Revista do Museu de Arte Sacra de São Paulo
Vol.02 / 2020
1
2
Uma revista de divulgação científica que se apresenta como espaço para os que desejam debater sobre arte, especialmente, sobre arte e transcendência, buscando a interação entre públicos diversos, com os mais variados conhecimentos destes universos culturais e suas complexas relações.
Revista semestral do Museu de Arte Sacra de São Paulo e do IPAC - Instituto Paulista de Arte e Cultura, em parceria com Culturarte - Pensamento, cultura e linguagens. Volume nº 2 - 2020 ISSN: 2565-8763
Secretaria de Cultura e Economia Criativa
3
Palavras do Diretor C
om alegria estamos publicando o nº 2 da Revista Piratininga do Museu de Arte Sacra de São Paulo. Se por um lado a procura por exemplares do nº 1 nos fez perceber que a tiragem foi aquém da demanda, por outro estamos limitados pelo custo da impressão, a fazer frente a uma despesa muito mais elevada do que nos permite nosso orçamento. Assim visando resolver as duas questões, e de certa maneira utilizar uma comunicação que tem cada vez um maior número de adeptos, julgamos ser oportuno publicá-la na forma digital que diminuirá custo e possibilitará que através o site do MAS inúmeros interessados possam ter acesso às matérias desta edição.
“servir, educar e prover cultura para todos”
Usufruam pois.
PIRATININGA - REVISTA DO MUSEU DE ARTE SACRA DE SÃO PAULO
MUSEU DE ARTE SACRA DE SÃO PAULO
ISSN: 2565-8763
Diretor de Planejamento e Gestão: Luiz Henrique Marcon Neves
Diretor Editorial: José Carlos Marçal de Barros Diretor Financeiro: Luiz Henrique Marcon Neves
Diretor Executivo: José Carlos Marçal de Barros Museóloga: Beatriz Augusta Corrêa da Cruz
Curadoria Editorial: José Luís Landeira
IPAC - INSTITUTO PAULISTA DE ARTE E CULTURA
Produção: Júlia O. Gomes
Diretor Executivo: José Carlos Marçal de Barros
Revisor: Pedro Paulo Sena Madureira
Diretor Financeiro: Luiz Henrique Marcon Neves
Colaboradores: Mary Del Priori, Christian Mascarenhas, Beatriz Augusta Corrêa da Cruz, Ilza Oliveira de Almeida, Marcos Horácio Gomes Dias, Vanessa Bortulucce, Sônia Lima Medeiros, Plinio Freire Gomes, José Luís Landeira, Lidice Meyer Pinto Ribeiro, José Cordeiro, Luciana Amendola Imbriani Kreidel, Hugo J. Allen, Cristiane Maria Rebello Nascimento, Jacqueline Della Barba, Rafael Schunk, Luiz Eduardo Baronto, Abel Xavier
4
Desejamos dedicar este número, como uma homenagem, ao tão querido Prof. Renato Brolezzi que tão cedo nos deixou.
CULTURARTE – PENSAMENTO, CULTURA E LINGUAGENS Diretores: José Luís Landeira / landeira@sapo.pt Marcos Horácio Gomes Dias / mhgdias@uol.com.br
Editorial Piratininga, em seu segundo número, avança em seu propósito de aprofundar conhecimentos e trajetórias naqueles que apreciam Arte. De modo especial, emerge em Piratininga a Arte Sacra, mas ainda mais, a transcendência da Arte, em suas muitas facetas, em suas diversas realidades e manifestações. Este número dois celebra os cinquenta anos do Museu de Arte Sacra de São Paulo, instituição que se comprometeu, desde o seu início, em colecionar, preservar e divulgar a Arte Sacra brasileira, e, de modo muito especial, a paulista. Seus esforços se tem manifestado ao longo dos anos em variados modos e fortaleceram o encontro do indivíduo com o mundo da Arte, na sua relação com a sociedade, a cultura, a história, a filosofia e, naturalmente, a transcendência. Por tudo isso, essa instituição tem granjeado o reconhecido mérito de excelência. A Arte é o constante convite à humildade: nela, somos motivados ao diálogo com o outro, naquilo que esse outro nos propõe e que, por vezes, nos desafia. O convite é prenhe de possibilidades, pois nos motiva a sermos também, de algum modo, co-autores, na medida em que produzimos sentido a partir daquela obra que ganha vida com o nosso olhar. E o sentido é um trabalho de criação. Como pode ser humilde aquele que foi convidado a ser co-autor de uma obra de arte? Porque se trata de um exercício de autoria que está limitado pela própria obra, pelo próprio movimento que o artista ali propôs. Então, entre os jogos de elaborar sentidos e de criar as impressões e diante da história da obra de arte, somos atravessados pelos conhecimentos, pelos olhares dos outros que nos motivam e nos ajudam a aguçar nossos olhos.
O espírito inquieto do museu tem permitido construir um forte setor pedagógico, no qual funcionam cursos livres sobre os mais variados temas associados ao campo da Arte. Exposições promovem o diálogo entre o conceito de Arte Sacra e a Sacralidade da Arte. Mantendo-se antenado com o desenvolvimento tecnológico, o museu tem pensado na acessibilidade e na fruição das obras de arte por deficientes visuais e auditivos, bem como na possibilidade de aproximar-se mais das pessoas, por meio da produção de réplicas das obras do acervo do museu e que conservam toda as características das originais e que se propõem a viajar itinerantemente. A lista sobre como o Museu de Arte Sacra de São Paulo se insere na sociedade e no futuro é longa. Nela se insere também Piratininga, que tem muito orgulho de ser a revista do Museu de Arte Sacra de São Paulo, uma publicação que se propõe a aguçar o olhar daqueles que são co-autores da Arte que inquieta o MAS-SP ao longo de seus cinquenta anos.
5
O Museu de Arte Sacra de SĂŁo Paulo comemora, em 2020, seus 50 anos! Acompanhe nosso site e redes sociais para ficar sabendo das novidades.
6
Sumário Dossiê: Cinquenta Anos de Mas-Sp 6. “Não Toquem no Meu Passado” 10. Dom Duarte Leopoldo e Silva, o Museu da Cúria e a Preservação da Arte Sacra em São Paulo 16. Arte Sacra para Ver e Sentir 20. Viagem à Alemanha 24. Arte Tumular: “Imagens de uma Saudade” 28. Nota de Óbito - Professor Brolezzi
Outros Olhares 30. A Natureza e o Sagrado: Ensaio Fotopoético 38. Violência e Poder: A Lição dos Antigos Persas 42. Essa Figura, O Diabo 46. A Formação de um Protestantismo Rural no Brasil 52. O Manto e a Iconografia da Imagem de Nossa Senhora Aparecida
Literatura 56. Misticismo no Heavy Metal
Campos da Arte 64. Arte porque Sim 68. Em Foco 70. Grafia e Antigrafia nos Desenhos das Idades do Mundo, por Francisco de Holanda, Pintor e Tratadista Português do XVI 76. Retábulos de Santo Amaro – A Difícil Trajetória do Patrimônio Sacro de São Paulo 80. Linha do Tempo da Imaginaria Paulista e Brasileira 82. A Cripta da Sé - Espaço de Memória
Arte na Sala de Aula 86. O Teatro, o Jogo e a Educação Escolar
7
“Não Toquem no meu Passado”
Imagens - Acervo do Museu: Iran Monteiro
8
Dossiê: 50 anos de MAS - SP Entre a memória e o cotidiano, os museus são parte da luta contra o esquecimento e a morte, são espaço de evocação de sentimentos e permitem que nos conheçamos melhor, enraizando-nos enquanto indivíduos e sociedade. Mary Del Priori 1
Doutora em História Social (Universidade de São Paulo-USP), com pós-doutorado em Ciências Sociais na École des Hautes Études de Paris, é ganhadora do prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro.
1
9
A memória: a falta e o excesso
A memória e a evocação de sentimentos
“Memória” é a faculdade de lembrar e conservar estados de consciência passados. Para santo Agostinho, a coisa começa com uma frase : « eu me lembro de mim mesmo ». Estamos perdendo a memória. Sabemos que a memória é vida. Vida sempre carregada pelos grupos humanos e, nesse sentido, em permanente evolução. Se a história é a reconstrução incompleta do que “não é mais”, a memória é um fenômeno sempre atual, enraizado num gesto, num perfume, num som.
Apesar dos desastres e do descaso governamental, um movimento comemorativo parece nos envolver: centenários, novas rotas turísticas, festas e manifestações locais enchem a agenda. Essa « comemoratividade » caminha ao lado de um fenômeno sem precedentes. Em todas as regiões se multiplicam os museus, conserva-se todo o tipo de objeto, recolhe-se um documento aos arquivos. Destruir passou a ser proibido.
Lugares de memória, por sua vez, são aqueles onde se cruzam as memórias pessoais e familiares com as da nação: uma bandeira, um monumento, uma igreja, uma imagem. Reconstrói-se, graças a eles, a representação que um povo faz de si mesmo. Diferentes de nós, que ainda não sabemos guardar nossa memória, há sociedades que não sabem mais o que conservar. Elas acabam embarcando num processo de acumulação pela acumulação. É o que se vê em certos museus americanos onde a obsessão de consumo se traduz no acúmulo de peças díspares. More and more é o lema de alguns deles, onde a figura de cera de Leonardo da Vinci ombreia com o Mickey. Onde se mistura a ficção e o real. Esta bulimia de acumulação sem sentido desemboca nos parques temáticos, nas Disneys da vida...Estamos longe das teses que nos ensinam a desenvolver afeto por aquilo que é herança do passado. Esquecemos aí o lema “quanto melhor conheço, mais gosto”.
10
Luta-se para conservar não apenas os grandes monumentos, mas testemunhos antes não valorizados de nosso passado: receitas de bolo, flores de papel, um ponto de bordado. O lema devia ser “não toquem no meu passado”. O ser humano tem o instinto de colecionismo. Todos temos uma “canastra da Emília dentro de nós”, canastra, diga-se, capaz de permitir a evocação de sentimentos. Canastra que é parte da luta contra o esquecimento e a morte. Nosso patrimônio – ou o que sobrou dele - dá lógica e sentido a tudo isso. O Museu de Arte Sacra de São Paulo é lugar de memória viva. O MAS-SP têm assumido a responsabilidade de preservar memórias que traduzem a transcendência do povo brasileiro. No momento em que faz 50 anos, temos bons motivos para celebrar esse acontecimento e fazê-lo, ele mesmo, se tornar memorável.
11
Dom Duarte Leopoldo e Silva,o Museu da Cúria e a Preservação da Arte Sacra em São Paulo
Imagens - Acervo do Museu e Iran Monteiro
12
Dossiê: 50 anos de MAS - SP Neste artigo será abordado um aspecto do acervo do Museu de Arte Sacra de São Paulo (MAS-SP) que se pode chamar de “colecionismo institucional” de arte sacra promovido de modo pioneiro no Brasil por dom Duarte Leopoldo e Silva, primeiro arcebispo paulista. A história da instituição deste museu e da formação de sua coleção está intimamente ligada à figura do arcebispo que foi um grande divisor de águas na história da Igreja em São Paulo. Christian Mascarenhas 1
Mestrando em História da Arte pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-UNICAMP) e especialista em Curadoria em Arte pelo Centro Universitário SENAC-SP.
1
13
Como é bem sabido, o tema da produção artística e
sua preservação está indissoluvelmente ligado ao discurso e ao entendimento histórico da sociedade. Em São Paulo, a vanguarda das instituições museológicas cabe no aspecto historiográfico ao Museu Paulista (1895) e, no tocante à produção artística, à Pinacoteca (1905). Dentro desse contexto, a iniciativa isolada de criação de um museu de arte sacra em São Paulo surge como pioneira no país, graças ao trabalho visionário empreendido por dom Duarte durante as quatro primeiras décadas do século passado, quando esteve à frente do governo da Arquidiocese de São Paulo (1907-1938). Entender um pouco quem foi essa figura antes de alcançar o episcopado, pode nos ajudar a compreender melhor suas decisões e feitos como bispo através de algumas pistas. Nascido em Taubaté em 1867, Duarte Leopoldo e Silva chegou a iniciar seus estudos na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, mas abandonou o curso. Após isso, acabou optando por Farmácia na Faculdade Nacional de Medicina no Rio de Janeiro, curso do qual, após um período de doença, também resolveu desistir. Voltou então para a casa dos pais, na época em Caçapava, onde decidiu ingressar no seminário. Anos mais tarde, foi nomeado bispo de Curitiba e, dois anos depois, em 1907, escolhido para ser bispo de São Paulo, quando do falecimento do bispo paulista num naufrágio. Famoso por sua erudição, foi também professor e um escritor habilidoso e reconhecido em sua época. Já na primeira década do século XX, aproximadamente a partir de 1908, dom Duarte começou a reunir, movido por seu impulso de colecionador e ad-
14
mirador de arte, as peças sacras das antigas igrejas e capelas paulistas, da capital e do interior do Estado, bem como de outros pontos do Brasil, evitando que sumissem ou fossem destruídas frente ao avanço do “progresso” da época e salvaguardando para a posteridade esse precioso acervo. Seus interesses ficam ainda mais visíveis ao lembrar que ele foi também membro ativo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, de cuja sucursal paulista chegou a ser inclusive vice-presidente. Ainda não foi possível datar com exatidão quando dom Duarte iniciou a recolher e resguardar peças e obras de arte. No entanto, através das políticas de preservação dos bens da Igreja adotadas pelo prelado de São Paulo antes da demolição da antiga Sé paulistana em 1911, já fica evidente o desejo embrionário da criação de uma coleção. Para compreender esse movimento, é importante lembrar que ele foi o “idealizador” da nova catedral. Na verdade, a ideia já existia, mas foi dom Duarte quem a materializou na atual construção. Desde meados do século XIX já havia a ideia da necessidade de uma nova catedral, mas o primeiro passo concreto foi dado apenas em 1912, quando o então arcebispo convoca uma reunião com as pessoas mais influentes da sociedade paulista e cria a comissão pró-catedral (MATTOS, 1986, p. 41), que leva a cabo a construção do novo templo. Naquele momento, dom Duarte determinou a distribuição das obras de arte e objetos sacros da igreja a ser demolida por diversas paróquias da capital, com o intuito de reuni-los posteriormente em uma coleção
unificada, juntamente com as peças que havia recolhido de outras igrejas e capelas. Assim, ele pode ser considerado o primeiro realizador de um museu de arte sacra no Brasil, dando a São Paulo um valioso conjunto, hoje comparável a poucos no país. O primeiro edifício a abrigar a coleção de forma unificada e institucional foi o prédio da cúria, situado na época à praça Clóvis Bevilacqua, no bairro da Sé. Inicialmente neste edifício e, posteriormente num prédio anexo construído ao lado para esse fim, funcionou por meio século o Museu da Cúria Metropolitana ou Museu de Arte Sacra do Arcebispado, criado pelo prelado paulista como uma dependência do Arquivo da Cúria e administrado à época pelo Comendador Francisco de Sales Collet e Silva (SOUZA, 2004, p. 434). Lá, todas as peças foram reunidas num espaço seguro, porém muito pequeno, o que não facilitava sua visitação pública, fato inclusive atEstado por Mário de Andrade numa de suas cartas ao SPHAN após visita ao museu em 19432, já cinco anos após a morte de dom Duarte. O museu que visava salvaguardar artefatos de uso religioso, litúrgico e civil foi constituído para preservar parte importante da memória histórica e artística da cidade, do Estado e do próprio país por meio da formação de um rico acervo constituído de arquitetura, mobiliário, pinturas e desenhos, imaginária, prataria e ourivesaria, indumentária e alfaias, livros e documentos raros, presépios e numismática procedentes de São Paulo e diversas partes do Brasil e de outros países. A atual instituição, hoje chamada de Museu de Arte Sacra de São Paulo, foi criada em 1969 por meio de um convênio celebrado entre o Governo do Estado e a Mitra Arquidiocesana de São Paulo e é sediada no Convento da Luz, um histórico edifício setecentista construído em taipa de pilão que anteriormente já abrigava o Mosteiro das Irmãs Concepcionistas, no bairro da Luz em São Paulo. A transposição do acervo para o Convento da Luz é um importante evento posterior ao falecimento de dom Duarte, mas consequência de seus esforços. Testemunho da São Paulo colonial, o edifício, assim como o acervo recolhido por dom Duarte, é um raro exemplar de preservação do patrimônio histórico frente ao crescimento da cidade.
