Liturgia, Arte e Urbanidade. Memórias de um seminário

Page 1

LITURGIA, ARTE E URBANIDADE Memórias de um seminário

ORGANIZAÇÃO

Lusmarina Campos Garcia Vítor Westhelle

1


2


LITURGIA ARTE E URBANIDADE Memรณrias de um seminรกrio

2020


2


In memoriam Claudio Pastro Jaci Maraschin Pablo Sosa VĂ­tor Westhelle


Revisão Flávio Lenz César Rolf Schünemann Coordenação Editorial Lusmarina Campos Garcia Diagramação Tiago Galvão Publicação Sínodo Sudeste - IECLB


Índice Lendo o Texto do Seminário – Vítor Westhelle

009

Três Pontos de Partida: Um Diálogo Introdutório – Holney Antonio Mendes e Lusmarina Campos Garcia

017

Despertando a Bela Adormecida: Uma Leitura Benjaminiana da Cidade – John Cowart Dawsey

023

Os Jovens da Cidade – Regina Novaes

041

Comunicação, Arte e Expressão de Fé no Espaço/ Tempo da Urbanidade – Laan Mendes de Barros

047

Perdidos no Espaço: Sobre o Lugar da Liturgia no Mundo Contemporâneo – Pedro de Novais Lima Junior

053

Desolamento e Formas de Subjetivação na Atualidade – Joel Birman

065

Arquitetura e Liturgia – Flavio Ferreira

071

Dança e Liturgia – Rita Serpa

077

O Belo e o Sagrado – Cláudio Pastro

081

Fotografia, Comunicação e Religiosidade – Tony Queiroga

085

Cinema e cidade – Mauricio Lissovsky

091

Quanto Mais Aprendemos Menos Entendemos – Reflexões Sobre Arte e Pós- Modernidade – Jaci Maraschin

097

A Fonte: Uma Estória Mítica – Per Harling

107

A favor da cidade – Simei Monteiro

115

Liturgia Urbana – Pablo Sosa

121

Um Contraponto Teológico – Pastoral – Rolf Schünemann

129

Desafios para a Liturgia – Terry MacArthur

135

Ataduras e Comentários – Vítor Westhelle

139



Colher imagens e contar histórias Forjar espaços e gravar memórias Transitar dimensões e sorver o espanto Circular estreitezas e contornar encantos Abrigar diferenças e expôr rudezas Engendrar injustiças e escoar gentilezas… Cidade, de quantas roupas você está vestida? De quantas caras? De quanta vida? Lusmarina Campos Garcia


Vítor Westhelle, Lusmarina Garcia, Holney Mendes, Simei Monteiro e Rolf Schünemann estão apresentados nos textos de sua autoria nas páginas seguintes. Cláudio Kupka é pastor da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) em São Paulo, capital. É membro da Comissão de Música e da Comissão do Hinário da IECLB. Trabalha com produção fonográfica e edição e é professor de Ética no Colégio Humboldt, , em São Paulo. Hermann Wille é pastor da IECLB e mestre em Ciências da Religião pela Universidade Pontifícia Católica de São Paulo sobre o tema: Violência Urbana.


LENDO O TEXTO DO SEMINÁRIO Vítor Westhelle Com: Lusmarina Garcia Claudio Kupka Holney Mendes Simei Monteiro Rolf Schünemann Hermann Wille

INTRODUÇÃO O Seminário de Liturgia, Arte e Urbanidade foi um evento que agora nos é dado como leitura. Aconteceu em outubro de 1999 no Rio de Janeiro, Brasil. De um texto que foi, virou ato, e agora vira texto que convida a novos eventos. É este processo de atualização e textualização que aqui pretendemos examinar. A inusitada interação dos diferentes elementos deste seminário, representados no seu próprio título — Liturgia, Arte e Urbanidade —, foi ao mesmo tempo um arriscado desafio e uma possibilidade altamente criativa. E foi a criatividade que deixou sua marca alinhavada na textura do evento. Passamos aqui a uma breve excursão sobre as falas que fizeram parte deste seminário. Mas não se confunda esta excursão como um passeio turístico. Visamos aqui não apresentar grandes e magníficos panoramas — ainda que os tivemos. O objetivo é outro. Visamos sugerir possibilidades de leitura que se apresentaram no próprio seminário. Nosso objetivo é oferecer uma reflexão introdutória sobre as diferentes possibilidades de ler a relação entre arte, urbanidade e liturgia que o seminário produziu na teoria e na prática. Elaboramos esta excursão por meio de dois eixos estruturais que nos pareceram básicos na tessitura do evento. O primeiro tem uma urdidura diacrônica perpassando longitudinalmente o todo do evento. O segundo forma a trama perpendicular ou transversal dos fios deste tear, ou seja, a estrutura de cada dia e, nele, de cada ato. Ou, para mudar de metáfora, sugerimos que o seminário pode ser lido ou como um itinerário, ou como um mapa. Como um itinerário, o evento mostrou uma maneira de se ir de onde se está para o ponto onde queremos chegar.


Ao contrário de mapas, itinerários não têm a preocupação de descrever o território pelo qual se viaja; visam sim descrever os passos necessários para se chegar onde se pretende. A urdidura diacrônica funcionou como uma espécie de itinerário que nos levou da realidade da cidade às possibilidades da liturgia, passando pela arte e chegando de volta à cidade. A outra leitura é a que pode ser comparada com um mapa. O mapa é uma representação da realidade que permite que nos localizemos, torna-nos consciente do que está a nossa volta e das possibilidades e opções que temos ao nos mover. A trama transversal funcionou como uma espécie de mapa que nos situou num território de imensas e irredutíveis possibilidades.

URDIDURAS A organização diacrônica foi clara, bastante elucidativa e criativa também. Primeiro houve um período de aquecimento, como foi chamado, preparando para o seminário. A seguir houve a discussão sobre urbanidade, a cidade. No próximo momento discutiu-se a arte. Num terceiro momento passou-se explicitamente a discutir a liturgia. Finalmente, como espécie de apêndice, houve as amarrações finais. À medida que a forma determina o conteúdo (um dos argumentos ensaiados no seminário), ou pelo menos demarca as possibilidades daquilo que pode aparecer dentro deste conteúdo, é importante notar o que caracterizou cada um destes momentos no desdobrar diacrônico do seminário. Quando se tratou do primeiro momento da tríade – cidade, arte e liturgia –, o momento da urbanidade trouxe à tona a pergunta pela nossa localização, onde estamos e qual a condição da cidade na qual vivemos e pela qual somos responsáveis. De certa forma esse foi o momento da problematização. A cidade foi apresentada como o problema inicial, como o ponto de partida para a jornada. Joel Birman foi certamente o que trouxe o dilema urbano em sua forma mais desnuda. A vida na cidade – mais do que um espaço geográfico, um símbolo – se caracteriza pela fragmentação, crise de identidade e finalmente pela predominância de um modelo econômico de sobrevivência imediata que desaloja as mediações políticas, culturais, e até mesmo religiosas. Esta falência de instâncias mediadoras e a brutalização das relações humanas lega à cidade uma aura apocalíptica em que a submissão dos indivíduos aos poderes regentes destrói as perspectivas de construção de uma subjetividade. A análise de Laan Barros não se afasta muito dessa diagnose, ao apresentar a cidade como uma conflagração entre a concentração citadina e o isolamento do anonimato, onde o espaço e o tempo da urbanidade são a falta de espaço e a falta de tempo. Regina Novaes acrescenta sua voz a esses diagnósticos em uma análise que faz da situação do jovem na cidade. Para ela, o grupo social que mais claramente cristaliza a tessituras urbana, suas tensões e medos, é a juventude. E esta – a juventude – mostra de forma radical as mesmas características já 10


assinaladas: o provisório, a imediação, o aqui-e-agora, o evanescer das utopias, e um sincretismo de uma “religião” sem religião. Num tom ainda semelhante, Pedro Novais vê a cidade como um espaço qualificado que se caracteriza por uma aproximação entre indivíduos e que ironicamente transforma-se em um isolamento blasé Com isso, sugere Novaes, à medida que o urbano se desenvolve, a urbanidade – que desde o Renascimento conota civilidade – desfaz o que pretensamente a caracteriza. Mas em cada uma dessas análises, ainda que freqüentemente pessimistas, havia a expectativa de que a construção de uma subjetividade, o estabelecimento de instâncias mediadoras, as experiências comunitárias, ainda sejam possíveis ou até mesmo necessárias e sempre presentes, mesmo que em forma dissimulada. Insinuam esses textos que a cidade mesma, com esta frenética e cerrada textura, oculta algo que lhe é essencial, mas que amiúde não vem à tona. Trata-se de uma contra-textura, rasuras que a cidade mesma oculta. John Dawsey fez desta contra-textura citadina, que habita o âmago mesmo da cidade, marcas de esperança que normalmente caem fora das nossas codificações do urbano, mas que a ela pertencem como anjos à história (para usar a imagem de Paul Klee e Walter Benjamin que guiam o texto de Dawsey). E é neste contexto que já se anuncia a liturgia como o contraponto da modernidade urbana dentro dela mesma. Assim como uma peça polifônica usa movimentos melódicos distintos da melodia regente, não para destruir a melodia mas exatamente para enaltecer suas características dominantes, a cidade tem seu próprio contraponto que de certa forma a nega, mas na verdade enaltece seus atributos. Em um segundo momento do seminário tratou-se da arte. A oposição entre o primeiro e o segundo bloco não poderia ser mais radical. Depois do urbano, privilegiou-se o estético, não foi o efêmero, mas o atemporal que despontou; não o cotidiano, mas a utopia; não a urbana falta de tempo e espaço, mas a plenitude harmônica de todas as coisas; não o feio e profano, mas o sublime e o sagrado. A arte na visão dos artistas que participaram do seminário surgiu no pano de fundo da cidade como o mistério mesmo, algo sacramental e epifânico. Foi, como disse Rita Serpa, a palavra dando lugar ao corpo, a dança dizendo a verdade em vez de certezas, a possibilidade de um holismo em meio a toda a fragmentação. Cláudio Pastro, com suas artes plásticas, definiu a arte mesma como o eterno e sagrado no meio de um mundo rompido e fragmentado. Daí, sugere ele, a vinculação orgânica e intrínseca da arte com a religião. Num tom similar, Flávio Ferreira, de uma perspectiva arquitetônica, vê a arte como a ocupação de um espaço para torná-lo atemporal. Holney Antonio Mendes criou a escultura que cravou Cristo no cimento e o firmou nos aros da roda de bicicleta que o circunscreveu, fazendo arte com materiais colhidos na cidade de São Paulo. Orientou a produção de mosaicos que guardaram fidelidade com o sentido original da palavra: obra paciente, digna das Musas. Ciro Schünemann pintou no tecido aquilo que no dia-a-dia pinta nos muros da cidade; trouxe tintas e grafites de uma arte juvenil-contestatória que transforma paredes de cimento em mensagens de liberdade e paz. Cleriston Boechat fotografou pessoas e momentos da cidade; imagens que transitam da solidão e ausência à presença cuidadosa de quem oferece a própria mão ao toque. Tony Queiroga 11


ensinou conceitos e história da fotografia e afirmou a necessidade de se retomar a imagem como veículo de comunicação na liturgia. Mauricio Lissowsky contrastou luz e sombra na construção do movimento que compõe a linguagem do cinema. Per Harling, Simei Monteiro, Pablo Sosa e Terry MacArthur, juntamente com musicistas e compositores da Oficina de Música, produziram canções que retratam e fazem orar pelas realidades da cidade. Luís Carlos Ramos, com poetas e escritoras, escreveu orações. Rita Serpa retomou movimentos e gestos que ajudaram a dançar. Anders Lindow escreveu a Missa Urbana e deu a ela o ritmo de chorinho. A arte foi afirmada como a celebração de espaços seqüestrados da finitude e dadas como oferendas ao sagrado. Assim como John Dawsey representou o contraponto do pessimismo urbano (ainda sem ser simplesmente otimista) encontrando nas rasuras e estranhezas urbanas aberturas de novas possibilidades, Jaci Maraschin trouxe à pauta a desconstrução da arte mesma. Seu gesto foi uma recusa de submeter-se a quaisquer padrões estéticos, até mesmo os da atemporalidade ou do sublime. Sugeriu que a possibilidade de vê-la no lixo urbano, no impuro, mais do que em qualquer galeria, é a esperança que nos resta, a pulverização que nos sanará do veneno da globalização. A arte para Maraschin aparece, então, não no atemporal, no eterno e no sublime, mas precisamente no seu reverso, o que se dá antes do conceito e escapa num movimento incessante que não se deixa cativar pelo logos ocidental, não aceita definições. Estranhamente, algo de místico se apresenta na fala de Maraschin. Assim como parte da tradição mística é a teologia negativa, a possibilidade de nomear o divino apenas em seu reverso, pelo que não é, a arte para Maraschin tampouco se deixa nomear. Por isso é na negação do estético e do sublime que o belo pode ser epifânico. Por isso defende ele uma liturgia também fragmentada, sem a pretensão de autoridade, uma liturgia, enfim, pós-moderna, além dos cânones da modernidade racionalista e moralista. O último bloco, antes das amarrações finais, ficou com a liturgia propriamente dita. Se os blocos anteriores se caracterizaram pelos extremos do eterno e do transitório, do holismo e da fragmentação, enfim pela falta de entidades e estruturas mediadoras, ou então, como salientou Birman, por vê-las seqüestradas pelas estruturas de poder, a liturgia entrou em palco precisamente como a consciência dessa possibilidade de mediação, como a viabilidade de relacionar a questão urbana, com suas loucuras e superficialidades, com o mistério, com o belo, o íntegro e o profundo. Nas palavras de Pablo Sosa, a liturgia tornou-se o conceito mesmo capaz de abarcar essas relações de mediação, não só na religião formal ou na igreja. Liturgia foi a maneira de nomear as práticas urbanas de mediação. Demonstrações políticas, festas, serenatas, encontros em bares, a dança na rua, o carnaval, a missa, o futebol, o culto, a procissão, todas essas e muitas outras são formas urbanas de a cidade encontrar seus caminhos, ser guiada, ter o que o termo mesmo diz: uma leitourgia, uma maneira de levar a vida. E é nessas formas “litúrgicas,” sugere Sosa, que devemos encontrar os padrões dentro dos quais moldar a grande tradição cristã, o que cada liturgia deve re-encenar. Com isso o desafio não consiste em refazer a liturgia à luz da realidade, mas de ler a realidade com olhos litúrgicos, quer dizer, com olhos que reconheçam o mistério e o sagrado em meio às possíveis mediações 12


da urbanidade e nelas verter o conteúdo específico da fé cristã. Foi também nesse mesmo espírito de se olhar a cidade liturgicamente que se deu a contribuição de Simei Monteiro, ao ligar a etimologia do termo “leitourgia” com o servir a cidade, buscando — nas palavras do profeta — a paz da cidade como o leito da prosperidade. Ela sugere mais, quer ver a liturgia não apenas como uma saída ou um refúgio, mas seguindo o exemplo de Jesus, que também retorna do Getsêmani. Nossos refúgios nos jardins das cidades são apenas um interlúdio necessário como possa ser ao movimento de retorno, o de servir as necessidades da cidade. Já as contribuições de Per Harling e Terry MacArthur buscaram ser em si mesmas tentativas de “liturgizar” (ao invés de “teorizar”) a própria fala sobre a liturgia. Para eles a liturgia está na estória, e esta estória é ela mesma a liturgia quando o que se conta também se reencena no próprio contar. Harling e MacArthur trouxeram a consciência de que o que fazemos, até mesmo em uma discussão teórica sobre a liturgia, não escapa ao fato que nisto mesmo há, como Monteiro já assinalara, uma liturgia latente, apesar de tentarmos dissimulá-la em conceitos e racionalizações.

TRAMAS O que Harling e MacArthur fizeram em suas contribuições foi subverter a separação entre teoria e prática. Suas contribuições, alocadas como parte dos momentos teóricos do seminário, trouxeram em si mesmas uma prática litúrgica, uma maneira de falar sobre uma estória contando-a. E é isto que gostaríamos de destacar como sendo o segundo ponto importante no evento do seminário. Este talvez seja menos visível para quem vier a experimentar o seminário em sua forma textualizada apenas. Mas, na verdade, essa dimensão do seminário é o que serve de mapa para situar o evento como tal. Em outras palavras, o seminário foi não apenas um itinerário que nos conduziu a novas e inusitadas possibilidades litúrgicas, mas situou o próprio fazer da liturgia em meio à realidade da cidade e ao vislumbre das artes; mostrou os espaços da cidade, fez arte; praticou movimentos dentro deste espaço e esboçou contornos do belo; situou; tramou as urdiduras. Se o itinerário que nos levou do início ao final do evento tinha esta característica litúrgica de nos conduzir do hediondo ao sublime e, então, prover mediações entre essas experiências, cada dia esteve trespassado por um movimento litúrgico, por assim dizer, transversal, que serviu de trama das urdiduras criando a textura para uma outra leitura do que estava a suceder. Começávamos o dia com uma celebração. A seguir vinham reflexões de caráter mais teórico com discussões em grupos para aprofundar os temas. Depois, tinham-se oficinas que de fato desenvolviam aspectos diversos da liturgia, das artes plásticas à música, do texto à dança. E ao final do dia cerrava-se o ciclo com uma celebração final. O seminário foi não somente uma exploração da relação da cidade com a arte e a liturgia, mas foi, de fato, um navegar pelas possibilidades litúrgicas. O seminário em si foi uma 13


prática litúrgica, a abertura de um hiato em que a negociação entre o transitório e o perene se faz possível. E nisto revelou-se um ponto importante que estava implícito em tudo que foi feito: que a liturgia, em sua fidelidade de milênios, é ainda assim sempre provisória e plural. O que a nós pareceu claro é que não há uma teoria, uma verdade litúrgica que preceda a sua própria realização e que a autorize. A liturgia é, então, sempre experimental, e já moribunda quando se encontra afixada a um manual. O que se faz no contexto da liturgia, o que também sucedeu no seminário, tem tudo a ver com uma antiga regra do fazer teológico na Igreja. Essa regra é conhecida pela fórmula latina: lex orandi, lex credendi. Dito em português: a prática da piedade (ou a prática da fé) é o pressuposto que embasa a doutrina e o ensino teológico. É isso que a regra está a dizer. Ela foi formulada no contexto do reconhecimento de que havia uma prática anterior, pelo menos em termos lógicos quando não cronológicos, à formulação da doutrina que a explicava, justificava e normatizava. Um caso conhecido e antigo da aplicação dessa regra é a do batismo de infantes. Não havia nenhuma justificação teológica elaborada antes que as primeiras crianças fossem batizadas. Foi o fato de que crianças estavam sendo batizadas em muitas comunidades cristãs que permitiu que uma teologia do batismo de infantes fosse, subseqüentemente, elaborada. Mas, para comunidades que não batizam infantes, é verdade que a mesma regra também vale e legitima teologicamente a sua prática. A pluralidade de práticas litúrgicas determina também a pluralidade de argumentações teológicas. Quando a teologia da libertação fala da primazia da práxis, realmente não está dizendo nada tão radicalmente novo que a tradição cristã, desde os primeiros séculos, já não tivesse afirmado. A liturgia é então sempre expressão da piedade mesma de um grupo, de uma comunidade. Ela pode, tem sido e precisa ser mudada, corrigida, adaptada e refletida teoricamente. Mas essa reflexão e adaptação sempre vêm como um segundo momento que se fez possível até mesmo porque já havia liturgia anteriormente; já havia uma forma de expressar e celebrar a fé; já havia um caminhar sobre o território que possibilitou a coleta de dados para elaborar o mapa. Esta segunda dimensão, o corte transversal que mostra a relação orgânica que houve entre teoria e prática, não se pode reproduzir com a mesma fidelidade nesta produção pelo próprio caráter literário que possui. Mas é importante assinalá-la pelo que significou no contexto do programa. A maior parte da arte produzida no seminário será registrada numa segunda publicação, o caderno de recursos litúrgicos, e oferecerá uma pequena amostra do que foi esta dimensão do evento. O lançamento do CD das canções criadas durante ou para o seminário permitirá uma mais profunda apreciação desse aspecto do encontro, e uma melhor idéia do mapa que se projetava constantemente ante os participantes do evento. Mas, mais do que tentar virtualmente preservar a experiência que o Seminário de Liturgia, Arte e Urbanidade proporcionou, o que aqui se oferece são subsídios para novas experiências litúrgicas e alguns gestos ousados a nos sugerir maneiras de rever o jeito de levar a vida, de refazer nossa leitourgia.

14


AGRADECIMENTOS Nossos agradecimentos vão para todas as pessoas que se dedicaram à coordenação, organização e sistematização do Seminário de Liturgia, Arte e Urbanidade: Anders Lindow, Cláudio Kupka, Hermann Wille, Rolf Schünemann, Luís Carlos Ramos, Simei Monteiro, Holney Antonio Mendes, Clóvis Pinto de Castro, Lusmarina Campos Garcia e Vítor Westhelle. Aos autores, autoras e conferencistas cujos nomes estão registrados junto aos textos de sua autoria nas páginas que seguem. Aos coordenadores e coordenadoras de oficinas e artistas que tornaram a produção artística profícua e bela: Holney Antonio Mendes (pintor e escultor), Ciro Schünemann (artista de grafite), Cleriston Boechat (fotógrafo), Tony Queiroga (crítico de fotografia) e Maurício Lissowsky (cineasta); Per Harling, Simei Monteiro, Pablo Sosa e Terry MacArthur (músicos e compositores); Luís Carlos Ramos (poeta e escritor); Rita Serpa (coreógrafa e bailarina). Ao pessoal de apoio: Antonio Carlos Ribeiro (jornalista), Rose Araújo (artista gráfica), Éder Targino (músico e arquiteto), Nivaldo Völz (vídeo) e aos alunos e alunas do Instituto de Pastoral da Faculdade Metodista de Teologia de São Paulo. Às tradutoras e tradutor: Maria Wolfring, Regina Silveira, Ana Beatriz Torres e Luís Sander. Às instituições que apoiaram e realizaram o evento: Sínodo Sudeste da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), Instituto de Pastoral da Faculdade Metodista de Teologia de Rudge Ramos, SP, União Paroquial do Rio de Janeiro (IECLB), Escola Superior de Teologia de São Leopoldo (setor de audiovisual), Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC), Igreja Luterana Sueca, Federação Luterana Mundial – Secretaria para a América Latina, Ministério Global da Igreja Metodista Unida dos Estados Unidos, Conselho Mundial de Igrejas. A todas as pessoas que participaram do seminário e deram-lhe a qualidade e a contextura que conseguiu alcançar. 15


16


TRÊS PONTOS DE PARTIDA:

UM DIÁLOGO INTRODUTÓRIO

Holney Antonio Mendes e Lusmarina Campos Garcia Poderia a arte abrir as portas dos templos, fazer com que os serviços eclesiais incorporem o comum e o imundo, as partes abomináveis da carne, levando-nos ao encontro do sagrado na sua plenitude? Levanta-te, mata e come. Ao que Deus purificou não consideres comum. Como, se a arte dos templos caducou?! Igrejas ocupam construções que outrora eram para cinemas (a arte do século) e fábricas, como hipótese da crise (hipo/crisia) da modernidade e concomitantemente da Teologia, da arquitetura, do urbanismo e do trabalho como categoria para as ciências sociais. Não obstante a dança, o teatro, o poema, a fotografia e o cinema continuam excluídos do espaço/tempo sagrado destes templos. Espaço, Holney, Espaço! Apertados elevadores circundados por estruturas verticais-concretas; amplos salões de festas/conferências para os melhores dotados ou em formação; ruas de passagem, becos, viadutos, casas de papelão, praças vibrantes, Pedra da Gávea, lagos (Michigan, para quem está em Chicago; Leman, em Genebra!), corpos (espaço inevitável de emoções, percepções, sentidos, vontades); tudo misturado, confluído, convivente numa proximidade que intimida, numa distância que assusta, numa disparidade que qualifica. Espaços urbanos e espaço litúrgico. In-formam-se; são inter-agentes? O espaço litúrgico não é simplesmente uma extensão. É um lugar culturalmente construído e psiquicamente investido; lugar in-formado pela tradição e memória coletiva dos cristãos e pela história do grupo que celebra. É espaço vivido. Não Este texto foi o diálogo introdutório que deu abertura ao Seminário de Liturgia, Arte e Urbanidade. Nele, Holney e Lusmarina deram um “pontapé inicial” em alguns eixos que perpassaram o evento. O texto em estilo redondo é de Holney e em itálico é de Lusmarina. Holney Antonio Mendes é pintor, teólogo, sociólogo e educador. É pastor licenciado da Igreja Metodista do Brasil. Atualmente é aluno de doutorado na Universidade de São Paulo (USP). Lusmarina Campos Garcia estudou Teologia e Direito. É pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) mas está cedida para a Igreja Evangélica Luterana de Genebra – congregação de fala inglesa. Trabalha na área de Liturgia e Arte como escritora, publicadora, conferencista, assessora.

17


apenas em sua positividade ou concretude, mas em sua subjetividade; com todas as parcialidades, inteirezas e liberdades pertinentes à experiência de comunicar e ser comunicado. O espaço litúrgico não pode ser indiferente aos outros, mas precisa ter caráter e identidade próprios. Não precisa ser o templo; pode ser a rua, a esquina, a praça, o estádio. Pode ser o espaço interno do pensamento, do sentimento; silêncio que se desloca até as profundidades da pessoa a fim de capacitá-la ao mergulho na experiência de tocar o sagrado. Mas esse espaço – positivo ou subjetivo – precisa ter qualidade específica potencialmente capaz de inaugurar uma dimensão diferenciada e um desejo celebrativo no meio do cotidiano das pessoas. E na convivência com o espaço urbano há que aprender a interinfluência e a confluência. Eu concordo, Lus, mas há que se considerar que, em se tratando de espaço urbano, existem cidades e cidades. Existem cidades nas cidades. Em algumas dá gosto caminhar. Em outras, só com muito esforço e disposição. Enquanto uma é toda arquitetura, outras são tão-somente aglomerados de construções sem linguagem, sem comunicação. Algumas trazem o que outras não: liberdade e aventura, anonimato e solidão. Como o espaço litúrgico e a própria liturgia se relacionam com todo este universo? Os judeus têm no espaço doméstico lugar indispensável para o sagrado, enquanto o cristianismo tentou o que o mercado de modo eficiente conseguiu: organizar o espaço urbano para a circulação do capital e daqueles que dão vida a esta circulação; pois como diz o ditado: tempo é dinheiro. Este ritual urbano, sua liturgia, definitivamente não pode ser a dos templos. Será? Mas as cidades não são somente profanas. Do mesmo modo a Igreja não está isenta do erro e da culpa. Ao templo levamos as cidades conosco. E como nos diz o profeta: o centro delas, as praças, ocupadas por meninos e meninas que brincam, idosos e idosas que julgam e ensinam, será habitado por Deus. Nós fazemos parte das cidades. Debaixo da ponte o sofredor de rua escreve: Deus está aqui. O artista toca no templo e nos bares da vida. Não como o sacerdote, ele vive de sua arte, e não somente da fé. As cidades dos homens na cidade de Deus, e a cidade de Deus nas cidades dos homens e mulheres. Neste complexo de complexos que é a cidade, tudo que é sólido se desmancha no ar, inclusive os dogmas. O que fica são experiências vividas a compartilhar. Uns que as tiveram mais intensamente e outros quantitativamente. Difícil especificar... As perguntas são mais inteligentes que as respostas. Tudo é um ensaio... É! E aqui no Seminário de Liturgia, Arte e Urbanidade, queremos ensaiar juntos. Tanto as assessoras e assessores quanto os participantes e as participantes deste seminário portam sabedorias e competências respeitáveis, finas, e têm diante de si a oportunidade e o desafio de participar do processo de construção de uma linguagem litúrgica situada na cidade. Traçando um paralelo com as constantes construções da cidade, eu diria que a linguagem litúrgica não está pronta. Há coisa pronta e até definitiva. Mas há muito que construir e reformar. A linguagem litúrgica é a busca da expressão do que só pode ser parcialmente expresso. É o esforço de dar forma ao que é só parcialmente delineável. Partindo do princípio de que culto/missa ou celebração 18


é o encontro de Deus com a comunidade e vice-versa, a comunidade só pode pronunciar palavra e expressão da parte que lhe cabe neste encontro. Assim, a liturgia põe a linguagem em estado de emergência. Gostei da emergência! E “estado de emergência” sempre requer criatividade. Quando você fala em construção conjunta, eu penso em criação/criatividade. E penso que enquanto a liberdade de criar passa a ser princípio de uma arte, de um modo de ver a arte, pelo menos, a liberdade litúrgica pode ser malquista pela ecclesia. Ela prefere as ladainhas, litanias intermináveis ou falar em línguas, estranhas, mas com o vocabulário pobre de sempre. Pois vê o sagrado como se estivesse ali, parado, com pernas sem andar e com olhos sem ver... Sem nenhum sentido, eternamente inquestionável. Pra mim, a questão não se põe sobre as litanias e ladainhas como tal, porque este processo ritualístico de repetir pode criar segurança e noção de familiaridade numa experiência de estranheza contínua, que caracteriza a experiência urbana. Mas se coloca sobre o fato de se o rito neste formato aproxima-se a realidade, reporta-se ao cotidiano, está cravado nas referências e valores de quem o experimenta, consegue transitar da concretude para o subjetivo, da pessoa para o divino. A questão se põe sobre o fato de se as litanias e ladainhas conseguem desencadear uma possibilidade imaginativa, ou seja, lançar as pessoas que celebram a um de produzir imagens. Imagem, coisa tão própria e abundante na cidade; “liberdade que o espírito toma. Mas acontece que as imagens não aceitam idéias tranqüilas nem sobretudo imagens definitivas. Incessantemente a imaginação imagina e se enriquece com novas imagens (Gaston Bachelard)”. E é essa riqueza do ser imaginante/imaginado que vive na cidade, que a liturgia feita na cidade deve cultivar. Um exemplo em termos de linguagem: quando se fala do Reino de Deus ainda se pensa no semeador. Quando se fala da fé, vislumbra-se o grão de mostarda. É preciso pensar imagens que advenham do nosso próprio meio, local, experiência. Os fios condutores de energia elétrica, por exemplo, poderiam remeter-nos ao Espírito Santo? Penso não haver via melhor para desencadear esses processos de produzir imagens que a arte e a beleza. A experiência o sagrado, seja através do cinema, da dança, das relações pessoais ou de um culto, missa, o que for, é experiência com o belo. Beleza que não dá para definir por conceitos, aos quais devemos nossa forma de ver o mundo e compreender a vida, mas que nos emociona (ex/motor), nos move do comum, do medíocre e vulgar ao sublime, ao encontro de uma graça ateleológica, sem finalidade partidária e salvífica, desinteressada, que nos leva até mesmo a reconhecer o belo no feio quando incorporado pela arte. Enquanto na experiência estética não podemos dar nome às coisas, e o faz somente aquele indivíduo que toma o conceito e não a sensibilidade como princípio da vivência estética, na liturgia o nome é necessário, como era necessário a Moisés dizer ao povo o nome daquele que o enviava. Seria possível uma liturgia desinteressada? Há um conto oriental que poderia, de certo modo, nos guiar. Como Wang-Fô foi salvo. Wang-Fô, um mestre da arte de viver e de pintar abandonou sua casa e fechou atrás de si a porta do passado. Juntamente com ele o seu jovem discípulo, Ling, que para seguir errante 19


a nova vida de artista vendeu sucessivamente seus escravos, jades e os peixes de sua fonte a fim de comprar tintas ocidentais. Wang-Fô ensinou não somente seu discípulo a misturar cores, ver o universal no singular e vice-versa, mas também ensinou o princípio do desinteresse, que é a sabedoria dos que vivem e estão para além das paixões. A narrativa vai descrevendo as experiências de ambos, até que são detidos por um tirano imperador. Ao defender seu mestre, Ling é morto. O imperador possuía várias obras do pintor. Antes que o matasse, ameaçou destruir toda a coleção se Wang-Fô não terminasse uma obra que estava inacabada. O mestre obedeceu. Seus pincéis concluíram-na: uma marina, inundando o palácio. Um bote entrou no salão imperial, conduzido por Ling, e aos poucos desapareceu com ambos para sempre sobre o mar de jade azul que o mestre acabara de pintar. Poder imaginar – possibilidade que a linguagem celebrativa precisa implementar se quer estabelecer conexão com a cidade. Nas grandes metrópoles, a capacidade imaginativa das pessoas é elemento indispensável. A fim de suportar o cansaço e desconforto produzido por um engarrafamento, por exemplo, as pessoas precisam ter mais do que paciência. Precisam ter a capacidade de se conduzir para lugares, momentos e pessoas que as livrem da angústia do tempo perdido, do pânico do atraso, da imobilidade sem propósito. Esta experiência de deslocar-se internamente para o encontro de referências que restauram a alegria, que dão prazer, deve ser resgatada pela liturgia feita em contexto urbano. Se os conceitos são necessários como é a racionalidade, eles são provisórios e indetermináveis, e se o são atualmente para a Física quanto mais serão para a experiência do bom gosto. Mas nenhum conceito é totalmente feliz quando tenta definir o belo, quando tenta dar nome ao sagrado. “Não há nada menos apropriado para tocar numa obra de arte do que palavras de crítica, que sempre resultam em mal-entendidos mais ou menos felizes. As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis, quanto se nos pretendiam fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. Menos suscetível de expressão do que qualquer outra coisa são as obras de arte... As obras de arte são de uma infinita solidão; nada as pode alcançar tão pouco quanto a crítica. Só o amor as pode compreender e manter e mostrar-se justo com elas”. Ao contemplar a beleza divina Adélia Prado (poeta brasileira) escreveu: “Deus é poesia. Todos os conceitos são discutíveis, como o é também o belo. Mas sem disputas, é claro”. Holney, sei que vou fazer exatamente o contrário do que você está dizendo, mas quero arriscar um pensamento e um conceito. Belo é aquilo que me impacta e me faz suspirar; me tira o fôlego, me deixa sem palavras. Aquilo que me concentra e me envolve de maneira irresistível. É como se o universo inteiro fosse reunido naquele ponto, naquele momento. Belo é aquilo do qual o meu olhar ficou prisioneiro. Eu olho e não consigo deixar de olhar. É o que me faz sorrir por dentro. É belo o seu conceito de belo! Mas para além do conceito está o amor. Só o amor intersubjetivo é que pode compreender o belo e Deus, e conjugá-los. O amor que 20


ama através da poesia, e que ama coisas. Amando a possibilidade das liturgias, a possibilidade das artes e a possibilidade de encontros nas cidades da cidade. A possibilidade das artes nas liturgias e cidades, a possibilidade das liturgias incorporarem o que aos pobres mortais é comum e abominável, a possibilidade de nas praças das cidades as meninas e meninos brincarem, os idosos e idosas assentados com seu cajado à mão compartilharem suas histórias, Deus ali habitar. Mas isto é possível quando o mundo é movido pelo interesse? Será que os filósofos, os que amam, não seus conceitos, mas a sabedoria que não sabem; será que os artistas, não somente os que constroem objetos belos, mas principalmente aqueles que vivem abertos às possibilidades da vida, à indeterminação e ao novo; será que os santos, não os que se excluem da possibilidade do sagrado nas cidades, mas que são santos nelas e para elas, os que valorizam o comum e o imundo, os tipos abominados pela hipocrisia social, será que destes profetas abafados pela indústria cultural secular e evangélica, consumista e medíocre, que não chama o cidadão por seu nome, mas o considera apenas consumidor, não a partir de sua individualidade, mas a partir de um gosto médio especulado; será que poderemos aprender não repetindo o vazio, como fazem sacerdotes, pastores e fiéis em seus rituais de morrer, mas aprender de cor/ação?

21


JOHN COWART DAWSEY é professor no curso de antropologia da Universidade de São Paulo (USP).

22


DESPERTANDO A BELA ADORMECIDA: UMA LEITURA BENJAMINIANA DA CIDADE John Cowart Dawsey*

“Um manuscrito estranho, desbotado ...” Clifford Geertz enuncia uma das abordagens mais fecundas para uma leitura antropológica da cidade. “Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu”, Geertz (1978:15) assume a cultura como sendo essas teias. Em relação à vida urbana, trata-se, para Geertz, de interpretar a sua tessitura. A cidade se apresenta como um conjunto de textos carregados de significados. A seguir, porém, partindo de premissas do pensamento de Walter Benjamin, pretendo explorar as margens ou o lado oculto do enfoque de Geertz. Há uma “afinidade eletiva” entre as “leituras” de Geertz e Benjamin da cultura. Trata-se para o primeiro de ler “um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado” (Geertz 1978:20). A não ser por um detalhe, talvez seja essa também a tarefa a qual Benjamin se propõe. O detalhe, porém, abre uma verdadeira fenda. Em Benjamin não se buscam os “exemplos transitórios de comportamento modelado”. Não se buscam os gestos e detalhes de comportamento para revelar o modelo. Seu olhar se dirige justamente ao que escapa do modelo. Não se procura “arrumar” o manuscrito mostrando como, na verdade, ele revela um modelo e uma coerência oculta. Procura-se justamente aquilo que um modelo tende a esconder: sua “estranheza”, seu “desbotamento”, e suas “elipses”, “incoerências”, “emendas suspeitas” e “comentários tendenciosos”. Trata-se, para Benjamin, de revelar aquilo que interrompe a narrativa do manuscrito. Ele quer justamente “salvar” o “esquecido”. Ao invés de descrever o “contexto” que dá sentido aos detalhes e os detalhes que atualizam o “contexto”, Benjamin quer detectar os detalhes que interrompem o “sentido” do texto. Para isso, é preciso arrancá-los do contexto. Para Benjamin, 23


a descrição de um contexto, assim como a escrita de uma narrativa, pode ser uma forma de esquecimento. Suas perguntas são simples: Quem escreveu a narrativa? Quem montou o contexto? Diante de tantas incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, quem lhe deu sentido? O que ficou de fora? O que foi esquecido? Para leitores que não se encontram ou se reconhecem no texto, onde estariam suas esperanças senão nas elipses e no próprio desbotamento do manuscrito – senão em tudo que faz com que seja visto justamente com estranheza? Ao invés de descrever o manuscrito e, a partir de exemplos transitórios, o modelo mais ou menos consciente que lhe dá coerência, ele procura captar, no inconsciente do texto, os detalhes que irrompem do esquecimento. Para Benjamin, há esperanças não apenas porque os exemplos de comportamento modelado são transitórios, mas também porque é transitório (desbotado) o manuscrito. No entanto, paradoxalmente, é o mesmo manuscrito, em suas elipses, rasuras e silêncios, que vem carregado de esperanças. Neste ensaio pretendo explorar quatro imagens que irrompem de registros etnográficos feitos na década de 19801. Três se referem a Piracicaba, uma cidade do interior paulista: 1) bonecos pescadores às margens do rio, 2) uma “grota” urbana em cujas encostas famílias do sertão de Minas construíram seus barracos, e 3) “novos anjos mineiros” transfigurados em “bóias-frias” em carrocerias de caminhões. Observa-se que essas imagens emergem em meio a sonhos de “progresso” que tomam conta do imaginário social de uma cidade e de um país. A última imagem vem de Aparecida, Vale do Paraíba, sob os domínios da padroeira do Brasil. Uma leitura benjaminiana dessa cidade pode ser de especial interesse para fins de análise do tema maior deste seminário (Seminário de Liturgia, Arte e Urbanidade, 5 a 10 de outubro de 1999, Rio de Janeiro). Tomando Aparecida como uma espécie de “cidade litúrgica”, algumas das imagens mais sugestivas certamente se encontram às margens e, no entanto, estranhamente próximas à catedral.É o caso da“mulher lobisomem”, imagem eletrizante que lampeja no parque. de diversões.

