PARADOXO DO COTIDIANO
II As implicações da cultura no processo de construção de identidade do jornalista: memória de formação teórica e experiência profissional no cotidiano de Uberlândia
Gerson de Sousa
2020
PESQUISADOR RESPONSÁVEL Gerson de Sousa PESQUISA Brunner Macedo Guimarães (bolsista Fapemig) Mariana de Almeida Valderramos (bolsista Fapemig) Bruna Pratalli Tarcitano (colaboradora) Josielle Ingrid de Moura Soares (colaboradora) Letícia Pereira de Brito (colaboradora) Paula Maria Nascimento Teixeira (colaboradora) Talita Vidal Gonçalves (colaboradora)
TRANSCRIÇÃO E FOTOGRAFIA Gerson de Sousa Mariana de Almeida Valderramos (bolsista Fapemig) Bruna Pratalli Tarcitano (colaboradora) Talita Vidal Gonçalves (colaboradora) REDAÇÃO Gerson de Sousa PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO Ricardo Ferreira de Carvalho Livro produzido como resultado da pesquisa As implicações da cultura no processo de constrição de identidade do Jornalista: memória de formação teórica e experiência profissional no cotidiano de Uberlândia. PRODUÇÃO E REALIZAÇÃO Curso de Jornalismo – Faculdade de Educação
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
Financiamento: FAPEMIG 2020
Agradecimentos Aos homens e às mulheres jornalistas que aceitaram o convite de vivenciar a dialética no processo de entrevista, cujo paradoxo está em contribuir para o desvelar de que a vida tem de ser compreendida em sua complexidade na produção de senti do no cotidiano. Os sorrisos, as angústias, o silêncio na pausa para pensar sobre si, entre outros, sinalizam o diálogo possível em que a entrevista ultrapassa o procedimento para se configurar como método. A compreensão da identidade do jornalista só foi possível por meio do trabalho de construção de memória desses sujeitos: Erivelton Rodrigues, Sandra Satiko Kikuchi, Matheus Malaquias Silva, Mônica Cunha Ferreira, João Fernandes, Renata Maria de Oliveira Neiva, Igor Custódio Miranda, Palmira Ribeiro da Silva, Fernando Boente, Gleide Correa. Aos discentes do curso de Comunicação Social: habilitação em Jornalismo da Universidade Federal de Uberlândia, em especial aos bolsistas Fapemig Brunner Macedo Guimarães e Mariana de Almeida Valderramos; e aos voluntários Bruna Pratalli Tarcitano, Josielle Ingrid de Moura Soares, Letícia Pereira de Brito, Paula Maria Nascimento Teixeira e Talita Vidal Gonçalves, que se empenharam desde a análise bibliográfica, a definição de entrevistados, produção de entrevistas e transcrição. Á Fundação de Apoio a Pesquisa de Minas Gerais (Fapemig) pelo apoio financeiro concedido para a realização da pesquisa.
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Á Faculdade de Educação e a Universidade de Uberlândia por possibilitar o espaço, tempo e condições para o desenvolvimento da pesquisa em seu trabalho de campo e edição. Em especial ao técnico de Planejamento Gráfico Ricardo Ferreira Carvalho por contribuir com o projeto gráfico e edição do livro.
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Sumário Agradecimentos.................................................................................................3 Introdução..........................................................................................................9 Justificativa......................................................................................................10 Metodologia.....................................................................................................15 Capítulo 1............................................................................................................17 O desafio de lutar contra o tempo na produção de sentido..............................19 Capítulo 2............................................................................................................39 A produção de sentido do conhecimento.........................................................41 Capítulo 3............................................................................................................63 Os incômodos da paixão na prática vivenciada no Jornalismo.......................65 Capítulo 4............................................................................................................89 A subversão da linguagem Poética na rotina Jornalística................................91 Capítulo 5..........................................................................................................117 A interrogação do eu provocado na produção de sentido..............................119 Capítulo 6..........................................................................................................137 A narrativa em tempos de consciência histórica............................................139 Capítulo 7..........................................................................................................157 A tensão da teoria na prática bruta do Jornalismo.........................................159 Capítulo 8..........................................................................................................181 Os dilemas da emoção na arte de interpretar a notícia..................................183 Capítulo 9..........................................................................................................205 Narrativas da Realidade: O gosto pelo Jornalismo........................................207 Capítulo 10........................................................................................................229 A Maturidade da liberdade criativa na prática jornalística............................231 Capítulo 11........................................................................................................257 Considerações finais......................................................................................259 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................265
INTRODUÇÃO JUSTIFICATIVA METODOLOGIA
Introdução
E
ste livro é resultado da pesquisa realizada no período de dois anos e tem por objetivo identificar as implicações da cultura na construção de identidades do jornalista a partir de dois aspectos fundantes: a memória da for-
mação teórica, seja educação formal seja informal, e a experiência vivida na atividade profissional no cotidiano de Uberlândia (MG). A proposta é identificar os conflitos vivenciados por esses profissionais no mercado de trabalho em um contexto em que a cultura como política passa a definir o contexto de pós-modernidade. Este livro-reportagem é resultado desse processo de entrevistas realizadas na pesquisa e tem como foco analisar a temática para entender as relações e os contra pontos possíveis entre o processo de formação dos recém-profissionais (últimos cinco anos) e profissionais formados há mais de 30 anos (com ênfase em sua for mação prática e teórica). O objetivo geral é registrar as reflexões produzidas pelos entrevistados e estabelecer um sentido que responda às problemáticas de partida da pesquisa, observar o cotidiano como espaço e tempo de produção de sentido, a forma com que os profissionais lidam com os desafios da atividade jornalística, desde suas possíveis dificuldades até seus possíveis êxitos. Esses fatores serão correlacionados ao contexto sócio-histórico que compreende: o processo de formação dos respectivos entrevistados, o panorama da formação jornalística no Brasil a partir da discussão e im-
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plantação das novas diretrizes e as tendências observadas nessa área do conhecimento no que se refere ao seu ensino nas universidades. A partir das definições da pesquisa este livro tem por objetivos específicos: •
Contribuir para a reflexão teórica e profissional sobre as implicações da
formação jornalística; •
Analisar a relação que se estabelece de hierarquização do ensino técnico
em detrimento ao teórico (ou vice-versa); •
Investigar como as reformas dos currículos definem uma identidade dos
cursos de Jornalismo no Brasil; •
Utilizar a memória como proposta teórica-metodológica para a narrativa da
micro-história do jornalismo em Uberlândia; •
Produzir um livro-reportagem com narrativa dos sujeitos jornalistas para
contribuir com a discussão social.
Justificativa
A
importância deste livro está definida pelo contexto histórico: vivencia-
mos um período em que as políticas públicas e a sociedade defendem o incentivo ao ensino técnico, voltado especialmente à capacitação pro-
fissional dos estudantes de jornalismo para que estejam atualizados no mercado de trabalho a partir das inovações das tecnologias. A investigação presente neste livro segue no contraponto teórico do que se vislumbra como pós-modernidade: a cultura enquanto manifestação política exige, de forma intensa desde a década de 60 do século XX, uma mudança de significado e, porque não considerar, uma formação universitária plural e teórica para entender a produção de sentido no cotidiano do popular.
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Esse embate se estabelece ora impondo o pragmatismo na formação técnica do estudante, ora exigindo do profissional atualizado um arcabouço teórico para o exercício do ser jornalista como responsabilidade social. Este livro se propõe a ser um importante exercício teórico-metodológico para avaliar as consequências trazidas pela priorização ou abdicação deste modelo educacional na construção da identidade do sujeito jornalista e nas tensões durante o exercício profissional cujo propósito é representante o plural. A área do jornalismo é um tênue campo de confronto entre essas duas frentes. Há quem defenda que o curso deva sair do interior da formação denominada “Comunicação Social” porque se perde em temáticas de outras áreas das quais a generalização só compromete com a formação prática do jornalista. Há quem defenda o contrário: o aprendizado técnico pode ser feito durante o exercício da redação, mas a base conceitual que remete ao jornalista como intelectual deve ser construído na academia. Este debate, muitas vezes, acontece de forma superficial e desconsidera todo o macroambiente do jornalismo. Qual é realmente a realidade enfrentada pelos estudantes formados ao entrarem no mercado de trabalho? Em que momento a universidade ao reduzir a formação acadêmica à atualização tecnológica não compromete a própria construção social de identidade do jornalista enquanto responsabilidade pública? Em que momento a recusa ao outro extremo, de incentivar somente o conceitual, leva o recém-profissional a ser marginalizado pelo discurso do progresso irreversível? Quais são realmente as tensões e conflitos vivenciados pelos jornalistas e inscritos na memória diante dessas duas esferas de valores que passam a ser exigidos no contexto de pósmodernidade? Esta discussão, portanto, não coloca em questão apenas uma nomenclatura, mas uma gama de conceitos, vivências, ideias e teorias. As discussões sobre a presença de componentes práticos e teóricos nos cursos de jornalismo não são recentes. O ensino de jornalismo tem passado por transfor13
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mações ao longo dos anos, principalmente após ter se “profissionalizado” no século XX. No Brasil, esteve fortemente influenciado pelas correntes europeias até o período da ditadura militar, quando aproximou-se mais do modelo estadunidense. “A atividade jornalística é comercial e burguesa desde sua origem, em Gutemberg. Entretanto, com o advento do Jornalismo Informativo no Brasil instaurouse o processo de profissionalização da área. O fechamento do mercado de trabalho em jornalismo vinculou o exercício da profissão aos portadores de diploma universitário. A demanda por jornalistas com formação universitária era procedente de uma orientação americana da nova técnica de se fazer jornalismo. Contudo, as universidades brasileiras possuíam uma estrutura européia de ensino. Desta forma, os cursos de formação em Jornalismo foram estruturados em dois eixos de ensino: o técnico e humanístico.” (DIAS, 2012, p. 7)
Em que momento a hierarquização da prática sobre a teoria vislumbrando uma lógica de mercado define os graus de conflito enfrentados pelo sujeito na sua construção prática como jornalista? Este é um ponto de inevitável convergência das reflexões deste estudo. O que se pretende aqui é observar, dentre outros aspectos, as consequências da dissociação da teoria e da prática na construção dos profissionais que ocupam, hoje, cargos jornalísticos em emissoras de TV, de rádio, da mídia impressa, da mídia online e de assessorias de imprensa. Ao mesmo tempo em que mergulhamos no processo de formação, este livro contribui para refletir sobre os atuais currículos dos cursos de jornalismo e o processo, pelo qual estão passando, de reformulação de suas propostas curriculares. “O jornalismo não é, e possivelmente nunca será, encarado como uma ciência. (...) Não se faz nenhum tipo de concessão ao admitir que o jornalismo comporta uma dimensão técnica, mas isto não significa ruptura com a teoria. O jornalismo tem tudo a ganhar em contato com um saber comunicacional, tal como este também tira proveito desse contato, na medida mesmo em que alimenta boa parte do material de sua reflexão. Essa relação entre comunicação e jornalismo (e mesmo com as outras habilitações profissionais, já que não se trata de um caso isolado) relança o problema da epistemologia da comunicação, não a nega” (MARTINO, 2009, p. 29) 14
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A importância deste livro, contudo, transpassa a reflexão acerca da formação jornalística e sobre os componentes curriculares desse processo. O que se almeja é alcançar o debate sobre a própria constituição dos indivíduos enquanto jornalistas, seja a partir de seu conhecimento intelectual, sejam suas experiências, seja a prática cotidiana. A memória e o pensamento de cada um dos entrevistados é um ponto de partida fundamental na elaboração deste livro, que visa conceder um tratamento humanístico ao assunto e fugir das concepções meramente teóricas. O objetivo de problematizar a construção de identidade por meio da memória está justificado pelo contexto histórico em que denominamos como pós-modernidade. Ao priorizar a cultura como produção de sentido no cotidiano e na prática política nos defrontamos com a irrupção dos movimentos sociais, no contexto de comunicação, que exigem entender a realidade a partir de dois campos de luta. O presente, destituído do futuro como espaço de realização das promessas iluministas, torna-se o período de enfrentar a violência simbólica a partir da produção midiática realizada pelos próprios grupos sobre si mesmos. E o passado, desvalorizado ideologicamente por ultrapassado pelo progresso econômico-tecnológico, se configura como elemento essencial para se contrapor à violência física sofrida pelos sujeitos. O passado e o presente se configuram como problema conceitual no contexto de hegemonia da comunicação. Por isso, o conceito de memória se funda como mediação para esse período de crise da modernidade ou pós-modernidade. É preciso es tabelecer a importância de entender a memória no seu sentido metodológico e teórico. O primeiro aspecto, metodológico, está em entender o seguinte pressuposto: o pesquisador, ao se utilizar da memória, principalmente por meio de relatos obtidos de sujeitos como a identidade jornalista, deve estar consciente de que a profundidade da entrevista está fundamentada em como ele estabelece a relação com o outro. A proximidade conquistada durante o processo comunicativo se difere da ati-
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tude de impessoalidade, esta última que mantém como justificativa para a atitude fim manter a distância objetiva. Entretanto, a concretização dessa distância objetiva na prática da entrevista re vela o descompromisso do pesquisador em relação aos sujeitos. Descompromisso diante do seguinte problema: como qualificar essa distância diante da recusa em considerar a emoção dos depoimentos na narrativa, o silêncio, a pausa, o choro, a ansiedade, o sorriso, e a confiança depositada pelos entrevistados ao definir o melhor momento para tornar dizível o indizível? A intensidade da relação se dilui na lógica positivista da objetividade. Nesse processo, o sujeito é novamente objetivado e o valor da memória, que deveria ser o contraponto da coisificação sofrida por ele, se perde em seu próprio reducionismo. Por isso, é importante precisar que as emoções registradas nas entrevistas com os recém-formados ou os profissionais com mais de 30 anos de formação não são considerados como acidente de percurso ou estratégia para fechar a imagem em close para “sensibilizar” o público. Ato contrário: o mergulho nas aflições vivenciadas pelos sujeitos deve ser estabelecida como material para pensar o sentido da sociedade e a responsabilidade social do processo de formação do jornalista na sua produção dialógica com a comunidade. Um conceito fundamental neste livro é o de memória coletiva. Tanto Ecléa BOSI (1994) quanto Michel POLLAK (1992; 1989) utilizam-se da concepção de HALBWACHS (1990) de que a memória da pessoa está ligada à memória do grupo e das relações sociais que construímos. Esse processo modifica a percepção da memória e da realidade devido às diferentes relações sociais. BOSI cita que “lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. [...] A lembrança é uma imagem construída pelas matérias que estão, agora, à nossa disposição” (1994:55).
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Assim, a memória deveria ser entendida “como um fenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes.” (POLLAK, 1992: 201), pois é ela que constrói o sentimento de identidade, individual ou coletiva, “na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si” (POLLAK, 1992: 204). Outro aspecto teórico importante é que a análise dos conceitos de cultura, cotidiano e identidade no contexto de pós-modernidade está articulado na Teoria dos Estudos Culturais e na produção de quatro autores como referência: Raymond WILLIANS, Stuart HALL, Edward THOMPSON e Richard HOGGART. Como nos narra Agger apud ESCOSTEGUY, há uma concepção de cultura do qual marca a particularidade dos Estudos Culturais: ESCOSTEGUY: “O grupo do CCCS amplia o conceito e cultura para que sejam incluídos dois temas adicionais. Primeiro: a cultura não é uma entidade monolítica ou homogênea, mas, ao contrário, manifesta-se de maneira diferenciada em qualquer formação social ou época histórica. Segundo: a cultura não significa simplesmente sabedoria recebida ou experiência passiva, mas um grande número de intervenções ativas – expressas mais notavelmente através do discurso e da representação – que podem tanto mudar a história quanto transmitir o passado” (HOHLFELDT, 2001, p. 156)
Metodologia
A
natureza da pesquisa para a produção deste livro pode ser entendida
enquanto uma pesquisa aplicada. A proposta é identificar as relações entre a formação prática e teórica do jornalista e a vivência dele no
mercado de trabalho, que permitirá a construção de conhecimentos úteis para o avanço das discussões sobre esta temática, sem, contudo, previsão de aplicação 17
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prática. No que se refere à abordagem do problema, o estudo se construiu por meio de uma pesquisa quantitativa e qualitativa. A pesquisa quantitativa, que visa tabular as grades curriculares de cursos de jornalismo cursados por profissionais de Uberlândia, é um método que quantifica as informações coletadas mediante técnicas estatísticas. Neste método também mapeamos o número de jornalistas em atividades nos meios de comunicação em Uberlândia e o tempo de formação. Já o método quali tativo será explorado para o entendimento e aprofundamento nos sujeitos de estudo: os recém-formados e os que já atuam há mais de 30 anos no mercado de tra balho, por meio de entrevistas em profundidade. A partir dos objetivos deste estudo é possível classificá-lo como uma pesquisa explicativa, já que ele busca proporcionar maior conhecimento e familiaridade com o problema tratado, lançando mão de recursos como o levantamento bibliográfico, sendo por isso uma pesquisa documental. Para a produção deste livro foram selecionados dois profissionais em cada um dos meios de comunicação supracitados, sendo que um deles com formação em até cinco anos e o outro superior ao tempo de quinze anos. As entrevistas foram realizadas em profundidade, analisando a base do currículo de formação do profissional, juntamente com as dificuldades encontradas por ele no campo do jornalismo. A memória do entrevistado se tornou fator imprescindível o valor da pesquisa para atingir a profundidade exigida pelo estudo, já que as experiências vividas pelos sujeitos são a principal fonte de informações. Este livro está constituído de dez capítulos, sendo eles divididos em: o primeiro e o segundo sobre os profissionais da televisão, o terceiro e o quarto sobre os profissionais do rádio, o quinto e o sexto sobre os profissionais de assessoria de imprensa, o sétimo e oitavo sobre os profissionais do meio digital (web) e o nono e décimo sobre os profissionais da televisão. 18
Capítulo 1
Erivelton Rodrigues
TV
O desafio de lutar contra o tempo na produção de sentido
E
ntre a docência e concretização da perspectiva de ser jornalista. É nesse estado de conflito que Erivelton Rodrigues narra sua experiência vivida durante a entrevista realizada em uma das salas da Faculdade de Educa-
ção da Universidade Federal de Uberlândia. Não se trata de um sonho antigo ou de um testemunho que se refere somente ao passado. Pelo contrário: essa dimensão conflitiva se estende para o presente do sujeito, que ora se reveza em certeza sobre o caminho a ser seguido profissionalmente como jornalista, ora é deslocado somente como plano para atuar na área de ensino. O ponto central para entendermos o dito e o não-dito de Erivelton Rodrigues é que as profundezas deste dilema foram tomando corpo no decorrer do próprio processo de entrevista. Primeiro é necessário entender qual fato ou contexto Erivelton Rodrigues releva da memória coletiva para materializar a definição de realizar o curso de jornalismo. Era adolescente, estudante de uma escola pública estadual, quando uma tragédia remeteu uma mudança na atitude do cotidiano que conduziu à redefinição de seu futuro profissional: Há muitos anos assim, tipo, eu era criança, eu pensava em seguir pro lado de docência e tal. Mas, na adolescência, eu já enxergava a possibilidade de cursar jornalismo. Eu estudava em uma escola pública estadual. Houve uma tragédia e ai, ali com 15, acho que menos um pouco, menos, uns 14, 13 anos, eu escrevi o primeiro texto jornalístico. Era criticando uma falta de uma duplicação na BR
Gerson de Sousa 050. Na época morreram 11 pessoas e umas 8 eram do meu colégio. E aí, esse texto, a gente utilizou ele na escola só, num mural, a gente estava indignado com a situação, que a duplicação não saía... e alguém da escola, da direção da escola ali, fez com que esse texto de alguma forma fosse parar no jornal de Uberaba. Eu morava lá. E aí eles publicaram o texto na íntegra, tal, ali eu já vi que era por ali que eu ia seguir, que eu gostava daquilo: dos noticiários, de dar opinião sobre o que estava acontecendo, enfim... E aí foi meu primeiro texto. (ENTREVISTA, Erivelton Damião dos Rodrigues, 2016).
A publicação do primeiro texto, na íntegra, no Jornal de Uberaba adicionou ao seu processo de definição na adolescência para uma outra profissão. E ao mesmo tempo trouxe consigo uma justificativa plausível: a luta do jornalista contra a violência e o descaso público com a sociedade. Pois o texto que deveria ficar restrito ao Jornal Mural da escola, como um exercício de cidadania resultante de uma indignação de determinada escola, se transferiu para um plano maior: o da cidade. Até porque a morte dos colegas de escola e à crítica a demora na duplicação da rodovia deixa de ser um fato de preocupação específica de uma diretora de ensino para se transcender como problema social. A dimensão profunda da produção de sentido de Erivelton não pode ser medida somente pela divulgação do texto, como se estivéssemos realizando somente análise de conteúdo. Pelo contrário: ela toma corpo no sentido produzido no cotidiano ao ponto de seu próprio eu ser levado a um estado de compreensão sobre a realidade. Os noticiários para ele deixaram de ser somente entendidos agora como ato receptivo, para ser articulado agora como possibilidade de ser sujeito emissor. Mas o que significa essa mudança de concepção teórica? Erivelton Rodrigues materializou a importância de dar opinião sobre o que acontece na realidade. Esse estado de reconhecimento de si como valor para o outro iria conduzi-lo para os dilemas que vivenciaria em tempos curtos. E assim temos de entender o segundo elemento de análise de Erivelton: ser docente. Trata-se de um sonho que o acompanha desde criança. A frase, embora reconheça o 22
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sentido afirmativo do sujeito, deixa ainda um espaço para mergulharmos na experiência vivida do entrevistado e reconhecer a origem concreta desse desejo. A questão primordial nesses dois embates é que esses dois elementos fizeram parte da sua dimensão aflitiva ao ter de tomar a decisão sobre qual curso realizar n a graduação. A sua narrativa explica que a vinda para Uberlândia, então com 19 anos, o levou primeiro a cursar filosofia. A justificativa para os dois anos neste curso estava mais na perspectiva de ser docente. E adicionado agora por outro fator: por ser um curso que estava dentro de suas possibilidades financeiras. Mas a abertura do curso de Jornalismo na Faculdade Católica de Uberlândia o levou a repensar o caminho. E, nesta redefinição, a memória precisa reformular e refazer as experiências de vida para traçar, na decisão do presente, o sentido do ato de deixar a Filosofia para in gressar no curso de Jornalismo. Por ironia, ou qualquer outro nome que possamos estabelecer sobre determinados acontecimentos, o fato é que a abertura do curso na mesma faculdade em que estava cursando Filosofia trouxe materializado a perspectiva de realizar outro de seus desejos. E a frase de Erivelton Rodrigues percorre esse florescer do caminho: “ah, não, parece que o curso está vindo na minha direção...” (risos) e batia mais forte o coração pelo curso, ai eu fui e comecei a cursar jornalismo. Aí formei em 2011, estagiei, ai do estágio eu já fiquei na área... no estágio na TV Paranaíba, ai fiquei lá 4 anos.” (ENTREVISTA, Erivelton Damião dos Rodrigues, 2016). Os dilemas dos sujeitos e a sua luta para se manter coerente têm outra reconfiguração depois do momento do ato da matrícula. E esse aspecto está subscrito na pergunta da entrevista que busca defrontar qual a perspectiva de realizar o curso de graduação. Poderíamos considerar que há determinado peso na perspectiva sobre o curso na mesma medida que o sujeito toma a decisão de deixar outros cursos para percorrer o matriculado? Para onde são direcionados àquelas outras potencialidades 23
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que interligam os sujeitos em propostas hoje consideradas díspares por ele, neste caso como a filosofia? Quando optou por deixar a filosofia para o Jornalismo, Erivelton Rodrigues não tinha ciência do fato que iria marcá-lo para sempre no futuro: de que seria a única turma formada em jornalismo da Faculdade Católica . Ele responde que teve se defrontar com a visão romântica do ser jornalista - indício que pode ser apalpado, entre outros itens, para o sentido da justiça aplicada como instrumento de resolver a indignação pública do seu primeiro texto jornalístico, redigido aos 13 anos. Pois é preciso sempre se questionar de onde nasce esse sentimento que nos remete a perspectiva, senão em elementos que estabelecem sentido à realidade. Então, eu pensei que ali eu ia receber pelo menos a essência da coisa, de como lidar, de como fazer, umas questões éticas. A gente tem uma visão muito rasa quando né, você só quer fazer, uma visão muito romântica. Eu pensei que a gente ia ter um direcionamento do que podia fazer, de como que ia fazer... em parte, tive, é... mas eu tive um.. no meu caso é uma questão acho que a parte do mercado geral, a gente teve um problema com o nosso curso, na época, na faculdade (ENTREVISTA, Erivelton Damião dos Rodrigues, 2016).
O anseio pela profundidade do jornalismo tinha que ser superado em esforço teórico e prático, para ao final do processo, ter elementos para considerar que o curso foi bom. Mais do que isso: de que a decisão da troca do caminho futuro está correta. A imediaticidade da faculdade trouxe consigo o pensamento da ausência de referências para se vestir e atuar no mercado. Será que a crise de ensino-aprendizagem da universidade se reflete no mercado de trabalho? A primeira reflexão crítica de Erivelton Rodrigues esteve no enfrentamento da experiência vivida sobre a crise daquele presente na Faculdade Católica. Não seria exagero aproximar a indignação dos 13 anos, agora transposta para outro espaço, como indicativo para considerar como crítica este ato de entender que a faculdade deve ser tratada com peso maior de ser do que restringi-la para uma funcionalidade da lógica de consumo.
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Não sei se reflete o mercado, na verdade a universidade que tem por aí, mas no nosso caso foi um curso problemático... então tinha uma expectativa e ela não foi atendida, assim, da forma que a gente pensou que fosse. Mas era um problema da faculdade, de investimento no curso, o curso acho que não foi visto da mesma forma que a gente via pela gestão, é, não teve o investimento que a gente esperava, mas o que não impediu que a gente lutasse pra que desse certo e viesse pro mercado depois lutar pelo nosso espaço e tal (ENTREVISTA, Erivelton Damião dos Rodrigues, 2016).
Há uma contradição aqui exposta e que está relevada ou submersa no conceito de investimento. A mera descrição do depoimento de Erivelton considera a diferença de entendimento do valor do jornalismo entre o rumo do curso e o horizonte dos jornalistas em formação. A luta tem início para ser formado e poder estar ciente de que o reconhecimento de ter se constituído como jornalista lhe será um momento de estar preparado para o mercado. Ele reconhece que a Faculdade é boa, tem cursos bons, e que o acontecido com o jornalismo foi pontual. Mas nada disso alivia o impacto que sofreu quando entrou na redação e descobriu, em outra realidade, que o conhecimento produzido na universidade era insuficiente para esse outro dia a dia. Eu acho que apesar de tudo, apesar das dificuldades, do sofrimento que foi formar lá, é, tinham alguns professores que faziam valer a pena né? Que traziam conteúdo que valia a pena e que iam somar aqui no mercado depois. É... que a gente guarda umas coisas, alguns conselhos, né, até hoje. Mas faltou muita coisa de prática, por exemplo, é.. e que fez falta. Quando eu cheguei na redação eu falei “nossa, onde que eu to?” e eu acho até que faz falta mesmo pros que tem um laboratório bacana e que tentam ali, praticar de alguma forma. (ENTREVISTA, Erivelton Damião dos Rodrigues, 2016).
A revelação de estar em algum lugar distante do que se efetivou na academia leva, ao primeiro momento, a uma análise do percurso pessoal. Mas em seguida se direciona para um todo, em que a própria teoria é colocada em análise de ser, em sua própria natureza constitutiva, insuficiente para que o formando atinja a sua to-
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talidade. Ou, em outras palavras: a faculdade não tem estrutura para deixar o discente pronto para o mercado de trabalho. Acho que qualquer profissional, você chega no mercado, é outra coisa, assim, é um pouco diferente ou muito diferente, você não vai, ah, chegar e achar que já tá pronto ali... Mas no meu caso, por a gente ter essas dificuldades, ai foi muito difícil, foi um choque muito grande, mas mesmo assim, a gente ainda teve um conteúdo que valeu a pena, pela luta, pela garra de alguns professores que fizeram valer a pena e que a gente carrega até hoje. (ENTREVISTA, Erivelton Damião dos Rodrigues, 2016).
A luta de Erivelton inicia em sua formação acadêmica para depois se estender no mercado tendo como sempre, como aliado, a memória coletiva. Quais são os materiais disponíveis para Erivelton no presente e que o remete ao pensar em sua formação, o choque na redação do não estar pronto para o mercado? Certamente é o que parece revelarmos: a resposta dele na entrevista veio com este refazer do passado diante do que se projeta e se aceita como ser jornalista no presente. A primeira superação no caminho de ser jornalista veio de ordem subjetiva, mais precisamente neste momento em que o sujeito indaga a si mesmo, diante das dificuldades, qual caminho deverá seguir. Pois ao abandonar o curso de filosofia, de dois anos concluídos, para o de jornalismo, Erivelton Rodrigues se depara com a primeira grande crise. A incompatibilidade de investimento da gestão da Faculdade no curso de Jornalismo para o investimento subjetivo que o levou a mergulhar em sua nova formação. Será que este fato não o conduziu para alguma indefinição sobre se graduar em jornalismo? Nem os problemas iniciais, muito menos as questões posteriores levaram o entrevistado a mudar o caminho definido. Não, já tava bem seguro de que eu queria era isso mesmo. Que de um jeito ou de outro eu ia cursar jornalismo e que ia me formar em jornalismo. Inclusive a reta final, houve uma debandada pra Unitri (Centro Universitário do Triângulo), é... tentei ir pra lá também junto com alguns amigos mas ai já tinha acabado 26
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o prazo. A gente acabou ficando ali mesmo e formando ali. A gente é a única turma de jornalismo da Católica, que formou lá, porque existiam umas três ou quatro turmas mas elas foram lá pra Unitri e a gente ficou, resistiu e ficou. Ai logo o curso foi rifado lá da grade, não sei o que que fizeram, sei que não abriu mais turmas. (ENTREVISTA, Erivelton Damião dos Rodrigues, 2016).
A segurança subjetiva de optar pelo curso de Jornalismo não evita a crítica de denunciar que o curso foi rifado da grade. Qual o sentimento em que mergulha o sujeito quando se depara com a descontinuidade histórica na instituição da qual investe seu tempo de vida? A pergunta parece adequada para entendermos esse fato particular: havia outras turmas, mas que foram transferidas para outra universidade. Do grupo que ficou, em que estava Erivelton Rodrigues, pode ser denominado como ato de resistência. Mas cuja historicidade se fragmenta ao ponto de estilhaçar em uma pequena narrativa, cuja angústia remeteria a desistoricizar o fato e considerá-lo como acidente de percurso a criação do curso de jornalismo em uma Faculdade tradicional. É provável que este seja o dilema vivenciado por Erivelton durante a sua narrativa, em que a memória de formação teórica e prática na Faculdade Católica parece se confundir com a memória de atuação no mercado de trabalho. Essa identificação é complexa, porque a temporalidade da distância desses dois momentos para o presente da entrevista é de curto período de cinco anos. Ao considerarmos essas questões como complexas de se tornarem autônomas em cada período, torna-se sintomático reconhecer os dois fatores importantes que Erivelton recorre para analisar a sua formação teórica. O primeiro fator importante é a ética. De qual conceito de ética se apresenta na concepção do entrevistado? Erivelton Rodrigues apresenta como fatores desta discussão de ética a definição e as possibilidades da atuação do jornalista em cada área. Questão de se ouvir todos os lados, da forma de apurar, até onde que você podia ir pra conseguir uma notícia, as delimitações mesmo. Questão de o entre27
Gerson de Sousa vistado saber ou não de todo processo ali que você tá fazendo, até onde valia a pena você omitir uma parte de um processo de uma reportagem ali pro entrevistado, se é em nome de um bem maior você podia omitir alguma coisa, ou não. E parte disso a gente vê hoje nesses desdobramentos políticos que tá tendo aí, a gente questiona por exemplo questão de gravação de ligação de ah vaza isso, vaza aquilo, quando que você pode fazer uso desse tipo de ferramenta, por exemplo, sem que outra pessoa saiba ou autorize, enfim, esses detalhes mesmo. (ENTREVISTA, Erivelton Damião dos Rodrigues, 2016).
Poderíamos problematizar aqui neste espaço se os detalhes narrados por Erivelton Rodrigues configuram sob qual conceito de ética: até onde um jornalista poderá ir para que obtenha a notícia? Será plausível que a defesa da notícia se estabeleça como ponto nodal o anonimato das suas fontes? O entrevistado tem o direito de saber toda a extensão do que se apura como notícia, já que o ponto de referência para a responsabilidade de atuação do jornalista seja sempre o bem comum? As perguntas aqui poderiam ser encadeadas de forma natural, mas é importante recontextualizá-las neste momento: de que forma essas questões perpassam a produção de sentido do entrevistado ao sabermos que naquele momento passava existencialmente por um debate ético? E novamente o embate se faz aqui sobre sua formação. Mais precisamente, o entrevistado revela a frustração acadêmica. Da forma que foi, sim. Eu não me arrependo de ter me formado em jornalis mo, de ter feito esse curso, mas pela forma que foi sim. E acho que qualquer um que você for perguntar da minha turma, da única turma que formou lá vai dizer isso também. (ENTREVISTA, Erivelton Damião dos Rodrigues, 2016).
Há aqui um sentimento de frustração que evoca o coletivo e ao mesmo tempo ampara uma discussão ética. Essa discussão, materializada como critica do entrevistado, se estende para outro horizonte de área quando precisa explicar, pelo cotidiano, os problemas de ética na sociedade.
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E parte disso a gente vê hoje nesses desdobramentos políticos que tá tendo aí, a gente questiona por exemplo questão de gravação de ligação de ah vaza isso, vaza aquilo, quando que você pode fazer uso desse tipo de ferramenta, por exemplo, sem que outra pessoa saiba ou autorize, enfim, esses detalhes mesmo. (ENTREVISTA, Erivelton Damião dos Rodrigues, 2016).
Antes de prosseguirmos para o segundo fator, é importante considerar um comentário pequeno, mas que traz toda a simbologia do que representa a memória de formação de Erivelton Rodrigues. Pois no momento em que fazia afirmativa sobre a Faculdade, ele aponta para a possibilidade de que determinados fatos narrados podem ter sido originados em espaços diferentes do qual está atribuindo denominação. Então isso eu guardo, algumas coisas você guarda mas é... eu tenho um certo receio de a partir de um certo momento ser... pensando que você tem uma memória que ela te traz quando na verdade é algo que você passou a praticar e conhecer, que depois que tá no mercado, disso eu tenho um certo receio. (ENTREVISTA, Erivelton Damião dos Rodrigues, 2016).
Esse problema é importante porque estamos diante de dois quadros diferentes que já localizamos na discussão ética. O primeiro é a frustração do sujeito com a instituição por não atribuir o valor merecido ao investimento ao curso. Essa frustração remete a uma produção de sentido de crítica, em que a memória de Erivelton Rodrigues seleciona somente um pequeno grupo de professores que corroboram para o significado profissional dos que se tornaram resistentes. Por outro lado, a crítica para a marginalização sofrida pelo jornalista, não pode afetar a produção de sentido do sujeito cuja certeza aponta para essa afirmativa profissional. E Erivelton Rodrigues neste embate optou em definir o caminho de reafirmação do seu caminho, cujo sentido esteve revelado quando enfim entrou no mercado de trabalho. A dúvida então do entrevistado se configura dentro deste quadro: será que estou atribuindo valor da experiência de atuar no mercado para a universidade diante dessas respostas? Até onde o refazer da memória, sendo coerente
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com sua experiência vivida, pode definir e separar os sentidos do significado que traz no presente sobre o que é ser jornalista? Por meio das respostas podemos identificar o segundo fator importante da memória teórica do entrevistado cujo referente é o textual. Nas duas questões em que a resposta era sobre a memória de formação teórica, o elemento citado pelo entrevistado demarcou a produção de texto como ponto nodal para se chegar ao conhecimento. O elemento de origem para atribuir importância ao texto, se buscarmos no dito da memória de Erivelton Rodrigues, nasce da publicação do seu primeiro texto que do Jornal Mural da Escola foi publicizada no Jornal da Cidade. Talvez por considerar esse fator como principal característica em que materializou a perspectiva de ser jornalista, o entrevistado não só rememora como foi esse aprendizado na Faculdade diante da exigência que sofreu no mercado de trabalho. A pergunta era: as disciplinas práticas contribuíram para a sua formação como jornalista? Erivelton Rodrigues é enfático: Pouco. Contribuíram pouco. Porque foram pouquíssimas aulas, pra se ter uma ideia, a gente fez, cada um, cada aluno fez uma matéria, agora quando que você vai pensar que você fazer uma matéria, por exemplo, usando aqui como modelo a TV, você vai estar preparado pra fazer centenas, milhares, depois que você for pro mercado. Ai eu te repasso a pergunta: é suficiente? Eu acho que não. Então contribuiu pouco. Fui aprender a fazer e mesmo assim estou num processo de aprendizado que acho que é contínuo, né? Mas no mercado. (ENTREVISTA, Erivelton Rodrigues, 2016).
A frase exposta na resposta de Erivelton Rodrigues nos obriga a revisitar suas primeiras declarações quando indagado da perspectiva de cursar jornalismo. Entre outros trechos, consta dele ter pensado que na Faculdade iria receber pelo menos a essência da coisa, de como lidar, de como fazer, umas questões éticas. Da ética já tratamos anteriormente. O problema aqui está nesse “como fazer” do ponto de vista prático, que aqui ganhou corpo no texto. E o relato desvela esse sentimento de frus-
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tração: fazer somente uma matéria na disciplina de Telejornalismo, justamente para quem está vivenciando a realidade da TV. É sintomático a pergunta que o entrevistado leva como crítica ao entrevistador: “Aí eu te repasso a pergunta: é suficiente?”. O que significa esse ato de deslocar ao outro o problema da história vivida? Este é o momento em que a entrevista deixa de ser o encadeamento de resposta para se configurar como testemunho. O entrevistador, neste complexo dialético diálogo, passa a ser a escuta do qual irá edificar o sentimento de angústia vivenciado pelo entrevistado para o social. De certa forma, há uma analogia da realidade que se pode arriscar em estabelecer neste momento: no passado, a direção da escola do Ensino Médio passou do jornal Mural para o jornal da cidade; no presente, o depoimento sobre as dificuldades de sua formação deverão ser levadas por este pesquisador da limitação da cidade de Uberlândia para o conhecimento nacional. Foi um semestre de telejornalismo e no decorrer deste semestre, entre as atividades que existiam ali, a gente elaborou um jornal, e ai dentro desse jornal cada aluno fazia uma reportagem. Pro mercado é pouco, pra você encarar o mercado é pouco. (ENTREVISTA, Erivelton Damião dos Rodrigues, 2016).
O outro sentido do “suficiente” está amparado já pela problema da experiência vivida do entrevistado no mercado de trabalho. Pois o numeral singular, uma matéria da formação teórica, está confrontada com as centenas que teve de fazer no mercado de trabalho. A conclusão desse enfrentamento é que a faculdade não o deixou preparado para atuar no mercado de trabalho. O como fazer, o aprendizado sobre como construir o texto está sendo realizado somente agora no mercado de trabalho. Quando teve de encarar o mercado de trabalho, atuando na área de TV, Erivelton Rodrigues se deparou diretamente com outro fator que não teve de lidar na aprendizagem da Faculdade: a luta contra o tempo. Podemos qualificar o testemunho de centenas de matérias dentro desta tônica. De uma matéria para o semestre,
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para várias matérias durante o dia. E assim a questão do texto passou a ser problematizada neste novo horizonte demarcado pela concepção de jornalismo. A primeira parte do depoimento do entrevistado se refere ao choque ainda da correção de texto no mercado de trabalho: Então, começa que você chega e aí você percebe que tem tudo pra melhorar com relação ao próprio texto. Embora você tenha considerado que talvez a parte textual tenha sido a melhor que você conseguiu captar lá na sala de aula (risos). Em alguns casos chega lá e você percebe que você precisa melhorar muito seu texto e isso é algo que você vai trabalhando diariamente. Senão, não haveria necessidade de um editor de texto, então todo dia que você chega com um material, o editor vai lá e fala “ó, não acho que você podia ter feito assim, podia ter dito isso, acho que você podia ter sido mais claro aqui, mais direto ali” enfim, texto mais curto, enfim, toda hora te passando esse tipo de orientação, mas isso foi mais na frente quando eu comecei a fazer texto pra TV. (ENTREVISTA, Erivelton Rodrigues, 2016).