As palavras do professor Benedito Lima de Toledo são bem expressivas no que se refere ao valor histórico dessa obra ímpar da arquitetura paulista: “O Mosteiro da Luz é o mais eloquente documento da arquitetura colonial que sobreviveu em São Paulo, e sobreviveu com toda a sua integridade. Quem conhece a permanente mutação desta cidade constata que este fato é realmente extraordinário, para não dizer um milagre” (BONANNI; SCHMIDT, 1987, p. 3738). A partir dessa fala, destaca-se que não foi por acaso a escolha daquele edifício para abrigar o acervo de arte sacra ‒ com a migração para o Mosteiro da Luz, essas peças são devolvidas a um edifício que pertence à memória do passado colonial. Mais que isso, o que antes era patrimônio exclusivo da cúria, passa a “pertencer” à cidade3. Cabe, neste ponto, ampliar rapidamente este discurso para a história da cidade. A escolha feita no final da década de 1960 a respeito da transferência das coleções do prédio da cúria para o Mosteiro da Luz, transformando-o em um museu, foi uma decisão importante também do ponto de vista da preservação daquele edifício. Esse viés estratégico assumido dentro da história da preservação paulista influenciou ainda diretamente a própria paisagem de São Paulo, pois o edifício colonial do convento é restaurado com o intuito de resgatar seus aspectos originais, removendo descaracterizações sofridas com o passar dos séculos, e o complexo volta a ser um organismo vivo na cidade, retomando seu significado histórico. A decisão de recolher aquelas peças e criar um museu de tipologia sacra e religiosa, um movimento inédito no Brasil, constituiu um marco importante na cultura do início do século passado, mostrando uma mudança de atitude em relação ao tema da conservação do patrimônio sacro que merece ser estudada por seu pioneirismo. Através de um pensamento original nos campos do colecionismo e da preservação, o projeto do prelado paulista foi precursor e vai ao encontro da reflexão moderna sobre o que deveria ou não ser preservado da destruição e do esquecimento. Por muito tempo, a própria Igreja (através do clero) demoliu os edifícios coloniais para reconstruí-los numa forma considerada mais adequada às exigências modernas, ao “gosto” moderno, por vezes negli15
genciando seu acervo. Com a migração do museu para o Mosteiro da Luz, essas peças são devolvidas a um edifício que pertence à memória do passado colonial. Nas atitudes de dom Duarte, pode-se ver um projeto inovador para a época e coerente com a modernização da cidade, com a crescente metrópole. Assim, a história da formação dessa coleção abre caminho para a reflexão sobre a história da preservação durante o processo de modernização e a relação desse patrimônio sacro com a própria paisagem paulista.
2
Arquivo IEB-USP, Mário de Andrade, MA-SPHAN-151.
3 Do ponto de vista da preservação é interessante perceber que a partir de 1969 aquele patrimônio torna-se responsabilidade também do governo estadual, que proporciona a salvaguarda e ampliação do acervo.
Referências bibliográficas BONANNI, Hugo; SCHMIDT, Carlos Von (coordenadores). Museu de Arte Sacra, Mosteiro da Luz. São Paulo: Ed. Artes, 1987. DANTAS, Arruda. dom Duarte Leopoldo. SP: Sociedade Impressora Pannartz, 1974. MATTOS, Mons. Sylvio de Moraes. A igreja matriz da Vila de São Paulo e a velha Sé. São Paulo: Cúria Metropolitana de São Paulo, 1986. SOUZA, Ney de (org.). Catolicismo em São Paulo: 450 anos de presença da Igreja católica em São Paulo. 1554-2004. São Paulo: Paulinas, 2004.
16
17
Arte Sacra para Ver e Sentir
Imagens - Acervo do Museu: Iran Monteiro
18
Dossiê: 50 anos de MAS - SP A reprodução de obras pertencentes ao Museu, fazendo uso de tecnologia de ponta, permite organizar exposições itinerantes que tornam possível o primeiro contato de muitas pessoas com o acervo do museu e aproximando-as da cultura e da arte. Beatriz Augusta Correa da Cruz 1
1
Museóloga do Museu de Arte Sacra de São Paulo - MAS.
19
N
os seus cinquenta anos de história, o Museu de Arte Sacra de São Paulo (MAS-SP) tem se preocupado em tornar a arte acessível ao maior público possível. Numa época em que a comunicação e a difusão da cultura atingem níveis tecnológicos impensáveis há alguns anos, o museu, que tem sua origem ligada ao acervo coletado por dom Duarte Leopoldo e Silva no início do século passado, vem, nesta ocasião tão especial, utilizar-se deles para lançar uma exposição itinerante composta por reproduções de obras pertencentes ao seu acervo. Em um trabalho iniciado em 2018, sob a coordenação da direção do museu, foram selecionadas 75 obras, que foram escaneadas digitalmente, impressas em 3D em resina ABS (Acrinolitrila Butadieno Estireno) e policromadas manualmente, o que lhes assegurou que mantivessem as cores originais. Este trabalho, sob a direção da Professora Titina Corso, envolveu diversos técnicos e 35 colaboradores profissionais da área da área de preservação e conservação. As peças selecionadas representam as diversas tipologias que compõem o cervo da instituição. Assim, poderão ser vistas tanto a réplica da imponente “Nossa Senhora das Dores” do mestre Antonio da Silva Lisboa, o “Aleijadinho”, como das singelas e anônimas “Paulistinhas”. Não foram esquecidas, neste projeto, peças da coleção de numismática e de pinturas.
20
Em razão de suas características, a exposição não possui restrições para a sua exibição. Sem o ônus dos altos custos de seguro e transporte especializado, ela pode ser montada em qualquer espaço, e conta, principalmente, com recursos que pensam a acessibilidade: legendas em Braille, áudio guias e descrições na Linguagem Brasileira de Sinais. Foi adequada, tanto para cadeirantes, como para crianças ou idosos, além de dar ao deficiente visual a possibilidade de tocar todas as obras. Um filme institucional complementa a mostra, introduzindo o visitante no espaço que abriga o museu: o Mosteiro da Luz. O projeto inclui, ainda, a produção de material educativo para alunos e professores, além da realização de um curso de capacitação oferecido aos educadores locais. Sob o título “Arte Sacra para ver e sentir” a exposição estreou, em novembro passado, com curadoria de Mari Marino, ex-diretora do Museu de Arte Sacra, no Museu Municipal de Iguape, histórica cidade do litoral paulista. Até a conclusão deste artigo, a exposição recebeu um público de mais de 1.000 visitantes. Para o ano de 2020, está prevista a continuidade da itinerância por outras 12 cidades do interior do Estado de São Paulo, no intuito de cumprir a principal função de um museu: preservar e difundir a memória dos povos.
Prof.ª Titina Corso em restauração de réplica da obra “Santana Mestra”
Recorte da fachada do Museu Municipal de Iguape.
21
Viagem Ă Alemanha
Imagens- Acervo da autora
22
Dossiê: 50 anos de MAS - SP Acompanhamos aqui os registros fotográficos de um dos cursos in loco realizado em 2019 no Museu de Arte Sacra de São Paulo / MAS-SP Ilza Oliveira de Almeida 1
Graduada em Ciências Sociais pela Faculdade Farias Brito, Guarulho/SP, Voluntária do Museu de Arte Sacra de São Paulo.
1
23
O Museu de Arte Sacra (MAS), além de todas
as atividades que oferece na área da educação e da pesquisa, promove cursos in loco que permitem aos estudantes e pesquisadores o contato direto com arquivos, museus, templos e edifícios históricos. Essas possibilidades são momentos únicos de encontro entre todos aqueles que estão presentes para enriquecer seu repertório, continuar seus estudos e aumentar seus contatos. Em 2019 o MAS promoveu um curso na Alemanha com os professores: Drª. Vanessa Beatriz Bortulucce e Me. André Guimarães Rodrigo. A viagem teve como objetivo observar o patrimônio histórico e artístico do país passando por Dresden, Leipzig, Nuremberg e Berlim.O curso contou ainda com um conteúdo importante sobre a cultura erudita musical por meio de sessões de óperas, sinfonias e recitais em igrejas. O curso, promovido pelo MAS, possibilitou o encontro com os diversos períodos da história da Alemanha, além de promover um encontro mais íntimo com sua cultura por meio de sua produção musical. A cultura da Alemanha é diversa e é reconhecida por conta de suas inúmeras tradições, instituições e eventos. O país tem papel de destaque na história mundial e recebe o reconhecimento de Patrimônio Mundial, dado pela UNESCO, a várias cidades, monumentos e manifestações que são consideradas como patrimônio da cultura imaterial. Nossas imagens, aqui registradas, centram-se em duas cidades dessa viagem: Dresden e Leipzig e atestam a dinamicidade do museu que caminha para os seus próximos cinquenta anos de história.
24
25
Arte Tumular: “Imagens de uma Saudade�
Imagens - Arquivo da autora
26
Dossiê: 50 anos de MAS - SP Fazer a curadoria de uma exposição do Museu de Arte Sacra é um trabalho que exige profundo conhecimento, perícia e sensibilidade. As palavras de Vanessa Bortulucce, ao falar de seu trabalho como curadora da exposição Arte Tumular: “Imagens de uma Saudade”, revelam os pensamentos e sentimentos daquele que faz a curadoria e prepara o encontro do outro com a experiência estética. Marcos Horácio Gomes Dias 1
Doutor em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), é professor e curador de exposições do Museu de Arte Sacra de São Paulo.
1
27
V
anessa Bortulucce é professora e curadora do Museu de Arte Sacra de São Paulo. Tem uma longa formação pela UNICAMP: graduação em História, mestrado em História da Arte e da Cultura e doutoramento em História Social. Possui ainda pós-doutorado pelo Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP. No Museu de Arte Sacra de São Paulo (MAS), desenvolve cursos relacionados à Cultura de Massa (história em quadrinhos, análise das mídias eindústria cultural) e História da Cultura (história da Cor, estética do horror, arte tumular, história e análise dos símbolos). Esses temas possibilitaram visitas in loco com os estudantes, viagens internacionais e curadorias. Recentemente, foi curadora da exposição Arte Tumular: “Imagens de uma Saudade” que ficou exposta entre os dias 29 de setembro e 02 de novembro, exibindo trabalhos dos fotógrafos Luciana Fátima e Arlindo Gonçalves. A Arte Tumular reinterpreta e aproxima os opostos vida e morte. Na sua elaboração os mais diversos materiais como mármore, granito, ferro e bronze ganham viés artístico, cultural e museológico. Você trabalha com temas importantes e novos no campo da arte. Como curadora, qual é o seu maior desafio quando escolhe obras que retratam, de alguma maneira, a morte? R - Acho que o maior desafio que encontrei foi procurar realizar uma mostra onde as pessoas não tivessem medo de visitar, afinal, o tema da morte e do cemitério, está presente no senso comum de forma muito
28
negativa, mórbida. Existem pré concepções muito robustas no imaginário das pessoas, e eu queria que a mostra justamente pudesse romper um pouco com estas ideias, elasticizar o debate com morte, com a memória. Nãose trata de dizer quea morte é algo bom – seria absurdo -, mas de fazer as pessoas refletirem um pouco mais sobre a vida, e de modo menos engessado e estereotipado. Identificou problemas ao lidar com esse tema? R - Pessoalmente, nenhum. Tanto eu quanto os fotógrafos, Luciana e Arlindo, somos muito interessados pelo tema. O que foi um desafio para nós, e de certa forma, um pouco angustiante, foi não ter podido usar imagens dos cemitérios da cidade de São Paulo. A prefeitura não permite a divulgação das imagens. Então, tivemos um pouco de receio que o público achasse a mostra muito elitizada, pois só pudemos inserir fotografias realizadas em cemitérios fora do Brasil. Como foi sua interação com os fotógrafos participantes na preparação da sua última curadoria? R - Excelente. Luciana e Arlindo foram meus alunos no curso de Arte Tumular que ministrei no MAS em 2016 e 2019. Eu tive esta ideia de propor uma exposição sobre as fotos dos dois, que eu já conhecia e admirava; encantei-me com o olhar maravilhoso e sensível deles. Realizamos a escolha das obras juntos, eu queria que eles participassem disso. Sou curadora, não a artista. É absolutamente necessário ouvir o artista
Podemos identificar o tema da morte em outras obras que compõem o acervo do MAS que também nos poderiam suscitar essa mesma reflexão? R - Se eu levar esta questão às últimas consequências, poderia dizer que toda produção cultural é uma espécie de dança com a morte. O que não é um museu senão um apanhado, seguindo determinados critérios, de produções materiais que possuem significados que transcendem o tempo em que foram feitos? Para mim, tudo aquilo que é um repositório de memória é um diálogo com a transitoriedade da vida. Não consigo mais entrar num biblioteca sem entendê-la como uma espécie de cemitério: ali está o conhecimento de nossa espécie, de muitos que não estão mais entre nós. O MAS, com seu acervo que carrega as questões de devoção, de fé, de esperança e conforto, ressoa a sensibilidade, tão multifacetada, de indivíduos que depositaram seu tempo e suas dores na exaltação da fé. A arte sacra é uma arte que une os homens pela busca de um sentido. Passear pelos corredores do MAS é visitar este álbum de sensibilidades, de construções de sentidos. Com sua experiência, como você explicaria o papel do curador de uma exposição? R - Sempre fico um pouco desconfortável quando faço curadoria, pois tomo todo o cuidado para que o curador não apareça demais. Sua visibilidade deve ser controlada. O curador não é o protagonista, não é o artista, ele não é a estrela principal. Não deve ser mais importante que o objeto artístico. Tenho pavor de exposições onde as pessoas só vão por causa do curador famoso que aparece nas colunas sociais. Ele é uma figura importante, justamente porque seu trabalho é percebido de forma suave, branda, quase indelével.
29
Obrigado por tudo, Querido Professor Renato Brolezzi Nosso querido Professor Renato Brolezzi nos dei-
xou no dia 17 de novembro de 2019. Era professor de História da Arte, mas ensinava também sobre a civilização ocidental, sua cultura e sua história. Formado em Ciências Sociais e especializado em História da Arte pela Unicamp, o professor lecionou em diversas instituições, como o Masp e a Facamp, e se tornou professor do MAS em março de 2016. Lotava nosso auditório com suas concorridas palestras sobre História da Arte e levou nossos alunos para inigualáveis cursos in loco em Florença e em Paris. Seu falecimento súbito deixou em choque seus colegas, amigos, alunos, familiares e todos aqueles que tiveram contato com sua gentileza imensa, com sua educação e com sua inesgotável generosidade, que deveria passar a ser a definição do termo nos dicionários. O professor Renato encantava seus alunos com seu entusiasmo e seu imenso conhecimento. Sua profunda erudição vinha embalada em um modo de falar leve e bem-humorado. Vocação rara de professor que sabia nos enfeitiçar e nos levar a querer saber mais, a assistir a mais aulas, a ler mais. Com ele, descobrimos que estudar é uma necessidade, pois adquirir repertório e conhecer o que nos precedeu é fundamental para que possamos refletir e fazer conexões a respeito do que nos rodeia. Como o Miguilim de Guimarães Rosa, sua rápida passagem entre nós foi iluminadora. Seus ensinamentos nos fizeram pensar sobre a vida, sobre a civilização, sobre a sociedade e sobre as pessoas. Com ele, aprendemos que a obra de arte “não serve para nada a não ser nos fazer perder tempo com ela”, algo que ele nos dizia repetidamente. 30 28
Aprendemos que estudar a tradição é fundamental porque ninguém cria a partir do nada, de modo que a verdadeira “inovação” é aquela que, partindo do que já existe, é capaz de alterá-lo de tal maneira que a nova forma passa a surpreender quem a vê. E, acima de tudo, que a consciência humana é o que nos diferencia das demais espécies; pois somos a única espécie que se indaga sobre o sentido da vida (sobre o que somos, de onde viemos e para onde vamos) e que anseia pela eternidade, recusando-se a morrer; que a cultura e a linguagem são o barulho feito pela humanidade para responder a todas essas questões sem resposta, sobre as quais falamos continuamente, em uma grande psicanálise coletiva (como diria Freud). Querido professor Renato, somos gratos por sua vida, por sua dedicação, por sua obra e por sua generosidade.
Fotografia: Gisele Bertinato.
31
A Natureza e o Sagrado: Ensaio FotopoĂŠtico
Imagens: Acervo da autora
32
Outros Olhares Gosto de pensar que podemos sentir o sagrado em tudo que nos rodeia. Pode ser nos fenômenos da natureza, nos mistérios do céu estrelado, nos animais, em lindas paisagens. O mundo está impregnado de sacralidade. Sônia Lima Medeiros 1
1 Assistente social. Titulada em Gerontologia pela SBGG. Doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo - USP. Pesquisadora científica. Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia. Apaixonada por arte.