Com exceção da primeira (“bonecos pescadores”), essas imagens também foram discutidas em minha tese de livre-docência, De que riem os “bóias-frias”? Walter Benjamin e o teatro épico de Brecht em carrocerias de caminhões (FFLCH, USP), 1999. 1

24


“BRINCANDO DE BONECOS” Benjamin procura formas de leitura da sociedade nos limites da experiência racionalizante, associados a estados alterados da percepção freqüentemente restritos aos que vivem nas margens: na experiência das crianças, dos insanos, dos embriagados. As crianças particularmente são “irresistivelmente atraídas pelo resíduo que surge na construção, no trabalho de jardinagem ou doméstico, na costura ou na marcenaria. Em produtos residuais reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e para elas unicamente. Neles, elas menos imitam as obras dos adultos do que põem materiais de espécie muito diferente, através daquilo que com eles aprontam no brinquedo, em uma nova, brusca relação entre si”. (Benjamin 1993:18-19). Ao falar sobre a atividade do historiador, Benjamin (1985b:103) também evoca a figura do “catador de lixo”: “Temos aqui um homem: ele tem de catar pela capital os restos do dia que passou. Tudo o que a grande cidade jogou fora, tudo o que ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que ela espezinhou – ele registra e coleciona. Coleta e coleciona os anais da desordem, a Cafarnaum da devassidão; separa e seleciona as coisas, fazendo uma seleção inteligente; procede como um avarento em relação a um tesouro, aferrando-se ao entulho que, nas maxilas da deusa da indústria, assumirá a forma de objetos úteis ou agradáveis.” Bolle (1994:381) comenta: “Através de uma montagem em forma de choque, nasce uma imagem dialética. O colecionador burguês, através dos tesouros que acumula, providencia para si uma visão de conjunto do universo; o colecionador de trapos e farrapos, lixo e entulho (Lumpensammler) providencia, a partir desses resíduos, uma imagem do camarote a partir do qual se contempla o mundo.” Em Piracicaba, nos inícios dos anos 80, figuras de bonecos pescadores irrompem na “mata” em barrancos da margem direita do rio, oposto à margem onde se situa a “Casa do Povoador”, monumento da obra “civilizadora” de “bandeirantes” e heróis afins. Ao estilo de “visagens caipiras”, de caiporas e curupiras, os bonecos “assombram” a cidade. Não raramente, são vistos como “espantalhos”. O artista que fez esses bonecos, “Seu Elias”, antigo morador da Rua do Porto, “velho barranqueiro”, trabalha à moda de um bricoleur, juntando roupas, chapéus, e sapatos descartados, com resíduos de oficinas, paus e pneus, e restos de ramos e galhos deixados pelas obras de prefeituras nos dias em que as árvores são aparadas com fins de que curtos-circuitos dos fios elétricos da cidade sejam evitados. Carregados de tensões, os bonecos evocam as esperanças de quem vivia às margens do rio, inclusive antes da chegada dos “heróis”. Essas imagens se articulam ao presente, num momento de “perigo” para os velhos “barranqueiros”, moradores que se 25


vêem ameaçados pelas transformações recentes no cenário urbano: deslocamento da antiga sede da prefeitura no centro e sua instalação em um prédio “moderno” com heliporto e vidros espelhados “pairando” sobre a área da Rua do Porto; o desaparecimento do brejo e sua transformação em praça de lazer; a formação de uma área de passeio a partir do fechamento de parte da antiga Rua do Porto (na altura das ruínas de olarias e locais onde moradores nos anos 70 ainda fabricavam pamonhas em indústrias caseiras ou preparavam os peixes para venda no mercado) agora destinada a restaurantes e lojas de uma nascente indústria do turismo; as pressões imobiliárias. Com a poluição do rio, os peixes vendidos nos restaurantes vêm de longe: Chile, Argentina e Pantanal Matogrossense. Em épocas de enchentes, especialmente, pressões aumentam para que famílias de “velhos barranqueiros” passem a morar em outras áreas da cidade. Histórias que “Seu Elias” conta a respeito dos “bonecos” – “pode jogar no rio, pode tacar fogo, que eles não saem do barranco do rio” – evocam histórias que se contam a respeito dos próprios “barranqueiros”. Quanto mais as pessoas maltratavam os bonecos, queimando-os, afogando-os ou roubando-lhes os chapéus, mais bonecos “Seu Elias” fazia. Mesmo após as piores enchentes, os bonecos voltam a povoar os barrancos do rio pelas mãos deste bricoleur. Relações lúdicas e miméticas que se estabelecem entre “velhos barranqueiros” e “bonecos pescadores” que se recusam a deixar as margens do rio vêm carregadas de forças. O fenômeno, aliás, poderia suscitar interesse por uma questão que emerge dos estudos clássicos de Frazer a respeito da magia simpática: os efeitos de poder das representações sobre os representados. “Bonecos pescadores” que evocam imagens de “barranqueiros” suscitam forças em “barranqueiros” que fazem suas moradas à beira do rio. Irrompendo ao lado de monumentos históricos, imagens de bonecos pescadores interrompem o efeito sedutor de narrativas da história, impedindo a obra de esquecimento que se produz, paradoxalmente, em projetos de “preservação da memória”, tais como os que se vinculam à “Casa do Povoador”. O que emerge nessas imagens é algo da memória involuntária da cidade, seu inconsciente social, que em relatos oníricos “oficiais” se encontra apenas em forma de elipses, rasuras e emendas suspeitas. Uma “história originária” se articula ao presente. Os bonecos evocam os “mortos”. “Quando olho para os bonecos nos barrancos do rio eu vejo meus próprios parentes e amigos, muitos que já morreram”, diz “Seu Elias”. “É a minha família.” Os “bonecos” também evocam um código da dádiva que permeia as relações de “barranqueiros” com o rio, originando como uma espécie de “contradom” capaz de suscitar, com varas de pescar e trajes de pescadores “caipiras”, a vida de um rio ameaçado pelas forças do “progresso”. O rio que nunca deixou de oferecer peixes em épocas de fome e desemprego, passa a depender, em termos desse código, dos “contradons” de “velhos barranqueiros”. “Devo obrigação pro rio”. Conforme o relato do “Seu Elias”, a idéia dos bonecos surgiu do desejo de uma menina da vizinhança que queria uma boneca. A boneca que “Seu Elias” fez do tamanho da criança acabou produzindo um susto num menino vizinho e, provavelmente, em sua mãe, que pediu que a boneca fosse levada embora. “Seu Elias” a levou ao barranco do rio. A boneca então fez irromper lembranças e promessas de um passado supostamente soterrado 26


UMA “GROTA” NA CIDADE Marshall Berman (1990:214) sugere que na figura do “homem do subterrâneo” de Dostoievski nos deparamos com uma das “cenas primordiais” da modernidade de São Petersburgo, Rússia, e da própria revolução de 1917. Quem sabe numa “grota” piracicabana, habitada por uma gente que veio do sertão de Minas Gerais, encontremos algo da história originária, carregada de tensões, da modernidade do interior paulista. Em 1978, certo dia ao cair da tarde, ao passear de ônibus num bairro de periferia de Piracicaba fui surpreendido por uma imagem insólita – por um “detalhe”, na verdade, que surgiu repentinamente no canto inferior do vidro do ônibus. Desci imediatamente do ônibus para ver de perto. Ao lado da rua, abria-se uma cratera, um pequeno abismo, uma imensa fenda na terra, em cujas encostas se encontrava um grande número de barracos. Hoje, ao relembrar a imagem do “buracão”, como era chamado, tenho em mente o quadro do Angelus Novus, de Paul Klee, interpretado por Walter Benjamin. Muitos haviam sido levados à cidade por uma tempestade chamada “progresso”. E muitos desses, como o angelus novus de Klee, olhavam para os destroços aos seus pés e que haviam deixado para trás. Nessa época, creio que a imagem de uma favela tinha algo de insólito. O “milagre econômico” não estava tão distante. Os sonhos de um Brasil gigante que finalmente acordaria do seu berço esplêndido para assumir o seu destino ao lado de outras potências mundiais, mesmo em meio aos temores da época, pairavam no ar. A favela do “buracão”, assim como muitas outras favelas em Piracicaba, havia surgido na época da construção da Caterpillar e das outras empresas do segundo distrito industrial da cidade, em torno de 1974. Em meio a um clima de estupor, creio que o “buracão” do Jardim Glória provocava um efeito de interrupção. Desses subterrâneos poderia emergir algo do inconsciente de uma cidade. Barrocos e mineiros como Guimarães Rosa, personagens do Jardim Glória apresentam sua história através das imagens da história natural: massas humanas que saem em direção à cidade levadas por uma tempestade chamada “progresso” se alojam nos fundos e encostas de uma fenda na terra, uma pequena cratera, um “buracão”. Tratava-se certamente de algo insólito. Atordoa. “Buraco dos infernos!” “Buraco do capeta!” Mas, às vezes, nesse “buraco” na cidade, o que irrompe são imagens de “grotas e fundos” de Minas Gerais. Nesses momentos, como uma alegoria incerta, arbitrária, mas ainda esperançosa, o significado do “buraco do capeta” e “cu dos infernos” oscilava, até mesmo se invertia.

27


“Perguntei sobre “Deus” e o “capeta”. “Como que eles são?” “A aparência deles?” Ela disse: “Você [cê] quer saber de uma coisa, João? Uns fala que o capeta é da cor preta, não é? `Preta da cor do capeta...’, é o que dizem. Mas, o capeta não é preto. E Deus também não é branco. Sabe como que eu acho que Deus é? Ele é um velhinho da cor de canela. Ele anda meio curvado e tá sempre caminhando daqui pra acolá. Ele não mora numa casa, mas vive [veve] numa grota em algum lugar na beira do mundo.” (17.5.85)

Quando o marido dessa mulher colocava o seu chapéu de couro de veado-mateiro (“é ligeiro, um cisco”), da terra e da mata onde nasceu, tal como fez no dia em que “caiu na cana”, e como fazia todo dia ao sair para trabalhar, imagens do passado carregadas de esperanças iluminavam a “grota” que uma tempestade chamada “progresso” abriu, em meio a qual este senhor e sua família moravam – “na beira do mundo”. O “grotesco”, termo derivado do substantivo italiano grotta, evoca na estética da cultura popular medieval e renascentista idéias de inacabamento e abertura. Associa-se também às imagens “infernais” de buracos, orifícios e subterrâneos embrionários por onde seres agonizantes fecundam e dão à luz (Bakhtin 1993:28, 303).

28


UM PEQUENO INTERLÚDIO PARA TRATAR DE ILUMINURAS SAGRADAS E PROFANAS... Talvez seja possível delinear uma espécie de “tentação antropológica” que se configura na medida em que antropólogos, em um dos momentos mais atrevidos de seu ofício, procuram representar a “visão”, o “saber”, ou as “vozes” dos “outros”. Trata-se, quem sabe, de uma “tentação hermenêutica” (com os rumores de um ofício sacralizante evocativo do deus Hermes). Certo dia, fui convidado em Piracicaba a servir de intérprete para alguns palestrantes dos Estados Unidos ligados ao movimento Black Power (Poder Negro). O público era formado por estudantes e professores universitários. Aos poucos me entusiasmei. Em determinado momento os meus gestos e timbre de voz rivalizavam com os do próprio palestrante, representante do Black Power. De repente, interrompendo um dos momentos mais dramáticos dessa encenação, o público começou a rir. Confuso, olhei para os lados, procurando o palestrante, sem o encontrar. Sorrateiramente, este havia desaparecido. Absorvido no papel de intérprete, eu nem percebera. O palestrante negro se ocultara, colocando-se propositadamente atrás do seu intérprete branco. Poderíamos também falar de “tentações litúrgicas”? Haveria “afinidades eletivas” entre “tentações” litúrgicas e hermenêuticas? A favela do Jardim Glória não existe mais. Quase todos os barracos viraram casas. O antigo “buraco” virou o bairro do “Jardim Glória II”. Um dos únicos barracos remanescentes pertenceu a um frei franciscano chamado Francisco. Através de recursos provenientes da Suíça, que se transformaram em tijolos e casas de alvenaria graças a um esforço persistente do frei junto aos moradores, que trabalharam em mutirões, uma antiga favela virou bairro. Das oito imagens fotográficas reproduzidas em uma reportagem recente do Jornal de Piracicaba (9-8-98) a respeito do Jardim Glória, apenas duas foram tiradas no antigo “buracão”. Uma delas, a de maior destaque na reportagem, é uma imagem luminosa da catedral construída em anos recentes no centro da antiga favela. A segunda é uma foto “em close” do frei franciscano na janela do seu barraco. Teria o jornal sucumbido a uma espécie de “tentação litúrgica”? Focando as imagens do frei e de uma catedral o jornal apresenta uma “iluminação sagrada” do Jardim Glória. Suas “iluminações profanas”, porém, tais como as que emergem de imagens benjaminianas, estão ausentes. Freqüentemente a luz em excesso vindo de cima ofusca. Há luzes subterrâneas. Embora registre algumas das imagens luminosas do Jardim Glória o jornal produz um esquecimento das fontes subterrâneas que iluminam a própria vida do frei. Aliás, como vimos, o “buraco do capeta” não apenas ilumina o frei e a catedral, mas projeta sobre a cidade sua luz subterrânea. 29


“NOVOS ANJOS MINEIROS” EM CARROCERIAS DE CAMINHÕES O “bóia-fria” teve presença marcante em Piracicaba em inícios da década de 70, quando ainda se vivia o clima do “milagre brasileiro” e das utopias do progresso. Os grandes projetos do Proálcool e Planalçúcar reativaram sonhos antigos e recentes, parcialmente interrompidos pela “crise do petróleo” de 1973, de um Brasil “colosso”, “país do futuro”. O sonho de um Brasil “gigante”, que, aparentemente “deitado eternamente em berço esplêndido”, finalmente acordaria para a realização de sua “potência”, ganhava em meio a esse clima de embriaguez, os contornos de uma visão: a de um país movido a álcool, graças a uma fonte de energia renovável capaz de garantir a autonomia da nação mediante a transformação de sítios, roçados e fazendas em canaviais. Foi nesse cenário que irrompeu, no imaginário social e na produção acadêmica dos anos 70, a figura do “bóia-fria”. Tratava-se de uma “aparição”, semelhante, na verdade, àquilo que surrealistas chamaram de “imagem poética”. A esse respeito, em inícios do século, Pierre Reverdy (apud Breton 1969:42) escreveu: “A imagem é uma criação pura do espírito. Ela não pode nascer de uma comparação, mas da aproximação de duas realidades mais ou menos distantes. Quanto mais as relações das duas realidades forem longínquas e corretas, mais a imagem será forte ¬– mais poder emotivo e realidade poética ela terá.” Aquilo que Reverdy chamou de “criação pura do espírito” tinha substância nos caminhões de turma. O longínquo se fez próximo. O estranho tornou-se cotidiano, e o cotidiano provocou estranheza. A aparição dos “bóias-frias” provocava, em quem os via como outros, uma sensação semelhante ao que se sentia vendo, em épocas de safra da cana, o chuvisco cotidiano de cinzas de cana queimada caindo sobre as cidades. Talvez, num primeiro encontro com esse chuvisco, fosse até possível para um poeta “respirar” a “aura” de que fala Walter Benjamin (1985a:170): “Em suma, o que é aura? É uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja. Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas montanhas, desse galho.” Canaviais literalmente projetavam sua sombra sobre a cidade na forma de cinzas de cana queimada. No caso dos “bóias-frias”, eram, na verdade, multidões que chegavam de lugares distantes, em ritmos de “industrialização da agricultura”, interrompendo o repouso e os sonhos de quem, na cidade, possivelmente sonhando com o progresso, não deixava de projetar olhares idílicos sobre a vida no campo. Não se trata apenas do fato de que pessoas do campo, avolumando-se em ondas de êxodo rural, chegavam à cidade. Trata-se do fato 30


de que, na figura do “bóia-fria”, essas realidades contrastivas tomavam corpo em uma única imagem. Através do “bóia-fria” – que vinha de um campo em que a cidade, de forma cada vez mais ostensiva, se fazia presente –, o campo realmente projetou a sua sombra sobre a cidade. Na verdade, a cidade se assustava com a sua própria sombra. Quando caminhões de “bóias-frias” passavam por ruas e avenidas, em meio à “gente da cidade”, olhares se encontravam. Nesses momentos, a sensação de ver-se sendo visto por outros podia criar tensões: o objeto olhado devolvia o olhar. Marshall Berman chamou esses encontros de “cenas primordiais da modernidade”. Numa interpretação de um poema de Baudelaire (1991), Berman (1990:148) evoca uma dessas cenas: “Nesse ambiente, a realidade facilmente se tornava mágica e sonhadora [...]. Contudo, cenas primordiais, para Baudelaire, como mais tarde para Freud, não podem ser idílicas. Elas devem conter material idílico, mas no clímax da cena uma realidade reprimida se interpõe, uma revelação ou descoberta tem lugar; um novo bulevar, ainda atulhado de detritos [...] exibia seus infinitos esplendores’. Ao lado do brilho, os detritos: as ruínas de uma dúzia de bairros [...]. A família em farrapos, do poema baudelairiano, sai de trás dos detritos, pára e se coloca no centro da cena. O problema não é que eles sejam famintos ou pedintes. O problema é que eles simplesmente não irão embora. Eles também querem um lugar sob a luz. [...] Pondo abaixo as velhas e miseráveis habitações medievais, Haussmann, de maneira involuntária, rompeu a crosta do mundo até então hermeticamente selado da tradicional pobreza urbana. Os bulevares, abrindo formidáveis buracos nos bairros pobres permitiram aos pobres caminhar através desses mesmos buracos, afastando-se de suas vizinhas arruinadas, para descobrir, pela primeira vez em suas vidas, como era o resto da cidade e como era a outra espécie de vida que aí existia. E, à medida que vêem, eles também são vistos: visão e epifania fluem nos dois sentidos. [...] Os bulevares de Haussmann transformaram o exótico no imediato; a miséria que foi um dia mistério é agora um fato.” Nos anos 70 e 80, sonhos de “modernização” do campo e da cidade tomaram conta da sociedade brasileira. Por detrás dos destroços, surgiram os “bóias-frias”. Às vezes, as carrocerias de caminhões carregadas dessas “famílias de olhos” tomavam de surpresa os moradores do centro da cidade, descendo por avenidas principais ou irrompendo ao lado de clubes de campo, geralmente quando, por alguma razão, retornavam mais cedo dos canaviais.Tais como “famílias dos olhos”, os “bóias-frias” não iam embora. Num vai-e-vem diário, iam e voltavam, mas sempre voltavam. Muitos se sentiram incomodados, provocados e, talvez, até seduzidos pelos olhares dos “bóias-frias”. Como se fossem atores num teatro épico de Brecht, os “bóias-frias” provocavam no palco da sociedade um momento de tensão: a “dialética em estado de paralisia”. Reunindo realidades distantes, como Walter Benjamin diria, em uma única “imagem dialética”, produziram, em quem tentava vê-los como outros, uma sensação de assombro. Benjamin (1985a:231) escreve: “Quando o pensamento pára, bruscamente, numa configuração saturada de tensões, ele lhes comunica um choque, através do qual essa configuração se cristaliza enquanto mônada. Nessa estrutura, ele reconhece o sinal de uma imobilização messiânica dos acontecimentos, ou, dito de outro modo, de uma oportunidade revolucionária de lutar por um passado oprimido.” Nos anos 80, a imagem do “bóia-fria” ainda surgia como algo capaz de interromper o discurso do “progresso”. Denunciava os destroços. Não se poderia dizer que o 31


“bóia-fria” estivesse às margens do progresso. Estava inserido em um dos setores mais dinâmicos da produção no campo e na cidade, a agroindústria canavieira, na qual, à época, muitos depositavam sua fé no futuro. O “bóia-fria” produzia a matéria-prima que alimentava os grandes projetos e utopias da modernização brasileira: o Proálcool e Planalçúcar. A cana-de-açúcar fazia uma “sociedade” sonhar. Os corpos dos “bóias-frias” friccionavam contra os sonhos estampados em suas camisetas e em seus bonés: “Winner” (“Vencedor”), “Hollywood Sucesso”, “Surfe”, etc. Do fundo dos caminhões que saíam para os canaviais, os “bóias-frias” olhavam a cidade. Saíam de madrugada não apenas como quem voltava ao passado, mas também como quem ia – de costas – em direção ao futuro.

‘ANGELUS NOVUS’... Walter Benjamin (1985l:226) escreve: “Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso.” O pesquisador também viu muitas vezes nos rostos dos “bóias-frias” o esboço do espanto. Também viam uma catástrofe única. Suas reações, porém, eram menos dramatizantes e mais carnavalizantes do que a do “anjo da história”. Talvez se assemelhassem mais aos “bufões”, “alegres espantalhos” e “demônios brincalhões” da cultura popular da Idade Média e do Renascimento, dos quais fala Bakhtin, do que ao angelus novus mais dramático de Benjamin. Seus gestos, porém, não deixavam de evocar os traços de criança dos desenhos de Klee. As igrejas barrocas de Minas Gerais estão povoadas por imagens de pequenos anjos travessos. Sobre as tábuas de carrocerias de caminhões nos anos 70 e 80, emergem, entre outras, as imagens de novos anjos mineiros. De madrugada, olhando a cidade, impelidos por uma “tempestade chamada progresso”, andavam de costas, feito curupiras, em direção aos canaviais.

32


ÀS MARGENS DA ‘CIDADE LITÚRGICA’: NOSSA SENHORA APARECIDA E A MULHER LOBISOMEM Um enfoque benjaminiano nos leva, me parece, a pensar em termos de estratégias para subverter os efeitos anestesiantes de textos litúrgicos. A Nossa Senhora Aparecida fala relativamente pouco nos textos litúrgicos que encontramos em Aparecida. Sua voz ganha corpo principalmente no Cântico de Maria, de Lucas 1:46-55. Porém, na liturgia que lá encontrei nos anos 80 aparecem apenas os versos 46-50:

“Minha alma engrandece a Deus, meu Senhor, meu espírito se alegra no meu Salvador. Olhado ele tem a sua vil serva: glória disto a mim se reserva. Por todas as gentes serei nomeada: em todos os tempos bem-aventurada. Em mim, grandes coisas fez o Poderoso; cujo nome é sacro, santo e majestoso. Glória ao Pai, ao Filho outro tanto; glória ao que procede de ambos, Amor Santo. Assim como era no princípio, agora, para sempre seja a trindade glória.” [“Rezemos o Terço” Terço-Ladainha-Ofício de N. Senhora. Novena a M. Sra. Aparecida. Aparecida, S.P. Editora Santuário, p. 59]

33


Procedendo à maneira de Benjamin, com olhos atentos às elipses, rasuras ou emendas suspeitas, procuramos por aquilo que está submerso no texto. O que diz o trecho ausente, os versos 51-55 do Cântico de Maria?

“51. Agiu com o seu braço valorosamente; dispersou os que no coração alimentavam pensamentos soberbos.

52. Derrubou dos seus tronos os poderosos e exaltou os humildes.

53. Encheu de bens os famintos e despediu vazios os ricos. 54. Amparou a Israel, seu servo, a fim de lembrar-se da sua misericórdia,

55. a favor de Abraão e de sua descendência, para sempre, como prometera aos nossos pais.” (A Bíblia Sagrada)

A própria cidade de Aparecida se apresenta como um texto. Creio, inclusive, que nela deparamos com uma espécie de “cidade litúrgica”. Da mesma forma que alguns versos do Cântico de Maria acabaram ficando às margens da liturgia oficial, algumas das maiores “atrações” da cidade se apresentam às margens da catedral. Ao pé do morro, no final de um trajeto que se inicia na escadaria da “catedral nova”, à esquerda dos devotos recém-chegados que se dirigem à missa, em um espaço fora da visão desses devotos, encontra-se o centro de diversões: “carrossel, tiro ao alvo, carrinhos elétricos de dar trombada, ‘Mulher Lobisomem’, `Mulher Gorila’, `Mulher Cobra’.” Walter Benjamin viu nos parques de diversões os locais de educação das massas: “As massas, escreve Benjamin, obtêm conhecimento apenas através de pequenos choques que martelam a experiência seguramente às entranhas. Sua educação se constitui de uma série de catástrofes que sobre elas se arrojam sob as lonas escuras de feiras e parques de diversões, onde as lições de anatomia penetram até a medula óssea, ou no circo, onde a imagem do primeiro leão que viram na vida se associa inextricavelmente à do treinador que enfia seu punho na boca do leão. É preciso genialidade para extrair energia traumática, um pequeno, específico, terror das coisas’” (apud Jennings 1987:82-83). O que mais chama atenção no parque de diversões de Aparecida são os espetáculos de mulheres virando bichos. Partindo de um enfoque hermenêutico, ao estilo de Geertz (ver principalmente o capítulo 4 de Negara), poder-se-ia ver nessas atrações a manifestação carnavalizante do caos em meio a qual emerge uma ordem serena de proporções cósmicas. A selvageria dessas mulheres mutantes, grotescas dramatiza, por efeitos de comparação, a beleza e brandura do rosto de 34


Nossa Senhora Aparecida. O verdadeiro terror que se instaura nesses espetáculos, cujos artistas se especializam na produção do medo, magnifica os anseios de se ver no regaço da santa. No santuário da “catedral nova”, nos seus recônditos mais sagrados, enquanto devotos contemplam o rosto e os olhos da santa, envoltos num manto bordado com renda de ouro, outros visitantes a Aparecida testemunham com uma mistura de espanto e riso a erupção de um “baixo-corporal” medonho nos corpos de mulheres-monstros despidas, peludas, escamosas. Como uma serpente que tentaria engolir a sua própria cauda, a “catedral nova” com suas torres luminosas, dirigidas ao sol, coloca em polvorosa, senão em debandada, as forças ctônicas que irrompem no final de um trajeto descendente que serpenteia pelas ruas morro abaixo de Aparecida. Num lampejo, mulheres aparentemente sãs, até mesmo com rostos angelicais, se transformam em bichos selvagens. Com estrondos e barulhos eletrônicos, uma moça branca e frágil se transforma na “mulher lobisomem”. Ela avança, arrebenta as grades de sua jaula e salta, de repente, em meio a espectadores que até então se encontram em pé, distribuídos em semicírculo. Há algo estranhamente familiar nesses espetáculos de parques de diversões. Talvez sejam surpreendentes as semelhanças entre o espetáculo da “mulher lobisomem” e as descrições que mulheres do “buraco” do Jardim Glória, os “novos anjos mineiros” que já tivemos a oportunidade de apresentar, fazem de suas próprias mutações repentinas:

- “Essas horas eu fico doida. Fico doida de raiva. Eu sou sã. Que nem nós, conversando aqui. Mas tem hora que eu fico doida!”- “Eu também sou assim.” (10.4.85)

Na verdade, esses espetáculos são bastante cotidianos: “Virei o cão!” “Virei uma onça!” “Fico doida de raiva!” Eis a descrição que uma moradora do Jardim Glória fez de uma proeza de sua vizinha, cujo nome também era Aparecida (uma Aparecida, aliás, bastante profana):

- “O povo do Seu Chico começou a rodear o menino. Aí, Aparecida pulou no meio da aldeia que nem uma doida. [...] ‘Pode vir’, ela falou. `Não tenho medo de vocês. Pode vir, que eu mato o primeiro que vier! [...].’ Os homens ficaram com medo de fazer qualquer coisa....” - “Aquilo que era mulher!” - “Enfrentava qualquer capeta!”. (7.6.83) 35


Dessa forma, a Aparecida do “buraco dos capetas” protegeu seu filho da raiva dos homens. Certo dia, repentinamente, uma mulher do Jardim Glória saiu em defesa de seu companheiro, enfrentando a polícia. O “causo” que seria imediatamente narrado numa roda de vizinhos também faz lembrar o espetáculo da “mulher lobisomem”:

“Ela ficou doida de raiva. Avançou no Luisão [um dos investigadores]!” (6.6.84)

O relato de uma mulher a respeito de seu enfrentamento com os donos de um bar, que queriam cobrar de seu marido uma dívida que já havia sido paga, é igualmente evocativo.

“Aí, ele (o dono do bar) falou: `Mulher [muié] doida!’ Falei: `Sou doida mesmo [memo]! Você [cê] tá pensando que eu sou gente?! Rá! Não é com o suor do Zé (marido) e de meus filhos [fio] que você [cê] vai enricar!’” (12.6.84) “Você [cê] tá pensando que eu sou gente?!” Essa frase poderia ter saído dos lábios da “mulher lobisomem”. Justamente nessas transformações eletrizantes, em meio a lampejos e estrondos, as esperanças de moradores do Jardim Glória brilhavam com intensidade maior. Às margens da “catedral nova” de Aparecida, nos seus parques de diversões, a partir de uma espécie de pedagogia do “assombro”, aprende-se a “virar bicho”. Talvez, de fato, a “mulher lobisomem” esteja estranhamente próxima a Nossa Senhora Aparecida, não, porém, enquanto contraste dramático, mas como uma figura que emerge, conforme a expressão de Carlo Ginzburg, de sua “história noturna”. Quem sabe, algumas das esperanças e promessas mais preciosas, ainda não realizadas, associadas à figura de Nossa Senhora Aparecida, se encontram nos efeitos de interrupção – no pasmo – provocados pela “mulher lobisomem”.

36


A BELA ADORMECIDA... Em uma tese recente a respeito da festa de Nossa Senhora da Piedade em Lorena (Salles 1999:123), fica-se sabendo que no domingo de encerramento da festa “a Congada e a Bateria da Cavalaria se reúnem na Igreja de Nossa Senhora do Rosário – hoje adormecida em seus ofícios religiosos...” (grifos meus). A imagem é evocativa de um prefácio que Walter Benjamin, de acordo com seu amigo Scholem, teria escrito:2

“Gostaria de recontar a história da Bela Adormecida. Ela dormia em meio aos arbustos de espinhos. E, após tantos e tantos anos, ela acordou. Mas não com o beijo de um príncipe feliz. O cozinheiro a acordou quando deu na jovem cozinheira um tabefe nos ouvidos que ressoou pelo castelo, zunindo com a energia represada de tantos anos. Uma linda criança dorme atrás da cerca viva espinhosa das páginas que seguem. Mas não deixem que qualquer príncipe de fortuna trajado no equipamento deslumbrante do conhecimento chegue perto. Pois no momento do beijo de núpcias, ela pode lhe morder. (...)” (apud Buck-Morss 1991:22)

2

para uma possível reapresentação do seu trabalho rejeitado, A origem do drama barroco alemão, à Universidade de Frankfurt.

37


Estariam a Congada e a Bateria da Cavalaria em Lorena tentando despertar – com barulho e muita festa – uma Nossa Senhora adormecida? Nessa tese também ficamos sabendo que a festa de Nossa Senhora da Piedade “começa a se concretizar aos olhos das pessoas” com a instalação do parque de diversões na praça da Nossa Senhora bem em frente à Matriz Catedral (Salles 1999:38). Os parques de diversões em Lorena e Aparecida serviriam para despertar essas “belas adormecidas”? Haveria nos barulhos da cidade, tais como os que ouvimos nos parques de diversões, em meio a carrosséis, carros elétricos, montanhas russas e mulheres lobisomens, algumas das imagens acústicas mais energizantes para fazer emergir, com efeitos de interrupção, esperanças e promessas contidas nas elipses, rasuras e emendas suspeitas de textos litúrgicos? 3

A idéia nos permitiria interpretar em chave benjaminiana o texto anteriormente citado de Geertz (1978:20) referente à leitura de “um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som (...)” (meus grifos) 3

38


Bibliografia BAKHTIN, MIKHAIL. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo, EdUnb/Hucitec, 1993. BAUDELAIRE, CHARLES. “Os olhos dos pobres”. In: Spleen de Paris. Lisboa, Relógio d’Água, 1991. BENJAMIN, WALTER. “Rua de mão única”. In: Obras Escolhidas II. São Paulo, Brasiliense, 1993. BENJAMIN, WALTER. Obras Escolhidas: Magia e técnica, Arte e Política. São Paulo, Brasiliense, 1985a. BENJAMIN, WALTER. “A Paris do Segundo Império em Baudelaire”. In: Walter Benjamin. Org. Flávio Kothe. São Paulo, Ática, 1985b BERMAN, MARSHALL. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo, Companhia das Letras, 1990. BOLLE, WILLI. A fisiognomia da metrópole moderna: representação da história de Walter Benjamin. São Paulo, Edusp, 1994. BRETON, ANDRÉ. Manifestos do Surrealismo. Lisboa, Moraes Editores, 1969. BUCK-MORSS, SUSAN. 1991. The Dialectics of Seeing: Walter Benjamin and the Arcades Project. MIT Press. DAWSEY, JOHN COWART. De que riem os “bóias-frias”? Walter Benjamin e o teatro épico de Brecht em carrocerias de caminhões. Tese de livre-docência. São Paulo, FFLCH, USP, 1999. FRAZER, JAMES GEORGE. O ramo de ouro. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 1982. GEERTZ, CLIFFORD. Negara: O Estado Teatro no século XIX. Lisboa, Difel, 1991. GEERTZ, CLIFFORD. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, Zahar, 1978. GINZBURG, CARLO. História noturna. São Paulo, Companhia das Letras, 1991. JENNINGS, MICHAEL W. Dialectical Images: Walter Benjamin’s Theory of Literary Criticism. Ithaca and London, Cornell U. P., 1987. SALLES, ELISA REGINA GOMES TORQUATO. A festa de Nossa Senhora da Piedade: Lorena, Vale do Paraíba do Sul. Tese de Mestrado. Departamento de Antropologia, USP, São Paulo, 1999.

39


REGINA NOVAES é professora na graduação e pós-graduação do curso de antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É editora da revista Religião e Sociedade do Instituto de Estudos da Religião (ISER). Seu campo de pesquisa atual está dirigido para os temas Religião, Política e Juventude e Religião e Política. O Brasil vivia sob a ditadura militar naquele período e os jovens se rebelaram contra o regime por meio de movimentos contestatórios.