Eis aqui o sentido de estar sendo formado pelo mercado de trabalho. Embora tenha considerado e estabelecido prioridade sobre a questão textual na Faculdade, Erivelton Rodrigues se defronta com o seu próprio limite. Esse é o fator contido em sua frase que remete ao perceber que tem tudo para melhorar. A percepção do entrevistado está diretamente vinculada a outro ato perceptivo: as correções diárias realizada pelo editor de texto. Qual o sentido de manter um funcionário como editor de texto em uma redação de TV? É então pelo retorno do editor que as matérias vão ganhando o sentido de ser publicável. Esse é o aprendizado manifesto de Erivelton Rodrigues sobre o mercado de trabalho. O problema que se encaminha na experiência vivida de Erivelton Rodrigues é como unir a ética com o aprendizado da produção de texto diante da luta contra o tempo. Talvez seja por isso que ele relate que se trata de seu maior desafio: Quando eu entrei na produção, o maior desafio foi a questão de lutar contra o tempo. Parece que jornalista luta contra o tempo. Você ali no meio de uma redação, ao vivo e você tendo que... nesse trabalho por exemplo de querer ouvir 32
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todos os lados. Então o repórter fez uma matéria X denunciando tal coisa e sai atrás do outro lado e nem sempre esse outro lado te respondia no tempo que você queria e ia sendo aquela batalha, ao mesmo tempo você marcando matérias, falando com todas as fontes que você precisava falar no teu dia-a-dia, tendo as ideias pra vivos e pra reportagens. Então essa luta pelo tempo já te causa um impacto logo no começo. Porque faculdade pode ter ali uma certo acesso a prática mas num tempo muito bem programado. É muito, sabe “ah, não deu hoje a gente faz amanhã”. Lá não meu filho, você tem um jornal pra colocar no ar e você tem que correr. (ENTREVISTA, Erivelton Rodrigues, 2016).
Ah, essa luta contra o tempo! Uma verdadeira batalha a ser enfrentada todos os dias. O tempo programado da Faculdade se esvai, evapora, e o presente demarca um tempo sólido. O hoje, a presentificação do trabalho exige outra compreensão da realidade. Quando a dificuldade de realizar a matéria na edição do hoje poderia ser deslocado para o amanhã, como na Faculdade, era possível dominar o tempo nesta longitude temporal. Mas agora, é necessário realizar outro dimensionamento. Há outro problema adicional: Erivelton Rodrigues descobre que não se trata de um movimento restrito ao subjetivo, ao eu, para dominar o tempo. Mas há o tempo dos entrevistados; o tempo de resposta das fontes; o tempo das ideias para as pautas; o tempo de entrega da produção para ir ao ar. E nesse círculo de aprendizado de lutar contra o tempo, é preciso interrogar aqui qual qualificadora se pode apontar para o tempo do público, do telespectador. Será que há um tempo em que se pensa no público em meio a todo esse processo de luta? Eis o novo dilema. Erivelton Rodrigues reformula a concepção de jornalismo diante do tempo e se esvai então com a visão romântica nascida da adolescência. A pergunta, levada ao entrevistado, é direcionada especificamente para o mercado de trabalho: a imagem que você tinha do mercado de trabalho quando era estudante de graduação alterou depois que você entrou na TV? A resposta é exteriorizada por dois sentidos. O primeiro é necessário percorrer os dilemas de formação e constatar que é possível identificar nas discussões postas pelo 33
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entrevistado. Para quem escreve o jornalista: para sua satisfação pessoal, para a empresa ou para o público? A resposta parece ser materializada na figura do editor de texto. E então uma das perspectivas que conduziu Erivelton Rodrigues ao jornalismo é colocada em debate em seu íntimo ao ponto de identificá-lo com frustração: Sim, mudou. Eu acho que acontece com a maioria, primeiro sob o aspecto ideológico mesmo, que você entende que você está trabalhando pra alguém, que aquela empresa tem ali, sua ideologia, política ou não. E ali você vai atendê-los em parte. Se achar que não tá bom pra você, que você não consegue, ai você tem que puxar o barco. Então essa ideia romântica você já quebra um pouco na hora que chega no mercado. Você vai fazer jornalismo e acha que nossa eu vou mudar o mundo, fazer não sei o que, ah, não sei que. Você pode até dentro desses limites que o próprio mercado impõe, você tentar trabalhar pra mudar a vida das pessoas. E aí você não deixa de tudo aquela essência que era tentar mudar alguma coisa ou pelo menos mudar a vida de alguém, né? Mas que você vai ter a liberdade pra isso sempre, você não vai ter. A cima de você tem muita gente pra decidir o que que vai ou não ao ar e aí, não que isso seja um erro ou um acerto, mas é a realidade e a gente tem que trabalhar com ela. Então houve frustração sim. (ENTREVISTA, Erivelton Rodrigues, 2016).
A realidade do mercado conduz o recém-formado à frustração ao ter de enfrentar no cotidiano a posição ideológica da empresa. Finda a visão romântica é hora de se perguntar: fazer jornalismo possibilita mudar a vida das pessoas? Erivelton Rodrigues revela que esse sentimento de mudar o mundo vai sendo delimitado até o ponto de conseguir entender que está sob um conflito de determinação hegemônica. O que significa que é preciso considerar que não se é livre para fazer o que quiser no mercado de trabalho. Mas que, por outro lado, não há um determinismo hierárquico que o remeta somente a reproduzir a lógica ideológica da empresa. O mais importante é não perder “a essência” que conduz o jornalismo para mudar as pessoas. Essa nova realidade, da luta contra o tempo, não alivia em qualquer momento. Entrar em uma redação é instigante porque você desconhece o que irá encontrar no seu dia de trabalho. Essa imprecisão traz também como decorrência esse sentimen-
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to de luta diária. E o sujeito nutre em si mesmo um sentimento contraditório: para se firmar profissionalmente, seu mergulho no cotidiano o leva a investir e com isso a gostar do tempo; por outro lado, esse tempo que se estabelece o prazer não é o mesmo tempo controlado pelo outro. A imprevisibilidade não está somente nos fatos, mas mesmo na enumeração das vitórias que se conseguirá para que o cotidiano não passe a ser transfigurado em rotina. Às vezes você pensa que é uma coisa mais calma, mais tranquila. E aí você chega naquele ambiente de tensão, que você aprende a gostar com o tempo e a lidar com ele com o tempo, mas você chega naquele ambiente que eu te falei, você lutar contra o tempo é muito difícil e quase sempre a gente perde, né (risos). Então é muito difícil, então mudou muito também sob esse aspecto. (ENTREVISTA, Erivelton Rodrigues, 2016).
O riso seguido da confissão, “quase sempre a gente perde”, revela o quadro de memória de tensão e conflito em que o entrevistado dimensiona sua historicidade. A questão agora é interrogar se nesta concepção, em que a empresa muito mais de fine o texto e o subjetivo quase sempre se perde, será que o jornalista não perde a defesa da causa social enquanto mergulha nesta luta contra o tempo? Para qual público escreve o jornalista? A afirmativa vem com o estado condicional já revelado aqui por Erivelton Rodrigues: Eu acho que você... que a gente consegue ter uma certa visão de pra quem a gente está escrevendo. Tem uma certa autonomia, de que forma vai escrever pra esse público, mas sabendo que vai passar por alguém que vai avaliar aquilo. Aí a decisão de ir ao ar, daquela forma ou não, é uma outra questão, mas é que a gente tem essa consciência de pra quem a gente está escrevendo. A gente tem e o que a gente quer colocar naquele texto, mesmo que tenha uma direção ou outra ali já pré estabelecido. A questão do tempo influencia nesse resultado final também, apesar da gente ter essa consciência nem sempre a gente consegue fazer exatamente da forma que você gostaria de fazer, com todos os detalhes, de contar aquela história que você queria, por conta do tempo as vezes você não consegue. (ENTREVISTA, Erivelton Damião dos Rodrigues, 2016).
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A consciência de que o trabalho jornalístico é dedicado para mudar a realidade do social, mas não se tem essa autonomia. A atuação está definida pela determinação hegemônica. E atrelado ao caráter ideológico da empresa, há o fator tempo. Para que o jornalista consiga vencer é preciso atuar com ética, ouvir todas as par tes, produzir um ótimo texto que contribua para a crítica da realidade social dentro do espaço ideológico e ter tempo de experiência vivida suficiente para que consiga atingir a profundidade. Essa é a consciência que demarca o desafio da profissão. Torna-se aqui importante passar ao questionamento que demarca esse debate: o trabalho do jornalista pode ser considerado como histórico? Erivelton Rodrigues afirma que sim. O primeiro aspecto é entender quais elementos ele traz como justi ficativa para responder esse dilema: Ainda seguindo aquela ideia de que denunciando as coisas, trazendo algumas coisas pra discussão, você consegue mudar muita coisa, trazer coisas novas... seja em qualquer área, na saúde, na política e isso faz parte da história, né? Fica tudo registrado e acho que o jornalista tem um papel importante nisso, e eu vejo esse papel como parte da história. Cada coisinha que você consegue mudar, seja numa discussão micro ali ou macro, faz parte da história gente. O que as pessoas tão vivendo é o que vai ficar. (ENTREVISTA, Erivelton Damião dos Rodrigues, 2016).
Esse trazer algumas coisas para discussão está diretamente vinculado ao anseio trazido da adolescência ao ressignificar o sentido da matéria publicada do Jornal Mural e no Jornal da Cidade. No entanto, a complexidade da fala reside da passagem da afirmativa do sujeito jornalista que denuncia para o sentido “tudo fica registrado”, como se estivéssemos recaindo no tema do suporte tecnológico em vez da pessoa. O questionamento sobre esse dilema segue porque não se trata de responder a pergunta de forma genérica, mas a partir do contexto narrado pelo sujeito entrevistado. E então o questionamento se efetiva: e você acha que na velocidade com que são produzidas
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as informações, como você nos narrou, será que o jornalista quando está produzindo a matéria, ele tem consciência de que está fazendo história? Eu acho que nem sempre. Vez ou outra, num assunto mais relevante, talvez, mas essas pautas cotidianas, eu acho que talvez passe batido, você tá preocu pado em chegar ali, entregar o produto e pronto. (ENTREVISTA, Erivelton Damião dos Rodrigues, 2016).
É provável que as pautas cotidianas passem batido. Ou seja: que se produza jornalismo com ausência da consciência de que se faz história. E desta forma sobrevêm o diálogo entrecortado por duas respostas que parecem díspares. A afirmativa anterior de que acredita que o jornalismo é histórico. E depois, que nem sempre está consciente que se faz história pois está preocupado em entregar o produto e pronto. Como é possível afirmar que o jornalismo é histórico se o jornalista que produz o jornalismo, não tem consciência de que ele está fazendo história? A história é o registro do tempo ou é o processo de construção textual no momento em que se escreve? Ai é que tá, é... talvez por essa questão de eu falar de... de não haver é... um... deixa eu ver como que eu vou explicar... das coisas ocorrerem de maneira parcial, em alguns momentos a gente tem consciência de que faz história, em outros não. Às vezes na correria do dia a dia, em algumas coisas a gente deixa passar batido, em outras não, a gente tem consciência de que tá fazendo história, por exemplo, num processo eleitoral que chama mais atenção, você sabe que você tá... da responsabilidade sua ali num debate, numa matéria. Assuntos políticos, por exemplo, sempre, por exemplo, chamam atenção nessa parte, nesse tipo de responsabilidade do que que você vai cativar ali, e às vezes alguma outra pautinha cotidiana por conta da correria pode ser que passe batido, e ai como eu disse: pode ser, que passa batido (risos). Então acho que como não tem um 8 e nem um 80, por isso, é possível fazer história dessa forma. (ENTREVISTA, Erivelton Rodrigues, 2016).
A resposta não estava sendo elaborada para se recair num maniqueísmo, em que a tônica poderia ser materializada ou oito ou oitenta. Mas no caminho dialético em que o sujeito entrevistado percorreu até este momento. O problema que se efetiva é 37
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entender o que se refere a pauta do cotidiano, que pela correria passa batido em relação às pautas do que se identifica como assuntos políticos. É provável que não se trate de assuntos políticos mas de personalidades políticas. Pois é justamente o cotidiano, a cultura como política, que se efetiva um posicionamento do sujeito diante da realidade. A finalização deste embate veio com outra resposta inesperada, que o entrevistado conceitua esse problema teórico. O que edifica a produção jornalística como história seria então o suporte na qual se faz o registro? Seria porque se faz dez anos que foi publicado que se torna história? Se no momento que se produz, o jornalista não tem consciência de que faz história e realmente pra ele foi batido, porquê daqui a 10 anos se tornará história? E a resposta veio em tom de mudança conceitual da percepção, que até então sustentava o discurso de Erivelton Rodrigues, para o da experiência vivida. Mas eu não diria que história é feita só de ato consciente, não, né? É de vivência, não importa se tem consciência ou não daquilo, mas é de vivência... Ainda que fosse sinalizado um problema, mesmo que fosse na imprensa, em determinado período, acho que faz parte da história. É preciso discutir isso entendeu, com tempo, e ver que rumo seguir, né? Também é história, ainda que fosse um problema, a gente constatasse um problema na imprensa como pode ser sugerido, é história. (ENTREVISTA, Erivelton Rodrigues, 2016).
A história não é feita somente de ato consciente, é de vivência. A justificativa em primeiro momento se apresenta plausível, pois traz para a produção de sentido outros elementos para além da razão. É assim que Erivelton Rodrigues estabelece a vivência como ponto nodal. O fator primordial aqui é compreender os limites dessa vivência no processo de produção jornalística já relatado pelo entrevistado. E que sinaliza que nem sempre se consegue vencer ao enfrentamento da determinação hegemônica. A resposta traz a tônica novamente a pergunta: se é história, que narrativa histórica estamos contando por meio do jornalismo?
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É sintomático que durante o diálogo, o entrevistado tenha citado a crise do jornalismo atual em que o público começa a fazer crítica sobre determinadas coberturas. É provável que esse seja o caminho estratégico para que ele possa sair desta ci lada teórica em que se mergulha ora pelo cotidiano, ora pela rotina. Se o jornalismo é produzido para o bem comum, nada melhor do que o público realizar produção de sentido oposicional ao que é produzido na redação, para se contrapor às grandes derrotas ideológicas no espaço comunicativo. É claro que será um embate a ser ainda provocado em sua realidade e que a filosofia, cursada em dois anos, possa lhe ajudar como pensamento crítico. Qual o conceito de jornalismo de Erivelton Rodrigues? A resposta é simples em sua complexidade: O que é jornalismo? Eu não iria muito além do que eu disse sobre a essência não. Acho que é você informar e ir em busca do bem comum, acho que é por aí. Quando você tiver pensando que aquele tipo de informação vai trazer benefícios pros outros e talvez pra você mesmo, acho que tá indo no caminho certo, quando algo te impede de fazer isso, talvez seja o momento de repensar. (ENTREVISTA, Erivelton Rodrigues, 2016).
Quando algo te impede de fazer isso é o momento de repensar. As fissuras identificadas no mercado de trabalho estão sendo, aos poucos, sendo coladas. O ponto de referência revela ser ainda aquele texto da adolescência do Ensino Médio. Jornalismo, na essência do conceito do entrevistado, é informar e ir em busca do bem comum. Na fissura do informar, Erivelton Rodrigues deu o primeiro salto para a resolução. No período da entrevista, ele cursava o segundo período da graduação de Letras. A proposta é ajustar aquilo que faltou na primeira graduação para que possa utilizar no mercado com qualidade. Melhorar o texto é um primeiro passo para se posicionar na profissão. Como as atitudes nem sempre são isoladas, justamente no momento em que busca se qualificar para o jornalismo, a graduação em Letras revigora o sonho de criança de ser docente. O entrevistado procura esclarecer que não há aqui qualquer 39
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possibilidade de deixar o jornalismo. No entanto, sabemos que por se tratar de história vivida, de experiência, de dialética do cotidiano, a resposta não pode ser desferida como se optasse por oito ou oitenta. Os caminhos serão definidos nesta produção de sentido em que o sujeito, no presente, irá problematizar a sua vida. A luta contra o tempo, a ressignificação das grandes derrotas e das pequenas vitórias serão o peso para que a narrativa de sua história de vida tome outros sentidos. E por sinal, estenda, para além da redação, em outro espaço, agora da faculdade, para que possa utilizar como campo nesta luta. Assim como o tempo na redação, o futuro se apresenta imprevisível para o presente. Mas é no movimento da memória de analisar o passado que Erivelton Rodrigues vai relevando os conflitos que se lançará para que o seu conceito de jornalismo se concretize como consonância da sua produção de sentido da realidade vivida.
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Capítulo 2
Sandra Satiko Kikuchi
TV
A produção de sentido do conhecimento
O
momento da vida em que Sandra Satiko Kihuchi aceitou o convite para o diálogo da entrevista na pesquisa é sintomático: trata-se do período em que a jornalista se retira da vida profissional para se ingressar no
mundo da vida como aposentada. A aposentadoria está distante de ser interpretada como uma decisão que se efetiva do dia para a noite ao sujeito. Mesmo em condi ções que é tomada como ação pragmática, o ponto essencial está em saber que é impossível avançar na decisão de se aposentar sem se desvencilhar da memória. E neste processo de reflexão do passado como crítica ao presente, ou do presente como dilema do passado, Sandra salta do deslumbramento do ser jornalista para a o estado atual de decepção. Talvez seja por isso que Sandra Satiko explique que a história de sua formação acadêmica é meio complicada. O primeiro aspecto é sobre o espaço em que concretizou a graduação. Sandra Satiko iniciou sua jornada acadêmica ao ingressar pelas Faculdades Integradas São Tomás de Aquino, em Uberaba, FISTA. Depois de dois anos a FISTA foi encampada pela então FIUBE (Faculdade Integrada de Uberaba), que hoje se trata da UNIUBE. Em 1983, a entrevistada acabava de se formar em Comunicação Social: Jornalismo pelas Faculdades Integradas de Uberaba. A decisão de optar por jornalismo veio amparada pela experiência vivida da família com atuação profissional na área. Primeiro, o fascínio pela área de comunica-
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ção instigado pelo programa de rádio de responsabilidade dos primos, em Uberaba, Triângulo Mineiro. O segundo aspecto é decorrente da convivência. Então assim, já veio meio que uma coisa pronta. Meu pai tinha um bar bem tradicional lá em Uberaba e era muito bem frequentado por jornalistas, por músicos e etc. Então eu convivia muito com comunicação sabe, com gente que aparecia na televisão, gente que falava no rádio. Então aquilo me despertou certo interesse e entusiasmo também, sabe, convivendo com aquilo. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
E o mergulho no passado acrescenta também uma identificação de um fato, mais precisamente de uma característica sua, que releva um suposto ponto de origem na experiência vivida para o rumo que tomou na graduação. Por isso, Sandra Satiko afirma que sempre teve como primeira opção fazer o curso de Jornalismo. Mas sempre foi o Jornalismo, mesmo no tempo de estudante, eu sempre era oradora e eu lia os textos. Eu tinha mania de narrar como se eu já tivesse fa zendo uma reportagem. Então já é sempre o Jornalismo. Nunca tive dúvidas, nunca. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
No horizonte, de 1983, para o salto da sua aposentadoria, de 2016, há algo sintomático que conduz o discurso de Sandra Satiko para o outro extremo. Ou mais precisamente, para que a conversa recente com o filho, em vez do fascínio, ter superado em seu espírito o conselho de negativo para seguir a carreira de jornalista. A pergunta era sobre uma hipotética avaliação, de caráter impessoal, mas Sandra Satiko empregou como experiência vivida. Se tivesse alguém hoje em dúvida de prestar o vestibular e chegasse pra você dizendo que havia decidido fazer Jornalismo. Qual seria o seu comentário? E assim que a resposta veio com a revelação da situação vivida: o filho comentou: “Mãe, vou fazer jornalismo”. E ela respondeu em tom direto: “Não, não faça. Se você for fazer jornalismo vai fazer 5 línguas e vai embora de Uberlândia, vai fazer fora’. Isso eu tô contando do meu filho. Agora pras
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pessoas que falam que vão fazer, ‘vai, e faça bem feito’. Tudo na vida tem que fazer muito bem feito. Se a pessoa for só pra querer ser mais um rostinho bonito na TV ou fazer um blog, desiste que pra fazer blog não precisa ser jornalista. Pra aparecer na Televisão não precisa ser jornalista. Acho que a pessoa tem que procurar outro rumo. Fazer jornalismo é estudar, aprender, ler, sabe? É um autor, um dos, autores da história do Brasil. Faça com amor e bem feito. Só que meu filho eu não quis não. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
E de que forma a afirmativa de Sandra Satiko se estabeleceu como crítica para convencer o próprio filho a entender que fazer jornalismo, a profissão que atuou durante toda a vida, não compensava. A primeira ordem da crítica estava voltada essencialmente para o financeiro. Falei pra ele que achava que não compensava. Eu acho que eu tive sorte, de ter entrado na universidade, conseguido um bom emprego. Porque eu tenho muitos companheiros ganhando 1.500 reais. A minha ajudante ganha 1.200. Minha empregada, ganha 1.200. Trabalha feito um cavalo. É uma profissão mal remunerada, mas não é por conta do mercado, é por conta do jornalista que aceita um salário barato em troca do estágio, fazer um trabalho de graça pra poder aparecer, ganhar ingresso. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
Esse aceitar um emprego, barato ou quase fazer um trabalho de graça leva Sandra Satiko a comentar sobre a ética na profissão. E no seu reverso, ela denuncia como prostituição. A denúncia deixa de se ater à desvalorização do mercado ao trabalho do jornalista, que poderíamos entender como ordem estabelecida pelo sistema capitalista. Mas avança agora no plano subjetivo, que ora se apresenta como conflito ético da categoria. Quando alguém se apresenta para produzir um trabalho com a proposta de receber aquém ou até mesmo deixar de receber, o que se faz : É prostituir a profissão. Aí, por exemplo, fazer uma boa produção de vídeo. Você cobra 250 reais a diária, aí vem uma bonitinha e fala que faz de graça pra aparecer no set, aparecer perto do ator. Então o próprio estudante, o próprio jornalista que tá começando, ele mesmo se prostitui. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
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E a pergunta que se encerra neste comentário crítico sobre a profissão tanto na ordem da remuneração do campo profissional, quanto no questionamento da identidade subjetiva, Sandra Satiko retoma da temporalidade do presente e faz uma pergunta em busca de outros sentidos interpretativos sobre a realidade. E assim, ela materializa uma pergunta existencial: “Vocês na sala de aula discutem isso?”. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015) Antes de finalizar com a resposta no presente, é preciso compreender o complexo caminho do fascínio da profissão provocada pela família ao desencantamento de Sandra Satiko referente às pessoas que levam o jornalismo para uma marginalidade, em que a resultante está na própria objetificação do sujeito. O fascínio do jornalismo enquanto representação sobreveio à leitura crítica da realidade quando Sandra Satiko entrou na universidade. A expectativa do curso se transfigura em um sentimento que ela distancia de frustração e podemos aproximar de produção de sentido. Pois é do sentimento de se “sentir uma ignorante assim, entre aspas, porque eu pensava que sabia muita coisa, mas eu não sabia nada.” (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015) E o diagnóstico estava em enfrentar os seus próprios dilemas sobre o conceito de conhecimento. Aquela coisa de jovem. Não sabia nada de história do Brasil, que eu estudei durante o colegial, não era nada daquilo. Então eu recomecei, sabe! não sabia o que tinha acontecido no Cangaço...Isso tudo a gente discutia na faculdade, através de livro e discussão. E coisas que eu achava que sabia, que não precisava mais. Aí muito pelo contrário, aí que eu e meu grupo a gente começou a estudar mesmo, a conhecer a história do Brasil. Isso depois que eu entrei na faculdade. Foi isso, eu fiquei deslumbrada, deslumbrada em aprender e estudar e desbravar as coisas, sabe? (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
É sintomático entender esse relato de Sandra Satiko. Ao entrar na universidade, ela tinha, por experiência vivida no Ensino Médio, determinada concepção do que é conhecimento. Mais especificamente, ter domínio da história do Brasil. E assim que mergulha no plano acadêmico, aos poucos vai se desvelando que aquilo que
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considerava profundo, ao ponto de se tornar conhecimento em sua realidade vivida, se apresenta como superficial. Ao ponto de considerar que, na verdade, nada mesmo sabia. E aqui se torna importante desferir a pergunta: quais são as consequências ao sujeito que identifica o limite de seu conhecimento sendo levado a interrogar sobre o seu próprio sentido de sujeito histórico? O que a conduz ao sentido da frustração, de esvaziamento daquilo que se sabe, se reverte para outro plano. Os livros, a leitura atenta, as discussões passam a constituir um significado que a alimenta como estudante de graduação e aos poucos vai tomando corpo no próprio conceito que a entrevistada efetiva sobre o que é ser jornalista. Ao retomar a explicação sobre o porquê não gostaria que o filho seguisse no jornalismo, Sandra Satiko indaga que “fazer jornalismo é estudar, aprender, ler”. No momento em que se descobriu ignorante na universidade, Sandra Satiko mergulhou, pela própria experiência vivida, na discussão complexa epistemológica sobre: o que é conhecimento? E assim, a memória coletiva se efetiva. Não se trata de um movimento solitário, cujo vazio teórico entra em um caminho perigoso de imediato preenchimento, em que se perde a referência do que se trata como informação e do que se efetiva enquanto saber. Pelo contrário: o deslumbramento a leva a pensar em toda a sua vida e ao mesmo tempo refletir sobre o sentido da realidade vivida. E assim, o grupo do qual ela se identifica por pertencimento, toma a decisão de estudar com afinco para conhecer, não mais de forma superficial, mas de modo profundo a história do Brasil. Trata-se aqui de identificar que Sandra Satiko está, no primeiro plano de ingresso na universidade, submetida a uma problemática epistemológica cíclica. Mas em que medida poderíamos denominar que esse novo conhecimento que se desperta pode ser considerado como profundo? A resposta está nesse dinâmico movimento do jornalismo de estudar, do cotidiano da profissão sempre dispor uma realidade que permite o aprender e ao mesmo tempo o sujeito jornalista não pode se indispor 47
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de realizar a leitura. E é desta forma que a história, o conhecimento acadêmico passou a ser desbravado. E é neste ponto que somos levados a outro estado de interrogação: quando a expectativa do curso se desmorona na produção de sentido do cotidiano, em que base passa a sustentar a construção da identidade do sujeito? Para a resposta a essa indagação temos de recorrer a memória de formação teórica de Sandra Satiko. Não é de se surpreender que uma das disciplinas que ela traz como referência para sua formação seja a de Cultura Latino-americana. A justificativa era que a sala gostava muito, e que “era um professor massa”. Mas do que se tratava essa disciplina que materializa o concreto do deslumbramento da entrevistada no ato de desbravar o conhecimento? Sim, a gente estudou todos os países da América Latina, suas culturas, costumes, sabe? Foi bastante interessante. E tudo assim, eu me lembro que a gente tinha que apresentar trabalhos e a gente pesquisava muito, mostrava slides, tirava foto, sabe? Era muito bacana. Essas coisas que não dá pra esquecer. Fica um pouco complicado, professor, por causa disso. Eu não tenho o histórico aqui pra gente lembrar assim, e quantos anos tem isso. Pelo amor de Deus, mais de trinta anos. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
Há duas decisões que possibilitam entender o caminho percorrido pela entrevistada na produção do conhecimento. A primeira decisão é sobre o trancamento da disciplina de Estatística, que teve no segundo e terceiro períodos da universidade. O motivo do trancamento está explicado pelo descompasso entre essa vontade de escrever e os números e estatísticas levados nessa disciplina. Então eu achei estatística meio chata. Então eu tranquei e deixei pros últimos períodos. Aí eu gostei. Por que? Porque eu já tinha uma noção do que era o Jornalismo, das coisas e como eu iria usar a estatística nas matérias. Então se tornou algo mais atraente, me lembrei muito disso. Que eu até fechei rapidinho, porque ela passou a ser interessante depois que a gente começou a redigir matérias e estatisticamente informar as pessoas do que é que você estava fazendo e de que forma aquilo era feito. Então foi uma matéria que eu achei bastante interessante. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
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No momento em que o eu de Sandra Satiko buscava a compreensão da história do Brasil, na complexa relação da ignorância que se comunga com o próprio sentido do que é o conhecimento, ela se defronta com o horizonte de estatísticas. A ausência de sentido a leva a fazer o trancamento. E o olhar do final do curso para o início requalifica a disciplina de chata para atraente. O que significa que a construção do percurso para o saber desencadeado por Sandra Satiko não só edifica uma problemática desta disciplina no campo do jornalismo, como desvela a estrutura da qual a entrevistada passou a nutrir sobre o sentido do que é saber. A estatística submetida ao sentido da escrita do texto, para a produção da matéria. De outro lado, a segunda decisão, é sobre as disciplinas com ênfase na produção nos laboratórios. “Agora as outras, que são laboratório de fotojornalismo, cinema, a gente tinha cinema, fotojornalismo, jornal laboratorial, psicologia, é isso que mais chamava a atenção”. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015) A produção técnica dos laboratórios se fizeram em um bom momento de construção de saber de Sandra Satiko. E é por isso que ela não pensa duas vezes para afirmar que teve uma boa formação teórica. Ao orientar o elemento teórico no cumprimento de disciplinas práticas, temos de identificar que outros fatores estão adicionados nesta frase, que nos permite ultrapassar o sentido da instrumentalidade. Um bom exemplo desta produção está no relato de algumas dessas disciplinas. Sandra Satiko enumera que teve excelentes professores na parte de produção. E enquanto desvela o método empregado por cada um desses nesta produção de sentido deixa nos ver um distanciamento de como fazer jornalismo na década de 80 no processo do presente da sua aposentadoria. Foi uma época muito diferente da de hoje. Que a gente tinha tudo que se virar, pra gravar um programa de rádio, por exemplo. A gente tinha que se fechar em um quarto, e não existia estúdio na faculdade. Vou por etapa. Como não existia estúdio na faculdade, a faculdade alugava estúdios da cidade de Uberaba. Então você tinha uma hora pra ficar dentro do estúdio e você já ti 49
Gerson de Sousa nha que levar tudo pronto, roteiro e tudo. Outras vezes a gente gravava na casa dos amigos, e um aumentava o som, aí você falava alguma coisa. Eu acho que um amigo meu tem gravado um dos programas. Então já estava tudo no roteiro “vai começar o jornal não sei o que”. Aí ele subia o som. Era tudo mecânico, tudo na mão. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
Era tudo mecânico, tudo na mão. O problema do estúdio, longe de se tornar frustração, passou a ser outro elemento de desbravar para se produzir o conhecimento. Para fazer programa de rádio, tinha de deixar tudo pronto, o que nos revela: é preciso conhecer e saber aprender a fazer todo o processo. Esse mesmo dilema, agora revertido em encantamento, Sandra Satiko submeteu às outras disciplinas: Cinema, era uma câmera pro curso inteiro. Então a gente saía pra fazer, aí editava, tinha que cortar e tudo. Aí não era só filmar, você tinha que conhecer a história do cinema, conhecer a máquina, como que era, como era o funcionamento da máquina, como se montava, como desmontava. Fotografia, fotografar, revelar, ampliar, secar. No jornal, já era o jornal mural, era um jornal que a gente pregava na parede da cantina da faculdade e lá pro final do curso já tinha um jornal que chamava “Enfim”. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
Se por um lado a jornalista revela os motivos que considera ter tido boa formação teórica, mesmo em disciplinas práticas, por outro é necessário fazer outra indagação. A jornalista fez parte de um período em que no curso de Jornalismo não havia a exigência de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Mas será que essa experiência a deixou com alguma falta em sua formação? Sandra Satiko diz que o TCC não fez falta porque o conhecimento produzido na faculdade foi bom. No entanto, acrescenta uma frase que nos leva agora a interrogação da sua experiência no mercado de trabalho: “o conhecimento que eu tive foi muito bom, mas a prática eu acho que a faculdade não te ensina não”. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015) A primeira indagação que poderíamos fazer dessa última frase da jornalista é sobre o seguinte elemento: de qual prática Sandra Satiko está realmente pondo em negativa? Isso porque a descrição de boa formação teórica está vinculado exata50
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mente às disciplinas de laboratório, em que o exercício prático de entender a totali dade de determinados meios nos conduziu a entender o método. A revelação da jornalista se fez aos poucos, com os questionamentos em que a entrevista se seguiu para tentar entender essa complexa relação de aprendizagem, conhecimento e ignorância. Sandra Satiko diz que teoricamente se sentia preparada para atuar no merca do de trabalho. Mas na prática, se sentia insegura. E depois que estava atuando profissionalmente, esse discurso só passou a ganhar mais corpo: “mas não adianta, depois que você começa a trabalhar, a prática é totalmente diferente da teoria”. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015) E assim Sandra Satiko expõem essa fragilidade ao responder a pergunta sobre: o que falta na teoria? Não, eu acho que falta a prática dentro da universidade. Porque naquela época, professor, a gente não tinha o que tem hoje. Essas faculdades que dispõem de laboratório, de estúdio, de recursos da tecnologia, na nossa época não tinha isso, você tinha que se virar nos 30. E aí você me perguntou do que eu senti falta, é isso. É o medo, né, então você tem que meter as caras. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
A frase pode ser entendida pelo sentido irônico da experiência vivida. Sandra Satiko revela como positivo, na construção do conhecimento, que as disciplinas as conduziu a desbravar por meio de uma produção mecânica, artesanal, o sentido do jornalismo. Mas ao mesmo tempo em que produzia esse sentido, o medo de enfrentar outros espaços em que a tecnologia se fazia presente a levou a essa outra condição de crítica. Entretanto, engana-se se vincularmos que o único sentido de crítica da jornalista se faz pela questão do manuseio tecnológico. O que mais a jornalista sentiu falta da formação na universidade quando chegou na redação jornalística é ética: A ética, agora, a ética, tem colega de escola que eu não fui com a cara dele no primeiro semestre e até hoje não vou. Eu acho que a índole vem com a pessoa. Ou a pessoa é ética ou não é, eu acho que já nasce assim, eu acho que você não cria uma pessoa. A personalidade da pessoa eu acho que ela já é nata. Mas assim, te ajuda, claro. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015) 51
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É importante entender esse tom de crítica à profissão sobre a ética no jornalismo. Mas, ao mesmo tempo, o sentido da frase nos conduz a entender um alongamento da temporalidade do passado, da graduação, e de hoje, em que se aposenta. O colega da escola do primeiro semestre, da década de 80, e que até hoje, três décadas e meia depois, ela questiona seu caráter, materializa esse salto da memória de Sandra Satiko. Se visualizarmos de forma rápida, é provável chegar a conclusão que a entrevistada está argumentando do passado para o presente, num sistema contínuo da história. Uma pausa pouco mais demorada, nos remete a entender que esse dilema é do presente como reflexão do passado. Pois a acusação de falta de ética está justamente neste fator de que não se pode alterar com o tempo. Só tem sentido compreender esta frase se levarmos em consideração que a jornalista acreditava nesta possibilidade. Ao se defrontar com a continuidade deste elemento que ela considera gravíssimo, ao ponto de se frustrar na profissão, só há uma forma de apresentar para si mesmo uma justificativa conceitual: “acho que já nasce assim”. O problema da frustração do presente mergulha em outro problema conceitual para analisarmos a entrevistada: a retirada do conceito de ética do processo de construção histórica do sujeito para a naturalização, quase que biológica. Este momento é imprescindível retornarmos para as explicações sobre a experiência vivida da jornalista no mercado de trabalho para se compreender o sentido desta crítica e evitarmos, incorrer em generalização. Como se trata de ponto de origem, é possível aqui enumerar e descrever os espaços em que Sandra Satiko atuou como profissional. Ela relata que a primeira experiência começou enquanto estudante a ajudar um amigo: tinha um projeto em Uberaba que chamava Circo do Povo. Que era um circo itinerante que ficava nos bairros e ia coletando, conhecendo, descobrindo novos talentos do bairro, e no final de semana eles se apresentavam. E eu fazia esse serviço com ele, de procurar novos talentos. Então já comecei ali. Acho 52
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que no segundo ano de faculdade, eu já trabalhava com produção achística lá do circo. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
Em seguida Sandra Satiko fez outros caminhos. Trabalhou na Fundação Cultural de Uberaba onde arquiva fotos, fotografava, e levantava histórias da cidade. Mas a experiência como jornalista veio mesmo no Jornal da Manhã. porque tinha uma vaga lá de repórter fotográfico. E eu falei “Lidia me dá uma semana, duas semanas, pra eu ver se é isso, se eu dou conta”. Aí dei, aí comecei como repórter fotográfica de lá. Aí a Lidia que era proprietária do jornal me pediu pra eu começar a escrever algumas matérias, eu não tinha me formado ainda. Acho que não tinha, quando eu trabalhava lá. Não, tinha. Aí depois que ela me registrou. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
A outra experiência começou após fazer e ser aprovada em um teste na TV Integração, em Uberlândia. Depois nunca mais voltou a atuar profissionalmente em Uberaba. “E na TV, fiz a matéria, gostei, nunca mais voltei”. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015) No período da entrevista, Sandra Satiko encerrava sua carreira profissional de jornalista na equipe da Rádio e Televisão Universitária da Universidade Federal de Uberlândia. Essa descrição da atuação profissional de Sandra Satiko nos permite então compreender as questões que a levaram a se interrogar sobre esse distanciamento entre a prática vivenciada na universidade e prática no mercado de trabalho. Neste percurso da memória da entrevistada, ela revela, em primeiro momento, um pequeno desvio. Mas procura apresentar um primeiro indício: É porque eu to confundindo aqui com a rádio universitária e com o tempo de escola. É experiência, né. Tem um amadurecimento, porque você chega crua. Você sai com um trabalho acadêmico pra ir pra um mercado profissional. É igual quando você forma “ixe, e agora, amanhã não tem aula mais, acabou”. Vida nova, independência. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
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A narrativa revela que essa vida nova, essa independência está dominada por um fascínio teórico, mas dominado por uma insegurança prática. Então o caminho para sair deste complexo círculo de se defrontar com a liberdade da vida nova pós aulas é descobri-la encerrada em uma insegurança. E como é possível sair deste estado de conflito? Por ironia do destino, o enfrentamento no mercado de trabalho veio justamente em uma disciplina que a jornalista revela ter tido pouco na prática: o telejornalismo. Ela revela que não tinha na estrutura curricular a disciplina de telejornalismo. E do conteúdo que lembra é porque aprendeu no curso de cinema. O primeiro desafio de sua careira, para retomar a confiança em si e, com ele o deslumbramento, veio na raça: passar em um teste da TV Integração. Eis o triunfo da subjetividade frente ao indeterminado da estrutura profissional. Ao ser indagada por mais de uma vez sobre qual a distância entre a prática na universidade e a prática no mercado de trabalho, Sandra Satiko nos revela o momento em que o jornalismo se fez como sentido de vida nova: É o dia a dia. O dia a dia e responsabilidades. Só de ter ficado, claro, quando você se submete a um teste você tem que mostrar competência, porque você quer ficar. Então assim, já é um triunfo. Então quando isso já acontece te dá mais força. E aos poucos que eu fui adquirindo essa segurança. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
A segurança profissional foi sendo adquirida sim aos poucos, no dia a dia em que se exige a responsabilidade do jornalista em seu trabalho com o outro. A diferença da prática da academia para a prática do mercado é esse cotidiano em que o sujeito é levado para a produção de sentido. E a jornalista iniciou esse processo para desbravar essa nova realidade que a conduziu novamente da revelação do estado de ignorância para a produção do conhecimento. No começo, os companheiros foram dando dicas técnicas sobre o procedimento para produzir as matérias. E assim a insegurança passou novamente para o deslumbramento:
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Quando você vê uma matéria sua no ar, professor, é o trem mais bom no mundo. A sensação é de satisfação, sabe? É do seu trabalho, de você atingir as pessoas com uma informação verdadeira, que está fazendo bem pras pessoas, porque você está alertando ou de utilidade pública. Você tá colaborando com a comunidade. E o respaldo, né, antigamente nem existia essa palavra “feedback”. O retorno que te dá de você estar andando na rua e as pessoas falarem “ah, obrigada, você ajudou demais da conta. Nossa, resolveu.”, então você tinha, como tem hoje ainda, retorno do trabalho que você faz, que se divulga. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
O deslumbramento deixa de ser uma conquista subjetiva para demarcar a importância social do trabalho jornalístico. O esforço de aprender na raça, com os conselhos técnicos dos companheiros, se ressignificou na sociabilidade com a comunidade. E então, ao ser cumprimentada na rua, ao ver a satisfação de ver a matéria ir ao ar, a produção de sentido do sujeito se encontra em consonância com a produção de sentido coletiva. O retorno do trabalho pela comunidade, essa satisfação revelada pela entrevistada de atingir as pessoas com uma informação verdadeira, estabelece o valor do cotidiano. É por isso que a memória coletiva de Sandra Satiko, por mais uma vez, decreta esse fato como histórico. Depois do deslumbramento de ter as matérias indo ao ar, é sobre o sentido das matérias que se passa a entender o significado da profissão. Por quem se luta no jornalismo? O feedback revela que se luta com a responsabilidade de apresentar um significado do social para o social. E assim neste percurso que Sandra Satiko passou a definir o significado do que é o trabalho do jornalista: Eu fiz muito esses trabalhos culturais, até hoje um punhado de artista plástico, porque muita coisa que acontecia era porque o TN primeira edição era muito focado em cultura. Então assim, a gente fazia muita matéria cultural. E eu acho que, acho não, a imprensa ela é responsável por dar um reflexo da cultura da sua cidade. Se você divulga, ninguém sabe que tem. Ou não cresce, ou não melhora, fica ali estagnado. Divulga o seu livro, por exemplo, as pessoas vão querer comprar. Esse é o retorno que o jornalista tem. (Entrevis ta, Sandra SATIKO, Dez. 2015) 55
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Ao definir o significado do trabalho do jornalista vinculando a realização subjetiva diretamente ao cumprimento da responsabilidade pública, trata-se do momento de efetivar uma análise da sua experiência vivida no mercado de trabalho. Ou melhor: trata-se de interrogar sobre o que define em uma redação no mercado de trabalho: a ideologia individual do jornalista, a ideologia da empresa ou é o público? A resposta da entrevistada é enfática: Eu acho que tem que ser tudo junto. Mas o que predomina é a ideologia da empresa. A partir do momento que você tá trabalhando na Universidade Federal de Uberlândia, eu tô vestindo a camisa dela. Mas isso não quer dizer, existem N formas de você seguir essa ideologia. É igual eu estava te mostrando ali. Renata Neiva falou, do esmalte. Antigamente não se podia usar esmalte vermelho, era só clarinho, em TV. Hoje tá liberado. Então isso se segue. A forma de você entrevistar, hoje existe relação comercial “não é pra falar mal de…”. Não se fala mal de prefeitura. Quem sou eu pra fazer uma matéria falando mal da prefeitura? Então você tem que seguir a sua linha editorial. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
Sandra Satiko acha que tem de ser tudo junto, mas confessa que está separado. O que prevalece no jornalismo é a ideologia da empresa. Esse testemunho nos coloca diante do dilema da própria jornalista. Ela testemunha que o fascínio advindo do jornalismo é o reconhecimento público da responsabilidade social. Tanto que enfatiza os termos e frases da comunidade que mostram que se cumpre a proposta de ser crítico social. Mas ao reconhecer a ideologia da empresa, embora esteja alicerçado um discurso de maturidade profissional, deixa em aberto a interrogação: se este lugar da qual se direciona é motivo de crítica, de onde poderia manter, por meio deste ponto, a satisfação em ser jornalista? Pode-se considerar então que a entrevistada localiza agora o estado de tensão e conflito do próprio trabalho jornalístico: por um lado, está o jornalista que reconhece a satisfação individual ao escrever matérias que contribuam para a melhoria do social e que resulta no reconhecimento do público no cotidiano. Por outro lado, é o 56
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diagnóstico de que a o sujeito está sob determinação da ideologia da empresa. Esse estado só não leva a estagnação do sujeito quando ele toma consciência de que o conflito se edifica em movimento histórico. E isso distancia dela recair no discurso da naturalização. Mesmo que a senha para esse movimento esteja em detalhe: da passagem do esmalte clarinho, definido sob normas pela estrutura, para o esmalte vermelho, agora sob a liberdade de escolha do sujeito. Em que momento da história Sandra Satiko reconhece que o jornalista perdeu a referência de quem é o público. Em primeiro momento ela disse que as vezes o jornalista perde a referência do público porque está “tudo tão globalizado, entre aspas, que acho que todo mundo tem a mesma linguagem”. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015) Mas depois acrescenta que cada emissora tem público dirigido. O que significa essa perda de referência de público e ao mesmo tempo escrever mais para a ideologia da imprensa? Será que há consequências na definição sobre a história narrada pelo jornalista? A pergunta para a jornalista se faz inevitável: você acredita que nosso trabalho enquanto jornalista é um trabalho de valor histórico? E a jornalista responde de forma enfática: “Ah, total. Você tá ajudando a escrever a história da sociedade, seu bairro, sua entidade. É documento. Parte fundamental da história de tudo. Por isso daí a responsabilidade, entendeu?”. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
No primeiro momento a resposta sobre o valor histórico do jornalista é sobre a sua responsabilidade do social. O jornalista produz um documento que é possível fazer a leitura sobre a história da sociedade. E em seguida a entrevista é levada a responder outro dilema: você considera que o jornalista, hoje, ele tem consciência de que quando ele está fazendo uma matéria ele está fazendo história? A resposta ressoa como relativo ora pelo subjetivo, ora pelo coletivo da categoria.