33
No livro O sagrado e o profano, de Mircea Eliade,
há uma frase que desperta a atenção: “Tudo que está aqui em baixo é o reflexo de ideias perfeitas, ideias divinas e nós deveríamos saber ler as coisas que estão aqui em baixo, pois, o universo é como se fosse um grande livro para ser lido pelo observador capacitado que veria os múltiplos aspectos do divino, vendo aspectos do Uno manifestado no meio do múltiplo”. A relação do humano com o sagrado é peculiar: varia ao longo dos milênios e de pessoa para pessoa. Diria que é uma relação muito íntima. Gosto de pensar que podemos sentir o sagrado em tudo que nos rodeia. Pode ser nos fenômenos da natureza, nos mistérios do céu estrelado, nos animais, em lindas paisagens. O mundo está impregnado de sacralidade. Contemplar a natureza é contemplar inúmeros ângulos do sagrado. É como se pudésse-
mos olhar para as coisas e ver sua essência. Um desses aspectos, por exemplo, é olhar para a natureza e entendê-la como nossa mãe. A natureza é símbolo, entre outras coisas, da maternidade. Segundo Mircea Eliade, podemos ver nos aspectos sobrenaturais da natureza as representações de Deus. Apreciar cenários naturais é uma das minhas formas de reverenciar o sagrado. Fotografá-los e compartilhar as fotos é como uma comunhão do divino com os parceiros nessa caminhada de vida. O sagrado é o espaço de amizade – e postura de silenciosa veneração – para com a vida... E para consigo mesmo! A proposta deste artigo é trazer, ao nosso leitor, uma possibilidade de pensar o sagrado através de fotos da natureza (que venho fazendo em perambulações pelo mundo) e de poemas de Manoel de Barros.
Monument Valley, Utah. EUA
O mundo meu é pequeno, Senhor. Tem um rio e um pouco de árvores. [...] Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os besouros pensam que estão no incêndio. De tarde um velho tocará sua flauta para inverter os ocasos. 34
Grand Canyon, Rio Colorado, Arizona. EUA
Com pedaços de mim eu monto um ser atônito. Prefiro as linhas tortas, como Deus.
Grand Teton, Wyomming. USA
Este é um caderno de haver frases nele. Um rio passa perto. Estou sentado no barranco do rio. [...] Na verdade, não sei se são as patas da formiga que tentam abraçar o sol Ou se são minhas frases que desejam fazer esse trabalho. 35
Utah. Usa
Bryce Canyon, Utah. EUA
Difícil fotografar o silêncio. Entretanto tentei. [...] Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado. Fotografei o perfume.
FORMIGAS Não precisei de ler São Paulo, Santo Agostinho, São Jerônimo, nem Tomás de Aquino, nem São Francisco de Assis – Para chegar a Deus. Formigas me mostram Ele. (Eu tenho doutorado em formigas.)
36
Horseshoe Bend, Arizona. USA
Antelope Canyon, Arizona. USA
A poesia está guardada nas palavras – é tudo que eu sei. Meu fado é o de não saber quase tudo. Sobre o nada eu tenho profundidades.
Antelope Canyon, Arizona. USA Desde o começo do mundo água e chão se amam e se encontram amorosamente e se fecundam. Nascem peixes para habitar os rios. E nascem pássaros para habitar as árvores. As águas são a epifania da criação.
37
Hot Springs, Yellowstone, Wyoming.USA
Eu gosto do absurdo divino das imagens. Sou beato de ouvir a prosa dos rios.
38
Cursos Já saiu a lista de cursos que o MAS preparou para o primeiro semestre de 2020! Ensino de excelência, professores acadêmicos e especialistas do Métier. Não fique de fora!
Curso in loco - Inhotim
A arte contemporânea brasileira a partir do acervo do Instituto Inhotim Ministrado pela Profª Drª Vanessa Beatriz Bortulucce Datas: 09, 10 e 11 de julho de 2020. Carga horária: 30 horas
Curso prático
Conservação e restauração de retábulos e oratórios: Conceitos artísticos, físicos e científicos. Ministrado pela Professora Especialista Titina Corso. 1 aula por semana – todas as quintas-feiras. A partir do dia 05 de março. Carga horária: 100 horas
Curso livre
A morte e suas imagens Ministrado pela Professora Vanessa Beatriz Bortulucce 1 aula por semana – todas as sextas-feiras. A partir do dia 17 de abril. Carga horária: 24 horas
Curso livre
As conquistas de Alexandre Ministrado pelo Professor Plinio Freire Gomes Datas: 24, 31 de março e 07 de abril de 2020 Carga horária: 06 horas Para mais cursos visite nosso site. A programação pode sofrer alteraçõesa Inscrições e Informações: mfatima@museuartesacra.org.br / 11 5627.5393 / www.museuartesacra.org.br Museu de Arte Sacra de São Paulo, Avenida Tiradentes, 676 - Metrô Tiradentes, São Paulo/SP
39
Violência e Poder: A Lição dos Antigos Persas
40
Outros Olhares O uso da violência como propaganda política é invenção antiga. Egípcios, assírios e babilônicos orgulhavam-se de ostentar o rastro de destruição deixado por seus exércitos. Os persas, em contrapartida, criaram um conceito inovador de poder. Ao invés da força bruta, sua arte e seu cerimonial colocavam ênfase na ideia de harmonia e de respeito recíproco entre vencidos e vencedores. Não por acaso, a hegemonia que exerceram sobre o mundo antigo se traduziu na admirável experiência de um império multiétnico. Plinio Freire Gomes 1
1 Mestre em história pela USP. Estudou Renascimento em Florença e viveu seis anos Oriente Médio, onde pesquisou arte e cultura islâmica.
41
Duas denominações confundem muitas pessoas –
Irã e Pérsia. A primeira invoca religiosos carrancudos, mulheres sob véus, guerras do petróleo e multidões raivosas queimando bandeiras aos gritos de “morte a... (sabe-se lá o quê)”. Já a segunda veicula ideias de natureza distinta: tendas, tapetes, bazares, jardins, pavilhões, antigas realezas e relevos com figuras enfileiradas. O fato é que Irã e Pérsia designam a mesma nação. Estamos falando de um povo hoje associado a complicados impasses geopolíticos e que carrega consigo o patrimônio de ao menos vinte e cinco séculos de civilização. Por volta de 559 a.C., um líder tribal chamado Ciro (ou Kurosh, na sua língua nativa) prevaleceu sobre as demais tribos da região e iniciou um ciclo de conquistas destinado a redesenhar o mapa do mundo. Sua primeira meta foi subjugar o reino da Lídia, na Turquia atual, tomando em possesso o legendário tesouro de Creso. Abarcou também a Fenícia, a Judeia e a Mesopotâmia, criando uma enorme entidade política que se estendia desde as cidades gregas do mar Egeu às margens do rio Indo – o maior império já visto até então. Esta nova potência era herdeira de outras que a precederam, o Egito, a Assíria, a Babilônia. Dos impérios de outrora, a Pérsia importara a escrita, a estrutura burocrática, o gosto pela monumentalidade. O próprio cerimonial de corte seguia convenções perfeitamente consolidadas, como o gesto de colocar a mão diante da boca na presença do imperador. Ainda assim, tudo leva a crer que Ciro aspirava governar de forma inovadora. Antes de sua entrada em cena, os monarcas costumavam celebrar as próprias glórias militares com a máxima crueza. Era um mundo, aquele, governado por terríveis deuses guerreiros; e seus protegidos
42
na terra, os reis, tinham o direito (melhor, o dever) de aniquilar os próprios inimigos. Por volta de 690 a.C., um bloco de argila com seis lados foi grafado em cuneiforme com as seguintes palavras: “Senaqueribe, grande rei, rei da Assíria, rei dos quatro cantos do mundo, pastor prudente, favorito dos grandes deuses [...] fogo que consome aqueles que não se submetem, raio que fulmina os perversos. O deus Assur [...] tornou minhas armas poderosas, submeteu todos os reis a meus pés; e reis potentes temem minha guerra.” O documento, conhecido como “Prisma de Senaqueribe”, prossegue descrevendo o castigo infringido às cidades que ousaram resistir ao rei dos assírios: “eu as assediei, eu as conquistei, eu me apossei de seus despojos”. O caso mais famoso é o de Lakhish, importante centro urbano do Reino de Judá cuja destruição foi registrada numa série de relevos esculpidos no palácio de Nínive. Não é difícil imaginar que o artista tenha participado em primeira pessoa do massacre. Porque as cenas, hoje expostas no British Museum, são surpreendentemente detalhadas e violentas. Em determinado ponto, reconhecemos três prisioneiros nus sofrendo empalamento; em outro, testemunhamos uma degola no exato instante em que a lâmina rompe os ligamentos do pescoço e a cabeça da vítima pende horrendamente para lado. Enquanto isso, a população civil era submetida ao degredo, como sugere a imagem de um grupo familiar, a mais comovente do conjunto: o pai se afasta carregando os pertences nas costas; os filhos, aterrorizados, tentam se agarrar como podem às pernas daquele homem para não se perderem na multidão. Não era diversa a fórmula adotada entre os egípcios para denotar o poder dos faraós. A imagem mais re-
presentativa da realeza – o “retrato oficial”, por assim dizer – consistia no agenciamento entre duas figuras: o faraó de pé subjugando um inimigo derrotado de joelhos. O monarca segura com uma mão a vítima pelos cabelos, enquanto a outra ergue um porrete na iminência de desferir o golpe mortal. Violência ostentada, celebrada, legitimada: eis o que Ciro deixou para trás. Cento e cinquenta anos se passaram desde o “Prisma de Senaqueribe” e outro objeto de argila, desta vez de forma cilíndrica, também foi coberto de caracteres cuneiformes. O texto, escrito em nome de Ciro, se dirigia aos habitantes da Babilônia que ele acabara de conquistar. O preâmbulo é bastante familiar: “Eu sou Ciro, grande rei, rei legítimo, rei da Babilônia, rei da Suméria e da Acádia, rei dos quatro cantos do mundo”. Na sequência, porém, lemos algo completamente inesperado: “Meu grande exército marchou em paz [...] Não permiti que pessoas maléficas atemorizassem parte alguma da Suméria e da Acádia. Almejei o bem-estar da cidade e de todos seus centros de culto. Aos cidadãos da Babilônia, ao invés de impor um jugo não apropriado aos olhos de Deus, dei alívio a seu cansaço, fiz soltar suas correntes.” O que estas linhas consagram não são garantias aos vencedores, e sim aos vencidos. Quais garantias? Seria anacrônico pensar que o “Cilindro de Ciro”, como ficou conhecido, representasse uma espécie de carta magna, de constituição. Todavia, ao invés da violência, o documento reiterava o primado da paz; e com ela a do bem-estar geral dos súditos, sua integridade física, suas posses, sua religião. Tal como as orgulhosas declarações de Senaqueribe, isto também era propaganda. Mas uma propaganda visionária, que predicava outra ordem de valores. Quem sabe as coisas teriam ocorrido de forma distinta caso os babilônicos oferecessem resistência e os persas os derrotassem pelas armas. A realidade, porém, é que a doutrina de Ciro prevaleceu. O destino da Babilônia não foi a ruína e sim a elevação ao status de capital de um poder emergente. Beneficiados também foram os hebreus, que os babilônicos haviam submetido à escravidão. Além do direito de retornar à pátria, eles contaram com o financiamento para a reconstrução de seu templo, em Jerusalém. São infor-
mações que nos chegam não através da propaganda oficial, e sim de uma fonte alternativa – a Bíblia. Óbvio que nosso homem era ambicioso e determinado: ninguém passa de chefe errante a conquistador do mundo sem personificar tais características no mais alto grau. Ocorre que Ciro era guiado por um originalíssimo projeto político. Ao conceder direitos aos vencidos, fossem babilônios, hebreus ou gregos, ele almejava ampliar sua rede de aliados, sua esfera de influência. A ideia era transformar um quebra-cabeça de reinos beligerantes num organismo multiétnico coerente e pacificado. Neste arranjo imperial, os interesses do trono persa vêm em primeiro lugar. Mas supõe-se que, cedo ou tarde, eles se traduzirão em benefícios onde quer que recaia sua autoridade. A utopia de um poder sem violência não se extingue com Ciro. Durante os próximos dois séculos, ela restará como a mais consistente marca daquela antiga civilização. Eis o que nos evidencia o complexo de Persépolis. Erguida por Dario e Xerxes sobre uma plataforma artificial, a obra se destinava a uma fascinante celebração política. Todos os anos, na época do nowruz (o ano novo iraniano), o imperador, seus ministros e sua guarda pretoriana se dispunham a receber tributos trazidos dos mais diversos povos que compunham o império. Eram ao todo 28, espalhados em três continentes (Ásia, África, Europa). Não devemos subestimar a importância simbólica e prática da cerimônia. Ao convocar emissários para o mesmo lugar (Persépolis), e na mesma data (o nowruz), o imperador restaurava o vínculo com os próprios súditos. Vínculo que acionava uma complicada operação de transporte por centenas, às vezes milhares de quilômetros. Era como se, ano após ano, o império se transformasse numa gigantesca engrenagem em movimento. Os persas, já vimos, não se orgulhavam de exibir a própria força. A velha prática de saquear e destruir foi substituída pelo esforço de criar um território comum de intercâmbio e de interlocução – de trocas. Evidentemente, este princípio foi violado muitas vezes. Ainda assim, é significativo que os relevos de Persépolis nos apresentem uma multidão de raças distintas; e que entre elas não se veja sequer uma cena de arbítrio ou de violência. Talvez exista aqui, na história desta nação (persa ou iraniana que seja), uma lição que o mundo atual não deveria ignorar.
