Nome_______ parentesco: ________________ idade:_____ ( ) ( )

3ª ( )

4a.

( ( ( ( ( ( ( (

( ( ( ( ( ( ( (

) ) ) ) ) ) ) )

( ) ) ) ) ) ) ) ) )

Agendamento da visita domiciliar motivacional 1a Visita: ___/___/_____ 2a Visita : ___/___/____ 3a Visita: ___/___/____ 4a Visita: ___/___/___ Horário: ______________ Horário: _____________ Horário: ____________ Horário: ___________ Duração da visita: ____ Duração da visita: ___ Duração da visita: ___ Duração da visita:__ Durante as visitas, estar atento para responder às questões a seguir. Condições de moradia: Famílias na mesma casa: ( ) uma ( ) duas ( ) três ou mais

Famílias no mesmo terreno/quintal ( ) uma ( ) duas ( ) três ou mais

Habitação: ( ) casa; ( ) apartamento; ( ) favela ( ) cortiço

Construção: ( ) alvenaria ( ) nova ( ) madeira ( ) ventilada ( ) mista ( ) antiga ( ) úmida

Energia elétrica: ( ) rede pública; ( ) emprestada; ( ) clandestina

Saneamento básico: ( ) água e esgoto (rede púb.) ( ) água de poço; ( ) fossa séptica; ( ) esgoto a céu aberto

Saúde e higiene: 1ª visita ( ) limpa ( ) suja ( ) organizada ( ) desorganizada Ambiente: ( ) acolhedor ( ) pouco acolhedor ( ) hostil

2ª visita ( ) limpa ( ) suja ( ) organizada ( ) desorganizada

3ª visita ( ) limpa ( ) suja ( ) organizada ( ) desorganizada Ambiente: ( ) acolhedor ( ) pouco acolhedor ( ) hostil

4ª visita ( ) limpa ( ) suja ( ) organizada ( ) desorganizada

Ambiente: ( ) acolhedor ( ) pouco acolhedor ( ) hostil

Ambiente: ( ) acolhedor ( ) pouco acolhedor ( ) hostil

Relações familiares: MS (muito satisfatório); S (satisfatório); PS (pouco satisfatório); I (insatisfatório); NP (não percebido) 1ª visita diálogo: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP respeito mútuo: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP afeto / carinho: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP harmonia: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP

2ª visita diálogo: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP respeito mútuo: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP afeto / carinho: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP harmonia: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP

3ª visita diálogo: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP respeito mútuo: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP afeto / carinho: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP harmonia: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP

4ª visita diálogo: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP respeito mútuo: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP afeto / carinho: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP harmonia: ( ) MS ( ) S ( ) PS ( ) I ( ) NP

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Atividades sociais, culturais e de lazer da família em conjunto 1a visita ( ) Sim ( ) Não Quais:_________________ _______________________

2a visita ( ) Sim ( ) Não Quais:_________________ _______________________

3a visita ( ) Sim ( ) Não Quais:_________________ _______________________

4a visita ( ) Sim ( ) Não Quais:_________________ _______________________

Tentativa de mobilizar o paciente a retomar o tratamento para dependência química 1a visita ( ) não demonstrou interesse em iniciar ou retomar o tratamento; ( ) demonstrou interesse; ( ) ausente; ( ) não se aplica

2a visita ( ) não demonstrou interesse em iniciar ou retomar o tratamento; ( ) demonstrou interesse; ( ) ausente; ( ) não se aplica

3a visita ( ) não demonstrou interesse em iniciar ou retomar o tratamento; ( ) demonstrou interesse; ( ) ausente; ( ) não se aplica

4a visita ( ) não demonstrou interesse em iniciar ou retomar o tratamento; ( ) demonstrou interesse; ( ) ausente; ( ) não se aplica

Fatores que dificultam a frequência do paciente aos atendimentos 1a visita ( ) desorganização familiar; ( ) doenças físicas ou mentais; ( ) conflitos familiares; ( ) resistência; ( ) baixos recursos financeiros; ( ) outros: ( ) não há faltas frequentes.

2a visita ( ) desorganização familiar; ( ) doenças físicas ou mentais; ( ) conflitos familiares; ( ) resistência; ( ) baixos recursos financeiros; ( ) outros: ( ) não há faltas frequentes.

3a visita ( ) desorganização familiar; ( ) doenças físicas ou mentais; ( ) conflitos familiares; ( ) resistência; ( ) baixos recursos financeiros; ( ) outros: ( ) não há faltas frequentes.

4a visita ( ) desorganização familiar; ( ) doenças físicas ou mentais; ( ) conflitos familiares; ( ) resistência; ( ) baixos recursos financeiros; ( ) outros: ( ) não há faltas frequentes.