40


OS JOVENS DA CIDADE Regina Novaes A proposta desta contribuição é trazer um pouco do olhar antropológico para a questão urbana. Para tal, escolhi como pano de entrada a juventude, já que esta é a geração que está vivendo mais profundamente a textura urbana. Na verdade, está vivendo esse mundo mais urbano do que rural, local e globalizado ao mesmo tempo. Há algumas perguntas que são geralmente feitas sobre os jovens e que compõem o escopo daquilo que é chamado de “o olhar antropológico frente à juventude de hoje”. A primeira questão está baseada na comparação entre a geração que nasceu por volta dos anos 50 e que fez o ano de 1968 (maio de 1968) , por meio do movimento contestatório, e a geração de hoje. As perguntas feitas no Brasil, basicamente, são: que papel desempenham os jovens na sociedade atual? Que jovens são esses, filhos das pessoas entre 40 e 50 anos que compuseram a geração do divórcio, da mulher no mercado de trabalho; a geração que contestou? Como é que aparece a atual geração de jovens com as características que têm? Por que o seu comportamento e atitudes não guardam relação com o comportamento e atitudes da geração dos seus pais? A primeira resposta pensa a geração dos pais como contestadora e a geração dos filhos como individualista e conservadora. Esta resposta encontra-se difundida em vários meios de comunicação e faz parte de um certo senso-comum. A esta primeira resposta interpõe-se uma questão: o que se está comparando? Ao serem estabelecidos os termos da comparação, percebe-se que o que nós comparamos é uma minoria do passado com uma maioria do presente. É importante atinar para o fato de que as cobranças à geração presente são feitas a partir de um grupo significativo, importante e formador de opinião na atualidade, mas que, estatisticamente falando, é apenas uma parte, uma parcela muito pequena da geração anterior. Sou professora universitária e em uma aula falava sobre a minha geração quando uma aluna me disse: “Mas a minha mãe nasceu no mesmo ano que você e não conta nada do que você está contando”. Aí fica claro que a gente compara coisas que não são comparáveis. Neste sentido, o olhar da antropologia ajuda a pensar como é que se comparam coisas comparáveis, grandezas comparáveis, e como se relativizam aquelas que, de tão repetidas, tornam-se verdades nos meios de comunicação, como é o caso de gerações. Esse é o primeiro ponto. 41


A segunda questão reside na idéia de que os conflitos de geração estão resolvidos porque a geração dos pais atuais evita confrontos em termos de valores. Então, há uma liberdade extensa concedida aos jovens e há também uma cultura urbana, bastante disseminada nos meios de comunicação, que afirma que “é preferível conversar do que reprimir”. Esta frase, no caso do Brasil, será encontrada desde o Programa do Ratinho, que é bastante popular e usa uma linguagem muito simples e sensacionalista, até o caderno Mais, da Folha de S.Paulo. Essa comparação é para dizer que todos esses meios de comunicação, de maneira mais ou menos sofisticada, generalizaram esta idéia: “É preferível conversar do que reprimir”. Até mesmo quem faz o discurso da repressão a repete. No entanto, é interessante perceber que a idéia do diálogo está presente, mas ela agrega outros valores. Falar sobre sexo, usos e costumes, liberdade de escolha religiosa, por exemplo, é possível e comum, mas onde é que ficam as tensões? Eu localizo as tensões na questão do uso das drogas. Existe aí um ponto importante para se pensar a respeito dessa geração e do urbano. Outra questão de grande importância, da qual emergem os conflitos de geração, é a inserção do jovem no mercado de trabalho. Esses dois pólos – droga e mercado de trabalho – é que vão produzir outros conflitos de geração que têm a ver com o urbano contemporâneo. Os jovens têm uma forte relação com o tempo presente, principalmente hoje, quando o futuro se apresenta cada vez mais incerto para eles e para elas. Isso provoca tensão nos pais. É como se os conflitos aparecessem porque a geração dos pais está olhando para os jovens e pensando em carreiras, em escolhas, e não está percebendo que é preciso aprender com a experiência dessa geração, isto é, com escolhas mais provisórias e reversíveis. Aqui se estabelece o ponto de conflito: a geração dos pais é formada para a questão da escolha. Considera-se que os filhos têm uma sorte danada de poder escolher, mas precisam escolher da maneira como os pais e mães escolheram. Esta é uma questão importante a ser pontuada. É aí que a geração dos pais pergunta: será que esta juventude pode propor algo novo ou se apaixonar por alguma causa, já que tudo é tão incerto e provisório? Estará ela condenada a não ter utopias e sonhos, uma vez que o desemprego é tão presente e os jovens gastam mais tempo preocupando-se em preparar-se para o incerto mercado de trabalho do que, por exemplo, com o sistema educacional? Volta-se então à comparação e à afirmação de que eles são conservadores. A geração dos pais solicita que a juventude atual tenha os sonhos e as utopias que a sua juventude teve, sem considerar que a utopia e a forma de pensar o futuro, que marcaram a geração passada, não marcam os adultos de hoje. Os adultos, atualmente, pensam de maneira diferente; pensam a política como aqui e agora. Mas, quando falam para os jovens, dizem que estes é que não têm utopias. Esta imediaticidade, no entanto, perpassa a sociedade de modo geral; não é só uma questão da juventude. As pessoas que questionam a política totalizadora afirmam igualmente que o jovem de hoje não tem um sonho, uma utopia. Na verdade, há uma descrença na possibilidade de mudanças radicais que mudou o caráter dos movimentos sociais contemporâneos. Hoje vale o aqui e o agora. Sentimentos de indignação pessoal 42


fazem com que as pessoas se engajem em ações cujos resultados possam ser de alguma forma palpáveis, a curto prazo. E muitas vezes sem nenhuma vinculação com a política partidária. Uma parcela dos jovens de hoje participa dessas ações, assim como uma parcela de jovens participou no passado. Este engajamento não é desprezível. Hoje, por exemplo, o contingente de alistamento eleitoral no Brasil é imenso, mesmo não-obrigatório. Os jovens estão votando. Nos partidos políticos existem alas jovens. Os partidos políticos são minoritários e os jovens são minoritários no partido político, mas existe essa possibilidade. Assim como os jovens que se engajam em movimentos de solidariedade, em movimentos de defesa do meio ambiente, no movimento negro, em movimentos culturais, em mobilizações pela ética e pela política. Essas evidências empíricas não devem ser abandonadas por serem minoritárias; elas devem ser pensadas como alternativas para a presente geração. Os grupos culturais, particularmente os musicais, merecem atenção. Falar em cidade hoje e falar nos conflitos da cidade deve passar por um ouvir o que se está produzindo em termos de música, no caso do Brasil. Há diversos grupos musicais, mas eu gostaria de citar um exemplo: os Racionais. Trata-se de um grupo paulista bastante radical e freqüentemente raivoso, que trabalha muito a Bíblia. Seu último CD foi produzido por uma produtora independente e vendeu mil cópias; as músicas têm muitos salmos bíblicos, com versículos citados. Não vão à TV Globo e fazem questão de não ir; promovem um pouco de merchandising de negação da mídia. A Bíblia e seus valores são usados como linguagem universal e de resistência ou, como eles dizem, “para trazer certos valores”. São contra as drogas e suas músicas falam da vida da cidade, da discriminação racial, da violência policial, do desejo de novos espaços para a juventude e, ao mesmo tempo, dos seus “inimigos”, que são a mídia, o sistema, os poderosos e os responsáveis pela desesperança. No caso dos Racionais, é interessante perceber que às vezes eles são muito radicais e falam muito mal dos mauricinhos e patricinhas. Estes dois nomes referem-se aos jovens de classe média, consumistas, que vão aos shoppings. Mas os mauricinhos e as patricinhas compram as músicas dos Racionais e as ouvem. Por que ouvem? Por que compram o CD dos Racionais? Minha hipótese é a de que há uma coisa que junta, no urbano, esses jovens. Essa coisa é o medo. A questão do medo, hoje, aproxima os jovens das grandes cidades, paralisa todas as diferenças de classe, cor, estilo de vida e situação social. As diferenças entre as diversas “juventudes” não estão anuladas, mas são minoradas, e mais: paralisadas. Há três espécies de medo claramente delineados nas grandes cidades do Brasil que aplainam as diferenças e juntam os jovens: o medo do tráfico de drogas, o medo da polícia e o medo do futuro. Há um certo departamento de legalidades, convivência de legalidades na cidade. O fato de ser jovem, numa cidade como o Rio de Janeiro, traz certa desconfiança, principalmente porque as pessoas estabelecem uma relação quase direta entre juventude e drogas. E ser jovem, negro, morador de favela, muito mais. Ao sair de noite para o lazer, a pessoa jovem sente medo da polícia e da bala perdida; da violência física, para além da simbólica. Quando os Racionais falam de Capão Redondo, que é periferia de São Paulo, com alto índice de mortalidade e assassinato, o jovem de classe média ouve e se identifica, por seu 43


lugar de juventude. O medo do futuro está relacionado à questão do desemprego. A dificuldade de inserção no mercado de trabalho cria a insegurança que junta os jovens em determinado momento. A juventude tem uma coisa de que o presente tem que valer. É uma maneira de enfrentar a instabilidade e a insegurança que o futuro representa. Os elementos acima mencionados são importantes para que se pense a política hoje e para que se entenda a presente geração de jovens no seu contexto; para que se perceba que esta juventude está vivendo os seus enfrentamentos e desafios de outra maneira. Mais uma questão a ser colocada é a da tolerância. A tolerância faz parte da coisa urbana. Por quê? Porque a cidade junta as diferenças. A cidade permite que alguém saia da zona norte e vá para uma festa da zona sul e vice-versa. As diferenças são juntadas. É aí que a tolerância se coloca como um valor. E a textura urbana em sua complexidade é, na verdade, propícia para que a tolerância, como valor, se dissemine. Levanta-se, então, a pergunta: quais os limites entre a tolerância e a indiferença? Esta é uma das coisas importantes a serem discutidas. Pensar que o número de informações que perpassam a juventude de hoje é, por um lado, produtor de tolerâncias e por outro, de indiferenças, cria uma outra necessidade: perceber quais são os sinais que mostram a junção da tolerância à responsabilidade social. Como perceber o outro? Como atentar para o sofrimento do outro sem fazer da tolerância uma questão de indiferença? A última questão a ser considerada é a religião. Algumas pesquisas recentes mostram que religião está em alta entre os jovens. Crer, crer, crer. Crer é ter fé. Este é um dado que não pode ser comparado com as outras gerações porque não se fez uma pesquisa da mesma forma. Mas várias pesquisas, em vários lugares, estão revelando que se fala mais em religião nesta geração de jovens do que se falava em gerações anteriores. No Brasil, o catolicismo sempre foi a religião oficial e dominante; ser católico é natural. Então, quase que falar em religião era fazer identidade social. Houve grandes mudanças nos últimos anos. As igrejas evangélicas cresceram muito no Brasil, assim como as religiões afro-brasileiras. No entanto, chamo a atenção para um ponto muito comum: o aparecimento do religioso sem religião. Essa idéia de combinar uma fé e uma síntese pessoal. Isso tem a ver com a textura urbana, com a globalização, com o oriente no ocidente, o ocidente no oriente, o número de informações e símbolos religiosos que estão sendo colocados no mundo hoje. É importante, em termos de debate, pensar que as religiões tradicionais também foram encontros interculturais; ou seja, as grandes religiões universais não nasceram sem cultura nem puras. Novas sínteses vão ser colocadas em termos de futuro e elas não são, necessariamente, menos puras e menos coerentes internamente do que as que se colocaram historicamente. O cristianismo, por exemplo, é um produto sincrético; é um encontro de culturas também. Por isso, não há motivo para assustar-se com esse momento que faz outros encontros de cultura e outras religiosidades se apresentarem.

44


45


LAAN MENDES DE BARROS é doutor em Comunicação e professor na pós-graduação da Fundação Casper Líbero, São Paulo. É compositor de música sacra brasileira.

46


COMUNICAÇÃO, ARTE E EXPRESSÃO DE FÉ NO ESPAÇO/TEMPO DA URBANIDADE Laan Mendes de Barros Quero registrar que desde o momento em que fui convidado, e em especial agora, estando aqui, a lembrança de um amigo marca a minha participação. Trata-se de alguém que conheci na minha primeira infância e com quem compartilhei os bancos da igreja e da escola, em tempos de formação cristã e de alfabetização. Tempos de se fazer arte; tanto no sentido mais específico do termo, da arte em suas diferentes linguagens – teatro, música, pintura etc. –, como no sentido de arte que criança faz, aquela arte de fazer bagunça, de se divertir, de desafiar limites. Na verdade, uma tem muito a ver com a outra e ambas estão presentes no espaço deste evento e nas questões relativas à criatividade. Esse amigo, com quem reparti momentos importantes da minha vida, parece estar presente aqui entre nós. Trata-se de Ernesto Barros Cardoso. Ele tem muito a ver com este encontro. A minha presença aqui é, pois, uma homenagem ao amigo Ernesto e marca a satisfação, a alegria de rever outros amigos e amigas, com quem já reparti outros momentos de vida. Entendo que pensar em liturgia é a gente pensar um pouco em amizade, é pensar um pouco em comunhão, que é uma palavra-chave. Comunhão é a mesma palavra-chave que está lá na origem etimológica do termo Comunicação. Comunicação tem a ver com comunhão. O mesmo comunicare, do latim, que vai dar origem à palavra comunicação, no sentido de tornar comum, de compartilhar, é também o termo que vai dar origem à palavra comunhão. É fato que, com o passar do tempo, comunicação foi ganhando novos sentidos, muitas vezes numa perspectiva mais pragmática, de transmissão de uma informação, de persuasão, de venda de alguma idéia ou de algum produto. No entanto, comunicação tem, ou deveria ter mais, de comunhão, que é marca muito forte do espaço litúrgico, da expressão da fé. Para se falar de liturgia, arte e urbanidade na perspectiva da comunicação é preciso, de imediato, conscientizar-se que comunicação é uma área de conhecimento, 47


uma área de estudos que têm, por natureza, uma visão interdisciplinar. Desse modo, as diferentes abordagens apresentadas neste painel, referentes aos campos da Psicologia, da Sociologia, da Antropologia e da Psicanálise, podem ser articuladas com a Comunicação. Mesmo que persistam preconceitos quanto à consistência científica dos estudos de comunicação, quanto a ela ser ou não uma ciência, numa herança racionalista cartesiana, que separa a ciência da filosofia e das artes, o fato é que já existem teorias e metodologias de estudo que justificam sua afirmação como área do conhecimento de natureza interdisciplinar, inscrita no campo das ciências sociais aplicadas. E vale lembrar que é na perspectiva da interdisciplinaridade, ou mesmo, da transdisciplinaridade, que o fazer científico vem se desenvolvendo em diversos campos de estudo. Nessa perspectiva há lugar para se articular razão com emoção, ciência com arte e fé. Minha abordagem considera a questão do espaço e do tempo, articulados com a problemática da comunicação. Quero levantar algumas reflexões a respeito do espaço da urbanidade, do tempo da urbanidade, dos limites da cidade, da urbanidade virtual, da expressão da fé na área da informação. Sobre o espaço da urbanidade, gostaria de pensar a situação que nós vivemos: um jogo entre concentração e isolamento. Concentração de pessoas, de carros, de aparelhos de TV, de monóxido de carbono, de ondas sonoras, de ruídos nas telecomunicações, de sinais de telefonia. Dentro desse mesmo espaço da urbanidade, de tanta concentração, temos também o isolamento. É curioso como essa mesma cidade, tão cheia de encontros, trombadas e conflitos, também se caracteriza por muitas situações de isolamento. Isolamento de alguém no meio do trânsito, de janelas fechadas, sozinho no seu carro. Isolamento de quem, embora conectado ao mundo, pela internet, está em sua casa, conversando com alguém distante, de quem nunca viu a cor dos olhos. Isolamento das pessoas pela falta de tempo. Isolamento das relações por falta de espaço. Isolamento até entre as pessoas que, dentro de uma mesma sala, compartilham da mesma televisão, mas cada um no seu espaço, com seu momento, sem poder falar um com o outro, num mero exercício de ouvir, num mero exercício de receber, receber, receber, até dormir. As pessoas da cidade dormem sonhos, também isolados, e acordam sozinhas, e realizam sua vida cheia de individualidade, cheia de competição, cheia de egoísmo. Talvez, até vivenciem sua fé nessa perspectiva. A cidade é um espaço de convergências e, ao mesmo tempo, de divergências, de conflitos. É um espaço de semelhanças e de diferenças. Por um lado a padronização de comportamentos, de linguagem, de vestuário e hábitos de consumo. Semelhanças que transcendem o espaço geográfico, atropelam identidades culturais, padronizam valores e o próprio entendimento do tempo e o espaço. E a comunicação de massa tem muito a ver com isso. Por outro lado, somos também cheios de diferença. Algumas profundamente injustas, resultantes de um sistema que classifica as pessoas, tornando uns melhores que os outros, condenando muitos à marginalidade da vida na urbanidade. Outras são diferenças desejáveis, que nem sempre são percebidas, valorizadas; que nem sempre são entendidas considerando nossas condições culturais, de gênero, de identidade política ou religiosa etc. Enfim, diferenças que muitas vezes são deixadas de lado, ou são reprimidas, num processo de massificação das pessoas, 48


de padronização do comportamento coletivo. Dentro desse espaço da urbanidade faço outro contraponto entre coletividade e individualidade, que se soma aos confrontos entre convergência e divergência, semelhança e diferença: de repente, o senso de convivência, de coletividade, fica dividido, tendo como contraponto a manutenção da individualidade. Para fazer parte de um grupo, a pessoa precisa reconhecer sua existência como indivíduo. Para amar o próximo é preciso amar-se a si mesmo. No espaço da urbanidade, reforçado pelos meios de comunicação, nem sempre somos valorizados em nossa individualidade, motivados a fortalecer a auto-estima, num exercício que leve não ao individualismo, mas ao encontro do ser humano consigo mesmo. O segundo aspecto refere-se ao tempo da urbanidade. E para pensar o tempo da urbanidade, a minha condição de participação neste evento é a melhor ilustração. Eu cheguei agora, correndo; daqui a pouco vou embora, correndo. O problema do tempo nesse mundo urbano da produção, do capital, do trabalho – urbanidade parece relacionar-se com trabalho – é a falta de tempo. É curioso como o tempo da urbanidade tem a ver com a falta de tempo, com o tempo acelerado, com a fragmentação do tempo. Essa aceleração do tempo se dá também no reflexo da convivência e da comunicação fragmentadas. Antes as mensagens era recebidas uma a uma, vindas deste ou daquele meio de comunicação; e o receptor fruía no seu tempo cada uma delas. O que se vê agora é a múltipla difusão de mensagens que, fragmentadas, vão nos encontrando, nos envolvendo. Surge, então, a falta de tempo para conseguir assimilar tanta informação. Às vezes, ficamos estressados por não conseguir dar conta de ler o jornal, ler a revista, consultar a internet, assistir à televisão, falar ao telefone etc., apesar das novas tecnologias apontarem para a simultaneidade de fruição e para o universo da multimídia. O tempo da urbanidade é o da falta de tempo; mas tem, também, outras dimensões. É o tempo que permite registrar, gravar e depois ver, retroceder no tempo. Ele ganha outros contornos com tecnologias que permitem superar a efemeridade da palavra falada, por meio da gravação, da impressão. Permitem ver a cena repetidas vezes, em slow motion ou de forma acelerada. E, afinal, quais são os limites temporais e espaciais dessa urbanidade? Quais os limites da cidade? A comunicação está presente em nossa escala de valores, em nossa percepção do mundo e da vida. Em especial, dentro do espaço urbano, acaba interferindo enormemente nas nossas compreensões do tempo e do espaço, alterando os limites da cidade. Campo e cidade se aproximam num mundo globalizado, organizado em redes. Até mesmo o problema da migração, da vinda do habitante do campo para a cidade, ganha outros contornos. Pode-se até falar de uma migração inversa, da fuga do cidadão urbano para o campo, em busca de melhor qualidade de vida. Quando eu penso no espaço e nos limites da urbanidade, nesses tempos onde as telecomunicações e as tecnologias da informação estão tão presentes, sou obrigado a pensar em outros limites, em outras cidades, em outro conceito de urbanidade. Até mesmo quem não está vivendo em uma cidade com alguns milhões de habitantes também está num contexto urbano. E é esse contexto que transcende o espaço físico por conta do nosso acesso à informação e de nossa divisão do tempo e do espaço, por conta dessas novas tecnologias. Entra em jogo até mesmo a questão da localização e da globalização e do que é este universo global. Pode-se pensar também em uma urbanidade virtual, 49


uma outra dimensão da cidade no tempo e no espaço. Eu não sou antropólogo, mas me atrevo a falar da condição de se pensar nesse mesmo conceito de sentimento de urbanidade, não só no espaço físico, mas também no espaço virtual da informação. Para isso, gostaria de lembrar um compositor brasileiro, Gilberto Gil, que diz assim em uma de suas canções: “Antes o mundo era pequeno, porque a terra era grande. Hoje o mundo é muito grande, porque a terra é pequena. Do tamanho da antena parabólica”. Ele continua: “Mundo dá volta, camará. Volta pro mundo, camará. De jangada, leva uma eternidade. De saveiro, leva uma encarnação. De avião, o tempo de uma saudade. Pela onda luminosa, levo o tempo de um raio. Lembro o tempo que demorava Rosa para aprumar o balaio. Quando sentia que o balaio ia escorregar”. Certa vez, estava participando de uma reunião em Quito, no Equador, quando, para mim, foi muito marcante assistir aos bombardeios da Guerra do Golfo pela televisão. O drama da guerra em um lugar tão distante, que ali ganhava ares de videogame, chegava até nós ao vivo, simultaneamente. É, a Terra vai ficando pequena. E nosso mundo de entendimento da vida, tão grande. Este mundo, esta virtualidade do urbano, esta mesma condição que é vivida no tempo e no espaço têm uma característica no meio de comunicação neste fim de século. Essas novas situações onde o tempo e espaço tomam uma nova escala, por mais polêmico que possa ser, me fazem obrigatoriamente lembrar de um autor canadense, Marshall McLuhan, que abordava essas novas idéias e tecnologias ao falar dos meios de comunicação. É dele a máxima “o meio é a mensagem” e é ele quem acena para a condição segundo a qual, para a construção, existe uma nova escala de uma relação do ser humano com o tempo e o espaço, por conta dessas novas tecnologias. Um pensamento de McLuhan mais curioso e que foi mais compartilhado, por conta até mesmo de sua fragilidade e ingenuidade, é o conceito da aldeia global. Essa idéia mostra a situação do campo e da cidade, o que é a nossa condição de sermos urbanos, seres urbanos, cidadãos urbanos, cidadãos locais, globais, do campo. Para que possamos refletir sobre a expressão de fé na era da informação, convém pensar nessa nossa condição urbana. E é curioso pensar como muitas das expressões de fé parecem meio desintonizadas, como uma musicalidade urbana. Sempre fui muito apegado a expressões que vinham de outros lugares, de outras planícies, de outras montanhas onde eu não vivia. Fico pensando, olhando, embora Carlos Drummond tenha suas raízes em outros lugares, outras memórias, o fato é que mesmo vivendo no espaço urbano, com freqüência a nossa experiência de fé se dá numa linguagem rural, linguagem do campo. Por conta de saudades que a gente tem de coisas que talvez a gente nem tenha vivido, por conta de esperança e de histórias que vêm de um passado tão remoto que marcam nossa experiência e nossa lembrança. A lembrança da caminhada do povo da Deus, a lembrança daquele tempo. Mesmo no tempo da urbanidade, muitas vezes temos dificuldade de trabalhar esta expressão de fé numa linguagem urbana. A arte tem a ver com o campo e não tem muito a ver com a cidade? Agora, ao mesmo tempo, ainda considerando a comunicação e a urbanidade, penso na comunicação em duas dimensões: a que mencionei no início, de ser o espaço do diálogo, o espaço do compartilhar, da comunhão, mas também tomada de uma maneira muito pragmática por outras 50


correntes teóricas, e a dimensão ligada à preocupação de quem está no espaço da Igreja em tentar passar a mensagem. A utilização que a Igreja e a mensagem religiosa fazem hoje dos meios de comunicação, e até mesmo do espaço litúrgico, com freqüência faz um contraponto com o que se dizia há pouco sobre se expressar da maneira do campo, mesmo no espaço urbano. Também estamos marcados pela competitividade e a intenção de transmitir, alcançar e atingir pessoas, que é o conceito funcionalista de comunicação, de pensar em um público-alvo. Qual o seu público-alvo? O que é? O que você vai falar? Quem é que você vai atingir? Dentro desse enfoque, há um público crescente nos espaços protestantes, evangélico, católico. Há uma utilização intensa, talvez um alvo cômico da mídia, estandarte do nosso tempo, como o padre Marcelo. A quantidade de discos que ele vende, as capas de revistas que faz. Recentemente, ele saiu na capa de uma revista de nome Marketing. Aí está o padre Marcelo no primeiro espaço. Do mesmo modo, outras Igrejas vão tomando conta de emissoras de televisão. Recentemente, quem vive em São Paulo e gosta de música popular brasileira sofreu um baque ao perceber que uma emissora chamada Musical FM, como muitas outras, deixou de existir. Os ouvintes protestaram e disseram a eles que a estação dava mais dinheiro como uma rádio Gospel. A Musical FM era a única rádio de São Paulo que só tocava música brasileira. Tinha grande audiência, mas acabou sendo arrendada, passada para uma igreja. Da noite para o dia, os ouvintes que já tinham aquela programação no seu aparelho de rádio e que foram procurar ouvir um Gilberto Gil, como conversamos agora há pouco, e outros tantos bons compositores, compositoras, cantores e cantoras brasileiros, surpreenderam-se com uma música evangélica. Creio, então, que temos alguns desafios: qual é a comunicação que nós estamos pensando e como devemos trabalhar? Olhar para o futuro, ter essas referências do passado, pensar na nossa condição de seres humanos urbanos, mas que têm toda uma memória do campo, mesmo não tendo vivido no campo. Uma nostalgia do passado, sonhos do futuro, como é que a gente se encontra nesse espaço e nesse tempo? Gostaria de acrescentar que a Igreja e a expressão de fé eletrônica nem é mais só eletrônica, é uma Igreja virtual, pois a mensagem religiosa é muito presente na internet. Como estamos lidando com isso? Creio que um desafio para os liturgistas é conseguir, ao mesmo tempo, marcar suas referências de passado, do campo e viver a urbanidade, descobrindo como viver uma expressão exótica, mas que consiga dar o seu tempo sem se perder na fragmentação ou na confusão, buscando uma articulação entre a dimensão de memória de passado, podendo estar presente, trabalhando a esperança de futuro, uma linguagem que não seja só a memória, mas também possa apontar para novas relações, novas perspectivas, novas formas de fazer Igreja e se expressar.

51


PEDRO DE NOVAIS LIMA JUNIOR* wl wdclkwdlkcnwlkdcn lkwnclkwn clkwdnclkwn clkwdn c wdlcnwlkcnlwkn clkwnclkwn dckl nwlkcn wlkn cwd

52


PERDIDOS NO ESPAÇO:

SOBRE O LUGAR DA LITURGIA NO MUNDO CONTEMPORÂNEO

Pedro de Novais Lima Junior* Neste fim de milênio, quando a Igreja comprometida com ‘a vinda do reino’ é confrontada com questões de ordem social, política e doutrinária, entre inúmeras outras às quais deve dar respostas, pareceu-nos que um seminário sobre o tema Liturgia, Arte e Urbanidade seria um anacronismo. No entanto, ao considerar o assunto sob o ponto de vista das relações sócio-espaciais próprias de nossa sociedade urbana, percebemos que a escolha do tema revela afinada sintonia com o nosso tempo, o que lhe confere a maior relevância e pertinência.

A CENTRALIDADE DA DIMENSÃO ESPACIAL Esse nosso tempo se caracteriza por uma recuperação da dimensão espacial na compreensão da vida social, que foi possibilitada, simultaneamente, por avanços no nosso conhecimento do mundo e por mudanças na natureza desse mesmo mundo. Mudanças subjetivas Nos esquemas tradicionais de compreensão e intervenção na realidade social predominava, até recentemente, a concepção cartesiana de espaço. Considerado no âmbito do absoluto, este espaço “contém todos os sentidos e corpos” (Lefebvre, 1991b, p.1) e é pensado, de modo abstraído, como mero suporte das relações humanas. Em rompimento com essa tradição intelectual, desenvolve-se a concepção relativista do espaço. Isto significa que a categoria espaço ganha evidência na explicação dos processos sociais, sobretudo em função do sentido ampliado atribuído à localidade: “a idéia de localidade está necessariamente introduzida na física einsteiniana pelo fato de que as medidas só podem ser feitas num certo lugar e são relativas à própria situação em que são feitas” (Morin, 1998, p.178-9). Com 53


este passo é que se pode imaginar a coexistência de uma pluralidade de realidades (a existência simultânea de diferentes espaços-tempos), o que também permite reconhecer que todo o ponto de vista é posicionado, isto é, que todo o pensamento é socialmente situado. Mudanças objetivas A maior significação atribuída ao espaço não é resultado apenas do desenvolvimento das abordagens de reconhecimento do mundo. É, também, fruto de uma mudança substantiva do real. Essa mudança caracteriza-se, conforme Ribeiro, pelo conflito que surge em função da maior interação entre as escalas de realização da vida social, uma vez que há, por um lado, um aumento da capacidade de ação no mundo (o potencial de mudança e ruptura surge simultaneamente em vários lugares) e, por outro, uma maior manipulação da ordenação mundial (o desenvolvimento da capacidade de controle dos recursos mundiais e mudanças nas formas de exercício do poder; Ribeiro, 1999). Harvey também afirma a centralidade atual do espaço, observando que, com a expansão capitalista em escala global, a idéia de localidade adquiriu significado econômico objetivo: “Com a redução das barreiras espaciais [através da abertura de fronteiras entre nações, da melhoria nos meios de comunicação e transporte etc.] aumenta muito mais a nossa sensibilidade ao que os espaços do mundo contêm.” (1989, p.265). Em suma, presenciamos a recuperação do espaço como dimensão fundamental para a compreensão e intervenção na realidade. Tanto em função do desenvolvimento intelectual, no plano das representações do mundo, como em razão das manifestações objetivas da (re)estruturação das relações sociais, o espaço aparece não apenas como um produto, mas como produto que também condiciona essas relações (Lefebvre, 1972, p.21; Harvey, 1996, p.207).

A RELAÇÃO ENTRE LITURGIA E URBANIDADE Se dissemos que o tema da Liturgia, Arte e Urbanidade está em sintonia com o nosso tempo, também foi em virtude de pressupormos uma estreita relação entre liturgia (que associamos preliminarmente à forma da celebração) e espaço (o local e o lugar do ato litúrgico) — essa relação é também percebida por Mircea Eliade, para quem o espaço sagrado é construído ritualmente (1992, p.27-8). Por isso, propomos refletir sobre essa relação naquilo que lhe é marcadamente contemporâneo, a urbanidade. Faremos isto orientados por duas questões: 1. Qual o lugar da ‘urbanidade’ na liturgia? 2. Qual o lugar da liturgia na ‘urbanidade’?

54


A URBANIDADE NA LITURGIA Para refletir sobre o lugar da urbanidade na liturgia, precisaremos pensar com que tipo de ‘urbanidade’ pretendemos dialogar, e isso implicará pensar no que é o ‘urbano’. A urbanidade ‘Urbanidade’, no sentido adquirido pela palavra a partir do Renascimento, é uma qualidade do modo de vida urbano: urbanidade implica ‘civilidade’, triunfo da ‘cortesia’, em contraste com a vida rural. Idealmente, urbanidade sugere uma aproximação entre indivíduos. Na prática, implica um isolamento que toma a forma da ‘atitude blasé’, descrita por Simmel para caracterizar o “embotamento do poder de discriminar” e explicar o movimento de ‘autopreservação’ contra a intensa exposição aos diversos estímulos aos quais o ser humano está submetido na grande cidade (1976, p.15-17). Em outras palavras, à medida que se desenvolve o urbano, a urbanidade, no seu sentido mais comum, se desfaz (Lefebvre fala da ‘dissolução da urbanidade’; 1972, p.20). Alessandri Carlos vê na cidade contemporânea uma ironia, “aqui um indivíduo vale como outro qualquer, mas este valor passa pela indiferenciação e não pela consideração” (1996, p.133). Para essa autora, a ‘urbanidade’ se consolida, à medida que se produz o cotidiano. Por isso, pensar o lugar da urbanidade na liturgia é refletir sobre o urbano — o espaço social, de um modo geral, “âmbito e objeto de estratégias” (Lefebvre, 1972, p.51-2). O urbano como cotidiano programado Para o filósofo francês Henri Lefebvre, a realidade contemporânea pode ser definida como a de uma ‘sociedade burocrática de consumo dirigido’ (1991a, p.68; 1972, p.8-10), uma sociedade organizada em torno da programação dos desejos humanos em direção ao consumo, nos limites do universo do produzido:ites do universo do produzido:

“’Sociedade burocrática de consumo dirigido’, tal a definição proposta aqui para a ‘nossa’ sociedade. Marcam-se assim tanto o caráter racional dessa sociedade, como também os limites dessa racionalidade (burocrática), o objeto que ela organiza (o consumo no lugar da produção) e o plano para o qual dirige seus esforços a fim de se sentar sobre: o cotidiano.” (Lefebvre, 1991a, p.81-2) 55


Note-se que essa sociedade é produzida — pela programação — no plano do cotidiano. Para Lefebvre,

“O cotidiano não é um espaço-tempo abandonado, não é mais o campo deixado à liberdade e à razão ou à bisbilhotice individuais. . . . O cotidiano torna-se objeto de todos os cuidados: domínio da organização, espaço-tempo da auto-regulação voluntária e planificada. Bem cuidado, ele tende a constituir um sistema com um bloqueio próprio (produção—consumo—produção). Ao se delinear as necessidades, procura-se prevê-las; encurrala-se o desejo. . . . A cotidianidade se tornaria assim, a curto prazo, o sistema único, o sistema perfeito, dissimulado sob os outros que o pensamento sistemático e a ação estruturante visam” (1991a, p.81-2). Alessandri Carlos observa que entre as características desse cotidiano destacam-se a supremacia do objeto sobre o sujeito e a exacerbação do individualismo. A supremacia do objeto, que deixa de ser pensado por seu uso para ser valorizado como signo que socializa, implica a hegemonia de um mundo de representações. A mercadoria passa a ter vida própria e a dominar o processo social. Ela “se autonomizou ante o sujeito determinando as relações entre as pessoas” (1996, p.136), relações que são mediadas no consumo, configurando o ser humano como um ‘ser consumidor’. Neste mundo de representações e do consumo emerge um ‘sujeito’ alienado. Tornado objeto e sujeitado, o indivíduo que a cidade produziu é também massificado. Alessandri Carlos explica que “o homem consumidor, por excelência, é parte integrante da massa — realidade opaca que aparece isenta de contradições — nem sujeito, nem objeto, mas sujeito e objeto de manipulação” (1996, p.141-2)

56


O URBANO COMO POTENCIALIDADE Apesar do caráter alienante do cotidiano na urbanidade, nem tudo está determinado (a liturgia só faz sentido em função dessa indeterminação), há desejos potencialmente acionáveis. Lefebvre observa que as lógicas sociais se situam em níveis diferentes, o que permite que se formem entre elas ‘fissuras’ pelas quais o desejo transita. Sem o desejo, diz-nos Lefebvre, “a ‘matéria humana’, informe, estaria submetida a uma forma absoluta, . . . a cotidianidade se faria inevitavelmente uniforme, mesmo a subversão seria impossível” (1972, p.93). Para Lefebvre, o urbano constituir-se-ia como uma virtualidade e como uma “prática em marcha”, desenvolvimento social que nasce com a complexificação — seu caráter diferencial contrasta, portanto, com a lógica industrial de homogeneização, segmentação e simplificação (1972, p.123, 124) — e que se define pela capacidade de congregar diferenças e criar múltiplas centralidades. A congregação que caracteriza o urbano depende da negação da distância e da consideração da simultaneidade (Lefebvre, 1972, p.177). As diferenças imanentes dão o caráter do todo, de modo que, na cidade, “as coisas diferentes influem umas nas outras e não existem distintamente, senão segundo suas diferenças. O urbano é indiferente a cada diferença . . . mas não é indiferente a todas as diferenças já que as reúne” (Lefebvre, p.123-24). Isso quer dizer que as diferenças não são apenas reunidas, o urbano transforma-se por elas e no urbano elas são transformadas. O urbano também pressupõe a centralidade, mas é uma centralidade momentânea, que surge, simultaneamente, em diferentes locais (Lefebvre, 1972, p.177). As diferenças que podem transformar o urbano e a centralidade potencial dos diferentes locais parecem-nos indicar o lugar da urbanidade na liturgia: a ‘urbanidade’, enquanto ‘cotidiano programado’ é o local para o qual poderiam se dirigir as energias transformadoras que a Igreja representa. Ao mesmo tempo, enquanto ‘potencialidade’, a urbanidade, ou melhor, o urbano, exprime uma condição especial para que a missão da Igreja seja realizada, é o lugar, por excelência, para sua concretização: “o fato de que qualquer ponto possa ser tomado como centro é o que caracteriza o espaço-tempo urbano. [Porém, conforme nota Lefebvre,] a centralidade não é indiferente àquilo que reúne, ao contrário, necessita de um conteúdo” (1972, p.122). Afirmaremos adiante que a liturgia é o aproveitamento de diferenças e a instauração de centralidades no mundo.

57


A LITURGIA NA URBANIDADE Liturgia é diálogo com o mundo, e não faria sentido se ocorresse fora do mundo: “Não rogo que os tires do mundo . . . .”, disse Jesus (João, 17:21). Sua propriedade parece-nos, portanto, poder ser medida pelo grau de interação da Igreja com o mundo, por isso dissemos que o urbano é o lugar, por excelência, para a concretização a missão da Igreja. Talvez devêssemos ser ‘realistas’ e usar os meios disponíveis, para comunicar a fé ao indivíduo atomizado, conforme se nos apresenta de imediato. Seria, porém, uma resposta ‘irreal’ pois que, dirigindo-se a uma urbanidade caracterizada pela indiferença e pelo individualismo, essa abordagem não conseguiria exprimir o caráter comunitário da Igreja (que pareceu-nos adequadamente apreendido no folder de chamada para o seminário, onde se diz que “o evento cúltico é o espaço, por excelência, de comunicação da fé e da expressão comunitária de ser Igreja”) e, portanto, a realidade da fé. Esse realismo também pressupõe uma hipótese irreal: a que os sujeitos não são transformados em suas relações (aqui, diálogos) uns com os outros. Para ser real, a liturgia não deve despir-se de seus conteúdos utópicos, mas dar lugar ao sonho, à potencialidade do desejo. Deve assumir seu componente transformador, “sal da terra e luz do mundo”, assim definidos para ressaltar as funções de salgar e iluminar: na liturgia, a Igreja dialoga com o mundo porque pretende transformá-lo. Ela considera que, de alguma forma, isto é possível, o que quer dizer que a Igreja consegue ver as indeterminações (e para além delas!).

58


OS PROPÓSITOS DA LITURGIA: O DIÁLOGO COM A URBANIDADE Somente vendo o urbano como uma potencialidade é que podemos pensar no lugar da liturgia na urbanidade. Teríamos também que pensar na possibilidade litúrgica de construção de uma nova ‘urbanidade’, ou no resgate de seu sentido original e ideal. No que concerne à dimensão material de ação e significação da Igreja, ‘reconstruir a urbanidade’ é mudar o mundo, é virá-lo ao revés (Lefebvre, 1972, p.106-7), é desconstruir, no sentido objetivo do termo, o cotidiano programado e alienado, produzido na expansão do consumo e da cultura de massa. A liturgia que visa reconstruir a urbanidade é a que denuncia o simulacro (a coisa trocada pela imagem), que resgata o indivíduo ‘desindividualizado’, cuja existência perdeu sentido, enfim, é a que reaviva a utopia, aspecto fundamental do culto cristão. Isso tudo reafirma o papel transformador e desalienador da liturgia pois, como diálogo transformador do mundo, a liturgia é uma pedagogia.

OS MEIOS DA LITURGIA: COMO DIALOGAR COM A URBANIDADE Os meios da liturgia são o espaço e o tempo. A liturgia só existe na medida em que possa produzir o espaço e o tempo. Isso foi posto em outras palavras por Eliade: “Tal como uma igreja constitui uma rotura de nível no espaço profano de uma cidade moderna, o serviço religioso que se realiza no seu interior marca uma rotura na duração temporal profana . . . .” (Eliade, 1992, p.61-2). Espaço e tempo são construções sociais — ordenamentos simbólicos — e, como tais, definem os modos de apreensão da realidade e de ação no mundo (Harvey, 1996, p.208). Esses ordenamentos simbólicos do espaço e do tempo definem as possibilidades de nossa experiência pessoal, as condições do aprendizado de nosso lugar na sociedade. Eles são, portanto, estruturantes das relações sociais e, assim, fundamentais para o exercício do poder. Essa relação entre ordenamento simbólico do espaço e do tempo, estruturação de relações sociais e exercício de poder, 59


sugere que a construção social do espaço e do tempo é objeto de disputa simbólica (Bourdieu, 1998). O caráter disputável do espaço e do tempo é o que dá sentido à liturgia, que opera exatamente tornando manifesta essa condição de indeterminação do espaço e do tempo do mundo, conforme fica claro no diálogo entre Jesus e a mulher samaritana, do qual extraímos a seguinte argumentação:

“Mulher, crê-me, a hora vem, em que nem neste monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai . . . Mas a hora vem, e agora é, que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade” (João 4:21, 23) Por isso, seria adequado afirmar que liturgia é a instauração de tempos (ou da eternidade) no tempo do mundo. Enquanto ritual, cerimonial e celebração, é a comunicação do eterno ao tempo presente, através das relações aos mitos (associados aqui ao passado) e utopias (porvir). Diríamos também que liturgia é a instauração de lugares (centralidades) no espaço do mundo. E só é transformadora na medida em que resgata os espaços que, na ‘urbanidade’, escapam ao urbano homogeneizador e alienante: “a prática de apropriação do tempo e do espaço para o ser humano [é] uma modalidade superior da liberdade”, ensina Lefebvre, notando que, no presente, o espaço está monopolizado. A disputa simbólica pela construção do espaço e do tempo foi uma prática corrente da Igreja desde seus primórdios: o desejo de Pedro de fazer três cabanas e ficar no alto do monte (Mateus 17:4) pode ser contrastado com as palavras de Jesus que enfatizavam o caráter relacional do espaço da Igreja, que não se configura anteriormente a ela, mas se configura com ela: “Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles” (Mateus 18:20). O que dizer do cenáculo, das catacumbas, do texto de Hebreus 13:14 — “não temos aqui cidade permanente, mas buscamos a vindoura” — e da recuperação que Estevão fez da construção do templo de Jerusalém (Atos 7:48-9), se não que o lugar da Igreja é o urbano (o lugar das múltiplas e momentâneas centralidades). As palavras de Jesus à mulher samaritana — ‘dessacralizando’ o templo — e sua observação aos discípulos (Mateus 18:20) — sacralizando o espaço social (a Igreja) — indicavam não existir, a priori, um lugar santo, mas apontavam para a possibilidade da santidade em todo o mundo (referimo-nos, aqui, ao possível, ao que é utópico na missão da Igreja). Daí, pensamos, a liturgia possui um caráter essencialmente espacial, uma espacialidade relacional (pois construída nas relações entre os sujeitos) e urbana, que se baseia na capacidade de aproveitamento de diferenças e de instauração de centralidades e, assim, de diálogo efetivo com o mundo.