43
Essa Figura, o Diabo
44
Outros Olhares O diabo não é uma figura uniforme no imaginário do cristianismo. No correr dos séculos sua personalidade e aparência se alteraram, com traços dominantes que não substituem totalmente os anteriores, mas muitas vezes, convivem coetaneamente, desenhando uma identidade complexa, nem sempre coerente e que revela muito do momento vivido pela sociedade que o configura. José Luís Landeira 1
Doutor em Linguagem e Educação pela Universidade de São Paulo
1
45
Ao longo da história do cristianismo, o diabo passou por diversas representações que vão de um irônico e rústico bufão da corte a uma complexa figura necessária à manutenção da ordem no mundo; de príncipe das trevas, arqui-inimigo de Deus e organizador das hostes do mal à representação simbólica da maldade humana. Assim, parece ser sempre adequado, ao falar dele, explicar de que diabo estamos tratando. Ele pode não ser tão feio como o pintam... ou pode ser até mesmo pior. O diabo não é um, são vários. O cristianismo popular dos primeiros séculos construiu uma figura do diabo como um ser ignorante, rude, vaidoso, que está sempre em oposição aos cristãos, mas é também medroso e escravo de suas paixões e cobiças.. Embora deseje afastar as pessoas do Cristo, falta-lhe, com frequência, a astúcia e a inteligência presentes no Novo Testamento. O diabo, na maior parte da Idade Média, tem curta inteligência: vive no caos e na escuridão. Alia-se aos demônios, mas não os domina. É um entre eles. Por estar tão desorganizado e ser tão ignorante, ele é muito fácil de espantar: assusta-se com um grito, com certas ervas, com uma figa ou com água benta. É como se ignorância fosse sinônimo do mal. Onde há conhecimento, apenas Deus pode vigorar. Nos primeiros mil anos da sociedade ocidental, o mundo era o espaço do maravilhoso, habitado por seres como fadas e gnomos, inexplicáveis ao pensamento humano, mas aceitos como parte da natureza. Entre esses, encontramos o diabo. Traumatizada ainda pelas invasões germânicas, por povos cujo modo de pensar violento assustava e fazia com que se perdessem noções claras de estabilidade, a civilização cristã europeia valorizava a ideia de civilização e organização. Esses conceitos são tidos como sinônimos do bem. Daí também o valor que a sociedade medieval dará a hierarquia: é nela que descansa o equilíbrio. Onde houvesse organização e hierarquia, ali haveria conhecimento e civilização e, desse modo, a presença de Deus. O oposto do bem que a sociedade medieval desejava, naquele momento, alcançar, era representado por esse diabo bufo. O diabo era, com frequência, uma imagem paródica, até cômica, facilmente ludibriado pelos seres humanos. Essa imagem diabólica chega aos nossos dias nas 46
muitas lendas que narram homens e mulheres espertos que enganaram o “Tinhoso”. Não faltam, no folclore brasileiro, histórias como aquela em que Pedro Malasartes enganou o diabo. Esse diabo rústico não tinha um corpo definido pelos teólogos, mas foi ganhando um com o passar do tempo. Usualmente, ele era representado como um humano com as características do que, na altura, se considerasse uma pessoa feia. Por vezes, se metamorfoseava em uma mulher ou homem com beleza excepcional para melhor poder enganar. Aos poucos, se começam a incorporar os atributos físicos dos deuses pagãos, como os pelos faciais do deus egípcio Bes e as patas de cabra e os chifres e rabo de Pã. Será, principalmente, a partir do ano mil, que a aparência grotesca e monstruosa do diabo, entre o humano e o animal, se tornará comum. Umberto Eco, em História da Feiúra, explica que é a partir dessa época que o diabo se torna “um monstro dotado de cauda, orelhas animalescas, barbicha caprina, artelhos, patas e chifres, adquirindo também asas de morcego”. A partir do ano mil, mais especificamente do século XII, o diabo assume uma nova imagem, mas muda-se também a compreensão sobre ele. Os seres do mundo maravilhoso que antes concorriam com o diabo, são agora vistos como subordinados a ele, que eleva a sua posição sobre todos, constituindo-se em príncipe do mal, em oposição perfeita a Jesus. Neste momento, o conceito de organização em si mesmo não é mais sinônimo de bem, porque o indivíduo descobriu a possibilidade de se organizar para o mal. Assim, não basta estar organizado e hierarquizado, mas estar sujeito à hierarquia adequada. O diabo passa a sujeitar sobre si os demônios, mas também os outros seres do maravilhoso, como as fadas, as almas desencarnadas, as bruxas etc. Vai definitivamente morar no inferno que se torna o seu domínio. O seu novo corpo é acompanhado de novos traços de personalidade: a astúcia e a inteligência superiores que apareciam no Novo Testamento retornam. Gradativamente sua imagem e a de seus seguidores aparecem no exterior das catedrais, como gárgula ou associado a outros animais fantásticos. Representa o mal que deve ficar fora do templo sagrado, espaço
que faz o humano ter uma experiência antecipada do Céu. É assim e com essa função que aparece na Catedral de Notre Dame de Paris, obra iniciada em 1163. Essa astúcia diabólica atende a interesses políticos e religiosos da época, que conseguem, pondo a culpa no diabo, afastar de si qualquer responsabilidade pelas más decisões. Explica também doenças e calamidades, como a peste negra. Contudo, aparece associada a pessoas e outros seres, reais ou imaginários, como gatos, mulheres, duendes ou gigantes, sobre os quais o diabo exerceria a sua influência. Ainda que fortalecido pela discussão erudita, essa concepção do diabo não faz desaparecer a outra imagem, a do bufo rústico. Os dois convivem e chegam ao Brasil, espalhando-se e misturando-se às místicas locais. Com o passar do tempo, outras imagens do diabo se tornaram comuns. Essas diferentes imagens coexistem nem sempre de modo solidário. Assim, encontramos, entre outras, um Satã grosseiro e rústico, facilmente espantável com vassouras, óleos, águas, sabonetes e outros objetos magicamente bentos por pessoas divinamente autorizadas, como padres ou pastores. Mas encontramos também a um diabo astuto, sutilmente enganador, responsável pelo mal e pelo atraso destas terras tropicais. Há o diabo sedutor, cheio de charme e de uma exótica beleza. Temos também o diabo como a manifestação da maldade humana, um símbolo do mal presente em cada um de nós.
mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro – dá gosto! A força dele, quando quer – moço! – me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre.
Referências ECO, Umberto. (org.) História da feiura. São Paulo; Rio de Janeiro: Record, 2007. MINOIS, G. O Diabo: origem e evolução histórica. Lisboa: Terramar, 2003. NOGUEIRA, C. R. F. O diabo no imaginário cristão. Bauru: Edusc, 2000.
Essas imagens diabólicas alimentam produções artísticas e literárias e traduzem um estar no mundo que, de algum modo, interpreta a si mesmo na figura do maligno. Discute em Satanás suas próprias preocupações e temores, consturindo posicionamentos e realidades diversas. Ao desenhar o diabo, a sociedade desenha-se a si mesma. Como nos diz Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, que tem como uma de suas preocupações discutir discutir a existência ou não do diabo:
O senhor... Mire e veja: o mais importante e bonito do mundo, é isso: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso me alegra, montão. E, outra coisa: o diabo, é às brutas;
47
A Formação de um Protestantismo Rural no Brasil
Imagens: Acervo da autora
48
Outros Olhares Entre os séculos XIX e XX, formou-se no Brasil uma modalidade diferenciada de protestantismo: o protestantismo rural. Isto ocorreu nas regiões onde não houve conflito com a teologia católica previamente implantada, permitindo que a mensagem protestante fosse reinterpretada, reinventada e moldada à cultura caipira e nordestina. Lidice Meyer Pinto Ribeiro 1
Pós Doutora em Antropologia e História e Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Docente do Programa de Pós Graduação em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pesquisadora Líder do Núcleo de Estudos do protestantismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie (NEP). e-mail: lidice.ribeiro@mackenzie.br
1
49
A evangelização protestante no interior do Brasil O catolicismo brasileiro em seus primórdios dividiu-se em dois tipos básicos: um catolicismo ortodoxo presente nas cidades e um catolicismo popular ou rústico, desenvolvido nas áreas mais internas do país. O catolicismo rústico criou fortes laços com a cultura brasileira, chegando mesmo a formar uma relação simbiótica com ela. Dentre as características mais relevantes desta forma especial de catolicismo podemos citar a familiaridade com o sagrado, traduzida numa religiosidade difusa, santorial, politeísta, mágica e messiânica, e o caráter lúdico. Um catolicismo que se desenvolveu ao redor de santos de devoção particular, regado de práticas mágico-supersticiosas e crenças messiânicas alicerçadas no sebastianismo português, mas também social com seus mutirões, relações de compadrio e compadresco, festas de santos, quermesses e procissões. Assim como ocorreu o desenvolvimento deste tipo peculiar de catolicismo, observamos também o surgimento de um protestantismo diferenciado em certas regiões do chamado cinturão caipira e no Nordeste, com características muito próximas ao catolicismo rústico, embora também nitidamente diverso deste. O protestantismo histórico, representado pelas igrejas presbiteriana, metodista, batista e congregacional, implantou-se definitivamente no Brasil no século XIX, encontrando já profundamente enraizado o catolicismo trazido pelo colonizador português. Apesar de sua entrada inicial ter ocorrido em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Porto Alegre, o protestantismo não se desenvolveu satisfatoriamente nos centros urbanos. A mensagem religiosa protestante não conseguiu atingir a classe dominante, fortemente imersa no catolicismo. Mesmo tendo a pregação protestante conquistado a admiração e simpatia de membros da alta sociedade e até mesmo de dentro do clero, as conversões nos primeiros anos de implantação do protestantismo foram pouco relevantes. Por encontrar resistência ao seu crescimento nos centros urbanos, onde o catolicismo assumia uma postura dominante pela presença física tanto das igrejas como dos párocos, o protestantismo buscou terreno no ambiente rural. Seguindo o caminho da expansão cafeeira, os missionários protestantes investiram na evangelização dos interiores, penetrando pelas zonas rurais da província de São Paulo e Minas Gerais, dali se encaminhando até Mato Grosso e Goiás.
50
O desenvolvimento do protestantismo no meio rural: Ao penetrar na zona rural, os missionários protestantes depararam-se com uma religiosidade que trazia em si elementos do catolicismo oficial moldados segundo a cultura caipira. Não houve inicialmente um confronto no sentido de uma opção radical entre duas mensagens religiosas. O evangelho protestante chegou ao meio rural brasileiro como uma proposta alternativa plausível tanto no plano das crenças como no das condições de existência. Devido às desigualdades sociais e religiosas encontradas em cada bairro rural a que o protestantismo chegava, apesar da aceitação da mensagem, a forma como esta foi trabalhada dentro do sistema sócio-religioso não foi a mesma em todos os locais. Nos bairros onde o catolicismo oficial era mais presente, o evangelho protestante chegou como uma nova religião contrastante à religião anteriormente estabelecida, onde a identidade do “crente” protestante se formava em oposição a do católico. Já quando o missionário protestante encontrou bairros onde os elementos oficiais do catolicismo eram extremamente escassos, se não ausentes, não houve confrontos e a mensagem protestante recebida foi filtrada, reinterpretada e reinventada. Foi então que se desenvolveu o protestantismo rural. O desenvolvimento do protestantismo rural: Por situarem-se em regiões de difícil acesso, alguns bairros rurais raramente tinham contato com um padre, passando alguns por um descrédito do catolicismo mesmo antes da chegada do protestantismo. Como não havia uma religião oficial pré-estabelecida contra a qual necessitasse de contrapor-se, o protestantismo teve espaço para reinventar-se, dando origem a uma nova forma religiosa: o protestantismo rural. Nesta forma de protestantismo, observa-se a inexistência de rupturas com o catolicismo de raiz pré-existente no lençol de cultura caipira brasileiro. A mensagem racional do protestante se adaptou às crenças e práticas culturais, inserindo-as dentro de suas explicações lógicas do universo circundante. Familiaridade com o sagrado Muitos dos símbolos e ritos do protestantismo oficial receberam uma nova roupagem, assumindo características até renegadas pela igreja oficial. A água, o pão
e o vinho da eucaristia apontam no protestantismo rural para um poder regenerativo e purificador sendo muito mais que apenas um sinal visível da ação de Deus. O batismo assume uma conotação muito particular por remeter-se à herança, não à “herança da terra”, tão importante para o grupo social agrário como um todo, mas a “herança da terra celestial”, que garante a sua participação no Reino de Deus e a sua entrada no céu. A profissão de fé reinventada pelo protestantismo rural é uma cerimônia que marca o ingresso do adolescente de ambos os sexos na idade adulta. No plano religioso, é vista como um ato de confirmação da dedicação feita pelos pais por ocasião do batismo e no plano social, habilita o morador a realizar duas participações na sociedade: casar-se e batizar os filhos. A eucaristia é um ritual de consagração e uma transposição transcendente para a dimensão celestial, onde Jesus habita. Para a participação, necessita-se de uma purificação das relações sociais, através do restabelecimento de laços de amizade porventura rompidos. Por fim, na conversão, rito essencial na vida de um crente protestante, ocorre, na concepção dos fiéis, o retorno à perfeição estabelecida por Deus para a manutenção da ordem no bairro. Crêem que Deus é o criador e o mantenedor da ordem e da estabilidade natural e social, logo, o afastamento de um dos elementos sociais da comunhão da igreja é uma ruptura na organização, necessitando ser restaurada. Daí a necessidade da prática da evangelização, pois é através dela que os moradores crentes vão recuperar o equilíbrio perdido com o afastamento de um de seus “filhos”. Todo o universo é sagrado, pois Deus, o criador e mantenedor da vida, age na criação através da natureza que é o veículo da força divina e também o seu meio de comunicação com os homens. O caipira protestante “lê” nos eventos meteorológicos e nas manifestações de animais as mensagens de Deus para os seus problemas cotidianos, como quando plantar, colher, castrar a criação. A relação do lavrador é diretamente com Deus, que para o caipira habita o céu, mas se manifesta na vida dos homens na terra através da natureza. Cabe ao homem conhecer a linguagem de Deus na natureza. Da mesma forma, o uso de ervas curativas e mágicas é comum, pois faz parte dos dons de Deus ao homem.
Em oposição ao protestantismo oficial, a relação com Deus é próxima e humanizada, dispensando muitas vezes um mediador, papel de Cristo no cristianismo reformado e dos santos no catolicismo. Não que Jesus não exista ou que perca a sua importância, mas seu nome não é frequente nos discursos e nas orações. Apesar disso, o caipira necessita de um constante religar a Cristo através da participação mensal na eucaristia. A figura do Espírito Santo tão reverenciada nas igrejas pentecostais, também não é constante. Nos relatos sobre milagres, a autoria dos mesmos é sempre atribuída a Deus. A presença do Espírito Santo restringe-se à transformação efetuada pelo mesmo por ocasião da conversão. O diabo, por sua vez, torna-se um tentador medíocre com o poder limitado por Deus, estando suas ações submetidas muitas vezes à concordância humana. Os anjos da guarda, tão presentes no catolicismo popular, se mostram totalmente ausentes. Já os seres fantásticos mágico-sobrenaturais como saci, lobisomem, boitatá e outros, ignorados pelo protestantismo oficial, surgem esporadicamente, com finalidades morais e de controle social, podendo ser investidas da autoridade como agentes de Deus ou do diabo. O caráter lúdico do protestantismo rural A segunda característica da religiosidade caipira, o caráter lúdico, se mantém no protestantismo rural, sendo percebida através das festas, mutirões e laços de compadresco, que transcendem o âmbito familiar, encontrando no bairro a sua unidade básica de manifestação. Estes três eventos sociais censurados pelo protestantismo histórico são re-significados dentro do protestantismo rural. Não há a tradicional festa do santo padroeiro com a procissão, mas ocorrem festas diversas, marcando datas anuais como natal, ano novo e o aniversário da igreja, bem como festas que celebram o ritmo da vida comunitária: batismos, casamentos, velórios. Os moradores dos bairros católicos vizinhos participam livremente das festas, estabelecendo relacionamentos inter-religiosos. A principal festa sempre é a do aniversário da igreja. À semelhança da festa do santo padroeiro, é nesta data que se relembra a gênese do bairro, pois na compreensão dos moradores a religião protestante é que legitima a organização social diferenciada do bairro onde residem. Pode ser estranho 51
que um velório seja considerado uma festa, mas na concepção do protestante rural, festa é uma ocasião para reunião de muitos “parentes”, reforçando a noção de pertencimento a um bairro rural. Logo, um culto especial ou um enterro podem ser considerados uma festa, uma vez que atendem às suas duas condições necessárias: reunir muita gente e fortalecer a noção de identidade como bairro rural protestante. Ainda dentro da ideia lúdica de festa, ocorrem os mutirões voluntários, sem a tradicional comemoração que ocorre nos bairros rurais católicos, em seu término, pois o próprio trabalho em si já é uma festa. Também não há o consumo de bebidas alcoólicas frequente nos mutirões dos bairros católicos. Apesar do protestantismo histórico não considerar os laços do compadrio, as relações inter-pessoais nos bairros rurais não permitem que um indivíduo sozinho se sinta solitário. Através das relações de parentesco, biológico e social, todos os moradores são parentes, numa relação análoga ao compadresco católico. Numa lógica de trocas, de reciprocidades e relações, crêem que da mesma forma que Deus vive em união na Trindade com Jesus e o Espírito Santo, assim também aqueles que o seguem devem viver em união. Não ocorre, portanto, a substituição do compadresco pela fraternidade, mas há uma reorganização simbólica da relação, com o parentesco espiritual complementando o parentesco biológico e social. Como uma grande liturgia cósmica, a vida cotidiana do camponês se desenvolve num universo que transpira a presença divina numa constante eucaristia. O sagrado permeia as relações sociais, as relações com a natureza, com os seres sobrenaturais e com Deus. O protestantismo apenas se deixou invadir pela beleza e pela simplicidade das práticas e da sabedoria do homem do campo para tornar-se um protestantismo rural. A religiosidade popular presente nos bairros rurais protestantes em muitas maneiras se assemelha ao catolicismo popular, mas também em muitas maneiras se distancia deste, originando um universo de crenças e práticas único e diferenciado. Enfim, em meio às dificuldades da labuta no campo, não serão os dogmas da religião oficializada que trarão força e consolo, mas sim a fé que traz a esperança da chuva e dos frutos, e que abre espaço para a ação do homem em cooperação com o mover de Deus. 52
Referências bibliográficas: BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Memória do sagrado – estudos de religião e ritual. São Paulo, de Paulinas, 1985. MENDONÇA, Antônio Gouvêa. O celeste porvir – A inserção do protestantismo no Brasil.São Paulo, ASTE, 1995. RIBEIRO, Lidice Meyer Pinto. “Protestantismo Rural: um protestantismo genuinamente brasileiro”. In: FERREIRA, João Cesário Leonel (org). Novas perspectivas sobre o protestantismo brasileiro. São Paulo: Paulinas /Fonte Editorial, 2009. RIBEIRO, Lidice Meyer Pinto. Protestantismo rural – magia e religião convivendo pela fé. São Paulo: Editora Reflexão, 2013.
Saci.
Igreja na década 40.
Igreja na década 90.
53
O Manto e a Iconografia da Imagem de Nossa Senhora Aparecida
Imagens: Acervo do autor
54
Outros Olhares Uma das partes mais representativas da iconografia de Nossa Senhora Aparecida é o seu manto azul que lhe confere um formato triangular. Esse manto que não faz parte da imagem original de Nossa Senhora da Conceição, aparecida nas águas, é um capítulo à parte da história da fé no Brasil. José Cordeiro 1
1 Jornalista e escritor. Pós-graduado em Teoria da Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero. É pesquisador da história de Nossa Senhora Aparecida e do Santuário Nacional.