Tentativa de mobilizar o familiar p/ participação de grupos de orientação familiar 1a visita ( ) não demonstrou interesse em participar;

2a visita ( ) não demonstrou interesse em participar;

3a visita ( ) não demonstrou interesse em participar;

4a visita ( ) não demonstrou interesse em participar;

( ) demonstrou interesse; ( ) ausente; ( ) não se aplica

( ) demonstrou interesse; ( ) ausente; ( ) não se aplica

( ) demonstrou interesse; ( ) ausente; ( ) não se aplica

( ) demonstrou interesse; ( ) ausente; ( ) não se aplica

Fatores que dificultam a frequência do(s) familiar(es) aos atendimentos 1a visita ( ) desorganização familiar; ( ) trabalho; ( ) falta de implicação no cuidado do paciente; ( ) conflitos familiares; ( ) resistência; ( ) doenças físicas ou mentais; ( ) outros: ______________;

2a visita ( ) desorganização familiar; ( ) trabalho; ( ) falta de implicação no cuidado do paciente; ( ) conflitos familiares; ( ) resistência; ( ) doenças físicas ou mentais; ( ) outros: ______________;

3a visita ( ) desorganização familiar; ( ) trabalho; ( ) falta de implicação no cuidado do paciente; ( ) conflitos familiares; ( ) resistência; ( ) doenças físicas ou mentais; ( ) outros: ______________;

4a visita ( ) desorganização familiar; ( ) trabalho; ( ) falta de implicação no cuidado do paciente; ( ) conflitos familiares; ( ) resistência; ( ) doenças físicas ou mentais; ( ) outros: ______________;

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Suspeitas de abuso ou agressões físicas sofridas pelo paciente 1a visita ( ) cicatrizes; ( ) móveis e objetos quebrados; ( ) contato verbal agressivo (entre paciente e familiares); ( ) dificuldade em resolver conflitos; ( ) outros:______________ ( ) não há indícios.

2a visita ( ) cicatrizes; ( ) móveis e objetos quebrados; ( ) contato verbal agressivo (entre paciente e familiares); ( ) dificuldade em resolver conflitos; ( ) outros:______________ ( ) não há indícios.

3a visita ( ) cicatrizes; ( ) móveis e objetos quebrados; ( ) contato verbal agressivo (entre paciente e familiares); ( ) dificuldade em resolver conflitos; ( ) outros:______________ ( ) não há indícios.

4a visita ( ) cicatrizes; ( ) móveis e objetos quebrados; ( ) contato verbal agressivo (entre paciente e familiares); ( ) dificuldade em resolver conflitos; ( ) outros:______________ ( ) não há indícios.

Suspeitas de abuso ou agressões físicas provocadas pelo paciente nos familiares 1a visita ( ) cicatrizes; ( ) móveis e objetos quebrados; ( ) contato verbal agressivo (entre paciente e familiares); ( ) dificuldade em resolver conflitos; ( ) outros:______________ ( ) não há indícios.

2a visita ( ) cicatrizes; ( ) móveis e objetos quebrados; ( ) contato verbal agressivo (entre paciente e familiares); ( ) dificuldade em resolver conflitos; ( ) outros:______________ ( ) não há indícios.

3a visita ( ) cicatrizes; ( ) móveis e objetos quebrados; ( ) contato verbal agressivo (entre paciente e familiares); ( ) dificuldade em resolver conflitos; ( ) outros:______________ ( ) não há indícios.

4a visita ( ) cicatrizes; ( ) móveis e objetos quebrados; ( ) contato verbal agressivo (entre paciente e familiares); ( ) dificuldade em resolver conflitos; ( ) outros:______________ ( ) não há indícios.

Informações adicionais Agendamentos para o paciente 1ª visita Médico: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Psicológico: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Atend. grupo: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Outros (especifique) __________________________: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) sem encaminhamento

2ª visita Médico: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Psicológico: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Atend. grupo: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Outros (especifique) __________________________: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) sem encaminhamento

3ª visita Médico: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Psicológico: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Atend. grupo: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Outros (especifique) __________________________: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) sem encaminhamento

4ª visita Médico: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Psicológico: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Atend. grupo: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Outros (especifique) __________________________: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) sem encaminhamento

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Agendamentos para o(s) familiar(es) 1ª visita Gpo de orient. familiar compareceu: ( ) sim ( ) não ( s/ enc. Outros (especifique) ______________: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) sem encaminhamento w 3ª visita Médico: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Psicológico: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Atend. grupo: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Outros (especifique) __________________________: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) sem encaminhamento

)

2ª visita Gpo de orient. familiar compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ enc. Outros (especifique) ______________: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) sem encaminhamento 4ª visita Médico: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Psicológico: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Atend. grupo: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) s/ encaminhamento Outros (especifique) __________________________: compareceu: ( ) sim ( ) não ( ) sem encaminhamento

Planta geral da casa

Mapa geral da vizinhança: verificar, nas proximidades da residência, a existência de: Serviços (escola/creche, posto de saúde, banco, etc.) ______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________________________________________ Locais de risco (bar, boteco, casa de amigo que possui bebida, etc.) ___________________________________________________________________________________________________________________________ _________________________________________________________ Evolução clínica e observações gerais ___________________________________________________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________________________________________________________ _______________________________________________________________________________________________

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Belo Horizonte 2015 Grรกfica O Lutador 380


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