60


O LUGAR DAS ‘ESTRATÉGIAS LITÚRGICAS’ Dissemos que, como diálogo transformador do mundo, a liturgia é uma pedagogia. Isto envolve a elaboração de estratégias litúrgicas (buscamos apoio para essa afirmação num raciocínio elaborado por Lefebvre; 1972, p.83). Só quando estas são acionadas é que há possibilidades de transformação:

“Se o círculo não consegue fechar-se, não é por falta de vontade nem de inteligência estratégica: é porque ‘alguma coisa’ de irredutível se opõe . . . Para quebrar o círculo vicioso e infernal, para impedir que se feche, é necessária nada menos que a conquista da cotidianidade, por uma série de ações — investimentos, assaltos, transformações — que também devem ser conduzidas de acordo com uma estratégia” (Lefebvre, 1991a, p.82). Sob o ponto de vista do espaço, as estratégias de uma liturgia transformadora deveriam considerar e se realizar, simultaneamente, nas diversas escalas da vida social. Por exemplo, nestes tempos de globalização — “intensificação das relações sociais em escala mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de distância e vice-versa” (Giddens, 1991, p.69) — a capacidade de mobilidade da Igreja no espaço do mundo apresenta um potencial transformador não aproveitado. Suas características só encontram semelhança com as do início da era Cristã, quando o Império Romano estendia sua teia por todo o mundo ocidental (e não teria sido por conta desse fator espacial que aquele período foi o determinado para “a plenitude dos tempos”, conforme Gálatas 4:4?). Uma outra estratégia da Igreja pode tomar como base sua capacidade de mobilização. A história do urbano indica que a pólis grega foi invadida e paulatinamente transformada pelo mercado, sendo que ainda é o tempo do mercado que domina o espaço da cidade (Lefebvre; 1972, p.24-5): a cidade transforma-se paulatinamente no palco aberto de um espetáculo permanente voltado para a contemplação e o consumo de imagens que substituem as próprias práticas sociais. A cidade se 61


constrói, não mais como obra coletiva, elaborada ao longo do tempo, mas como produto mercadológico feito para “consagrar a eternidade da cena — bem polida, limpa, enfeitada, transformada ela mesma em museu” (Arantes, 1998, p.135-36). Não seria o caso de a Igreja expulsar os ‘vendilhões’ — num movimento semelhante ao descrito em Mateus 21:12 — e avançar na cidade. Neste texto procuramos desenvolver o argumento de que a noção de espaço é importante para refletir sobre o sentido da liturgia no mundo contemporâneo e, por isso, propusemos refletir sobre a relação liturgia-espaço no contexto da urbanidade. Observamos que o urbano é um lugar em disputa, onde há programação mas também há potencialidades. Observamos ainda que a liturgia funciona como uma espécie de pedagogia e por isso concluímos que liturgia é a instauração de tempos (ou da eternidade) no tempo do mundo e de lugares (centralidades) no espaço do mundo. Finalmente, tecendo elaborações preliminares sobre a idéia de estratégias litúrgicas, notamos que o contexto do mundo contemporâneo permite, de modo especial, o desenvolvimento de uma estratégia dupla, de mobilidade e de mobilização. Essas considerações muito preliminares nos levam a perceber a importância fundamental da liturgia no cumprimento da obra missionária da Igreja, no mundo contemporâneo.

62


Bibliografia ARANTES, OTÍLIA B. FIORI. Urbanismo em fim de linha e outros estudos sobre o colapso da modernização. 1988 ARQUITETÔNICA. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo. ALESSANDRI CARLOS, ANA FANI. O lugar no/do mundo. São Paulo, Hucitec, 1996. BOURDIEU, PIERRE. O poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1998, 2ª ed. ELIADE, MIRCEA. O sagrado e o profano. São Paulo, Martins Fontes, 1992 GIDDENS, ANTHONY. As conseqüências da modernidade. São Paulo, Editora da Universidade Estadual Paulista, 1991. HARVEY, DAVID. Justice, nature, and the geography of difference. Malden, Blackwell, 1996. LEFEZVRE, HENRI. La revolucion urbana. Madrid, Alianza Editorial, 1972. LEFEBVRE, HENRI. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo, Ática, 1991a. LEFEBVRE, HENRI. The production of space. Oxford, Blackwell, 1991b. MORIN, EDGAR. Ciência com consciência. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1998, 2ª ed. (revista e modificada pelo autor) RIBEIRO, ANA CLARA TORRES. Conversando sobre espaço. VIII Encontro Nacional da ANPUR, Porto Alegre, 1999. SIMMEL, GEORG. “A metrópole e a vida mental”. In: Velho, Otávio Guilherme, ed. O fenômeno urbano, 11-25. Rio, 1976. DE JANEIRO: ZAHAR. Velho, Otávio Guilherme, ed. O fenômeno urbano. Rio de Janeiro, Zahar, 1976, 2ª ed..

63


JOEL BIRMAN ĂŠ psicanalista e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor adjunto na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

64


DESOLAMENTO E FORMAS DE SUBJETIVAÇÃO NA ATUALIDADE* Joel Birman O que a psicanálise tem a ver com o urbano, com a liturgia e com a arte? Eu fiquei me perguntando sobre isso desde que o convite para participar deste seminário me foi colocado. A partir daí, defini uma direção para a exploração destas fronteiras, isto é, uma certa estratégia teórica e política, que pressupõe, contudo, algumas considerações preliminares sobre a problemática da subjetividade. Portanto, antes de tentar definir esta direção e esboçar alguns tópicos sobre isso, pretendo localizar um pouco melhor a questão da subjetividade. Parece-me que a subjetividade é a problemática que a psicanálise pode trazer efetivamente, de maneira substantiva, para um diálogo com as ciências sociais, o urbanismo e a teoria da comunicação. Assim, quando se faz referência à subjetividade, pensa-se comumente em interioridade. Além disso, quando se fala em interioridade, pensa-se imediatamente esta em oposição à exterioridade. Digamos, no entanto, que essa é uma visão pré-psicanalítica, já que a subjetividade tal como é pensada pela psicanálise supõe uma dialética permanente entre o interno e o externo, isto é, o dentro e o fora. Com efeito, foi essa formulação que Freud enunciou num texto célebre sobre a psicologia das massas, no qual afirmou que não existiria qualquer separação entre psicologia individual e psicologia coletiva.1 Portanto, é esse tipo de subjetividade que pretendemos sustentar e defender aqui, isto é, um tipo de subjetividade construída segundo determinados códigos, nos quais as dimensões de exterioridade estão aí marcadas, tal como a língua e o imaginário coletivo, que é também, aliás, fundado na linguagem. Tudo isso constitui, enfim, a memória coletiva, que funda a subjetividade no seu sentido estrito. Sublinhado isso, torna-se imediatamente evidente que a cidade não é apenas um espaço geográfico, mas antes de mais nada, um espaço simbólico que define uma tipologia imaginária. Eu estava vindo para cá hoje e o motorista do táxi não * Este texto é a transcrição, corrigida pelo autor, da intervenção oral realizada no painel “Tecitura Urbana: a realidade urbana e as imagens da cidade”. 1 Freud, S. “Psichologie des foules et analyse du moi” (1921). Freud, S. Essais de psychanalyse. Paris, Payot, 1981.

65


sabia exatamente para onde eu vinha, mas quando nos aproximamos do alto do morro, ele me disse assim: ”poxa, estamos nos aproximando do céu!”. Ele não sabia que estava me levando para o espaço de uma discussão religiosa, mas, enfim, ele metaforizava a topografia da cidade com um código um tanto quanto religioso. Entretanto, mesmo para nós, intelectuais e teólogos, marcados que somos todos pelas tradições metafísica e platônica, a discussão de idéias tem sempre algo de etéreo e religioso, implicando numa imersão no sagrado. De forma que para nós e para o chofer de táxi, de diferentes maneiras, é claro, estamos todos agora no céu. Porém, o que é importante hoje aqui, nessa exposição, é evocar que a articulação entre a subjetividade e a estrutura da cidade começou a partir dos anos 30, nos Estados Unidos, nos estudos de sociologia urbana, pela denominada Escola de Chicago. Os sociólogos desta escola enfatizaram a existência de uma topologia simbólica da cidade, de forma a construir uma cartografia imaginária dessa. Assim, existiam os centros ditos dinâmicos e produtivos, marcados pela ascensão social de determinados grupos sociais que se contrapunham aos espaços periféricos e pobres, de forma que a cidade era perfeitamente classificada, cartografada, melhor dizendo, de maneira que a subjetividade mantinha uma relação de estrita dependência com o lugar onde residia naquele centro urbano. Portanto, partindo da periferia e indo para o centro da cidade existia uma multiplicidade de construções subjetivas. Tudo isso caracterizou um capítulo importante das ditas patologias sociais. No qual as doenças mentais e as diversas formas de criminalidade eram cartograficamente distribuídas nesses diferentes espaços urbanos.2 Retomou-se desta maneira uma importante perspectiva da pesquisa sociológica iniciada no final do século XIX.3 O segundo passo fundamental, teórico e metodológico, nessa direção, foi o estudo do antropólogo Claude Levy-Strauss, procurando caracterizar um dos efeitos cruciais da moderna estrutura urbana, marcada pela complexidade. Assim, esta estrutura seria a condição de possibilidade para a produção de um determinado tipo de perturbação psíquica, bastante importante no Ocidente, nos últimos 200 anos. Referia-se então à esquizofrenia que, como se sabe, se caracteriza justamente pela fragmentação e pela falta de unidade psíquica da subjetividade, isto é, pela impossibilidade do sujeito se constituir como unidade.4 Parece-me que esta formulação é bastante importante, pois nos coloca de imediato face àquilo que caracteriza especificamente a modernidade, na ênfase atribuída à esquizofrenia como sendo a doença mental por excelência, o defeito subjetivo mais violento na sociedade moderna e contemporânea. É deste limiar crítico que podemos realizar agora alguns contrapontos, histórico e antropológico, para delinear concretamente o estatuto presente da subjetividade. A questão colocada, pois, para a vida urbana, é a da fragmentação, sendo essa precisamente o que vai caracterizar o surgimento da cidade na modernidade, bastante distante, então, da utopia de uma anterior comunidade unificada, construída no mundo medieval, quando surgiram as primeiras cidades. Assim, o que Bastide, R. Sociologie des maladies mentales. Paris, Flammarion, 1965. Durkheim, E. Le suicide. Paris, PUF, 1967. 4 Bastide, R. Sociologie des maladies mentales. Op. cit. 2 3

66


vai caracterizar a modernidade, na qual a cidade vai ser a materialização maior em termos instrumentais, isto é, em termos de organização simbólica e material da vida social, é a perda da unificação e de uma certa mediação universalista do mundo, digamos assim, que o mundo medieval mantinha ainda, já que era sustentado pelo discurso religioso e, que, no entanto, foi substituído pelo discurso político no século XIX, passando então o social a ser ordenado pelo Estado. Portanto, digamos que aquilo que possibilitava ainda a organização para a subjetividade, já fragmentada na aurora do século XIX, apesar da grande variedade existente de grupos sociais, era a centralidade política oferecida pelo Estado. Existia, enfim, através deste o projeto de uma pólis, apesar da diversidade presente no social, que se organizava concretamente em torno do Estado enquanto tal (Hegel e Marx). A pólis na modernidade é marcada por um projeto político, com uma dimensão universalista. Em contrapartida, o mundo pós-moderno se caracteriza pela perda desse discurso universalista, mediado que era pela política como utopia. Eu diria então que aquilo que diferencia a forma da vida urbana da pólis moderna e da pólis pós-moderna é o fato de que na primeira nós ainda tínhamos um discurso sobre o político, de caráter utópico, capaz de possibilitar um ideal comunitário para a sociedade. Propunha-se, assim, uma certa comunhão na sociedade, que tinha um caráter laico, e uma política marcada por um certo messianismo, no melhor sentido desta palavra. Enfim, digamos que aquilo que diferencia a cidade moderna da pós-moderna é a quebra dessa crença, na qual o político nos oferecia ainda a possibilidade de unificação, enquanto projeto de restauração comunitária. Com isso, podemos nos encontrar aqui, diretamente, com aquilo que caracteriza agudamente a crise da subjetividade contemporânea, ou melhor dizendo, das formas de subjetivação5 no mundo pós-moderno, que é a fragilização da noção de identidade. Assim, aquilo que caracteriza em grande parte as perturbações subjetivas hoje, isto é, as formas de subjetivação que as pessoas apresentam na atualidade em termos de sofrimento psíquico e de impossibilidade de viver, são perturbações da ordem da identidade. Com efeito, os indivíduos não sabem mais quem são, para onde vão ou de onde viveram. Vale dizer, existe hoje uma marcada perda de referências, onde o discurso unificador, que prevalecia até os anos 60 e 70, oferecia ainda um certo norteamento para a constituição da subjetividade. Em decorrência disso se incrementa a produção de mal-estar e de patologias sociais. Então, digamos, a maneira pela qual o sofrimento subjetivo se apresenta no contexto da vida urbana, revela a perda da figura do narrador a que W. Benjamin6 se referia, isto é, de um discurso unificador e simbólico, que tomou na modernidade a forma do discurso político. Com esta perda crucial no mundo pós-moderno, regulado que é pelo neoliberalismo e pela globalização, fomos lançados no desmapeamento político e na fragilização ostensiva dos operadores identitários. Parece-me que esse é um ponto importante a ser aqui sublinhado, já que na atualidade se construiu uma e vidente dominância do modelo econômico sobre o político. Tudo isso se desdobra numa importante crise 5 6

Foucault, M. Volonté de savoir. Paris, Gallimard, 1976. Benjamin, W. “O narrador”. In: Benjamin, W. Obras escolhidas. Volume I. São Paulo, Brasiliense, 1986.

67


da própria idéia de autoridade. Essa, então, se encontra mediador e gerador da autoridade. Com isso, a suposta ética da tolerância beira de fato a indiferença, sendo provocada pela falta de mediação propriamente dita no campo social. Tudo isso vai gerar tanto a indiferença, por um lado, como o excesso de diferença, pelo outro. Quanto a isso, quero me referir ao neo-nazismo, que retorna ostensivamente em todo o mundo, hoje. Portanto, indiferença e diferença, ambas excessivas, duas formas paradigmáticas, no meu entender, em que se expressam, seja na juventude, seja nos grupos que não são mais jovens, a perda da perspectiva simbólica dos emblemas e das identidades. Mais do que isso ainda, me parece, indo agora para um outro nível do real, onde se enuncia também a crise de identidade, provocada por essa fragmentação excessiva e pela dominância do modelo econômico sobre a mediação política, é o fato de que cresce assustadoramente em todas as grandes cidades, no Brasil e no exterior, a presença de crimes como incesto e pedofilia. Isso porque a referida crise de identidade desorganiza também a ordem familiar, na qual falta exatamente, agora no nível micro-social, a instância de mediação a que já me referi antes. Assim, uma das características fundamentais da cidade pós-moderna é que ela é permeada por uma enorme violência produzida pela própria autoridade e que esta desorganiza a própria estrutura familiar, produzindo então pedofilia e crimes incestuosos, numa extensão inédita. Com isso, a autoridade se torna ilegítima, evidentemente. Ontem mesmo, nos jornais do Rio de Janeiro, havia uma notícia da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, de que existem diariamente no Brasil cem relatos de violência contra crianças, provocadas por pais, que vão desde a violência física até a violência sexual. Portanto existe uma evidente quebra da noção de autoridade, provocada pela dominância do modelo econômico sobre o social, no qual o registro político é completamente desorganizado. Recordemos ainda que há dois anos um país como a Bélgica teve uma crise política seríssima, provocada exatamente por uma organização criminosa pedofílica, gerida por determinados políticos. Enfim, não se trata apenas de um problema brasileiro, mas de algo bem mais amplo da sociedade atual, na qual as mediações políticas e simbólicas se fragilizam. Um terceiro ponto importante da organização subjetiva no mundo pós-moderno é aquilo que eu denomino de posição subjetiva de desolamento. Assim, diante exatamente dessa falta de mediação e da impotência que isso provoca nas pessoas, diante da falta de uma perspectiva de futuro – que é aquilo que organiza qualquer possibilidade desejante – os sujeitos não podem mais contar com nenhuma instância de proteção, que teria ainda alguma possibilidade de estabelecer um diálogo estruturante com o mundo. Pode-se afirmar, pois, que o aquilo que caracteriza a cena pós-moderna, pela falta dessa instância de mediação, não é uma posição de desamparo, mas uma posição subjetiva de franco desolamento. Vive-se hoje num evidente estado de desolamento subjetivo, razão pela qual algumas formas de sofrimento psíquico se destacam como sendo a grande Prima Dona do mal-estar na atualidade: as depressões, efeito das falhas de construção identitária, exatamente pela falta das formas simbólicas de mediação; o assustador aumento do consumo de drogas, que é uma maneira das pessoas lidarem com 68


o seu desolamento, tentando euforizar o seu presente de alguma maneira para não sucumbir ao sofrimento depressivo; a multiplicação de transtornos psicossomáticos.7 Assim, diante do seu desolamento, da insuportabilidade das pessoas de poderem lidar com seu próprio sofrimento e com sua própria solidão, isoladas diante de um mundo que não lhes oferece qualquer possibilidade de futuro – numa ordem social caracterizada como sociedade de risco8 – as pessoas tendem a lidar com esse desolamento por uma brutal submissão ao outro, considerado supostamente por elas como poderoso. Este outro é considerado, pelas pessoas que se submetem, como supostamente tendo meios de lhes dar a proteção que lhes falta para sustentar sua energia vital. Com isso, elas estabelecem uma evidente relação sado-masoquista, que é, eu diria, a forma fundamental de subjetivação do mundo da atualidade, no qual se incrementa de forma eloqüente a moral da servidão. Portanto, se nós vivemos hoje num mundo permeado por certos valores, isso é a consequência direta das mediações simbólicas que fracassaram, fragilizando as pessoas de tal forma que essas passam a viver fazendo pactos de submissão masoquista, onde elas pedem de maneira servil que alguém muito poderosa possa protegê-las do seu desolamento. Parece-me que, para as diferentes questões que abordei aqui, que vão da fragmentação piscótica à diferentes formas de perturbações psíquicas – se consubstanciando pela experiência do desolamento e pela crise identitária, como depressão, drogadicção, pedofilia, experiências incestuosas e formas de submissão sado-masoquistas, que permeiam a totalidade do tecido de relações inter-humanas, no espaço social nos exige urgentemente a criação de instâncias de mediação, que devem se inscrever no nível regional e global, como formas de comunidade, sejam elas de ordem religiosa, étnica e política. Parece-me que uma das formas fundamentais que nós podemos nos contrapor hoje à sociedade de risco, é a de relativizar esse risco. Para isso necessário é construir instâncias de mediação, que funcionem como condição de possibilidade para a construção de subjetividades. É preciso então que os sujeitos tenham alguns pontos possíveis de referência simbólica, para não caírem no abismo da miséria psíquica e do desolamento

Birman, J. Mal-estar na atualidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001, 3a edição. Beck, U. “A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva”. In: Giddens, A., Beck, U., Lasch, S. Modernização Reflexiva. Rio de Janeiro, UNESP, 1995. 7 8

69


FLAVIO FERREIRA é pós-graduado pela Universidade de Harvard, Boston, EUA, e é professor na graduação e pósgraduação da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É autor de diversos projetos de grande escala no campo da Arquitetura e Urbanismo, dentre os quais estão: o Projeto Urbanístico Rio-Cidade Taquara e o Projeto Urbanístico de Restauração do Conjunto Histórico Ver-o-Peso, Belém, Pará, Brasil. Foi Secretário de Urbanismo da cidade do Rio de Janeiro no período de 1986-89.

70


ARQUITETURA E LITURGIA Flavio Ferreira O espaço e o monumento religioso, que são obras arquitetônicas, foram decisivos na criação das primeiras cidades e das primeiras religiões em cada continente. Como surgiram as primeiras cidades? Até algumas décadas, acreditava-se que a primeira revolução tecnológica, a partir de uns 8.000 anos atrás, fora a causa do surgimento das primeiras cidades: Jericó e Ur, Erech, Kish e Nippur, na Suméria; Teotilhuacan, na Meso-América; Nazca e Tiahuanaco, na América do Sul; e Shang, na China. Essa primeira revolução tecnológica, em que foram inventados o calendário, a escrita, a irrigação, o pão, o pano, foi o maior degrau tecnológico já escalado pela Humanidade, bem maior do que os outros dois grandes degraus: a revolução industrial do século XVIII e a revolução da informática, que ainda estamos vivenciando. Achava-se, até algumas décadas, que reunir um grande número de pessoas em um só ponto, alimentá-las, vesti-las, dar-lhes teto, governá-las, só seria possível com o pão, o pano, a água abundante e a escrita para registrar o passado e assim bem definir as necessidades do presente e do futuro. Entretanto, estudos arqueológicos demonstraram que ocorreu o inverso: que esta primeira revolução tecnológica surgiu quando as primeiras cidades já existiam, e surgiu dentro dessas cidades, devido à sinergia gerada por muitas pessoas vivendo em um mesmo lugar. Em outras palavras, a cidade não foi um efeito da revolução tecnológica, mas a causa dela. Se assim é, a pergunta permanece: como surgiram as primeiras cidades? Kevin Lynch, o genial autor de Uma teoria da boa forma urbana, de 1981, responde a esta gigantesca pergunta. Ele escreve: “Tudo indica que o primeiro passo para a civilização ocorreu ao longo de um único caminho, tomado independentemente diversas vezes na história humana. Uma vez que este caminho é tomado, as idéias de civilização tais como cidades, escritas, como também as guerras, podem ser transmitidas para outras comunidades humanas próximas, as quais então se movem ao longo de diferentes e menores trajetórias. “Mas o caminho clássico, independente, parece começar a partir de um assentamento pastoril que é capaz de produzir um superávit de comida e o qual, com um santuário e ritos locais, articula as agudas ansiedades sobre fertilidade, morte 71


e a continuidade da comunidade humana. “Um santuário particularmente atrativo começa a ganhar reputação, atraindo peregrinos e presentes de uma área maior. Este se torna um centro cerimonial permanente, servido por sacerdotes especialistas, e eles desenvolvem seus rituais e cenário físico para compor a atratividade do lugar (i.e. espaços e monumentos arquitetônicos). Lugar e cerimônia oferecem aos peregrinos alívio das ansiedades e se tornam, em si, experiências fascinantes e estimulantes. “Bens, cerimônias, mitos e poder se acumulam. “Novas habilidades se desenvolvem para servir à nova elite, para gerenciar seus negócios, ou para impor seus desejos às populações dos arredores. Os presentes voluntários são convertidos em tributos e submissão. A coleta e armazenamento de alimentos têm uma vantagem secundária, já que servem como reserva nas fomes e como um meio de trocar produtos complementares. “O ambiente físico (i.e. a arquitetura) tem um papel-chave neste desdobramento. Ele é a base material da idéia religiosa, o estímulo emocional que liga as pessoas ao sistema. “A cidade é um lugar grandioso, um alívio, um novo mundo, como também uma nova opressão.” Como podemos apreender deste texto de Kevin Lynch, a arquitetura foi fundamental para as religiões, para a sua liturgia, desde o início. Vamos agora analisar como são resolvidos os espaços arquitetônicos de uma nova religião em cidades já construídas e com religiões já estabelecidas. Não se trata, neste caso, de novas religiões trazidas por colonizadores, como na América, mas de religiões que evolvem dentro das próprias cidades, como quando do surgimento do Cristianismo na Roma pagã. Os espaços de culto da nova religião nunca se estabelecem nos templos da antiga religião, nem ela projeta seus novos espaços seguindo tipologias arquitetônicas semelhantes aos templos existentes, já que a nova religião tem que se diferenciar da antiga também nos seus espaços materiais e na sua liturgia. Os espaços sagrados da nova religião são criados dentro de espaços profanos. Voltando a Roma, quando o Cristianismo começava a se estabelecer: as igrejas cristãs não se situaram nos templos de Júpiter ou de Vênus, ou no Panteon, mas nas basílicas, que eram os supermercados da época. Da forma da basílica emergiu a forma da igreja românica, da qual emergiu a forma magnífica da igreja gótica. Só depois de mais de mil anos, no Renascimento, as igrejas cristãs se inspiraram nos espaços circulares, centrais, dos templos pagãos, e o Panteon levou séculos para se transformar em uma igreja cristã. Hoje novas religiões também ocupam espaços profanos, como cinemas, e constroem seus templos novos com arquiteturas diversas das religiões tradicionais. Qual é a reação da religião já estabelecida? Na Contra-Reforma, a reação da Igreja Católica ao ascetismo protestante foi acentuar e dramatizar as diferenças na arquitetura: o barroco é o estilo da Contra-Reforma. Não é por acaso que o barroco se concentra, na Europa, nas áreas de conflito. Na Alemanha estão as mais belas obras de arquitetura barroca religiosa da Europa. 72


O sucesso foi tanto que mesmo os protestantes construíram algumas igrejas barrocas. As igrejas do arquiteto Neuman são obras-primas. O melhor exemplo brasileiro do barroco são Ouro Preto e suas igrejas: frontões retorcidos, paredes curvas, profusão de dourados, anjos esvoaçantes, imagens em atitude declamatória, pinturas de tetos que, segundo Carlos Drummond de Andrade, são mais que pinturas, pois parecem que “rompem o teto para um diálogo direto com Deus”. Esses três momentos do passado distante nos ajudam a entender a forte relação entre arquitetura e liturgia ao longo da história e, por contraste, nos ajudam a perceber um certo afrouxamento dessa relação atualmente. Por quê? Até os anos ‘70-’80, estiveram vigentes alguns dos grandes e simples esquemas racionalistas surgidos no século passado e no início deste, que tinham todos um ponto em comum: o passado e o já feito eram imperfeitos, errados, e tínhamos de demolir este passado imperfeito e construir um novo mundo a partir do zero. A crença de que as novas ciências solucionariam as incertezas sobre a matéria e a filosofia; o marxismo ortodoxo, ao propor a destruição de todas as estruturas sociais e políticas e a criação de uma sociedade completamente nova; a psicanálise, ao propor revolver até o inconsciente, para se ter um indivíduo completamente novo, são alguns des-ses esquemas racionalistas. Mais próximo de nosso tema, o Movimento Moderno em Arquitetura, que surge nos anos 20, também propõe a demolição das cidades existentes e a construção de cidades completamente novas, com outra arquitetura, construídas sobre a terra arrasada, ou sobre a terra virgem. O Movimento Moderno propõe uma arquitetura simples, funcional, desataviada, sem simbolismos, sem referências ao passado. Milhares de anos de experiências e de aprendizado das relações simbólicas entre arquitetura e liturgia são, até certo ponto, esquecidos. Neste período, tirante belas exceções, os projetos de arquitetura religiosa não conseguem tocar o coração dos fiéis, mesmo os projetados por ótimos arquitetos. Por outro lado, surge um grande número de projetos medíocres, o que nunca tinha acontecido antes. Por outro lado ainda, ansiedades milenares, principalmente as de cunho individual, são esquecidas, já que há uma grande confiança de que a ciência, as novas estruturas políticas e os novos espaços arquitetônicos resolveriam as grandes questões humanas. A ênfase são as questões coletivas. No fim desse período, o Vaticano II simplifica os ritos católicos. Já nos anos 30 surge o princípio da incerteza na Física, mas é a partir dos 70 que os grandes esquemas racionalistas (e suas certezas) começam a ser refutados e substituídos por um número bem maior de teorias empíricas de abrangência bem mais modesta. A unicidade é substituída pela pluralidade. É a Pós-Modernidade. Intervenções urbanas, projetos e livros de teoria da arquitetura, como A imagem da cidade, de Kevin Lynch, Complexidade e contradição da arquitetura, de Robert Venturi; e O modo atemporal de construir, de Christopher Alexander, refutam os paradigmas do Movimento Moderno, e propõem que a cidade e a arquitetura sejam vistas sob um novo olhar. Reconhece-se que não é possível ignorar milênios de experiências acumuladas. Valoriza-se o existente, o já-feito, tanto nos projetos 73


novos quanto na restauração e na reforma dos edifícios. Nunca se reformou ou se restaurou tanto. Considerando este complexo contexto atual, como devem ser hoje as relações entre Arquitetura e Liturgia? Do lado da arquitetura, partir para um esquema inteiramente novo pode ser, paradoxalmente, já antigo. Não seria continuar no caminho que já se encerrou nos anos ‘70, como vimos antes? Invadir espaços profanos, como fizemos em Roma há quase dois milênios, é o que as novas religiões estão fazendo agora. Nos diferenciamos ou não? Para nos diferenciarmos, o melhor precedente é o da Contra-Reforma? Devemos ter uma arquitetura religiosa com fortes relações com elementos do passado, e com elementos eternos, atemporais? Devemos reformar os templos de arquitetura medíocre sem relações arquitetônicas com a liturgia, o atemporal e o sagrado? De que maneira?

74


75


RITA SERPA é bailarina, coreógrafa, meitre de balé e professora de dança litúrgica. É coordenadora do Projeto Luar – projeto de arte na Baixada Fluminense e em comunidades-favelas do Rio e da Zona Oeste da cidade. É ligada ao Serviço Franciscano de Justiça, Paz e Ecologia, da Igreja Católica Romana.

76


DANÇA E LITURGIA Rita Serpa Gaudí, filósofo francês que escreveu sobre dança, diz que “se pudéssemos dizer todas a coisas, não precisaríamos dançar”. A dança é uma linguagem do corpo. E a linguagem do corpo é a mais verdadeira que existe. O nosso corpo não mente, ao contrário das palavras. Quantas vezes a gente diz uma coisa e o corpo diz outra? Nós passamos por esta experiência várias vezes por dia. Quero começar esta exposição falando sobre o olhar. Nós perdemos um pouco a capacidade de contemplar. Corremos tanto e o tempo é tão reduzido, que o nosso olhar é um pouco o olhar do video game. A capacidade de contemplação pode estar ligada à nossa capacidade de sonhar, de ter uma utopia. E quando eu falo de utopia, incluo a presença do nosso corpo. Nós, homens e mulheres que temos, por sinal e por grandiosidade, que pregar o evangelho, sofremos muitas vezes em nosso corpo o que é ser cristão. Eu sou coreógrafa e bailarina e sou fascinada pelo movimento, todo movimento de tudo aquilo que tem vida e presença de Deus, pai e mãe. Na verdade, todo o universo dança. É muito comum que nós, seres humanos, ao nos sentirmos donos e senhores de tudo, da natureza, de tudo que existe, desaprendamos a dançar. Trabalho com dança há muitos anos e freqüentemente ouço as pessoas dizendo que têm o “corpo duro” e que “não sabem dançar”. Nestas situações gosto de lembrar que uma criança que nem sabe andar, se ouve uma música, dança. E se nós pararmos para comungar com o movimento da natureza, veremos que a natureza dança: as árvores, os rios, o vento. Nós, seres humanos, vivemos cheios de problemas na coluna, com dores e tensões. Se compararmos a respiração de um animal dormindo e a nossa respiração, poderemos verificar que a nossa qualidade respiratória é significativamente inferior. No meu trabalho coreográfico busco construir uma nova arquitetura; a arquitetura das favelas. Não sou arquiteta, mas entendo um pouquinho dessa arquitetura que é a morada dos pobres; o lugar onde se amontoam homens, mulheres, crianças, cachorros, gatos, pipas, bolas, passarinhos, desemprego, fome, doenças, falta de escolas. Essa “arquitetura” é a substância do meu trabalho. E todos os dias eu agradeço muito a Deus por ter como presente a amizade dos pobres e dos animais, porque me parece que nós vivemos num mundo onde metade da humanidade morre de tédio e outra metade, de fome. Pensa–se tanta coisa nova mas não se 77


pensa naquilo que, a meu ver, seria a solução para um dos maiores problemas: a supressão da fome. A fome que mata centenas de irmãos nossos todos os dias. A falta de moradia e a falta de um programa decente de saúde também matam. Ontem, na nossa oficina, comentávamos que nós, seres humanos, somos a única espécie que deixa os filhos morrerem pelas ruas. Passamos pelos velhos e pelas crianças correndo, com hora marcada. Os animais não fazem isso, os animais morrem por suas crias. Nós, apesar de sermos cristãos, não morremos por nossos filhos. É dentro desse recorte da realidade que nasce a minha dança. Eu nunca gosto de dizer a “minha dança” porque esta dança que está em mim é fruto do convívio de centenas de pessoas, e eu muito mais aprendo do que ensino, porque o corpo é infinitamente maravilhoso. Nós nos dizemos templo do Espírito Santo e às vezes tratamos nosso corpo pior do que um pano de chão. Nós não temos tempo, e o tempo passou a ser um tirano que já nos acorda com pressa, correndo. Comemos mal, dormimos mal, sentamos mal e depois queremos elevar este corpo a Deus, leves, felizes, suaves, aliás, como deveria ser. Costumo dizer que nunca tenho resposta para nada, porque é tão difícil colocar na cabeça do ser humano, sobretudo dos adultos, que eles são belos; às vezes preciso de uma britadeira para abrir a cabeça e dizer: “Olha, você é capaz de criar, você é capaz de ser leve”. Me parece que nós precisamos ir para diante de um espelho e ver se, de fato, nos reconhecemos. Precisamos verificar se a imagem que temos de nós mesmos corresponde à imagem que se vê no espelho, porque a linguagem do nosso corpo é muito bitolada por nós. As pessoas pensam que os bailarinos têm uma ótima relação com o corpo, porque são bailarinos. Isto não é verdade. Eu acho que, à medida que abrimos a brecha para nos experimentarmos crianças outra vez, é que a gente se relaciona melhor com o corpo. O corpo da gente não pode estar dissociado dos nossos sonhos e eu me pergunto sempre o que nós, cristãos e cristãs, fazemos para que o sonho, a possibilidade da utopia, renasça, porque na verdade o evangelho é uma utopia que a gente constrói no dia-a-dia. O evangelho não é fechado, não está pronto, é uma construção do dia-a-dia. E não adianta ne garmos o corpo, porque ele vai junto. Todos os grandes bailarinos e coreógrafos sempre compuseram suas coreografias a partir da realidade em que viveram. Sim, alimentados pelo passado e pela utopia do futuro. E nós vivemos hoje uma grande miséria; não só a miséria da fome, das doenças, como também a miséria dos sonhos. Cada vez se sonha mais com coisas, objetos, carros. Cada vez se sonha menos com a plenitude da busca de um corpo feliz. Este é o motivo, me parece, que torna cada vez mais difícil dançar. Dançar é uma coisa muito simples. A dança litúrgica ou a dança nas celebrações é muito antiga. Atualmente nós a estamos resgatando. Por que eu digo que dançar é uma coisa muito simples? Porque é uma linguagem que não precisa de palavras; nós nos tornamos escravos das palavras. Dançar é tão simples quanto brincar. E é na oportunidade que nos oferecemos de brincar, que a dança torna-se um canal fácil e natural para a nossa expressão. O problema dos adultos é que eles não têm tempo para brincar. A dança tem sua origem religiosa. Se dissociarmos a dança de sua origem, ela deixa de ser dança. Quanto mais espiritualidade temos, melhor dançamos. 78


Quanto mais espiritualidade temos, mais oportunidade damos à nossa alma de ser dançante. Como ser coreógrafo e coreógrafa neste mundo, neste momento? É preciso ter o olhar voltado para algum lugar, e para todos os lugares. É preciso não perder a visão do cristianismo; a cidade nova, da qual falávamos hoje em nossa celebração. Nós temos que construir essa cidade nova, onde o pão de cada dia não seja um tormento, mas um direito e um prazer. Onde viver não seja uma aflição, mas a plenitude divina. Onde as mulheres não tenham que sofrer, se dilacerar, para criar seus filhos. E onde as famílias possam ter um mínimo de condições de vida, de moradia. Enquanto isso não acontecer, enquanto esta cidade nova não surgir, eu acho que o papel da arte é denunciar. Na minha caminhada, sobretudo na Baixada Fluminense, eu tenho conseguido descobrir que a arte que não caminha com a ajuda da humanidade e em prol dela não é uma arte por inteiro. Volto ao olhar e à contemplação: se formos olhar a realidade assim como ela é, fica muito difícil apostarmos em um sonho. No caso da dança, acho que ela se coloca cada vez mais em lugares “profanos”, por assim dizer, pois tem saído das grandes escolas e das grandes academias para ocupar outros espaços. Isto não ocorre porque as pessoas que podem freqüentar as “grandes academias” estão saindo para outros espaços. É que os outros espaços e as pessoas que a eles pertencem estão construindo uma nova dança. E é uma dança de qualidade. Marx dizia que é um crime levar ao povo uma arte inferior ao perfeito, e eu concordo. Na Baixada Fluminense nós temos condições mínimas de fazer dança, mas nós fazemos a dança clássica e a dança contemporânea, apesar do chão de cimento. Quando as crianças, adolescentes e jovens da Baixada sobem num palco para dançar, eles vão dançar como qualquer outro bailarino. Nós tiramos das nossas possibilidades o máximo. E quando achamos que não temos mais forças, respiramos fundo e ressurgimos da força, porque é exatamente neste momento que parece que não dá mais, que a gente se descobre capaz de seguir adiante. É como Jesus, que não se entregou ao desânimo. Nós, que levamos a beleza e a utopia do evangelho, não podemos estar desanimados. É difícil falar sobre dança, cidade, miséria; eu prefiro dançar. Mas, finalizando, gostaria de afirmar que a simplicidade da dança e a busca pelo sonho, a comunhão com a natureza e, conseqüentemente, com o nosso corpo, uma boa relação respiratória – a respiração é o eixo da dança – e a disposição de virarmos crianças que se metem por aí afora no meio da natureza e dos animais, são elementos indispensáveis para quem busca expressar-se de corpo inteiro e para quem se oferece como canal da expressão da beleza e do amor contidos nos evangelhos. Tenho certeza que, assim, saberemos dançar.