55
Concluir a capela em homenagem à padroeira é de-
sejo antigo dos católicos do bairro Jardim Vitória, setor da paróquia do Rosário e São Benedito, na periferia de Cuiabá (MT). As obras começaram em 2002, mas, somente nos últimos anos, os esforços da comunidade para a conclusão do telhado ganharam destaque na imprensa local pela aparência peculiar da edificação. Como descrevem os fiéis, o prédio tem o formato de Nossa Senhora Aparecida. Numa vista aérea das estruturas, é possível verificar que o alinhamento das paredes revela a perspectiva triangular do manto, e que a pequena sacristia o remata e o eleva como uma coroa. E foi sob o recém-instalado “manto” da Senhora Aparecida, em outubro de 2019, que uma celebração de casamento coletivo marcou a inauguração e o início da atividade regular do templo. A homenagem evidencia o mais popular ícone que cerca a Padroeira do Brasil: a santa está envolta num manto azul que a cobre da cabeça aos pés, em acentuado triângulo. Coroada como rainha, só parte da expressão da Mãe de Deus é vista, assim como suas mãos em prece e, aos seus pés, um anjo e a Lua. É familiar a todos essa forma de reconhecer a imagem de Nossa Senhora da Conceição. A representação estilizada, com mais ou menos detalhes, é vista em pequenos adesivos em veículos, canecas, vasos e itens pessoais; modelada em chaveiros, anéis, brincos, colares, pingentes, escapulários, fivelas dos peões de rodeio; e estampada ou bordada em camisetas, bonés e chapéus. A reprodução estética das gravuras populares conferiu à célebre imagem de Aparecida um formato reconhecido, simplificado e triangular. O musical Aparecida, que estreou em 2019, homenageia a história e a devoção à santa. O anúncio do espetáculo é uma ilustração simplificada do manto, representando seus mais conhecidos milagres. A logomarca da rede de comunicação do Santuário Nacional, Rádio, TV Aparecida, Portal A12 e da Editora Santuário recompõe em traços e linhas o manto de Nossa Senhora Aparecida.
56
Suas mãos estão postas em prece e o olhar é sereno e contemplativo. A iconografia da Imaculada Conceição a apresenta em nuvens ou sobre o globo terrestre e, aos seus pés, um anjo, o crescente da Lua e a serpente. O manto azul e a coroa a completam. Em 1646, o rei D. João IV consagrou Nossa Senhora da Conceição como Rainha e Padroeira de Portugal. A pequena obra sacra de Aparecida foi encontrada em 1717, nas águas do rio Paraíba do Sul, na região de Guaratinguetá (SP). Ostenta o repertório da produção ibérica, mas a condição de sua descoberta, a fragilidade e a tonalidade escura a tornaram excepcional entre as demais invocações da Virgem Maria veneradas no Brasil. Percurso histórico Nas redes dos pescadores, a escultura surgiu em duas partes, primeiro o corpo e depois a cabeça. É feita em barro cozido, mede trinta e nove centímetros e tem, como característica estrutural, a coloração “castanho brilhante” ou “cor de canela”, adquirida pela ação do tempo e “exposição ao fumo do fogão e possivelmente de candeias de azeite” das primeiras habitações, segundo avaliação de especialistas e publicação divulgada no ano jubilar de 1967, marco dos 250 anos de encontro da imagem padroeira. Sobre a túnica que realça a gravidez, a estátua exibe manto acomodado e contornando os braços. No estudo, foram verificados traços de policromia em vermelho e azul, cores convencionais da Imaculada Conceição, difundidos em Portugal e na Espanha. A criação, em 1745, de uma capela para a milagrosa imagem “Aparecida” das águas deu início a um povoado, instalado à margem do Caminho Velho para o Rio de Janeiro e para as Minas do Ouro. Além de atender a população, o culto ampliou-se para outras regiões. Em 1822, o naturalista Auguste de Saint Hilaire identificou romeiros de outras paragens: “Aqui vem gente de Minas, Goiás, Bahia para cumprir promessas feitas a N. Senhora da Aparecida”. Foi a chegada dos ateliês fotográficos ao Vale do Paraíba, como o estúdio dos franceses Louis Robin e Valentim Favreau, que funcionou em Guaratinguetá e
no povoado de 1868 a 1869, que trouxe materialidade e autenticidade às estampas, lembranças e recordações que os devotos levariam a outras paragens. Em 1869, Robin e Favreau anunciavam pelo jornal O Parahyba, os “verdadeiros retratos de NS. da Conceição Apparecida”, obtidos com autorização do vigário Manoel Benedicto de Jesus. Assim como o extraordinário relato do encontro nas águas, a coloração da imagem era admirada pelos fiéis e a oferta da cópia fotográfica (em papel albuminado) revelava o aspecto e a tonalidade escura da estátua, a despeito da primeira gravura oficial de Nossa Senhora Aparecida, com a tez clara, feita em comemoração ao dogma da Imaculada Conceição, proclamado em 1854 pelo Papa Pio IX. A ilustração foi produzida na Europa, encomendada pelo bispo dom Antonio Joaquim de Mello. A pioneira fotografia mostrava a perspectiva levemente entreaberta e alongada do manto, notavelmente triangular com as laterais encimada por uma coroa. Dois cordões e crucifixos –adornos que se tornariam populares na iconografia – são vistos sobre a santa, aparentemente para encobrir as imperfeições do reparo que unia a cabeça ao corpo. Inserido em pinturas e quadros, o “verdadeiro retrato” podia ser adquirido no comércio, como numa litografia de 1872: ilustração da imagem combinada à narrativa do achado, do milagre da prodigiosa pesca e da libertação do escravo, bem como de uma vista da afamada capela de “N.S. da Apparecida”. Algumas reproduções inspiradas nessa temática ainda são encontradas nas lojas de lembranças e no santuário nacional. O avanço técnico nos suportes fotográficos e nos meios de impressão agregou qualidade às publicações. Entre as matrizes mais utilizadas está a fotografia produzida em 1924 por André Bonotti. Com detalhes, o “retrato” obedece à mesma estética, a angular disposição do manto, recriando a composição de Robin e Fraveau.
missionários redentoristas. Para divulgar a fé, os aspectos da devoção e os eventos católicos, os religiosos publicavam o semanário Santuário d´Apparecida (1900) e o Manual do devoto (1904). As estampas foram divulgadas nacionalmente, em homenagem à consagração de Nossa Senhora da Conceição Aparecida como Padroeira do Brasil, numa grande manifestação realizada em 31 de maio de 1931, que reuniu a hierarquia católica, os governantes e, de acordo com a imprensa local, um público de um milhão de pessoas, no Rio de Janeiro. A partir da proclamação do padroado, foram acrescentados novos elementos à iconografia. O padrão – a santa, a igreja, o Rio Paraíba do Sul ou o mapa do Brasil – passou a receber os símbolos nacionais, a bandeira do Brasil e do Vaticano. Entre 1965 e 1968, pelas celebrações do jubileu dos 250 Anos do encontro da imagem, foram realizadas peregrinações regionais e nacionais com a autêntica imagem de Nossa Senhora Aparecida.
Referências BRUSTOLONI, Júlio J. A Senhora da Conceição Aparecida: história da Imagem, da capela, das romarias. 6.a ed. Aparecida: Editora Santuário, 1986 CORDEIRO, José. Aparecida: devoção mariana e a imagem padroeira do Brasil. São Paulo: Cultor de Livros, 2013. RIBEIRO NETO, Pedro de Oliveira. A imagem de N. Senhora Aparecida. Jubileu de Ouro & Rosa de Ouro. Aparecida: Editora Santuário, 1970. SANTOS, Lourival dos. Igreja, nacionalismo e devoção Popular: As estampas de Nossa Senhora Aparecida (1854-1978). 2000. Dissertação de mestrado em História Social. FFLCH – Universidade de São Paulo USP – São Paulo.
A foto de Bonotti está na edição inaugural do Almanak de N. Senhora Apparecida, de 1927, atual Ecos marianos – almanaque de Aparecida, um dos títulos mais conhecidos da Editora Santuário, mantida pelos 57
Misticismo no Heavy Metal
Imagens: Acervo da autora
58
Literatura A espiritualidade presente nas canções desse gênero, para além da imagem diabólica que se lhe costuma atribuir, revela um imaginário complexo que desvela as fontes das tradições da cultura ocidental. Luciana Amendola Imbriani Kreidel 1
Advogada. Fã de heavy metal desde os 13 anos. Estudante de História da Arte desde 2007. Aluna dos cursos do MAS.
1
59
-se dos temas indicados acima para compor as quase 170 canções presentes em seus 16 álbuns de estúdio, sendo que a precisão dos feitos históricos descritos nas letras de “Alexander the Great” (1986), “Montségur” (2003) e“Empire of the Clouds” (2015) e a poesia contida em “Rime of the Ancient Mariner” (1984), “Lord of the Flies” (1995) e “Isle of Avalon” (2010), citando apenas algumas, seriam de grande valia como instrumento didático para o ensino de História e de Literatura nas escolas. Ilustração interna do livreto do álbum “Seventh Son of a Seventh Son” (Iron Maiden), de 1988.
O heavy metal é um gênero musical nascido no rock’n’roll e que exponencia os desejos de rebeldia e de não conformidade típicos do rock. Em sua origem, nas décadas de 1970 e 1980, foi rapidamente rotulado de “satanista”, especialmente em razão de seus temas, do visual sombrio adotado pelas bandas em seus shows e vestimentas e de sua atitude. Apesar de algumas bandas, tais como Morbid Angel, Cannibal Corpse, Brujería, Mayhem e Sepultura terem sua trajetória marcada pelos temas de morte e destruição, ou de bandas como AC/DC, Guns N’ Roses e Samson concentrarem sua temática na afamada fórmula “sexo, drogas e rock’n’roll”, uma análise mais detalhada das letras das músicas das bandas mais representativas do movimento evidencia uma riqueza de temas tão profunda que fica claro que o alegado “satanismo” trata apenas de um recurso alegórico para ilustrar as ideias retratadas e para chamar a atenção do público.
Tendo em vista que o Iron Maiden foi uma das primeiras bandas de heavy metal e que continua ativa até hoje, mais de quarenta anos depois, tomaremos as letras dessa banda como base para a presente análise acerca do misticismo no heavy metal, dada a representatividade da banda em toda a história do gênero. Rituais sobrenaturais O misticismo, a espiritualidade, o sobrenatural e a tentativa de compreender a morte são muito presentes nas letras da banda Iron Maiden e se expressam de formas diversas. Abordaremos, na sequência, algumas dessas manifestações. O álbum “The Number of the Beast”, de 1982, ficou conhecido por sua capa chamativa, em que o diabo é retratado como uma marionete manipulada pela mascote da banda, Eddie.
Por outro lado, em bandas como Rainbow, Black Sabbath, Iron Maiden, Dio, Rush, Megadeth, Metallica, Tierra Santa, Amon Amarth, Manowar, Rhapsody, Stratovarius, Bruce Dickinson e Blaze Bailey sobressai-se uma variedade rica de temas, tais como literatura, mitologia (egípcia, grega, celta, nórdica e maia), história, guerras, destruição nuclear, meio ambiente, ciência, ficção científica, busca pelo sentido do “eu”, da vida e da morte, espiritualidade, religião, misticismo e o sobrenatural. A banda inglesa Iron Maiden, fundada em 1975 e que segue lotando estádios em shows mundo afora, valeu60
Capa do álbum “The Number of the Beast” (Iron Maiden), de 1982.
À época, o nome do disco e o visual de sua capa levaram extremistas religiosos a incitarem as rádios a banirem as músicas da banda e os fieis a queimarem seus discos. Contudo, uma análise da letra da música “The Number of theBeast”, contida no mesmo álbum e inspirada no filme “A Profecia II”, de 1978, mostra que a histeria gerada à época não tinha razão de ser. Na canção, o protagonista caminha, à noite, e se apavora ao se deparar com um grupo de pessoas realizando um ritual à luz de tochas, gritando, entoando cantos e invocando os céus com as mãos. O protagonista, assustado, conclui se tratar de um ritual de sacrifício satânico. Seu ímpeto é o de fugir e chamar a polícia, mas, ao mesmo tempo, fica hipnotizado pelo que vê. Ele se sente atraído, dividido e chega a duvidar de seus olhos.
“This can't go on I must inform the law Can this still be real or just some crazy dream But I feel drawn towards the evil chanting hordes They seem to mesmerise me ... can't avoid their eyes 666 the number of the beast 666 the one for you and me” (trecho da canção “The Number of the Beast” (Iron Maiden), do álbum de mesmo nome, 1982.)
Esse é um dos primeiros encontros com ritos sobrenaturais retratados nas letras da banda. Anos mais tarde, um rito semelhante seria descrito na letra da canção “Dance of Death”, do álbum de mesmo nome, de 2003, inspirada no filme O sétimo selo, de Ingmar Bergman (1956). O guitarrista Janick Gers conta que “bem no fim do filme, quando todos os atores tinham acabado de filmar e ido embora, Ingmar Bergman editou uma sequência sem que ninguém soubesse, em que a câmera se afasta em direção ao horizonte e, à distância, nas montanhas, algumas pessoas dançavam – a chamada ‘dança da morte’.” Apesar de a canção se inspirar na dança da morte medieval, tão retratada em obras de arte do período, a letra, na realidade, narra um ritual sobrenatural um pouco diferente. Em “Dance of Death”, diferentemente de “The Number of the Beast”, o protagonista é posto em tran-
se e obrigado a participar do ritual realizado pelos mortos. Seu espírito, separado do corpo, paira sobre ele e o vê dançar, cantar e entoar com os mortos. Entretanto, assim como em “The Number of the Beast”, apesar de estar apavorado, o protagonista fica hipnotizado pelo rito e sem ação durante alguns minutos, até que seu espírito se reúne novamente com seu corpo, momento em que ele corre loucamente e foge do grupo macabro. O sentido que a letra tenta atribuir para esse encontro inusitado é o de que devemos desfrutar da vida sempre, pois a morte pode nos encontrar na próxima esquina – um tópico recorrente na temática da banda.
“When you know that your time has come around You know you'll be prepared for it Say your last goodbyes to everyone Drink and say a prayer for it” (trecho da canção “Dance of Death” (Iron Maiden), do álbum de mesmo nome, 2003.)
O destino da alma A separação entre o corpo e a alma e o destino subsequente da alma são temas de cunho místico, espiritual e sobrenatural também presentes em outras canções da banda, como “Twilight Zone” (do álbum “Killers”, 1981), em que o espírito de um homem morto há três anos, preso entre o mundo dos vivos e o dos mortos, visita sua amada e tenta avisá-la de que ela nunca estará sozinha; e na canção “Heaven Can Wait” (do álbum “Somewhere in Time”, 1986), em que o espírito do protagonista paira sobre seu corpo e, enquanto avista o famoso túnel iluminado ao fim do qual diversas outras almas o aguardam, reflete sobre a brevidade da vida, sobre o quanto ainda gostaria de realizar na Terra e sobre qual seria seu destino (Céu, Inferno ou Purgatório). Nesse momento, ele sente seu espírito retornar à Terra, mas não sabe se apenas acordará de um sonho ou se, de fato, reencarnará. Na canção “The Apparition” (do álbum “Fear of the Dark”, 1992), as ponderações da banda sobre a brevidade da vida, sobre a necessidade de usufruir dela ao máximo e sobre o destino da alma ficam mais profundas. Na letra, a alma do protagonista recém-falecido 61
quanto outras são muito sábias leva a crer que estas últimas já viveram mais de uma vida. Pergunta-se, também, sobre o destino da alma e se ela pode viajar no tempo e no espaço. Ele, agora, está para descobrir as respostas a todas essas perguntas. As preocupações com o destino da alma também estão presentes em outras canções da banda, como “Infinite Dreams” (do álbum “Seventh Son of a Seventh Son”, 1988), em que o protagonista se tortura tentando descobrir se irá para o Céu ou para o Inferno (“But wouldn’t you like to know the truth / Or what’s out there to have the proof / And find out just which side you’re on /Where would you end in Heave nor in Hell?”) e na letra de “The Thin Line Between Love And Hate” (do álbum “Brave New World”, 2000), em que o protagonista está tranquilo, pois tem certeza de que sua alma viverá para sempre depois de sua morte (“I will hope, my soul willfly, so I will live forever / Heart will die, my soul will fly, and I will live forever”). Todavia, é na canção “Hallowed be Thy Name” (“Santificado seja o vosso nome”, do álbum “The Number of the Beast”) que tais indagações atingem seu clímax na poesia do Iron Maiden. Essa canção, considerada pelos fãs até hoje, a melhor música do grupo e, segundo a banda, ambientada na Idade Média (e, provavelmente, no contexto da Inquisição), descreve os pensamentos e emoções de um condenado em seu caminho para a forca. Diante da morte iminente, ele sente primeiramente angústia; depois, terror; e, finalmente, esperança na continuidade de sua alma, expressa na última frase que apropriadamente abre a oração “Pai Nosso”.