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Gerson de Sousa “Depende do jornalista. Se não tem, deveria, minha resposta é essa”. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
É preciso entender qual o conceito de história que perpassa a construção crítica de Sandra Satiko. O jornalista deveria ter consciência de que aquilo que ele escreve tem o sentido da história. Mas ainda fica uma brecha para entender como pode um documento, que no seu processo de produção não é histórico, se tornar história. E a resposta da entrevistada é resumida. “Mas eu acho que tudo vira história”. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015). Então qual a referência que se pode estabelecer sobre o que é história? Seria o tempo do documento em vez de considerar o processo de produção? É o tempo, o tempo define. É que eu tô viajando aqui no tempo, por isso eu to meio parada assim. Porque ontem quando você me falou eu fui procurar meu histórico escolar, e eu comecei a mexer e achei um punhado de matéria que eu já tinha feito, uns roteiros, é história. E eu acho bacana quando alguém coloca lá, tem uns grupos nossos da faculdade. O pessoal começa a postar umas coisas que a gente fazia antigamente e tudo. Eu penso “porque não arquivei isso?”. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
Ao considerar que o documento, ou melhor, que o tempo em que existe o documento já o define como histórico, há uma necessidade de verificarmos que o conflito deixa da tensão do sujeito para ser objeto da mídia. Eis o sentido da pergunta do final da frase: “Porque eu não arquivei isso”. A frase remete a uma discussão premente de memória. O grupo da faculdade, do qual Sandra Satiko faz parte, posta determinadas imagens que passam a ser consideradas como importante para a memória do grupo. Mas se por um lado não foi arquivado por Sandra Satiko de forma espontânea, é porque não passou a ter relevância na continuidade do presente da profissional. É preciso aqui discutir outro impasse da memória: será que é possível você apanhar imagens de outro grupo para incorporar à sua história de vida como memória? 58
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É difícil chegar a conclusão, mas a defesa desta linha indica que não se pode edificar uma memória vivida simplesmente arquivando fotos do passado. Então nós podemos considerar que a história seria a plataforma em que aquilo fica armazenado? E a jornalista responde: “Eu acho que é um documento também. Quando você faz a matéria você não faz com o intuito dela virar história, você está registrando a história. Quem vai saber se eu trabalhei aqui 30 anos, se vai interessar também. São histórias que interessam cada público.” (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
E que histórias são essas narradas pelos jornalistas? A jornalista refaz a pergunta e responde: “Que história que nós estamos narrando? A nossa. De vida, de divertimento, de cultura. De crise.”. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015) A problemática ainda ressoa com a resposta cujo conceito de história está diluído em todos os fatores. No documento que será visto por outro daqui a 30 anos. A assinatura da matéria em que se pode comprovar que ela esteve e fez parte da redação. No fato que se tornou notícia e que está estampado nas páginas: esse é o registro histórico. Essa concepção de história produzida pelo jornalista é confrontada com outra narrativa de Sandra Satiko: a decepção com o jornalismo. Será que há alguma relação que poderia problematizar a produção de sentido histórico do jornalismo com a decepção subjetiva da jornalista? A pergunta exige, antes da resposta, um mergulho sobre o que a jornalista considera como essencial para a responsabilidade social da qual somos exigidos. E, que por sinal, é o aspecto positivo que ela traz como refe rência da memória teórica da sua formação em graduação. Para Sandra Satiko, o ponto fundamental do sentido de ser jornalista é o poder de argumentar que se transfigura em conhecimento: Que você tem o conhecimento de uma coisa e vê outra. O poder da argumentação de você não aceitar ser assim, por exemplo. É tipo quando você fala “ah, a caixa de água pegou fogo. A cobertura é sua”, aí você vai mas não questiona. “Como a caixa de água pegou fogo?”, é pegadinha, a pessoa desce e vai lá no 59
Gerson de Sousa DMAE fazer. De brincadeira, sacanagem, sabe? Já aconteceu, não comigo. É o poder da argumentação. Você ter conhecimento, professor, você argumenta qualquer coisa. Você nega uma pauta, você muda a sua pauta, você cria a sua pauta. Né? Eu acho que é por aí. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
Esse poder de argumentar retira o sujeito do estado de ignorância, do ponto de vista epistemológico, para o transpor na produção do conhecimento. E o maior exemplo que ela pode citar sobre esse processo de maturidade como jornalista está no relato de uma entrevista com uma psicóloga, quando entrou na universidade. É um fato relevante da memória que Sandra Satiko traz para o campo do presente e produz significado para toda a sua experiência vivida. Quando eu entrei pra universidade a psicóloga falou assim, que ela estava entrevistando os candidatos pra entrar aqui, eu não me esqueço disso, que ela perguntou se eu sou uma pessoa que acataria às normas do meu chefe. A resposta era só sim ou não. Eu coloquei não. Aí ela virou e perguntou “porque você respondeu não?”. Aí eu falei “uai, se meu chefe me designar uma coisa que eu não concordo…”. Eu falei pra ela, não tinha outra opção, era sim ou não. Eu coloquei não. “Se meu chefe me designar uma coisa que eu não concorde, eu vou conversar e argumentar com ele porque não pode ser de uma outra forma”. Ela falou “Vocês jornalistas são tudo doido”. Eu acho que ela pirou na batatinha de ter entrevistado 10 jornalistas, sabe. Deve ter recebido muito não ali. Mas assim, quem não tem argumentação, não tem um conhecimento teórico, não tem um estudo, não tem uma leitura, vai concordar com tudo. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
Se discordar daquilo que o chefe remete para ser feito é necessário usar o poder de argumentação, indagar, pois aí está o processo de construção de conhecimento. A decepção de Sandra Satiko com o jornalismo tem um dos pontos de origem exatamente no momento em que considerou que o jornalista perdeu esse papel de crítico, intelectual. Ou melhor, quando a argumentação não é mais seu ponto forte. “Por isso que eu falo que o repórter não pergunta nada. Não questiona, não argumenta. É muito difícil você ver isso.”. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015) Sem argu-
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mentação não há critica. Sem crítica, sem discutir a ideologia da empresa na redação para confrontar com a responsabilidade social, perde-se o sujeito em meio a determinação hegemônica do econômico. E assim veio se constituindo a desilusão da jornalista para o jornalismo, ao ponto de se aposentar e manter uma distância da sua experiência vivida. A decepção teve início com a rede social. “Não é bem uma desilusão com o jornalismo, sabe, acho que estava na hora e juntou a fome com a vontade de comer, desiludi. Achei as pessoas vulgares, não profissionais, chegou um ponto de vulgaridade.” (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015). Mais do que analisar a vulgaridade, que ela já apontou como prostituição no jornalismo, é preciso compreender o sentido do termo não profissional. O diagnóstico aponta para essa fratura na sociabilidade que desencadeia de forma incisiva nas redes sociais: “antigamente os jornalistas se juntavam pra trocar ideia, levantar pauta, uma conversa boa. Hoje não, eu acho. No meu caso nem é esse, eu desiludi com as pessoas.” (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015) O principal argumento levantado pela jornalista é sobre o tempo de produção no mercado de trabalho. E aqui ela faz uma análise comparativa sobre as mudanças de valores da década de 80 para os atuais. Tinham tempo pra levantar matéria, porque não existia pauteiro. Tinham tempo pra produzir essa matéria. Não, não tinha, é o mesmo tempo de hoje, mas é que a gente que fazia tudo. Sabe o que não existia? Computador. E hoje as pessoas perdem tempo é pelo computador, sabe? Era assim: chegava lá, no quadro, câmara. Minha pauta era essa. Aí chegava na câmara tinha que ver qual o assunto que estava em pauta, se tinha algum assunto polêmico. Nem todos eram assim. Aí era assim a pauta: feira livre… Ver os preços dos legumes. Hoje já sai assim: o tomate semana passada estava tanto, essa semana já foi vendido a tanto. Já vai com tudo mastigado. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
Então sobrevém nova indagação da própria entrevistada no meio de sua própria reflexão: 61
Gerson de Sousa O que o jornalista faz hoje? Ele se mostra, dá uma melhorada no texto do produtor. Eu falo que produtor tem que ganhar mais do que repórter. O produtor entrega de mão beijada ao repórter. Na minha época, te dava pouco. Tinha que falar com fulano: o que está sendo discutido? Hoje você já chega com tudo mastigado. Pega uma pauta pra você ver. Sai com a pauta prontinha, até com a pergunta que vai fazer. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
Tudo mastigado, e determinação hegemônica do econômico passa a preponderar ao ponto de Sandra Satiko questionar onde está o jornalismo: Qual imagem você tem de sua formação e da universidade? A jornalista aposentada explica que não é com a sua historicidade que se deva preocupar. Mas com quem está cursando a universidade no presente. Você não sabe o que as pessoas tão esperando do curso. Eu acho que hoje se tem o melhor pra oferecer pra essa moçada. Parece o melhor. Eu me aposentei porque eu me desiludi com a profissão. Você vê jornalistas se vendendo um tanto, um merchandising tão grande, se vendendo, se convidando pras coisas. Que que é isso? O que tá acontecendo com esse povo? Vendendo marca. Marketing, o jornalismo tá virando marketing. De ganhar um convite pra poder almoçar em algum lugar e divulgar. Mimo não sei da onde, mimo não sei do que. Que eu pensei “gente, mas onde que vai parar, cade o jornalismo?”. (Entrevista, Sandra SATIKO, Dez. 2015)
A constatação na experiência vivida de que o jornalismo está se tornando uma peça de marketing é a angústia revelada por Sandra Satiko. Poderíamos discutir seus argumentos, mas o elemento fundamental é entender a discordância dela deste caminho. E os motivos saltam na realidade. A perda da sociabilidade na redação em que os repórteres discutiam e construíam juntos as matérias; a falta de criticidade das perguntas nas entrevistas dos jornalistas, que na prática mais reproduzem aquilo que já foi estabelecido pelo editor; a prostituição denunciada da área quando realiza determinado serviço e cobra aquém do que deveria com o único objetivo de aparecer. A jovem que não teve dúvidas de ingressar na carreira do jornalismo por referências da família, agora toma a decisão de interromper na família esse percurso no 62
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jornalismo. Do presente da aposentadoria, ela analisa o passado e os rumos tomados pela profissão nas últimas décadas. Embora denuncie que essa desilusão nasce das redes sociais, Sandra Satiko, em determinado momento, confidencia que esse sentimento é referente às pessoas. Não se trata da inclusão ou do uso do computador. Mas dos sujeitos que retiram da profissão aquilo que deveria ser o seu próprio alimento: a capacidade de argu mentar. E sem argumento, fica difícil entender de onde será levantada produção de sentido que remeta ao conhecimento. Sandra Satiko descobriu que a ignorância sobre a realidade pode levar o outro a se instigar para atingir o conhecimento. Foi assim, desta forma, quando tomou o choque ao ingressar na universidade e depois no mercado de trabalho. Agora não se trata de Sandra Satiko, como subjetivo, mas do jornalismo, como sujeito. Na universidade, o grupo de alunos se reuniu para estudar mais e com isso encontrar significado para ser jornalista. Fora do mercado de trabalho e sem pensar mais na profissão, a confiança nos estagiários de jornalismo se apresenta como possibilidade de produzir sentido de conhecimento e retirá-los desse momento da ignorância epistemológica.
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Capítulo 3
Matheus Malaquias
Rádio
Os incômodos da paixão na prática vivenciada no Jornalismo
A
dúvida sobre qual profissão iria substituir a decisão inicial de ser do-
cente na área de Matemática conduziu Matheus Malaquias Silva para um caminho de investigação social. O principal sintoma veio com a
conversa com professores em período de formação no Ensino Médio, do qual ouviu o seguinte conselho: “pensa em alguma coisa que você realmente vá conseguir colocar aquilo que você gosta”. Essa frase foi repetida por outras vezes, por outras pessoas, o que contribuiu para que o pensamento do entrevistado tomasse a decisão de se atentar para outras áreas do conhecimento. E é assim que num ato de curiosi dade, ou por acidente de percurso, é que descobriu o Jornalismo. Poderíamos neste momento considerar a importância da dúvida enquanto método para o processo de conhecimento. Mas para que ela atinja o seu grau devido de profundidade, o sujeito precisa ser lançado primeiro em uma afirmativa. Mesmo que esse sentido de afirmativa esteja incompleto ou sem aprofundamento em sua concepção teórica. Para produzir o sentido inicial do caminho a ser seguido, o su jeito precisa justificar, mesmo que de ordem estritamente subjetiva, algum motivo que o trouxe até aquele espaço e tempo de decisão. É só quando a afirmativa toma sentido de corpo que a dúvida, ao ser instaurada, é conduzida a profundidade em que o dilema assalta o espírito e o conduz inevitavelmente a busca de seu significa do na existência.
Gerson de Sousa
A diferença nesse movimento consiste que ao efetivar a segunda natureza de afirmativa, o sujeito estará amparado agora não mais pela hipótese, mas pela própria problemática daquilo que se proporá a fazer. O que significa que nesta segunda natureza, o sujeito está mergulhado no interior de sua decisão, e não como um elemento externo que fica a olhar do lado externo para então, conforme o estado e o limite da contemplação, ele possa se orientar e tomar a decisão. Matheus Malaquias explica que entrou no Ensino Médio com duas opões muito focadas em sua mente sobre qual profissão seguiria na vida. E as duas estavam definidas para a área de exatas. O ponto de ligação para seguir a área de Matemática veio em uma primeira análise de si mesmo. É aquele momento em que a memória precisa auxiliar o sujeito a identificar, em sua história de vida, momentos ou sinais que relevam aquilo que pertence à preocupação ou simplesmente ao gosto do sujeito. Eu tive duas opções, desde que entrei no Ensino Médio, muito focadas na minha cabeça. Primeiro, eu sempre tive uma facilidade muito grande com Matemática, então eu pensei em fazer algo mais voltado para a área de exatas. Dei aula de Matemática um ano e falei: ah, vou fazer Matemática. Aí parei pra pensar depois conversando com meu professor e com outras pessoas, ele falou: “pensa em alguma coisa que você realmente vá conseguir colocar aquilo que você gosta”. E aí chega um momento em que a dúvida paira mesmo né? Aí procurei investigar outras coisas, outras profissões e não me limitar na Matemática, na Engenharia ou alguma coisa assim. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
Chega um momento em que a dúvida paira diante da certeza afirmativa e o leva para investigação. Há na frase acima dois pontos que se apresentam em contraposição, e porque não dizer, que poderíamos tratar como elemento substantivo para a questão da crise do conhecimento que assalta o entrevistado. É sintomático que esses dois pontos estejam delineados na ordem subjetiva. O primeiro ponto é demarcado pelo mergulho do sujeito em sua experiência vivida, mesmo que seja no campo acadêmico. Matheus Malaquias identifica que sempre teve facilidade com a
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disciplina de Matemática. E seria coerente prosseguir esse caminho, já que poderia expandir essa potencialidade de forma a materializá-la no dia a dia. E é com este campo de identificação que o sujeito toma a primeira decisão: vou fazer Matemática. Mas antes de buscar a afirmativa da graduação, a experiência de dar aula na área o conduziu para outro sentido da decisão. E é com este impacto que o entrevistado é levado do movimento da afirmativa para parar e pensar sobre si mesmo. Se o processo interior de experiência vivida se esgota em referências para a autoanálise torna-se necessário redimensionar o campo de orientação. É neste momento que a argumentação subjetiva do simples ter facilidade com determinada área se torna insuficiente para a totalidade do seu ser sujeito, que a definição do caminho profissional tomou o sentido da objetividade. Há uma importância substantiva ao entendermos que Matheus Malaquias se permite avançar sobre o conhecimento de si ao recorrer aos professores e depois a outras pessoas de sua convivência. Pois é o momento em que o sujeito passa a reconhecer que o saber está na relação comunicativa que se efetiva na realidade existencial com o outro. Para tomar decisões, mesmo que aparentemente esteja somente como ato subjetivo, é preciso afirmar a experiência do outro como fundante para o sentido da realidade. E assim chegamos ao segundo impasse. “pensa em alguma coisa que você realmente vá conseguir colocar aquilo que você gosta”. A frase levou ao indicativo da dúvida. E com a dúvida surge como expoente esse outro dilema. Para Matheus Ma laquias havia uma diferença entre o que tinha potencialidade, nesta facilidade de aprender Matemática, em relação a procurar levar a sua potencialidade para fazer aquilo que gosta. Embora o problema de encontrar o que realmente gosta de fazer esteja na ordem subjetiva, a dúvida trouxe outro movimento que se estende para além de seu horizonte. E o primeiro passo foi colocar como possibilidade, e não mais como priori 69
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dade, a proposta de fazer graduação em Matemática ou em Engenharia. Ao se desfazer dessas referências era necessário construir outras que pudessem ter a força para substituí-la. E é nesta procura que uma visita, por curiosidade, a um primo jornalista edificou novas experiências. Aí eu tenho um primo que é jornalista, ainda não formou, e eu por curiosidade passei um dia de trabalho com ele. Na época, ele trabalhava na Educadora Jovem Pan, hoje ele trabalha mais com assessoria política e é assessor do Odelmo Leão. Eu gostei do dia a dia dele aí fui procurar saber mais do que era o jornalismo e o campo de trabalho, as vantagens que tinha e as dificuldades também apareceram na hora que a gente está pesquisando... Gostei, gostei bastante. Aí já depois que comecei a procurar mais e ter visto o dia a dia dele eu falei: “bom, vou fazer Jornalismo. A Matemática que eu achava que gostava não vai me prender não, vou fazer algo mais diferente, totalmente diferente, aí optei pelo jornalismo. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
A curiosidade o conduziu para descobrir outra realidade que não estava mais no campo de exatas e sim no totalmente diferente de Humanas. Quando as opções sobre o que seguir se demole, a experiência vivida, no presente, se encarrega de iniciar o movimento do passado por meio da memória. Mas antes de decidir pelo Jornalismo, Matheus Malaquias inicia uma investigação que o conduzirá anos depois a considerar uma divisão conceitual na própria concepção de Jornalismo: o fazer jornalismo é algo que pertence ao gosto. E portanto responde às indagações que o conduziram para a dúvida. Mas o jornalismo se encerra também em dificuldades, inclusive de ordem financeira. É possível separar esses dois elementos para se efetivar o conceito de Jornalismo? Ou torna-se necessário confrontá-los conceitualmente para encontrar um elemento de sentido nesta decisão existencial? Na avaliação geral, somado à disposição de alterar completamente a área, Matheus Malaquias então se efetiva como sujeito agora no mergulho do sentido da experiência vivida para afirmar: vou fazer Jornalismo. E enquanto responde a indagação de outros, precisa nesta afirmativa 70
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responder a aflição que o conduz a si mesmo: “a Matemática que eu achava que gostava não vai me prender não”. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015) A pergunta que se efetiva aqui neste momento é: qual a referência em sua história de vida, no passado, o liga para a decisão, no presente, de fazer Jornalismo? A resposta a esse dilema tem de ser buscado, primeiro, no sentido definido pela experiência vivida de Matheus Malaquias com o primo. Embora soe a curiosidade como ponto nodal, o que se efetiva como proposta do sujeito nos conduz a efetivar uma outra leitura interpretativa da realidade. Pois Matheus Malaquias, ao gostar do dia a dia do primo na Educadora Jovem Pan, passou a considerar como prioridade, o gosto por trabalhar em rádio. O gosto de viver o dia a dia em uma rádio. Para que se efetive o poder de argumentação como estudante de Jornalismo, os momentos vividos do passado que percorre esse sentido precisam ser aflorados. Eu sempre tive, desde menor, muita vivência, principalmente com o rádio. De família. Meu avô escuta muito rádio, minha mãe escutava muito rádio, então eu já entrei na faculdade com uma curiosidade maior sobre o rádio, o veículo de rádio. Mas não o rádio entretenimento, o radiojornalismo. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
A curiosidade do radiojornalismo inicia pela experiência com o primo e se justifica no cotidiano, agora evidenciado pela memória, no movimento do passado. Matheus Malaquias entrou para fazer o curso de Comunicação Social – Jornalismo no Centro Universitário do Triângulo (UNITRI), finalizando em dezembro de 2012. Pela natureza exposta da decisão de Matheus Malaquias em fazer o Jornalismo é preciso considerar se em algum momento de sua formação se estabeleceu outra dúvida existencial. E a pergunta que se efetiva é saber se em algum momento houve uma indefinição ou dúvida para sair do curso. O entrevistado é enfático: Eu acho que no sétimo período foi bem complicado porque a gente vinha de um ritmo de muita prática e caímos no sétimo período que era mais pesado na teoria. A gente voltou pra sala de aula pra fazer projetos. Naquele momento, 71
Gerson de Sousa passou na minha cabeça: “poxa, será que vale a pena continuar ou não?”. Acho que junta o cansaço de final de curso, e na época estava a questão da discussão do diploma, se tinha valor ou não tinha, vamos formar ou não vamos... Aí bateu um desânimo, mas pensar em desistir não. Falar “olha, não quero mais isso” não. Graças a Deus isso não aconteceu. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
Será que vale a pena continuar no Jornalismo? A dúvida então novamente paira para levar adiante a decisão de Matheus Malaquias. Se por um lado ele efetivou como afirmativo o gosto pelo Jornalismo, por outro, agora, precisa fazer o enfrentamento das dificuldades do campo. Não se trata de desistir, mas de colocar a frente de si mesmo os dilemas negativos da profissão para tomar consciência da realidade a ser vivida. Não mais como um telespectador curioso que assiste a vivência do primo, mas como escritor da narrativa de sua própria vida. Ao considerar esse confronto, isso não significa que o entrevistado deixou de levar esse aspecto ao optar pelo curso. É que há uma diferença entre levar os dilemas da profissão somente ao campo teórico como hipótese, de quem está no início de curso, em relação a interpretação do imediato futuro ás vésperas de estar graduado. Ao responder a pergunta se considera que estava preparado para cursar a graduação em Jornalismo Matheus Malaquias já havia comentado: Eu acho que eu estava preparado. Eu acho que eu...vai muito da mentalidade da pessoa. Eu já sai do Ensino Médio com a minha definição de profissão feita. Eu já queria fazer Jornalismo, mesmo sabendo das dificuldades. Porque é como eu falei no início: financeiramente falando, a gente sabe que não é uma profissão tão vantajosa, as dificuldades de trabalhar no interior também são grandes... Então foi tranquilo porque eu já tinha noção daquilo que eu queria fazer, não tive muito problema não. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
Da perspectiva formulada sobre a graduação em Jornalismo Matheus Malaquias apresenta duas questões de ordem contrária. E as duas estão diretamente vinculadas a essa concepção inicial que fez como experiência vivida para definir a si mesmo a
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importância de cursar graduação em Jornalismo. A primeira é a positiva. O início na graduação lhe indicava que daquilo que traçou para si mesmo como possibilidade no Jornalismo iria se concretizar pelo aprendizado na universidade. De positivo foi entender que aquilo que eu imaginava realmente poderia se concretizar enquanto profissão. De colocar a mão na prática e saber: “Nossa, isso daqui realmente é o que eu quero fazer”. E a gente chegar e ver que é possível, que a gente consegue. Então isso pra mim foi muito positivo, de saber que eu estava no caminho certo. Porque a gente tem um receio no início, mas foi muito bom quando cheguei e entendi que dava pra fazer o que eu queria, independente da opção, até então, de veículo. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
O receio no início foi dissipado para que Matheus Malaquias pudesse produzir o sentido sobre a produção jornalística. E agora essa consciência sobre a profissão estava diretamente demarcada pelas possibilidades reais de a universidade possibilitar viver o dia a dia da profissão. Mas o elemento negativo identificado pelo entrevistado estava voltado para outro setor de enfrentamento da qual não constava, pelo menos em sua percepção. O incomodo sentido por Matheus Malaquias se refere ao fator que conduziu outros estudantes a realizar o curso de Jornalismo: o glamour. Trata-se de um glamour exagerado em que muitas vezes se perde a noção do próprio sentido do Jornalismo, enquanto tempo de formação, para um espaço a ser ocupado no futuro. E esse espaço estava mais voltado para um individualismo, em que o sujeito vislumbra o aparecer na TV ou ser apresentador do Jornal Nacional como meta. E não se trata de um reducionismo articulado somente por alunos. O que me colocou no ponto negativo foi, no início, a gente achar – porque muita gente no início acha que jornalismo é glamour. Então isso me incomodou no início. Você já entrar na faculdade “não porque eu sou jornalista, estou fazendo jornalismo. Vou trabalhar na TV, vou apresentar o Jornal Nacional”. Isso me incomodava no início. Não é muito voltado para a parte acadêmica, acho que, academicamente falando, eu não tive nada negativo assim. Mas esse glamour 73
Gerson de Sousa exagerado, que às vezes até profissionais que davam aula pra gente tinham também, isso me incomodava bastante no início. “Não, eu sou jornalista, vou trabalhar como jornalista, aparecer na TV, escrever no jornal...”, isso me incomodava. Agora, quando eu olho na parte acadêmica acho que não tem nada que me incomoda assim não. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
O primeiro impacto negativo então se efetiva por identificar o individualismo exacerbado no comportamento dos alunos de sala. E, por um reducionismo, sobre a concepção do que é o Jornalismo. Nota-se que o tom disparado pela narrativa do entrevistado é o estranhamento de alguns em relação ao próprio dia a dia do Jornalismo. O glamour estava direcionado para um quadro suposto de fama de apresentar um telejornal ou de ser visto pelo Brasil todo por meio do Jornal Nacional. E nesta preocupação, qual a importância da produção Jornalística para a sociedade? Como se preparar de uma forma melhor, do ponto de vista teórico, para tomar consciência sobre a realidade vivida e com isso produzir um Jornalismo com profundidade? As perguntas aqui efetivadas, sem respostas adequadas, sinalizam o estado de incomodo. Porque não se trata de mera descrição crítica do estado de corpo e es pírito daqueles que buscam o glamour como fim em si mesmo. Mas trata do sentido do aprendizado teórico no exercício do pensar a si mesmo como formado, como jornalista. Talvez seja por isso que em meio a crítica sobre o excessivo glamour, a Teoria na universidade apresenta como contraponto. A Teoria não incomodava, e não havia nada de negativo. E assim se configura na produção de sentido de Matheus Malaquias esse elemento de contraponto: a representação dos alunos a partir do imediatismo do glamour sobre a profissão; e a produção de identidade de si ao encontrar na teoria a consistência importante para entender o próprio sentido da prática. A teoria para mim foi mais vantajosa porque eu comecei a entender um pouco por trás... Porque se faz assim, porque não pode fazer assado... essa parte era interessante, de entender o motivo das coisas. Mas a prática sempre me
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chamou mais a atenção, de querer fazer. Eu acho que fazendo a gente aprende, a gente erra, a gente muda. Então, fazendo para mim era a melhor parte, era praticar. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
A teoria surgiu como vantagem diante de um sujeito que entrou no Jornalismo depois de avaliar a prática do dia a dia da profissão. Por isso, a frase de Matheus Malaquias tem um peso sintomático. É importante porque a prática aqui, já sabemos, está longe de ser adereço para o glamour. O que se acrescenta aqui é o distanciamento crítico da técnica para o reducionismo ou de ser empregado somente como contingência de reforço. Não é o exercício repetitivo que levará ao sentido. Mas o processo de conhecimento consiste neste desafio: se você consegue aprender com seus próprios erros, você muda para alguém de modo substantivo. E, nesta complexidade, Matheus Malaquias afirma que a teoria foi vantajosa, mas a prática para ele era a melhor parte. E assim o praticar foi deixando cada vez mais a lógica da repetição para se efetivar com o sentido da práxis comunicativa. É na realidade do Jornalista que vive seus dilemas, tensões e conflitos, que a teoria precisa ser descortinada para produzir o sentido da prática. É bem possível que esta discussão tenha possibilitado esse mergulho do entrevistado em sua formação teórica. Em sua análise sobre a formação teórica na universidade, sobrevém a resposta: Eu tive excelentes professores na faculdade. A avaliação teórica - tudo quando a gente fala de teoria é um pouco mais complicado porque você fica ali no livro, texto, você faz estudo, é resenha... então é um pouco mais pesado. Ainda mais no Jornalismo em que você vislumbra sempre o dia a dia, a prática, né? Mas foi uma formação muito bacana porque nossos professores, na ocasião, estavam, estão ainda, no mercado de trabalho. Então a gente tinha o dia a dia de teoria mas sempre tinha aquelas inserções de práticas, de exemplos no dia a dia de coisas bem pontuais. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
Há, no primeiro momento, uma dissociação sobre o conceito de teoria: tem a ver com a produção de texto, leitura de livro que conduzem para pensamentos conceituais. E é ao reconhecer a resultante do aprendizado de teoria que Matheus Ma75
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laquias edificou sua base de formação. Essa base se efetiva como importante diante de uma profissão no qual se vislumbra à prática. Com base nesses dois elementos, profissional e prática, é que compreendemos esse segundo momento de análise. A formação profissional na universidade se configura como importante também porque os professores, que propuseram o ensino teórico, estavam ainda no mercado de trabalho. E com isso o aprendizado passou a ter acrescido, de forma natural, inserções de práticas do dia a dia da profissão. A existência do dia a dia da teoria era desvelada, desnudada e analisada pela orientação do cotidiano da prática. Mesmo em uma disciplina tão pesada, como Teorias da Comunicação: E a teoria da faculdade que eu fiz era muito boa. Por exemplo, quando eu comentei da Teorias da Comunicação, que eu acho que é o que todo mundo “pega’ na faculdade de Comunicação, foi uma teoria pesada tem bastante coisa; mas trazendo essa realidade do dia a dia, do profissional na rua- que é onde eu acho que o jornalista tem que estar – foi bem tranquilo. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
As afirmativas de Matheus Malaquias já designa a funcionalidade do conheci mento em Jornalismo. O jornalista é um profissional que tem de estar na rua. É neste espaço e tempo de atuação que o aprendizado deve possibilitar a produção de sentido. Aqui explica o termo pesado para a disciplina de Teorias da Comunicação. Embora a narrativa demarque que os insites do dia a dia da prática possibilitaram trazer para o plano da formação esse olhar crítico. Três anos depois de formado, a memória do entrevistado traduz essa experiência por meio de uma palavra para definir a experiência vivida na universidade: conhecimento. Como se traduz o conhecimento dentro da lógica de pensamento que vem sendo estruturada pela narrativa de Matheus Malaquias? O conhecimento é aquilo que ultrapassa a natureza informativa sobre o que é o Jornalismo daqueles alunos que ingressaram na universidade. Quando definiu que o Jornalismo seria o curso de gra76
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duação que faria, Matheus Malaquias construiu uma base de sentido para conceituar o curso, mesmo que de forma restrita. A universidade, para que se configure nesta afirmativa sobre o conhecimento, deveria conduzi-lo para algo além desta limitação. E o elogio do aprendizado teórico e prático demarca bem a memória de formação teórica do entrevistado. Para a prática, não é de se surpreender que o destaque da narrativa tenha sido sobre a disciplina de radiojornalismo. E assim, ao aprender para além da limitação do como funciona uma rádio, o entrevistado passa agora a estabelecer outros elementos de referência que permite conceituá-lo. E afirma, no tempo presente, que o gosto pelo rádio foi se constituindo como fator de sua construção de identidade. A gente fazia muita aula de rádio lá na Unitri, lá tem um laboratório muito bacana. Eu sempre gostei de rádio, quando eu fui pra prática na faculdade eu falei “é isso que eu quero fazer”. Tem a questão da imaginação, é o veículo mais veloz que tem, eu dou informação com celular de qualquer lugar a qualquer hora, isso a internet não me possibilita. Mesmo ela sendo rápida. Vou ter alguém pra escrever o texto, alguém pra revisar o texto, alguém pra subir pro ar, isso pode levar tempo. No rádio, não, no radio isso é imediato. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
A imaginação e a velocidade com que a informação poderá ser disposta por meio do celular em qualquer tempo e espaço se efetivam como justificativas nesse processo de construção de conhecimento. E aqui vem como crítica o contraponto ao Jornalismo Digital, em que essa relação de imediato não supera o rádio. Porque para postar na internet será preciso alguém para escrever, revisar e postar o texto. Mas seria reducionista se a interpretação desses dois valores sobre o rádio fossem somente utilizados como contraponto à internet. Se tomarmos como um dos pontos da narrativa do entrevistado que noventa por cento dos alunos da sala levantaram o braço ao ser perguntado sobre o interesse em TV, e somente ele pelo interesse em rádio, esses valores tomam outra dimensão analítica.