79


CLAUDIO PASTRO é pintor, escultor, arquiteto membro do Departamento de Arquitetura e Liturgia da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Igreja Católica Romana. É membro de diversas entidades internacionais na área de Arte e Liturgia e autor de 20 obras literárias nessa mesma área. O autor refere-se ao fato de o Seminário de Liturgia, Arte e Urbanidade ter sido realizado na Casa de Retiros Pe. Anchieta, instituição católica, e organizado por teólogos e teólogas protestantes. (Nota da editora). A beleza, neste contexto específico, está referida à Arte em sua inter-relação com os dois outros eixos temáticos do Seminário: Liturgia e Urbanidade. (Nota da editora)

80


O BELO E O SAGRADO Claudio Pastro Gosto muito de uma frase de Dostoiévski no seu romance Os demônios: “A beleza salvará o mundo”. Acredito nisto porque através da beleza e dos movimentos, que são marcas e sinais de geração em geração, são deixados os sinais. A imagem é uma continuidade do mistério vivido em nós, é uma outra linguagem. Gosto igualmente de outra frase, que vem do século II, de Dionísio Areopagita: “A beleza é um nome divino porque produz comunhão”. O evento do qual estamos participando seria impensável numa casa católica 30 anos atrás1. Menciono este fato a fim de afirmar que a beleza é um dos nomes divinos que produz a comunhão2. O que vou expor aqui, muito brevemente, é fruto da minha experiência de quase 30 anos de trabalho dentro da Igreja Católica na área de Arte na Liturgia e, conseqüentemente, Arquitetura e Urbanidade. Cursei Ciências Sociais nos anos 60, mas não exerci a profissão; dentro de mim falava mais alto a beleza cristã. E esta beleza cristã, que é a arte, quase se confundia com a minha vocação pessoal; eu a recebi como dote, graça. Cada um de nós recebe um dom e cabe-nos multiplicá-lo. O sentido da arte sacra desenvolveu-se em mim a partir de um projeto realizado na periferia de São Paulo. Eu percebia, então, que o barroco brasileiro dos séculos XVII e XVIII – o barroco entrou até pelo século XIX – não incorporou expressões da arte indígena e negra, diferentemente do barroco espanhol no Peru e no México. Trabalhei sob a influência da arte indígena e negra. Comecei a construir as primeiras capelas nas periferias, as primeiras igrejas. Desde então se colocaram para mim questões e reflexões acerca do espaço sagrado e da experiência que se faz do sagrado neste espaço. Gostaria de partilhar uma experiência e uma estória. Eu estava pintando um painel de 200 metros quadrados para uma igreja de estilo basilical. Começamos a trabalhar na segunda-feira, logo depois do espaço do domingo, ocupado pela Assembléia que vem para a missa. Havia um sacrário. Nós o respeitamos, mas começamos a trabalhar. Uma senhora, parecia uma avó, O autor refere-se ao fato de o Seminário de Liturgia, Arte e Urbanidade ter sido realizado na Casa de Retiros Pe. Anchieta, instituição católica, e organizado por teólogos e teólogas protestantes. 2 A beleza, neste contexto específico, está referida à Arte em sua inter-relação com os dois outros eixos temáticos do Seminário: Liturgia e Urbanidade. 1

81


trazia um bebê, e quando os empregados pegaram o sacrário, que era pesado e grande, para transportá-lo para a sacristia, esta avó correu com a criança a fim de, com a mão da criança, tocar no sacrário. E eu vi que a criança estatelava os olhos perante aquela coisa que ela pensou, imagino, devia ser grandiosa. Essa avó tocou no ponto certo: passou para a criança, num minuto, tudo. Tocar o sagrado, tocar alguma coisa que não é do dia-a-dia, que não é nem da voz dela. A estória: depois do Concílio Vaticano II, todas as imagens foram retiradas das igrejas. Numa determinada paróquia, havia um padre jovem que tirou tudo de sua igreja também, deixando apenas o Sagrado Coração de Jesus (um Jesus que tem um coração para fora e cuja linguagem faz parte da piedade do século XIX), a ser retirado posteriormente. Após a missa, havia uma velhinha que ia sempre conversar com o Sagrado Coração de Jesus, e o beijava, passava as mãos nos pés dele, beijava. Quando um belo dia ela foi rezar, o Sagrado Coração de Jesus não estava mais lá. Ela foi brigar com o padre e ele entendeu que tinha que trazer de volta esse Sagrado Coração de Jesus, pelo menos por um tempo. Colocou-o de volta, num lugar alto. A velhinha entrou e, ao verificar que o Coração de Jesus estava num lugar alto, não teve dúvida: foi confessar com Jesus. Confessou, pegou o guarda-chuva que sempre carregava, esfregou-o nos pés de Jesus e beijou a ponta do guarda-chuva. O que quero dizer com isso? Quero dizer que a experiência que fazemos de Deus é uma experiência humana, de namoro, de tocar, de sentir; é real. A água, o fogo, o óleo, a pedra e finalmente o outro são elementos todos da criação e são cristificados depois da ressurreição de Jesus, ou seja, o universo tem um sentido e é todo nosso corpo que namora e casa de fato, não é só a nossa mente. Se não tivermos a experiência do todo, entramos numa outra experiência que é a experiência da loucura. E a experiência de arte e religião são muito próximas, são completas no sentido de nos envolver como um todo, de possibilitar a nossa experiência integralmente. Quando a Rita Serpa falava em respiração como o cerne, o centro da coisa, me fez lembrar que a respiração é básica na linguagem ritual-oriental e também hebraica. É impossível rezar numa poltrona, ou seja, com a atitude de quem simplesmente senta para descansar. Rezar é um ato que nos coloca em presença de, diante de. Que não é apenas um do ou-tro, mas de algo superior a nós, em presença do Divino, em presença do sagrado. É através da respiração, do balançar do corpo, que se aprende tranqüilamente a Salmodiação. Há uma atitude própria que traduz este “estar em presença de”.Tocar a terra, tirar os sapatos, acender o fogo, maravilhar-se e extasiar-se, são sinais e atitudes de quem está entrando no espaço que é do Outro, que não é nosso, mas que é deste Outro que nos renova (capítulo 20, do Apocalipse: “Eis que faço novas todas as coisas”). Qual é o sentido do espaço sagrado? O espaço sagrado na cidade deve nos levar a um oásis. É impossível mudar a cidade dos homens e das mulheres por inteiro, não existe uma norma, nem um comportamento que mude isto, mas o espaço cristão pode ser experimentado como espaço sagrado de oásis. E mais: deve nos levar a um comportamento diferente. Ou seja, o modo como o espaço sagrado está construído deve propiciar uma postura e elegância adequadas à experiência celebrativa de quem lidera e de quem participa do momento litúrgico e/ou do espaço sagrado. Cito alguns exemplos: 82


1.

Sentar-se. Uma cadeira normal deve ter 42 cm de altura no ângulo exato de 90º no encosto, e este deve ter 40 cm. As cadeiras de plástico atuais são terríveis em termos estéticos e da posição em que colocam o corpo. Cadeiras para o altar devem ter medidas maiores: ao invés de 42, 45 cm. Por quê? Porque, com esta medida, o celebrante manterá necessariamente uma postura ereta: não conseguirá cruzar as pernas.

2.

Acústica. A acústica é uma coisa perigosa. Os sons com os microfones e caixas usados hoje são terríveis, coisa diabólica, pois entre quem fala e quem ouve existe um elemento separador. É uma se-paração que se dá pela boca e pela audição. Não é a própria voz que conclama. Quando, por exemplo, se proclama o Evangelho cantado, que é a voz do sopro vívido, no ar, que todos nós temos em nós, devia ser a própria voz a ser ouvida, pura, sem interferência, distorção ou ampliação.

3.

Degraus. Hoje em dia são feitos nas nossas igrejas degraus com 18 cm de altura, que são degraus de casa popular. O esforço para subir um degrau dessa altura exige do corpo movimentos bruscos que causam a impressão de que a pessoa vai “trepar num cavalo”. O degrau palaciano, das antigas basílicas romanas e bizantinas, por exemplo, tinha 12 cm. A pessoa sobe ou desce de maneira mais elegante. Menciono os pequenos exemplos acima para afirmar que a liturgia é por si um balé, é elegante. E que a arte, como elemento universal unificador do ser humano, é o modo adequado de aproximação da experiência humana do sagrado, do mistério em nossas vidas. Neste sentido gostaria de mencionar a construção da Basílica de São Pedro, no Vaticano, um projeto dos séculos XVI e XVII. Foi construída em lugar de uma pequena basílica cemiterial do século III, onde estavam os ossos dos apóstolos, em particular de Pedro. Quem desce à cripta, às bases da basílica, pode ver algumas paredes que sobraram e alguns pedaços de mosaico. Matisse nos diz, na década de 50, um pouco antes de morrer, que o Renascimento foi a ruína, o Renascimento tornou-se demasiadamente humano e naturalista, perdeu o sentido primeiro do mistério e do sagrado. O desalojamento da arte românica nos séculos VII, VIII, IX e X, o desalojamento dos primeiros grandes mosteiros monacais ou das catedrais, da pura pedra, nos coloca dentro da dinâmica daquilo que somos, edifícios de pedras vivas. Trabalho, de maneira mais ampla e aprofundada, as temáticas relativas ao espaço sagrado e à arte nos livros A arte sacra do Espaço Sagrado de hoje e Guia do Espaço Sagrado. Acredito que rever a arte, os sinais, os gestos, a vestimenta, é revestir-se do Cristo e de toda a tradição. 83


TONY QUEIROGA é professor universitário, fotógrafo, diretor e roteirista de vídeo, pesquisador das novas tecnologias da comunicação; é graduado em Comunicação Social (Rádio/TV) e mestre em Comunicação e Tecnologia da Imagem pela Escola de Comunicação da UFRJ. Leciona diversas disciplinas – entre elas, fotojornalismo – nos cursos de Comunicação Social na Universidade Veiga de Almeida e na Faculdade Carioca, ambas no Rio. Atualmente é coordenador do curso de Comunicação Social da Universidade Veiga de Almeida. E-mail: tonyqueiroga@uol.com.br

84


FOTOGRAFIA, COMUNICAÇÃO E RELIGIOSIDADE Tony Queiroga

“A nossa era prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser” Feuerbach, “A essência do cristianismo” (1843)

Existem coisas que diferenciam a pessoa das demais criaturas da natureza. Uma das mais importantes talvez seja a de que ela conseguiu se afastar da própria natureza por meio do pensamento e da sua capacidade intelectual. O pensamento subjetivo foi capaz de construir todas as formas de conhecimento que temos hoje. Assim, a ciência, a arte e a religião são pontos altos entre as conquistas da humanidade. A posição de ator da própria vida e destino deu ao humano a possibilidade de exercer um papel ativo sobre o mundo. Para que isso se concretizasse, foi preciso não apenas o avanço individual, mas também um imenso desenvolvimento da organização social – a constituição de sociedades cada vez mais complexas que formam a estrutura da riqueza da vida humana. A comunicação, principalmente nas formas de sociedade contemporâneas – as sociedades de massa –, tornou-se uma das funções mais importantes do social. Seria impossível termos o tipo de organização atual sem a existência de meios de comunicação maciços. Foi o surgimento da imprensa, ainda no meio do século XV, que fez aparecer a primeira mídia de massa. Daquela época em diante, com o aumento das populações, a urbanização, a importância cada vez maior da informação, o desenvolvimento da técnica, aparece uma grande variedade de veículos de comunicação. Atualmente, com a rapidez da vida e a necessidade de informar em um ritmo cada vez mais frenético, a imagem passa a ter uma importância muito grande. Ela é uma forma muito eficaz de comunicar; e a televisão é um exemplo acabado disso. No entanto, a primeira técnica da imagem foi a fotografia. 85


Desde o seu aparecimento, a partir da união entre o antigo fenômeno da “câmera obscura” e o descobrimento das propriedades fotossensíveis de certos sais de prata, a técnica fotográfica apresentava potencial como instrumento para a comunicação social. A fotografia, como a conhecemos hoje, não teve um único inventor. Ela é resultado de uma série de descobertas e invenções, na física e química, que terminam no aparecimento da técnica fotográfica. Esta técnica consiste em fixar imagens sobre uma superfície determinada. Entre outras coisas, na química, foi o desenvolvimento de materiais fotossensíveis que permitiu surgir o que hoje conhecemos como filme fotográfico; na física, em especial na ótica, foi o desenvolvimento de lentes de qualidade que permitiu que fotos com boa definição fossem tiradas com as modernas câmeras fotográficas portáteis. Em 1727, o médico alemão Johann Shulze descobriu que compostos de prata escureciam em contato com a luz. A partir desse fenômeno físico-químico, o francês Joseph Nièpce conseguiu pela primeira vez, em 1826, fixar uma imagem em uma chapa de estanho coberta com sais de prata. Foi a primeira fotografia conhecida. Mais tarde, em 1837, seu sócio Louis Daguerre inventou o que seria a primeira das câmeras fotográficas, chamado então de daguerreótipo. Essas imagens eram mais nítidas e de melhor qualidade do que as anteriormente obtidas. No entanto, foi só em 1840 que o processo fotográfico, como o conhecemos hoje, foi criado. Até então, as fotografias eram positivos obtidos pela sensibilização direta de uma superfície. Isso é, não havia a possibilidade de se fazer cópias a partir de uma fotografia. Cada foto era única. Foi o inglês Willian Talbot que aperfeiçoou o processo fotográfico inventando o método de reprodução em uma folha sensibilizada a partir de um original em negativo. Assim, de um negativo seria possível tirar várias cópias de uma fotografia, tal como hoje conhecemos. A fotografia é o resultado de várias descobertas que se somam para chegar ao processo de fixação de imagens numa superfície de sais de prata – o filme – que, depois de revelado, dá origem ao negativo, matriz para várias cópias fotográficas. A fotografia foi então a primeira tecnologia da imagem a ser inventada. Ela é a primeira das imagens técnicas. Depois, com o desenvolvimento tecnológico, vieram o cinema, a televisão e todas as outras formas derivadas. Entre as motivações para a sua criação, estava o desejo humano de representar, copiar, captar a diversidade das coisas do mundo. Antes, essa tarefa de retratar a realidade cabia aos artistas, principalmente aos desenhistas e pintores, que tinham na habilidade manual praticamente o seu único instrumento de trabalho. Não sem razão, muitos dos primeiros fotógrafos eram pintores que passaram a utilizar a nova técnica na sua antiga arte. Mas a substituição da mão do artista pela máquina, pela câmera, não foi assim tão simples. Ela representa uma grande mudança não apenas no modo de se fazer a imagem, como é evidente, mas também no seu significado. Antes de tudo, a fotografia nasceu com uma relação muito forte com o real, com o mundo. Se o artista era uma presença insubstituível na produção das imagens pré-técnicas por deixar sua marca em toda a construção da imagem – no traço, na pincelada, no estilo, nas escolhas estéticas etc. –, com a fotografia ele saiu de 86


cena e deu lugar à máquina que conseguia de forma “objetiva” reproduzir aquilo que os olhos humanos viam. Claro que não podemos entender a fotografia como uma cópia exata do real – toda uma crítica sobre essa visão já foi desenvolvida –, mas o que importa aqui frisar é que, pelas suas características de mimetizar o mundo, a leitura das imagens fotográficas estava, e ainda está, muito ligada ao real, à verdade. Ainda hoje, como no mito da caverna de Platão, as pessoas tomam as sombras como objetos reais. Por sua pretensa objetividade, pela sua grande iconicidade, pela crença que temos nas imagens, as fotografias passaram a ser um instrumento muito importante para a comunicação e memória social, seja no fotojornalismo ou na fotodocumentação, como também nos simples registros da vida cotidiana. Hoje, vivemos numa civilização onde a imagem técnica é praticamente onipresente. A velocidade de produção e circulação das imagens tomou uma proporção tal que a maior parte da comunicação no mundo contemporâneo se dá através delas; seja a própria fotografia, seja o cinema, mas principalmente a televisão, o meio de comunicação de massa que me-lhor sintetiza a nossa época. Somos cada vez mais uma cultura da imagem. Independente de uma crítica sobre essa característica da nossa civilização – que preço pagamos por estar cada vez mais expostos e suscetíveis às imagens? –, é impossível pensar na comunicação atual sem perceber a importância da imagem na nossa cultura. Em outras palavras, em um mundo onde a circulação da informação se tornou tão importante, a função das imagens como instrumento de comunicação social é essencial. Dessa forma, não podemos pensar na questão da comunicação sem pensar no papel das imagens técnicas, em particular, aqui, no papel da fotografia, como instrumento cada vez mais indispensável para todo e qualquer interlocutor social. Com o constante aumento das trocas simbólicas em todos os níveis da sociedade, a imagem se torna uma forma muito eficiente de se comunicar. A informação que as imagens transmitem está em sintonia com o ritmo do nosso tempo graças ao impacto visual, a sua relativa universalidade, simplicidade de produção e distribuição. Entender as suas características para melhor utilizar seu potencial passa a ser fundamental no processo comunicativo. Durante o Seminário Liturgia, Arte e Urbanidade, foi discutido, entre outros temas, como formas de comunicação através da arte poderiam ser inseridas na prática religiosa. Entendo que, como já exposto acima, prescindir desses instrumentos audiovisuais como forma de comunicação é limitar o potencial dos fenômenos sociais. Inclusive a religião. Se um dos objetivos das práticas religiosas é criar vínculos entre seus integrantes, o que é sobretudo uma forma de comunicação, acredito que a utilização da fotografia – e outras tecnologias – como ferramenta é importante para o sucesso dessa missão nos dias de hoje. Sobretudo porque esse uso pode se tornar uma experiência artística – um aprimoramento individual –, bem como permite que a comunicação seja expressa segundo a sensibilidade (visual) contemporânea. Ao verbo juntamos a imagem. 87


É evidente que compreender a importância dessas formas de comunicação não significa que não se deva ter uma forte preocupação com o uso correto desses meios, que não se deva desenvolver uma postura crítica. Em um mundo onde, como disse Feuerbach ainda no século XIX, preferimos a aparência à essência, fazer uso das imagens sem a consciência dos limites pode ser tão enganoso quanto condenar o seu uso a priori.

88


89


MAURICIO LISSOVSKY é Professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro

90


CINEMA E CIDADE 1 Mauricio Lissovsky 1. Faça-se a Luz! O surgimento do cinema, no final do século XIX, foi associado ao nascimento de um novo dia. Os espectadores mergulhavam em um território escuro, a luz do projetor acendia-se e um novo mundo de imagens em movimento mobilizava a atenção de todos. Não era apenas a materialização das imagens diante dos olhos que importava. A própria narrativa cinematográfica parecia constituir uma nova ordenação da vida, com seus ritmos próprios, suas passagens de tempo. Sua capacidade de estender infinitamente um momento da existência, ou, ainda com mais freqüência, condensar dias, anos, toda uma vida, em pouco menos de duas horas. O cinema, em contraposição à fotografia, era uma espécie de revelação. Enquanto a fotografia era construída a partir de “sombras” deitadas pelos objetos sobre um papel, a matéria-prima do cinema era apenas luz. A luz refletida por pessoas e coisas não era sepultada sobre uma superfície opaca, mas devolvida ao espectador na forma diáfana da luz projetada sobre a tela. O cinema era ainda renascimento, pois o espectador, mergulhava em um imaginário que lhe permitia transportar-se a outros lugares, viver outras vidas, transformar-se. Finda a seção, saindo do cinema, um certo reencontro com a vida, com a própria vida tinha lugar. Para o bem ou para o mal, para pior ou para melhor, o espectador saído do cinema, acordava, uma vez mais, para a própria vida. Não é de admirar que as primeiras salas de cinema, construídas especialmente para esta finalidade no início do século XX, tenham sido comparadas a catedrais. Era da reencenação do milagre da luz que se tratava. Uma história que a Lusmarina Garcia ouviu do Vítor Westhelle ajuda-nos a compreender o significado desta recriação da luz. “Na entrada da nave da Marienkirche, em Munique, existe uma depressão no pavimento na forma de um pé. A tradição diz ser o pé do diabo. O caso teria se passado assim: O arquiteto da igreja teria feito uma aposta com o tinhoso. Seria impossível ver diretamente luz vindo de qualquer janela, e no entanto a igreja estaria profusamente iluminada. Se assim não fosse, a construção seria entregue O texto Cinema e Cidade localiza-se no âmbito da oficina de Artes Visuais que, naquele momento, consistiu em duas partes. Na primeira, foram apresentadas algumas reflexões sobre as principais figuras que a cidade evoca na tradição cinematográfica, ilustradas por trechos de filmes; na segunda, foi realizado um exercício de montagem com imagens recortadas de revistas e jornais, referindo-as a trechos do evangelho previamente selecionados. 1

91


ao diabo. Quando a obra é enfim concluída, o diabo vem verificar o resultado. O interior da igreja é radioso e, no entanto, não vemos nenhuma janela nem nenhuma luz incidindo diretamente. O capeta, furioso por perder a aposta, bate o pé no chão com força que deixa ali a sua marca.” 2. Cinema é movimento Mas o cinema não é apenas luz. É também movimento. A primeira seqüência de imagens exibida na oficina foram as “cronofotografias” de Muybridge, que decompunham o movimento em poses fotográficas sucessivas. Via-se, pela primeira vez, nestes primeiros flagrantes estáticos produzidos na década de 1880, o galope do cavalo, o caminhar de um homem, a mulher que senta. Tudo aquilo que antes era rápido demais para ser percebido por nossos olhos tornava-se agora espantosamente visível. O primeiro cinema, o cinema do século XIX, do qual essas fotografias são um prenúncio, ainda é esta “maravilha do movimento”. Não existe uma narração, uma história para ser contada. São vistas, cartões-postais animados. Os espectadores da “Chegada do trem”, dos irmãos Lumiére, na paródia que faz Jean Luc Goddard desta primeira exibição (Tempos de Guerra, 1964) cobrem os olhos com as mãos, receosos da locomotiva que avança em sua direção. Quando o cinema passa a nos contar uma história, é como lugar de movimento que a cidade vai ser dominantemente evocada. Nos anos 1920, as “sinfonias urbanas” – filmes em que o que se mostra é o transcorrer de um dia comum numa grande metrópole – são realizadas em todo o planeta. A começar por Rien que les’heures (Alberto Cavalcanti, 1926), passando por Berlim, sinfonia de uma cidade (Walter Rutman, 1927) e culminando com O Homem com a câmera (Dziga Vertov, 1929). Neste último filme a afinidade de movimento entre a cidade e cinema é cabalmente demonstrada por uma seqüência em que a montagem alterna imagens rápidas de um cinegrafista que se desloca de carro, filmando o trânsito, com os movimentos rápidos da montadora, editando na moviola as imagens captadas. O cinema ‘adora’ a cidade e dela vai retirar algumas de suas figuras mais recorrentes. LUGARES SIGNOS

REGÊNCIA

TRO -WO

SHI -WO

Casa

Estar

Solidão, abandono

Identidade, território

Esquina

Encontro

Estranho, Medo

Inesperado, Novo

Rua

Deslocamento

Stress (pressão, explosão)

Oportunidade, mudança

Praça

Publicidade

Vergonha

Notoriedade

92


3. As Figuras da Cidade No quadro abaixo, esbocei uma certa sistematização destas figuras. Imaginei quatro “lugares” característicos da cidade (a casa, a esquina, a rua e a praça). Estes lugares que a cidade oferece não são apenas “cenários” para os acontecimentos cinematográficos. São signos fundamentais a partir dos quais sentimentos podem ser evocados e narrativas inauguradas. Para que fique um pouco mais claro como isto funciona, como o cinema aí opera, propus tratar estes lugares como se fossem divindades tibetanas, cada uma delas regendo uma certa situação. O que caracteriza as divindades tibetanas é que cada uma delas possui dois aspectos. Um deles é chamado Tro-wo, no qual a divindade se apresenta de modo terrificante. O outro, chamado Shi-wo, nos exibe a sua face benevolente. Cada um dos lugares-signos da cidade preserva assim sua ambigüidade original a partir do qual as inúmeras narrativas podem ser geradas. Desse modo, a CASA rege os sentimentos vinculados ao estar e ao ficar. A face aterrorizante da Casa é a solidão, o abandono. Em várias seqüências de Taxi Driver (Martin Scorecese, 1976), o motorista percorre as ruas da cidade como quem atravessa uma terra estrangeira, à qual ele não pertence absolutamente. O parabrisa do carro define um limite que ele não consegue transpor e que reserva, para além de si, um mundo cujo significado o personagem não consegue compreender. A mesma função tem o vidro da janela através da qual o protagonista de Não Amarás (Kieslowski, 1989) observa – com o auxílio de uma luneta – sua vizinha de frente. Tanto num caso como no outro, a casa é signo de um terrível isolamento. As tentativas dos personagens de atravessar os muros da Casa, de aproximar-se deste outro que desejam – e que está sempre em um fora inatingível – hão de ser sempre mal-entendidas. A porta que porventura os conduz para o fora da casa é a passagem estreita por onde a tragédia entra em suas vidas. A face benevolente da Casa pode ser vista na famosa cena de La Dolce Vita (Fellini, 1960), em que Anita Eckberg e Marcelo Mastroiani tomam um banho noturno no chafariz romano. Tudo aqui é identidade, pertencimento. Toda a cidade de Roma converte-se em território próprio dos personagens. A seqüência de abertura de Underground (Kousturika, 1995) nos mostra uma dupla de amigos que atravessa a cidade de Belgrado, antes da Segunda Guerra, bebendo e cantando, numa charrete seguida por uma alegre banda cigana. Os limites da Casa estendem-se até onde alguém se sente em casa. Neste caso, como no de Fellini, por toda uma cidade e toda uma cultura, que é sentida e vivida como verdadeiramente sua. A segunda divindade tibetana aqui evocada é a Esquina. Ela não rege o território, mas os encontros, isso que nos espreita, ou nos surpreende, a cada volteio da vida. Em M, o vampiro de Dusseldorf (Fritz Lang, 1931), a cidade, em pânico com uma série de assassinatos de crianças, vê, em cada esquina, um suspeito, um potencial assassino, oculto sob a face de um desconhecido. Qualquer pessoa que se dirija a uma criança na rua pode ser alvo de desconfiança, e um pequeno grito de alerta desperta a fúria da multidão. A face Tro-wo da equina é o estranho, o medo. O inimigo oculto que a máscara da urbanidade dissimula. A esquina benevolente é aquela que nos oferece o encontro com o inesperado, o novo. O acontecimento 93


redentor capaz de mudar as nossas vidas. Em A Rosa Púrpura do Cairo (Woody Allen, 1984), a esquina é a própria tela do cinema, de onde um personagem salta ao encontro da moça do interior, doce e sonhadora, atormentada pela indiferença e grosseria do marido. Cidade onde se fica. Cidade onde acontece o encontro. Para que a passagem de uma condição a outra seja possível, a cidade deve ser também lugar de deslocamento. Este é o terceiro lugar-signo da cidade no cinema: a rua. O Tro-wo da rua é o stress, a pressão. O adensamento competitivo da existência, que extrapola o campo do trabalho, pois só pode haver lazer ali onde o tédio já ocupou todos os espaços. Em Week-end (Goddard, 1968), todos se sentem “obrigados” a sair de Pa-ris e aproveitar um final-de-semana no campo. Uma briga no estacionamento do condomínio mobiliza os vizinhos e seus equipamentos de lazer convertem-se em armas de guerra. O arco-e-flecha do menino, a carabina de caça, o spray de óleo do motor... A população inteira encontra-se presa num gigantesco engarrafamento. Buzina-se, mata-se o tempo, os veranistas xingam-se uns aos outros. A câmera faz um travelling ao longo do engarrafamento que se estende por quilômetros até encontrarmos um terrível acidente automobilístico. O carro esportivo de cabeça para baixo. Os corpos de toda uma família estendidos no chão. Os deslocamentos, enfim, não levam a lugar algum. Um outro travelling, aquele que dá início a Salve o cinema (Makhmalbaf, 1995), faz-se através de uma multidão de pessoas que atenderam a um anúncio de jornal em Teerã, que oferecia vagas para quem quisesse tornar-se ator de cinema. A face benevolente do deslocamento é aquela que nos reserva a oportunidade, a mudança. Um deslocamento que não se faz mais apenas no espaço, mas que traduz a potência transformadora da vida que a cidade abriga em seu seio. Finalmente, a praça, o signo do espaço público que só a cidade pode oferecer. Tro-wo: a vergonha, a humilhação pública. No episódio “Édipo Arrasado”, de Woody Allen, em Três contos de Nova York (1989), a mãe do diretor-ator-personagem desaparece misteriosamente durante um show de mágica e ressurge gigantesca pairando nos céus da cidade. Supremo embaraço. Lá de cima, diante de toda a população atenta à manifestação deste estranho fenômeno, ela exibe retratos do filho criança, critica sua namorada, expõe seus defeitos e mazelas. Não há mais onde ocultar-se. Não é mais possível esconder. Agora, toda a cidade sabe. A face benévola da vergonha pública é a notoriedade: a fama do homem púbico. Em Cidadão Kane (Orson Wells, 1942), o dono de um império jornalístico candidata-se à presidência. A multidão acorre ao comício de lançamento da campanha. Atrás do cidadão que discursa, um enorme cartaz exibe seu rosto. Seu tamanho é apenas uma pequena parte da reverência e do temor que a massa lhe devota. Os signos-lugares são os quatro cantos da cidade: casa e rua; esquina e praça. No cinema eles se desdobram em oito faces, oito modos do acontecer narrativo das cidades. Todo o movimento do cinema, aí, é fazer com que estas faces se transformem em seus opostos (a notoriedade em vergonha, por exemplo, ou a solidão em pertencimento); ou fazê-las derivar umas das outras (como a mudança que surge a partir do que é novo, ou o stress que provém daquilo que nos amedronta). O que o cinema nos diz sobre a cidade é que ela é sobretudo ambígua, um território 94


fluido e plástico, lugar de transformação e vida e, igualmente, cenário ideal para as maiores catástrofes. 4. A Cidade e a impossibilidade do advento. O desafio de todo aquele que quer fazer valer a vida na cidade, seja por meio da palavra, seja por meio de ações que a transformem, é compreender os sinais ambivalentes dos signos que ela evoca. Temos uma longa tradição de recusa da cidade. Em Mateus (11-20), Jesus volta-se contra as cidades que não são capazes de escutá-lo: Passou então, Jesus, a repreender as cidades nas quais ele operara numerosos milagres, pelo fato de não se terem arrependido. Há um curta-metragem dinamarquês recente chamado Ernest e a luz, de Anders Thomas, que expressa claramente esta experiência. Uma luz foi vista em todo o mundo – o epicentro do fenômeno foi em Copenhague. Um homem de negócios desembarca no aeroporto. Liga para a esposa de um telefone público, pois o seu celular está sem bateria. Pega o carro no estacionamento e dirige-se para a casa. Um sujeito pede carona. Ele passa direto, mas o motor do carro pára subitamente de funcionar. O desconhecido entra. Ele se anuncia: é o Enviado. O homem de negócios seria o Escolhido. O carro retoma misteriosamente a sua marcha e os dois homens travam o mais estranho dos diálogos. As palavras proferidas pelo Enviado e os milagres que ele opera dentro do carro não produzem qualquer efeito sobre o homem urbano. O Escolhido as considera fora de lugar e, sobretudo, fora do tempo. Rejeitado, o Enviado desaparece num facho de luz azul brilhante que se eleva até o céu. Ernest – o homem de negócios – liga para a esposa: “Querida, você não imagina o que aconteceu: meu celular voltou a funcionar.” Este último filme foi utilizado para estimular a parte prática da oficina que consistiu em elaborar seqüências de imagens sobre grandes tiras de formulário contínuo. Como películas cinematográficas, as tiras de papel deveriam expressar, através de signos urbanos – figuras recortadas de revistas ilustradas banais – passagens extraídas do Novo Testamento. O trabalho foi realizado em grupos, cada um encarregando-se de um dos trechos. Os trechos selecionados foram: I Coríntios 10. 26-7; Mateus 4. 18-19; Mateus 21. 18-19; Mateus 14. 26-30; Atos 10. 10-15.

95


JACI MARASCHIN é professor da Faculdade de Filosofia e Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo. É escritor, compositor e editor de inúmeros livros na área de arte e liturgia. E-mail: jmaraschin@uol.com.br

96


QUANTO MAIS APRENDEMOS MENOS ENTENDEMOS – REFLEXÕES SOBRE ARTE E PÓS-MODERNIDADE Jaci Maraschin

1.

Nesta época de globalização, a cultura se massifica e os gostos parecem se nivelar pelas forças do poder. Certamente, o poder se atrela a interesses e os interesses dependem do lucro que nossos empreendimentos podem alcançar. É por isso que na base da escala de valores situam-se as forças do mercado e no cume da pirâmide seus resultados contábeis. Nesta sociedade globalizada a ficção da individualidade tenta ocultar a sua morte. A metodologia da aprendizagem, por exemplo, imita a mesma metodologia da vida cotidiana onde tudo desemboca no self-service. Navego, por exemplo, na internet para aprender o que me parece interessar. Tudo indica que nela se realiza de maneira veloz a antiga enciclopédia. Recolho dados que transcendem a minha capacidade de entendimento, que se superam a cada dia. O mundo se torna virtual. Estamos vivendo, ainda, na época da racionalidade grega. As coisas têm começo, meio e fim. Elas se desenrolam a partir de origens e causas e produzem efeitos. Nossa vontade se dirige para resultados. Somos, pois, utilitários. A antiga pergunta da filosofia, “que é?”, gera sem nenhum escrúpulo esta outra: “para que serve?” Essas duas perguntas formam o pedestal do que chamamos globalização. Esse termo resulta do desenvolvimento do que se pode chamar de modernidade. Acaba transformando-se em seu sinônimo. Se no mundo filosófico (com seus desdobramentos sociológicos, políticos e econômicos), a modernidade nasce com o cartesianismo, o mesmo não se dá com a arte. A arte, no período da modernidade (desde o século XVI), passou por diferentes manifestações, periodizadas pelos críticos, segundo estilos, formas e escolas. Pode-se, pois, falar da arte na modernidade entendendo-se aí os desdobramentos dos estilos e 97


do gosto junto ao desenvolvimento das sociedades. Subordinada aos parâmetros da racionalidade acostumamo-nos a perguntar pelo ser da arte (que é?) e pela sua função (para que serve?), tornando-a objeto de aprendizado. Esse período começa com o Renascimento e vem até nossos dias. Os artistas clássicos subordinaram-se a regras de composição e a modelos de criação que se tornaram canônicos e dogmáticos. Por causa disso era fácil tentar entender a obra de arte, bastando apenas comparar o produto com o modelo. Havia, assim, duas coisas: o produto e o modelo. Essa binaridade, se assim pudermos dizer, relaciona-se com a polaridade existente na filosofia grega entre essência e existência ou entre substância e acidentes, coisas inventadas por Platão e Aristóteles. Segundo esse ponto de vista, as coisas que aparecem não são o que parecem ser. Há sempre por detrás delas uma outra realidade considerada profunda e verdadeira. A pergunta pelo ser da obra (que é?) espera como resposta o que está oculto e que, portanto, não é. Produzidas na época da racionalidade, essas obras eram concebidas de maneira referencial, respondendo a perguntas de ordem utilitária (para que servem?). Desde o Renascimento até tempos mais recentes, as obras de arte ti nham propósitos alheios a si mesmas, naturalmente com exceções. Basta lembrar as definições de música, na época romântica, em que se esperava que baladas, noturnos e prelúdios expressassem sentimentos. Poderíamos mencionar o que se chamava também de música des critiva, como o poema sinfônico O Moldava, de Smetana, e a sinfonia Pastoral de Beethoven.

2.

Quando se fala em modernidade queremos nos referir quase sempre ao período mencionado acima, equivalente aos desdobramentos do pensamento de Descartes, na filosofia, gerador que foi do progresso da ciência e da tecnologia que conhecemos hoje. Trata-se pois de clara tendência cultural que prioriza a razão prática e fomenta o capitalismo globalizante. É nessa era que estamos vivendo e é bom que nos demos conta disso para não sofrer de ingenuidade ou de desinformação. Nesse caso, pós-modernidade seria o nome da tendência de pensadores de nosso século empenhada em levantar críticas ao período em que vivemos. Essa crítica emana de raízes filosóficas, embora queira ser pós-filosófica, e de raízes culturais em geral. Seus principais mentores são Derrida, Lyotard e Deleuze. Dependem em grande parte do pensamento do último Heidegger que anuncia sem rodeios o fim da filosofia. No campo religioso origina-se basicamente no pensamento de Kierkegaard e Nietzsche, com desdobramentos no pensamento de Bonhoeffer, Altizer, Cuppit e principalmente, hoje em dia, do norte-americano Mark C. Taylor. Heidegger observa que a disciplina chamada filosofia não existiu sempre nem haveria de existir para sempre. Esse tipo de pensamento teria começado na Grécia antiga (diríamos, com Tales de Mileto), chegando ao seu apogeu com Sócrates, Platão e Aristóteles, espalhando-se principalmente pela Europa e pela América. Essa disciplina representou o tipo predominante de pensamento do mundo ocidental e terminou com Hegel, no século XIX. Daí até nossos dias, nada de novo teria realmente acontecido a não ser certas retomadas do que já fora feito em forma de comentário. Tudo mais ou menos como um velório. É provável que o principal mestre de cerimônias desse funeral tenha sido Nietzsche, no final do século XIX. 98


É por isso que os pós-modernos referem-se a ele como se fosse um sacerdote. Mas ninguém deve se assustar com o fim da filosofia, porque o próprio Heidegger anuncia o que deve sobrar. Morre a filosofia, mas não morre o pensamento. Aliás, nos incontáveis séculos de vida humana antes de Tales de Mileto, as pessoas pensavam, e continuam a pensar nos dias de hoje, mesmo quando nem todos saibam muito bem o que significa pensar. O que sobra então é a nova forma de pensar consubstanciada na arte e no misticismo. Não é sem razão que Heidegger dedica boa parte de sua obra a considerar os versos de poetas como Hoelderlin e de Rilke, entre outros. O fim da filosofia representa também o fim do império da racionalidade e suas conseqüências. Desacreditam-se as ortodoxias e os dogmatismos. Cai por terra o antigo princípio de que a verdade era equivalente à sua expressão, digamos, gramatical. Desabam juntamente as certezas que fazem com que os sistemas permaneçam de pé e nos oprimam. De certa maneira, o fim da modernidade representa a esperança, enfim, da chegada da liberdade.