“A Ascensão dos Abençoados”, de Hieronymus Bosch. Parte do painel “Visões do Além” (1505-15), óleo em painel de carvalho, 88,8 x 39,9 cm, Museo di Palazzo Grimani, Veneza. Foto de Rik Klein Gotink para o Bosch Research and Conservation Project, via Wikimedia Commons.
visita os vivos e provoca uma queda perceptível na temperatura, enquanto reflete sobre a necessidade de ter amigos verdadeiros em vida, de viver a vida com paixão, de fazer seu próprio destino (livre-arbítrio) e de acreditar no que se faz. Também pondera que o fato de algumas pessoas serem muito ingênuas en62
O suspense, a confusão, a angústia e a imagética presentes na narrativa são tão intensos e convincentes que, de acordo com o escritor Stephen King, essa música o inspirou a escrever o livro À espera de um milagre (que deu origem ao filme homônimo). Note-se que justamente o álbum que levou religiosos extremistas a fazerem fogueiras com discos na década de 1980 é, ironicamente, o mesmo que contém uma canção com imagética e crença fortemente influenciadas pelo imaginário judaico-cristão e pelo necessário antagonismo presente nas ideias de Bem e Mal, pas-
“Hallowed be Thy Name” I'm waiting in my cold cell When the bell begins to chime Reflecting on my past life and it doesn't have much time 'Cause at 5 o'clock they take me to the gallows pole The sands of time for me are running low Running low
“Santificado seja o Vosso Nome” Estou esperando em minha cela gelada Quando o sino começa a tocar Refletindo sobre minha vida, que não tem mais muito tempo Porque às cinco em ponto eles me levarão para a forca As areias do tempo, para mim, estão se esgotando Se esgotando
When the priest comes to read me the last rites I take a look through the bars at the last sights Of a world that has gone very wrong for me
Quando o padre vem ler para mim os ritos finais Eu dou uma última olhada pelas barras Em um mundo que deu muito errado para mim
Can it be that there's some sort of error Hard to stop the surmounting terror Is it really the end, not some crazy dream?
Será possível haver algum tipo de erro? É difícil superar o terror que me toma Esse é realmente o fim, não algum sonho maluco?
Somebody please tell me that I'm dreaming It's not so easy to stop from screaming But words escape me when I try to speak
Alguém, por favor, diga que estou sonhando Não é fácil parar de gritar As palavras me escapam quando eu tento falar
Tears flow but why am I crying After all I'm not afraid of dying Don't I believe that there never is an end
Lágrimas correm, mas por que eu estou chorando? Afinal eu não tenho medo da morte Não acredito que nunca haverá um fim?
As the guards march me out to the courtyard Somebody cries from a cell: God be with you If there's a God then why has he let me go?
Enquanto os guardas me conduzem ao pátio Alguém grita de uma cela: "Deus esteja contigo" Se existe um Deus, por que ele me deixou morrer?
As I walk all my life drifts before me Though the end is near I'm still not sorry Catch my soul, it's willing to fly away
Conforme caminho, toda minha vida passa diante de mim E apesar de o fim estar próximo, não me arrependo Agarre minha alma, ela está pronta para voar
Mark my words please believe my soul lives on Please don't worry now that I have gone I've gone beyond to see the truth
Marque minhas palavras, acredite, minha alma continua viva Não se preocupe agora que eu parti Eu fui além para ver a verdade
When you know that your time is close at hand Maybe then you'll begin to understand Life down here is just a strange illusion
Quando você sabe que sua hora está chegando Talvez então você comece a entender Que a vida aqui em baixo é apenas uma estranha ilusão
Hallowed be thy name Hallowed be thy name
Santificado seja o vosso nome Santificado seja o vosso nome
63
sando muito longe de qualquer apologia ao diabo. À guisa de conclusão Por meio desta breve análise de algumas letras da banda Iron Maiden, mostramos que o misticismo, a espiritualidade, o sobrenatural e a pós-vida, fortemente permeados pelo imaginário judaico-cristão, estão presentes também no heavy metal, domínio erroneamente considerado “satanista” por observadores desavisados, que se deixam influenciar apenas pelas capas dos discos e pelo visual de algumas bandas. Além disso, indicamos que o percurso místico percorrido pela banda alterna momentos em que predomina a noção de destino inescapável com outros em que o homem e seu livre-arbítrio desempenham um papel ativo e decisivo em sua fortuna, o que pode ser percebido nas canções indicadas acima e em diversas outras. A leitura de tais letras nos dá uma ideia da poesia presente nas canções da banda, mas é claro que a apreciação completa de sua beleza somente acontece ouvindo-se as músicas, ficando aqui um convite ao leitor.
Bibliografia DICKINSON, Bruce. An Autobiography. London: Harper Collins Publishers, 2018. MAIDEN, Iron.Death on the Road Tour Book, 2003 – 2004. MELLER, Lauro. Iron Maiden – a journey through History. Curitiba: Appris Editora, 2018. SHOOMAN, Joe. Maiden Voyage. London: Music Press Books, 2016. WALL, Mick.Run to the Hills.London: Sanctuary Publishing Limited, 2004. Website “The Iron Maiden Commentary”: www. ironmaidecommentary.com .
64
Foto por: Kryštof Zajíček - Unsplash
65
Fotografia: Andy Hay - Flickr.
Arte porque Sim
66
Campos da Arte Sobre as vissicitudes do valor e da procura de arte. Hugo J. Allen 1
1 Hugo J. Allen ĂŠ licenciado em Economia pela Universidade de Coimbra, Portugal e pĂłs-graduado em Economia Europeia pela mesma Universidade. Presentemente reside no Sudoeste do Reino Unido onde trabalha como Financial Accountant.
67
A road to Damascus experience. Sempre apreciei
o requinte com que os anglo-saxónicos se dedicam a repescar expressões dasentranhasdo cânone bíblico para as integrarna trivialidade das rotinas diárias.Não posso afiançar que tenha sido esteo exactoaforismo que me aflorou à mente na manhã de domingo há quatro ou cinco anos em que dei comigo aos círculos em redor da My Bed da Tracey Emin na Tate Modern em Londres, mas a não ser esteterá sido outro de significado similar. E aos círculos porque ao contrário das limitações que um quadro impõe, não obstante a genialidade do autor e dos prodígios que ali são reproduzidos, uma cama por fazer oferece uma gama de possibilidade de apreensão estética e de perspectivas de exegese que poucas obras de arte arriscam. O meu momento damasceno foi constatar naquele preciso instante o quão ao alcance do mais vulgar dos mortais a criação artística se pode encontrar, no meu caso concreto às quartas-feiras em que trabalho a partir de casa e mantenho em exibição o meu parcocontributo ao culto das musas. Já a minha esposa entender a cama por fazer ao fim da tarde ao chegar cansada após um dia de trabalho é um momento damasceno que ainda está para acontecer. Tenho para mim que o ser humano é empreendedor por necessidade e preguiçoso por natureza. E por ser preguiçoso, dado a categorizações e nomenclaturas. E fronteiras. Confesso que nunca me revi muito como apologista de fronteiras e tenho uma certa dificuldade em enumerar alguns préstimos que estas tenham acrescido à marcha da civilização humana. Mas também não é de espantar que o universo artístico, caótico, desconexo, babélico as atraia como o mel às moscas. E às categorizações. E às nomenclaturas. Talvez o urinol, perdão, fountain, que Duchamp levou para o Grand Central Palace em Nova Iorque a fazer de obra de arte visasse precisamente essas convenções. Talvez também as variações em preto de Rothko. Embora por maior que se revelea tentação, o simples acto de desenhar a linha de demarcação não surge isento de riscos. Na Alemanha dos anos trinta tentou-se um enfoque maniqueísta que escudava a candura da boa arte (racialmente pura, de bom sangue e promotora de valores que se recomendavam muito, com a obediência cega à cabeça) da Entartete Kunst(arte degenerada), a outra, a menos pura, tendo o exercício de
68
pedagogia sido levado ao ponto de se organizar uma exposição itinerante de exemplares desta última não fosse a ignorânciadas massas revelar-se incapaz de destrinçar o trigo do joio.Se bem que no que toca a aprender as massas são obstinadas,oque por vezes é positivo.Não que esses alemães de má memória tenham sido os primeiros a dedicar-se ao encargo de querer arquitectar uma matriz simplificadora que permitisse domesticar a selva da criação artística. E certamente não terão sido eles a fechar a porta. Pelo correr da história ficaram espalhados fragmentos de abordagens de todas as cores e feitios – estéticas, formais, históricas, institucionais, hermenêuticas. Foi nesse caldeirão que também no final do século XIX Tolstoy quis ir meter a sua colher. Para Tolstoy arte discernir-se-ia comoalgocom o potencial de estabelecer uma ponte civilizacional entre culturas e gerações, uma senda para a imortalidade.Mas mais interessante que isso,seria por inerência de natureza viral – a aptidão do produtor artístico para infectar o receptor. Não me atrevo a negar este efeito contaminador,apenas não creio que se esgote aqui. Se existiram alguns proveitos em ter estudado teoria económica durante vários anos às custas do contribuinte português, o pendor para formatar a realidade em termos de mercados e de curvas de oferta e procura é um deles. A preguiça é genética e mais epidémica doque a arte. Mas sentado no meu jardim a escutar distraído as dicas do meu bom amigo Jerry sobre como fazer do meu relvado a inveja dos vizinhos não me consigo abstrair do Zimbabuéda infância dele onde há uma década os seus compatriotas passaram pela peculiaridade de se encontrarem ao mesmo tempo pobres e milionários. Milionários porque por lá circulavam em abundância as notas de cem triliões de dólares (que não valiam o papel em que eram impressas) e pobres porque alguns erros são demasiado tentadores para cessarem de ser cometidos. O fenómeno passou, hoje tornaram à certeza de se verem apenas pobres. Na mesma linha certifico-me se ainda estarão disponíveis no eBay carteiras, malas e porta-moedas feitos de bolívares venezuelanos – e estão.Uma das verdades que se apreendem depressa num curso de economia é que o valor do papel-moeda é pouco elástico à qualidade do artista que o desenhaou à maior ou menor habilidade de infectar
o seu utilizador. Oferta e procura que é a explicação de quase tudo o que existe debaixo do sol.
São multíplices as determinantes da procura de matéria-prima artística. Uma manhã às voltas numa galeria de arte, sobretudo numa das mais conceituadas, é um encontro com espécimes de todas as castas – a do que pretende absorver-se na metafísica da obra, do que faz por se cultivar, do que colecciona nomes de artistas sonantes, do que diz que vai a galerias, do que tira selfies – este último detentor duma abordagem ímpar que é a de apreciar a obra de costas voltadas. É neste caldo de motivações, de estímulos, de propósitos, de impulsos contraditórios e irreconciliáveis que fervilha a procurapor aquilo que alguém de quem a história não apontou o nome convencionou chamar arte. Mas então é isso? É arte porque sim? Talvez. E porque não?
Fotografia: acervo do autor
A minha procura de libras esterlinas é determinada por factores distintos da minha procura por Michelangelos ou Banksys, mas o fenómeno não é de todo independente.O Louvre é possuidorduma tela dos idos do século XVI que se supõe retratar uma tal Lisa Gherardini, tela que embora sem ser de todo em todo obscura entre o meio artístico,nunca, até ao início do século XX, logrou captivar simpatias de monta entre o grande público. Em 1911 quis, porém, a Providência que a dita tela tivesse a bem-aventurança de ver furtada e envolvida num enredo rocambolesco alimentado pelos jornais da época.Depois disso foi uma questão de tempo até que as epifanias redescobrissem um sorriso que ao consta sempre lá esteve.Leio também no website do National Museum Cardiff que se encontra agoraem exibição um Botticelli na Galeria 2. Encontra agora porque nos setenta anos anteriores à semana passada esteve confinado ao repouso no armazém e rotulado como pobre imitação do reverenciado mestre. Julgo não me equivocar muito se afirmar que o estatuto deste quadro incrementou exponencialmente da noite para o dia ao ser benzido como genuíno Botticelli. Isto sem que tenham mudado a tela, os traços, as cores, os pigmentos, a Madonna ou o menino. Talvez a moldura. O que mudou, sim, e invariavelmente, foi a procura associada a esta obra. Uma infecção de procura. Regressando ao velho Tolstoy, soa-me mais que o vírus artístico se tenda a propagar com maior intensidade lateralmente do que da obra ou do artista para o receptor.
69
Campos da Arte
Em Foco: Maria Madalena. Marcos Horácio Gomes Dias
A imagem de Maria Madalena geralmente participa
do conjunto escultórico do calvário com Jesus Cristo na cruz, São João Evangelista e Nossa Senhora do Calvário. Podendo ser encontrada em igrejas, capelas e oratórios particulares. Segundo o texto bíblico, Maria Madalena estava presente na crucificação e foi com Maria, mãe de Tiago (Mc 16:1), à tumba ungir o corpo de Jesus, mas o sepulcroestava vazio. A obra está atribuída a Francisco Xavier de Brito que foi um entalhador e escultor português que atuou no Rio de Janeiro e em Minas Gerais no século XVIII.
Imagem - Acervo do Museu: Iran Monteiro
70
Cabeça Volumetria arredondada e suave inclinação para a direita
Rosto O vermelho das maquiagens da nobreza da época
Nariz Bem proporcionado e insinua o modelo aristocrático
Cabelo Volumoso penteado em duas partes. Caimento em “SS”.
Testa Alta e com sulco entre as sobrancelhas
Boca Lábios normais
Braços Em movimento amplo e teatral. A mão direita segura um lenço.
Anatomia Valorização do movimento. Formas que indicam a passagem do gosto Barroco ao Rococó. Escultura graciosa e feminina
Vestimenta Turbulência. Dobras salientes e angulosas. Em alguns momentos adere ao corpo e revela traços da anatomia. Os seios estão sugeridos.
71
Grafia e Antigrafia nos Desenhos das Idades do Mundo,
por Francisco de Holanda, Pintor e Tratadista PortuguĂŞs do XVI
Imagens: Acervo da autora
72
Campos da Arte Francisco de Holanda, pintor e tratadista, é fugira central na cultura em língua portuguesa do século XVI. Nossa caminhada nos conduz a conhecê-lo e a refletir sobre a sua importância na esfera das artes. Cristiane Maria Rebello Nascimento 1
Docente do curso de filosofia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), com graduação em História pela Universidade Estadual de Campinas, mestrado em História da Arte pela Universidade Estadual de Campinas, doutorado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, e pós-doutorado na área de história da arte, na Universidade “La Sapienza”, em Roma.
1
73
O pintor e tratadista português Francisco de Ho-
landa é figura central dentro do movimento de renovação das letras e das artes promovido por D. João III, no século XVI. Ele faz parte do grupo de humanistas e poetas portugueses que partem para Roma como bolseiros do rei, tendo como missão levar a Portugal os modelos artísticos e literários antigos imitados pelos humanistas italianos. Holanda permanece na Itália em torno de três anos, entre 1538 e 1541, mas essa breve estadia será a fonte de seus vários tratados de arte e de uma obra gráfica extensa da qual faz parte obra da qual aqui trataremos, o livro Das idades do mundo (Deswartes, 1987). Será a sua obra gráfica a guiar a composição de seus escritos prescritivos, todos eles redigidos após o retorno de Holanda a Portugal. Ao longo da viagem entre Lisboa e Roma, cidade onde residirá por mais tempo, Holanda produz uma série de desenhos nos quais retrata as obras antigas que considera mais relevantes, que serão posteriormente inseridas em seus tratados, como ilustrações dos preceitos artísticos ali expostos. Esses desenhos estão reunidos no códice conhecido como Álbum dos desenhos das Antigualhas e encontram-se na Biblioteca do Escorial, na Espanha, desde o século XVIII. Também antecede a redação dos tratados a execução das imagens do gênesis do livro das Idades do mundo. Esse estabelecimento cronológico da produção de Holanda não é mero detalhe; ele coloca em perspectiva o viés interpretativo que dominou os estudos holandianos, que veem nele mais um humanista neoplatônico do que um artista preocupado em operar de acordo com os preceitos da boa arte. A crer o que nos conta em suas principais obras prescritivas, o tratado Da pintura antiga, de 1548, e os Diálogos em Roma, de 1549, em sua passagem pela Itália, Holanda frequenta um círculo de humanistas e poetas, com os quais se familiariza com as tópicas das doutrinas neoplatônicas propagadas pelas traduções e comentários de autores neoplatônicos antigos produzidos por Marsilio Ficino, Giovanni Pico della Mirandola e outros humanistas. Frequenta igualmente artistas importantes, Michelangelo Buonarotti sobretudo,com os quais aprende uma “nova antiga maneira” de desenhar e de pintar, cuja expressão máxima são os afrescos da Capela Sistina.