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Qual mergulho interpretativo se pode efetivar então para a imaginação e essa velocidade? Há uma tentativa lógica de explicitar que o rádio mantém como identidade um valor da sua tradição ao mesmo tempo em que conseguiu se constituir no tempo sem ser considerado como atrasado do contexto da modernidade - ou da sua crise. Primeiro porque o sentido do jornalismo, ao ser deslocado para a rua, assume que, na relação com o público, é essa produção de sentido que estabelece como força comunicativa. E assim a crítica poderá ser feita no contraponto daqueles veículos de informação cuja racionalidade apresenta obstáculos para que os sentidos ultrapassem os limites da percepção. Ao considerarmos essa linha interpretativa temos de compreender que a imaginação não está delineada pelo procedimento do uso da rádio, mas da conceituação do processo comunicativo em que podemos problematizar o cotidiano do jornalista. E assim a imaginação toma o significado teórico. E porque não, se aproxima de uma linha epistemológica em que se desvela o fator do qual se constitui, na relação com o público, o processo de conhecimento. Isso porque o segundo elemento, na qual se refere a velocidade da informação está diretamente voltada ao meio tecnológico rádio. Em determinado momento poderíamos objetar aqui: mas não poderia ser a velocidade da informação ser re conduzida, de procedimento, para a própria constituição de identidade da rádio? A pergunta tem o sentido analítico, ainda mais se considerarmos determinadas teorias estudadas em Teorias da Comunicação. O primeiro contato que desvia desse campo é a ausência de um atributo substantivo para o veículo rádio quando afirma sobre a velocidade de informação, esse imediato do rádio. Soma-se a isso as indagações que levam o sujeito a conceituar o jornalismo: estar na rua com as pessoas. Esse fator nos redireciona ao segundo contato de desvio de uma possível acusação de que poderia recair em um determinismo tecnológico ou regra funcional: ouvir as pessoas. 78
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Matheus Malaquias em determinado momento utiliza o termo ouvido curioso. E por sinal faz uma interligação entre o sentido da prática aprendida na universidade com o sentido da prática no mercado de trabalho. Obviamente que junto com prática da faculdade eu acho que quem trabalha com rádio tem que ter, além da prática da faculdade, ouvido muito curioso: ouvir outras pessoas, ouvir vários tipos de programas de rádio, às vezes não só AM, ouvir também FM porque aí a gente aprende também. Então quase 100 %, ou 100% do que eu fiz nas minhas aula de rádio-, errei bastante lá também – a gente traz pra cá. E ouvir, eu acho que isso também que é importante nas aulas de rádio que a gente faz na faculdade, orientação do seu pro fessor. A gente fazia muita coisa praticando na faculdade. E sempre orientação de ouvir, ouvir outras pessoas, outros veículos, outros profissionais. Até pra você entender as formas que têm de trabalhar, como você pode fazer, o que você não pode fazer. A gente às vezes pega isso também ouvindo as outras. Então a prática foi extremamente importante para o meu dia a dia hoje enquanto profissional. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
Há uma série de leituras que podemos fazer ao considerar os elementos indiciados pelo entrevistado sobre essa função do ouvir. E, em boa parte deles ultrapassa o sentido do ato perceptivo. A orientação de ouvir outras pessoas está demarcando o próprio sentido existencial do rádio. Em um âmbito está nesta relação comunicativa de ouvir as outras pessoas. O que nos remete em entendermos que a força da imaginação do rádio se estabelece aqui no processo comunicativo, em que tanto o jornalista, quanto o público precisam se nortear por esse fator epistemológico para construir o conhecimento. Se pudéssemos colocar em uma frase poderia ser disposta com o seguinte entendimento: para que o sentido preferencial da informação seja produzida no rádio é preciso que o jornalista ouça as pessoas na rua para que elas possam, constituída pela imaginação, ouvi-lo em novo lugar de produção de sentido. E esse processo pode circular de forma imediata, sem que isso constitua por si mesmo em recair na superficialidade do tema. 79
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É preciso também ouvir outras emissoras, outros tipos de programas de rádio. São referências para pensar o si mesmo, enquanto conhecimento subjetivo, assim como aperfeiçoamento profissional. E neste insistente movimento formativo do ouvir é que se abre as palavras que serão expostas na constituição da fala do jornalista em rádio. Se aprofundarmos esta concepção, por meio da teoria, poderíamos novamente chegar a uma relação constitutiva entre emissor e receptor no qual o ouvir e o falar se interligam como processo comunicativo. E esse elemento toma mais for ça quando o entrevistado explicita que quase cem por cento do que aprendeu na prática universitária se deslocou para a prática no mercado de trabalho. A memória de formação prática traz como elemento identificativo inclusive o nome do professor responsável por esse procedimento: Então a prática em si, a gente teve um professor muito bom também uma época, o Sergio Gouvea, tudo que eu coloco hoje em prática, a gente sempre está melhorando, mas eu tenho certeza, saiu de lá das práticas que fiz na faculdade, forma de falar, questão de colocação de palavras, às vezes você toma cuidado em como você coloca uma palavra ou não porque quando a pessoa ouvir pode sair de outra forma. Enfim, a prática em si eu trouxe quase tudo do que eu vi na faculdade. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
A frase nos coloca diante do significado produzido pelo entrevistado sobre radiojornalismo. E esse significado vem demarcado por um nome, mais precisamente pelo reconhecimento do docente cuja metodologia de trabalho trouxe para a identidade de Matheus Malaquias a profundidade da experiência vivida. A narrativa do presente integra três momentos em um mesmo sentido interpretativo que podemos enumerar no lado positivo do entrevistado. O momento de ter gostado do radiojornalismo ao satisfazer a curiosidade de acompanhar o dia a dia do primo em uma emissora. A satisfação da teoria e prática da disciplina de radiojornalismo cuja metodologia o conduziu para o cerne da questão do ouvir o outro como sustentação te-
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órica. E a compreensão de que a realidade do mercado de trabalho está em sintonia com o exercício prático da universidade. Entretanto, no momento em que parece encerrar a linha que demarca a interpretação comunicativa do entrevistado, temos de ser levado também ao outro lado do conflito que envolve Matheus Malaquias. O primeiro passo está na argumentação de que nem tudo que aprendeu de forma teórica cabe na lógica pragmática do mercado de trabalho. E assim, pela primeira vez, a velocidade da informação narrada tempos atrás como principal fonte para entender o rádio, é colocado como obstácu lo a ser transposto. Pois a mesma velocidade da qual a Internet não consegue supe rar o rádio, é o mesmo fator de limitação, seja da temporalidade da produção jorna lística, seja para a utilização dos elementos teóricos em sua totalidade, como aprendeu na universidade. Quando a gente está na faculdade, a gente aprende a fazer tudo muito correto. Eu acho que isso é fundamental porque você tem que entender o motivo das cosia e o porquê da gente estar fazendo essa coisa. Quando a gente vem para prática, a gente percebe que, às vezes, por tempo - porque hoje tudo é questão de tempo, velocidade, às vezes a informação não pode passar - aquilo que você vê na teoria não dá para aplicar totalmente na prática. Eu acho que essa visão da teoria é bacana nesse sentido de preparar a gente pra fazer o certo em qualquer momento e te deixar preparado também pra quando você vem para o lado de cá [mercado de trabalho]: você vê que aquilo que aprendeu, mesmo que não aplique da maneira mais assertiva ou 100%, aqui você consegue trabalhar também sem maiores problemas. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
Do aprendizado da teoria na universidade somente em poucas situações se pode aplicar totalmente. Isso porque a velocidade exigida da informação se torna incompatível com todo o desenho que deve ser produzido a informação, a partir do ensinamento da universidade. Porque o hoje, o elemento de sentido do rádio, não é só a imaginação. O hoje também estabelece esse outro contraponto: tudo é questão de tempo, de velocidade. Então temos de retornar ao problema central do sentido do rá-
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dio: em que medida essa velocidade, que tratamos anteriormente como procedimento, se transfigura aqui em outra demarcação teórica em que a tecnologia passa a ser elemento substantivo do que denominamos comunicação? Em que medida essa velocidade, apresentada agora como correria e pressa do trabalho, pode desfigurar a construção epistemológica do ouvir as pessoas no processo de conhecimento? Então, minha grande dificuldade ás vezes é trazer o que a gente aprende na faculdade hoje para o veículo onde a gente trabalha, onde a maioria das pessoas não tem essas mesma visão. Então, por exemplo, eu fui produtor na rádio aqui um ano. No início, os scripts, materiais de pauta eram todos bem desenhados naquele formato que a gente conhece bem, com sinalização de pergunta, destaque pra pegar um gancho diferente, enfim. Eram pautas extremamente bem elaboradas. A gente passa para um profissional que não tem essa mesma graduação, a gente percebe que esse trabalho todo, ás vezes, não tem valor para ele. Então assim, na questão, aí a gente volta na correria que falei, na velocidade do rádio, então, às vezes, você opta por fazer alguma cosia mais simples, mas não exatamente aquilo que você aprendeu na faculdade. Então assim, é uma adaptação. Mas não entendo que a teoria não serve de nada. Para a gente chegar nessa visão você tem que ter a teoria. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
É necessário se adaptar diante da nova realidade que se apresenta de um mercado em que há profissionais formados na universidade e outros que se formaram na prática. Essa adaptação incide em adaptar um fator operacional: da pauta bem desenhada para uma pauta simples. Porque a elaboração da pauta da forma como aprendeu na universidade, não tem valor para esse outro profissional mergulhado na exigência de velocidade do mercado de trabalho. Mas temos de entender que em meio a crítica ao mercado, Matheus Malaquias vai, a todo momento, afirmando a importância da teoria. E acrescenta que até para discernir a desvalorização do processo diante do outro, prático, no mercado de trabalho, é preciso ter teoria. A questão aqui é indagar: até que ponto o entrevistado irá levar a defesa da teoria neste confronto com os elementos negativos do Jornalismo?
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A pergunta acima permite considerar as estratégias de análise do entrevistado diante do impasse no próprio jornalismo. O primeiro impacto é identificar que não se trata efetivamente do problema de compreensão do jornalista, mas, por vezes, na diferença conceitual dos que são formados na universidade e aqueles somente da prática. Temos de retomar aqui a outra frase que o trouxe incomodo e dúvida sobre seguir o curso de graduação, quando estava no sétimo período: a desvalorização do diploma. Para se formar ele teve de atravessar esse fator de dúvida, no último ano de formação, e responder de forma afirmativa sobre esse sentido. Esse é o momento em que a responsabilidade social tem de ser entendida na análise sobre a produção jornalística que temos de perguntar sobre o sentido histórico do Jornalismo. Será que podemos definir o trabalho jornalístico como histórico? Se é um trabalho histórico, em que sentido ele é histórico? E o fato, por exemplo, de eu não ter, muitas vezes, uma compreensão sobre o que eu estou fa zendo, eu posso até fazer, mas não tenho uma compreensão sobre o significado do que eu faço, eu posso entender como um fator histórico? A resposta a essas indagações veio estruturada em dois fatores diferenciados. O primeiro refere-se ao registro de contar história: Eu acho que a gente faz história sim. Primeiro pelo fato da gente poder contar histórias. Eu acho que esse é um papel bacana do jornalista, seja em qual veículo for. A gente está registrando, acompanhando, isso fica arquivado, registrado, isso é história. Eu acho que o jornalista faz parte da história e até con tribui para que ela às vezes não se perca. Quando a gente fala de cobertura jornalística, às vezes a gente vai resgatando fatos, até pelo próprio trabalho que a gente tem, que às vezes as pessoas nem lembram disso. Então esse trabalho também é importante. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
O jornalista tem o papel de registrar o fato e ao mesmo de lembrar a sociedade sobre fatos ocorridos no passado. Essa parece ser a tônica definida por Matheus Malaquias para nos defrontarmos com o valor da produção jornalística. Porém, em
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meio a essa afirmativa, soa em meio a frase a ideia de história como mero registro e arquivo, documento em que as pessoas poderão verificar no futuro. Podemos considerar que há uma lacuna ainda a ser preenchida com essa resposta, se relembrarmos que o conceito de Jornalismo apresentado pelo entrevistado está no ouvir as pessoas. E é assim que o conceito de fazer história se desloca do subjetivo para se edificar no processo comunicativo. Agora, essa questão de fazer história é um pouco delicada porque vai da concepção das pessoas também do que é fazer história, né? Eu entendo que, principalmente no rádio, que é um veículo mais comunitário, a gente acaba fazendo história sim. Mas é uma história um pouco diferente de quem faz TV, web, por exemplo. A gente trabalha com um público muito... o foco do rádio hoje em Uberlândia é muito comunitário. Ás vezes quando a gente faz história a gente pode avaliar a história da comunidade que a gente está inserido mesmo. As pessoas tem o rádio e o jornalista que está à frente do rádio como um meio de ser visto, de se fazer valer. Quando eu falo fazer história, é fazer história para essas pessoas, para essa comunidade. Seja levando uma informação bacana para ele, seja mudando a própria história dele, através dos veículos de rádio que hoje, graças a Deus, a gente tem esse poder. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
Qual a concepção de história de Matheus Malaquias? Pela resposta desferida acima a concepção está em afirmar que a história que se efetiva é o da relação com a comunidade. Se faz história ouvindo essas pessoas e para essas pessoas. E aqui surge outro sentido: levar a informação para o outro ao ponto de que ele possa mudar a sua própria história. Esse é o momento em que a história deixa de ser mero registro para se efetivar na circulação e consumo da mensagem no cotidiano das pessoas. Ou poderíamos aqui conceituar: a história da comunidade se efetiva neste complexo diálogo do sentido preferencial do rádio em contraponto a produção de sentido do ouvinte. Assim como os elementos afirmativos são buscados nos dilemas da prática jornalística, mesmo movimento necessita ser feito para entender os pontos emblemáticos do jornalismo. E a avaliação exige sair de liberdade subjetiva total do jornalista para 84
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a estrutura jornalística. Será que esse fator levará Matheus Malaquias a redefinir suas concepções? Nem tanto redefinir, mas há um momento em que os pontos negativos são levados ao plano de debate, porque está mergulhado na realidade do sujeito que narra. Qual a avaliação da produção jornalística? O entrevistado então é levado a problematizar esse outro fator que denomina como pecado atual do jornalismo: O jornalista tem compromisso com a verdade. Só que em alguns momentos, as vezes, a gente não consegue ser tão verdadeiro passando uma informação. Não que a gente vá mentir, mas hoje as grandes empresas de comunicação estão ligadas à grandes empresas, grandes políticos, grandes nomes. E às vezes é difícil você colocar uma informação que talvez não agrade quem comanda a empresa, aquele grupo de pessoas. Então eu entendo que hoje o jornalista em si até pra conseguir fazer seu trabalho da maneira mais tranquila possível, às vezes tem tropeçado nesse ponto. Se é algo que aconteceu que vai incomodar A ou B é um fato é uma notícia, a gente tem que passar. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
Eis aqui o contraponto entre a dialética vivenciada sobre o jornalismo por Matheus Malaquias. O jornalismo tem compromisso com a verdade. Só que em alguns momentos a prática impossibilita de ser tão verdadeiro. Não se trata de mentir. Mas para quem é responsável por construir a história junto com a comunidade, na qual o ouvir se efetiva como construção epistemológica do conhecimento, é um impacto gritante. Para o entrevistado, como já acostumamos a entender, toda gravidade que conduz a dúvida se denomina pelo tratamento de incômodo. E esse incomodo se estende para outros pontos que remetem essa gravidade. E hoje eu percebo, aqui em Uberlândia nem tanto, mas também tem, a gente não pode ser hipócrita, que os veículos de comunicação às vezes são muito tendenciosos, principalmente quando a gente fala de política. Então assim, eu entendo que não é o trabalho do jornalista em si, mas é uma diretriz que é passada pelos jornais: “a gente tem uma linha editorial, a gente vai falar as sim, isso aqui a gente vai evitar falar ou vai falar dessa forma”. Então isso me incomoda. Mas, ao mesmo tempo que me incomoda, eu tenho uma ciência de que é a realidade que a gente tem hoje. Talvez mudar isso, depende da gente também. Mas o que me incomoda são exatamente esses pontos, da gente sa85
Gerson de Sousa ber dessas cosias, colocar de uma forma que talvez não é a melhor, não é a mais clara. É trabalhar de uma forma que incomoda menos esse grupo, pra trabalhar menos com esse grupo, pra facilitar esse grupo... Então isso me incomoda, eu entendo que a gente tinha que ter mais tranquilidade pra trabalhar. Trabalhar com aquilo que de fato é, que realmente aconteceu; se aconteceu é assim e essa é a informação. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
O incomodo sentido por Matheus Malaquias, aqui descrito, está em uma outra ordem teórica. Enquanto o reducionismo do trabalho no mercado era somente em simplificar os procedimentos aprendidos na universidade, a crítica poderia ser desferida para os profissionais que não passaram pela universidade. Mas há um momento em que a velocidade do tempo em produzir se efetivou também com essa demarcação. E desta forma, o problema sai da ordem subjetiva para recair na estrutura. E é assim que as grandes empresas, os grandes políticos eliminam aquilo que demarca o prazer de ser jornalista: a tranquilidade para apurar o fato e levar o que realmente aconteceu para a população. Hoje tudo é questão de tempo. O ponto crítico aqui está em identificar que a prática, tão importante para a pro dução da identidade do ser jornalista de Matheus Malaquias, se torna afetada. O que incomoda é que essa violência da estrutura que leva o jornalista ao distanciamento da verdade, que poderia ser narrada ao público, é a realidade vivenciada nos meios de comunicação. Essa falta de tranquilidade, estendida para a gravidade anunciada, refere-se ao problema de consciência. Será que depende do jornalista essa mudança? Para Matheus Malaquias, talvez. Esse talvez ressoa exatamente no momento em que o sujeito tem consciência de que o confronto não está somente na ordem subjetiva ou num problema direcionado de formação da universidade. Há algo que se vai além desses fatores. Se formos recuperar uma frase do próprio entrevistado: é preciso ter teoria para reconhecer a estrutura que o violenta e retira a paz na produção de sentido. Como poder afirmar para a co-
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munidade que se faz jornalismo direcionado para ela, se cabe a esse grupo de grandes empresas demarcar, em determinadas situações, o que deve ser publicado? Há um determinado momento em que o entrevistado é conduzido, nesta linha interpretativa, a afirmar: “o trabalho do jornalista hoje eu entendo que está muito mais nas mãos dos grupos de comunicação”. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015) E com essa crítica estrutural se retorna ao dilema da historicidade do jornalismo. Que tipo de história está sendo narrada pelo jornalista se considerarmos a hierarquização entre ideologia da empresa, conhecimento e depois o público? Matheus Malaquias argumenta: É o ponto. Talvez será que é a história que realmente acontece? Ou é a história que as pessoas preferem que a gente conheça? Então, assim, vai muito do papel do jornalista, por isso que a formação é importante. Tem que ter uma forma bem tranquila para trabalhar porque essa questão de fazer uma história... é muito tênue, né? Você está no seu veículo, um veículo de comunicação que tem uma linha editorial que às vezes pode interferir nessa história que a gente está falando. Mas é uma situação que vale muito a discussão. Por isso que, quanto mais o profissional de comunicação está preparado para poder lidar com todos os fatos- público, ideologia, empresa, melhor. Pra gente tentar seguir a melhor forma de trabalho possível, pra deixar a interpretação, a análise dos fatos para seu público, no caso, o ouvinte. Ele é que tem que decidir, a gente não tem que decidir nada pra ele. A gente tem o papel formador, papel histórico de apresentar os fatos, as versões e os lados que estão envolvidos e ponto. Aí talvez seja a importância da história. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
Para se efetivar ou fazer a história é imprescindível proporcionar ao jornalista tranquilidade em seu trabalho. Até porque há uma linha tênue entre o público, a empresa e a ideologia do jornalista. O jornalista tem esse papel formador que se configura em produzir um documento histórico. A crise é quando se defronta com uma estrutura cuja prática obriga o jornalista a ir reduzindo os elementos que consistiriam em verdade a ser publicizada. Mesmo diante deste impasse, Matheus Malaquias, ao ser perguntado sobre o que é ser jornalista volta a recontextualizar os
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problemas da profissão. E entoa que ser jornalista está diretamente vinculado a esse sentimento de paixão: O que é ser jornalista, Matheus?” É você fazer aquilo que você gosta, abrir mão de família, final de semana, casamentos, aniversários, viagens, feriado. Então isso é ser jornalista, é você fazer alguma coisa que você gosta, ás vezes sem olhar remuneração porque a remuneração não é uma coisa muito agradável na profissão. Por isso que eu falo que está muito ligado à paixão. Ser jornalista é fazer aquilo que você se colocou a fazer, levar a informação com qualidade, auxiliar a comunidade que você está inserido, uma informação às vezes em primeira mão que às vezes outro veículo não consegue te passar com a mesma qualidade. Isso é ser jornalista, é você às vezes abdicar de alguma coisa na intenção de levar a melhor informação pra quem está do outro lado. É paixão. É você gostar do que faz. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
A última frase sobre o conceito de jornalismo parece a resposta ao conselho que obteve no Ensino Médio. Matheus Malaquias procurou aquilo que gosta de fazer e com paixão. Mas uma paixão que exige entrega ao trabalho, que por mais paradoxal que seja, ao mesmo tempo em que impõem o protagonismo no trabalho comunitário leva a abrir mão de ser sujeito de seu próprio tempo. Trata-se de uma paixão que conduz a liberdade de ser jornalista em uma estrutura da qual é necessário hierarquizar outros tempos de viver. Por isso que o ponto nodal da discussão é: será que ao reconhecer que a estrutura afeta o sentido da verdade, no espaço da prática em que a paixão é afetada, o sujeito não será levado a reconceituação do que é o jornalismo? Trata-se de um momento crucial. Diante da lógica estrutural que afeta os dilemas sobre a verdade no jornalismo, Matheus Malaquias indica o projeto de retornar a faculdade para fazer especialização. E a pergunta se efetiva: a especialização é um indicativo da insuficiência formativa com que se defronta no mercado de trabalho. A resposta do entrevistado é enfática e indica, porque não, um novo caminho para essa estratégia de enfrentamento.
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Talvez, talvez. Porque no dia a dia, a gente percebe que precisa evoluir. Por tudo que a gente falou a gente não pode ficar parado. Eu saí da faculdade já tem três anos, sempre procuro estar antenado, procuro ler, procuro estar por dentro do que acontece, novas técnicas, ouvir outras rádios que não sejam de Minas Gerais, isso é importante. Mas aquilo que eu falei: a formação teórica quando eu tive na minha graduação foi fundamental. E se tem oportunidade de melhorar porque não? De procurar mais conhecimento. Eu tenho um desejo que já penso que é voltar pra faculdade, mas do outro lado, não como aluno, mas talvez de ensinar aquilo que a gente aprendeu também, trazer outra visão, trazer outras histórias. Por que não? Também é uma forma da gente trabalhar enquanto jornalista. E é algo que as pessoas às vezes não pensam. (Entrevista, Matheus SILVA, Out. 2015)
Ser professor de jornalismo também é uma forma de a gente trabalhar enquanto jornalista. Eis aí o novo desejo de Matheus Malaquias. Como se dissesse para si mesmo: vou ser professor de jornalismo. E assim, o entrevistado ressignifica o seu passo inicial de estar na rua para fazer jornalismo, para o agora de estar na universidade. E coube a memória tornar relevante as referências que permitem a ele considerar que sua decisão é coerente com a história de vida. A metodologia e as aulas do professor de radiojornalismo então se efetivam como elemento primordial para se projetar no futuro. Mas há outros indicativos negativos que o levam neste retrabalhar a vida. Poderíamos aqui enumerar, mas vamos tratar dos elementos mais agudos. O primeiro é a consideração de que a realidade vivenciada pelo jornalista, na redação, faz com que a verdade, por vezes, não seja dita de forma clara ao público pelo interesse das grandes empresas. O segundo é que a preparação da pauta é simplificada diante da velocidade do tempo que exige divulgação prematuras. E terceiro, quando a vida do próprio sujeito tem de ser deslocada para segundo plano. Esses incômodos levam Matheus Malaquias a redefinir que já é tempo de procurar mais conhecimento. Não como aluno, mas agora como professor. Quem sabe assim será possível narrar outras histórias sem que a tranquilidade e a verdade sejam afetadas 89
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pela estrutura. “Pensa em alguma coisa que você realmente vá conseguir colocar aquilo que você gosta”. E assim o conselho recebido no Ensino Médio se torna orientação para a vida.
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Capítulo 4
Mônica Cunha
Rádio
A subversão da linguagem Poética na rotina Jornalística
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usadia. Uma menina de 17 anos, sem qualquer experiência na área de comunicação decide ligar para a Rádio Cultura FM. Não se trata de pedir uma música, como ouvinte, mas sim de solicitar uma oportunidade
de trabalho. É assim que a memória de Mônica Cunha Ferreira, neste movimento do passado, traz à tona um dos momentos que podem revelar o porquê ter definido o campo do jornalismo. É assim sintomático que a expressão que mais dimensiona a relação inicial da entrevistada com a profissão seja o acaso. Para uma profissional que se formou no início da década de 90 e possui longo tempo de experiência soa, como paradoxal, no presente, esse elemento do passado: anunciar ter sido por acaso que sua vida tenha se transbordado para o Jornalismo. Isso porque antes do ato ousado de 17 anos, a relação com o rádio para Mônica Cunha era somente de ouvinte. Por isso antes da resposta sobre o porquê do Jornalismo, sobrevém um sorriso que demarca, esse gesto espontâneo, com uma frase de quem articula valores do passado. E sem encontrar um motivo que materialize os passos para aquele caminho na memória coletiva, a entrevistada só tende a mergulhar na memória individual para assim articular uma resposta: “Engraçado. Não tem uma resposta muito assertiva assim. Ele foi muito por acaso, sabe Gerson!”. O que significa não ter uma resposta assertiva? Poderíamos entender que implica que
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a narrativa da memória, ao não se fundar em um elemento dedutivo, precisa encontrar os indicativos que a conduziram até o ser profissional na área. E aqui se efetiva dois pontos importantes que nos conduzem ao entendimento da narrativa de Mônica Cunha. O primeiro é a referência ao acaso, que se traduz em não encontrar, na memória coletiva, materialidade ou experiência vivida que levariam ela a conduzir para o Jornalismo. Eu não tenho ninguém na minha família, jornalista. Eu tenho...a minha família é de contadores, contabilistas, e de médicos. O jornalismo ele veio muito por acaso. Por uma curiosidade que eu tinha, por exemplo, pelo mundo do rádio. Talvez pelo fato de eu ter sido criada muito com meus avós. Todo fim de tarde meu avô está sempre sintonizado num AM. Aquele mundo me encantava. E também porque meus pais sempre assistiam a telejornais. Eu ficava com eles ali assistindo. E talvez aquele mundo tenha me encantado. E...tanto que não foi a minha primeira opção. Eu gostava daquilo mas não tinha uma ideia muito formada. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
Quando o sujeito se reconhece na profissão, no presente, a memória precisa tornar relevante os elementos no movimento do passado que conduzem ao sentido da produção da identidade. E é no quadro dos avós, da sintonia com a rádio AM ou com os telejornais, que a experiência vivida consegue demarcar os fatores a serem considerados relevantes. É possível, mesmo, que aquele mundo completamente diferente tenha levado ao encantamento da adolescente Mônica Cunha. Mas há uma diferença singular, conforme podemos mergulhar em sua frase, entre o gosto, vindo da curiosidade de ouvinte, e a consciência sobre o que é o rádio, ao decidir seguir o campo profissional. De quais lembranças do rádio está narrando a entrevistada? O exercício dos atos de lembrar e do esquecimento tem de ser entendido com a profundidade que ultrapassa os dilemas de ser um contraponto teórico. É necessário considerá-los como elementos fundantes para que o sujeito viva, no presente, sem perder a relação com
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o passado. E é nesse movimento que os nomes dos programas, das emissoras são reordenados do passado. Sinceramente eu era muito menina assim. Então eu não me lembro. Mas de Jornal, era sempre o Jornal Nacional. Com Cid Moreira, Sérgio Chapellin. É muito essa referência que eu tenho porque era quando a gente chegava, quando tudo estava pronto em tarefa de escola. E a gente sentava na sala para assistir ao Telejornal. E eu menina não entendia muito aquilo. Mas acompanhava. Então eu me lembro muito disso. A gente assistia também na época tinha o Globo Repórter. Os programas de Rádio, você me apertou, eu não me lembro. Tinha o Zé Betio. Lembra do Zé Bétio? Tinha o Zé Bétio. Eu, senão me engano gente, não me falha a memória, tinha Rádio Mundial. É isso?...Mundial. Era uma rádio antiga que tinha muita notícia, tinha muita música também assim. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
A descrição permite compreender que Mônica Cunha tinha como única relação com o rádio, até aquele momento, o de ser ouvinte. E poder-se-ia perguntar porque essa convivência tenha ganhado força na memória da entrevistada? Porque a narrativa deixa claro que embora não tinha entendimento, a entrevistada acompanhava esse mundo do rádio. Mas há outros elementos de suporte da memória aqui no relato: a tarefa pronta da escola, a sala como espaço de sociabilidade, a atenção do telespectador que se traduz na produção de sentido do ato de assistir. E, “se não me falha a memória”, a Rádio Mundial. O ponto nodal da memória coletiva é que ela necessita ser sempre reforçada para ser amparada na relação com o outro. Por isso, não soa como estranho, que para tornar compartilhado a afirmativa, a frase de Mônica Cunha tenha se lançado em uma proposta de colaboração. A entrevistada opta, ao trazer do esquecimento para a lembrança, um sinal indicativo de colaboração do entrevistador. E assim lança a pergunta no decorrer da entrevista: Lembra do Zé Betio? E mais a Rádio Mundial. Ao desvelar que o acaso a conduziu para o curso de Jornalismo podemos já considerar que esse curso não estava entre os desejos ou interrogado pela consciência
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como sonho a ser materializado. Ou para traduzir: O Jornalismo não ocupou a primeira opção definida por Mônica Cunha. Ela explica que os pensamentos iniciais para prestar vestibular tinham como primeira opção o curso de Medicina. Seria uma decisão por amor. Ao desistir de mergulhar na Medicina, a entrevistada iniciou Cursinho para tentar o curso de Decoração. Entretanto, do amor da medicina para a realidade do curso de Decoração, havia no entremeio o desvelar do encantamento do mundo do rádio. Há um momento da narrativa do passado em que Mônica Cunha identifica, pela memória, a passagem de status da qual ela se distancia daquele papel de quem acompanha os avós para se efetivar como ouvinte. É quando se afirma, embora ainda pela percepção, de que queria muito o rádio. Na época, a gente tinha aqui em Uberlândia a Cultura FM, 95,1, que tinha uma programação muito forte. E a cidade, na época, não era tão grande como é hoje. Então havia uma interatividade muito boa, apesar de não ter a tecnologia que a gente tem hoje, mas tinha o famoso telefone de discar. Então os ouvintes tinham muita interação na rádio. E eu era uma das ouvintes. E aquele mundo começou a me encantar e eu lia muito. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
Nem Medicina, nem Decoração. Quando iniciou o curso de Decoração, veio a ousadia dos 17 anos. Sem qualquer conhecimento prático ou teórico, somente conduzida pelo mundo encantado. E a surpresa é que ao pedir a oportunidade, a porta foi aberta. E assim iniciou para Mônica Cunha os primeiros passos na profissão. No estado do presente, Mônica Cunha procura encontrar um entendimento que traduza o porquê de ter sido acolhida pelos profissionais da rádio. Porque eu tive, digamos assim, a ousadia, na época, de ligar aqui na rádio, sem experiência nenhuma, tinha 17 anos, experiência nenhuma, nada, nada, nada. Nem um conhecimento. E pedir uma oportunidade. E aí, na época, eu tive pessoas que me abriram aqui meu portão, minha porta, e me acolheram. E decidiram me ensinar. Eu acho que eles viram algum tipo de potencial. E
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começaram a me ensinar. Mas aí por uma série de questões não deu certo. Aí fui fazer Decoração. E aí neste meio tempo voltei pro Rádio e aí comecei a fazer Televisão, indicado pelo Urbano Lúcio, pelo programa rural chamado Terra da Gente produzido pela ABC Propaganda, então. E aí quando a faculdade veio, depois de uma estrada na prática tanto da TV Paranaíba, Aqui (TV Integração), que eu voltei para cá, que eu comecei aqui, aí eu fiz o curso de Jornalismo. Porque eu considerei importantíssimo para a minha formação. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
Mônica Cunha Ferreira se formou no Centro Universitário do Triângulo (Unitri), antiga FIT (Faculdades Integrada do Triângulo), que trouxe o jornalismo para Uberlândia. Ela faz parte da segunda turma de Jornalismo. Entrou em 1990, quando tinha 25 anos. Se considerarmos como início de sua carreira a ligação ousada para a Rádio, temos considerar que há uma distância de oito anos em que Mônica Cunha toma contato com a prática. E nesta soma que se efetiva, temos de acrescen tar outros três anos em que a entrevista realizou o curso de Decoração, na Universidade Federal de Uberlândia. O peso desta soma nos conduz a seguinte problemática: qual a expectativa orienta Mônica Cunha, já com oito anos de profissão na área, para realizar o curso de Jornalismo? E como essa experiência profissional a redefiniu sua compreensão teórica ao considerar que estava na segunda turma inicial da Universidade? A primeira questão nos coloca diante da situação da prática. Mônica Cunha tinha como principal expectativa aprender mais sobre técnica de reportagem, e inclusive melhorar a técnica também de apresentação. Como finalidade: agregar o que já sabia com os colegas. A memória formativa teórica revela que o conhecimento conceitual se efetivou como diferencial em sua formação. Tanto ao ponto que a entrevistada, em determinado momento, é conduzida, pela coerência do pensamento, a afirmar que entrou com uma expectativa e saiu com outra. Entrou com foco na melhoria técnica da prática e descobriu no decorrer do curso o fundamento teórico.
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Mas não foi somente o conhecimento teórico que eclodiu como surpresa afirmativa na experiência vivida de Mônica Cunha. E a afirmativa, precisa ser entendida se ocorreu a priori ou no momento mesmo do enfrentamento. E eu fui sem muita expectativa porque era começo de curso. Estava tudo nascendo ali, né? Mas me surpreendi porque tive excelentes professores. A gente teve ótimos debates. A gente teve, digamos assim, tivemos alguns ajustes a serem feitos. Eu estou com a palavra embate na cabeça, mas não é um embate. Foi discussão para tornar o curso melhor. Tanto da turma com os professores e vice-versa. E na verdade eu me surpreendi, mesmo sendo da segunda turma. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
Há uma espécie de relativização no discurso apresentado indicando como a memória do presente se efetiva como leitura do passado. A surpresa veio de ter ótimos debates com professores que a levaram ao aprofundamento do conhecimento teórico. Mas há na própria frase uma articulação indireta do pensamento. Que embora a primeira frase não se efetive, de forma material, ela ressoa como fator posteriori. Há uma mudança de significado entre considerar que durante o curso houve ajustes ou houve embate? Mais do que encontrar o sentido da resposta é importante aqui considerar o próprio fator do diálogo interno que a entrevistada estabelece para si, no momento em que define o que e com qual intensidade deve ser relatado durante a entrevista. E na negociação entre o termo ajuste em contraponto ao embate, o moderado veio como discussão com a finalidade de tornar o curso melhor. E ao mesmo tempo em que revela a dimensão do passado, Mônica Cunha traz uma consciência do tempo presente para indicar a forma de relativizar o conhecimento obtido na universidade. O primeiro aspecto é utilizar o comparativo das ex periências em que fora chamada para ser palestrante ou participar de bancas na Unitri. A experiência revela que a Universidade realizou investimentos que a deixou diferente em relação ao passado. Não se está aqui em debate se o investimento em tecnologia resulta, de forma direta, em uma mudança no processo de construção
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de conhecimento. Para se efetivar essa resposta teríamos de entrar em um fundamento sobre método. Mas o que se pode anunciar é que a quantidade de laboratório, em si, superior do ponto de vista numérico em relação ao do período anterior, demarca possibilidades qualitativas substanciais em relação ao que se tinha. Principalmente quando se sabe sobre a segunda turma. E com base neste quadro comparativo, a entrevistada desfere essa análise, redefinindo como contraponto as realidades anunciadas: E não tinha tanto laboratório como tem hoje na Unitri. Porque eu acompanho. Eu sou sempre chamada para fazer parte da banca. Mas assim, no que a gente tinha, eu aprendi muito. Sabe, aprendi com profissionais da fotografia, aprendi com profissionais do telejornalismo. E olha que eu já tinha experiência, mas aprendi muito. Aprendi muito sobre semiótica, que te dá uma visão, um entendimento um pouquinho maior. E eu confesso que me dediquei muito na faculdade. E saí de lá bem mais cheia de conhecimento teórico. Eu acho isso fundamental. Sabe, eu acho que a Faculdade, pelo menos no meu caso, acrescentou muito isso. A visão daqueles estudiosos que a gente tem na Faculdade. Então tudo isso me agregou muito, sabe. Eu entrei com uma expectativa e saí com outra. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
Entrou com uma expectativa e saiu com outra. Há outro sentido que podemos compreender essa frase, por meio da experiência vivida de Mônica Cunha. E se esse fator se apresenta com força no momento essencial da entrevista sobre a me mória de formação teórica, é porque demarca algo relevante na construção de identidade da jornalista. A Faculdade teve um peso importante porque a permitiu realizar, pensar, produzir e discutir sobre a Linguagem do Jornalismo, no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Em vez do tema, é importante trazer o sentido da problemática: há realmente uma semelhança entre a linguagem poética e a lin guagem do Jornalismo? Para a entrevistada, distante de ser comparativa, é preci so entender que cada uma delas tem sua particularidade. Mas se encontram em determinado momento.
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A descrição sobre esse momento vivido é de alegria e de orgulho por dois fatores. O primeiro é que Mônica Cunha reconhece a importância acadêmica de sua orientadora: “E eu fui orientada por uma excelente profissional e acadêmica que é a Vadalbieri Cunha, que senão me engano, é pós-doutora em semiótica. Então você pensa o tanto que eu tive de conhecimento assim dela”. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016) E o segundo fator por considerar o resultado deste trabalho como importante para compreender a profundidade com que avançou no processo de construção de conhecimento teórico. É importante notar que a Semiótica é uma das disciplinas que se efetivou como surpresa na construção do conhecimento da entrevistada. O que significa essa produção de sentido resultante do TCC da entrevistada? Ao ser indagada sobre a conclusão do TCC sobre essa problemática, Mônica Cunha efetiva um discernimento para se avançar na compreensão de sua frase: Eu tenho e posso até enviar pra você, mas foi que é possível sim você, em determinadas situações do jornalismo, não o factual? Mas em determinadas matérias e reportagens você, sabe, utilizar o recurso poético, pra deixar aquela matéria um pouco mais interessante, aquela história, que você conseguiu, um pouco mais interessante e que vai tocar a pessoa que assiste, principalmente, que é o meu ramo? Mais interessante, mais inspiradora. Mas eu posso mandar pra você. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
O Jornalismo pode ir mais longe, pode mergulhar de forma profunda na relação com o outro ao se estabelecer como recurso na linguagem poética. Não nas matérias factuais em que a estrutura do texto já vem definida para estabelecer uma relação impessoal com o outro. Mas em determinadas matérias. Pode ser para se tornar um pouco mais interessante ou por ser uma outra forma de contar a mesma história. Mas a entrevistada deixa preciso a finalidade com que esse recurso poético pode ser desferido pela linguagem: tocar a pessoa que assiste. E para tocá-la é preciso despertar o interesse. Ou num grau mais profundo: inspirá-lo. Se orientarmos pelo
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negativo do não-dito iríamos recair na discussão de que a maior parte das matérias jornalísticas são redigidas em uma linguagem que traz pouco atrativo para o leitor. Só que em vez de prosseguir neste campo de análise, do não-dito, é preciso apreender o significado do dito pela entrevistada. Porque em nenhum momento, Mônica Cunha se detém no pensamento crítico do factual para mostrar a relevância do uso do recurso poético. E então vem a problemática: o que seria realmente a produção de uma notícia em que o jornalista passa a utilizar o recurso poético? Estamos discutindo sobre a questão da forma da escrita, para ser mais atraente? Ou o que se efetiva como debate, ou melhor embate, é uma proposta de método que permita considerar a produção do texto como análise crítica da realidade social? O mergulho sobre a linguagem poética nos leva a aterrissar na compreensão da entrevistada sobre a realidade prática do Jornalismo. Pois, é importante considerar que, quando entrou na universidade, com idade de 25 anos, Mônica Cunha já trazia parte de experiência profissional. Então o orgulho e a felicidade do TCC pode ser entendido como um momento de pensar a teoria e a prática. Mas Mônica Cunha precisa contextualizar a produção de sentido do jornalismo, neste uso de recurso poético, diante do estado de tensão e conflito em que se estabelece a rotina jornalística. E então a pergunta se dispara para que ela responda em análise crítica: ao relacionar o embate do TCC, na universidade, com a rotina do jornalista, na prática, você considera que o jornalismo é mais ou menos poético? Pergunta boa hein, Gerson? Eu acho que estamos em tempos muito difíceis de poesia. E eu tenho visto, mas eu tenho visto assim, o Jornalismo tá mudando tanto. E ele tá trazendo uma conversa pro público. É claro que a gente tem que tomar muito cuidado com isso, vocês devem estar acompanhando alguns repórteres? Que estão trazendo uma nova linguagem, a linguagem da conversa. Isso é muito bom, porque nos aproxima das pessoas, as pessoas efetivamente nos sentem lá da cozinha, da sala, né, de onde elas assistem televisão. E essa empatia, essa conversa mais próxima fazendo com que ele se sinta parte da emissora que leva a notícia, né, isso é ótimo. Isso firma um laço de
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Gerson de Sousa confiança, de credibilidade, mas eu acho que ainda falta um pouquinho. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
Estamos vivendo tempos difíceis de poesia no Jornalismo. Mas eu acho que falta um pouquinho. As frases dos extremos dessa frase nos levam a um estado de análise do Jornalismo. E porque não, instaura outros dilemas: quais são os fatores que colocam a produção de sentido do jornalismo em tempos difíceis? E que significa esse pouquinho que nos falta para conseguir inspirar o leitor de forma que ele nutra credibilidade e estabeleça um laço de confiança? Em vez da crítica, apresenta-se o movimento, mesmo que seja pouco, dos passos traçados pelo jornalismo com o uso de recurso poético. O jornalista está propondo em suas matérias essa conversa com o público. E isso é importante porque trata-se de um movimento cuja finalidade nos levara, na relação comunicativa, a nos aproximar das pessoas, do lei tor. Mas nesse movimento é preciso ter cuidado para não ultrapassar a linha tênue. O que seria realmente essa linha tênue? Mais do que a resposta a essa indagação, a continuidade da frase de Mônica Cunha nos remete essencialmente a sua conceituação sobre o que estabelece como recurso poético: Eu acho que tem outras possibilidades de fazer essa... Porque não é só fazer a poesia, é você enxergar a poesia naquela história que te vem pra você contar. Então por exemplo, eu lembro que eu fiz uma matéria com o seu Nenê, que plantou mangueiras ali no distrito de Cruzeiro dos Peixotos, que tinha um jardim em frente à igreja. Isso... O seu Nenê fazia poesia com simplesmente a bondade dele de querer fazer algo bacana pro distrito, pro lugar onde ele vivia. E aí eu acho que cabe ao jornalista enxergar. Isso aqui é poesia. E eu posso fazer do meu trabalho um pouquinho de poesia pra, nesses momentos difíceis, em que a gente tem vivido um momento de limpa na nossa história, de muita mentira que vem à tona, né, e de coisas que vão tirando um pouco o brilho do dia a dia, a gente tem que ter esse... Sabe, essa sensibilidade de en xergar essa poesia e saber, que em determinadas pautas a gente pode trazer e surpreender quem tá lá assistindo e tá meio descrente, né? (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
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Eis aqui o relato dos momentos difíceis pelo qual passa o Jornalismo. Primeiro, nasce de uma crítica do próprio sentido objetificado do Jornalismo cuja linguagem facutal está diretamente vinculado ao problema da rotina. E segundo, porque das matérias que são disseminadas sobrevém a descrença de quem olha para a realidade e visualiza as mentiras sendo reveladas no movimento de fatos narrados pelo Jornalismo. Qual o papel do Jornalista neste contexto? Trilhar esse desafio de fazer o seu trabalho com um pouco de poesia. Mas essa definição ultrapassa a questão da forma do que será escrito. Ao contrário. A narrativa de Mônica Cunha apresenta o contexto teórico em que o trabalho não pode estar dissociado da realidade vivida. Ou melhor. Para formular a mesma frase com a perspectiva de Mônica Cunha: o olhar para a realidade do sujeito deve estar em consonância com o olhar sobre o fazer jornalismo.