3.

Quando entramos nos domínios da arte o termo adequado a ser empregado é “pós-modernismo” oriundo, naturalmente, da experiência não simplesmente da modernidade mas do modernismo enquanto movimento artístico e estético. Hal Foster, crítico contemporâneo de arte, afirma que “o termo pós-modernismo é usado promiscuamente na crítica da arte”1. Quer dizer com isso que o termo é bem mais negativo do que parece. O “pós” estaria muito mais para “não” do que para “depois”. Talvez, no contexto da pós-modernidade, poderia significar esfacelamento ou fragmentação, coisa que também se relaciona com pluralismo. O período reconhecido como “moderno” em arte vai aproximadamente de 1860 a 1930. Alguns autores estendem-no até um pouco depois da Segunda Guerra. Como podemos entender esse período? Essas datas referem-se principalmente ao domínio das artes plásticas, muito embora música e dança pudessem com certo malabarismo entrar no esquema. As diferentes escolas de pintura e escultura rompem com os cânones tradicionais da academia (academicismo) na segunda metade do século XIX. Parece que o rompimento verificado na música é um pouco posterior, embora não muito. Se considerarmos, por exemplo, a música de Wagner como o último bastião do romantismo, seremos obrigados também a considerá-lo o último revolucionário porque rompe, de certa forma, com a tonalidade, abrindo possibilidades para a modernidade. Mas serão os músicos do início do século XX os responsáveis por novas concepções harmônicas e por ousadas inovações rítmicas e de timbre. Considero o Pierrot Lunaire, de Schoenberg, importante sinal da transição da música que morria com Mahler para as novas experiências dodecafônicas (ou seriais), para a atonalidade e para as músicas eletrônicas e eletroacústicas, além das composições aleatórias. Nas artes plásticas, de Cèzane a Paul Klee, de Matisse a Picasso, de Monet a Pollock, todos buscam, de certa forma, a pureza. Querem fazer obra de arte e não Capítulo intitulado Re: Post no livro editado por Brian Wallis, Art after Modernism, The New Museum of Contemporary Art, New York, David R. Godine, Publisher, Inc. Boston, 1984. 461 p. 1

99


apenas propaganda. Embora se possa detectar em boa parte dessa produção evidentes mensagens referenciais, o que preocupa os artistas é o que chamaremos de mensagem estética. Essa busca de pureza que aspira encontrar o quadro vazio como o símbolo da arte, representaria talvez não apenas a morte da arte, mas igualmente a morte do artista. Eu me lembro de ter ido a uma exposição que comemorava 60 anos de vida de um pintor americano cujo nome não guardei, no Museu de Arte Moderna de Nova York, numa sala com cerca de 40 quadros. Todos eram iguais. Todos eram brancos onde se podiam perceber traços de pinceladas. Demorei-me em sua contemplação. Perguntava-me entre perplexo e curioso: será que é dessa maneira que se pode chegar à pureza da pintura!? Eu estava sozinho na sala. De repente entrou uma senhora americana, naturalmente. Também intrigada, como que procurando ter certeza do que via, me perguntou: “Quando o artista virá para terminar sua obra?” Teria a pintura explorado todas as possibilidades até a exaustão? Isto é, a pintura teria se acabado? Não haveria nada mais para se pintar? Ou, em outras palavras, prescindiríamos, agora, da pintura? Podemos entrar pelos difíceis caminhos da poesia e do romance para observar até onde a literatura avança sem se perder enquanto arte? O que dizer do Teatro do Absurdo de Samuel Beckett ou do Teatro da Crueldade de Antonin Artaud? Além disso, o modernismo se mostrou historicista. O artista toma conhecimento do que se passou antes dele para romper com o passado. O sujeito dessa história é, naturalmente, o artista. Ele vive nas galerias de arte e nos museus. Torna-se servo dos marchands e transforma sua obra de arte em mercadoria, chegando a alcançar preços inimagináveis ao apreciador comum.O artista é tragado por esse vórtice e passa a competir com seus colegas. As aparentes rupturas das obras modernas com o passado não conseguem desvincular o artista de certo fluxo de desenvolvimento natural. Em resumo, diríamos que ele navega na tradição da história da arte. Esse movimento foi marcado por grande diversidade de estilos, técnicas e estéticas. Suscitou manifestos e controvérsias.

4.

A pós-modernidade tem todas as credenciais para receber em seu meio o pós-modernismo. Este representa certa ruptura radical com o passado, possivelmente com intensidade semelhante ao rompimento da pós-modernidade com a modernidade. Embora a pós-modernidade não possa ser concebida como sinal e marca do mundo contemporâneo, ela se apresenta com instrumental crítico suficientemente forte para pôr em xeque algumas das premissas da racionalidade prática ou técnica enquanto orientação dogmática para a vida das pessoas. Abre novas possibilidades de expressão da vida e privilegia as artes. Não se espera que a arte pós-modernista possa ser traduzida. Está, por assim dizer, fora dos grilhões da crítica. Diz Derrida: “Assim que se procure deste jeito demonstrar que não há significado transcendental ou privilegiado, ou que o domínio ou jogo da significação daqui para a frente não tem limite, deve-se rejeitar até mesmo o conceito de ‘sinal’ – coisa que de fato não se pode fazer”2. A arte pós-modernista tem sido considerada “desconstrutiva”. Em outras palavras, o artista 100


busca se desvencilhar de todas as tradições para criar com liberdade. Mas, como trabalha com elementos da cultura (cores, sons, formas etc.), acaba utilizando os mesmos conceitos que questiona. O processo de desconstrução precisa, necessariamente, partir de dentro da construção. Como não existe o lado de fora nem o lado de dentro, mas a coisa em seu aparecimento (que pode ser som, palavra escrita, gesto ou corpo), não há alternativa como escape da cultura. A arte pós-modernista rebela-se contra a idéia de pureza, tão evidente na arte modernista. Não está preocupada com os referenciais que tantas vezes servem para ocultar mensagens estéticas puras. As mensagens tendem a emergir de dentro da impureza das referências. Na verdade, essa arte, mesmo sem intenção explícita, acaba problematizando as referências. Este conceito vem do impulso desconstrutivista que deve ser diferenciado do impulso da autocrítica. O modernismo procurou, por meio da autocrítica, chegar ao essencial ou “puro”. A desconstrução, ao contrário, revela a “impureza” do significado. Em outras palavras, não há significado em si, como não há pensamento em si, em estado bruto. Roland Barthes afirma que “o texto não é uma linha de palavras que liberam o único significado ‘teológico’ (isto é, a mensagem do autor-Deus), mas o espaço multidimensional no qual os vários escritos, nenhum deles original, misturam-se e colidem entre si”3. Barthes segue a tendência do pensamento pós-estruturalista quando afirma que o sinal não é estável. A incapacidade humana de ler os textos como se fossem definitivos abala não apenas as afirmações dogmáticas como também qualquer possibilidade de se chegar à mente do autor original, seja ele artista ou filósofo. Isso afeta, sem dúvida, a maneira como se pode fruir a obra de arte.

5.

Bernard Rolland, crítico do The New York Times, comenta dois casos de música na pós-modernidade, ambos pós-modernistas: John Cage e Philip Glass. Diz ele que os dois compositores “esposam a monotonia em formas diferentes”. Ouve a música de Cage como simples rejeição do que chama “ego composicional”, capaz de abrir janelas tanto para o trivial quanto para experiências do cotidiano. Rolland entende que Cage “utiliza a ordem e os limites para dirigir nossa atenção à desordem e ao ilimitado... na verdade, ele joga fora todas as idéias acumuladas de beleza e de feiúra”. Por outro lado, diz ele, a música de Glass é uma espécie de “ordem espremida até as raias de enorme simplificação”. Parece refletir “um mundo frio”. O crítico, naturalmente, não se furta ao referencial. É por isso que é crítico. O que escreveria se apenas repetisse a música? Mas entende muito bem que as repetições rítmicas e o movimento metronômico “procedem por meio de leves alterações do que nos parece ser sempre a mesma coisa”. O autor entende que a música desses dois compositores representa versões diferentes de duas presenças básicas em nossas vidas: “a máquina e o mundo da física”. Na verdade, “a música Structure, Sign and Play, em Writing and Difference, tradução para o inglês de Alan Bass, Chicago, The University of Chicago Press, 1978, p. 281. 3 The death of the Author, em Image-Music-Text, traduzido para o inglês por Stephen Heath, New York, Hill and Wang, p 146. 2

101


de Cage responde à nossa estupefação e deslumbramento diante do universo que se torna incompreensível à medida que mais aprendemos a seu respeito”. Não estaria Cage nos indicando, musicalmente, as incongruências das certezas do século XIX?4 Então essas certezas que gostávamos de ter finalmente desabam. As Igrejas sofrem muito dessa vontade de certeza. Acreditam que a história da igreja seja verdadeira, recheada de dogmas igualmente verdadeiros como tão bem se pode constatar nas declarações solenes dos grandes concílios ecumênicos de Nicéia, Constantinopla e Calcedônia. Esse emaranhado de doutrinas acabou atrapalhando a possibilidade de contemplarmos a figura de Jesus, mesmo se por meio de brumas e véus. Deixando para trás o Jesus da história, a religião recoloca-no na tradição dos indicadores do sagrado como se ele fosse (o que realmente é) uma obra de arte. O dogma quer ver o mistério com clareza e certeza. O crítico que estou citando acredita que a música de Cage nos confronta com as incongruências de qualquer certeza.

6.

E agora uma pergunta desconfortante: de que maneira a arte pós-modernista poderia ser acolhida em nossas liturgias? Eu fico me perguntando: por que será que eu, a Simei, o Flávio Irala, o Pablo Sosa e mais alguns compomos música tonal? Será possível cantar música atonal? Eu fiz a experiência de compor uma missa minimalista. Percebi que esse tipo de música ainda pode ser cantado numa congregação normal. Continua a pergunta: de que maneira a arte pós-modernista poderia ser acolhida em nossas liturgias? O culto cristão é filho do casamento entre palavra e ação. Mas, ao que parece, muito mais da palavra do que da ação. A música da igreja começou subordinada à palavra, como se pode observar no canto dos salmos no cantochão inicial, transformado mais tarde em canto gregoriano e em canto anglicano. Mesmo quando os movimentos reformados procuraram novos estilos de música, ela teve que ser tão métrica, tão silábica, como as letras das poesias, para continuar na tradição logocêntrica da Igreja. Quero dizer que a Igreja, desde a idade média até nossos dias, desejou ser moderna. Subjugou a arte à propaganda doutrinária e estabeleceu cânones onde aprisionou a imaginação, a inspiração e a criatividade dos artistas. Tentou criar o que muitos ainda chamam de “arte sacra”, como se isso fosse possível. A fé espontânea e singela dos primeiros cristãos caiu na armadilha da filosofia grega e não demorou muito a se espremer dentro dos limites da razão criadora de dogmas, credos e cânones. Para essa Igreja logocêntrica e, portanto, racionalista, nada melhor do que experiências artísticas igualmente lógicas e compreensivas. São inúmeros, hoje em dia, os pensadores cristãos empenhados em romper com a rigidez dos nossos livros de reza e dos nossos hinários tradicionais. Entretanto, nem sempre temos sabido o que oferecer em seu lugar. Faz pouco participei de uma conferência da Califórnia, precisamente em janeiro, realizada pela Igreja Anglicana com o sugestivo tema: “Além do Livro de Oração Comum”. Esperávamos que durante o encontro os participantes pudessem fazer a experiência do rompimento com nossa 4

Summoning the Spirits of Minimalist Musicians, Tuesday, September 7, 1999, p E5.

102


vetusta tradição litúrgica. Mas nada aconteceu. Os cultos continuaram os mesmos de sempre e os hinos eram os do hinário oficial. A Igreja tem muita dificuldade para sair da modernidade na direção da pós-modernidade porque está estruturada nas bases do racionalismo e do moralismo. Acredito que a arte pós-modernista poderia ser o melhor caminho para derrubar a velha estrutura dogmática com suas experiências de fragmentação e de liberdade. Vou terminar esta conferência oferecendo algumas sugestões que os ouvintes poderão tentar desenvolver em suas comunidades como incentivo à renovação da vida litúrgica em nosso tempo. A seqüência das sugestões não significa qualquer hierarquia de importância ou prioridade. Proponho que comecemos com qualquer uma delas, sem constrangimento: 1ª) Abandonemos por algum tempo (a ser determinado pelo grupo) os nossos livros de oração e manuais de culto. Talvez nos seja difícil usufruir da liberdade que essa experiência pode nos trazer. Mas acredito que valerá a pena. Notemos reverentemente que os primeiros cristãos não tinham livros de reza nem hinários. Tinham naturalmente o Antigo Testamento, de onde sobressaiam os Salmos. Por que não começarmos por eles? Não contei quantos versos eles têm, mas são muitos e variados. Ninguém poderá se queixar de falta de base. Os Salmos podem ser essa base. 2ª) Abandonemos os nossos hinários tradicionais também por algum tempo. Exorcizemos nossas comunidades da praga dos corinhos. Não estou querendo comparar os hinos que temos cantado com essas quadrinhas insossas e sem valor. Nossos hinários contêm jóias musicais e poéticas. Mas precisamos de descanso. Só assim começaremos a inventar e criar músicas do nosso tempo, do nosso lugar e do nosso povo. A arte pós-modernista depende fundamentalmente da nossa capacidade de invenção. Mas de certa invenção capaz de conter em si elementos de ruptura com a historicidade da modernidade. 3ª) Criemos novos espaços de reunião. Estamos demasiadamente presos às nossas arquiteturas do passado. São simétricas, proporcionais, imponentes, quase sempre ricas, mas nem sempre acolhedoras. Esses espaços litúrgicos sofrem também da opressão da racionalidade. Lembremo-nos de que os primeiros cristãos fortaleceram seus laços de amor e amizade nos corredores escuros das catacumbas. Hoje temos nossas casas e apartamentos, nossos clubes, bares e sítios, nossas praças e ruas, que bem poderiam ser santificadas pelo sopro do Espírito quando aí nos animássemos a celebrar os louvores de Deus. 103


4ª) Organizemos oficinas de trabalho litúrgico para descobrir de que maneira cor, forma, tecidos, terra, fogo, ar, água, vento, objetos ao nosso redor, plantas, estrelas, lua, sol, planetas, chuva, enfim, o mundo criado e o mundo da cultura podem se juntar na festa da adoração e no exercício da contemplação. 5ª) Procuremos descobrir na literatura pós-moderna elementos de poesia e drama capazes de utilização nas assembléias do povo cristão. Mas não deixemos de lado essas formas milenares que têm sido transmitidas até nós, como os kyries, os sanctus, os agnus dei, os glórias e tantas outras. Elas podem adquirir valores novos por meio de ateriais até então ignorados por nós em nossas tradições de culto. 6ª) Esqueçamos por algum tempo o nosso velho harmônio, o venerável órgão de tubos, e os famigerados teclados eletrônicos. Optemos por instrumentos de sopro, de cordas (não é o berimbau um dos mais belos dentre eles?), tambores e pandeiros, tamborins e cuícas, gaitas e acordeões. A lista é muito grande. Encontraremos na Bíblia, se quisermos, dezenas de exemplos que, mutatis mutandis, poderão nos inspirar. Não nos esqueçamos do conselho do salmista de que “tudo o que tem fôlego deve louvar ao Senhor”. 7ª) É no corpo que somos espírito. Quando falamos em corpo temos que lembrar que não só o homem tem corpo, mas também a mulher, e que seu corpo é bem mais bonito que o do homem. E mais ainda, não nos esqueçamos das crianças, que são absolutamente maravilhosas. Quando eu digo que é no corpo que somos espírito estou pensando no corpo da comunidade toda. São corpos de homens, de mulheres e de crianças numa efusão de alegria. É no corpo que nosso espírito se torna criativo e recria a vida. Façamos, pois, do corpo o nosso principal instrumento de adoração. Abandonemos a rigidez das posturas herdadas de outros povos. Sejamos como nós somos. Gostamos de caminhar: façamos caminhadas processionais. Gostamos de dançar: inventemos nossas danças litúrgicas baseadas no drama das Escrituras. Gostamos de gestos: curvemo-nos, pulemos, sentemos, ajoelhemo-nos, batamos palmas, enfim, sejamos expressivos.

104


8ª) Nossa época caracteriza-se pela predominância da imagem. Não nos esqueçamos da importância dos vídeos e do cinema nem do bom uso da televisão. De que maneira o computador e, conseqüentemente, a internet podem nos ajudar nessa enorme tarefa da recriação litúrgica? Não sei se aqui há um grupo de escultores, mas eu acho que a escultura tem de ser recuperada na Igreja. Lembro-me do impacto tremendo que senti na Catedral Anglicana de Nova York durante a semana santa. Penduraram a enorme imagem de uma mulher crucificada para simbolizar a morte de Cristo. Chamaram-na de “The Christa”, em inglês, “A Crista”. É claro que a ousadia gerou muita controvérsia. Mas, se vamos usar imagens, elas deverão ser fortes. Não servem para a liturgia imagens débeis, românticas e sentimentalistas. 9ª) Finalmente, depois de todas essas experiências, se alguém sobrar na igreja, o grupo encarregado de tudo isso deverá fazer séria avaliação do que alcançou nesse tempo. O processo de avaliação já será ele mesmo novo momento de adoração. Espero que tenhamos percebido que tudo isso faz parte da fragmentação de todas essas coisas sólidas e compactas que temos carregado ao longo do tempo e das quais estamos cansados. Quebrá-las e até mesmo pulverizá-las pode ser o melhor antídoto ao veneno da globalização.

105


PER HARLING é pastor da Igreja Luterana Sueca. É autor de várias obras na área de liturgia e compositor de textos e canções. Trabalha no projeto Desenvolvimento dos Cultos, do Departamento de Desenvolvimento da Vida Eclesial no Escritório Central da Igreja Luterana Sueca, em Uppsala, Suécia.

106


A FONTE:

UMA ESTÓRIA MÍTICA Per Harling* A estória da fonte havia sido contada de geração em geração, sendo, assim, uma estória bem conhecida da maioria de nós. A fonte, que tinha sua origem lá em cima na montanha mítica, onde a cerração eterna da manhã a cercava com seu cuidado e frescor, essa fonte, diziam-nos, era nossa origem, nosso útero. Nossos ancestrais haviam vivido junto àquela fonte, onde obtiveram seu alimento, sua linguagem, suas canções, seus sonhos, suas vidas. Na fonte cantante havia de tudo, e durante muito tempo nossa gente vivera lá sem desejar nada mais. Mas então algo aconteceu. Na verdade, ninguém sabe por quê. Mas um dia aquela gente da fonte começou a descer os morros, afastando-se da montanha, distanciando-se da fonte, porém seguindo seus córregos. Provavelmente essas pessoas tinham sede de conhecimento e vontade de encontrar terra nova. E um dia nossa gente chegou até o mar e suas praias macias, esse mar que reunia em si todos os rios, córregos e correntes das montanhas. E aí se reuniram pessoas vindas de todos os cantos do mundo, pessoas com caminhadas diferentes, com experiências diferentes, com tradições diferentes. Parados junto à água, olhando por sobre o mar, carregando nossas memórias e nossa saudade da fonte, pensávamos repetidamente que ouvíamos as canções da fonte erguendo-se das profundezas do mar. Junto à água fora construída uma cidade, que crescera tanto que atualmente já chegava até as encostas da montanha. E lá – já faz muito tempo – fica nossa casa, e nós nos reunimos tão freqüentemente quanto possível no prédio que construímos em memória da presença da fonte. Lá nos aferramos a nossas antigas tradições. Lá nos sentimos em casa em meio a essa cidade que, no mais, é inóspita, indiferente e perdida. Um número cada vez maior de pessoas foi nos deixando. E quanto menor ficava nosso grupo, tanto mais importante tornou-se o apego a essa linguagem segura e arraigada da fonte. E todos nós ansiamos pelas verdadeiras correntes da fonte. Um dia elas vão atravessar nossa cidade e todo o mundo será despertado pelo poder da fonte e satisfará sua sede em sua água doadora de vida. O que agora é oculto será revelado então. Com tais palavras sobre o fluxo vindouro da fonte nós nos 107


encorajamos mutuamente quando ficamos desiludidos. Nossa comunidade até tem um nome. Nós nos chamamos de Guardiões da Fonte. Alguns e algumas de nós se chamam de fontólogos. Essas pessoas são especialistas, altamente respeitadas, sobre a fonte e suas origens. Elas dedicam sua vida à pesquisa da fonte e escrevem suas teses sobre a estória da fonte e sua importância. Não há muitos de nós que efetivamente lêem o que elas escrevem, mas suas teses são essenciais para nossa interpretação de nossa tradição. Há algum tempo aconteceu algo muito estranho. Certa manhã, quando as pessoas da cidade acordaram, descobriram uma ilha nova, bruxuleante e bela lá no mar. Ninguém sabia de onde ela viera. Algumas pessoas disseram que ela sempre estivera lá, mas que a neblina do mar a ocultara de nós. Seja como for, certa manhã ela estava lá, aquela ilha atraente e bela. Bem no meio da ilha havia uma montanha, e sobre a montanha, uma neblina matinal bruxuleante. As pessoas que se aproximaram da ilha disseram que haviam ouvido o som quase inaudível de água murmurante vindo do interior da montanha, como o cantar de uma fonte murmurante. Oh, que alegria isso causou em nós, Guardiões da Fonte! A fonte, nossa origem, nosso útero e alvo de nossa vida havia, finalmente, se revelado a nós de novo. Isso nos encheu de muita confiança e animação. Muitos dos fontólogos não ficaram tão contentes quanto nós, e eles foram consultar suas fontes de pesquisa e disseram que essa ilha e sua nascente jorrante não tinham nada a ver com a fonte original. Essa triste mensagem fez com que mais alguns e algumas de nós deixassem a comunidade dos Guardiões da Fonte. E em breve a ilha tornou-se uma parte tão natural de nosso ambiente que sua atração mítica ficou menos importante. Aferramo-nos à fonte original. Uma fonte nova não faria parte de nossa vida. Mas na cidade havia outras pessoas que ficaram fascinadas com a ilha. E elas até nos acusaram de não corresponder à nossa tarefa, de que não teríamos linguagem ou conhecimento suficiente para entender a revelação da fonte. Mas a maioria das pessoas não se importavam conosco. Deixaram-nos sozinhos com nossas velhas liturgias, hinos e orações. Mas um número cada vez maior de pessoas começou a falar sobre a ilha e sua nascente jorrante. Tentaram, com diferentes expressões, descrever seu anseio pelos mistérios da ilha. E essas expressões penetraram nos diferentes estratos culturais de nossa sociedade. A música de rock, forte e barulhenta, que atraía nossos filhos e netos, havia se tornado uma expressão muito importante para mais e mais pessoas. Em nossa comunidade, ela era vista como um monstro cultural, insensível em suas expressões, comercial e perigoso em sua presença sedutora e barulhenta. Ela criara uma cultura que, dizíamos nós, glorificava estilos de vida pervertidos. Esses dias, entretanto, algo muito estranho aconteceu. Houve um concerto de rock no morro fora da cidade. Lá reuniram-se jovens com suas roupas esfarrapadas, suas guitarras berrantes e seus alto-falantes estrondosos. A montanha da cidade era o lugar certo para olhar a ilha do alto, disseram eles, e esta era a razão pela qual haviam organizado esse concerto de rock lá. A música penetrou na cidade. Não podíamos nos proteger contra esse som alto e penetrante. Nossas orações de intercessão por nossos filhos se afogaram nesse barulho horrível, e lá em cima 108


na montanha podíamos ver os corpos brilhantes dançando ao ritmo incitante da música. Então alguns de nossos jovens teólogos decidiram ir até lá para ver o que se podia fazer. Nunca voltaram. Depois, ouvimos depoimentos sobre o que havia acontecido. Os jovens fontólogos ficaram fascinados com a magnífica vista sobre o mar e a ilha, e a música os ajudara a vê-la mais clara ainda, disseram eles. Eles participaram da festa de rock, falaram com os músicos, participaram da dança, ouviram a música e as letras, compartilharam a alegria e fascinação desse tipo de comunidade. E de repente algo muito estranho aconteceu. Uma cantora pop cantou uma balada comovente, “Quando você crê”, e subitamente foi como se a cantora e esses jovens fontólogos tivessem asas, e do topo da montanha eles voaram sobre a cidade em direção à ilha, onde aterrissaram no topo da montanha e desapareceram atrás de seu cume. A música parou, todo o mundo fixou o olhar nesse estranho drama e parecia que, em meio ao silêncio, eles ouviam baixinho a canção murmurante de uma fonte. Nossos fontólogos mais velhos dizem que coisas assim não podem acontecer. Os depoimentos não são confiáveis. Provavelmente as pessoas haviam tomado drogas, dizem eles. Talvez eles tenham razão. Mas algumas pessoas valorizavam o que haviam visto e o ponderavam em seu coração. Algumas mulheres entre nós começaram a questionar a linguagem tradicional de nossas liturgias e orações. Elas defendem a importância de não atribuir um gênero à fonte. Que besteira! A fonte sempre foi um ser masculino para nós. Fonte nosso Pai é a expressão mais comum. Mas uma fonte não pode ter gênero, dizem nossas mulheres. E é claro que nós sabemos disso, mas nossa fonte sempre foi um ser masculino. Mas essas mulheres são de opinião que essa linguagem pode tornar-se um obstáculo para muitas pessoas em sua busca da fé, especialmente nesta cidade, onde a maioria dos pais estão ausentes de suas famílias. Na verdade, são principalmente as mulheres entre nós que mostraram interesse pela ilha mística. Elas deram início a um projeto especial de mulheres em que estão tecendo uma enorme rede de todas as palavras, que elas ajudam umas às outras a encontrar, que descrevam sua fé e seu anseio pelas canções da fonte. Dizem que vão tecer um pano que chegue até a ilha. E fato é que a rede já está bastante longa. Trata-se de uma tarefa impossível e sem sentido, dizem os fontólogos mais velhos. Eu não sei. As mulheres são notáveis. Quando elas se juntam, qualquer coisa pode acontecer. À beira-mar muitas vezes se podem ver pessoas que, em isolamento, se voltam para a ilha numa atitude de silêncio e quietude. Elas dizem que estão meditando. As palavras não são importantes, e sim a quietude. Elas precisam desses momentos para conseguir sobreviver na vida agitada da cidade. Dizem que cada pessoa carrega dentro de si uma nascente jorrante que provém da fonte original. Na quietude, no silêncio e na meditação elas conseguem chegar até as águas calmas da fonte, e lá, na calma da profundeza, obtêm o poder essencial de que precisam para a vida ativa que vivem na superfície. Nós simplesmente achamos que elas têm um jeito bem aguado de falar sobre suas experiências. O que elas dizem tem odor de incenso oriental em demasia. Mantra é a palavra-chave, dizem. Nós nunca precisamos de mantra. A fonte basta para nós. Mas elas não nos dão mais ouvidos, e o número dessas pessoas está 109


aumentando. Pelo menos elas nos ensinaram a dar valor ao silêncio. Nós precisamos disso em nossa cidade barulhenta, que nunca chega a ficar quieta. Algumas das pessoas que nos deixaram tornaram-se artistas, poetas e autoras. Dizem que nos deixaram porque não havia lugar para elas em nossa comunidade. Geralmente elas têm um estilo de vida muito simples, ficam criando sua arte, bem longe da vida de classe média que muitos e muitas de nós têm. Certa vez perguntei a uma delas por que vivem desse jeito. “Acaso as flores sabem por que vicejam?” foi a estranha resposta que recebi. Muitos desses artistas dedicaram boa parte de seu tempo a descrever a ilha e seu conteúdo. Fazem isso de seu próprio jeito artístico. Muitos de nós não entendem nada das obras deles. É claro que elas nunca se ajustariam ao prédio que construímos em memória da presença da fonte. Alguns de nossos fontólogos até os acusaram de ter criado descrições distorcidas da fonte, que não podiam ser aceitas, mas esses artistas balançaram a cabeça e disseram que o tempo dos fontólogos já era. Amigos da fonte não existem apenas entre os Guardiões da Fonte, disseram eles. A fonte pertence a todo o mundo. E com sua arte eles irão, um dia, construir uma ponte até a ilha e até a fonte da montanha. E nesses dias vimos algo bastante notável. Na península da terra dos artistas se podia ver um monumento estranho. Com uma leve transparência, uma ponte enorme erguia-se da terra deles em direção à montanha da ilha, onde descia atrás do cume. A ponte estava cheia de estórias e cores, retratos e poemas. E sobre a ponte os artistas caminhavam, e dançavam, e brincavam em toda parte. Era uma vista bastante notável. Na verdade, parecia um arco-íris... A essa altura, muitos tipos diferentes de pessoas se reuniram. Muitas delas trouxeram suas próprias tradições a respeito da fonte e suas próprias comunidades, semelhantes aos Guardiões da Fonte. Muitas de suas tradições eram tão diferentes, que tivemos dificuldades para entender que efetivamente pertencemos à mesma origem, e quanto mais aumentou o número delas, mais nós fomos obrigados a nos abrir e a travar diálogos fontológicos com elas. Freqüentemente, esses diálogos foram bastante dolorosos e, às vezes, até desanimadores. Mas quanto mais chegamos a nos conhecer mutuamente, mais temos tido condições de compartilhar as canções, orações e símbolos uns dos outros, e, na verdade, essa tem sido uma experiência muito impactante e enriquecedora. Muitos de nós se cansaram de palavras. E, juntamente com nosso cansaço em relação às palavras, os símbolos e as ações simbólicas tornaram-se elementos mais importantes ainda em nossa interpretação da fonte. Com o uso de elementos como velas, água, terra, frutas, flores, fumaça, sementes, pedras, cores e muitos outros elementos semelhantes, nós ampliamos nossa perspectiva de nossa fé como nunca acontecera antes. Alguns e algumas de nós têm se engajado em diferentes atividades sociais. Uma de nós tem até trabalhado a noite num bairro de nossa cidade aonde normalmente não vamos. Na verdade, ninguém sabia o que ela vinha fazendo e com que tipo de pessoas estava em contato. Assim, ficamos todos bastante espantados, e até perplexos, quando, uma noite, ela veio para um de nossos encontros acompanhada de centenas de pessoas esfarrapadas e de comportamento muito esquisito. Elas cambaleavam, riam e berravam suas canções. Gritavam, inclinavam-se umas em direção às outras e tinham um cheiro velho de suor, álcool e urina. Foi uma experiência extremamente 110


chocante. Muitos de nós não conseguiram agüentar e foram embora. “Viemos para beber as águas vivas da fonte”, disse uma das pessoas que mais cambaleava. “Ela nos prometeu que íamos fazer isso”, disse ele apontando para nossa amiga diaconal. “Não, viemos para cantar com a fonte”, berrou outro. “Não, para nos banhar nela”, gritou um terceiro. “Isto aqui é um local de oração, não um bar onde qualquer coisa pode acontecer”, disseram alguns de nós enquanto tentávamos nos livrar daquele bando fedorento. “Sigam-me”, disse nossa amiga diaconal, “eu conheço o lugar onde podemos celebrar nosso culto.” E tão subitamente quanto haviam aparecido, elas desapareceram, deixando no ar um odor de gentalha. Mantendo certa distância, alguns de nós seguiram aquele notável grupo de pessoas para ver aonde iam. Elas se reuniram na praia, gritando e rindo. Paradas na praia, de repente tiraram a roupa, jogaram-se nas ondas, entraram no mar e desapareceram diante de nossos olhos. “Para a fonte cantante!”, gritaram elas antes de a água as engolir. Isso não era outra coisa do que um suicídio coletivo! O que as fez agir assim? Como é que justamente essas pessoas ansiavam tanto pelas águas da fonte? Nunca obtivemos respostas para nossas perguntas. Mas naquela noite vimos uma luz estranha surgindo do interior da montanha da ilha. E ouvimos um canto, um canto novo e bastante notável. E vimos pessoas altas, vestidas de branco dançando no cume da montanha ao som de uma canção tranqüilizadora e murmurante, que abafava o ruído do mar poderoso, e achamos que conseguíamos ouvir as palavras que chegavam até nós por sobre a água. “Santo, santo, santo”, cantavam elas.

111


Resumo: 1.

O culto cristão carrega uma estória. A repetição dessa estória constitui uma parte essencial da identidade do culto cristão. Ao mesmo tempo, existe o risco de se ficar cego para a revelação de Deus no tempo presente.

2. A importância da música como meio de interpretar a vida e a fé. Para

muitas pessoas, o ritmo da música rock/pop pode interpretar o ritmo da cidade, bem como o ritmo da vida/fé, mais do que outros tipos de música sacra mais tradicionais.

3. Em meio à multidão da cidade, nós precisamos de uma “multilinguagem”, que seja inclusiva e convidativa, e não excludente e proclamadora.

4. O quanto podemos, sem perder nossa identidade, abrir-nos para experiências espirituais diferentes/novas?

5. A importância da quietude/do silêncio em meio ao ritmo da cidade. 6. A importância de fazer uso dos artistas e poetas da cidade em nossas liturgias.

7. O futuro da liturgia urbana e sua relação com o ecumenismo. 8. A importância do uso de símbolos e ações simbólicas. 9. A importância da “liturgia após a liturgia”, que é o termo com o qual os

cristãos ortodoxos designam a tarefa social da igreja. O trabalho diaconal faz parte da liturgia urbana.

112


113


SIMEI MONTEIRO é compositora de música sacra brasileira. Publicou diversos livros de liturgia e música sacra e atualmente trabalha como consultora para assuntos de culto e liturgia no Conselho Mundial de Igrejas, Genebra, Suiça.