74
É, antes de mais nada, como emulação dos preceitos artísticos dessa nova antiga maneira de pintar e como emulação das invenções pictóricas de Michelangelo que se deve compreender o livro Das imagens das idades do mundo, obra na qual Holanda trabalhou por mais de trinta anos, entre 1541 e 1573. Trata-se de uma cronologia das idades do mundo narrada ao longo de 154 desenhos realizados à pena, dos quais apenas quinze foram coloridos com aquarela. Tal como pensado e realizado, o livro das Idades do mundo constitui um repertório gráfico a servir de modelo para os pintores portugueses. A cronologia da história do mundo estabelecida por Holanda, no início do códice, está dividida em seis idades: • Primeira idade, desde a Criação do mundo até o dilúvio de Noé: 2242 segundo Eusébio e Nossas crônicas. • Segunda idade, que dura até Abraão: 942 segundo os intérpretes. •Terceira idade, que dura até o rei David: 940 segundo os hebreus. • Quarta idade, até a Deportação para Babilônia: 485 segundo os nossos [as Nossas crônicas]. • Quinta idade, até Cristo Nosso Senhor: 589 segundo todos. • Sexta idade, que dura desde Nosso Senhor Jesus Cristo até o fim dos séculos. •No fim, acrescentou-se o Apocalipse. Depois de executar os desenhos relativos ao gênesis, entre 1541 e 1545, Holanda volta a trabalhar no livro apenas em 1551, acrescentando uma série de desenhos que retratam a genealogia bíblica e, finalmente, em 1573, estende a narrativa até o Apocalipse e o fim dos tempos. Trata-se, portanto, de uma obra pela qual Holanda deve ter tido um grande apreço, dado que a execução dela o acompanhou por toda a vida. Analisando-a a partir da perspectiva prescriti-
va dos próprios escritos de Holanda, parece-se razoável afirmar que a demora na realização dos desenhos explica-se, em parte, pela gravidade e pela dificuldade artística que ela apresentava ao artista, vale dizer: traduzir em imagens visíveis a verdade das escrituras, imitando na maneira das figuras e nas invenções sacras a perfeição artística alcançada por Michelangelo na Sistina. Tratemos de avançar algumas considerações acerca da emulação das invenções de Michelangelo no livro das Idades de Holanda. A composição das imagens de Holanda, em particular nos desenhos executados a partir de 1551, segue de perto a composição geral das cenas do teto da Sistina, que se tornou o modelo por excelência da narrativa bíblica em meados do século XVI. A mesma composição está presente num outro modelo gráfico que, segundo Sylvie Deswarte, também serviu de modelo para os desenhos de Holanda, as imagens da Cronologia, de Nicolau Coelho (Coimbra,1554). Holanda repete em muitas cenas a seguinte disposição compositiva: cena principal ocupando três quartos da página, texto bíblico ao pé da página, inserido à maneira de disdacália, enquadrado por medalhões contendo retratos dos personagens bíblicos, e de alegorias das virtudes ou dos vícios. Composição semelhante foi realizada por Michelangelo, no teto da Sistina: nas molduras das cenas menores do teto da Capela Sistina, no espaço entre as figuras dos ignudi estão dispostos medalhões dourados contendo outras cenas relativas aos personagens e aos episódios narrados ao centro.
3
Contudo, longe de se tratar de uma imitação servil, Holanda as emprega com pequenas variações e em contextos diversos, a exemplo do que é prescrito em relação às tópicas da invenção no discurso retórico e na poesia. Um exemplo interessante encontra-se na cena da criação de Adão, na Sistina, pintada por Michelangelo: a figura reclinada de Deus com o braço esquerdo apoiado numa cabeça feminina que representa a sabedoria.
4
Holanda a reemprega com muita propriedade e decoro para representar Deus descansando da criação no sétimo dia, uma vez que a posição reclinada está associada tradicionalmente ao sono.
1
Há inúmeros outros elementos que Holanda recolhe nas invenções de Michelangelo para as cenas da Sistina, como a composição da cena de Davi e Golias, na imagem da Quarta idade.
5
75
Mas traduzir em imagens o sentido providencialista e exemplar da narrativa da história bíblica exige do pintor não apenas imitar os melhores modelos na arte, mas, sobretudo, como diz o próprio Holanda, “ter alguma parte de theologia para saber fundar e contemplar a verdade de suas altas imaginações nas obras, e para que não pinte cousas contrárias a religião cristã, nem outros desconcertos e descuidos já que se pintão, antes que só pela razão n’esta parte da sua obra seja muito para louvar”. O pintor deverá ser igualmente “lido no cathalogo dos santos para saber suas vidas, e em que tempos e costumes ou cidades são pintados. Terá sabido toda a nobre e inobre história do mundo de Adam, Nembrot, e Nino, até os imperadores e d’ahi até estes nossos tempos, tendo quase todas as antigas cousas e histórias recapituladas na memória, pois pola maior parte a operação da pintura consiste em renovar aos homens e idade presente aqueles homens e idades que já passarão, e tudo pela doutrina e exemplo nosso” (Holanda, 1982). Nos desenhos que representam as cenas do Gênesis, Holanda elabora imagens abstratas, evitando a representação antropomórfica e dramática do Deus criador. Nessas cenas, os trechos das escrituras estão destacados na página anterior à da imagem, estabelecendo-se uma relação gráfica mais equilibrada entre a palavra divina e a apresentação visível que o artista faz dela por meio das formas geométricas do triângulo equilátero, do quadrado e círculo.
7
Encontramos a explicação para essa escolha de Holanda nos sete capítulos da Pintura antiga que ele dedica à representação das imagens sagradas. Cada um deles prescreve como o pintor deve representar a imagem de Cristo, as imagens santas, a imagem do purgatório e do inferno e as imagens invisíveis, como é o caso da imagem de Deus, das virtudes e dos vícios. O que ele diz a respeito da imagem divina nos serve quase como uma ecfrase, ou uma descrição, das cenas da criação: e aqui peço perdão. A Summa bondade de querer desejar de dar imagem e forma a quem não tem. E isto ouso a dizer, pois o e dá licença para isso aos pintores a Santa Madre Igreja, do Spirito Santo alumiada... E assim invoco e chamo a sactissima Trindade e digo que inda que a Divindade não tenha fama nem alquanta figura que dar lhe se possa, todavia para a darmos a entender e para ser pintada e contemplada muitas vezes, como aquela que mais continuamen-
6
76
te se deve trazer ante os olhos, necessário foi dar-lhe alguma imagem, ou semelhança, pola lembrança dal qual possa ser mui desejada e adorada. A fegura do triangulo cabe na semelhança da Divindade e assim a quadrada e a redonda que é a mais capaz e perfeita. Mas estas deixará o discreto pintor para as diademas da santissima Trindade. Mas ao Princípio e ao Padre darão a imagem e antiguidade de um quietíssimo e formoso velho. Ao filho e Verbo a imagem de um beníssimo e pacífico Salvador, e ao Spirito Santo paracleto a imagem da flama e do fogo, e também a pureza da pomba, como foi a espécie que apareceu no batismo do Senhor (Holanda, 1982, cap. 29).
Holanda continua suas considerações a propósito da representação divina e nos alertando para a grande dificuldade que o pintor enfrenta ao dar a ver figuras tão graves e perfeitas: Mas debaixo da caligem e resplendor destas imagens, que são uma mesma eternidade, mester é com grande temor e reverência buscar a perfeição e serenidade do que convém pintar em taes e tão dificultosos olhos e faces, pois que sabemos que aqui se encerra toda a formosura da invenção, da proporção e do decoro, da graça, do amor, da honra, da bondade, da piedade, da liberalidade, da mansidão, da dificuldade e todas as mais excelências e afinidades dos divinos nomes. Ali toda ideia altissima ficará pequena, ali todo o grande entendimento ficará vencido; ali toda a mão mestriosa tremerá e não saberá mover-se quando quer que houver de mostrar com arte e pintura a imensidão incircunscrita do Imortal Deus (Holanda, 1982, cap. 14).
grande, primeiramente na sua imaginação fará uma ideia e há de conceber na vontade que invenção tenha tal obra” (Holanda, 1982, cap. 14). Essa invenção ou conceito que o pintor elabora em sua imaginação não é outra coisa senão o que Leon Battista Alberti chama de composição de uma narrativa histórica, por meio de linhas e cores, segundo a eleição do melhor e do mais belo. Enquanto tal a invenção do pintor deve ser tão deleitável, útil e instrutiva quanto a obra do poeta e do orador.
Referências DESWARTES, S. As imagens das Idades do mundo de Francisco de Holanda. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987. HOLANDA, F. Da pintura Antiga, I, cap. 8, introd. e notas Angel González Garcia. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982. Elenco das figuras: Figura 1 – Michelangelo Buonarroti. Criação de Eva, Cappella Sistina. Figura 2 – Francisco de Holanda. A quarta idade, De Aetatibus Mundi Imagines. Figura 3 – Michelangelo Buonarroti. Davi e Golias, Cappella Sistina. Figura 4 – Francisco de Holanda. O sétimo dia: Repouso de Deus com a Sabedoria, De Aetatibus Mundi Imagines. Figura 5 – Francisco de Holanda. Primeira idade, De Aetatibus Mundi Imagines. Figura 6 e 7 – Francisco de Holanda. O primeiro dia da criação: Fiat Lux, De Aetatibus Mundi Imagines.
A invenção a que se refere Holanda nesta passagem é o primeiro dos preceitos antigos da arte ao qual Holanda dedica um inteiro capítulo do tratado Da pintura antiga. Ela é “o começo por onde sobe a dificuldade da perfeição da pintura”; assim, quando o pintor “quer dar algum princípio a alguma empresa 77
Retábulos de Santo Amaro A Difícil Trajetória do Patrimônio Sacro de São Paulo
Imagens - Acervo do Museu: Iran Monteiro
78
Campos da Arte Dois retábulos fazem parte da iconografia da antiga Matriz de Santo Amaro, erigida em 1686. Os inúmeros detalhes dessas duas peças merecem atenção especial tanto quando são descritas tecnicamente ou quando observadas pelo olhar do espectador comum. Jacqueline Della Barba 1
1
Pesquisadora, Conservadora e Restauradora de Obras de Arte.
79
R etábulo é uma construção de madeira ou pedra,
em forma de painel e com lavores, que se coloca na parte posterior dos altares, geralmente decorada com temas da história sagrada ou retratos de santos. Segundo Aracy Amaral, os dois retábulos da antiga Matriz de Santo Amaro deram entrada no Museu de Arte Sacra de São Paulo em sua fundação, em 1969, e são descritos em sua ficha de tombo como colunas e arcadas de altar, madeira policromada, século XVIII, com dimensões de 2.880 mm de altura por 2.230 mm de largura. Trabalho completo de talha barroca, com desenhos esculpidos de anjos querubins, galos, pelicanos, conchoides, folhagens e flores, além de capitéis esculpidos nas colunas e arcos emoldurados. Eles foram encontrados desmontados no depósito do Museu de Arte Sacra de São Paulo, onde ficaram por cerca de um ano em processo de restauro e remontagem por uma equipe profissional que precisou desvendar um incrível quebra-cabeça histórico. O primeiro registro dos altares data de 1732. Conforme destacou o estudioso do Barroco brasileiro Germain Bazin, “conservaram-se mais espécimes de talha antiga que monumentos arquitetônicos”. Por conta das inúmeras transferências dos retábulos, Percival Tirapeli, especialista em Barroco brasileiro, denominou-os Retábulos Peregrinos, em forte referência às viagens realizadas pelo patrimônio, muitas vezes sem registros, o que dificulta refazer sua trajetória. Os mistérios que envolvem os dois altares ainda esbarram em descobertas reveladoras, como os documentos encontrados no arquivo da Cúria, o “Provimento de Visita” de D. Duarte Leopoldo e Silva, primeiro arcebispo metropolitano de São Paulo, em
80
outubro de 1909, à Paróquia de Santo Amaro: “A Igreja Matriz é suficientemente vasta para a população. Tem fachada de construção recente, e capela-mor ainda mais recente. O corpo da igreja, porém, se encontra em estado quase ruinoso, não tendo explicação nem justificativa à singularíssima ideia de se reconstruir a fachada e os fundos, dificultando, senão prejudicando a reconstrução do corpo do edifício. O revmo. Vigário porá empenho nessa obra certamente difícil, porém urgente, esperando-se que os paroquianos de Santo Amaro lhe darão todo apoio e eficaz cooperação.” Depois do registro dessa visita, está consignado no Livro de Tombo o relatório da paróquia em 1686, que descreve os limites geográficos das igrejas e capelas, cuja descrição do interior foi destacada por Julio Moraes. Essa documentação, fundamental para o entendimento do acervo artístico, descreve criteriosamente as dimensões do templo reformado na frente, qual o material utilizado e os contornos e adornos utilizados. À medida que procuramos informações sobre esse patrimônio, nos deparamos com a descrição de dois altares montados, sendo um descrito pelo Padre Luiz I. T. Bittencourt como um altar antigo, mas todo pintado de novo, e outro de igual formato, porém desarmado, além de um terceiro altar mor de madeira, também desarmado. Essa descrição possibilita explicar a necessidade de remontar ou reconstruir os altares, sempre se concentrando no fato de se encontrarem já deslocados de seu lugar original.
O trabalho de restauro solicitado pelo Museu de Arte Sacra a Julio Moraes passou por inúmeras tentativas de analisar o estilo artístico, apesar da escassez de informações de seus detalhes, cores e do conjunto a ser reconstituído. O próprio restaurador reconheceu a mistura de elementos de estilo rococó que não se assemelham ao Barroco brasileiro. Em suas palavras, acreditava estar em frente a um verdadeiro “Frankestein”, considerando a estranheza do coroamento do segundo retábulo em particular, mas visível também no primeiro. As diferenças são evidentes entre a talha da parte inferior e a do arco superior, com peças entalhadas em estilo barroco vertical, completamente diferente dos círculos concêntricos do estilo nacional. Após uma longa jornada em busca das origens dos retábulos de Santo Amaro, o que fica é uma sensação de mistério e curiosidade que instiga a continuar procurando uma nova informação ou documento, pois, ao contar um pouco da história desses dois incríveis objetos, pode-se entender a grandeza da Arte Sacra, cuja inspiração perpassa pela devoção, oração e elevação dos nossos sentidos, além da forma pura e simples, para alcançar a essência da fé.
obtenção de informações e documentos que são imprescindíveis para a reconstituição da história. A importância do acervo museológico para a sociedade paulistana, mais especificamente da Arte Sacra, remonta aos primórdios da cidade, habitada por índios e jesuítas, que, além de dividir o espaço, fundiram culturas, somaram conhecimentos e desenvolveram manifestações artísticas de beleza singular. Admirar esses retábulos após a realização desta pesquisa permite perceber que sua trajetória incerta abre novos paradigmas para a compreensão do patrimônio artístico, em que o valor material representa apenas uma pequena parte da importância de sua existência. O traço do artista, os temas escolhidos e o lugar de seu destino inicial lembram um período que ficou em outro tempo, mas que de forma extraordinária permanece vivo e, por que não dizer, eterno no imaginário do observador.