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O seu Nenê faz poesia na comunidade quando seu ato de plantar mangueiras no Distrito de Cruzeiro dos Peixotos se materializa. Trata-se da poesia materializada no ato de bondade. Cabe ao jornalista ter essa sensibilidade de compreender a realidade que o atravessa a frente para que essa poesia seja, em primeiro momento, apreendida. É isso que podemos traduzir como um pedido emblemático: é preciso enxergar a poesia que emerge da realidade. E não ficar submetido a regra de estrutura imparcial de uma linguagem jornalística. Em sentido poético podemos dizer que para o jornalista inspirar o leitor, é preciso que ele se inspire na inspiração do ato de bondade do seu Nenê. E ainda se efetiva o último desafio: a mediação desse ato de inspiração só se efetiva se o jornalista souber, de fato, escrever sobre o assunto de forma que sua sensibilidade se concretize nas palavras. Ou mesmo na fala. No momento que a sensibilidade e a inspiração ressoam como elementos de exceção, é preciso enfrentar qual sentido a realidade está impondo como sentido de linguagem. E assim se efetiva outro questionamento existencial para entender o posicionamento teórico de Mônica Cunha: se nós não conseguimos ter um predomínio dessa poesia no cotidiano da produção jornalística, se deve a qual desses fatores: é falta na formação desse jornalista, é por causa do espaço, ou é pela rotina mesmo? E a resposta se efetiva como definidor: Eu acho que pela rotina. Eu acho que o principal fator é pela rotina. Né, eu acho que é isso, você tem que tá sempre atento... E com o ritmo da informação que a gente tem hoje, você não pode descuidar, a internet tá aí. A internet tá aí a todo momento, atualizando, atualizando, vem informação de rede social, vem informação de sites. Então o que eu vejo na minha experiência, você não pode descuidar muito disso, essa rotina é necessária, ela é uma realidade e a gente não pode descuidar dela. Então eu acho que essa rotina não é um entrave, mas ela tá ali. Agora cabe a nós escapulir pela porta da cozinha pra trazer a poesia e a leveza. né ? (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
A realidade da rotina do Jornalista está aí. E se efetiva em seu aspecto contraditório: ela é necessária, e não podemos nos descuidar dela. Porque há um tempo, um 104
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ritmo, em que a informação se estabelece do qual não se tem o controle. Pelo contrário, a condução apresentada por esse ritmo nos conduz ao que denominamos como atualizando, estar em com aquilo que se faz na realidade. É preciso aqui anunciar qual o conceito de rotina se efetiva na compreensão de Mônica Cunha para termos o dizível. E a resposta a pergunta sobre como avalia a rotina do Jorna lista, tem de ser interpretada em dois fatores: primeiro do ponto de vista objetivo e em seguida o subjetivo. A primeira indagação objetiva demarca as situações em que se exige do jornalista. Engraçado. Eu acho que como qualquer outra profissão, ela te exige muito dedicação, empenho, esforço, abrir mão de algumas coisas, porque a gente trabalha feriado, a gente trabalha sábado, a gente trabalha domingo, você acorda cedo, você trabalha feriado, né? Ás vezes você não pode se programar, mas pra mim, é uma rotina... Eu nunca questionei. Eu sempre gostei, nunca me importei de sair daqui 2 da manhã, nunca me importei de chegar aqui as 4h e sair às 13h. Sabe, nunca me importei de trabalhar no revellion, à meia noite, então é assim, é uma rotina que quando você tem a certeza de que você gosta, essa rotina passa a ser algo normal. Só que é uma rotina que mexe com pressão diária. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
É possível entender a rotina como algo normal sem que a normalidade do sujeito passe a ser alterada? Não se trata aqui de um jogo de palavras desferidas para se utilizar somente como forma poética. Esse problema lançado tem de ser entendido no dilema da inspiração, desse impasse de ser sujeito. Pois a normalidade objetificante da rotina tem consequências na demarcação da produção de sentido do cotidiano. Ainda mais quando o próprio sujeito atribui outras exigências sobre si, que acentuam a profundidade existencial. Eu tenho um nível de exigência comigo muito sério. Então a minha exigência comigo mais a pressão, mas o que você tem que entregar, mais a sua responsabilidade de levar a informação da maneira correta, tudo isso mexe com o que? Com o nosso corpo e a nossa mente. Então a gente tem que ter noção disso, dessa pressão que existe, dessa exigência que existe, da responsabilida105
Gerson de Sousa de e quando a gente sai, você tem que cuidar disso lá fora. Pra que você possa voltar e fazer o que você ama fazer. Então eu tento, já tive uma crise de estafa uma vez, há muitos anos, e mudei isso. Mas a nossa rotina eu acho que pra quem escolhe assertivamente o Jornalismo, você assimila e ela tem um gostinho bom. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
O ritmo exigido da rotina do Jornalismo mexe com o corpo e a mente do sujeito jornalista. Essa exigência só não se torna insuportável, ao ponto de retirá-lo desta vida, porque se ama o que faz. E se o sujeito perde o controle de direcionar o seu tempo e espaço diante da rotina, ele terá que assumir isso quando se retirar desse ambiente. É no mundo lá de fora da pressão jornalística, que a pressão arterial, a
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crise de estafa precisa ser tratada para que se possa voltar a fazer o que se ama. Po deríamos aqui entender que Mônica Cunha retrata a rotina de forma poética? Mesmo diante da experiência vivida em que o corpo e a mente foram diretamente afetados por doses múltiplas de pressão, encontra, do tempo impositivo, um fragmento de tempo em que resulta na assimilação do sujeito em ter um gostinho bom? É provável que o termo que se apresente de forma contumaz, na narrativa da entrevistada, seja: para quem escolhe assertivamente o Jornalismo. E os indicativos vão indicando que em meio a rotina, em meio às matérias que disseminam o retrato desta rotina, há momentos em que a poesia surge, a surpreender até aqueles que se anunciam assimilar a rotina. Pra você ter uma ideia hoje a gente estava discutindo. A gente está com tanta matéria pesada em todos os telejornais que a gente vê, de todas as emissoras. E ontem a gente se surpreendeu, porque o Jornal Nacional abriu, o Jornal Nacional é... O Jornal Nacional, ele abriu com duas matérias levando exemplos que deixam a gente mais esperançosos. Então tá vendo, como as vezes você pode quebrar essa rotina? Que tá pesada? Você traz um caso com a poesia da vida pra poder mostrar, então a história de um casal que estava desempregado e que estava passando dificuldades e que de repente alguém resolveu ajudar esse casal que também ajudou outras pessoas. Então foi um pouco da poesia que se tem que pela tão complicada que a gente tem a gente não vê e que foi matéria de capa no Jornal Nacional. Espaço a gente tem. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
A defesa premente de Mônica Cunha se anuncia aqui com um toque de enfrentamento para entender o Jornalismo como linguagem poético em confronto a linguagem jornalística. Há espaço sim para que as matérias sejam apresentadas e invadam o espaço da estrutura, demarcado pela rotina, e produza um novo sentido. O termo conceitual afirmativo aqui está em que é possível quebrar a rotina. E a extensão desse processo se efetiva nesta relação comunicativa em que os sujeitos precisam enxergar o ato singular exteriorizado na vida em sua construção poética para tratá-la com poesia. 107
Gerson de Sousa E quando o espaço e o tempo são invadidos, destituídos do reducionismo imposto pela estrutura, se efetiva a esperança no jornalismo. Se prosseguirmos neste confronto teríamos obrigatoriamente de fazer uma nova pergunta: como é possível que essa rotina seja quebrada com mais normalidade? A gente tem que equilibrar. Isso tudo. Agora você trouxe uma coisa interessante. Porque não trabalhar na faculdade também essas questões de como você pode fazer com que a poesia da vida, principalmente, ela seja presente. Nos telejornais, no jornal impresso, na revista, no rádio, na internet, né. Por que não? (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
A resposta de Mônica Cunha traz um elemento diferencial. Se por um lado ela confessa ter entrado sem expectativa do curso, pois se tratava da segunda turma, por outro foi criando, com a inspiração do TCC, uma expectativa para conduzir a interpretação do significado do que é o Jornalismo. É preciso equilibrar, no tempo e espaço da rotina, matérias que passam a disseminar a linguagem poética a partir da apreensão existência da poesia da vida na realidade social. Isso também é fazer jornalismo com responsabilidade. E nesta dialética entre a prática e a teoria, reflexão se sobressalta no momento da entrevista para nos remeter novamente no percurso de formação teórica da universidade: por que não trabalhar na Faculdade a poesia da vida na construção da notícia? E assim a discussão retorna para o campo da universidade, cujo princípio agora se efetiva com outra perspectiva. Se o ensino de graduação atuar como campo de enfrentamento e possibilitar ao graduando que se forme com a proposta de enxergar a poesia na vida, podemos ter um outro jornalismo. Ou, pelo menos, igualar em quantidade as matérias produzidas com o recurso poético com as de linguagem factual. Eis o campo da dialética: a profissional que entrou no jornalismo para melhorar a técnica é surpreendida pelo conhecimento teórico. E do conhecimento teórico veio o trabalho de TCC. E com o TCC a defesa de que a linguagem poética deve ser o recurso inspirador tanto para a escrita quanto para o leitor.
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Mas para que essa alteração aconteça, como da entrevistada, é preciso ser surpreendido. E nesta surpresa, o sujeito salte do reducionismo técnico a que é levado para fazer jornalismo para a profundidade conceitual, no qual o próprio pensar é conduzido para ser interrogado no cotidiano. Por isso, diante da pergunta sobre as suas referências de formação, Mônica Cunha é explícita sobre as disciplinas que considera fundamental para o sujeito jornalista. A Antropologia e a Filosofia. Antropologia porque eu acho que você conhece muito de gente, dos seus hábitos, dos seus costumes, da sua história, né? E isso eu acho que tem muito a ver com o Jornalismo. E a outra disciplina é a Filosofia, porque você traba lha o pensamento, você trabalha o comportamento, você trabalha o desafio de pensar e encontrar uma... Não é uma nova realidade, mas uma nova forma mesmo de enxergar, a nossa sociedade, a nossa realidade. Então essas duas disciplinas assim eu considero que foram... Eu tinha paixão, sabe, por elas. E tive professores muito bons, então eu considero essas duas disciplinas, Antropologia e Filosofia, que eu tive? ? (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
Se nos detivermos nas justificativas das disciplinas em que a entrevistada apresenta como referência, somos levados a retornar a pergunta: por que não trabalhar na Faculdade a poesia da vida na construção da notícia? E assim temos de fazer um movimento de desconstrução sobre a própria experiência de vida de Mônica Cunha para alcançarmos esse ponto de conquista do pensamento crítico. Quando se refere a disciplina de Filosofia, a entrevistada narra sobre esse desafio de pensar e enxergar uma nova realidade. Essa nova forma de enxergar a realidade por meio da Filosofia, não estaria aqui o caminho teórico para se pensar a realidade? Essa frase significa que para valorizar o recurso poético, em vez de treino de redação, é preciso problematizar o pensamento do sujeito no cotidiano. Para que o sujeito possa olhar para a realidade e enxergar a poesia da vida. Quando se escreve que se trata da Filosofia, do pensamento crítico, e não do ensinamento de técnicas como contingência de reforço, saímos desse processo de entender o jornalismo como procedimento tecnológico para o fator epistemológico. 109
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Assim como a Filosofia, a paixão por Antropologia a redefine. Trata-se de se interessar pelos hábitos, costumes, da história das pessoas com as quais você passa a conviver e sociedade. São essas as duas paixões de Mônica Cunha. E por que não dizer que essas duas referências de disciplinas foram fundamentais para finalizar o TCC e recuperar, no presente, o sentido da linguagem poética. Ou pelo menos: “acho que essas duas disciplinas são fundamentais, pra que a gente possa ter, assim, uma visão do mundo que a gente vive”. Da memória de formação prática surgem alguns fatores que demarcam o problema de formação de Mônica Cunha. E assim aos poucos chegamos a entender os elementos de embate. A entrevistada cita primeiro o amor pela TV para depois revelar que na universidade faltou um pouquinho de técnica. eu acho que o que faltou, e é perfeitamente compreensível, porque é o começo, eram os primeiros passos, mas eu acho que faltou muito trabalhar mais a técnica do telejornalismo, de entrevista... Como que se faz uma entrevista? Como deve ser a sua postura? Como deve ser a sua preparação? Então na minha época faltou muito isso. Eu já tinha uma certa noção, queria mais, mas pelas circunstâncias não foi possível. E eu me lembro também que rádio a gente teve tão pouco... (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
Como se faz uma entrevista? Trata-se de uma pergunta básica de formação do graduando. E se a entrevistada reconhece, no tempo presente, que faltou esse conhecimento prático é porque em algum momento a realidade do mercado de trabalho também exigiu de si uma resposta. E eu acho que o rádio, apesar de toda tecnologia que a gente tem hoje, ele é tão forte, sabe? Eu acredito tanto na força dele ainda, sabe? Do radinho lá da cozinha da Dona Rosa, que tá lavando a louça. Mesmo que ela tenha o celularzinho dela, mas ele tá lá do lado dela. Então o rádio é muito forte, e eu me lembro que na época foi muito falho isso. Teve pouca técnica. E querendo ou não, Jornalismo é técnica quase 90%. (Entrevista, Mônica CU NHA, Jun. 2016)
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A compreensão de que o Jornalismo se efetiva em ter quase 90% de técnica nos coloca diante da profundidade do problema de formação de Mônica Cunha. A entrevistada sempre enfatiza que tudo se fez dentro das possibilidades. Mas adiciona o limite do qual o embate se chegou para que pudessem atingir o conhecimento. É, foi assim, um professor foi dar aula de..., um exemplo, tá? Um professor X pra dar aula de telejornalismo. Mas ele não tem nenhuma vivência em telejornalismo, então foi isso, mais ou menos, uma situação que a gente viveu e que a gente teve que questionar. Né? De trazer um profissional que pudesse trazer vivência da área pra gente. Foi mais ou menos um dos casos que aconteceram foi esse. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
Como é possível ministrar uma disciplina para inspirar os alunos na proposta jornalística se o professor não tem vivência neste campo? É desse embate que Mônica Cunha e os alunos foram construindo de forma coletiva a formação no curso. Por um lado, identificamos as questões estruturais da universidade que afastam essa possibilidade de investir neste recurso poético. Por outro lado, temos de considerar a temporalidade do passado em relação ao contraponto de Mônica Cunha no presente. A entrevistada sempre precisa, de forma enfática, que é preciso considerar o contexto de ser segunda turma do curso ainda em início. Ao tomarmos essa referência somos então conduzidos para outro enfrentamento do qual se leva a análise conceitual do Jornalismo. E então a pergunta se efetiva: Quando o jornalista está escrevendo, na prática do mercado de trabalho, o que predomina: ele escreve mais para si mesmo, para o público ou mais para o editor ou para a empresa? A resposta vem com essa concepção conceitual de Mônica Cunha sobre esse caminho de descoberta, esse caminho de busca da conversa do jornalista com o seu público. Como já identificamos, esse é o ponto central da concepção da entrevistada. E ela primeiro explica a pergunta: será que o jornalista tem o conhecimento de “quem é esse público pra quem eu escrevo?”
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Gerson de Sousa Nossa, gente, esse público a gente descobre todos os dias. Olha, eu estou com quase 30 anos aprendendo sempre pra ser jornalista, e esse público a gente tá sempre descobrindo. Sempre, sabe? Se ele é trazer o público jovem pra gente. O que que o público quer? Ele quer mais segurança? Ele quer mais serviço? Ele quer mais política? Ele quer mais saúde? Sempre a gente tá tentando descobrir: quem é esse público pra quem a gente leva o nosso serviço? E a gente sempre se preocupa em falar com ele. Então quando eu estou redigindo uma cabeça pro MGTV 1ª edição eu tenho que saber até as palavras que eu estou usando pra saber se tanto a Dona Maria do bairro Morumbi como um empresário que tá lá na casa dele no centro da cidade, se ambos vão entender. Porque se um deixar de entender meu papel foi incompleto. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
É preciso descobrir esse público para quem se escreve todos os dias. E conse guir o desafio de informar de forma que o entendimento sobre essa notícia esteja ao alcance do empresário e da Dona Maria. A narrativa de Mônica Cunha deixa claro que esse público não está somente como dado. O público está como problema conceitual na teoria do processo comunicativo. Então, hoje, quando a gente escreve, a gente pensa nesse público, que nos desafia todo dia a saber quem ele é. Né? Pra que a gente possa atender as demandas dele, as angústias dele, as respostas desse público, né? E aí esse é o fator principal, mas claro que a gente tem que levar em consideração também a linha editorial, como que você faz, que tipo de português você leva, que tipo de clareza quer você leva, qual o seu formato no jornal. E aí eu bato na tecla de novo que o Hoje Em Dia, assim, a gente tá trabalhando muito a questão da conversa. Sabe? Pra aproximar cada vez mais e tentar sempre atender essa expectativa e essa resposta que o público pergunta, entendeu? Mas hoje a gente escreve pra essa pessoa. Toda vez que vem um texto, sabe, tudo, eu penso “será que eles vão entender? Será que isso está claro?” (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
Mônica Cunha bate sempre nesta tecla: para que se escreva para o público é preciso atender as suas angústias, atender as demandas e estar próximo o suficiente para que consiga saber as suas respostas. É preciso estar próximo para que se esta-
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beleça uma relação comunicativa neste desafiador movimento da rotina em contraponto ao cotidiano. E para que o jornalista escreva o texto neste processo de construção de identidade é preciso que ele desfaça a representação do público, tomada de forma estática. Pois aqui está o desafio: a todo dia somos levados a entender quem é ele. E assim o público salta de um dado estatístico, de uma suposta homogeinização em que há negação da identidade, para surgir como uma produção de sentido, um sujeito do processo comunicativo. Ao considerar o movimento do público neste processo, o jornalista então é levado a refazer diariamente a pergunta que o desloca sempre nesta constituição: será que eles vão entender? Nota-se que eles estão no plural a demarcar as diferenças que constituem cada particularidade e ao mesmo tempo a identidade do público como sujeito. No entanto, há outros fatores que precisam ser levados em conta nesta escrita, que já se sabe não é livre ou está alheia da força da estrutura. E entre elas está a linha editorial do qual o jornalista está. Mônica Cunha perpassa pelo problema, sem trazer uma projeção analítica de como essa força pode desviar desse caminho do leitor como sujeito. Para que se efetive o contraponto, a narrativa da entrevistada é conduzida para entrar em outra discussão que exige novamente o estar em embate: a historicidade do fazer jornalístico. A resposta tem a entonação de considerar que o Jornalista é um contador de história. Sobre a pergunta se considera que o trabalho do jornalismo é histórico, Mônica Cunha é enfática: “sem dúvida nenhuma que considero histórico”. O diferencial aqui é entender por quais caminhos a entrevistada segue diante dessa explanação em que articula, pelos fatos ocorridos, o que se apresenta como fator histórico. Sabe, é engraçado que quando você fala assim “você considera o nosso trabalho histórico?” aí me vem uma imagem lá de 89 do Pedro Bial cobrindo a queda do Muro de Berlim. O que ele passou ali? Um dos momentos mais im portantes da nossa história, que foi a derrubada daquela divisão entre as duas Alemanhas. Então eu acho que o nosso trabalho é histórico, a gente tem a 113
Gerson de Sousa Constituição lá da década de 80, a gente acompanhou a constituinte, a gente teve o movimento das Diretas Já, a gente teve a queda do Collor, agora mais recentemente o afastamento da presidente Dilma. Né? Então querendo ou não, o Jornalismo, além de investigar, apurar, questionar, apresentar um serviço, mostrar tudo isso, a gente... Eu diria que somos contadores da história, estamos ali, a história que todo mundo faz. Desde os mais simples, aos mais intelectuais, aos políticos, ao senhorzinho que tá lá no campo. Então eu acho que o Jornalismo, nessa mistura toda, ele é, sem dúvida, um contador de história. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
A queda do muro de Berlim com a cobertura de Pedro Bial é a primeira imagem. Em seguida há a descrição de outros fatos que levam Mônica Cunha a explicar sobre quais alicerces define a historicidade do Jornalismo. Há um privilégio de acentuar os grandes fatos, no primeiro momento, para depois ao final estender que o valor histórico pode ser entendido ao cotidiano em que o senhorzinho produz sentido no campo. E ao considerar essa dissociação, vem a primeira contraposição. Já que o fato se efetiva como prioritário, será que o jornalista se efetiva como sujeito neste processo? Ou para ser mais exato: você considera que o jornalista, quando está escrevendo a sua matéria, ele tem consciência de que ele está escrevendo história? Não. Isso não vem claro assim, eu acho que vem depois. Porque no momento ali que ele está escrevendo, ele está preocupado com todas as informações que ele apurou, pra escrever aquela matéria da melhor forma possível, da forma mais clara, pra chegar, porque ele é ponte, no seu objetivo que é o públi co. Então naquele momento talvez ele não tenha essa consciência clara. Mas depois que isso passa ele diz “puxa, ajudei”. Eu acho que é assim que funciona. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
O jornalista quando escreve a sua matéria não tem consciência sobre a historicidade. E quando acontece então essa retomada da consciência? Mônica Cunha considera que essa consciência vem depois da divulgação do fato. É como se considerasse um tempo de distanciamento do sujeito jornalista para que tome consciência. Um distanciamento que parece estar distante teoricamente do recuo histórico, ne114
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cessário para se escrever sobre a historicidade do passado no presente. O ponto provocativo é que a mediação com o público é o principal elemento que estabelece os limites da consciência da produção de sentido. Então poderíamos avançar com a entrevistada para que se efetive essa analítica: qual elemento é definidor para que se reconheça o jornalismo como histórico: seria o fato, ou é o jornalista que escreve ou é o tempo que se torna histórica? Seguindo a linha de argumentação, a entrevistada afirma: O fato, né? Eu acho que o fato que vem pra gente, que você noticia e que a partir disso tudo vai se transformar em história. Eu acredito que é o fato. Que te leva a desenhar essa história. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
O primeiro fator reativo é considerar que a entrevistada, ao reconhecer o fato como ponto nodal para entender o fator histórico do jornalismo está nos colocando dentro de um problema teórico. Essa compreensão poderia nos levar que se está funcionalizando o fato, hierarquizando um valor dele em relação ao sujeito que es creve. Mas há outro contraponto que não podemos deixar à margem: o recurso poético. Ao considerar o recurso poético aqui entenderíamos que, em vez da hierar quização, é na relação dialógica do sujeito jornalista com a interpretação do fato, neste olhar poético, remetido para o leitor como sujeito, que se efetiva o tempo de reconhecer como história. E então somos levados a considerar como histórias contadas desde o plantio da mangueira do seu Nenê até a queda do muro de Berlim. A justificativa de todo esse processo veio com outra indagação problemática. Você considera como problema no jornalismo essa ausência de compreensão do jornalista no momento em que escreve? E Mônica Cunha encerra a linha de raciocínio retornando a esse processo comunicativo: Não. De forma nenhuma. Não considero ela um problema. Sabe, eu considero que seja, naquele momento, o foco é mostrar aquele fato com toda verdade, com toda a responsabilidade, com tudo que você viveu, discutiu, e tudo isso com a sua técnica vai chegar até a pessoa da forma mais imparcial, diga 115
Gerson de Sousa mos assim, e verdadeira possível. Aí depois sim, se torna história. Mas eu não vejo problema nenhum, porque ali você está focado. Quando você sai pra fazer uma matéria você já imagina o que você vai perguntar, você prepara uma lista de perguntas, né, então ali é foco. Depois você construiu a história. Isso é o máximo. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
Mônica Cunha era adolescente quando decidiu ligar para a Rádio e construir seu futuro como jornalista. Do acaso passou a ter experiência vivida na área, se graduou e exerce a profissão. Mas os caminhos não percorridos sempre permanecem como trilhas que, de alguma forma ou outra, passam a ser encontradas pelo sujeito seja no movimento do presente, seja no movimento do passado. Ao ser perguntada sobre onde deixou o desejo de cursar Medicina e Decoração, a entrevistada apontou: “No coração (risos). Eu deixei no coração”. Ela descreve que os três anos de cursos a trouxeram amigos para a vida toda. E muito do que eu aprendi lá eu uso no Jornalismo, por exemplo, História da Arte. Eu tive história da arte, e querendo ou não, isso me ajuda, no momento que você vai, sabe... Ou ler alguma coisa, ou de repente você vai visitar uma exposição e aquilo eu sei o que é e posso trazer de repente pra trabalhar na TV também. Então o que eu fiz na UFU não ficou em vão, de certa forma deixou um legado. Né? Que eu pudesse utilizar na profissão que escolhi, que foi o Jornalismo. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016)
E o amor pela medicina seguiu um caminho mais materializado no Jornalismo. E a medicina, olha pra você ver que interessante. Querendo ou não, mesmo que não tenho feito, amo medicina e acho que até teria me dado um bocadinho bem na profissão também, mas querendo ou não, no Bem Viver, que foi um dos pontos altos da minha trajetória enquanto jornalista, sabe, fora quase dez anos, eu pude de certa forma aprender um pouco. Porque foi um programa voltado pra saúde, então todo sábado a gente discutia algum distúrbio, alguma doença, o caminho da prevenção... Então eu pude de certa forma, conhecer um pouco desse mundo da medicina com o Bem Viver. Então assim, não foram sonhos deixados, não foi uma faculdade largada de mão. Querendo ou não cada um deles ficou na minha vida de alguma forma. (Entrevista, Mônica CUNHA, Jun. 2016) 116
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O amor pela medicina se transfigurou em tema no ponto alto da carreira de jornalista de Mônica Cunha. E os três anos de decoração são conduzidos para o conhecimento conceitual na leitura interpretativa da TV. Mônica Cunha tem a certeza, por meio da experiência vivida, que o legado deixado pelo curso de Decoração e o amor pela Medicina de alguma forma estão sendo atendidos em sua vida. Os sonhos nunca são deixados de lado. Não se trata de deixar de lado por uma atitude racional do sujeito ao buscar outros caminhos de vida. Mesmo como o caso de Mônica Cunha, na qual o Jornalismo não pertencia à memória coletiva como profissão na família. A descoberta do Jornalismo, seja por curiosidade, seja pela necessidade posterior de conceituação crítica, remete a um fator inevitável do inconsciente. O conceito de Jornalismo então precisa estar problematizado com essa relação comunicativa: em meio a produção da rotina das matérias, em meio a subversão do poético para dar sentido ao cotidiano, em meio ao fato como definição de história, o sujeito, nesta relação de tensão e conflito, vai se construindo pela identidade. Uma identidade construída por meio do diálogo concreto entre a realidade vivida e os desejos e sonhos em materialidade nos movimentos de passado e presente.
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Capítulo 5
João Feliciano
Assessoria
A interrogação do eu provocado na produção de sentido
S
e pudesse dimensionar o grau de realização de João Paulo Feliciano Fernandes no mergulho dialético da entrevista há um termo que singulariza: provocação. Ou Melhor: “eu gosto de ser provocado”. O termo precisa ser
interpretado no sentido da história de vida de João Fernandes. Mas aqui já torna necessário fazer uma interrogação: o ser provocado é uma resposta efetiva do sujeito João Fernandes como diálogo construtivo de si mesmo na construção da identidade? Ou o termo provocado indicaria um comportamento adicionado à exigência de resposta na experiência vivida? Esse questionamento percorre dois sentidos: o primeiro, a interrogação como constitutiva do eu; a segunda como reação para o sentido ao outro. É com essa di mensão interpretativa que devemos percorrer a produção de sentido de João Fernandes. Há descobertas e interrogações que ele narra estar desvelando no decorrer do próprio processo de diálogo comunicativo da entrevista. É como se estivesse a todo momento percorrendo suas análises na vida sustentado nesse próprio teor existencial: para que se possa ter consciência sobre a realidade em que o sujeito vive é preciso que ele seja provocado. João Feliciano cursou duas faculdades. Começou na Faculdade Católica de Uberlândia, em 2009. Como o curso foi fechado por motivos financeiros da empresa, ele estava entre os alunos do curso que foram transferidos para o Centro Uni -
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versitário do Triângulo (UNITRI), onde se formou no curso de Comunicação Social: Habilitação em Jornalismo. Essa mudança longe de trazer justificativa para revelar que o contexto o prejudicou em sua formação como jornalista, o leva sempre a ponderar que, na prática, passou por uma feliz coincidência: Eu gosto de destacar isso pra todo mundo porque às vezes faz uma mudança as pessoas ficam “nossa e ai cara, te atrapalhou?” E pra gente foi bom porque a católica não tinha muito -, eu não sei se vocês chegaram a conhecer, vocês são agora dessa leva? (...) Não tinha laboratório, era tudo... Não é que era arranjando é uma palavra ruim isso. Mas, eles se esforçavam pra você ter uma vivência de laboratório. Mas tinha que ser fora do prédio da universidade e isso começava a partir do 5º semestre e justamente nessa época que a gente ia começar a colocar a mão na massa a gente foi pra Unitri que, querendo ou não, independente do que as pessoas costumam falar, tem uma boa estrutura, pelo menos pra essa questão, então foi positivo. (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
A trajetória profissional deste jornalista tem início em 2010. Mais precisamente no primeiro estágio, do então Jornal Correio de Uberlândia. Essa primeira experiência, estranha no primeiro momento porque almejava trabalhar em TV, se estendeu de outubro de 2010 a agosto de 2013. Naquele ano, entrou para a FSB que é essa agência que atende a Algar Telecom. Essa é a segunda experiência em assesso ria de imprensa: a primeira aconteceu na empresa Kompleta Comunicação, que atende, atualmente, o grupo Algar pra fazer assessoria de imprensa, nessa época eu tive contato com TV, eles tinham um programa da revista Cult, acho que chamava Cult Clã, acho que era de colunismo social e apesar de ser bem Amauri Junior assim o programa... mas foi muito bom de você começar a ter noção de postura no vídeo, a sua voz como você trabalha ou não, luz. Porque é bom você ter um conhecimento por de trás também. Um dia você pode estar segurando uma câmera pra você gravar sua própria matéria. (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
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Em que contexto podemos considerar que existe uma relação direta entre a autoidentificação de ser tímido com a definição da escolha de se inscrever no Jorna lismo? Esse fator é importante por considerarmos que a localização da timidez em seu ser o conduziu para o primeiro desafio provocado pela própria vida. É sintomático a frase do entrevistado de: “eu tive um tempo que eu era meio tímido assim, hoje em dia isso já não existe mais. Mas eu vi que eu queria trabalhar com comuni cação”. No exercício de refazer o caminho pela memória, João Feliciano narra a experiência de jovem aprendiz que realizou na Caixa Econômica Federal como o ponto essencial para a escolha do curso. Natural de Monte Carmelo (MG), João Feliciano estava no Ensino Médio, com idade 15 anos, quando relembra um momento do passado que justifica o caminho do presente: E lá a gente tinha um processo no colégio, que era uma espécie de jovem aprendiz que a gente trabalhava na Caixa Econômica e em outros lugares. E eu estava com 15 pra 16 anos e eu passei nesse processo e trabalhei na Caixa durante um ano. E eu lembro que lá mesmo que não era uma coisa muito legal. Mas a gente fazia atendimento ao público. Porque quando você fala de jovem aprendiz é mais ou menos organização de papel né, organização de planilhas. E a gente chegou a fazer atendimento, e eu vi que eu gostava muito desse contato com pessoas, sabe? (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
O ponto mais fundante dessa definição está longe das papeladas ou do cálculo financeiro, mas no diagnóstico atual da importância de deter informação. O tímido descobre que essa relação de sociabilidade de lidar com a pessoa e ouvir as histórias por elas narradas se torna essencial para o aprendizado. E ao mesmo tempo importante para produzir sentido para a vida. No entanto, João Feliciano teve de se submeter a outros dois fatores antes de se inscrever no Jornalismo. O primeiro é o Teste Vocacional. Ele revela que os testes sempre apontavam para a área de Artes.
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Talvez seja por isso que as primeiras escolhas sobre o que fazer na graduação tenha perpassado pela Música e pelo Teatro. É nessa revelação que se defronta o segundo fator: a orientação da família. João Feliciano analisa atualmente que se trata de um pensamento tradicional a orientação recebida da mãe: faz primeiro um curso que possa lhe dar dinheiro. E assim nesses dilemas que o Teatro e a Música foram superados pela definição de fazer jornalismo, aos 17 anos. eu não arrependi hora nenhuma, eu entrei com 17 anos na faculdade e sai com 21, uma idade que quando você fala assim parece relativamente novo mas eu acho que tudo aconteceu na hora certa, é bom você ter esse tipo de experiência, você tem uma maturidade diferente. (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
Há outra referência que sustenta a busca prática de João Feliciano na definição do jornalismo: o encanto pela TV. A possibilidade de assistir a MTV ao ter acesso à antena parabólica trouxe para o sujeito uma outra realidade da qual ele considera importante: Por que que eu to contando esse processo da MTV? A MTV e jornalismo é bem destoante, mas foi vendo MTV que eu falei: cara, é meio que isso também, sabe? Essa produção de audiovisual é massa, e eu não quis fazer jornalismo pra ser o Willian Bonner ou alguém da Globo. Não! Nunca tive essa pretensão e hoje não tenho também, de ser o jornalista da Globo, de ser não. Eu acho que eu tenho outras necessidades, e ai juntando isso eu falei: não, é o jornalismo mesmo, comecei e me encontrei de verdade. (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
Para entender o sentido da frase de ter se encontrado de verdade, a narrativa histórica de João Feliciano necessita atravessar o primeiro estágio que fez na área de Jornalismo. Há, por ele, a própria consideração que se trata de um jornalista na contramão ao revelar que não era uma pessoa de leitura. E se tomarmos outros elementos da representação do jornalista, há outro fator que remete ao sentido negativo. 124
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O pessoal geralmente fala que jornalista lê muito ou tem um vício, ou fuma, bebe, não sei o que, eu já bebi bastante mas hoje eu não bebo mais, não fumo nem nada disso e eu nunca fui um leitor, eu sempre admirei a leitura mas é uma coisa que nunca me provocou. (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
Sem ter tesão pela leitura, sem fumar e sem beber. Poderíamos questionar aqui o reducionismo com que se exterioriza sobre a representação do sujeito jornalista, caracterizado aqui mais pela generalização do comportamento com que lida com a rotina de trabalho do que de sua constituição de identidade. Mas se esses elementos representativos perfazem as referências iniciais do entrevistado, o que levaria então a sustentá-lo na decisão e no caminho? É nesse espaço de tempo em que necessita construir outros elementos de referência, que João Feliciano apresenta como curiosidade do passado: a realização do primeiro estágio na área de Jornalismo. Para si mesmo já havia uma definição: sem paixão pela leitura, o sujeito já havia tomado a decisão: “não, jornal impresso vai ser a última coisa que eu vou fazer, não quero de jeito nenhum” (risos)” (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016) Em vez da última, foi o primeiro enfrentamento. A experiência vivida no Jornal Correio de Uberlândia iria então levá-lo ao que é possível identificar como caminho de sua produção de sentido no jornalismo. Porque é necessário entender: primeiro, como alguém que não possui amor pela leitura se define em realizar o curso de Jornalismo? E segundo, como a primeira experiência, que tinha tudo para ser traumática, o conduz para o outro extremo: o prazer inenarrável agora da leitura? A resposta não está no texto, mas no que ele revela como ter sido provocado. “gente mas eu peguei uma paixão no negócio, hoje eu amo escrever. E uma das coisas que mais me dá prazer é escrever, e não escrever tipo ‘ah, eu voei’ (risos) não, mas tipo, eu gosto de ter uma provocação...” (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016) Esse elemento provocador que atirou João Feliciano para o prazer da leitura e, assim, afirmar um elemento de sentido de sua representação do que era jornalista, tem nome: Ricardo Ballarini, que atuava como consultor de conteúdo do Correio. 125
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João Feliciano revela que tê-lo encontrado neste momento e contexto na redação é a maior prova de que é um homem de sorte. Mas o que fazia Ricardo Balla rini para que a concepção de jornalismo e do ato de escrever tomasse novo significado para João Feliciano? O consultor de conteúdo do Correio de Uberlândia pegava cada texto e devolvia com apontamentos sobre forma, conteúdo e ao que parece, a própria concepção do que é notícia. E assim o comentário do texto ultrapassa o terreno da análise de conteúdo para se atingir outro elemento do método que a falta de experiência do estagiário até aquele momento não conseguia alcançar. E assim ao ultrapassar o conteúdo, Ricardo Ballarini atingia outros sentidos do estagiário. Esse sentido de provocar chegava até ao limite do sujeito enquanto existência no campo profissional. Como ele fazia isso: ele instigava a gente. Porque meio que colocava em cheque o seu profissionalismo. Mesmo que enquanto estagiário a gente podia participar disso que foi uma coisa muito boa, mas você fala: “nossa, não é possível que eu sou tão burro assim” (risos) Você entrega os textos e o cara devolve tudo vermelho ali pra alterar, e isso foi minha assim, não, eu tenho que melhorar, porque não estava bom. Eu quero entregar um texto redondo e ai eu comecei a pegar essa vontade, sabe? E depois eu vi que foi uma paixão mesmo, né? As vezes acontece isso, a gente não gosta de terminada coisa “ah, não gosto de comida japonesa” mas ai eu experimento... e acho que o contexto foi meio assim. (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
O encerramento da frase ao tratar com analogia a comida japonesa parece ser desvio, ou uma situação deslocada, se considerarmos que a ênfase do discurso está somente orientada pela lógica do comportamento. Pois é importante considerar que há uma distância qualitativa na própria constituição do sujeito ao deixar de ter hábito de leitura para o prazer de ler, do que passar a gostar de comer comida japonesa. Mas o centro deste processo está em mostrar para o Ricardo, e depois se estabelece para si mesmo, que quem está entregando o texto é um jornalista. Eis aqui a materialização do sentido provocador para compreender o estado da qualidade pro126
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fissional: receber o texto com o menor ou, de preferência, sem anotações em ver melho do consultor de conteúdo. E sobre esse aspecto a pergunta se faz irreversível: É possível dizer que o desafio de produzir um bom texto mudou você como jornalista? E o entrevistado responde agora de forma dedutiva: Total, totalmente, totalmente, Foi uma provocação assim, fora do comum, que hoje eu não consigo me imaginar fazendo nada sem escrever, sabe? Eu gosto de escrever, tanto é que eu lembro que “ah, vamos fazer festa dos amigos não sei o que” vamos fazer um evento no facebook, eu que curtia escre ver, deixa que eu escrevo... (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
O distanciamento da leitura se tornou em proximidade. Porém, mais do que isso, o sentimento que toma forma no sujeito jornalista de João Feliciano é entender a vida como desafio. É como se a provocação de Ricardo Ballarini fosse transposto para outros setores de sua vida, estendida para outros sentidos. E assim veio o primeiro desafio de iniciar o curso na Faculdade Católica, mas ter de se transferir para a Unitri. A memória das disciplinas práticas que cursou na Unitri seguiu a lógica do pensamento que o norteou quando optou pelo jornalismo. João Feliciano, seguindo a inspiração provocada pela MTV, se recorda das aulas “bacanas” de telejornalismo. A importância das aulas estava na provocação do professor: Então eu gostava muito das orientações que o professor dava, então, a gente gravava, olhava no vídeo e falava “nossa mas tá errado isso aqui, eu to torto” sabe? Nossa tipo, eu falo poRta (risos). Tem muita coisa disso. E eu gostava desse tipo, dessa análise, sabe? De se colocar em cheque e se ver. Na católica quando a gente teve a oportunidade disso também a mesma coisa, mais ver texto assim. Mas lá a gente não teve produção mesmo... (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
O sentido das aulas práticas está relevado pela memória também na provocação do professor de telejornalismo. A produção de um minidocumentário sobre prosti127
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tuição é um dos exemplos elevados em sua experiência. Isso porque para realizar o trabalho o grupo conversou com travesti, falou com mulheres também e gravou isso em vídeo. E assim materializa aquele desejo, desvelado desde o estágio na CEF, da importância de ouvir e conversar com o público. Mas as aulas teóricas, embora não fossem de sua prioridade, também trouxe momentos em que a memória lhe apresenta fatores para a identidade. Trata-se da provocação do professor Paulo, de Antropologia. Mas o que esse professor tem de diferente ao ponto de conseguir ser rememorado por João Feliciano? Trata-se da experiência vivida. Teve um professor que marcou muito. Eu acho que a minha sala toda e não só a mim porque ele viveu a ditadura e a gente fez um trabalho sobre isso. E ele era de Antropologia. E ele trouxe um contexto pra gente. Ele era... o estilo dele o estereótipo dele era muito legal, porque ele era já um senhorzinho que tinha limitação, cabelo bem branco mas que gostava de rock’n roll. Ele era meio boêmio (risos), então era uma coisa bem... acho que era Paulo, não vou lembrar o sobrenome agora, mas era Paulo, e eu lembro que era bom, e isso foi no primeiro período de faculdade, no primeiro e no segundo. (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
Com esta lógica de ser provocado, instigado ao reconhecimento do outro no processo de formação de jornalista, João Feliciano narra seus conflitos quando deixou a universidade para ir ao mercado de trabalho. Esse é um ponto essencial para entendermos as tensões e os conflitos que demarcam a vida do sujeito quando ini cia no campo profissional. E João Feliciano demarca precisamente o elemento de choque: a determinação do econômico sobre o social. É assim que ele passa a criticar que a universidade deixa de preparar o bom profissional porque fica “no mundo das ideias” e não consegue chegar no dilema ético da profissão do dia a dia. Cabe aqui um problema de natureza conceitual: o que consiste esse distanciamento da realidade?