114


A FAVOR DA CIDADE Simei Monteiro A Liturgia, hoje entendida como o culto ou ‘serviço’ prestado a Deus, sempre esteve relacionada com o espaço público. Aliás, a própria palavra liturgia comporta a dimensão pública. O Dicionário de Liturgia esclarece: Proveniente do grego clássico ‘leitourgia’, em sua origem o termo indicava a obra, a ação ou a iniciativa assumida livremente por um particular (indivíduo ou família) em favor do povo ou do bairro ou da cidade ou do Estado.(Dicionário de Liturgia, “O termo liturgia”, São Paulo, Paulinas,1992, p.639) Liturgia, no seu primitivo uso civil, significa o serviço prestado ao povo pelo governante. Nesse contexto, ‘leitougia’ poderia significar toda e qualquer obra ou serviço providenciado com a finalidade de proporcionar à urbe e seus habitantes, uma melhor qualidade de vida; as facilidades criadas afim de que pudessem exercer suas atividades diárias, isto é, viver e trabalhar de forma mais adequada e eficiente. Mais tarde, a palavra ‘leitourgia’ passou a designar todo e qualquer ‘serviço’, mais ou menos obrigatório, prestado por um indivíduo ou por um grupo ao Estado e/ou vice versa. Neste sentido, adquire conotações relacionadas a direitos e deveres de servos e senhores. Essas liturgias se caracterizaram durante as chamadas ‘democracias helênicas’. Um dos usos mais relevantes dessa palavra, naquele contexto urbano, re-fere-se às chamadas ‘liturgias cíclicas’, atribuídas por ‘turno’ a determinadas famílias e destinadas ou a toda a cidade ou ao próprio ’demos’ e se concretizavam quase sempre no preparo de ‘jogos’ e de ‘festas’. (Marsili, S. et al., ”Liturgia, momento histórico da salvação”, São Paulo, Paulinas, 1986, p.40). Havia também as ’liturgias extraordinárias” prestadas pelos habitantes e governantes, geralmente usando a força militar, em situações de conflito ou ameaça externa. A palavra liturgia, no Novo Testamento, só aparece uma vez com o sentido estrito de ritual (At 13,2). Entretanto , liturgia será usada inúmeras vezes para designar o sacrifício espiritual da vida dos cristãos, principalmente na dimensão do testemunho. Paulo se declara disposto a que seu sangue seja “derramado em libação, em sacrifício e serviço (liturgia)da fé” (Fl 2.17). Em outro trecho do Novo Testamento, Paulo descreve, referindo-se à oferta que os cristãos da Macedônia 115


haviam levantado para os cristãos pobres da Judéia, “como em muita prova de tribulação houve abundância do seu gozo, e a sua profunda pobreza transbordou em riquezas da sua generosidade. Pois segundo as suas posses (o que eu mesmo testifico), e ainda acima delas, deram voluntariamente. Pedindo-nos com muitos rogos o privilégio de participarem deste serviço (diaconia), que se fazia para com os santos.” (2Cor 8. 4). Aqui, o serviço voluntário e público de uma comunidade em favor de outra vai muito mais além da dimensão do que hoje entendemos como liturgia echega a expressar a própria liturgia que se fazia a Deus e a liturgia divina em favor das comunidade envolvidas (2Cor 8. 5). Não se trata aqui da discussão sobre o mais ou menos extenso ou exclusivo uso da palavra liturgia pois sabemos que a tradução latina do termo grego não foi uma simples transliteração como ocorreu com outros termos bíblicos neotestamentários mas, desde o início foi traduzido por officium, ministerium, munus…. Também sabemos que era essa não foi a única designação o para culto cristão. No entanto, o fato é que a teologia da liturgia comportará sempre a dimensão fascinante de ser ação ou iniciativa assumida livremente; ação livre e desinteressada e, por isso mesmo, plena de alegria, privilégio requerido, um jeito de agir impulsionado pela graça de Deus (2Cor 8.1). Nesse contexto não há barganhas, o “toma lá, dá cá” que envolve certas transações “missionárias”, mas puro ato de graça, concedida e compartilhada. Esse episódio nos convida a pensar na dimensão pública da fé, expressa em nossos cultos, e de como ela poderia ser exercida de forma mais visível nas cidades. A liturgia, aqui percebida como ação voluntária, “iniciativa assumida livremente”, como diz o dicionário, inclui, em sua teologia, não apenas o ‘serviço’ dos servos e servas de Deus, mas também as ações divinas em favor do povo. Assim sendo, liturgia, ou culto, é sempre ato livre e voluntário. Deus deseja, tanto quanto nós, um encontro. Vamos ao culto porque o queremos e desejamos, e, embora alguns cultos e rituais pareçam sectários, sempre temos entendido que nossos “serviços religiosos” são abertos à comunidade. Em outras palavras, nosso culto cristão é público. Será que nossa espiritualidade, expressa na liturgia, incorpora e se projeta em direção ao espaço, ou ‘mundo’, público? Para onde e para quê somos enviados quando nos dispersamos? Há um espaço na cidade designado para ser o local onde fiéis seguidores de Jesus se reúnem para celebrar um encontro com ele e em comunidade. Esse espaço trata de ser um sinal, um apelo, um convite. Essa é a razão porque sempre se dá um jeito de avisar que é ali um lugar de encontro com o sagrado. A torre, a cruz, o sino, o letreiro, o painel, nos indicam o caminho. Estabelecemos um tempo e um espaço onde nos expomos ao toque divino. É ali que temos a possibilidade de descobrir que desejamos, ardentemente e livremente, que esse encontro perdure, permeie nossa vida, produza frutos. Embora possamos constatar que o espaço litúrgico corre o risco de ser considerado simplesmente ‘aprisco do rebanho’, proteção contra o mundo secular, a ‘mundanidade’ , ele foi concebido como representação em miniatura da ‘cidade celeste’, isto é, um espaço onde seria possível desfrutar do bem-estar da presença de Deus e de visualizar, nem que seja de relance, ‘a porta do céu’. Mais do que uma sala, salão ou auditório, convém falarmos de uma ‘domus ecclesiae’, em que 116


o espaço para a assembléia cúltica se torne o coração de um organismo vivo. (Dicionário de Liturgia, São Paulo, Paulinas, p.84). A ‘domus ecclesiae’ era um sinal na cidade e indicava um conjunto de espaços onde ocorriam os ‘serviços’ da comunidade. O espaço cúltico se constituía em centro dessas atividades. Este conceito arcaico representava e expressava a dinâmica da organização eclesial com suas ‘tarefas’: a profética, a litúrgica e a misericordiosa ou caritativa. O edifício-igreja poderia, desse modo, ser pensado como uma pequena cidade que busca na terra a realização da cidade de Deus. A liturgia, centro dessa Jerusalém terrestre, antecipa e anuncia a alegria das ruas e praças da Jerusalém celeste.(cf. Dicionário de Liturgia,” Arquitetura”, p.80 ss). A cidade ou urbe, ( daí urbano, urbanidade) principalmente em sua moderna versão, a metrópole, é um fenômeno que não parece de fácil reversão. Diante dos inúmeros e difíceis problemas metropolitanos, as pessoas tentam fugir por algum tempo, ou até definitivamente desse grandes conglomerados humanos. Não sei se alguma vez já foi aventada a possibilidade de se acabar com as cidades, essa idéia nos parece inconcebível. Até mesmo as ruínas de uma cidade exercem fascínio sobre nós, atraem. Amamos nossa cidade como amamos um ente querido. Há toda uma gama de valores, predominantes na vida das cidades, que contribuem para a visão utópica que delas fazemos. As pessoas se mudam para a cidade ou para ou-tra cidade, porque julgam que ali acharão felicidade, ficarão ricas, viverão melhor, em suma, ‘vencerão na vida’. A cidade é vista com esperança porque é um centro de atualização em termos trabalho, arte, ciência e tecnologia. Ela possui recursos não encontráveis em outros lugares. A cultura urbana é marcada pela rapidez das mudanças e pela chegada das novidades. A cidade possui uma linguagem própria, um jargão específico que nos chega através dos jornais, revistas, propagandas, cartazes, etc. De que se fala nas cidades? Certamente não de plantar e colher ou de chuvas e geadas. Fala-se mais de horários, compromissos, transações bancárias, da bolsa, do bolso, do trânsito e da violência. Apesar de tudo isso, um olhar litúrgico sobre a cidade tentará descobrir nela os sinais de sua vocação transcendente. Do mesmo modo que podemos transformar o espaço material em ‘domus ecclesiae’, precisamos criar, na cidade, espaços de acolhimento, facilidade e comodidade onde o encontro com o outro, a outra, seja possível; onde os mais fracos, as crianças, os idosos, os diferentemente capacitados, serão aceitos e poderão também participar. Do mesmo modo que o edifício do culto precisa sinalizar a acolhida a partir de suas portas e acessos – e a nova Jerusalém tem doze portas -, é preciso abrir espaços de acolhida e integração nas cidades. O sonho do ’shalom’ precisa ser viabilizado na cidade; a oração da cidade e pela cidade precisa ser a oração que faz andar. A ‘porta do céu’ tem que se abrir para fora; a visão da ‘cidade celeste’ tem que inspirar não apenas os artistas que decoram as portas e altares das catedrais mas também os artistas das ruas. A cidade precisa ser tema de poesias e canções. Quero falar da liturgia na cidade como a possibilidade dos espaços de acolhida, reflexão, adoração, perdão, reconciliação e compromisso. Espaços iluminados pelo sagrado, onde Deus se faz presente e age em favor do seu povo. Espaços onde a leitourgia, impulsionada pela liberdade do amor, acontece e produz vida. 117


Pois não terá sido a mais pura leitourgia a vinda e a vida do Cristo entre nós? A leitougia de Deus em nosso favor? Não será também nossa resposta em favor da vida abundante na cidade, a nossa mais perene leitourgia? Como nós mesmos, como nosso próprio corpo, não é possível se pensar a cidade como algo transitório ou descartável. Nós a temos considerado um organismo vivo que nasce, cresce, desenvolve-se, transforma-se e envelhece. Raramente pensamos na cidade como passível de morte. As cidades sofrem catástrofes mas sempre ressurgem de seus escombros. Talvez seja por essa razão que a Jerusalém messiânica é uma cidade eterna, cuja história terrena de infidelidade, traição, morte é trespassada por eventos de ressurreição, de ventos do Espírito, de transfigurações, para que, redimida e renovada, ainda seja a querida Jerusalém. A liturgia, no contexto urbano, precisa mover-se no caminho do amor pela cidade e da esperança de sua redenção e transformação. À semelhança de Jerusalém, palco de acontecimentos salvíficos, a cidade é um espaço possível para o agir cristão em favor do reino divino, pois, sua vocação última, não é ser o ‘inferno urbano’ mas a ‘cidade celeste’. A liturgia da cidade é a liturgia que adora o Criador no brilho das manhãs e lamenta e confessa a poluição que o desfaz. Que vai ao jardim público para a ‘oração ‘ do meio-dia mas que também luta pelo seu não desaparecimento. Que se assenta com vizinhos para a comunhão da conversa fiada ao mesmo sabendo que é perigoso. Sua linguagem requer a aprendizagem do ver, do perscrutar, do olhar e contemplar; do andar a caminhar pelas ruas, do sentar no banco da praça, no banco do ônibus, da igreja, da escola, des cobrir as flores a as árvores ainda vivas e belas. É celebrar as vitórias do povo mas também conhecer os lugares de martírio. Procurai a paz da cidade e orai por ela ao Senhor, porque na sua paz vós tereis paz ( Jr 29.5-7). Orar pela cidade, mesmo que seja a cidade do exílio: Eu não sou daqui, eu não tenho nada,... quero ver Irene dar sua risada...ou Vou embora pra Passárgada... A oração pela cidade confronta o discurso ouvido e retido e que gostamos de reproduzir em nossas palavras, com os clamores mal-ouvidos e mal-entendidos. Oração que brota do olhar sobre a cidade, do nosso amor por ela. A oração é a dimensão litúrgica que extrapola os limites dos santuários e que pode ser privada e pública ao mesmo tempo. Os salmos são orações que muitas ve-zes partem da situação individual de angústia e se tornam orações comunitárias ou intercessões pelo povo. A oração só depende da disposição da pessoa ou grupo orante. Todos os lugares são adequados à oração, todas as horas são boas e todos os discursos podem ser socorridos pelos ‘gemidos’ do Espírito. Lemos nos evangelhos que Jesus desejou retirar-se, afastar-se de seus discípulos, e ir a um jardim para orar. Quando visitamos uma cidade queremos conhecer seus jardins e praças. São espaços onde a beleza anuncia a esperança, ‘a memória do futuro’. Todos nós temos um desejo nostálgico de viver em um jardim: Saudade da terra sem males, do Éden de plumas e flores, da paz e justiça irmanadas, num mundo sem ódio nem dores. Por alguma razão inconsciente sonhamos com o nosso ‘jardim secreto’. Hoje, sem jardins nem pomares, tentamos o consolo dos vasos floridos, das estampas de flores, dos frutos de plástico, dos nomes dos bairros feios e desflorados: Jardim do Sol, Jardim Ipê, Jardim do Lago, Jardins. Para 118


ter uma árvore, compramos uma miniatura ‘bonsai’. Os exilados de hoje, ainda se sentam junto aos rios da Babilônia, dependuram nos salgueiros suas harpas e choram com saudades de Sião. Ainda há jardins, mesmo que sejam murados, e as pessoas se alegram quando conseguem um para seu bairro. Do Jardim do Getsêmani há que partir partir para a ação salvífica. Como salvar a cidade? Quem sabe, começando a recuperar o sentido de liturgia como ação voluntária em favor da cidade. Somos convocados a exercer nossa fé na dimensão da cidadania. Há uma liturgia a ser feita na cidade, um movimento no Espírito capaz de gestar vida plena, um congregar e dispersar que começa no primeiro dia da semana, o Domingo, e que continua, fora das portas do templo, no ‘envio’ missionário.

LITURGIA DAS HORAS Liturgia das horas na cidade de São Paulo Laudes: (Encerra a noite e abre o dia. É a voz da esposa, a igreja, que surge para “acordar o esposo”. Era colocada cronologicamente no momento da aurora, o começo do dia, o nascer do sol, a chegada da luz). Lentamente a cidade desperta. Nas ruas, ainda livre dos carros de luxo, os vultos se movem. A luz começa a dissipar a névoa que envolve a cidade. Faz frio e as pessoas se apressam para chegar ao trabalho. Os corpos se espremem nos coletivos e trens superlotados. A mãe se lembra angustiada dos filhos que deixou sozinhos no barraco. Kyrie eleison. Os desempregados suspiram de esperança. Quem sabe é hoje? As garagens se abrem e os carros ganham a rua. Os pais retornam da creche onde deixaram os pequeninos, outros se apressam a deixar os filhos na escola. “Vamos, vamos, não podemos nos atrasar!”... Deo gratias! Media: Os sinos tocam na Catedral da Sé, Os doentes que tiveram alta voltam para casa. O que ficou no hospital, fica feliz porque já pode levantar-se e agora está comendo. É hora do almoço: um lanche ou refeição? Para alguns apenas algo que enganará o estômago. O edifício em construção está silencioso. Soli Deo gloria! Nona: O negócio não deu certo, a Bolsa caiu e o dólar subiu. Quem sabe ainda dá tempo de resolver o problema? Agora, só amanhã! Miserere nobis! Vesperas: Completas: O dia terminou o trabalho cansou. Hora de ir para casa. Só falta vencer o trânsito. Quem vai de coletivo ou trem aproveita para a soneca. Paciência para os que viajam em pé. É hora de rever os compromissos e deixar para amanhã o que não se pode fazer hoje. Para alguns o direito ao lazer. A mulher pensa no jantar ainda por preparar. Kyrie eleison! Deo gratias!

119


PABLO SOSA mora em Buenos Aires, a cidade do tango de Piazzolla e do labirinto de Borges. É professor de Liturgia no Instituto Superior Evangélico de Estudos Teológicos (ISEDET) e de Regência Coral no Conservatório Nacional de Música. É pastor da Igreja Metodista na Argentina. É compositor, escritor e produtor de liturgias.

120


LITURGIA URBANA Pablo Sosa En el correr de esos días hemos enfocado la ciudad desde distintos puntos de vista. Hoy nos toca verla desde el punto de vista de la liturgia. Dónde está la liturgia en la ciudad? Dónde se ubica? Dónde la vemos? A) Obviamente, en los templos (cristianos y de otras religiones), visitados, además de por fieles asiduos, por todos lo que qieren cumplir con los ritos de pasaje (bautismo, confirmación, casamiento, sepelio), por los que se acercan a ellos buscando asistencia (espiritual, material, etc), o los que los utilizan sólo como lugar apartado para momentos de reflexión personal. Por supuesto, hay también templos rurales y en pueblos o aldeas, pero en esos lugares tienen más función de lugar de culto (o tal vez, de peregrinación) mientras que en la ciudade la tendencia es hacia el “santuario” abierto, de atencion continua (“Open 24 hours”). B) En otros locales, símil-templos (cines, locales comerciales), lugares públicos, plazas, etc., con actividad de animación permanente C) En gestos litúrgicos de la religiosidad popular, como el persignarse (frente a una iglesia o antes de patear un penal), tocas la imagen de alguna Virgen o Santo en la entrada de la casa, en una plaza, una estación del subte; o rezar frente a ella, en tránsito. Encerder velas, dar limosna. En las liturgias semi-paganas, semi-religiosas, como por ejemplo: el culto a Gilda (“no es santa pero es milagrosa”); Difunta Correa; culto a las lágrimas de los muertos trágicamente. En actos “oficiales”, como la bendición (aspersión) de alguna obra pública que se inaugura, o de las aguas al comienzo de la temporada estival en alguna playa. D) En rituales laicos como los que estudia la fenomenología de la religión: 1. Familiares: cumpleaños, casamientos, inauguración de la casa. 2. Comunitarios: fiestas, bailes, graduaciones. 3. Masivos: 121


3.1. Políticos: manifestaciones. 3.2. Deportivos: fútbol. 3.3. Musicales: musicales de rock. 4. Cívicos: izar la bandera nacional, cantar “el himno”. En esta enumeración incluimos sólo la participación “personal, en vivo” de la gente, sin tomar en cuenta los medios masivos de comunicación donde se concentra “la más importante de las liturgias laicas: el show”. Todas estas manifestaciones corresponderían a distintos conceptos de la liturgia. Serían, según el apropiado título del libro de Severino Croatto sobre fenomenología de la religión, “Los lenguages de la esperiencia religiosa”. Nos proponemos: a) Analizarlos, b) Observar cómo “funcionan” especificamente en la ciudad, c) Trazar algunas líneas para una pastoral litúrgica urbana. Empecemos, entonces, mirando un poco más detenidamente el fascinante “panorama litúrgico” que tenemos por delante, que no es para nada parejo ni estable. Pongámoslo así: cuando hablamos de la liturgia, de qué estamos hablando? A) La liturgia como un cuerpo “ordenado” y “reglamentado” de elementos y acciones, que constituyen la estructura “aprobada” (oficial) del culto de una iglesia determinada. Y eso no se aplica sólo a las iglesias obviamente litúrgicas (ortodoxas, católica, etc), sino a todas aquellas, incluyendo las más libres, que de alguna manera “establecen” que “esto nosotros lo hacemos así”. En mi opinión esta posición tiene una solidez que es a la vez su fuerte y su debilidad. Su fuerte se resumiría de una manera muy simplista pero no menos válida, en la afirmación que se escucha a veces: “la liturgia es la liturgia”, todo lo demás son experimentos litúrgico-artístico-pastorales. La liturgia es lo que es, lo que ha sido y será. A esta liturgia se vuelve una o otra vez, como se vuelve a la casa paterna, con la seguridad de un terreno conocido donde los muebles están en el mismo lugar donde los dejamos. Nada ha cambiado. En términos de la psicología social, este concepto de la liturgia la presenta como pertenciente a la matriz en la que se gesta nuestra identidad. Nuestra identidad personal (porque es la liturgia de nuestra infancia, de los momentos culminantes de nuestra vida (no sólo los universales ritos de pasaje, sino especialmente las circunstancias críticas, límites, etc.) y también nuestra identidad como Nación (como es el caso de los países donde existe un grupo religioso hegemónico – Suécia o Argentina), como un grupo que comparte una cultura o subcultura (como ocurre en las mismas circunstancias con los grupos minoritarios, católicos en Suecia y evangélicos en Argentina), como pueblo dentro de un ámbito geográfico, y a la vez parte de una comunidad universal.

122


Qué pasa en la ciudad? Esta es, evidentemente, la liturgia asociada proverbialmente con los templos. Ellos son su envase, ella es el contenido. La imagen clásica es de la liturgia colmando con la hermosura de sus sonidos, sus colores, sus olores, los atrios de la “Casa de Dios”. Y los esfuerzos de los arquitetos, escultores y pintores y liturgistas han ido en esa dirección. Es la liturgia que atrae hacia sí (centrípeta), a la cual “se va” como se va a un “santuario”, un refugio (pensemos en el templo como lugar tradicional de asilo) un lugar de encuentro con uno mismo. Es fácilmente evidente el valor de todo esto en la ciudad. En un momento en que hay muy pocas cosas de las que se pueda decir que no cambian, “la” liturgia permanece. Cuando los valores (personas, principios, costumbres) pasan a ser “relativos”, esto es absoluto. Donde todo (desde los grandes carteles publicitarios hasta la charla del vendedor ambulante) es “trucho” (falso, superficial), esto es auténtico. Donde hay tantos lugares inaccesibles (caros, privados, exclusivos), este está abierto a todos, y aún el mendigo puede sentarse a pedir limosna a su puerta. En Europa, donde se cobra entrada para visitar templos famosos, el único momento cuando se puede ingresar gratis es la hora del culto: la liturgia vuelve gratuito el lugar. Donde todo es ruido, aquí se escucha el silêncio. Donde todo es apuro y histeria, aquí reina la calma. Donde todo es inmediato, se respira eternidad. En vez de conflicto hay armonía. En resumen, aquí “todo está bien”. Estas iglesias son como islas en un mar agitado; “A Bridge Over Troubled Waters…” En los símil-templos se une a todo esto una liturgia de intensa interacción humana. Es decir, en medio de la indiferencia y el desamor de la ciudad, se encuentra la posibilidad de un trato cordial, amoroso. Si estoy desvalido se me ofrece un trato paternal, fuerte. En un medio que me inhibe, puedo expresarme libremente (en la ciudad todos hablamos bajo: en el colectivo, en la oficina, el departamento, etc.; aquí podemos cantar fuerte, gritar, movernos, bailar). En la ciudad que me ignora, donde soy sólo una abeja en la colmena, aquí soy reconocido, soy protagonista. Y si soy recién llegado, aquí se me da sentido de pertenencia (“somos todos hijos y hijas de Dios”). Si no sé qué hacer en este medio tan complicado, si no tengo claro mi futuro, aquí se me ofrece un plan cierto de arraigo en la ciudad y en la vida. Estas iglesias son muy atractivas. Por eso es tan dificil salir de ellas. La liturgia es un corte en el tiempo ordinario para ingressar en otra dimensión. El templo es un corte en el espacio para trazar los límites de lo sagrado. Cuánto más fuerte ese corte en el tiempo y el espacio, más dificil es salir de ellos para ingresar en la realidad cotidiana. Por eso es que hay tantas hermanas y hermanos nuestros que no pueden, no quieren dejar de hablar el idioma de la iglesia, escuchan solamente música religiosa, leen solamente libros religiosos. Viven permanentemente “como si” estivieran en la iglesia. Es que esa misma solidez inmutable, rígida, le dificulta es la liturgia “engancharse” en la contemporaneidad, en la cual toda liturgia tendría que estar implantada. Se le hace dificil aceptar el “Hic et Nunc” que le plantea la realidad. “En el 123


año que murió el rey Uzías…” dice Isaías como referencia histórica al describir su visión de Dios. La rigidez de la forma prácticamente le impide el “aggiornamiento”. En la ciudad eso parece más evidente. Los templos ya no son los edificios más altos, han sido humillados por los rascacielos. La pomposidad es patrimonio de los shopping centers. La exaltación de los sentidos está en los recitales multitudinarios, la interacción humana en las discotecas, las bailantas. Las campanas de la iglesia siguen sonando sobre la ciudad, difundiendo el llamado a acercarse a la “Casa de Dios”. Antes lo hacian sobre una población homogénea, “established”, en exclusividad (por eso las iglesias dicidientes no tenian derecho a usar campanas). Ahora siguen sonando, y qué reacción producen en la gente? (ver concierto de campanas en Buenos Aires el año pasado). B) La liturgia como evento re-estructurado “libremente” en base a elementos y acciones litúrgicas. Dice Max Thurian, el redactor de la Liturgia de Lima, que cuando en el CMI le solicitaron que preparara la celebración eucarística para ilustrar el acuerdo logrado sobre Bautismo, Eucaristía y Ministerio (BEM), “dudó antes de embarcarse en la aventura de la composición litúrgica, que no era de mi agrado: (porque) en mi opinión, una liturgia llega hasta nosotros desde la experiência de la tradición más que de la composición destinada a reflejar un conjunto determinado de ideas teológicas”. Termina diciendo: “Decidí aceptar el encargo y adoptar un método que tomara en cuenta la intención de ilustrar el documento BEM, y al mismo tiempo mostrara el debido respeto por la tradición litúrgica de la iglesia, la experiencia de oración del pueblo de Dios a través de las edades. Busqué documentos litúrgicos que correspondieran a los puntos principales del BEM (Eucharistic Worship in Ecumenical Contexts, WCC, Geneva, pg. 14). Esta actitud frente a la liturgia indica una clara revalorización de la liturgia cristiana (incluyendo su estructura), junto con un claro propósito de reformulación a los efectos de cumplir con un nuevo objetivo. Este proceso de re-elaboración implica una re-lectura de los elementos que integran la liturgia. Entre otras cosas porque la estructura litúrgica, los elementos que la integran, los símbolos y etc., han quedado vacíos de contenido (Navidad), o han pasado a tener otros contenidos (estéticos, emotivos, atávicos). Por otra parte, corremos el riesgo de sacralizar la estructura, ser puristas con respecto al sentido y significado de las celebraciones y los símbolos, por ejemplo, olvidándonos de que son todas producto de situaciones históricas, desarrollos socio-políticos. Por lo tanto tenemos que estar dispuestos a re-significar todo eso, teniendo en mente a la gente. En otras palabras: PRIMERO LA GENTE. Respecto por lo que la gente cree, lo que la moviliza. Eso es más importante que nuestra corrección doctrinal, litúrgica. (Seguir ejemplo de la Navidad,Ceremonia con las velas, Festejos “puente”). En un nivel práctico, doméstico, tomemos como ejemplo el primer momento de la estructura litúrgica básica del occidente: la misa. Se trata de la confesión de pecado. El lugar de “pasar por ella” para cumplir con la formalidad, como 124


generalmente ocurre, se podría elegir un tema relacionado con “la condición humana” y elaborar sobre él el momento litúrgico. Por ejemplo: el miedo. Qué miedos tenemos? A la soledad, al dolor, a los conflictos. Ahora bien, es improprio que sintamos miedo teniendo con nosotros el poder del Espíritu Santo. Por lo tanto, pedimos perdón a Dios, y le rogamos que nos ayude a superar estas situaciones. Mientras tanto esa confesión tiene también un valor terapéutico, cosa por demás importante. Hemos “tematizado” el momento de confesión. Al hacierlo, es cierto, lo hemos restringido (aunque el uso de las palabras Kyrie eleison nos amplían la perspectiva a cualquier otro tema presente), pero le hemos dado un significado mucho más concreto y relevante a la reflexión litúrgica. Ejemplos de esta re-lectura los encontramos en las Misas compuestas en Suecia, con música de rock, en talleres donde jóvenes hacen su propia reflexión sobre cada una de las partes del ritual. Ya que hemos mencionado la Misa, tomémosla como caso de estudio de una situación muy particular de re-significación de su contenido. (Descripción y elogio de la estructura “Kyrie-Gloria-Credo-Sanctus-Agnus Dei”). Es natural que los músicos se sien-ten atraídos por ella. Musicalizan el texto, pero no con el propósito de que sea utilizado en el rito. La iglesia no sabe qué hacer, musicalmente hablando. Entonces se produce involuntariamente (?) en la ciudad, un desplazamiento significativo: esta estructura SALE DEL TEMPLO y pasa para la sala de conciertos. Se produce así la desubicación de la Misa. Porque cuál es la expectativa del compositor al llevar un texto litúrgico a un ámbito secular? Cuál sería la respuesta, la reacción del público? Aplaudir parece poco y aún impropio. Orar, parece demasiado y aun imprudente. Sin pretender dar soluciones a una situación que me atrae por lo paradojal, creo que una tarea que tenemos por delante es explorar y revalorizar los textos y la estructura de la Misa Musical con fines comunitarios, ya sea en la iglesia o en la sala de conciertos. Hay muchas versiones de la Misa Musical (desde de la Misa Luba hasta las más recientes). Falta Misa Tango, Misa Samba. C) La liturgia como “lectura simbólica” (mítica?) de elementos y acciones propios de la cultura de los pueblos. Se trata, entonces, no de re-leer los elementos de la liturgia a la luz de la realidad, sino re-leer la realidad con ojos litúrgicos. Estar atentos a re-significar los gestos “seculares” del pueblo. Lo que llamariamos una lectura simbólica de la cultura o realidad. Y aún más que lectura: identificación, reubicación de nuestro punto de mira, nuestra perspectiva. Todo lo cual implicaria el movimiento inverso al de la liturgia centrípeta que atrae. Aquí se trataria de un movimiento “centrífugo”, hacia afuera. Por lo cual la asociaríamos no tanto con los templos o símil-templos sino con la intemperie, el aire libre, o con lugares y situaciones no tradicionalmente cúlticos. Estaríamos reconociendo la religiosidad popular, en lugar de lo ritual en la vida cotidiano, lo sagrado de la condición humana en general. En esta época de privatizaciones, de aislamiento, de reserva de derecho de admisión, estaríamos impulsando una 125


contra-corriente evangélica en el sentido opuesto. Poniendo énfasis en la recuperación del carácter público, cellejero, de la liturgia. Estaríamos, por último, anticipando la visión final de la nueva ciudad, Jerusalén, donde “no hay templo porque el Señor Dios, Todopoderoso, es el templo de ella, y el Cordero”. Que es como decir: “todo es en ella templo, lugar sagrado” (Apocalipsis 21:22). En otro sentido, igualmente importante, estaríamos también hablando de un movimiento paralelo al de la encarnación. De arriesgarnos a perder para ganar. A morir para resucitar. Esta interpretación simbólica de la realidad implica por un lado sensibilización por lo mítico, lo trascendente, lo “espiritual”, y por el otro la profundización en el significado menos aparente de la realidad. Aquí es donde tenemos que ver qué aprendemos de los encuentros masivos en los estadios de fútbol, de los recitales de rock, de las manifestaciones socio-políticas y también de los juegos de los niños, de los cuentos y chistes tradicionales, las creencias y “supersticiones” populares. Con ojos litúrgicos tenemos que ver la televisión, escuchar la radio, leer el diario. La reflexión teológica, litúrgica, antropológica, social, artística, sobre los elementos de la cultura es imprescindible para llevar a cabo esa lectura de la realidad. Citar aquí los “Vellancitos de la Calle” (cantar “No es lo que parece”). Hablar de la experiencia con la murga. FINAL Creo que, en definitiva, hemos estado hablando de dos movimientos: entrar y salir. Entrar en la iglesia, buscar refugio en el “santuario”, librarnos de una realidad exasperante, encontrarnos a nosotros mismos, restablecer el equilibrio con el divino. Salir de la iglesia a la calle, espacio público, común, a proclamar el reinado de Dios en todos los ámbitos. Esos dos movimientos necesitarían ser acompañados, según creo, por una liturgia que acoja cálida y fraternalmente a quienes llegan hasta ella buscando aliento, y que los provea de las fuerzas para poder enviarlos luego a vivir en el laberinto ciudadano con el sentido de dirección restablecido. Como podemos lograr esto? Quizá nos ayude en esta empresa acordarnos de Jacob, el que huyendo de su hermano indignado al que ha engañado, llega al anochecer a las ruinas de lo que había sido la esplendorosa ciudad de Beth-el, nada menos que la Casa de Dios. Cansado, apoya su cabeza sobre una piedra, se duerme y suena “con una escalera que estaba apoyada en la tierra y llegaba hasta el cielo, y por la cual los ángeles de Dios subían y bajaban”. Visión emblemática de la presencia de Dios. “Cuando Jacob despertó de su sueño, pensó: ‘en la verdad, el Señor está en este lugar y yó no sabia’. Tuvo mucho miedo y pensó: ‘Este lugar es muy sagrado. Aquí está la Casa de Dios, es puerta del cielo!’ ”. Tomó la misma piedra que se habia utilizado como almohada y, simplemente cambiándola de posición, la dedicó como altar al Señor.

126


El Señor está en la ciudad, oculto a nuestros ojos cansados, a nuestros espíritus atribulados. Entregándonos confiados a descansar en su visión, ayudando a otros a hacerlo, podremos llegar a transformar nuestra cotidianeidad en un altar, sobre el cual en Señor nos prometa, como a Jacob, su presencia constante en el camino que tenemos por delante.

127


ROLF SCHÜNEMANN é pastor sinodal da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) e Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro na área Sistemático-Pastoral.

128


UM CONTRAPONTO TEOLÓGICO-PASTORAL Rolf Schünemann A temática da Urbanização e a inserção das igrejas dentro deste contexto têm me ocupado há muitos anos. Inicialmente, gostaria de voltar às nossas motivações para o Seminário de Liturgia, Arte e Urbanidade a fim de olhar se de fato estamos aqui tão desinteressadamente. Primeiro, nós, provavelmente, não temos claramente verbalizado aquilo que inquieta. No fundo, existe a pergunta pela continuidade institucional, existe a questão da disputa no terreno religioso, existe um medo de que o shopping religioso engula o armazém da esquina. Existem inovações intranqüilizadoras em virtude da fascinação pelo novo e pelo diferente. De modo que, se nós falamos em liturgia, não estamos falando a partir de um vazio. Existe uma grande inconformidade e uma busca. E eu diria que este seminário busca, dentro de uma sobriedade, reconstruir e refazer a vivência celebrativa cristã da comunidade. Pessoalmente, eu falo do contexto metropolitano do Rio de Janeiro e São Paulo. A partir de uma igreja que é minoritária nesse contexto e, como disse no início, ocupado pessoalmente em polinizar a igreja, a pastoral, a teologia com o projeto de Deus, que é a nova cidade, a morada de Deus entre os seres humanos. Toda vez que nos dispomos a refletir, nós partimos de uma prática comunitária, uma práxis em que o povo de Deus, mediante o Espírito, procura se articular. O Espírito que fala e quer falar, move para o discernimento da vontade de Deus no mundo, na sociedade, nas cidades e nas metrópoles. E, quando se fala em discernimento, nós o devemos distinguir do oportunismo ou do pragmatismo, que se baseiam no critério da vitória fácil, ou seja, de não simplesmente tratar de escolher aquelas coisas que nos favorecem, em função das vantagens que elas podem proporcionar. E aí, gostaria de referir que a teologia e a pastoral têm como um ponto de partida e um referencial fundamental a teologia da cruz. O ponto de vista daquele que entende que, para ganhar verdadeiramente, é preciso saber perder. Na verdade, existe este escândalo muito bem retratado plasticamente nesta cruz do artista plástico Holney Antonio Mendes.1 Este escândalo está na raiz da fé cristã. A revelação 1

A Cruz de Holney Antonio Mendes estava no salão de Conferências do Seminário e é capa desta edição.

129


que acontece sub contrário, ao revés, e, olhando para dentro do contexto, este crucificado no concreto, a não-vida da matéria inerte. Eu menciono, precisamente, esta Teologia da Cruz e quero fazer dela um referencial importante para a pastoral. O hino cristológico de Filipenses 2 se torna a referência básica, ou seja, a encarnação de Deus em Jesus Cristo, como a motivação da nossa inculturação para dentro do contexto das cidades. Cada vez percebo que não conseguimos ainda incorporar uma consciência urbana de pastoral. Uma consciência que preza mais este contexto. Uma consciência que supera uma visão negativa da cidade e promove uma visão em que a cidade é e se torna o espaço das possibilidades de vida. Do ponto de vista pastoral e teológico, uma cidade como objeto do amor de Deus em que os cristãos são sujeitos e instrumentos de paz. Para promover esta consciência urbana de pastoral, é fundamental o discernimento e o conhecimento e nós, no seminário, procuramos nos aproximar disso no primeiro dia nos painéis, que apresentaram visões, saberes, conhecimentos acerca dessa realidade. Esta consciência urbana de pastoral, eu gostaria de desdobrá-la numa definição de pastoral urbana, a ação de uma Igreja ou de comunidades que visam atingir – mediante a proclamação e a vivência do Evangelho – pessoas e espaços relacionais (políticos, culturais e do meio ambiente, etc.) com o objetivo de promover valores e princípios que se coadunam com a vontade de Deus, expressa no projeto da nova Jerusalém. Esta pastoral, por isso, necessita um mergulho profundo na realidade cultural em que está colocada. Ou seja, prescinde da encarnação, da inculturação da fé no contexto urbano. E nesse particular nós constatamos e, quem sabe intuímos, que nas cidades e nas metrópoles existem e coexistem experiências socioculturais muito distintas e que, por isso, o universo de valores e também de princípios se articula de forma diferente. Nós podemos constatar uma cultura pré-urbana, uma cultura urbano-industrial e uma cultura pós-industrial, coexistindo no mesmo contexto. E aí, o desafio pastoral que, por sua vez, inclui a liturgia, exige uma pastoral distinta, uma espécie de pastoral segmentada. Gostaria de chamar a atenção para aquilo que também o seminário refletiu. Existe uma emergência da subjetividade em que a dimensão pessoal da fé está sendo colocada em evidência. A graça de Deus suscita nas pessoas uma resposta livre e incondicionada dentro do contexto vivencial. As pastorais, conscientes mais ou menos dessa realidade, ou seja, as pastorais, nas suas dimensões litúrgicas, catequéticas, diaconais, precisam considerar as pessoas nesse ângulo, nessa perspectiva, em suas buscas, problemas e crises. Por isso é importante que as práticas tenham um caráter significativo, original e criativo. E a rotina, muitas vezes, não consegue corresponder ao imperativo sociocultural. Vamos dizer assim, ela não favorece. Percebemos dentro do universo cultural moderno, em que o indivíduo é valorizado e em que o pluralismo está presente, que esse universo ainda não foi digerido para nossa pastoral dentro do contexto das cidades. Neste sentido eu gostaria de apontar para a comunidade cristã, para aquilo que ela pode representar como espaço importante no contexto das cidades e das metrópoles. Espaço de gratuidade em que nós vivenciamos e experimentamos 130


a presença de Deus, em nome do qual a comunidade, as pessoas estão reunidas. Espaços de acolhimento, espaços de construção e reconstrução da identidade perdida. Espaços da tolerância e do respeito, do não-autoritarismo. Apoio no desamparo e no desolamento. Espaço inclusivo, onde Deus conosco, Deus presente é experimentado. Espaço de consolação e promoção de esperança. Precisamos estar atentos para a construção e possibilidade desses espaços como veículos e meios no processo de inculturação, quais sejam, expressões artísticas, expressões importantes para vivenciar esta revelação. Um ponto que gostaria de resumir aqui é o que se refere a uma pastoral localizada dentro de modelos de Igreja ou modelos de comunidade diversos. Por um lado, nós temos na história das Igrejas uma perspectiva, um modelo que é o da determinação geográfica – a velha paróquia que coexiste no território. Por outro lado, temos um desdobramento mais próximo no tempo de um modelo de Igreja onde o pluralismo e o respeito à individualidade estão acontecendo. E é precisamente na exacerbação desse modelo ou no seu aprofundamento, hoje, onde a individualidade e o pluralismo são bastante fluidos. As relações e os compromissos das pessoas são provisórios. Os vínculos são precários. Eu diria que esse modelo, que está se gestando, é o que corresponde à realidade psicossocial, descrita no primeiro dia deste evento tanto pelo psicanalista Joel Birman como por Regina Novaes – esta precarização das relações e dos vínculos. A vida é marcada pela efemeridade e provisoriedade (residência, rua, trabalho e relações humanas). E nesse aspecto quero mencionar que facilmente nós nos tornamos reféns e presas fáceis da visão meramente psicossocial, quando não podemos ignorar que ela tem uma base material que a compõe, a saber, o quadro econômico excludente que nós vivenciamos nas cidades. Outrossim, reflete também uma visão de classes. Os pobres sempre viveram esta experiência. Parece que somente quando os setores médios são afetados pelo medo, ansiedade, violência, intolerância e concorrência é que elas se tornam reais. Por isso, aponto para o fato de que essa dimensão da materialidade não foi tratada com muita veemência neste seminário até o momento; no entanto, ela não pode ser descuidada quando nós abordamos o tema “Igreja e Sociedade Urbana”. Vale dizer que a base material e o compromisso pastoral dentro desta realidade nos levam para uma ação muito bem sublinhada ontem2 – a uma fé cidadã, uma fé comprometida com a cidadania. As Igrejas com sua pastoral e sua liturgia ao ir para a rua, para a vida, têm um compromisso com os desamparados e desolados e celebrará a presença da graça de Deus junto a eles, dando espaço a seus dramas e a suas esperanças. Finalmente, eu gostaria de abordar uma questão que esteve presente no seminário sobre a qual quero dar a minha perspectiva – a questão do espaço sagrado. Ela foi mencionada tanto pelo arquiteto quanto por teólogos e pastoralistas. Eu parto da perspectiva do evangelho de João, de que o Espírito Santo sopra onde quer em sua liberdade. E, dentro do diálogo mencionado no primeiro dia – da mulher samaritana com Jesus e a resposta de Jesus de que os verdadeiros adoradores vão 2

No dia anterior, as palestras versaram sobre o tema Liturgia na Cidade – possibilidades e desafios.

131


adorar em espírito e em verdade –, eu diria que dentro do evangelho de João, onde isto aparece, existe uma disputa por hegemonia do espaço religioso. A comunidade joanina é aquela que discute e vive a perda do templo e está junto com os fariseus disputando a legitimidade da tradição remanescente. Jesus, se nós olharmos um pouco esta questão do sagrado, relativiza o sagrado enquanto espaço (templo), enquanto tempo (sábado), enquanto pessoa (sacerdote na parábola do bom samaritano). A sua crítica ao tempo, sábado, o leva precisamente para o julgamento. Esta relativização do sagrado tem como critério norteador a vida. Ou seja, uma tradição religiosa, não estando a serviço da vida, pode perfeitamente ser relativizada. A letra mata, mas o espírito vivifica. E, para concluir, diria então, como o apóstolo Paulo, que nós somos chamados a submeter todas as coisas ao discernimento, praticar aquilo que é bom e afastar aquilo que não edifica.