A importância da Arte Sacra como objeto de devoção popular está relacionada ao culto, tanto individual como comunitário, em que a liturgia e o ritual de dedicação aos altares reafirmam a relação existente entre o fiel e o objeto de devoção. Sendo assim, a relevância do estudo dos altares de Santo Amaro e a preocupação em relação às suas origens, a produção de documentação, análise de suas formas e, finalmente, sua preservação se devem à grande religiosidade do povo paulistano. Ao encontrar os dois altares, hoje restaurados, cuja policromia exuberante e as talhas e dourações saltam aos olhos, podemos perceber a beleza e a emoção que transbordam das peças. A busca por suas origens fica na preocupação dos técnicos e especialistas em patrimônio cultural e artístico, mas povoam a imaginação do espectador. Nos detalhes mais exuberantes, na cor ou na simplicidade das formas e elementos, a Arte Sacra representada pelos retábulos traz à tona o trabalho árduo a que se propõe a preservação do patrimônio, as dificuldades para se estabelecer um restauro, a luta pela
Referências BAZIN, G. Arquitetura religiosa barroca no Brasil. São Paulo:Editora Record, 2vol.1956 TIRAPELLI, P. Patrimônio sacro na América Latina: arquitetura, arte e cultura. São Paulo: Unesp, 2015. 460 p. 81
Linha do tempo proposta para estudos da imaginária sacra paulista e luso-brasileira (c. 1560 – 1923)
Procissão do Triunfo Euca inauguração da Matriz de (Vila Rica de Ouro Preto, M festa barroca do período Brasileiro (1733)
Rafael Schunk 1
Santa Águeda, série dos primeiros bustos relicários de frei Agostinho da Piedade, BA (c. 1619)
Virgem de São Vicente, SP (c. 1560), obra de Mestre João Gonçalo Fernandes, imagem que inaugura a escultura colonial no Brasil Primeira imagem datada por frei Agostinho de Jesus, SP (1641)
Primeiras imagens luso-brasileiras (c. 1560 – 1619)
Conquista das terras brasileiras por Portugal
Período clássico da escultur América Portuguesa (1641 –
Primeiras imagens brasileiras (maneirismos, c. 1619 – 1680)
Mestre frei Agostinho de Jesus (c.1600/10 – 1661), atuante no RJ, BA e SP, primeiro grande artista nascido na América Portuguesa
Mestre V MG (c. 1 Mestre frei Agostinho da Piedade (c. 1580 – 1661) (atuante em Portugal e Salvador, BA)
82
1 Mestre em Artes Visuais (UNESP), graduado em Arquitetura e Urbanismo, pesquisador, técnico em seguros de obras de arte, crítico, expógrafo, curador, colecionador de arte barroca e artista plástico.
Mest (c. 17
Mestre de Angra dos Reis (artista desconhecido). F discípulo do artista franciscano Frei Francisco dos Santos. Deixou sua produção entre SP e RJ nas primeiras décadas do século 17 até aprox. 168
arístico – e N. S. do Pilar MG), maior o colonial
Campos da Arte
Finalização do Quadro a Última Ceia (1828), Colégio do Caraça, MG, por Mestre Ataíde (encerramento simbólico do período clássico do barroco luso-brasileiro)
Independência do Brasil, SP (Brasil Império) (Brasil Império )
Missão Artística Francesa, RJ
Transferência da Corte Portuguesa para Brasil, RJ
Semana de Arte Moderna, SP
ra maneirista-barrocana – 1828)
Auge da arte barroca no Brasil (1733 – 1828)
Proclamação da República, RJ
Período barroquista tardio (arcaísmos) (1828 – 1923)
Valentim da Fonseca e Silva, 1745 – 1813) (atuante no RJ)
Dito Pituba, SP (1848 – 1923)
tre Aleijadinho, MG 738 – 1814)
Foi
80
(Veiga Valle, G) O (1806 – 1874)
Imagens: Acervo do autor
Mestre Manuel da Costa Ataíde, MG (c. 1762 – 1830)
83
A Cripta da Sé - Espaço de Memória
Imagens: Acervo do autor
84
Campos da Arte A cripta possui trinta câmaras. Dezoito delas estão ocupadas e se tornam lugares de memória. Dentre os sepultados no local estão bispos e arcebispos da cidade de São Paulo, como dom Duarte Leopoldo e Silva, responsável pelo início das obras da Catedral e do acervo do Museu de Arte Sacra de São Paulo. Luiz Eduardo Baronto 1
1 Cura da Catedral Arquidiocesana de São Paulo, mestre em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco.
85
Uma cripta é uma construção subterrânea, usual-
mente, localizada na parte inferior de igrejas. Serve como sepultura para pessoas que têm relevância na organização social ou na história da Igreja. As criptas nos ensinam que a vida é passagem e passageira. Elas, como os museus, traduzem a faculdade de conservar e valorizar a memória. A construção do atual edifício da Catedral Metropolitana de São Paulo teve início em 1912, com planos de ser concluída em 1922, como parte das celebrações do centenário da independência do Brasil. A cripta ficou pronta já em 1919, mas a catedral só foi inaugurada em 1954. O atraso deu-se por conta das duas grandes guerras mundiais e outros eventos sociais e políticos, como o crash da Bolsa de Nova York, em 1929, e a Revolução Constitucionalista no Brasil, em 1932. A cripta está a sete metros abaixo do nível da praça da Sé e ocupa um espaço de 619 metros quadrados. O seu desenho faz parte do projeto da Catedral, de autoria do alemão radicado no Brasil, Maximilian Emil Hehl. À época ele ocupava também o cargo de professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. A cripta possui trinta câmaras. Dezoito delas estão ocupadas e se tornam lugares de memória. Dentre os sepultados no local estão bispos e arcebispos da cidade de São Paulo, como dom Duarte Leopoldo e Silva, responsável pelo início das obras da Catedral e do acervo do Museu de Arte Sacra de São Paulo. O mais recente sepultado é dom Paulo Evaristo Arns. Em relação a personagens históricos não diretamente ligados à arquidiocese de São Paulo, a cripta abriga os restos mortais do Padre Bartolomeu de Gusmão, que nasceu em São Vicente e morreu em Toledo, na Espanha, no século XVIII. Ele foi um grande inventor, sendo o criador do primeiro balão de ar quente da história. Já dentre os personagens da história da cidade, estão na cripta os restos mortais do Cacique Tibiriça (considerado o primeiro cidadão paulistano) e do Regente Feijó, que governou o Brasil durante um período da infância de Dom Pedro II. 86
Francisco Leopoldo e Silva, irmão de dom Duarte Leopoldo e Silva, é autor de duas esculturas: "Jó, o afligido do Senhor" e "São Jerônimo". O piso de mármore de Carrara, em preto e branco, é icônico. Uma réplica do Santo Sudário está exposta no altar. O silêncio dominante é quebrado por eventos religiosos e culturais que ocorrem regularmente. Em 2019, a cripta fez cem anos. Ações de valorização do patrimônio histórico e cultural da Catedral são sempre importantes. É uma forma não apenas de garantir a preservação do edifício, como também de divulgar esse patrimônio entre novos públicos. É a memória de uma sociedade que se valoriza e, mais do que isso, é a identidade do indivíduo que se constrói nesses espaços privilegiados de memória.
87
Fotografia: Freepik
O Teatro, o Jogo e a Educação Escolar
88
Arte na Sala de Aula O jogo é um importante traço distintivo da linguagem cênica e elemento muito importante da prática teatral dentro da escola. As regras, o ambiente de coletividade, a busca de um objetivo comum e a liberdade imaginativa e criativa que as relações lúdicas estabelecem apontam para o caráter formativo do teatro, potente prática artística emancipatória. Abel Xavier 1
Mestre em Artes da Cena pela Escola Superior de Artes Célia Helena – ESCH. Doutorando em Educação pela USP.
1
89
Fotografia: Freepik
É muito comum encontrar quem tenha experimen-
tado o teatro na época da escola. Sempre há aquela peça feita para a aula de língua portuguesa, uma cena sobre aquele conteúdo de história, geografia ou celebra. Tem também aquela aula específica de literatura, aquele momento em que se foi para o palco e fingiu ser uma personagem do livro, dizendo um texto na frente de uma plateia, colegas de sala. A memória desse momento, é bem provável, continua viva, quase intocável. O lugar da apresentação, a dificuldade para decorar o texto, o figurino, a reação do público, os erros que aconteceram na hora, o improviso. Talvez seja mais raro encontrar quem tenha feito teatro na escola na própria aula de artes, tradicionalmente dedicada à prática das artes visuais ou, no máximo, da música. Mas isso vem mudando nos últimos anos. Temos percebido, e as políticas públicas para educação escolar ajudam a reforçar, que o teatro cumpre um papel fundamental na formação humana e não pode ficar apenas como alternativa didática dentro de outras áreas do conhecimento. O teatro, como toda arte, é atividade em si mesma, tem princípios, procedimentos e função formativa própria. Mas que função é essa? O prazer que o teatro proporciona à criança e ao adolescente está diretamente ligado ao fato dele encontrar-se associado à brincadeira ou, como dizemos tecnicamente, ao jogo. Faz parte da essência da linguagem cênica a construção de um terreno lúdico permeado de regras que balizam, dão segurança e catapultam à imaginação. Mas como funciona o jogo no teatro?
90
Vamos fazer um breve exercício. Peço que você, leitor, pense nos jogos da sua infância, sobretudo aqueles que você realizava coletivamente, junto aos amigos do bairro, do prédio, com os primos. Pode pensar também nos jogos esportivos. Pronto, agora veja a definição abaixo e veja se aplica ao que você pensou: O jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da “vida quotidiana” (HUIZINGA, 2001, p. 33). Agora, convido você a substituir a palavra jogo da definição acima, de Johan Huizinga, em Homo Ludens (2001), pela palavra teatro. Verá, de certo, que podemos fazer a substituição, sem prejuízo ou incorreção. O teatro é uma atividade que acontece num certo tempo (ao vivo e enquanto dura a história) e num determinado espaço (palco ou sala de aula) delimitados. É uma ação voluntária que tem fim nela mesma, ou seja, não possui a obrigação da sua realização, nem função prática que se desdobra em consequências igualmente práticas, funcionais. É também desenvolvido e acompanhado pela plateia a partir de certos pactos, chamados de regras ou convenções, entre todos os participantes do acontecimento cênico. Por fim, é permeado por um sentimento, denominado es-
tado de jogo, que vai da tensão à euforia da realização. Tudo isso leva, atores e plateia, do mundo real ao ficcional, do cotidiano ao extra cotidiano e os traz de volta, quando chega a hora do blackout e as cortinas se fecham e as palmas aparecem. No momento em que acontece, o teatro é um jogo. Ora, se o teatro é por si só um jogo, os atores, as atrizes e a plateia são os jogadores. E para se jogar qualquer jogo, não tem segredo, é preciso aprender a jogar: compreender e respeitar as regras combinadas para que o jogo (ficção) aconteça, entender dos macetes e truques (técnicas), observar o outro, colaborar com seus parceiros (escuta), blefar (improvisar) quando couber, conhecer os materiais ou objetos próprios daquele jogo (corpo, voz, espaço, ritmo, objetos), ter ciência dos objetivos da jogada (circunstâncias ficcionais) e, sobretudo, estar inteiro no que se faz, imbuído de presença. A presença do jogador é extremamente relevante em qualquer jogo. É disso que se trata fazer teatro. Agora, podemos pensar porque estudá-lo pode ser uma excelente oportunidade formativa dentro da escola. A primeira coisa que o teatro exige de qualquer pessoa que o experimenta é considerar que exista um outro, seja este um parceiro de cena ou o próprio público, para quem finalmente o ator se dirige. Estes são os parceiros fundamentais da “jogatina teatral”. Também poderíamos dizer que este outro poderia ser o autor do texto, com quem o ator se relaciona indiretamente através das palavras, o diretor do espetáculo ou o professor, cuja parceria é intrínseca pela ação necessária de “ver de fora” durante os ensaios. Além das demais pessoas da equipe técnica: contrarregras e operadores de luz e som, por exemplo, cuja participação na hora do espetáculo se dá fundamentalmente pela escuta e diálogo com o que o elenco faz no palco. E como se aprende a jogar? Ao longo da história do ensino-aprendizagem do teatro, foram sendo criadas ações metodológicas que tinham o jogar como base de atuação. São pequenas estruturas pedagógicas que, de certa forma, seccionam o grande jogo geral da cena em competências e habilidades menores, mais focadas digamos, e, por
isso mesmo, se relacionam diretamente com ela, a cena. Neste sentido podemos ter, por exemplo, jogos teatrais específicos que focam: a relação com o espaço, a relação com o tempo, a relação com a música, a relação com objetos, a argumentação, a escuta dos parceiros, o subtexto, a qualidade do gesto, o ritmo, entre outros. Segundo a pesquisadora americana Viola Spolin, considera referência nos chamados jogos teatrais, “o jogo é democrático! Todos podem aprender jogando! O jogo estimula vitalidade, despertando a pessoa como um todo – mente e corpo, inteligência e criatividade, espontaneidade e intuição – quando todos, professores e alunos unidos estão atentos para o momento presente” (SPOLIN, 2012, p. 30). Spolin dá ênfase ao caráter vivo do jogo, que solicita um jogador sabedor de si, inteiro, consciente da realidade própria do jogo. O pesquisador inglês Peter Slade apresenta outra forma de pensar o jogo, dessa vez focando mais na relação entre adultos e crianças, professores e alunos. Relação esta que, segundo ele, deve estar mais no campo da nutrição do que da interferência. O jogo, neste caso, é mais um laboratório de efervescência de expressão, a construção de um tempo/espaço que suscita a escuta, o diálogo, a imaginação, a criatividade e a construção de relações humanas observáveis. Neste sentido, o professor é elemento essencial de condução do jogo, colocando-se também em situação lúdica, jogando junto. De qualquer maneira, quando trabalhamos o jogo cênico na escola temos a possibilidade de criar um espaço e um tempo de criação e reflexão coletiva que oportuniza o trabalho da subjetividade, da interação, da fala e da escuta. Ao fim, o jogo acaba por apresentar aos estudantes os caminhos da construção de uma linguagem, a artística teatral, que tem o ‘estar juntos, presentes e em pacto criativo’ como fundamento. Parece urgente, e a função do teatro na escola trabalha diretamente nisso, que tragamos a nossos educandos oportunidades de aprendizagem fundamentadas na experiência estética do corpo como elemento íntegro, integral e integrador. Isto quer dizer que, nos 91
momentos atuais, em que a experiência virtual toma conta das relações, o ataque toma o espaço do diálogo e a polarização sobrepõe a ponderação, parece-nos muito importante insistir em práticas agregadoras, dialogadas, de percepção e de espaço de falar e ouvir. É na contramão das tendências atuais que o teatro, e sua centralidade na ideia de jogo, navega. É neste sentido que precisamos preservar o teatro enquanto componente educacional e ação pedagógica dentro da escola, valorizar os espaços em que esta ação acontece de maneira reflexiva, insistir na formação de pessoas pelo viés do pensamento crítico, proporcionar a ampliação do imaginário para que haja um futuro de possibilidades, de alternativas, de soluções humanamente saudáveis. E não que estejamos fadados ao individualismo, ao consumo desenfreado, ao ataque e acepção, ao encurtamento da empatia. Neste sentido, é preciso pensar e sobretudo agir sobre a pedagogia do teatro, valorizando o rigor do pensamento e da prática docente, conhecendo instrumentos didáticos e buscando construir currículos e processos de criação seguros e significativos do ponto de vista da aprendizagem. A Lei 13.278/2016 obrigou o ensino das linguagens artísticas na educação básica, determinando o prazo de cinco anos para que as escolas admitam ou formem professores capazes de trabalhar as diversas modalidades, incluindo o teatro. A Base Nacional Curricular Comum para o Ensino Fundamental (BNCC) dá importante sustentação às práticas educacionais das artes cênicas. O teatro compõe a BNCC de maneira bastante contundente, na medida em que é abordado em seus aspectos contextuais, históricos, corporais, sensoriais e, em destaque, na sua face socializante. Isto quer dizer que, em termos de conteúdo, o teatro é visto como oportunidade para o aprendizado do fazer coletivo, do trabalho das relações de alteridade, do ato de falar, escutar e dialogar em suas dimensões objetivas e subjetivas. Inspirados por estes instrumentos legais, que esta atividade tão importante seja, enfim, presença sólida nos projetos políticos pedagógicos das nossas escolas.
92
Bibliografia HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 2001. SLADE, Peter. O jogo dramático infantil. São Paulo: Summus, 1978. SPOLIN, Viola. Improvisação para o teatro. São Paulo: Perspectiva, 2015.
Museu de Arte Sacra de São Paulo Av. Tiradentes, 676 - Luz (Ao lado do Metrô Tiradentes). Estacionamento gratuito: Rua Dr. Jorge Miranda, 43 Visitação: de terça a domingo das 09h às 17h. Sala Presépio Napolitano: das 10h às 11h, e das 14h às 15h. Ingresso: R$ 6,00 (Inteira) | R$ 3,00 (meia entrada nacional) Gratuito aos sábados | Isenções: crianças de até 7 anos, adultos a partir de 60 anos, professores da rede pública, pessoas portadoras de deficiências, membros do ICOM, policiais e militares.
93
Secretaria de Cultura e Economia Criativa
94
95
Secretaria de Cultura e Economia Criativa