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A experiência revelada pelo entrevistado demarca que determinadas disciplinas práticas e teóricas cumpriram com seu objetivo de levar a produção para a re alidade da comunidade. Então de que ordem de problemas se efetiva no dito do entrevistado? De que sim, é uma realidade capitalista. E sim você tem alguém que vai pagar seu salário e, ás vezes, você tem que concordar ou não com certas coisas e decidir se vai seguir aquilo, se vai escrever contra ou não. E a rotina que a gente tinha, que na verdade você chega no mercado de trabalho é onde você vê que você vai entrar na redação tal hora e não tem hora pra sair. Não é um trabalho simples de carteira assinada, é carteira assinada mas não é aquela coisa “eu vou bater o ponto 8h e sair 18h” (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
A pergunta encaminha então para este embate: até que ponto a universidade tem seu peso neste estado de conflito? Tem o peso quando o sujeito, ao se defrontar com um problema, se vê sem recursos para enfrentá-lo de alguma forma. Principalmente, João Feliciano que está em trabalho de assessoria de imprensa. Há a defesa por parte do entrevistado de que a universidade não deve se adequar, nem acompanhar esse tempo. Não se adequar e eu não sei se acompanhar, mas uma coisa que me vem a cabeça agora, não tinha parado pra pensar nisso, mas eu acho que provocar um pouco mais essa vivência, então tentar talvez colocar ali... não é só fazer uma visita na redação, que o dia que você vai fazer visita gente é igual visita em casa (risos) sua casa tá uma bagunça ai você joga tudo no armário, você dá uma passada de pano molhado só no chão e recebe, eu acho que é legal assim ter ah, vamos ter uma semana que a gente vai ficar 3h na redação, sei lá, sabe, então eu acho que faltava um pouco disso assim, essa integração de mercado e faculdade, não só por estágio. (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
E diante deste dilema econômico, é importante entender de João Feliciano qual o conceito de assessoria de imprensa. Se manter esse mesmo sentido interpretativo, a crítica da assessoria da imprensa recairá nessa lógica da determinação, em que se 129
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efetiva somente com a proposta do benefício, ou melhor, vantagem da empresa. João Feliciano percorre este caminho trazendo como elemento paralelo a publicidade. Mas aqui não se trata da publicidade que está definida somente como venda do produto. Esse poderia se considerar como a tônica de uma determinada publicidade que para o entrevistado não responde como sentido ao seu trabalho no cotidiano. O que se sustenta agora é que a lógica deixa de ser a venda do produto para a venda de valor. E o que o conceito de assessoria de imprensa tem algo relacionado a esse novo processo de mercantilização da publicidade? É essa tônica que temos de entender diante do discurso do entrevistado: Assessoria de imprensa, na minha visão, é uma maneira de se gerar mídia espontânea e evidenciar, hoje...Eu via antes uma oportunidade da empresa pagar pouco e tá na mídia. Mas hoje eu vejo que é mais um posicionamento de marca, a assessoria de imprensa é um braço ideal e é essencial pra quem quer promover a marca mas preocupado mais com seu institucional, ainda mais nesse mercado que a gente vive hoje. E por isso acho que a gente vive um cenário de oportunidade pra quem quer ser assessor de comunicação. E aí eu amplio, não só imprensa, porque a gente não funciona mais só aquela publicidade de “compre isso! Compre agora! Tá barato!” e tudo mais, a gente tá vendendo muito mais valor do que preço e produto, né? Por isso você vê chovendo campanha ai que faz a gente chorar (risos) essas coisas de pai e mãe, de namorado, de filhos, e a assessoria de imprensa pode ajudar muito nisso porque ela vai tá vendendo mais o valor. (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
A concepção de assessoria está mais ancorada pelo valor. ´Talvez a frase em si esteja querendo estabelecer dois vínculos: enquanto a publicidade se efetiva como produto, a ordem mercadológica tratava o outro como consumidor, ou para sermos mais crítico, como objeto do consumo. Mas ao tratar sobre o valor, há mudança substantiva para essa concepção comunicativa? Ao que se anuncia, ao tratar o valor a mensagem da publicidade, e estendido para a assessoria, estava mais próximo para conversar com o público sobre seus dilemas na vida. Quando se pronuncia que a marca se estabelece como ponto essencial, ou o valor, são as tensões e conflitos 130
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dos sujeitos que passam a ser direcionados para identificação. A questão é se esse fator leva mudança de consumidor para cidadão no processo comunicativo. No momento em que o sujeito pode conceituar e revelar o sentido do seu trabalho no presente, como apresentou João Feliciano sobre assessoria de imprensa, a memória é levada a refazer o percurso e revalorizar determinados caminhos do passado. É assim que João Feliciano reavalia o conhecimento produzido na sua graduação na universidade. A pergunta tem um sentido simples, mas se efetiva como complexa: qual o valor que você atribui para sua formação? E a resposta teve um tom de análise: Eu acho que ela foi bem mediana, mediana porque a gente não tinha tanta cobrança, sabe? Eu não vejo assim, porque, vou dar um exemplo, se eu tiver feito 18 provas, 15 provas nos 4 anos de faculdade, foi muito, sabe? A gente não tinha muito prova (risos), não tinha gente, de verdade. E não que eu acho que isso faça diferença, eu acho que quando você faz um trabalho sei lá, interdisciplinar, você faz, sei lá, em conjunto um trabalho em grupo, uma exposição na frente da sala, às vezes isso é até mais rico, mas eu acho que faltou um pouco de firmeza, sabe? Que eu via amigos assim que não faziam jornalismo do tipo “nossa, vou ter que varar a madrugada estudando”, “nossa, eu tive que fazer um trabalho o final de semana inteiro”, eu não tinha, não foi fácil também, igual falar tipo que foi mole, mas eu acho que podia ter exigido um pouco mais. (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
O termo “não tinha tanta cobrança” está diretamente vinculado ao sentido de ser provocado. João Feliciano revela que teve bons professores em sua formação, mas de uma forma geral faltou a exigência para que se atinja o máximo de sua potência criativa. Se por um lado, esse desafio provocador colocado pelo profes sor na universidade, pelo consultor no estágio ou pelo editor no trabalho profissi onal, sobrevêm outro debate de suma importância para entendermos a concepção de jornalista. A questão ao entrevistado foi enunciada da seguinte forma: De uma forma geral, você acha que os jornalistas no trabalho prático, no mercado de trabalho, escrevem mais para eles mesmos, para o editor, quer dizer, para a empresa 131
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que tem uma definição ideológica então você sabe o que vai escrever, ou para o público? O que predomina? A resposta nos colocou para o centro do debate sobre a relação entre jornalismo e público, tão essencial na definição da área de jornalismo pelo entrevistado. Uma boa pergunta. Nossa, eu fico até com medo de responder essa pergunta assim porque eu vou falar por mais pessoas, é difícil falar isso assim por outras, mas eu acho que existe uma mistura de tudo na verdade, existem jornalistas mais idealistas que eles pensam e bate a mão na mesa e que vai escrever pelo público e ai vai chegar um editor que ele vai te cortar porque ele sabe os valores comerciais do jornal, então dependendo algumas coisas pode falar, outras coisas não pode, vão ter jornalistas mais vaidosos que vão escrever por conta dele mesmo, ou escolher certas formas de abordar um assunto baseado no que ele vive, então nossa, Gerson, muito difícil responder essa pergunta, não sei... (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
A resposta enunciada assim de forma genérica, tratando da pluralidade de conflitos do ser jornalista não consegue e dificilmente poderia levar o nosso entrevistado a uma conclusão, sem que recorresse ao extremo do relativismo. E é com base na última frase que a indignação para a resposta que se distancie do impessoal e se aproxime da experiência vivida. E assim se efetivou a resposta, agora como análise dos quadros de memória vividas pessoalmente. Nossa, do que eu lembro eu não consigo... no Correio eu acho que eu via mais pessoas que escreviam pelo jornal. Eu não vou falar pelo editor, mas pela empresa. Eu acho que era bem mais assim do que... o jornal lá não era um jornal tão vendido, não é até hoje, eu acho que ele produzia, na época, produzia conteúdos muito bons e hoje ainda produz, mas que ele tinha uma questão comercial que era muito forte assim por isso que eu acho que as pes soas acabavam escrevendo pelo jornal mais que pelo próprio público às vezes. (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
João Feliciano então toca em um sentido importante para o jornalista. A expe riência vivida no Correio de Uberlândia levou ao diagnóstico: o que se impera é a
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escrita mais para empresa do que para o público. Esse elemento remete a outro fator: o sentido de historicidade do jornalismo. Quais são as consequências para o significado do jornalismo, principalmente para João Feliciano, se considera a perda do público como referência para o sentido comunicativo. É com este contexto que João Feliciano é conduzido a entrar na provocativa questão da pesquisa: Você acha que o nosso trabalho como jornalista, ele é histórico? Para a resposta a essa pergunta, se considera o jornalismo histórico, João Feliciano foi enfático: “Muito”. O ponto essencial aqui é entender se a afirmativa sobre o jornalismo está diretamente vinculada ao sujeito jornalista. E a continuidade das respostas levaram a esta reflexão no desenvolvimento do ato da entrevista. Como sustentar esse muito respondido de forma dedutiva? E então o entrevistado se mergulha no convite da entrevista como dialética a refletir sobre si mesmo. Eu acho o jornalismo muito histórico porque... primeira coisa a gente produz conteúdo e a gente produz conteúdo que vai ficar registrado por um determinado tempo. Mas hoje, com essa oportunidade do digital em si, você pode eternizar isso. Porque a internet tá pra sempre aí. Algumas coisas você pode apagar, mas você vai ser sempre registrado. Todo conhecimento que a gente tem de história antiga hoje foi baseado em relatos que eram praticamente jornais Então os caras precisavam fazer algum comunicado, escrevia. Ou na época que eles tinham os folhetins, que eram pregados assim. Enfim né, tudo isso. Eu acho que pela nossa facilidade de dominar o conteúdo e ter a oportunidade de divulgar esse conteúdo, somos historiadores sabe? Ou criadores da história, também... (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
A primeira resposta leva ao entendimento teórico conceitual sobre o que o jornalista considera como histórico: o conteúdo que fica registrado na plataforma eterniza um momento da produção social do jornalista que tanto o leitor do presente quanto os de outras gerações irão ter como documento histórico. Mas será que esse procedimento de ter como registrado já sustenta a afirmativa final de vincular os
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jornalistas como historiadores? Ou se trata da simples divulgação? O que consistiria neste ser criador de história? A próxima etapa do prosseguimento da entrevista tinha como ênfase o mergulho para entender o sujeito jornalista. E então, se instaura novas problemáticas em que se busca entender a dimensão da afirmativa de ser o jornalista um historiador: você considera que o jornalista, submetido a rotina no trabalho dele no mercado, tem consciência de que aquilo que ele está escrevendo é histórico? A resposta tangencia esse paradoxo. Talvez não consciência. Mas o que ele faz, na minha visão, é totalmente histórico. Ele relata um cenário, ele relata um comportamento, por exemplo, as pessoas falam “ah, mas hoje em dia o povo só quer saber de bunda de fora, escutar funk” não sei o que.. Gente, será que quando a gente abre um caderno de entretenimento e a Anitta tá estampando o negócio ao invés de ser... (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
E a reflexão desta resposta prossegue na tentativa de encontrar elemento paralelo que possibilite sustentar esse muito. É, será que não é uma tendência? Porque assim, a gente não vive muito atrelado, existe conteúdo demais e a gente quer escolher. E isso pra gente é o le gal. Quer mais pensar em divertir. Então, estou só pegando um negócio aleatório aqui, mas acho que a gente consegue pegar esses registros. E ai você analisa todo um cenário sabe? Então, ah não, então não escreveu só sobre que a Dilma foi afastada tal e isso é história? Não gente, isso é fato histórico independente de ter um jornalista ou não, algum meio de registrar isso você ia ter que ter. Mas, agora eu não sei se o jornalista tem consciência do papel que ele está registrando história, em si. (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
Como então resolver esse dilema em que o conteúdo se efetiva como histórico independe do sujeito que o escreve? E assim se efetiva a problemática em que o aspecto central é entender a compreensão de historicidade que se efetiva no sujeito que a produz, quando o discurso automático de ser o jornalismo com status históri-
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co. Se aprofundarmos uma de suas indagações neste segundo quadro teremos de ser obrigados a questionar se há hierarquia nas publicações em que fatos devem ser considerados como históricos, em relação a outros que se perdem na dimensão das informações da internet ou nas páginas impressas de algum caderno de editoria. E quem é responsável ou legitima essa hierarquia? Levado ao extremo desse raciocínio teríamos de questionar o sentido crítico da razão para cairmos na identificação de uma racionalidade. Não se trata de fatos que se tornam históricos, mas de sujeitos presentes neles que conduziria a uma primeira perspectiva de definição de documento da história. O afastamento da presidente Dilma se torna um fato histórico. A questão desta defesa é entender se essa racionalidade não legitima uma forma de poder em que o outro, considerado como marginalizado no processo comunicativo, se torna relegado a uma dimensão secundária nesta definição de história. O próximo passo neste diálogo se fez na junção desses aspectos: como é possível resolver esse dilema, na defesa do sujeito como produtor social, em que o entrevistado dissocia o eu não tenho consciência de que eu estou fazendo uma ação na história mas ela se torna histórica? É, mas será que ele precisa entender que ele está fazendo história? Esse é um questionamento que eu faço assim, porque ele tá produzindo conteúdo e isso vai ficar registrado. Eu acho que existe uma equação simples e que ela morre ali, agora. Como vão usar esses fatos, esses registros, eu acho que já cabe a outras pessoas. Eu acho que o jornalista quando ele toma noção da responsabilidade que ele tem de registrar o fato e ser fidedigno ao ponto de que isso está sendo perpetuado para outras pessoas verem, ai sim, ai eu acho que precisa ter uma conversa mais... (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
A entrevista chega ao segundo dilema de contraposição entre o meio de comunicação e o sujeito que produz a notícia. Ao conduzir a dimensão da história para o tempo futuro, e não ao presente, torna-se prudente efetivar nova problemática para compreender essa temática. Essa afirmativa disposta na racionalidade técnica nos
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conduz a questionar: é o registro, e não o ato materializado na produção em si do trabalho do jornalista, o aspecto que predomina nesta conceituação histórica? E sobrevém o dilema de considerar que o tempo, como duração, torna história, mas naquele momento, intensidade, em que se produz a notícia, não se revela noção de história. Ou podemos introduzir nova pergunta que percorre esse embate e está no seguinte fundamento: O jornalismo é histórico por causa da plataforma? E isso implica em considerar que a plataforma, ou a tecnologia, seria hierarquicamente superior ao próprio jornalista que produz? A resposta foi taxativa neste sentido: Na minha visão de mercado eu acho que sim. Por conta de que, na minha visão, eu acho que é a minoria que tem essa consciência da relevância do conteúdo enquanto construção histórica do negócio. Acho que o pessoal lida mais com o valor do agora, se está passando no jornal de agora é porque o negócio vai acontecer amanhã, ou se aconteceu hoje vai tá no jornal de logo mais tarde. E então acho que a notícia nasce hoje pra morrer amanhã, ela tem um prazo. Eu acho que o jornalista lida mais com essa noção de tempo do que o “estou escrevendo hoje porque daqui 20 anos alguém vai fazer uma pesquisa sobre o Odelmo Leão e eu escrevi que ele não é mais prefeito”, sabe. Eu acho que é mais a noção de tempo que é o X da questão. (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
Neste novo desdobramento a resposta perturba por considerar a efemeridade da notícia cujo valor está somente a ser consumido no hoje, sem qualquer valor para o amanhã. Como é possível entender esse efêmero quando o debate que se efetiva é pelo tempo de duração? Eis aqui a contradição a permear o debate. Aqui preciso restaurar a afirmativa do entrevistado para nos desvelar o conflito. Primeiro, o jornalismo é histórico. Segundo, o jornalista não tem consciência de que aquilo que escreve tem dimensão histórica. Terceiro, a notícia é efêmera e só tem sentido na dimensão do presente, já que morre amanhã. Mas a mesma notícia que morre amanhã, no depois do amanhã, pela duração do tempo, é recuperada como valor históri-
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co para compreender a realidade do passado. E no decorrer deste cenário emblemático se efetiva nova questão sobre os aspectos delineados acima. Então essa questão do tempo, é muito complexo poder falar disso, porque é a minha visão, a minha visão é difícil ser discutível com isso, sabe? Eu acho que a notícia ela tem uma validade e eu não consigo vê-la de uma outra maneira, assim. Lógico que eu sei da importância histórica do registro em si, mas eu não sei se eu saberia responder ao certo essa sua análise. (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
A última parte da entrevista sobre este tópico vem com considerações para entender os elementos desta concepção do que é ser jornalista. A preocupação aqui está na continuidade de outra afirmativa exteriorizada por João Feliciano e que se refere sobre o sentido dominante ou a leitura preferencial da notícia: os jornalistas escrevem mais para a empresa do que para o público. Outro dilema: se considerar que a duração do tempo torna histórico o factual escrito pelo jornalista no tempo presente, e se a referência do texto é mais para a ideologia da empresa, então que história está sendo narrada pelos jornalistas para compreensão no futuro? Qual sentido da história é essa que nós jornalistas estamos levando para daqui a 10 anos, 20 anos? Qual ideologia dessa história que está predominando como sentido dominante? Nossa! Eu não sei. Eu tenho uma visão muito prática do negócio. Então às vezes eu posso ficar fugindo um pouco disso, mas eu acho que você está querendo é que por ter alguns filtros ou ter algumas portas pra atravessar a gente acaba filtrando o que vai ser história o que não vai ser história [...] Então é difícil de analisar isso. Eu não consigo fazer uma análise tão profunda porque a gente vive uma era onde existe uma produção de conteúdo muito extrema. Eu acho que vai ser até difícil pros historiadores do futuro terem um crivo pra analisar depois o que vai ser mais relevante. (Entrevista, João FELICIANO, Mai. 2016)
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João Feliciano desvelou determinadas respostas e indagações no momento em que era sujeito da entrevista para refazer sua produção de sentido pela memória. Em seu percurso, entendeu o teor qualitativo desde movimento de ser instigado, ou provocado para que pudesse desenvolver. E assim, ao ser provocado a encaminhar o texto para o Consultor de conteúdo, do Correio de Uberlândia, e que o produto retornasse com o menor número de riscos vermelhos, lhe conduziu a sair da falta de leitura para o prazer da escrita. A entrevista se estabeleceu como diálogo crítico, em que o sujeito é conduzido a indagar e desvelar sentidos sobre si mesmo. E é neste caminho que se situa o paradoxo: produzimos sentidos no cotidiano. Mas quando esse cotidiano é interrogado ou levado a produzir um significado sobre o próprio sentido, é o viver que vai se desvelando e revelando a complexidade da vida. Para João Feliciano, o sentido de ser jornalista está no movimento provocador do próprio viver.
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Capítulo 6
Renata Neiva
Assessoria
A narrativa em tempos de consciência histórica
“
Você sabe que jornalista não pode dar entrevista não… nós estamos só no outro lado” (risos). É com essa frase de empatia que a jornalista Renata Maria de Oliveira Neiva anunciava já estar
preparada para realizar a entrevista, sentada na carteira em uma das salas de aula da Faculdade de Educação, da Universidade Federal de Uberlândia. A entrevista se estendeu por uma hora e dez minutos em que é possível mergulhar em seus dilemas e posicionamentos sobre essa complexa produção de sentido de ser jornalista. Embora sua entrevista decorra aqui na área de assessoria de imprensa, Renata Neiva dei xa claro que se sente mais livre em seu trabalho no telejornalismo. A trajetória profissional revela seus caminhos: Renata Neiva começou em rádio, como repórter de polícia. Depois atuou no jornal impresso, em Juiz de Fora. Traba lhou na televisão como repórter e depois nos Estados Unidos numa filiada da RTP, como repórter e como uma apresentadora de um bloco dirigido para comunidade de língua portuguesa. A RTP é uma TV a cabo. Retornando ao Brasil, mais precisamente em Uberlândia, atuou como editora adjunta do jornal Hoje em Dia, editora de texto. Trabalhou como editora da TV Paranaíba quando ela era bandeirantes. A área impressa, trabalhou como editora de política e de cultura do Jornal Correio de Uberlândia. Chegou a montar uma TV Educativa, em Governador Valadares, a TV Rio Doce, canal 15. Renata Neiva ficou responsável pelo Jornalismo e coube a Ch-
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ristiane Pitanga, montar a parte de design. Na TV Integração, afiliada da Rede Globo, trabalhou como editora-chefe e apresentadora do MGTV primeira edição por 11 anos. E atualmente passou no concurso de assessoria de imprensa na UFU. Graduada em Comunicação Social – habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) no período de 1984, Renata enfatiza que se formou em 1988. Como ela faz questão de frisar, estava na universidade no finalzinho da ditadura militar (1964-1985). O primeiro aspecto da entrevista é entender como foi a decisão e os dilemas na definição de fazer o curso de Jornalismo. Renata explica os impasses que a acompanharam na primeira decisão para efetivar a matrícula no curso de Jornalismo. Eu acho que como todo jovem eu tive muitas dúvidas se eu queria fazer comunicação mesmo, fiquei em dúvida entre medicina, engenharia, arquitetura, comunicação... mas o que pesou foi o gosto pela leitura, pela escrita, gostar de gente, de conversar, curiosidades pelas pessoas... isso foi o que pesou pela escolha do curso. Principalmente por gostar muito de escrever. (Entrevista, Renata NEIVA, Nov. 2015)
Assim como toda definição do percurso pelo qual o sujeito segue, o presente é sempre um período de reorganização da memória do passado. Trata-se do momento em que o passado é colocado em movimento, e com isso, determinados acontecimentos, que até aquela data se perdia em meio ao universo de fatos ocorridos na vida, passa a ser elevado como fator de origem do que eu sou no presente. É com este mergulho que Renata Neiva passa a justificar o elo histórico para produzir o sentido de sua decisão no passado de ter definido o curso de Jornalismo para fazer a graduação. ... e uma brincadeira que eu tinha desde de criança quando eu ganhei um gravador grande, na época denominado ‘juruna’, por causa de um deputado indígena que tinha esse gravador no congresso e eu tinha mania de gravar entrevistas com as pessoas, ainda na pré-adolescência. E aí eu acho que isso pesou
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também, porque eu tinha vontade de entrevistar as pessoas e de escrever sobre essas entrevistas. (Entrevista, Renata NEIVA, Nov. 2015)
Os conflitos que ora se voltam para articular cursos em áreas tão diferentes só podem ser explicados pelos interesses dos mesmos sujeitos que o percorrem em sua experiência vivida. O que para alguns soa como contradição, para o outro se apresenta como percurso em que percorre dois caminhos: o primeiro está na fase de reconhecer que essas áreas díspares perpassam de alguma forma o seu ser. O segundo, estabelece que em algum momento do passado, determinada cena, atitude ou reflexão é reconhecida como o elo. E é neste refazer o caminho que o sujeito com preende que é possível e coerente materializar na concretude o pensamento, alimentando a sua potencialidade que o conduzirá para o próprio reconhecimento como pessoa. O segundo momento está em definir somente um desses caminhos: encontrar um elo comum no mergulho ao passado. E aqui vem a primeira problemática teórica. Qual a referência para definir o percurso da vida diante dos elementos dispares mas que o sujeito considera todos com coerência? É este o primeiro momento em que o sujeito precisa movimentar o passado em busca daquela concretude que justifica a decisão do presente. Para a entrevistada Renata Neiva, ganhar a bolsa de es tudo no cursinho, o reconhecimento de ser estudiosa, somado a pressão externa para cursar medicina, são fatores que a conduziram ao estado de conflito de seu ser até o último instante do primeiro ato: Mas eu me lembro que na época não tinha internet e a inscrição era feita na pró-reitoria de graduação da UFJF e o campus da universidade é bem afastado da universidade. E nós ficávamos em uma fila para fazer inscrição. Eu fiquei muitas horas nessa fila com o papel de inscrição na mão. E eu deixei muita gente passar na frente e acabei optando por comunicação. Assim: na hora pesou mesmo esse gosto pela leitura e pela escrita. (Entrevista, Renata NEIVA, Nov. 2015)
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Há outro fator que precisa ser esclarecido aqui neste argumento para entender a definição do caminho de Renata Neiva para tomar a decisão de ser o jornalismo, como o curso de graduação. E esse fator está diretamente articulado ao que ela adicionou como expectativa do curso. eu entrei no curso para trabalhar em impressos, eu queria trabalhar em jornal impresso e havia toda uma expectativa. Eu acho que a gente é muito influenciado assim por cinema, pelos filmes, aqueles papéis de jornalistas investigativo que vai de uma certa forma mudar o mundo... a gente é muito novo quando entra. (Entrevista, Renata NEIVA, Nov. 2015)
A expectativa é um elemento fundante quando se efetiva determinada decisão, principalmente quando se resolve dilemas, como revelado por Renata Neiva. Primeiro a dúvida sobre qual curso seguir: Medicina, Engenharia, Arquitetura, Comunicação. Ao definir por jornalismo é preciso definir um horizonte de sentido que remeta a coerência para si mesmo do valor da decisão. Ao olhar para o passado, Renata então reconhece que tomou força a representação do jornalista investigativo, a partir da influência dos filmes no cinema. Uma profissão que permite investigar, decifrar a realidade, enfrentar seus dilemas e com isso contribuir com seu trabalho para mudar o mundo. E ao mesmo tempo, ela revela, no sentido de pragmática, o desejo de trabalhar em um jornal impresso. É com esta configuração de identidade que Renata Neiva estrutura suas expectativas iniciais para produzir sentido sobre o porquê é importante fazer o curso de jornalismo. Mas as expectativas que se fundam ou perpassam pelo imaginário, como esse de filmes sobre jornalistas, em determinado momento é levada a confrontar com a realidade. E é nesse confronto que o próprio sujeito passa a reconhecer e enfrentar o grau de suficiência da justificativa apresentada a si mesmo como decisão. É assim que nesse processo Renata Neiva mergulha em seu segundo dilema de formação. Eu cheguei no terceiro período e cheguei a trancar e fiz vestibular para economia e passei ai depois eu voltei. Cheguei a ter uma indecisão. Eu não che144
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guei a fazer matrícula em economia, mas eu cheguei a trancar um período que foi antes de chegar as disciplinas de jornalismo. (Entrevista, Renata NEIVA, Nov. 2015)
As horas na fila diante do estado de tensão para definir pelo caminho do jornalismo, diante da possibilidade da medicina, não a deixou na elaboração da perspectiva e dos primeiros anos de curso. Como é possível avaliar o currículo quando o sujeito manifesta que, do entusiasmo inicial passa para a inquietação, por não apresentar disciplinas de Jornalismo? Isso significa, como angustia Renata Neiva, que a estrutura curricular aplicada na prática deixava obstáculo para que os discentes pudessem visualizar a profissão. Esse é o aspecto inscrito no dilema manifesto da jornalista. Meu dilema era que estava demorando para acontecer. Mesmo assim, eu não via a profissão mesmo. Estava muito teórico, muita discussão na área de humanas, bons professores, mas assim, cadê? Eu queria fazer jornal, eu queria colocar a mão na massa, eu já entrei no curso para ir para o mercado e eu não via nada disso. A gente não via os laboratórios, a gente ficava afastado do outro lado do campus, o campus lá é único, é um campus só, enorme e a gente ficava do outro lado. Então ia dando uma ansiedade muito grande até essa desistência depois eu resolvi voltar. (Entrevista, Renata NEIVA, Nov. 2015)
Nem é necessário aqui estabelecer que o primeiro elemento de confronto está no envolto de sua expectativa: o trabalho do jornalista é para mudar o mundo. Mas ao estar na universidade, as disciplinas que a formariam para essa atitude social são distanciadas dos primeiros semestres de formação, conforme o currículo. O que significa essa ansiedade de “colocar a mão na massa” se as questões que levariam ao investigativo do ser jornalista se prolonga pelo tempo? E em que o caminho definido como formativo passa a ser interrogado em seu valor substantivo. Quanto tempo é suficiente para que o jovem seja levado ao questionamento de sua própria decisão formativa? A resposta, ao fugir do horizonte mecânico, é considerar que está diretamente vinculada à intensidade dos dilemas vivenciados por cada sujeito
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em cada tomada de decisão. O trancamento de um semestre, a proposta de ir fazer economia, o retorno para Jornalismo. Ao tratar de sua memória de formação teórica, Renata Neiva testemunha o contexto em que originou a sua primeira frustração como graduanda do curso de Jornalismo. Ao identificar, como experiência vivida, que as disciplinas específicas para o jornalismo só começariam no quinto período: Ou traduzindo: depois de dois anos de curso. Demorava muito. Primeiro a gente tinha toda uma preparação introdutória das disciplinas e só depois chegava. Isso causava uma ansiedade, tinha muitas pessoas que desistiam, tinha uma evasão, porque demorava a ver mesmo as matérias. (Entrevista, Renata NEIVA, Nov. 2015)
O distanciamento das matérias específicas para o quinto período se somava ao próprio afastamento do prédio do jornalismo. Eu lembro que os dois primeiros anos, nós nem íamos para o curso de jornalismo, assim onde ficava o prédio. Nós íamos para um Instituto que se cha mava ICHL, que era Instituto de Ciências Humanas e Letras, que era do outro lado do campus. Nós nem víamos os professores de jornalismo, nós nem os conhecíamos (Entrevista, Renata NEIVA, Nov. 2015)
Eis o limite da frustração do curso: distante do prédio do curso, sem conhecer os professores específicos do jornalismo e com o currículo que estabelece a introdução ao jornalismo no quinto período. Soma-se a isso as outras desistências e evasão do curso. Esses fatores criam um cenário contextual em que se torna necessário confrontar sua decisão de escolha profissional. Mas é preciso desviar o olhar para o contraditório da frustração para se chegar a outro significado produzido pelo sujeito. E ressoa como primeiro aspecto esta faculdade de identificar que a consciência da crise permite entender a realidade de uma forma plural. E as perguntas podem ser então encadeadas envolta nesta complexidade: qual o sentido dessas disciplinas para o meu processo de formação como jornalista? E de que forma as disciplinas
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práticas estão realmente contribuindo para que eu possa ter capacidade crítica para “mudar o mundo”? A graduanda que decidiu optar pelo jornalismo com o objetivo de ir para o mercado, anos mais tarde reconhece que as disciplinas teóricas contribuíram para qualificar seu trabalho prático. Primeiro, reconhece o sentido da formação cultural possibilitada pelas discussões e entendimentos conceituais. E segundo, a diferença que ultrapassa a técnica da entrevista, em que o mais importante do que como fazer as perguntas está sobre qual concepção a pergunta direcionada ao meu entrevistado, está vinculada. É o que ela denomina de ter consistência. Mas e quando, no quinto período, vieram as disciplinas práticas: qual a avaliação que Renata Neiva faz hoje da importância desta formação na universidade? Essa é uma pergunta que tem duas variações: a primeira está no aprendizado como graduanda do curso; a segunda, refere-se ao momento em que ela vai para a reda ção e constata os limites dos seus aprendizados. São dois momentos diferentes que possuem, de certa forma, momentos singulares de tensão e conflito. É preciso tam bém contextualizar a experiência vivida de Renata Neiva para entender como se estende aos dias atuais. A decisão para permanecer no curso a leva hoje a identificar aspectos que deixaram de ser tratados na graduação, cuja falta se sente na redação do jornal. Mas os outros que marcaram na como positivo, tem nome Nós tínhamos uma professora Maria Lúcia Cardoso que era muito boa, que ensinou a fazer lide, sub-lide, e ela falou: o lide não é tão simples assim e a gente ficou seis meses fazendo aquilo. Ela falou que um bom profissional sabe fazer isso pois depois a pessoa se forma e não sabe fazer. E a gente ficou muito tempo fazendo e refazendo porque ela falou que aqui está a matéria, ela mandava a gente refazer fazer refazer fazer refazer refazer. E aquilo, ás vezes, dava uma frustração, uma raiva, mas hoje eu entendo o porquê daquilo. Ela colocava no quadro os sinônimos dos verbos pra gente usar, sabe, era um exercício de refazer fazer refazer fazer e era na máquina de escrever. Você
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Gerson de Sousa embolava o papel joga no lixo e tinha que fazer de novo. (Entrevista, Renata NEIVA, Nov. 2015)
A descrição da jornalista revela que o ensino aprendido em uma máquina de escrever, no procedimento metodológico do refazer e refazer, a levou, depois de um bom tempo, a identificar o quanto essa prática lhe ajudou no mercado de trabalho. É importante entender como a descrição, em que inclui o nome do professor, define o momento em que a graduanda passa a se encontrar com aquilo que almeja na profissão. Se por alguma razão o ato de refazer se ressignifica como distante da contingência de reforço behaviorista, em que o treinamento se assemelha ao técnico, é porque a teoria passou, na história de Renata Neiva, a ter um peso diferente para atuar na profissão. A iniciar pelo caminho de formação em mestrado no programa de Pós-Graduação em Tecnologias, Comunicação e Educação da Faced/UFU e em seguida como doutora em Educação, na linha de Historiografia da Educação (UFU). No campo profissional, Renata Neiva atua como jornalista e diretora do Departamento de Comunicação da UFU. A ansiedade de ir para a rua, entrevistar as pessoas, escrever texto foram amenizadas também com a aula de rádio, com o Prof. Márcio. Ele nos levava para a feira livre ensinando improviso em rádio. Era um exercício que era livre e ele falava que o feirante era um ótimo improviso e lá em Juiz de Fora tem alguns calçadões dentro da cidade. E ele fazia um exercício da gente descer com o gravador nesse calçadão e ele falava não tenta fazer o autoengano do pausa, tenta descer com o gravador narrando tudo o que vocês estão vendo nesse exercício de rádio. (Entrevista, Renata NEIVA, Nov. 2015)
A aula apaixonante de Rádio a levou ao oitavo período a realizar trabalho em radiojornalismo. Não é por menos: a liberdade de improvisação somada a esse contato com a comunidade configura o retrato da narrativa de Renata Neiva em fazer a prática do jornalismo. Até porque trata-se da disciplina prática que tanto buscara como referência para produzir sentido sobre a definição de ser jornalista. A doutora 148
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defende que o presente lhe possibilita entender a importância da teoria acadêmica no trabalho jornalístico. Por outro lado, Renata Neiva confessa que há outras coisas que só conseguiu mesmo aprender depois de ter deixado a universidade. Entre essas disciplinas está Assessoria de Imprensa. A parte de assessoria de imprensa mesmo, eu tive uma disciplina só, que foi mais ligada a corporação, empresa. E a minha experiência é com instituição pública e foi com a área de saúde. E eu não tinha a menor ideia de como se tratava a questão de área de saúde: ela tem toda uma minúcia, como você trata um boletim médico, por exemplo, como que você divulga um estado de um paciente... eu tive que aprender aqui fora. Então a faculdade não me deu isso, não me deu essa ferramenta. (Entrevista, Renata NEIVA, Nov. 2015)
A ausência dessa ferramenta foi sentida em sua experiência no mercado de trabalho. Não é sem motivo que um dos desafios expostos da carreira foi implantar a assessoria de imprensa no Hospital de Clínicas da UFU. A discente que deixou de fazer medicina para cursar jornalismo, que teve somente uma disciplina de assessoria, passou a conviver com médico para poder entender todo o contexto de sua nova realidade profissional. É diante desse desafio profissional que o aprendizado prático passa a ser avaliado agora sob outro prisma. Sem referência, é preciso iniciar o trabalho na área problematizando a construção de conhecimento sobre a prática. A experiência de assessoria trouxe outro elemento afirmativo: a imprevisibilidade e a responsabilidade do jornalismo. E, como constitutivo dessa discussão, a ética. A narrativa de Renata expõe com clareza como a definição do sujeito de que trata a matéria leva a um grau de responsabilidade maior. E esse procedimento variável não se trata de ensinamento de universidade. Então quando é o be-a-ba, quando você está cuidando de buraco de rua é uma coisa. Mas por exemplo, quando você está em uma assessoria de um hospital público, que morre uma criança durante uma cirurgia e que você sabe que ela morreu porque o médico não estava na sala. E porque ele não obedeceu todos 149
Gerson de Sousa os critérios que ele tinha que ter obedecido. E aí a família chama a imprensa toda e que você tem que falar em nome do hospital. Faculdade nenhuma te ensina qual vai ser seu posicionamento ali em nome da instituição e naquele momento você tem um sofrimento muito grande: E agora? Você vai defender esse sujeito? Então, tem situações que ninguém te prepara para isso. (Entrevista, Renata NEIVA, Nov. 2015)
Os dilemas também percorrem outras questões prementes para a ética no Jornalismo: trata-se da ideologia da empresa. A experiência de Renata Neiva em assessoria no Hospital das Clínicas lhe dá sustento para realizar determinadas afirmativas no presente. Ela deixa explícito que: Na assessoria o que prevalece é a ideologia da empresa, sempre. Por mais que você tente, é claro que sempre escapa: o discurso é neutro, mas chega a ser frustrante em determinados momentos, porque a palavra final é da direção. (Entrevista, Renata NEIVA, Nov. 2015)
E como lidar com esse sentimento de frustração? Principalmente quando se pretende fazer jornalismo tendo por base a ética e tendo como diagnóstico que o prevalece é o discurso ideológico da empresa em assessoria de imprensa. Como lidar com esse sentimento de frustração? É muito difícil lidar com essa frustração. É muito frustrante porque nós jornalistas nós temos um compromisso com a notícia, com a informação, com o público. E quando você percebe que há um interesse nesse silenciamento ou então nessa substituição da notícia por um interesse político, nossa é muito frustrante! Principalmente para os jornalistas sérios é um momento em que... no meu caso eu costumo até somatizar isso assim. Até com enxaquecas, eu fico muito frustrada, muito infeliz com isso. Mas eu vou na minha discussão até o fim, eu costumo comprar uma briga até o fim. (Entrevista, Renata NEIVA, Nov. 2015)
O sentimento de frustração não se configura aqui como passivo, em que o sujeito se entrega diante da própria concepção ideológica empresarial. A definição de Renata Neiva sobre a assessoria de imprensa tem de ser entendida pelo estado de 150
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conflito instalado em sua construção profissional. Eis aqui a tradução do que como “comprar uma briga até o fim”. Mas é preciso questionar: para quem escreve o jornalista? Se a ideologia da empresa sempre prevalece, isso significa que há um desvio da função? A resposta é saber distinguir de estado de conflito de interesse para a manipulação. O que é necessário identificar é que as divergências passam a pre valecer com intensidade. Na assessoria essa questão de ‘silenciamento’ e substituição da notícia vai depender do gestor. Nem sempre é assim. Na teoria tem a transparência, sempre. Eu não defendo isso aí não, sempre prezo pela transparência. Eu vejo acontecer na assessoria, e como repórter também, quando eu chegava e era recebida por assessores você começa a perceber. Tem lugar que você não anda sozinha com seu entrevistado o assessor está sempre ali... não existe. Isso é lindo na teoria, mas ai a pessoa já chega com os dados prontos, com os personagens (escolhidos)... ‘não, nessa sala você não entra...’ por isso que a gente tem sempre que olhar além da pauta, um olhar mais perspicaz, desconfiado... (Entrevista, Renata NEIVA, Nov. 2015)
Poderíamos pensar a partir das reflexões: o que é o jornalismo? Será que o jornalismo perdeu a referência para quem se escreve e por isso resulta em matérias semelhantes de emissoras diferentes que perdem a divergência? A jornalista faz a crítica desse discurso monótono do jornalismo apresentando duas citações contextuais. A primeira, é sobre a cobertura da imprensa no acidente da Barragem, em Mariana. Nós tivemos um grande exemplo dessa tragédia em Minas com as barragens em Mariana. E você vê o público questionar os próprios jornalistas. Porque até certo tempo atrás você não tinha a voz do público reclamando, agora você tem as pessoas reclamando tipo: poxa, mas foi isso que aconteceu? As pessoas percebem: olha, essa apuração não está boa...eu vi inclusive muitas pessoas dizendo: olha, está tendo uma cegueira na imprensa. Isso não passa mais despercebido, não dá mais para enganar as pessoas. Nunca deu na verdade, mas agora elas tem voz, têm onde publicar isso, externar essa indignação, então não dá mais para fazer de qualquer jeito e achar que está tudo bem. Você está enganando quem nisso? (Entrevista, Renata NEIVA, Nov. 2015)
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A segunda é uma mea-culpa, de quem identificou exatamente esse mal estar no processo de produção jornalística na redação. Ela cita sobre a mudança que fez nas reuniões de pauta, no período em que atuava como editora. É uma meia culpa, as vezes, nas nossas reuniões de pauta, eu como editora dizia: gente, percebe que a gente está fazendo um jornal para a gente mesmo? A gente cai nesse erro sabe, a gente faz muito isso. É uma rotina na redação e como são sempre os mesmos o olhar é de pretensão, aquele grupinho de pessoas que vão pensar um jornal para uma população de milhares de pessoas... é muita pretensão. (Entrevista, Renata NEIVA, Nov. 2015)
E como resolver esse dilema? Como avançar na proposta de jornalismo quando se identifica que o grupo em que se está não pode carregar essa pretensão de ser os iluminados que farão a leitura e a consciência social do cidadão? A saída é trazer para o cotidiano, a divergência de experiências vividas de outros cotidianos, para conseguir ampliar as possibilidades de leitura sobre a realidade social. Em vez de ser questionado pela comunidade sobre a monotonia ou a ausência de investigação que possibilite problematizar determinado tema, a jornalista passou ao movimento de antecipar a fase: Eu lembro que chegou uma época que pensando nisso, a gente começou a abrir a reunião de pauta. A gente chamava o porteiro, a faxineira, todo mundo que estiver passando aqui perto para subir para a reunião. Porque parecia um grupinho de iluminados, os produtores, que todo dia pensavam: o que que é isso? (Entrevista, Renata NEIVA, Nov. 2015)
O doutorado na linha de Historiografia da Educação (UFU) lhe possibilita narrar em outro tempo a consciência de ser sujeito sobre o sentido histórico do jornalismo. É um aspecto importante a leitura da entrevistada porque se insere na complexidade do próprio viver do sujeito. A resposta de Renata Neiva possibilita analisar, pelo método da Análise Cultural, que o movimento de sentido na intensidade do tempo é da consciência do próprio jornalista. O presente na qual é convi-
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dada na entrevista ao mergulho para questionar a si mesma no passado tem como componente esse entender a contradição interior. Ao efetivar a primeira resposta, se o jornalismo faz história, ela sentencia: “faz demais”. E traduz o sentido da frase: “Faz história quando você pode dar voz à comunidade”. (Entrevista, Renata Neiva, Nov. 2015) Os exemplos surgem da realidade concreta em que atuou como jornalista. Um deles é a ajuda às mães do Bairro Esperança. O bairro Esperança é um bairro com muitas carências aqui em Uberlândia. E elas tinham várias dificuldades. Entre elas a questão do abastecimento de água. E elas nos ligaram, que elas não tinham onde, se elas podiam falar dos problemas que elas tinham. Eu falei “opa, vamos fazer um jornalismo comunitário com vocês” e elas reclamavam do DMAE que não conseguiam água e as contas chegavam e nada. Aí um dia elas falaram: “ó, alugamos uma van, nós vamos lavar a nossa roupa lá no DMAE”. Falei “nós vamos acompanhálas” e fizemos tudo ao vivo e tal, e colocamos o pessoal e secretário e diretor de DMAE ao vivo. E elas colocaram uns pneus, umas coisas que, enfim.. eu sei que esse é um dos exemplos assim da época que a gente fazia muito jor nalismo comunitário. Eu sei que em questão de dias assim a situação já estava resolvida. (Entrevista, Renata NEIVA, Nov. 2015)
O exemplo de jornalismo comunitário está mergulhado na conquista do outro em sua produção de sentido do cotidiano. Não se trata aqui do factual que na duração do tempo se efetiva como histórico. Mas na produção da história a partir das conquistas produzidas na realidade concreta. Esse cotidiano explicita a cultura como política a partir de atos que permitem produzir o significado. A frase “vamos lavar roupa no DMAE” por si só rompe com a factualidade e movimenta o jornalista para produzir sua ação pelo tempo da comunidade. É a situação resolvida que substitui a completude técnica da matéria, como sentido preferencial da leitura. A coragem do jornalista em atuar no veículo de TV somado a coragem das mulheres da comunidade são os fatores que NEIVA considera como primordial.