132


133


TERRY MACARTHUR é pastor da Igreja Metodista Unida dos Estados Unidos e trabalha como missionário na Comunidade Metodista Latino-Americana em Genebra e na Igreja Luterana Evangélica de Genebra, Suíça. Durante doze anos foi o Consultor para assuntos de Culto e Liturgia do Conselho Mundial de Igrejas.

134


DESAFIOS PARA A LITURGIA Terry MacArthur Acredito que tivemos mais do que suficientes desafios à liturgia neste seminário. Eu me sinto desafiado. Por isso, não estou certo de que quero acrescentar ou-tros ao número já existente. Mas gostaria de lembrar alguns deles e, de certa maneira, reencená-los. Remetamo-nos à quarta-feira de ma-nhã, quando diversas imagens das cidades no Brasil foram apresentadas. Imagens de cidades grandes e pequenas; do interior. Houve lugares e descrições que eu não conhecia. Estou vivendo com uma dessas imagens desde aquele momento. É a que se refere aos bóias-frias na carroceria de um caminhão e enquanto andam, olham para trás.1 Essa imagem foi conectada com uma pintura de Klee chamada Angelus Novus, uma pintura que retrata o movimento de ir para o futuro olhando para trás. Não é esta uma descrição da liturgia? O que é que significa caminhar para o futuro olhando para trás? Que impacto isso tem sobre nosso culto? Significa que eu só vejo os sinais depois de ter passado por eles... Talvez eu nem mesmo possa lê-los. Vejo-os somente por trás. Não estou certo para onde vou, mas vejo o que me passou e a liturgia tem a ver com esse olhar para trás: para onde eu estive. Eu gostaria que vocês pensassem por um momento e lembrassem: quando foi, na vida de vocês, o momento em que Deus esteve realmente presente; quando a comunidade realmente existiu; quando o culto teve força?” Qual era o cheiro daquele momento? Que quadro estava na parede? Vocês lembram...? Tive um professor no seminário (era professor de homilética) que disse que o papel da liturgia era o de nos lembrar aquilo no qual cremos primeiro. O papel da liturgia é nos lembrar aquilo em que primeiro acreditamos.2 Trabalho no Conselho Mundial de Igrejas, que reúne diversas famílias protestantes e ortodoxas. Em se tratando de liturgia, os ortodoxos lembram de um passado bastante remoto. Mais de mil anos; às vezes quinze séculos. Afirmam que a liturgia de São João Crisóstomo vem até nós através dos séculos quase sem ter sofrido mudanças. E aquilo que valorizam não é o novo, empolgante e diferente, mas o velho. Realmente velho. E muitas vezes suas liturgias são celebradas em línguas que o povo mesmo não entende. É muito misterioso. O povo vindo, indo... Muito drama... E muito mistério. No entanto, oferecem uma opção para a Igreja na cidade: um espaço totalmente diferente, com 1 2

Terry começa a andar para trás e continua neste movimento até terminar suas reflexões. O público é convidado a cantar Aleluia.

135


uma linguagem diversa embora envolvido por todos os santos, de todos os tempos e lugares. Então, é possível ver os sinais há muito deixados para trás e também ouvir os sons dos séculos. E assim eles cantam cantos antigos, como o Kyrie Eleison.3 Esta é a primeira imagem. A segunda imagem vem de Jaci Maraschin. Mãos vazias. Jaci traz uma perspectiva que desconecta a liturgia de perguntas como: “o que é?” e “para que serve?” Ele diz: “O coração da liturgia é: fazer alguma coisa que é boa para nada”. Esta é uma frase incrível.4 Jaci afirma que a Igreja deve abandonar seus hinários antigos e seus modos padronizados de fazer as coisas; deve entrar para a pós-modernidade estabelecendo uma ruptura radical com o passado. Essa proposta deixa-nos de mãos vazias. E eu pergunto: este “vazio” se constitui para nós num espaço de liberdade ou de medo? A terceira imagem talvez seja um novo desafio.5 NÓS. Gostaria de perguntar hoje: quem é nós? Isso não soa bem em português. Vocês não devem sair por aí dizendo quem é nós, mas eu gostaria de perguntar: quem é este nós? Na Igreja da minha infância (cresci em uma fazenda), nós era um nós muito pequeno. Depois de muitos anos voltei lá, fui ao culto e descobri que naquela Igreja, com exceção do presidente dos Estados Unidos, nós não orávamos por ninguém que não conhecíamos pessoalmente. Oramos pela tia Susie, pela avó, pelo tio Clarence, que estava no hospital, e oramos por chuva, pois havia uma seca naqueles dias. NÓS era uns tantos colonos e o presidente dos Estados Unidos. Um NÓS bastante pequeno. Meus amigos ortodoxos falam que a Igreja existe por todo o tempo e em todos os lugares e, quando celebramos a liturgia juntos, estamos com todas as pessoas de todos os tempos e todos os lugares, e, também, com todos os animais e plantas e tudo o que existe. Mas, eventualmente, se formos a uma Igreja Ortodoxa e participarmos das suas orações, vamos perceber que parte delas são orações por todos os cristãos ortodoxos. E quase sempre, quando as orações mencionam apenas cristãos, se tem a impressão de que quem foi mencionado era um ortodoxo. Que tipo de NÓS é esse? Quem é NÓS? Um dos desafios é: como fazer com que este NÓS torne-se maior e ainda mantenha um sentido de identidade? Há um projeto no qual estou trabalhando em Genebra. Existe uma Igreja no centro da cidade que está vazia. Juntamente com um grupo de outras pessoas, estou tentando iniciar na igreja um culto eucarístico no sábado à noite, quando as lojas estão fechadas. Essa é uma maneira de levar a sério a cultura urbana e popular. Este seminário é exatamente do que eu precisava neste exato momento. Elaborei um plano para os cultos com música rock; tínhamos gente fazendo mímica, palhaços, etc. Eu apresentei isso para o pequeno grupo de pessoas que estava me ajudando e me disseram: “O povo ama Genebra, a cidade de Calvino, mas eles não vão entender aquilo que você está propondo. Não sabem nada sobre o que está falando. Você menciona uma estória e eles não conhecem a estória. Até mesmo comunhão eles não sabem o que significa”. E um dos jovens do grupo disse: “Fui perguntar aos meus amigos – estudantes da escola internacional, gente bastante inteligente que acaba indo estudar em Harvard, Neste momento o público cantou o Mt. Athos, Kyrie eleison. Terry pega alguns livros e hinários antigos e, enquanto fala, vai lançando-os ao chão. 5 Terry ergue um cartaz com a palavra NÓS escrita em maiúscula. 3 4

136


Yale, Oxford – se eles sabiam o que é comunhão. E eles não sabiam; não tinham a mínima idéia”. Agora, como é que nós criamos um NÓS com pessoas que não sabem aquilo que nós sabemos? Que tipo de NÓS podemos ser com aqueles que não se importam ou que não entendem? Há algo no NÓS que diz que devemos fazer liturgia não para o povo, mas com o povo. A não ser que estejamos dispostos a estar com o povo, provavelmente não seremos capazes de tornarmo-nos este NÓS. Como tornarmo-nos um NÓS com o povo daquela cidade? E como pode-mos nos tornar NÓS com os drogados que se sentam nas escadarias daquela Igreja onde iremos celebrar essa liturgia? Como nos tornarmos um NÓS com o adulto totalmente indiferente, para quem a Igreja não significa nada, não conta, é boa para nada? Como nos tornar um NÓS com gente que é muito inteligente e ainda assim não entende ou não percebe a questão da fé? Freqüentemente nós oramos pelos pobres, doentes e cativos a fim de afirmar que nós não somos pobres, doentes ou cativos. Como criamos um NÓS suficientemente amplo, que saiba que quando oramos NÓS não o fazemos para marcar diferenças ou pelo fato de sermos a favor ou contra alguma coisa ou pessoa, mas por causa do que somos intrinsecamente? Por exemplo, uma Igreja, para cumprir sua missão, precisa incluir as pessoas portadoras do vírus HIV no NÓS. O slogan “A Igreja Tem AIDS”, do Conselho Mundial de Igrejas, é uma tentativa de fazer isso. Mas ainda não chegamos lá. Que tipo de Nós nós somos? Como acolhemos o mundo? Quero concluir cantando, pois o canto é uma das maneiras pelas quais aprendi a ampliar este NÓS. É uma canção malawi que fala da bondade de Deus e cujo refrão repete a frase: “Salte por Jesus”. A razão pela qual quero cantá-la é a maneira que me ensinaram a saltar. Não lembro todas as palavras, mas posso me lembrar das ações.6

Njo, njo, njo mwa Yesu mkuli moyo halleluja! 2x Tikondwerere hallelujah 2x Tisangalale hallelujah 2x Tibvine bvine hallelujah 2x Tisekerere, hallelujah 2x Salte com alegria pela vida eterna de Jesus. Aleluia! Cante com felicidade. Aleluia! Alegremente louvando. Aleluia! Dançando nossos louvores. Aleluia! Gritando com risos. Aleluia!

6

O canto é cantado com as pessoas em círculo saltando para trás.

137


VÍTOR WESTHELLE é professor da área de Teologia Sistemática na Escola Luterana de Teologia em Chicago, EUA. É autor de inúmeros artigos e capítulos publicados em livros e revistas ao redor do mundo e dos livros Teologia latino-americana, cultura e protestantismo (México) e Religião e representação - um estudo das teorias críticas de Hegel do Vorstellung e sua relevância para o hegelianismo e a teologia (EUA).

138


ATADURAS E COMENTÁRIOS Vítor Westhelle 1. Começando Começo sem dissimular. Primeiro, parafraseando o profeta Amós, eu não sou liturgo, nem filho de liturgo. Sou pastor e coletor de palavras; o que coloca algumas limitações sobre a perspectiva que trago, embora também ofereça um olhar diferente. Profissionalmente, sou um teólogo sistemático e, às vezes, péssimo no que faz, porque desconfio da “sistemática.” Acho que a “sistemática” pode ser perigosa. Levo a sério a injunção de Paulo em Romanos 12, que diz na tradução de Almeida: “Não vos conformeis com este século.” O verbo em grego para “conformar” é sysxematizo o que poderia ser traduzido literalmente: “não vos deixeis sistematizar/esquematizar.” Vejo, portanto, com suspeita a tarefa que me foi dada de fazer esta amarração ou sistematização final. Assim fico com ataduras. Há que se ter cuidado com clausuras. Segundo, vivo fora do Brasil, o que me desqualifica como um comentarista inculturado. No entanto, a real(c)idade brasileira não me é totalmente estranha. Como disse Ferreira Gullar: “o homem está na cidade/ como uma coisa está em outra/ e a cidade está no homem/ que está em outra cidade.” E cada vez que volto ao Brasil tenho sensações bastante fortes de quem andou por algum tempo fora desta realidade, mas em quem esta realidade já lhe é parasita. São sensações misturadas com emoções, trazidas também de uma cidade — a Chicago em que agora vivo — que tem lá seus problemas e bastante significativos, mas são outros. E quando eu olho para a realidade brasileira, para a cidade brasileira que também está em mim, quando observo suas ruas, suas casas, suas praças, seus cemitérios de gente viva e de gente morta, fico um tanto emocionado e me vêm à mente palavras do poeta espanhol Felipe de León. Exilado e imigrado ao México, ele escreve um longo poema pela ocasião de seu septuagésimo aniversário em que diz em uma parte: “Toda la luz de la Tierra/ la verá un día el hombre/ por la ventana de una lágrima” Então, eu ainda espero essa visão. As lágrimas não faltam. Essas são as minhas localizações que gostaria de deixar às claras. Certamente há muitas outras, algumas não revelo nem mesmo a mim. Mas as que aqui deixo explícitas são para que agucem as suas suspeitas e estejam conscientes das lentes que trago. É bom não esquecer as palavras do poeta Vinícius de Moraes: “Ninguém 139


é universal fora do seu quintal.” Passo aqui a tecer algumas considerações e levantar algumas questões teológicas que me pareceram ausentes dentro das discussões deste seminário. Um levantamento dos temas tratados, da estrutura e metodologia, seus avanços e promessas, já foi feito em nossa apresentação inicial (veja “Lendo o Texto do Seminário”). Então, o que me resta tratar aqui é precisamente o que não foi contemplado e por que não o foi. E quanto a essas lacunas ou interstícios, a minha pergunta é: por que não se fizeram presentes, quando me parece que seriam lógicas? 2. Uma Pedra no caminho O que me veio foi uma imagem que empresto da menção que fiz a Vinícius e me auxilia a emoldurar a experiência do seminário: o quintal. Neste quintal que observo há lixo, há flores e há caminhos. Essas são as metáforas que utilizo para descrever aquilo que foi designado como as características mais marcantes dos três eixos deste evento: a cidade, a arte e a liturgia. A condição urbana foi freqüentemente associada à fragmentação, ao hediondo, à experiência efêmera da urbanidade. Daí o lixo. Por outro lado, tivemos a sublimidade da arte, o elogio à sua atemporalidade, sua transcendência e assim por diante. Por isso as flores. E, finalmente, há também o caminho que a liturgia representa: a maneira como esta permite caminhar por meio do jardim, contemplar as flores e ver talvez, no lixo, a promessa de um fertilizante. Só que tem algo no meio deste passeio. Isto me surpreendeu como nos surpreende a redundante insistência de Drummond: “No meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho/ tinha uma pedra/ no meio do caminho tinha uma pedra.” E, mais ainda do que isso, eu acho que esta pedra de que falo tem o tamanho da Pedra da Gávea, que vemos pela janela. É enorme. Se não me equivoco, a liturgia num contexto urbano pretende-se como (ou cumpre o papel de ser) uma mediatriz na relação entre a realidade fragmentária e fragmentante das cidades e a sublimidade da arte. Recorrendo às minhas metáforas, a liturgia é pensada como o passeio entre o lixo e as flores, entre o belo e o hediondo, entre a salvação e a perdição. E, de fato, a liturgia tem sempre sido definida como uma reatualização ou uma re-encenação ritual e sacramental da economia do Deus Trino, da dispensação de sua providência. Em outras palavras, a liturgia é vista como esta re-encenação de como Deus reconcilia consigo o mundo, aquilo que na teologia clássica é chamado de taxys (que é uma palavra grega de onde vem táxi também e significa ligeireza, rapidez, expediência). Taxys designa o processo de dispensação da salvação ou a seqüencialização da ação salvífica. Existe uma seqüencialização salvífica que vai do alfa ao omega, do começo ao fim, da criação à consumação. Isto é o que a liturgia alveja sacramentalmente re-encenar em seus ritos. Ora, esta taxys ou o processo que tem o início, o fim e o meio e cuja duração é a duração do próprio cosmos — do alfa ao omega — é na liturgia ritualizado de uma forma sacramental que se estende (e a extensão é importante) por um dado tempo, o tempo da celebração, que simboliza o tempo cósmico. Não existe culto 140


imediato e instantâneo; há que se estender pela duração do tempo litúrgico dentro da celebração, com seu início, meio e fim. Falando teologicamente, a liturgia pressupõe que entre a criação e queda, de um lado, e a consumação (o eschatos), de outro, existe uma espécie de hiato que deve ser preenchido pelos apropriados meios, os meios de salvação, que na liturgia são os mistérios, ou, em linguagem latina ou ocidental, o sacramental. Se este hiato está aí, a liturgia, então, é natural. Ela é convidada a ocupá-lo, a preenchê-lo com o rito, com a encenação do sagrado. E tem mesmo é que ocupar este espaço. Este é o pressuposto de toda liturgia. Apenas, então, se discute como se ocupa este espaço; e as discussões litúrgicas vão se dar em torno deste “como-se-ocupa-este-espaço,” que já é um dado, que já é algo que está aí. Em outras palavras, a liturgia re-encena o drama da redenção dentro de um movimento que enseja mediações. Este espaço, este hiato era algo dado para Simei Monteiro, para Per Harling, para Pablo Sosa, para Terry MacArthur, para Lusmarina Campos Garcia, ou para Holney Mendes, como se pode ver em suas contribuições. E eles magistralmente o preencheram. No entanto, houve aqui, no desenrolar do seminário, esta pedra no meio do caminho. O que se elaborou em torno da cidade e da arte, na polarização que esses eixos representaram, não parecia requerer qualquer mediação. Não houve por parte dos artistas ou nas análises da urbanidade o clamor por mediações, o anelo pela liturgia, embora se tenha ouvido denúncia de sua falta. O que caracterizou a descrição dos temas que abriram as janelas para a cidade e para a arte foi exatamente a ausência deste hiato, foi exatamente a ausência da mediação. Houve foi a impossibilidade de um hiato dentro do qual se poderia administrar esta mediação. 3. Análise O que a mim chamou atenção e realmente me surpreendeu é a maneira como fomos inundados por imagens que descreviam tanto o cotidiano citadino quanto a arte contemporânea com expressões que denotavam imediação. Entre arte e cidade havia a colisão, o choque, o embate entre os extremos, de forma que as duas se encontram numa relação imediata, colididas; não há espaços entre elas, não há mediação. Há uma imediati/cidade. Não existe mais o hiato que permite que se faça a transição de um momento para o outro. Por exemplo, considerem os seguintes termos e coplas que foram utilizadas; contrastes semânticos usados em profusão durante o evento do seminário. Eis um breve inventário que pude colher das apresentações e discussões: “imediaticidade entre o localizável e o não-lugar”, “cidade e grota”, “a santa e o lobisomem” “o anjo e o demônio”, “desinteresse e paixão”, “coletividade e isolamento”, “fragmentação e globalização”, “a indiferença e as diferenças”, “silêncio e ruído”, “sagrado e profano”, “vida e morte”, “místico e vulgar”, “presença e ausência,” “o sublime e o hediondo.” Tais binômios, como sabemos, fazem parte do infame binarismo do pensamento ocidental. Mas, ao contrário de postular os extremos como moldura para as mediações que entre eles ocorrem (isto sói ser a função dos binarismos), o que me chamou a atenção é que a moldura era em si só todo o quadro. 141


Ao discutir a cidade, por exemplo, houve entre os apresentadores quem visse esta colisão entre os extremos dessas coplas como algo negativo, como algo traumático na experiência urbana. Regina Novaes e Joel Birman, tinham esse tom mais pessimista nas suas apresentações, denunciando a falta de mediações. Na cidade está o problema que eles identificavam como parte da crise que estamos enfrentando. Por outro lado, havia também certo otimismo na mesma avaliação, na mesma maneira de ver os sintomas, como, por exemplo, nas apresentações de John Dawsey, de Pedro Novaes e também na de Laan Mendes, em diferentes graus. Mas não há dúvidas de que todos concordavam (embora uns avaliassem positivamente, outros negativamente) com o sintoma: os extremos colidiram, não existe mais espaço entre um e outro. Já na discussão sobre arte, a questão não foi tanto a tentativa de caracterizar a colisão entre os extremos, entre os dois pólos desses binômios que eu mencionei, mas o isolamento em um dos pólos, resultando na igual negação da mediação. Talvez a única exceção dentro deste quadro que eu estou esboçando foi exatamente tanto a fala quanto a apresentação artística dirigida por Rita Serpa com o grupo Luar1. Mas, todos os outros que apresentaram suas contribuições sobre a arte, isolaram o momento do sublime, do atemporal, do sagrado, do místico, do mistério e assim por diante, sem nenhuma mediação orgânica com a experiência do cotidiano, da contextualidade, do efêmero, do hediondo e do sinistro. Tanto em Cláudio Pastro quanto em Flávio Ferreira, a ênfase residiu no atemporal, no místico, no sublime, rejeitando o compromisso com o efêmero, com o transitório, com o vulgar, com o cotidiano. O sublime não tem data, o belo não transita, não tem taxys, não tem processo. Já na apresentação de Jaci Maraschin, foi exatamente a mesma coisa, só que numa imagem espelhada, reversa; o contrário do que tivemos com os outros. Restou apenas o lixo, o transitório, o efêmero, o descartável, mas igualmente sem nenhuma possibilidade de negociação, de mediação: o mundo como o conhecemos já acabou! “E agora, José?/ Sozinho no escuro/ qual bicho-do-mato,/ sem teogonia,/ sem parede nua .../ sem cavalo preto/ que fuja a galope,/ você marcha, José!/ José, para onde?” José e Jaci estão bem mais próximos que a diferença que separa o soletrar de seus nomes. Jaci representou para mim, naquela noite, exatamente o poema José de Carlos Drummond de Andrade, nosso modernista que se aventura aos limiares do apocalipse. O mundo acabou, não há mais teogonia, não tem mais nada por que valha esperar. Não existe mais o espaço da mediação; tudo e nada se anulam. Este é o “evangelho.” Se este é o caso e se esta leitura é correta, corremos o risco de estar oferecendo respostas litúrgicas a perguntas que não estão sendo feitas, remédios para enfermidades que não têm sintomas. E, é claro, temos que perguntar se isto é uma avaliação correta. Mas, o que me surpreende é que não me pareceu conectado o que aconteceu nas reflexões sobre a liturgia e o que havia sido elaborado tanto nas análises da urbanidade como nas apresentações sobre a arte. A liturgia esteve Luar é um projeto de dança clássica para crianças, adolescentes e jovens de comunidades empobrecidas da Baixada Fluminense que trabalha com educação social e política e recuperação da auto-estima por meio da arte. Foi criado e implementado por Rita Serpa. 1

142


presente neste seminário quase como uma porção de óleo flutuando em meio d’água. Exerceu a mediação, mas num espaço próprio, não o recebeu das análises que a antecederam. De quem teria sido a culpa dessa falta de conexão? Não creio que se trate de culpa, nem mesmo de um equívoco. Trata-se antes de um sintoma dos tempos e lugares em que vivemos. Nestes tempos e lugares, a liturgia é em si mesma um movimento de resistência em meio a uma situação em que espaços mediadores nos são negados. 4. Apocalíptica A esta situação de falta de mediação na percepção da realidade, da cultura e da religião, dá-se tecnicamente o nome de apocalipsismo. A apocalíptica tem uma longa história na tradição judaico-cristã. A maneira como aqui utilizo o termo vem dessa tradição e não deve ser confundida, como freqüentemente é feito, com o milenarismo, ou a crença de que uma catástrofe esteja agendada para um futuro próximo. A apocalíptica não é isto, ainda que às vezes também possa ser. Tampouco utilizo o termo para denotar um gênero literário. Uso-o para assinalar uma certa atitude para com a realidade que é basicamente caracterizada pela falta ou ausência de instâncias mediadoras. A apocalíptica na tradição judaico-cristã, particularmente no período inter-testamentário e durante o primeiro e segundo séculos da nossa era, é a convicção de que vivemos na iminência ou no ponto mesmo em que este mundo termina e um novo ou outro mundo começa. Aquele ponto que não tem mediação, aquele ponto que não tem espaço de transição nem de negociação. É o momento decisivo, o ponto crítico em que não há negociação, não há economia, é tudo e nada ao mesmo tempo. Nas apresentações que se fizeram sobre a urbanidade e sobre a arte, certamente essa era a mensagem que deu o tom, ainda que a linguagem não tenha vindo em gênero literário normalmente associado à apocalíptica. Mas veio em jargão antropológico, sociológico, filosófico, estético, etc. E se houve o domínio deste gesto apocalíptico nas análises, houve certamente o reconhecimento de que a cidade destes tempos e lugares é vista ou como um espaço em que a liturgia é supérflua ou a cidade dela sofre carência. A apocalíptica não tem liturgia; não existe liturgia porque não se sabe nem mesmo se existe qualquer trânsito entre a perdição e a redenção, ou entre a salvação e a condenação. O que significa para a liturgia que a cidade seja vista neste tom apocalíptico em que as mediações já quase não existem? Seria isso o exílio da liturgia para espaços alternativos que negam a cidade, como costuma acontecer com a renovada veneração por um esteticismo que se crê atemporal (quando somente o é medieval)? Ou a aculturação à apocalíptica urbana (em que a um cinema e um templo são de fato intercambiáveis, em que o sagrado e o profano, o templo e a rua são uma e a mesma coisa)? Não é necessária muita imaginação para perceber o quanto essas opções são hoje populares: o esteticismo de altas liturgias que nada dizem ao contexto e o extremo da aculturação à apocalíptica urbana do frenesi religioso. Em ambos extremos desaparece a mediação. Vislumbro, então, três possibilidades de como essas questões podem ser e têm 143


sido respondidas na busca por uma relevância litúrgica. A primeira seria a resignação, entregar os pontos e entrar num projeto mercantilista com um cálculo de custos e benefícios imediatos: uma cura por um tanto, uma absolvição por uma indulgência, ou a salvação por um espetáculo. Isto seria, e de fato já é, em muitos contextos conhecidos, o aviltamento da liturgia como tal, uma farsa bem posicionada no mercado; o que chamei de aculturação à condição apocalíptica. A apocalíptica tem sido dentro da tradição cristã sempre uma espécie de anomalia que tem sobrevivido por períodos relativamente curtos e em momentos transitórios, ainda que fundamentais. Tendo isso em conta, a segunda possibilidade seria a de continuar a fazer aquilo que sempre se fez, esperando e estando preparados para pegar os restolhos, os estilhaços que sobraram depois que a apocalíptica saiu do cenário. No entanto, se concordássemos com a análise da situação, da conjuntura, de que ela é fundamentalmente apocalíptica, isto seria aquilo que nós deveríamos estar discutindo ao invés de evadindo. Esta é a tentação do que chamei de esteticismo. A terceira possibilidade diante deste quadro seria resistir com um programa minimalista para a teologia e também para a liturgia. Essa possibilidade gostaria de explorar. Tal programa creio que existiu e está vinculado precisamente à apocalíptica descrita acima. A apocalíptica foi muito importante na formação da teologia cristã, quiçá um dos dados contextuais mais importantes. O teólogo Ernst Käsemann, descreve a apocalíptica como sendo a mãe da teologia cristã. Ela teve um papel muito importante na gestação da teologia cristã; decisiva no início e ocasional no desenvolvimento da teologia. Foram, em verdade, poucos os momentos em que a apocalíptica teve uma contribuição marcante para a teologia, mas estes foram decisivos, começando pela própria teologia do Novo Testamento, que nasceu neste contexto apocalíptico. Há um documento que se reporta a este período chamado O Testamento de João (certamente apócrifo enquanto presume ser do apóstolo) que foi recoletado por São Jerônimo. Ele o re-escreve a partir da tradição que assevera ter recebido. O contexto é o da comunidade de Jerusalém, que era uma comunidade formada no meio apocalíptico do primeiro século. João era o liturgo da comunidade, ou assim a tradição o mantinha. E, como rememora essa tradição, João viveu até uma idade muito avançada. Diz este documento que à medida que João ficava velho, mais fraco e mais enfermo ficava. Os cultos diminuíam de tamanho e as suas homilias se reduziam a quase nada. Cada vez mais fraco, João dizia e fazia as orações sempre menores e as homilias cada vez mais concisas. Até que chegou o ponto em que ele, visivelmente abatido e enfraquecido, simplesmente dizia: “Filhinhos, amai-vos uns aos outros.” Isto era tudo. Sucede que o envelhecido João volta, apesar da idade, novamente a gozar de saúde. Encontra-se revigorado. No entanto, a única coisa que ele tem a dizer à comunidade inteira reunida é exatamente isto: “Filhinhos, amai-vos uns aos outros”. E os outros discípulos, intrigados com os sumariantes cultos joaninos, perguntam ao apóstolo: “Pensávamos que nada mais dizias por teu estado de fraqueza. Mas agora que estás revigorado por que nada mais do que isto dizes?” E ele respondeu: “Esta é a única coisa que realmente importa.” Acho essa história muito bela pelo que representa. Ela espelha uma maneira de 144


lidar com uma situação de extrema carência e risco, como era a situação em que a comunidade de Jerusalém vivia no primeiro século. O projeto minimalista, dado o contexto apocalíptico do qual ele surge, tenta abrir uma pequena brecha na colisão entre os extremos e criar um espaço mínimo de mediação, onde praticamente não existe nenhuma possibilidade. “Filhinhos, amai-vos uns aos outros!” A isto se resumiu a possibilidade litúrgica, a possibilidade da mediação, naquelas circunstâncias. Mas talvez seja tudo que é requerido, tudo o que basta em um contexto, como fomos lembrados no bloco de análises, que tem um perfil apocalíptico. O que me chamou a atenção no desenrolar do seminário é que, apesar das muitas coisas que experimentamos, dos contextos de onde viemos, nada nos impediu que celebrássemos, fizéssemos liturgia, arte, textos, poesia, música, dança. E este foi o caso porque o pressuposto de nosso trabalho e engajamento comunitário trouxeram consigo dimensões que de fato representaram e representam possibilidades mediadoras. Os liturgos e as liturgas do encontro (e nisto devo incluir todos participantes enquanto contribuíram para o sucesso do evento) fomos muito menos apocalípticos que os analistas. E mesmo por isso tivemos tanto a aprender. Mas o que a liturgia trouxe sem anunciar foi uma bagagem de experiências mediadoras que, imagino, alimentaram e animaram as perspectivas de uma comunidade. Não foi na análise da realidade, mas a prática de espaços mediadores que os participantes consigo trouxeram, que possibilitaram a liturgia. Nisto estão incluídas as organizações comunitárias, os movimentos populares, as instituições educacionais, as organizações do Terceiro Setor, organizações não-governamentais (ONGs) e uma série de outras instâncias, incluindo as igrejas tradicionais, históricas, com seu trabalho, fundamentalmente arraigadas dentro desta sociedade e cidade. Foram essas práticas mediadoras que possibilitaram o exercício litúrgico. Foi exatamente isto — as instâncias mediadoras que de fato existem — que esteve ausente nas análises. O que fizemos neste seminário em termos de liturgia, tanto nas apresentações quanto na prática litúrgica em que nos engajamos, fizemos não por causa, mas apesar da perspectiva apocalíptica que nos foi apresentada. Se esta tivesse sido dominante, fundamentalmente nos seria negada a possibilidade da liturgia. Isto me parece ser uma nota de grande otimismo: fomos capazes de resgatar a possibilidade litúrgica a partir da própria experiência de engajamento com as mediações na sociedade, na cultura, na religião com as quais de fato já trabalhamos. No entanto, a importância da apocalíptica permanece como um dado importante e decisivo na análise de nossa urbanidade. O que aqui se mostrou é que o escapismo estético ou a resignação aculturadora não são as únicas opções. 5. Rasuras Como observação final simplesmente pontuo algumas rasuras ou ausências que eu encontrei no texto deste seminário. Limito-me a duas, mas cuja importância dificilmente pode ser exagerada. Daí a surpresa de suas ausências. A primeira foi o silêncio sobre o tema da cruz e também da ressurreição, ou da relação dialética entre ambas. Talvez isso tenha sido também uma das conseqüências da visão apocalíptica que nos foi dada. Em virtude dessa visão nos faltou 145


um inventário semântico que possibilitasse falar deste momento de transição, de mediação entre a realidade da fragmentação, da morte, do corpo quebrantado e a possibilidade da afirmação de um momento novo, de ressurreição. Isso me parece um tema importante, pois a relação entre cruz e ressurreição não é uma relação imediata. Há entre a sexta-feira santa e o domingo de Páscoa o desenrolar de um drama. E, por que não, de uma liturgia. Em termos um pouco provocativos, sugiro que a primeira liturgia explicitamente cristã que foi feita precede à existência mesma da Igreja como instituição. Precede até mesmo à experiência do Cristo ressurreto. Refiro-me à narrativa de Lucas 25, onde, após a morte, Jesus é colocado no túmulo e as mulheres que estão ao pé da cruz vão até lá, diz o texto, para ver onde é que foi colocado aquele corpo do amigo amado. E a história continua dizendo que depois foram para casa. E o que elas fizeram? Foram preparar óleos e perfumes para, passado o sábado, trazer ao túmulo para ungir o corpo. Ungir um corpo que então já estaria em pleno processo de putrescência. Eis um gesto de amor e não só de amor, mas de luto também; um labor de amor e de luto! Este é um trabalho que não tem um fim que possa ser calculado, que possa ser cobrado; trata-se de um gesto de dádiva total dentro de um lapso de tempo que conduz as mulheres do lugar da morte ao sábado de luto e adoração e de volta ao túmulo para serem as primeiras testemunhas da ressurreição. Por que chamo isso de uma liturgia? Porque como toda liturgia esse ritual das mulheres, ainda que sem a intenção de sê-lo, foi a re-encenação de um ato maior, um ato de Deus mesmo se entregar a si próprio ou a si própria para a realidade deste mundo, sem mágica, sem barganha. Assim também foi o ato de ungir um corpo, simplesmente por amor, por dádiva, sabendo que o máximo que ganhariam de volta seria o odor da putrefação da carne. Daí a surpresa: a ressurreição da carne, a insurreição do corpo! E mais, este ato de re-encenação não é derivativo. É o ato mesmo que segue a taxys original. Se não fossem essas mulheres, o cristianismo não seria uma religião que se embasa na afirmação radical da ressurreição da carne, do corpo, da physis, da natureza que se restaura; o cristianismo seria uma religião embasada na noção de aparição, não da ressurreição. É o testemunho da ausência (apousia), da tumba vazia, que possibilitou a experiência da re/presença (parousia), avalizando assim este tipo de afirmação radical (a ressurreição do corpo) que está no cerne do próprio cristianismo. Esse drama, essa liturgia que acontece entre a morte e a ressurreição, esse labor de amor e luto, é realmente o que oferece fundamentos àquilo que é re-encenação ritual e litúrgica, dentro da qual nós, sempre de novo em nossas celebrações, tentamos re-encenar o que Deus faz ao e no mundo, tornando-se um ser humano que é torturado e executado, mas cujo corpo triunfa ainda e porque traga consigo as chagas da morte. Minha segunda observação, que também surpreendeu pela sua ausência, tem a ver com a pergunta: de que Deus estamos falando? Implicitamente, a questão está dada na própria liturgia, como a re-encenação, a reatualização daquilo que é a reconciliação de Deus com o mundo; o processo da seqüencialização da relação de Deus com o mundo, daquilo que se chama taxys como já vimos. Mas isto não foi explicitamente colocado ou abordado nas apresentações, embora na prática 146


litúrgica, como na Missa Urbana, este seja um dos motivos mais importantes. O questionamento de que Deus é este, para a realidade urbana, também está explicitamente colocado na bela música que se cantou algumas vezes e que foi composta aqui e que pergunta: “Senhor, onde está nesta cidade?” E pergunta se este Deus está embaixo da ponte, no menino que vira ladrão e na mulher que faz aquilo que não quer por um pedaço de pão. Na música a pergunta tem um caráter retórico. Ali está Deus. Então ali apareceu a questão, o questionamento da identidade, de quem é o Divino de que falamos. Mas, isto não foi discutido nas apresentações e outras discussões. Quer dizer, na teoria faltou a teologia que apareceu na prática. E aí eu me permito fazer algumas especulações do porquê desta ausência. Se a liturgia é esta re-encenação ou reatualização da relação entre Deus e o mundo, a não-emergência da questão de Deus no sentido explícito seria porque esta pergunta já está explicitamente respondida pela “ordem litúrgica”? Quer dizer, se existe uma ordem litúrgica (ordo), então a maneira como ela se desdobra pressupõe que a re-encenação decorra de uma dada maneira como concebemos Deus e sua relação com o mundo. A insistência na ordo de que existe um núcleo imutável na liturgia pressupõe que a definição de Deus, e de sua relação com o mundo, já nem precisem ser mais questionadas ou re-elaboradas. Pressupõe que a teologia já esteja pronta, cabendo aos liturgos mantê-la em uma prática imutável. Este é o risco da liturgia, o de ocultar a questão de Deus, ao invés de suscitá-la. Gostaria de ilustrar isso com algumas observações de Monica Furlong. Ela é uma escritora britânica, biógrafa do monge trapista Thomas Merton. Comentando sobre a Igreja, ela disse algo que pode ser exatamente dito sobre a liturgia.

“Tem sido costume achar que o propósito da Igreja é de colocar as pessoas em contato com Deus e mantê-las em contato com Deus. Mas, embora pareça que a Igreja exista para ajudar seus adeptos a ter uma relação com Deus, ela também tem — e talvez essencialmente — o papel exatamente oposto, de tentar filtrar a experiência da transcendência, que pode ser por demais surpreendente e arrebatadora.”

Pensava sobre isto e em conexão com esta surpresa que eu tive de não ver a questão de Deus, de que Deus estamos falando, sendo tematizada. Não seria o outro lado da liturgia exatamente este, de ocultar a revelação, de domesticar o apocalipse? Não seria ela uma tentativa de abafar a surpreendente manifestação do Espírito, a possibilidade do irrompimento do sagrado, que a gente não pode controlar. Eu acho que isto aponta para a necessidade de a gente reabrir a questão 147


que pergunta “que Deus, que Deus é este?” E se esta revelação encontra-se ainda aberta, ainda possibilitando novas experiências uma vez que Deus continua agindo, então a ordo tampouco pode estar fechada. Esta exigência de manter a questão de Deus aberta e com ela também a ordem litúrgica não é só uma exigência da experiência, mas acima de tudo do testemunho bíblico onde encontramos uma multiplicidade de ordens. Me impacienta e também me enfada a noção de que haja apenas uma ordem de salvação, apenas uma forma de mediação, apenas um manual de libertação. É importante lembrar que a harmonização dessas ordens de salvação em uma ordo litúrgica desenvolveu-se a partir do segundo século de nossa era e engessou-se durante a Idade Média. Mas há que se lembrar que isto foi uma produção humana. Brilhante, inspirada até, como possa ter sido. Mas continua sendo uma produção humana. Esta não suprime, não elimina a pluralidade de expressões, de ordens de salvação, de processos pelos quais Deus dispensa a reconciliação com o mundo. E surpresas há de se esperar. Isto é o que também encontramos nos testemunhos bíblicos. A liturgia precisa ser refeita, reconceitualizada com cada nova experiência de libertação ou com cada revelação de novas promessas e possibilidades. Há que se voltar à pluralidade dos testemunhos bíblicos, e quem sabe, como sugere a teologia feminista, também além dos limites do cânone. Sem dissimular, disse no início. Não estou certo que o tenha conseguido. Afinal — fechando como abri, com Gullar — esta é uma leitura feita para quem “a cidade [brasileira] está no homem/ quase como a árvore voa/ no pássaro que a deixa”.

148


LITURGIA, ARTE E URBANIDADE

149


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.