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Gerson de Sousa Essas conquistas, essas pequenas conquistas, então pra mim foi muito importante fazer um jornalismo local, regional e de ir mudando essas histórias, de ir mudando essas realidades, pequenas realidades, de conseguir uma escola não sei pra onde, a situação de uma velhice que não tava legal que a gente ia junto com o promotor fazer uns flagrantes. Eu gostava muito desse tipo de, de... a gente buscar soluções, a gente estipulava prazos, de ser um intermediário entre esses dois mundos, sabe? De tentar ligar esses dois mundos e buscar solução. Eu acho que eu era um pouco muito sonhadora e assim, a gente conseguiu muito resultado, sabe? (Entrevista, Renata NEIVA, Nov. 2015)
Essa transformação da realidade da comunidade revela num primeiro momento que a produção de sentido do jornalista naquele período era consciente. Mas a pergunta agora se refere à rotina na qual o jornalista se vê mergulhado para produção de notícia. A questão que conduzia pelo testemunho a confirmar o estado de esclarecimento do repórter na produção de notícia toma outro fator inquietante. Neste quadro efetivo a pergunta: Você considera que o profissional que trabalha na redação nessa rotina tem essa consciência de que ele está produzindo história? A surpresa das respostas vem não pelo documento, pela plataforma como elemento central, mas pelo movimento do sujeito na crítica a si mesmo. Eu acho que hoje eu tenho mais do que naquela época, porque você é envolvido... você não tem muito tempo pra pensar, você vai, sabe? Assim, acho que alguns sim, mas assim, você é tão envolvido no fazer... você quer buscar uma solução, mas você vai, você está envolvido naquele cotidiano. Hoje eu tenho mais consciência disso. [...] Naquele período acho que não, você tinha muito tempo presente. É jornal, né? É hoje! É tanto, temperatura tal, onze de tal, dia 12 de novembro e que dia que vai ficar pronto, você tá muito preocupado com o presente ali, sabe? Hoje eu acho que eu tenho mais esse olhar assim de “opa, valeu a pena”. (Entrevista, Renata NEIVA, Nov. 2015)
A construção de si mesmo no decorrer da entrevista, em que o passado é desvelado em meio a análise do presente, se torna a base de sustentação para entender a consciência crítica. E, neste aspecto, em que a jornalista reconhece que a presentificação se figura como óbice para compreender a complexidade que torna esse “faz 154
Paradoxo do cotidiano II
demais” história, se configura como o cenário para empreender a nova problemática. Trata-se da mesma questão da sequência da entrevista anterior, mas vale a pena aqui descrever para contextualizar. Se o sujeito a partir da rotina não tem por vezes consciência de que ele está produzindo história, por que se torna história? E a resposta tem de ser pronunciada pelo enfrentamento, de si mesmo e da compreensão da realidade vivenciada com outros neste mesmo campo. O ponto importante da resposta de Renata NEIVA está em que o questionamento de si no passado remete a problematizar a historiografia da comunicação, ou daquilo que se produz e se configura como histórico. É... Não sei se tem, se não tem professor, porque naquela hora ali, é muito envolvente assim, dependendo do tema você está muito envolvido com o que que vai acontecer, com a informação, dela chegar primeiro... porque tem essa pressão também dela chegar primeiro, essa pressão ela existe, né? E (pausa) não sei se tem essa consciência. Hoje eu tenho, assim, se eu voltasse hoje pra redação, eu acho que seria de outra maneira também. (Entrevista, Renata NEIVA, Nov. 2015)
Se eu voltasse para a redação a compreensão do que faço seria diferente. Os elementos finais da entrevista só resolveram esse dilema quando em uma das perguntas lembrei de uma professora do Ensino Médio, durante um curso de especialização em que ministrava uma disciplina de Metodologia da Pesquisa Cientifica, em Uberlândia. A então professora revelava a utilização do jornal como documento de “verdade” porque aquilo é história. E a pergunta está ancorada agora na decodificação, a partir do conceito de Stuart Hall. Como entender a produção de sentido do jornal, quando se questiona a ausência de consciência de quem o produz como histórico, diante da decodificação da posição dominante hegemônica? Essa posição significa quando “o telespectador se apropria do sentido conotado de, digamos um telejornal ou um programa de atualidade, de forma direta e integral, e decodifica a mensagem nos termos do código referencial no qual ela foi codificada, podemos 155
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dizer que o telespectador está operando dentro do ‘código dominante’”. (HALL, 2003, p. 377) É, ele tem valor como fonte, não é? Como documento, mas ele não é a verdade? Ele não é a verdade. A gente tá produzindo uma história... como que eu vou te colocar isso (pausa). Ele não é verdade, porque ali a gente está trabalhando com as versões dos fatos. Verdade não, mas a gente está produzindo... por exemplo, eu trabalho agora na pós com jornal e história. Então é um olhar historiográfico, de uma certa forma eu estou trabalhando com história das mulheres, história da imprensa e um documento que é o jornal, que é o meu objeto, então de uma certa forma você produz história mas tem que ter esse cuidado que não é a verdade. (Entrevista, Renata NEIVA, Nov. 2015)
E percorrendo esse dilema há outra pergunta que se efetiva como significado para a pesquisa: é possível você ter um documento histórico do ponto de vista físico, sem que você tenha uma produção do sujeito histórico? Ou melhor: é possível separar o sujeito do meio para eu designá-lo como um fator histórico? Renata Neiva explica da complexidade da pergunta, mas defende que é sim. Mas que história se narra? Talvez a resposta possa ser delineada em sua manifestação sobre o que é o Jornalismo. Jornalismo é o compromisso com a notícia, aquilo que ainda não foi dito. E o papel do jornalista eu sempre vi como um mediador entre mundos, um contador de histórias, com seriedade, com responsabilidade, com apuração, com essa função social de levar a notícia com critério. Com aquela série de critérios, sempre com muito responsabilidade, porque uma notícia mal apurada, mal contada, você pode causar até mortes e fechar empresas e desempregos e as pessoas não tem muita consciência disso, sabe?
As pessoas precisam tomar consciência de que aquilo que escrevem e que apuram precisam ser com responsabilidade e contribui diretamente para efetivar uma discussão crítica na realidade social. A critica de Renata Neiva sobre a monotonia do jornalismo se desvela na falta de apuração. O paradoxo está em entender que a crítica da falta de apuração está diretamente vinculada a ausência de conhecimento 156
Paradoxo do cotidiano II
teórico. Não a teoria, naquela interpretação pragmática de ser algo distante da realidade. Mas a teoria como produção de conhecimento que possibilita ao sujeito ter elementos para contextualizar a problemática social.
A complexidade de Renata Neiva segue então em sua construção de identidade a partir das tensões e conflitos. Do gravador da adolescência, do gravador da aula de radiojornalismo, até o seu estágio atual na UFU, o jornalismo apresenta sempre como desafio metodológico: não se trata se sujeitos iluminados para conscientizar a sociedade. Mas de entender em que momento há um redirecionamento desta relação entre sujeitos. Para que o dito do jornalismo se efetive como força no social, é preciso que os sujeitos instaurem seus dilemas do cotidiano no procedimento essencial do trabalho jornalístico: a produção do sentido da pauta. E é no sentido efetivo dessas tensões do sujeito da comunidade no cotidiano, do jornalista diante da ética, e da ideologia da empresa que o contrata, que a identidade do jornalista se constrói como problema de experiência vivida. 157
Capítulo 7
Igor Miranda
On Line
A tensão da teoria na prática bruta do Jornalismo
A
experiência vivida com um blog se tornou o ponto principal para que
Igor Custódio Miranda fosse instigado a tomar a decisão em cursar o Jornalismo. Desde adolescente, o que mais chamava atenção era o cur-
so de Direito. E ele identifica que essa relação com o Direito consiste na sua parte teórica, nos fundamentos da lei. Mas aos poucos a afinidade teórica idealizada com o Direito se confrontou com a prática bruta do princípio de Jornalismo. E é desta forma que a memória passa a ter a necessidade de encontrar e atribuir valores para que o sentido da vida no presente oriente o horizonte do futuro. Na narrativa sobre a sua história de vida, Igor Miranda edifica pontos desse sentido que justificam para si mesmo o significado social de ter concluído o curso de Jornalismo. É preciso entender como o Jornalismo deixou de ser a segunda opção para se tornar o caminho viável de Igor Miranda, que se formou no período de 2011 a 2014 na Universidade Federal de Uberlândia. A primeira tentativa de vestibular foi para o curso de Direito. Hoje, ele sente alívio por não ter passado naquele exame. O tempo de um ano, de um vestibular para outro, em que as pessoas passam a pensar sobre si mesma, conduz aos dilemas que estabelecem novas perspectivas. E é justamente o ponto forte do Direito, a teoria, que passou a sofrer um primeiro impacto negativo para a resolução do conflito de tomada de decisão de Igor Miranda.
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O importante é questionar aqui qual o sentido deste teórico em que Igor Miranda questiona. Se o que o atraiu era o conhecimento teórico do Direito, o sentido do termo teórico passou a ter valoração negativa ao correlacionar com o sentido de ser mais distante das relações sociais. E em vez do teórico ser tratado como sabedoria que distingue com criticidades as denominações das leis, o entrevistado passou a atribuir o teórico como algo decorado, portanto sem sentido para o desenvolvimento intelectual do sujeito. A questão prática que me fez arrepender um pouco de pensar no Direito em algum momento. É o Direito, ele é muito teórico. Tenho colegas que formaram em Direito que me falam que “olha as vezes eu tenho até um pouco de inveja de trabalhar com Jornalismo, de sair do escritório de sair da sala fechada de ir um pouco pra rua de descobrir as coisas, de ter uma relação com as pessoas que não seja tão fria, acho que das profissões o jornalismo é uma das que tem a relação mais próxima com as pessoas, mais humana. (Entrevista, Igor MIRANDA, Out. 2015)
Sair do escritório da sala fechada implica em deixar de entender as pessoas por meio das leis de uma forma fria. É importante considerar que esse termo fria está quase num tom de critica metodológica, em que se confronta um desalento sobre o estruturalismo. Pois ao articular que as leis passam a ser decoradas e ao mesmo tempo em que ela rege a forma de relação do advogado de sua sala fechada, do escritório, Igor Miranda elabora aqui a sua posição crítica que lhe justifica o sentido da reprovação no primeiro vestibular e a mudança para o jornalismo. A complexidade da decisão de Igor Miranda é que, se por um lado precisa ratificar o negativo deste teórico do Direito, por outro necessita desvelar elementos que considerem o Jornalismo como nova referência para a experiência vivida. A memória coletiva passa a atuar de forma relevante neste contexto. A primeira característica que se torna primordial é a definição de que o Jornalismo edificava um grande
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potencial da sua maior habilidade: capacidade de escrever. Quando necessita expli car o porquê de ter seguido o Jornalismo, Igor Miranda é enfático: Porque dentro do jornalismo eu me encontrei especialmente porque a minha melhor habilidade, aptidão, sempre foi escrever, sempre gostei muito de escrever. Na época assim sem muita técnica e aqui já com as técnicas com os conhecimentos específicos do jornalismo. E aqui dentro fui descobrindo muita coisa, fui descobrindo muita afinidade em contar histórias, em descobrir histórias pra poder contar, basicamente é isso. (Entrevista, Igor MIRANDA, Out. 2015)
Para que se efetive a capacidade de escrever é imprescindível que se tenha sempre esse impulso de sair de si mesmo para descobrir histórias, para poder contar histórias. Se por um lado Igor Miranda está descrevendo esse sentido do contar histórias depois da graduação, torna-se importante considerar que essa justificativa não estava presente naquele tempo de um ano em que reprovou no vestibular de Direito e passou a edificar o sentido do Jornalismo. Da mesma forma em que sua narrativa sobre por que optou pelo Jornalismo é a posteriori. Nesse sentido assim acho que fiz uma boa escolha porque eu não aguentaria ficar dentro de uma sala estudando leis. Tem aquela coisa muito decorada, apesar de ter também um lado humano no Direito é obvio né. No Jornalismo como é muito mais na prática, você vai pra rua vai fazer o seu esquema, volta e escreve passa pra edição então você recebe a informação faz lá o seu texto e tudo mais, eu me identifico bem mais com esse tipo de trabalho. (Entrevista, Igor MIRANDA, Out. 2015)
Você vai para a rua significa não ficar preso no escritório estudando leis. E fazer o seu esquema implica em considerar como justificativa plausível para Igor Miranda se tornar sujeito no processo comunicativo, sem considerar que já está algo constitutivo em que o fato será analisado. O problema que se edifica aqui é compreender quais os elementos da experiência vivida daquele momento se tornaram constitutivo para que o recém-graduado definisse pelo Jornalismo e passasse a produção de sentido deste exercício profissional para o sentido de sua própria vida. E 163
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assim, a experiência do blog se tornou essencial para que pudesse vincular o Jornalismo como espaço para potencializar a sua melhor habilidade. Igor Miranda passou a escrever em um blog, desde 2007. E com este projeto, as duas possibilidades de caminho profissional de adolescente passou a instar em um conflito. Na época eu tinha um blog que, na época, tinha uma boa repercussão. A gente colocava os discos de bandas pra download acompanhado de uma resenha, de um textinho, tudo mais. Na época sem muita técnica, que era eu e mais um pessoal também. Não tinha nenhum jornalista na equipe do blog. É até legal que outros dois colegas desse blog viraram jornalistas também. Na época a gente tinha uma boa repercussão bons acessos, mais por conta dos discos do que por conta das resenhas mas também tinha gente que chegava falando: “nossa que legal o texto, conheci coisas que não sabia da banda do disco e tudo mais”. (Entrevista, Igor MIRANDA, Out. 2015)
Embora reconheça que não se trata do texto o ponto importante do blog, já que constava de resenha, Igor Miranda finaliza o relato sobre a repercussão dos textos. E mais precisamente nas relações sociais constitutiva de seu trabalho no social. E assim o texto, ou melhor, a capacidade de escrita se torna relevante para que se estenda ao valor de ser sujeito do processo. A indefinição de seguir Direito ou Jornalismo percorreu então todo esse paradoxo de vida. Primeiro porque era necessário encontrar outra referência que pudesse demarcar o valor de Jornalismo para sua vida, antes de iniciar o próprio curso de Jornalismo. Eu sempre ficava pensando, ficava dividido porque por um lado tinha a afinidade teórica ali idealizada com o Direito mas já tinha um pouco ali daquela pratica bruta, vamos dizer assim, do que viria a ser o jornalismo depois na minha vida. E sempre pensando “olha como eu me divertia na época daquele blog”. Sempre tive blog, não necessariamente aquele, depois fui tendo outros, sempre pensava “será que eu escolho Direito ou Jornalismo?” eu pensava, “hum, mas eu era feliz na época daqueles blogs lá”. Aí eu tomei essa opção do Jornalismo depois que não deu certo Direito. Ao invés de prestar Direito de novo, eu prestei Jornalismo. (Entrevista, Igor MIRANDA, Out. 2015) 164
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A prática bruta do trabalho do Jornalismo somado ao divertimento e a felicidade em que a experiência vivida do blog proporcionou se tornaram o ponto edificante do caminho seguido por Igor Miranda. A justificativa, por mais temporal que seja, é a referência para que se projete perspectivas dentro do curso. E por mais paradoxal que seja, a parte teórica, que se articulava então ao Direito na escolha profissional, retorna com mais força durante o período de formação em Comunicação Social: habilitação em Jornalismo de Igor Miranda na UFU. Tanto que o próprio sentido do Jornalismo passa a ser edificado por um novo significado agora com valor positivo para a atribuição teórica em contraponto à sua prática. A questão é saber se esse sentimento de felicidade anunciado no trabalho do blog e agora na universidade se edifica como simulacro ou como ressignificação da experiência vivida. Há de considerar, porém, que existe uma diferença significativa entre dois elementos. O primeiro, é a elaboração de justificativa que o sujeito estabelece para si mesmo nesta decisão de porquê deverá seguir o Jornalismo. O Segundo é a concei tuação teórica sobre o Jornalismo (e até mesmo sobre o Direito) na qual no momento da decisão de se inscrever para o vestibular não há, é claro, profundidade conceitual para se chegar aos meandros da profissão. Esses dois pontos nem sempre podem ser orientados pela coerência. E, mais importante, nem sempre se coincidem. E diante do estado de oposição, entre a perspectiva que se funda no primeiro, e a realidade teórica conceitual pela qual se aprofunda o segundo, o sujeito é remetido para novos estados de tensão e conflito. Pois justamente no momento em que Igor Miranda define como principal característica do Jornalismo esse sair para rua, estar com as pessoas, que ele descobre na universidade outros fundamentos do que se justifica como Jornalismo. Seria esse novo fator motivo suficiente para que desista do curso, seguindo a coerência que fez com o Direito? A experiência vivida do sujeito tem sua dinâmica na interpretação da realidade com que ele responde aquilo que lhe acontece. Em determinadas 165
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situações, o sujeito vai construindo o seu caminho, mesmo que para isso ele tenha de demolir determinadas certezas materializadas em perspectiva. E é assim que Igor Miranda passou a enfrentar o seu primeiro dilema profissional. Eu acho que quando eu entrei em Jornalismo eu esperava ficar bem menos em sala de aula. Eu esperava que eu ia muito mais pra rua. Ainda bem que também eu me desapontei nesse sentido porque é dentro da sala de aula que você aprende a enxergar a comunicação como um todo, humanizar a comunicação, entender de uma forma que, só indo pra rua, só entrevistando o pessoal, não daria. Não é só a prática é a teoria também. Os autores, as teorias e tudo mais e nesse sentido que eu não esperava tanto isso. A expectativa nesse sentido foi quebrada e ainda bem né, porque depois que você vai passando pelos períodos você vai percebendo o quanto é importante isso e o quanto no mercado de trabalho, pegando Uberlândia, que é o mercado que eu estou inserido isso não existe tanto os outros profissionais não tem essa visão de pensar a comunicação antes de colocar ela em prática. (Entrevista, Igor MIRANDA, Out. 2015)
O Jornalismo que o atraiu pela prática bruta agora tem de ser ressignificado a partir do desapontamento com o caminho do curso. Só que ao contrário do Direito, Igor Miranda transporta do negativo para o positivo. O desapontamento demoliu a perspectiva, mas se confrontou com outro sentido do qual a realidade está mais próxima do conceitual teórico do curso. E é assim que a teoria passa por nova reavaliação em sua produção de sentido. Só que agora direciona a dois ele mentos importantes: o conceito de comunicação e a reavaliação do sentido da prática destituída de teoria. A pergunta é importante e complexa: o que é comunicação? Difícil para ser respondida enquanto se cursa o primeiro ano do curso. Mas é um caminho imprescindível para compreender que a potencialidade de escrever, embora seja sua maior habilidade, é um dos, e não o único fator do que denomina como comunicação. É com esse aspecto que o sentido de humanizar passa a ganhar corpo no conceito do que é comunicação. Não é o sair para a rua o elemento mais importante, mas quais são as condições em que você deve estar para que consiga ter de forma profunda 166
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uma relação com as pessoas no cotidiano. Igor Miranda se descobre que ir para a rua, entrevistar as pessoas, ainda não é um indicativo de ser sujeito no processo de comunicação. Pelo contrário: se essas duas atividades ficarem restritas a praticida de, corre-se o risco de ficar na superficialidade sem que se faça o mergulho teórico. Toda vez que defrontamos com alguém que demole sua perspectiva, temos de considerar que houve determinado estado de enfrentamento em sua produção de identidade. A reelaboração deste argumento tem de ser desvelado de que quando escrevia o blog, Igor Miranda não tinha dimensão profunda sobre o significado do texto. Essa ausência de sentido poderíamos considerar que foi transposta para este estado de conflito. Qual o sentido de estar na universidade se a produção da escrita e o sair para a rua não apresenta fundamento conceitual? A perspectiva do curso, quando não está sedimentada na própria constituição do sujeito, é remetida então para o sentido do movimento do pensar e repensar a experiência vivida. E neste movimento chegamos ao segundo ponto da questão: a reavaliação da práti ca destituída de sentido. A parte final da frase de Igor Miranda está direcionada para uma reavaliação do mercado de trabalho em Uberlândia. A memória coletiva lhe leva a apontar o sentido em que se edifica a sua nova compreensão profissional. Pois, ao argumentar que não há tantos profissionais qualificados conceitualmente para o trabalho cotidiano da profissão, o entrevistado está mergulhando no embate sobre o que é a produção jornalística. A falta de profissionais com esta proposta conceitual remete a novas indagações: que tipo de Jornalismo se está produzindo diante da marginalização teórica? E será que esse fator não remete a superficialidade do Jornalismo, conduzindo de uma produção de sentido do cotidiano para a rotina profissional? A resposta a essas indagações devem ser buscadas nas próprias inquietações reveladas por Igor Miranda em seu processo de formação. Ele revela que somente no quarto período do curso, quando produziu o Jornal Laboratório Senso In Comum, 167
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que a ressignificação do teórico se processou de forma consciente. A questão indagada para Igor seguiu com este contexto: “É engraçado, você falou assim que quando entrou tinha uma expectativa e não se realizou, em que momento, você lembra, do curso, que você disse “eu acho que isso é melhor”? Acho que a partir do quarto período que foi aquele momento de fazer o jornalismo experimental que foi o Senso InComum, que todas as disciplinas eram integradas pra elaborar aquele jornal, que ai trabalhava o jornalismo opinativo, o jornalismo impresso, as técnicas e tudo mais, e aproveitava conceitos de outros períodos, de fotojornalismo e tudo mais. E olhando como ficou o produto final eu fiquei pensando “eu ficava reclamando no começo que ficava tanto tempo na sala de aula, mas ainda bem que a gente ficou senão não teria saído tão legal como ficou de fato”. Foi mais ou menos no meio do curso mesmo, quarto período, é o meio, a ruptura, vamos dizer assim, até de um pré-conceito que eu tinha que foi se quebrando aos poucos e quebrou de vez ali. (Entrevista, Igor MIRANDA, Out. 2015)
O que significa essa ruptura ao pré-conceito quanto á teoria? No processo de formação como jornalista, Igor Miranda foi construindo sua concepção e depois se materializou quando entrou no mercado de trabalho. Entretanto, a sua referência inicial sempre foi para as disciplinas práticas. Só que agora com outro fator agudizado pela memória: as disciplinas práticas que consegue produzir sentido à realidade vivenciada pelo jornalista no mercado de trabalho. É desta forma que ao relatar um exemplo de uma disciplina que lhe tenha produzido significado ele faz a narrativa das disciplinas de Telejornalismo. Mas a interpretação se caminhou por um processo de orientação posteriori da sua experiência no mercado de trabalho. um negócio marcante que eu ainda vejo que acontece no mercado de trabalho foi na disciplina de telejornalismo que a gente se dividiu pra fazer um telejornal experimental com assuntos culturais, eventos culturais que teria na cidade, entrevistando músicos, bandas, e falando sobre exposições artísticas e tudo mais a gente. Fez até uma matéria falando sobre coletivos culturais na época tinha explodido aquela banca do cara que estava desviando dinheiro do 168
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fora do eixo, alguma coisa assim. Eu lembro que na hora de definir quem faria o que ficou “ah, você vai ser o produtor, você vai ser o editor, você vai ser o redator” mas ai todo mundo fez tudo. Acho que foi a diferença mais legal que eu tive porque sempre que isso vai acontecendo no mercado de trabalho eu vou lembrando que a universidade me antecipou isso. (Entrevista, Igor MIRANDA, Out. 2015)
A importância relatada da universidade está nesta antecipação do que viria ocorrer no mercado de trabalho. Ou se traduzirmos, o concreto pensado na universidade se materializa na prática profissional ao ponto de você identificar e considerar que a situação vivenciada posteriori pertence ao quadro de experiência vivida. Ao considerar esse quadro, é preciso problematizar que isso estende mais do que mero procedimento de distribuição de tarefas. A crítica aqui consiste em como a universidade considera a totalidade da produção jornalística diante do reducionismo da fragmentação, de procedimento fordista, na produção da notícia. O repórter tem sua responsabilidade pela matéria, mas não se pode deixar à margem de todo o processo. Se mantiver esse distanciamento, perde-se o sentido da própria comunicação. Há também aqui um pressuposto de que embora exista setores responsáveis no Jornalismo, a diferença do produto final leva a uma quebra de hierarquia. Não existe isso de eu sou o editor e só vou fazer isso. Às vezes o editor tem que ligar pra apurar também tem que ir cutucando a fonte, às vezes o repórter não entregou um texto completo, às vezes o repórter tem que entregar um texto mais palpável pra edição, tem que pensar também nos recursos pra edição, às vezes o repórter tem que produzir, às vezes o produtor tem que fazer reportagem também. Tudo vai se misturando. É um pouco diferente do que você pensa às vezes daquela hierarquia do mercado de trabalho, “ah, tem o chefe e tem o sub-chefe e tem o sub-sub-chefe” cada um faz uma coisinha muito específica. Não, no jornalismo você vai misturando tudo na hora da produção na hora de produzir mesmo e cada um vai fazendo o que pode pra agregar e chegar naquele produto final e todo mundo ficar satisfeito com aquele resultado. (Entrevista, Igor MIRANDA, Out. 2015)
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Diante da ruptura provocada pela base teórica, a pergunta que se efetiva, para entender a produção de identidade, é qual a análise que o entrevistado faz do ensino teórico na universidade? E como a memória coletiva vem se efetivando de forma contundente, qual o significado da teoria para atuar no mercado de trabalho? A resposta de Igor Miranda vem em tom comparativo aos outros formados em Jornalismo que passou a conhecer no mercado de trabalho. Esse é o elemento principal para que ele conceitue o ensino de jornalismo na UFU. aqui a teoria é trabalhada de uma forma que eu não sei dizer, eu vou repetir o “humanizado” porque aqui foi o que eu mais entendi de questão teórica de entender a comunicação de forma humanizada de sair daquela coisa da técnica e da teoria, de usar a teoria a seu favor de não ficar usando frases decoradas de autores consagrados e tudo mais. Nesse sentido que eu penso que foi o que enriqueceu mais a parte teórica pra mim porque eu consegui aplicar isso de forma que eu consegui ir por caminhos legais e apurar de forma diferente. Não sei se foi bem isso que você queria de resposta eu não entendi muito bem a pergunta, nesse sentido. Mas acho que a forma de pensar o jornalismo, de interpretar a informação de sempre enxergar os dois lados com o máximo de isenção possível se colocar na pele dos dois lados ali de uma questão de um dilema que gerou uma reportagem pra entender tanto a parte as vezes numa reportagem falando de um grupo de pessoas que foi lesada por outro grupo, entender os dois lados, tudo de uma forma balanceada a partir do entendimento teórico a gente consegue pesar melhor, entendo um pouco da cultura de cada grupo de pessoas você consegue pesar cada coisa melhor pra ver o resultado final, o que sua reportagem tem que passar. (Entrevista, Igor MIRANDA, Out. 2015)
Ao indicar que a teoria é a parte do pensar a prática, o sentido que ela afirma a esse movimento da produção jornalística, é preciso reconhecer que o elemento comparativo da formação acadêmica se estende para o trabalho profissional. Pois, se falta conhecimento teórico para os graduandos, é coerente que se falta teoria para o trabalho profissional. E o posicionamento de Igor Miranda nessa ressignificação deixa claro a crítica contundente de que não basta somente entrevistar, somente ir para a rua. O problema se torna inevitável: você considera que falta co-
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nhecimento teórico para os outros que estão no mercado? A resposta veio com a mesma contundência: Com certeza, com certeza. É, a gente vê muitos colegas eu vejo muitos colegas que se formaram em outras universidades inclusive federais de outras cidades e outros estados, que bitolam muito na parte técnica, na prática de só vale quando você vai pra rua, vai apurar e não é assim, né? Antes de ir pra rua você tem que se preparar bem, tem que ter um conhecimento teórico bom, você tem que ter uma capacidade de interpretação e de formação muito boa pra poder chegar na rua e não fazer feio né, nem na hora de chegar pra construir sua reportagem seja pra qual veículo for, também não fazer feio, pra ninguém ficar com dúvidas, não gerar uma má interpretação a partir da sua reportagem. A técnica ajuda mas a teoria ajuda a formular e até a entender como você vai usar a técnica que você aprendeu. (Entrevista, Igor MIRANDA, Out. 2015)
O termo bitolam muito na parte técnica se efetiva aqui com o sentido de crítica da destituição de sentido da prática sem teoria. E por que não dizer, da acusação ao tecnicismo da profissão que revela um problema conceitual. A rua é o momento de relação do repórter com o outro. Entretanto, para se pensar em processo de comunicação é preciso considerar que há outro momento em que o exercício do pensamento, da elaboração teórica, tem fundamentação imprescindível para o jornalista. De onde vem esta capacidade de interpretar? Para Igor Miranda está preciso agora que se trata da fundamentação teórica. E essa base conceitual é importante para a entrevista, a apuração e a redação do texto. É preciso ter técnica, mas sem fundamento teórico a produção de sentido do jornalista se esvazia, recaindo na presentificação gratuita que resulta na demarca ção da rotina. Sem consciência de sua apuração, sem essa interpretação, o jornalis mo corre o risco de se tornar mero procedimento em que a escrita é levada a um automatismo mecânico. A leitura atenta dessa frase nos remete a um elemento de dúvida: será que há espaços para essas discussões conceituais no mercado de trabalho? E a reposta de
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Igor Miranda percorre o tema de embate: o tempo. A surpresa talvez esteja nas referências inicias em que o entrevistado recorre para mostrar que no mercado de trabalho não há tempo para se pensar. Igor Miranda diz que o mercado de trabalho é “daquela forma mesmo que já se idealiza em filmes em desenhos animados em histórias”. Ou seja: ausência de tempo. você não tem muito tempo pra ficar pensando em muitas coisas. É claro que existem repórteres especiais, repórteres investigativos que às vezes tem prazo maior pra cumprir uma pauta, mas muitas vezes você tem que cumprir uma pauta no mesmo dia que ela é dada. Você não tem tempo pra pensar a melhor forma que você vai fazer aquela reportagem, você pensa na melhor forma de fazer aquela reportagem em 2, 3 horas, você não pensa assim “isso aqui é o meu melhor” não dá tempo. (Entrevista, Igor MIRANDA, Out. 2015)
Essa insuficiência de tempo se estende para todos os veículos: você precisa ter uma quantidade de matérias para serem produzidas e com isso preencher o tempo e o espaço da mídia para ser publicada no hoje ou no amanhã. Essa exigência pertence a natureza da profissão jornalista. Mas há um embate aqui que se estabelece para compreender o sentido da produção jornalística. Ao entender e comentar sobre a similaridade da idealização do jornalismo em desenho animado com a do mercado de trabalho, é preciso repensar aqui então se esse jornalismo, tratado como representação, não se efetiva como real. E se o idealizado é o jornalismo em que o tempo e o espaço não concorrem com a capacidade do exercício crítico do pensar. O idealizado então seria a nova perspectiva de jornalismo criado por Igor Miranda a partir da experiência vivida na universidade. Uma coisa é argumentar, mesmo que de forma crítica, que o jornalismo está mergulhado em um reducionismo da prática. Outro fator é considerar que a ausência de tempo e espaço para que o sujeito se constitua com consciência dos dilemas deste processo. A prática deixa de ser procedimento para se configurar como elemento teórico pragmático da própria concepção do que é o jornalismo. É isso
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que está premente no dilema do entrevistado de que com a pressão de velocidade e produção na redação, se torna obstáculo para esse exercício crítico do jornalismo. Torna-se importante retomar aqui que a capacidade de pensar teórico, antes de ir para a rua, é o principal argumento desvelado por Igor Miranda. É nesta base que ele sustenta na narrativa o argumento da importância e do significado do Jornalismo na sociedade. Se poderia dizer que o entrevistado se defronta aqui com a segunda decepção? A explicação de Igor Miranda vem com uma distinção temporal que evita entrar neste sistema de colisão. A pergunta é uma continuidade de sua lógica de pensamento. Quando o entrevistado atribui que muitos profissionais atuam no mercado sem conhecimento teórico, será que se pode dizer que estão despreparados para atuarem como jornalistas? O entrevistado recorre a temporalidade entre o jornalismo de antes e o de hoje, diferenciado pela Internet. E assim vem a argumentação. “Não, eu não diria despreparados. O mercado do jornalismo ele foi mudando, foi se modificando”. O que significa esse foi mudando. Igor Miranda então primeiro descreve o que é esse jornalismo do tempo anterior: o de antigamente se exigia preparo mais técni co, em procedimentos como o desenvolvimento da fala. Antes pensava-se muito mais na técnica, de como você vai se portar, de como você vai falar, dos termos técnicos pra falar, pra se referir a uma matéria, um off, uma passagem. A gente ficava se preocupando muito nisso e há muitos jornalistas hoje no mercado de trabalho que não tem o diploma, muitos deles são os jornalistas das antigas, muitas histórias de jornalistas que começaram na operação do áudio, de uma rádio ou às vezes acompanhando um repórter de jornal impresso, começou até distribuindo jornal impresso e foi passando por outros níveis até chegar ao cargo de jornalista de uma empresa. Não precisava de uma formação teórica, ele precisava entender a técnica como ele faria na prática, e precisaria entregar o serviço da forma como era pedido, aquela coisa da demanda, especialmente no jornalismo diário tem muito isso. (Entrevista, Igor MIRANDA, Out. 2015)
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De qual antigamente o entrevistado está se manifestando ou recordando: da idealização dos filmes ou da experiência vivida? Pois em determinado momento dessa temporalidade Igor Miranda se coloca como sujeito que vive esse antigamente em que a preocupação é somente técnica. Mas ao mesmo tempo ele se contrapõe ao citar o desenvolvimento técnico da fala. Essa identificação o leva a considerar os limites em que é sujeito na profissão. “Não tenho desenvoltura nenhuma na fala e atuo no mercado vamos dizer assim, tranquilamente, sabendo das minhas limitações mas consigo atuar”. (Entrevista, Igor MIRANDA, Out. 2015) De certa forma a distinção de temporalidade de Igor Miranda está em considerar que o hegemônico do antigamente está estruturado no jornalismo informativo. E agora, o hoje, pela própria influência do jornalismo norte-americano, há uma solicitação do mercado para o interpretativo. hoje em dia isso está mudando, especialmente com internet, que a informação chega muito rápido e hoje em dia a demanda por jornalistas que pensem e interpretem aquela informação fora daquela parte isenta, daquela parte que, como se diz? Do neutro, que acaba não existindo, né? A demanda por isso é muito maior, você tem que pensar o jornalismo? E pensar a notícia e pensar o que que aquela informação vai impactar na sua vida e entrega essa informação pro leitor, pro telespectador etc. A demanda por isso é maior eu imagino. (Entrevista, Igor MIRANDA, Out. 2015)
O aumento da demanda da informação traz para o contexto do hoje um novo posicionamento do sujeito jornalista. Mas há também uma demanda por jornalistas que pensem e interpretem a informação, em vez de serem meros reprodutores da notícia. O problema apresentado por Igor Miranda refere-se então a um movimento temporal em que havia uma estrutura hegemônica no passado da técnica e agora uma exigência para o pensar a informação. Em qualquer uma dessas temporalidades, o que prevalece ainda é a velocidade com que o tempo exige, no passado, a produção da notícia, e no presente, o pensar a
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informação. Mas se a formação na universidade e o que se apresenta enquanto estrutura no mercado de trabalho é mais pela técnica, como o entrevistado revelou parágrafos anteriores, de onde vem essa demanda interpretativa? Seria do próprio dilema material da tecnologia da informação ou do conflito do jornalista em ser sujeito do processo comunicativo? A resposta a essas interrogações podem ser orientadas pelo posicionamento do entrevistado. A pergunta indaga se os sujeitos no mercado de trabalho conseguem cumprir na totalidade quando tem essa demanda do pensar. Existem os que conseguem fazer isso mas de uma forma muito limitada dentro da caixinha porque não teve aquele, não sei se instrução é a palavra correta mas um embasamento teórico correto é não correto também né, não dá pra dizer o que é certo e o que é errado, mas não teve um embasamento teórico ideal, enfim, pra poder desenvolver esse tipo de interpretação e entregar isso pro seu espectador, independente de qual veículo for. (Entrevista, Igor MIRANDA, Out. 2015)
A falta de embasamento teórico dificulta a interpretação da notícia. E com isso, perde-se o poder daquilo que Igor Miranda considera como essencial: a capacidade de compreender o fato, e levar essa interpretação ao outro. Sem essa base e atropelado pelo tempo, o cotidiano se transfigura em rotina. É possível algum movimento de contraponto a esse sistema hegemônico diante desse quadro? Será que podemos considerar que os jornalistas são sujeitos desse processo diante desse quadro contextual? Essas questões permitem entender o encadeamento das ideias do entrevistado quando levado a comentar sobre a sua experiência no trabalho no mercado. Você tem que tentar um pouco também, entendendo um pouco como é que é o ritmo do veículo diário, pra poder questionar alguns pontos e poder tentar mudar algumas coisas. Existe a possibilidade, algumas pessoas são esmagadas pela rotina, outras ficam lá o tempo inteiro questionando os eternos ideais, há casos e casos. (Entrevista, Igor MIRANDA, Out. 2015)
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Há possibilidade de o jornalista conseguir alterar sua rotina para cada vez mais buscar o sentido no cotidiano. Porém, Igor Miranda apresenta uma dificuldade premente: algumas pessoas são esmagadas pela rotina. E outras permanecem no estado de tensão e conflito dos eternos ideais. O dilema apresentado aqui nos coloca diante do quadro crítico para discutir sobre o significado da produção jornalística. Mais precisamente, como entender o sentido histórico do jornalismo diante deste quadro de tensão e conflito. Um estado de tensão em que o sujeito jornalista vive mais diante das condições que lhe são consideradas. Igor Miranda considera que a possibi-
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lidades sim de se fazer jornalismo diferente. Para isso, é preciso escapar de ser es magado pela rotina e materializar os ideais em embates na redação. Sobre qualquer um desses dilemas pelo qual se atravessa, é preciso recorrer novamente a temporalidade para questionar: você considera que o trabalho do jornalista é histórico? Ele tem valor histórico? A resposta a essa questão veio primeiramente em tom já como arquivo, e portanto, documento histórico. Igor Miranda afirma com veemência: “com certeza”. E em seguida explicita a sua experiência de estagiário no Jornal em que era responsável por publicar o quadro semanal do arquivo público de Uberlândia. E a maior representação do jornal como história é que o arquivo público constava de edições passadas do jornal. Então uma das bases de pesquisa mais confiáveis que você tem são as edições passadas de veículos de comunicação, seja de TV, de rádio, de jornal impresso e afins. Porque ali você tá pegando a informação histórica até de como ela era interpretada naquela época, como ela era colocada pro público naquela época, então desde cedo eu tinha essa ideia porque eu já estava em contato ali com o arquivo público. (Entrevista, Igor MIRANDA, Out. 2015)
A primeira frase para explicar o termo “com certeza” indicava que a historicidade do jornalismo estava mais como documento temporal do que do sentido da produção. Mas o entrevistado salta do documento antigo para a produção jornalística ao indagar sobre a forma em que a informação é interpretada em cada período. Mas no decorrer do processo as indagações percorrem muito mais fatos que se tornam relevantes, que poderia estar com ênfase no informativo, do que na interpretação dos fatos. E o dilema atravessa a continuidade da narrativa quando esses elementos parecem se mesclar na visibilidade conceitual. O jornalismo é histórico. Isso o próprio jornalismo vai mudando, como é que eu era 50 anos atrás, está a mesma coisa? Não é pra estar a mesma coi sa, porque eu posso mudar. Existe uma base histórica tanto pra quem quer entender como é o mundo naquela época, comparar com hoje em dia, como quem trabalha com isso quer entender “olha, como é que eu estou impri 177
Gerson de Sousa mindo informação agora, é muito diferente de antes? Posso mudar?” fazer uma comparação. Jornalismo é história, tanto de contar histórias quanto de colocar dentro da história um fato de importância, de relevância. (Entrevis ta, Igor MIRANDA, Out. 2015)
Jornalismo é história. A frase finalizada no primeiro questionamento precisa ser confrontada agora da idealização da história do jornalismo do sujeito que narra em contraponto à realidade da experiência vivida. Recorre-se neste momento o problema entre sujeito e estrutura, da prática da produção jornalística para o sentido da plataforma que, por ter conteúdo da década de 50, já se torna automática como história. Então se faz outra pergunta ao entrevistado com esse problema teórico metodológico de análise cultural. Você considera que as pessoas quando estão fazendo um trabalho no dia a dia do jornalismo, elas tem compreensão de que o que elas estão fazendo é história? Esse é o momento em que a memória coletiva exige da experiência vivida uma imersão ao ponto de definir o sentido do que irá ser narrado. Pois ao exigir a saída da resposta da idealização do que é o jornalismo, o entrevistado necessita encontrar elementos coerentes que estejam compatíveis com o percurso que faz do seu próprio processo de produção da identidade. E é com esse impacto relevante que Igor Miranda retoma os elementos de debate da entrevista para se contrapor a sua própria afirmativa do valor jornalístico como história. E assim caminha a resposta: Nem sempre, porque muitas vezes você vai ser um pouco esmagado pela rotina. Você não consegue pensar “ah, será que daqui 10 anos alguém vai lembrar dessa reportagem ou vai ler essa reportagem que deu tanto trabalho pra eu fazer”, ainda mais no jornal impresso, se você pensar naquele tipo de papel que ele é mais descartável, que ele não dura muito se você deixar ele... eu deixei guardado os primeiros jornais mesmo que saíram matérias de 2013 já tá amarelado, sumindo algumas letras e tal, mas tem muita gente que guarda aquilo lá de uma forma específica, pra portfólio, guarda de uma forma específica pra não se perder aquela informação, dentro do jornal tem um arquivo específico também, então acho que não se pensa muito “olha, será que essa
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Paradoxo do cotidiano II
reportagem vai ser lembrada? Será que eu estou mudando alguma coisa na história fazendo isso aqui?” (Entrevista, Igor MIRANDA, Out. 2015)
A resposta tem um tom subjetivo e ao mesmo temo coletivo. No campo subjetivo, o jornal se torna documento do próprio jornalista para ser apresentado como portfólio, como currículo do que produziu, mais pela assinatura que comprova ter produzido o documento do que o sentido do próprio documento. Na segunda abordagem da fala, Igor Miranda volta a indagar sobre o esmagamento da rotina e sobre essa ausência de pensar sobre a própria historicidade do jornalismo enquanto se está sendo produzido. O indicativo assim se pronuncia de forma forte: no momento que o sujeito jornalista está no cotidiano de sua produção de sentido e tem como elemento importante a interpretação da notícia, ele não tem tempo para indagar sobre a historicidade da matéria. E assim, a interrogação do entrevistado recai no dilema da própria pesquisa nesta busca de compreender a historicidade: se o jornalista é atropelado pela rotina, não tem uma dimensão de que quando ele produz ele está fazendo história, por que esse jornal se transforma em história? E o tom da resposta do entrevistado segue e reforça o campo de conflito que se estabelece na concepção do que é Jornalismo. Porque vamos dizer assim, é o que temos? É isso que é produzido, o mercado te exige a produção diária. Há jornalistas que são atropelados pela rotina e há jornalistas que ainda conseguem superar esse dilema. Até quando você me perguntou se todo jornalista tinha noção e se todo jornalista era atropelado pela rotina, existem os jornalistas que não são atropelados, existem jornalistas que mesmo tendo seis horas ali ele consegue pensar a pauta dele certinho, bonitinho, da forma que ele gostaria que fosse. Não é o cara que no dia seguinte fala “meu Deus, como é que saiu isso aqui, como é que eu fui escrever isso aqui” não é o cara que realmente se arrepende, né? Existem jornalistas e jornalistas também. Claro que passados 50 anos não dá pra você falar: “olha, esse jornalista ele era atropelado pela rotina, esse aqui não” não tem nem como você saber disso. (Entrevista, Igor MIRANDA, Out. 2015)
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Esse é o problema do sentido da historicidade ou da questão sempre enunciada sobre qual história está sendo narrada pelo jornalista. Há uma enunciação histórica do entrevistado que nos remete a esse dilema: quando o leitor estiver efetivando a leitura de um jornal de décadas atrás, é certo que não terá a compreensão se o jornalista foi esmagado pela rotina ou se ele tinha consciência do que estava produzindo como notícia. Ou mesmo, não terá noção se o nome assinado na matéria, no dia seguinte foi levado ao estado de arrependimento ou mesmo atacado por uma surpresa de ler e não se reconhecer na matéria que indica ter produzido. Se levarmos mais profundo essa ausência de reconhecimento da sua própria autoria, podemos adicionar que há uma possibilidade real do próprio jornalista se tornar oposição ao seu próprio texto no futuro. Quem são os jornalistas que não se arrependem no dia seguinte de ter escrito o seu texto? Para que se chegue a esses sujeitos, é preciso ultrapassar a análise de conteúdo para mergulhar na experiência vivida do sujeito. Só que ao recorrer a esse movimento, é necessário considerar que há outros fatores que permitem o reconhecimento histórico. Mais do que os documentos, torna-se necessário estar preparado para a interpretação teórica. Mas especialmente quem estuda comunicação consegue resgatar uma base histórica e olhar pra essa reportagem e falar que algumas informações aqui são incompatíveis com as informações que eu tenho e de outras fontes que não são o jornal. O jornal também não é a única fonte histórica, a única base da história que a gente tem. Coloca assim um confronto com outros tipos de informação histórica que você tem, ou seja, de livros, de depoimentos brutos que você tem que as vezes não se transformaram em reportagem, uma gravação bruta que não foi editada, nem nada, a concepção de pessoas que eram vivas naquela época, que vai contar aquela história, há outras formas né, claro que nem sempre o jornalista tem uma ideia de que isso aqui pode virar história, mas muitos desses, a partir do conhecimento que eu tenho daqui e que eu tenho lá do jornal, eles fazem o máximo pra não serem atropelados pela rotina, há muito idealismo ali, o jornalista pra ser idealista assim ele está se matando um pouco, porque
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Paradoxo do cotidiano II
você não pode se deixar atropelar por uma rotina todo dia e ficar no piloto automático. (Entrevista, Igor MIRANDA, Out. 2015)
Igor Miranda optou em cursar Jornalismo ao ser instigado pela prática bruta a partir da experiência vivida com o blog com os amigos. O Direito, que o atraía desde a adolescência pela parte teórica, aos poucos foi sendo levado ao confronto com a prática jornalística. A mudança de caminho o levou a criar, então ,novas perspectivas: faria o curso de jornalismo na UFU com a proposta de ir para a rua, ter essas novas relações que a prática possibilita na profissão. Mas a universidade o fez repensar sua perspectiva: a identidade de ser jornalista não está na prática, mas na compreensão teórica sobre o tema e os problemas que o levam para a rua. E assim, o reducionismo da prática passou a ser elemento de crítica em sua concepção do que é ser jornalista. Mas é no momento em que reconhece a importância do pensamento teórico que o entrevistado é levado a confrontar com outra indagação contraditória: há tempo suficiente para se pensar na produção jornalística? Acentua-se assim o esmagamento da rotina que impossibilita muitos a terem consciência do que se produz como matéria. Esse estado de conflito e tensão do Jornalismo tem de ser entendido pela determinação, e não pelo determinismo econômico. Isso remete a considerar que a luta se estabelece na redação. Há os esmagados pela rotina; há os que constroem sentido no cotidiano da profissão. E esses que lutam sabem que perdem hoje, ganham amanhã, e assim o resultado se vai se refletindo na narrativa da história de cada edição. Que história está sendo narrada pelo jornalismo: pelo relato de Igor Miranda, longe de tratar aqui como maniqueísmo, há os esmagados pela rotina e os que produzem sentido no cotidiano. Tanto um quanto outro estão sentindo o peso dessa luta de ser sujeito histórico. O arquivo do jornal não revela esta dimensão de conflito. Para que se estabeleça valor histórico do Jornalismo é necessário reconsiderar 181
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as outras fontes de verdade para que se possa reconhecer o fundamento histórico. O jornalista pode não ter consciência do que produz como sentido histórico. Mas a decepção, como as que Igor Miranda teve em seu percurso, provam que viver é sempre produzir sentido sobre a realidade. Mesmo que para isso se tenha de refazer o próprio percurso, saltando do valor negativo para o positivo.
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Capítulo 8
Palmira Ribeiro da Silva
On Line
Os dilemas da emoção na arte de interpretar a notícia
A
definição para se inscrever em Jornalismo veio com um pensamento
incomum e, ao mesmo tempo, com um sentido direcionado para Palmira Ribeiro da Silva. Os motivos revividos pela memória por ela durante
a entrevista deixam identificados que não se tratam de fatores do passado. Pelo contrário: a paixão pelo Teatro e pelo Direito prosseguem como elementos importantes em sua produção de sentido como jornalista. E mais precisamente é o ponto central que mergulha sua análise crítica sobre a nova geração de jornalistas que acompanha no exercício de estágio. A questão aqui se torna inevitável: qual a relação que há entre a decisão de reunir no jornalismo as paixões do Teatro e do Direito? Palmira deixa claro que o caminho não foi definido assim, de forma tranquila, com ausência de dúvidas. E essa dúvida só teve redirecionamento no momento em que foi realizar a inscrição para a graduação. Ao fim das contas, nem o Teatro, nem o Direito. Ou melhor: ao optar por Jornalismo, Palmira Ribeiro iria iniciar essa complexa relação de trazer para o Jornalismo um movimento singular em que sua potencialidade como sujeito já indicava como missão: ajudar as pessoas. Ela se recorda que no terceiro período do colegial chegou a participar de uma feira de profissões e participou, neste evento, do exercício de um tribunal. Quando tudo indicava que a decisão estava tomada para seguir o curso de Direito, e que a
Gerson de Sousa
paixão pelo Teatro iria ter de encontrar outros movimentos em sua constituição de identidade, Palmira Ribeiro transfigurou a dúvida em uma proposta profissional. É desta forma que a decisão veio no indicativo de juntar essas duas áreas. E assim a narrativa de Palmira Ribeiro se sucedeu ao ser interrogada: o Jornalismo foi sua primeira opção de curso? Você tinha dúvidas sobre esse curso, tentou algum outro? Tinha, tinha. Eu já fiz teatro, a minha vida inteira. Eu fiz teatro e eu gostava muito de interpretar. Mas ao mesmo tempo tinha uma paixão muito grande por Direito. Então eu enxergava que com o Direito eu poderia ajudar as pessoas. Com o tempo foi passando eu peguei e falei assim: “bom, como que eu posso fazer Direito de uma forma mais rápida?” como posso ajudar uma pessoa de uma forma mais rápida? Aí eu optei pelo Jornalismo. (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
A proposta, então, era reunir esse gosto de interpretar e ao mesmo tempo arrumar um meio de fazer o curso de Direito de forma mais rápida. Como toda decisão exige que o sujeito encontre o sentido para que prossiga o caminho, Palmira Ribeiro traçou um entendimento, mas direcionou para uma área específica: Tanto que porquê que eu comentei do Teatro? Porque eu entrei no Jornalis mo pensando em TV, pela interpretação, eu uniria dois cursos num só: a in terpretação com a parte da justiça, do Direito. A minha vontade era ajudar as pessoas, só que o Direito demora mais, em alguns casos, e ajudar no sentido assim: o buraco da vizinha, sabe? Ajudar a resolver muitos assuntos as sim. Então acabou que no terceiro colegial cheguei a participar daquelas feiras de profissões, participei de um tribunal, participei de algumas coisas mas no dia que eu fui me inscrever pra Direito eu marquei Jornalismo, me veio uma coisa assim, eu falei assim “eu vou juntar os dois e vou fazer Jor nalismo”, foi a melhor coisa que eu fiz, do começo ao fim, até hoje. (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
É desta forma que Palmira Ribeiro fez seu primeiro exercício de interdisciplinaridade reunindo as três áreas, entendendo as particularidades de cada uma e ao
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mesmo tempo encontrando o ponto comum. Havia a necessidade de entender esse ponto de ligação para inclusive estruturar a lógica do curso que decidira realizar. Se por um lado, parece claro como a entrevistada está traçando a relação de Jornalismo e Direito, torna-se necessário indagar qual proximidade ela articula entre o Jor nalismo e o Teatro. Sim, tanto o Direito, quanto o Teatro, quanto o Jornalismo, pra mim têm essas três ligações. Um repórter de TV por exemplo: ele tem que interpretar a notícia, se ele não interpretar ele não vai levar emoção pras pessoas. Se você vê uma matéria de comportamento, tem gente que chora. Tem gente que chora assistindo uma reportagem e se de repente ele não souber interpretar ele não vai conseguir atingir as pessoas. Então assim, tanto que eu pensava na TV por isso, que era uma forma de eu poder ao mesmo tempo decorar um texto, interpretar e levar esse texto pras pessoas, entendeu? Então pra mim é muito próximo. (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
Palmira Ribeiro realizou o curso de Jornalismo no Centro Universitário do Triângulo, UNITRI, no período de 1998 até 2001. Três anos depois, 2004, realizou o curso de Especialização em Comunicação e Marketing pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Esse curso de especialização iria tomar outra interpretação sobre os caminhos da profissão e dos fatores que exigem o trabalho profissional na realidade. As respostas de Palmira Ribeiro edificam o sentido da memória que percorre sua realidade vivida e estabelece, no presente, quais fatores devem ser postos em discussão com mais veemência. Se o jornalista não souber interpretar, ele não levará emoção para as pessoas. O sentido desta frase precisa ser desvelado para que não prossiga com o olhar próximo do debate, seja para manipulação da notícia, seja para o sensacionalismo. Palmira Ribeiro estabelece aqui este ato de interpretar como técnica ao se associar ao teatro, mais precisamente a atuação do ator. Claro está que a interpretação está vinculada ao contexto, seja do texto do qual o ator está levado a entender da peça, seja da notícia da qual o jornalista estará lendo. O ponto nodal é recair então em outro dilema: é 187
Gerson de Sousa
possível interpretar a notícia sem que você recaia na antítese de somente sensibilizála? A resposta a essa interrogação parece estar na proposta de Palmira Ribeiro, na justificativa de se inscrever em Jornalismo em vez do Direito: ajudar as pessoas. O exemplo de ajudar as pessoas está amparado em questões do cotidiano. O buraco da casa da vizinha e outros assuntos desta mesma proporção de serem denunciados e amparados pelo senso de justiça. E assim é possível entender que o sentido de interpretar a notícia, apresentado pela entrevistada, está diretamente vinculado ao conceito de levar emoção. Trata-se de impulsionar o movimento de identificação do outro, em vez da mudança de comportamento. No momento em que lança o desafio para si mesma, Palmira Ribeiro está adentrando na distinção entre o terreno teórico da razão e o da emoção em contraponto ao procedimento metodológico de interpretar a notícia do presente. E esse embate seguirá para os outros elementos do qual a entrevistada destacará como fator de análise em sua memória coletiva. Mas há no entanto outro elemento que insurge como possível para a análise. Ao ser questionada sobre as disciplinas da qual se recorda e que mais se identificou Palmira Ribeiro cita, entre elas, a Psicologia. O ponto importante aqui é compreender em qual sentido está direcionado o conhecimento de Psicologia: Psicologia, por incrível que pareça, porque a psicologia fala do próprio corpo falar, como que você tem que se comportar nas reportagens, até como você fala com o entrevistado. Então acho que é muito importante às vezes a persuasão no que a gente tem que falar e depois realmente a prática, acho que é muito importante a gente colocar a mão na massa né? (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
Novamente o entendimento da Psicologia está definido ora em procedimento metodológico, ora está percorrendo um sentido teórico. Pois se num primeiro momento se avança em uma relação de ato condicional de comportamento profissional, de como se expressar pelo corpo, como você tem de se comportar e até como você fala com o entrevistado. Mas no momento em que o sentido da persuasão se efetiva, te188
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mos de ressignificar se essa lógica do ato de falar está delimitada ao comportamento ou se estende como persuasão, cujo sentido comunicativo está em alterar o comportamento do outro, sem que isso resulte na proposta de consciência sobre o cotidiano. Há outras duas matérias que percorrem a narrativa da memória de Palmira Ribeiro. Elas se apresentam com sentido diferenciado. E novamente estamos tendo de compreender se a análise da qual parte a entrevistada se configura em procedimento e/ou teórica, agora com ênfase para a formação do jornalista. E elas também estão amparadas na justificativas se foram suficientes ou insuficientes para que ela tomasse consciência de seu trabalho profissional. É importante considerar aqui que a leitura de Palmira Ribeiro está diretamente constituída pela orientação da tensão e conflito da experiência vivida do presente. A primeira disciplina da qual ela destaca é o Português. Palmira Ribeiro considera que essa disciplina foi suficiente para o seu aprendizado e ao mesmo tempo fortaleceu a sua formação acadêmica. Português acredito que foram suficientes. As aulas de Português foram suficientes porque acaba que é muita regrinha que é revisão do que você vê no colegial, entendeu? Que eu acho que no dia a dia não muda muita coisa exceto a reforma ortográfica, né? Então o português foi suficiente, agora a questão da matemática, a questão da economia, umas outras questões que são mais áreas especializadas a gente não aprofunda tanto quanto deveria aprofundar. Eu acredito assim, porque foi muito superficial na época quando a gente teve aula de economia, que dá um geral, eu me senti no colegial. Tipo, dá um geral sobre Marx sobre não sei o quê. E na prática, como é que é jornalismo econômico? Como que a gente vai traduzir aquela linguagem teórica pras pessoas? Isso a faculdade não me ensinou, e isso eu sinto deficitário, entendeu? (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
Ao que indica os comentários acima, o ensino acadêmico de Português e de Economia seguiram a mesma tendência da qual a entrevistada denuncia: uma revisão do que teve no Ensino Médio. Porém, por que a economia teve um peso diferenciado da de Português? A referência da resposta, longe de ser sobre a dimensão acadêmica, 189
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está mais articulada para o debate sobre a sua atuação no mercado de trabalho. Ou melhor: do que mais ela sentiu falta no mercado de trabalho na sua formação. O sentimento de angústia, de que a universidade deixa de assumir seu papel crítico para se apresentar como colegial, teve início na graduação e se estendeu para outro horizonte, na redação. Mas o ponto nodal aqui da crítica da entrevistada está no que ela denominará como falta de equilíbrio da teoria e da prática entre a universidade e o mercado de trabalho, e depois entre a universidade pública e privada. O sentimento deficitário do ensino que Palmira Ribeiro confessa ter sentido tem de ser entendido pela sua proposta de seguir o Jornalismo. A sua relação com o Teatro a levou a optar pelo Jornalismo com este sentido de interpretar. Mas se o re pórter não tem condições de elaborar uma matéria que consiga traduzir a linguagem teórica do econômico para as pessoas entenderem, está diante de um problema. Sem a compreensão do tema em embate, não há como fazer matéria. E sem matéria, não há a interpretação que levará emoção ao outro. É desta forma que a entrevistada mergulha no problema de natureza teórica da formação profissional fazendo a indagação: na prática, como é o Jornalismo Econômico? Nem o fato de Palmira Ribeiro ter resolvido ou minimizado esse dilema referente a economia a retirou dessa esfera de luta. Isso porque a identificação de que a disciplina de Economia se fez como revisão de colegial a levou a fazer um curso de Economia na UFU depois de encerrada a graduação. E assim, a pergunta de ordem subjetiva deixou o estado do “segundo” colegial para se efetivar na dimensão profunda do que reivindica que deveria ter tido na graduação. E até hoje, depois que eu formei eu fiz um curso de economia pela UFU. Eu e vários jornalistas da cidade, foi aberto pros jornalistas, faz muito tempo, e foi bom, foi bom pra entender na época assim, SELIC, foi bom pra entender o porquê do sobe e desce de inflação e como traduzir isso. Porque os professores não entendiam, os professores eram de economia da UFU, eles reclamavam daquilo que eles não entendiam que a gente estava passando, então foi
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um curso muito legal, porque eles tentavam explicar pra gente e a gente tentava entender de fato. (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
Há uma mudança aqui na relação de ensino e aprendizagem que demarca o entendimento teórico associado ao prático. Palmira Ribeiro deixa claro que não se trata da teoria pela teoria, nem da prática assim reduzida. O sentido positivo era a relação dialógica construída por jornalistas e professores dentro daquilo que se es tabeleceu como proposta: é preciso entender economia, essa linguagem acadêmica, para que se possa atuar como jornalista e informar ao público. Pois, se nem o jornalista consegue traduzir determinadas questões, como a Taxa SELIC, como poderá produzir sentido em uma matéria de forma crítica, sem que se recaia meramente em reprodução mecânica de dados? Se por uma esfera, o curso de especialização minimizou a dúvida em Economia, faltava então estabelecer valor substantivo para a importância do Direito. E o direcionamento que ela estabelece para o Jornalismo se tornou um problema a ser resolvido. Primeiro, pela ausência da linguagem jurídica no curso de Jornalismo. Segundo, porque mesmo depois de formada, a relação da jornalista com os estagiários identifica essa mesma deficiência. E o questionamento se fortalece: por que será que o ensino de Jornalismo não pesa sobre essa Linguagem Jurídica tão empregada pelo jornalista no seu cotidiano de reportagem? Sem que isso se fortaleça, a redação sobrevive em meio a este estado de tensão: Então, eu acho que falta linguagem jurídica, eu não tive. Uma das maiores dificuldades que eu tenho no dia a dia com os estagiários, com os repórteres, é linguagem jurídica, a questão do Direito mesmo, sabe? Mostra o rosto da pessoa ou não mostra? Quando é menor, quando não é menor? O termo menor? Porque o termo menor você só pode usar se tiver passagem, se não tiver passagem é adolescente, se foi a primeira vez que foi apreendido, entendeu? Então, isso eu não tive na faculdade. Acho que foi muito importante, o que mais marcou foi o português, que realmente foi uma revisão, a economia que foi superficial mas que eu acho importante e a ausência, por exemplo, de ques-
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Gerson de Sousa tões jurídicas, assim, dessa falta de linguagem especializada. (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
É a falta de ensino e aprofundamento sobre a Linguagem Especializada que a jornalista Palmira Ribeiro reclama como insuficiente. É preciso compreender o que se traduz como Linguem Especializada: o complemento da resposta indica ser algo que não pode ser localizado no cotidiano da vida. Sem essa proximidade, deixa de ser uma linguagem comum para se tornar algo a ser aprendido da qual é preciso encontrar referência ao se tratar do assunto. A questão levantada acima se reafirma: se o conteúdo se torna estranho como se fosse código indecifrável para o jornalista, a interpretação se torna uma razão utópica na proposta de Palmira Ribeiro Porque o esporte, por exemplo, eu costumo brincar com a minha equipe, que o esporte faz parte da nossa vida, a gente sabe a técnica e você faz, porque ai o esporte vai depender do Teatro, da sua representação e de saber contar história, pra você tornar aquilo interessante, entendeu? Mas tem umas áreas que a gente tem que aprender, saúde, área do agronegócio, assim, tem muita coisa que a gente não sabe. (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
A articulação do Jornalismo com o Teatro extrapola o sentido subjetivo de Palmira Ribeiro e o da orientação aos estagiários, na redação, para compreender a Linguagem Jurídica. É provável que já seria de se esperar que a concepção deste ato interpretativo que se efetiva do Jornalismo iria, aos poucos, ter de responder a outras instâncias de método para que se alcance coerência teórica. O primeiro passo para esse extrapolar veio do ressignificar do ato de interpretar. Em vez de ser o ato do jornalista no comentário ou na narrativa da notícia, é preciso que o jornalista tenha ciência de que seu entrevistado ou aquele da qual está como sujeito da matéria também está interpretando.
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A resposta veio como tônica a uma pergunta realizada sobre essa ausência da qual a entrevistada parte para criticar a universidade. Você considera que essa deficiência é em decorrência da estrutura curricular da universidade ou é da metodologia do professor? Ou depende se os alunos estão preparados naquele momento pra isso? A questão versa sobre os três itens básicos para entender o posicionamento de Palmira Ribeiro. E de certa forma ela desconsidera esses três elementos: Então, quem define a grade geralmente é a universidade, né? Então eu não sei se o professor pode opinar muito, mas a meu ver é uma deficiência muito grande, é uma falta de noção das universidades de saber o que de fato é preciso no mercado, o que de fato o jornalista vai sentir falta, é isso que eu vejo, uma coisa que acontece aqui e em várias empresas que eu passei, vários re193
Gerson de Sousa pórteres que já vi passar tanto na TV quanto no site. (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
Da ausência do que sentiu em sua formação a entrevistada aponta para um diagnóstico do qual trata-se da responsabilidade da universidade. E aqui se torna imprescindível a pergunta: quando se denuncia a superficialidade do que foi o ensino de determinada disciplina, não se está diante de um problema teórico de ensino – aprendizagem? A resposta acima vem muito mais empreendida na crítica à universidade direcionando para a estrutura curricular. O fato é que Palmira ratifica mais uma vez que se a universidade tem a proposta de formar o aluno, e entre elas está o item mercado de trabalho, falta noção para a instituição em saber o que realmente é preciso para o jornalista atuar no mercado. Essa deficiência pode ser sentida na redação sob dois aspectos: É, que, por exemplo, tem aquele cara que entende de política. Quando ele sai, todo mundo fica desesperado. Quais são as artimanhas? A gente estava falando de Teatro. Política é um teatro. Se o jornalista não souber que aquele cara está representando, ele vai cair, se não tiver a malícia do que ele tá falando, não entender de política, vai cair. Então pra mim, há uma deficiência das universidades particulares e federais de, de fato, não entender e não colocar na grade curricular aquilo que de fato é o dia a dia. Por mais que seja teoria, mas a gente precisa entender pra depois a gente colocar em prática. (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
A Política é um teatro. Mas que jornalista será possível destinar para a cobertura se não tem o aprendizado sobre política ou sequer consegue entender a arte de interpretar do político? O que isso significa na prática? Temos então de retornar para o item da persuasão para conseguirmos identificar o sentido da frase. O temor apa rente de Palmira Ribeiro é que sem malícia, nesta cobertura política, o repórter possa ser levado pela interpretação do político, levado a se emocionar pelo seu posicionamento de fala e com isso reproduzir na matéria.
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É como se fosse um círculo: o político interpreta e provoca emoção no repórter que está na cobertura. O repórter interpreta a notícia para levar a emoção ao leitor; e o leitor emocionado sobre aquele fato circula e consome a informação na produção de sentido. O resultado deste círculo é perigoso quando Palmira Ribeiro indaga e tem como receio de que o jornalista pode cair nesta cilada interpretativa. Em vez de escrever com base na análise do fato, se escreverá por meio da ideologia do outro. E ao cair nesta armadilha, perde-se a noção tão cara para a jornalista de ajudar as pessoas, o bem comum. Esse temor da perda da referência do público tem de ser entendido para além do simbólico. Isso porque a narrativa da memória de Palmira Ribeiro identifica, no percurso de graduação, outro problema considerado grave e que adiciona elementos de insuficiência que denuncia na universidade. Ao modificar o teor da pergunta para que responda agora sobre a memória de formação prática, a questão se efetiva de forma simples: Eu queria que você falasse um pouco sobre a prática. Se a teoria foi insuficiente, você acha que a prática que você teve na graduação, ela foi suficiente para você realizar o trabalho no mercado? A resposta é negativa. Nem a teoria, nem a prática foram suficientes. Mas quais foram os elementos que a entrevistada enumera como insuficientes. O primeiro deles refere-se ao número pequeno de laboratório para os exercícios das aulas práticas. No entanto, não se trata da quantidade de laboratório ou dos equipamentos. O tom mais grave apontado por Palmira Ribeiro nas aulas práticas era o fato de o aluno não extrapolar o universo da academia para sedimentar o seu aprendizado na disciplina prática. Ela justifica que por mais que fosse uma universidade particular, é necessário considerar que, apesar de ser a 15ª turma, o jornalismo ainda era muito novo: Então a gente tinha um laboratório de fotografia e tínhamos aulas práticas de TV, então tinha deficiência, fora usar o equipamento da faculdade e fazer ali um... a gente tinha laboratório sim de jornal, de jornal impresso, fora fazer o jornal impresso, fora fazer ali mesmo dentro da faculdade as entrevistas e 195
Gerson de Sousa editar e aprender a revelar foto, a gente não extrapolava o universo, a gente não ia pra comunidade in loco assim, não era uma prática, uma rotina, entendeu? A gente não ia pra essa realidade, sabe, a gente ficava mais dentro da faculdade, “ah, vamos fazer um trabalho de reportagem”, “vamos aprender agora, vamos pra prática”, a gente entrevistava os alunos dentro da faculdade, entendeu? Ai você vai pensar “ah, estudante não pode sair” ok, não pode sair mas, às vezes, um dia o professor dar um trabalho, jornalismo comunitário, igual eu te falei que a gente teve, professor pegar o aluno e vai com eles in loco, vamos fazer, vamos ver aqui como que você agem na prática fazendo uma reportagem, como que é? E isso a gente não teve, eu tive, eu posso dizer que a maior parte do que eu sei eu aprendi na prática, na vida fora da faculdade. (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
A perda de referência da comunidade deixa de ser um aprendizado teórico e prático para passar a ser compreendido somente na vida fora da faculdade. A qualificadora dessa perda do bem comum tem de ser entendida no fundamento importante considerado pela entrevistada sobre o Jornalismo: se o discente não vai para a comunidade, não se tem referência sobre quem é este sujeito. E com a perda deste sujeito, o ato de interpretar para levar emoção às pessoas, passa ser somente delimitado por uma representação do público. E a agonia da entrevistada precisa ser estendida aqui da própria escolha de fazer Jornalismo: ajudar de forma mais rápida às pessoas. Que pessoas se pode ajudar quando as únicas experiências de entrevistados, de dilemas do cotidiano, são retirados do sentido do ato de interpretação de alunos? A insuficiência na teoria da Linguagem Específica se somou à insuficiência teórica da disciplina prática e a perda de referência da comunidade. Adicionado a esses elementos, Palmira Ribeiro iria se defrontar com outra questão polêmica que a conduziria a produção de sentido para tornar coerente sua proposta de jornalismo. E a gravidade agora se recaiu no único meio que havia definido para se sustentar na área: a TV. O que levou a entrevistada a partir da TV como meio, declarar amor pela TV, mas que por uma frustração, esse meio de comunicação não a tocou mais no coração. 196
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Para se chegar nessa crise é preciso compreender como foram realizadas as disciplinas práticas de telejornalismo na Unitri. Naquela época, ah!, tivemos teoria e a aula prática foram dois períodos Eu lembro que um dos períodos foi mais estética e linguagem, a estética tam bém da linguagem e o outro período foi mesmo aprender a fazer reporta gem e edição. Eu acredito que faltou profundidade, sabe, assim, falta profundidade, eu acho que é tudo muito rápido, a gente teve um ano sabe, um período estética outro período TV mesmo, Jornalismo, e é isso que eu estou falando, acho que falta mais prática, a malícia da coisa, aprender... a gente fica muito: faz assim e mira assim na câmera, e não é só isso, sabe? (Entre vista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
É sintomático entender a frase de Palmira Ribeiro sobre essa falta de prática, que se traduz na falta de malícia para entender os meandros que percorrem na produção jornalística. E diante deste quadro tornou-se inevitável recorrer a outra per gunta, não mais ao se tratar da causa, mas da consequência em sua concepção de Jornalismo. Para quem definiu a TV como parâmetro, não se renderia a deixar de tê-la como concepção. Porém, o mercado de trabalho sinalizou outro quadro no qual a entrevistada tomou ação drástica. Poderíamos considerar que essa revelação, na verdade, pode ser interpretada como uma proposta teatral fracassada? A resposta da jornalista mergulhou nessa profundidade em que somente a experiência vivida se vê nua diante das vestes que não possibilitam mais cobrir o corpo. Tanto que eu nunca fiz TV. Na minha opinião, eu estou dentro, eu amo a TV a qual eu trabalho, gosto de TV, mas enquanto pessoa, sonho, eu entrei querendo TV e dentro da faculdade existe um outro universo também de TV que, é de qualquer lugar que existe, uma vaidade de muitas pessoas, muitos profissionais, e uma vaidade para com elas, do mundo lá fora para com os profissionais, entendeu? E a partir do momento que eu tive contato, na minha sala eu tinha muita gente de TV, a partir do momento que eu tive contato com quem trabalhava com TV e descobri como funcionava o universo de TV eu falei “eu não quero isso pra mim”, entendeu? (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
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A vaidade dos profissionais e a vaidade das pessoas lá fora com os profissio nais. Trata-se de uma decisão subjetiva, de no meio do processo de reafirmação sobre o sentido do Jornalismo, ainda na graduação, ver um elemento base se perder a partir da análise crítica do mundo da vida. A graduanda que optou pelo Jornalismo para interpretar na TV, agora está com esses dois elementos em questionamento. E a consequência deste ato analítico está exposta em sua carreira profissional: nunca fez TV, mesmo que nos últimos 12 anos esteja dentro da TV trabalhando no site. Não se trata de um movimento fácil romper com seu próprio sonho em meio ao processo de formação acadêmica. A reatualização da produção de sentido a levou a seguinte afirmativa: aprender a teatralizar e contar histórias no texto. Meu desafio maior, eu trabalhei com Rádio, apesar do sotaque (risos), fui repórter de Rádio, fui de Assessoria de Imprensa, trabalhei com Jornal Impresso, no jornal Correio (de Uberlândia) e estou aqui há 12 anos. Eu já cheguei até a fazer umas participações no MGTV apresentando enquete e chamando as pessoas pra votar pro site, votarem em enquetes no site, mas não me... sabe, assim, não tocou mais meu coração, não era, eu descobri que realmente não era o que eu queria. (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
A perda dessas referências poderiam nos conduzir a seguinte interpretação: se nem a universidade, nem o mercado traz elementos afirmativos no sentido defendido por Palmira Ribeiro, poderíamos considerar que se está diante de uma crise subjetiva? Para que ela seguisse na profissão, torna-se necessário ir adicionando outros elementos que levem a um outro significado. E é assim que a entrevistada nos revela de onde encontrou elementos de reencantamento com o Jornalismo: no curso de especialização. Na pergunta sobre o porquê ter buscado realizar curso de especialização, a jornalista foi sintomática: a necessidade de entender os meandros que percorrem a produção jornalística. Mais do que isso: a importância de considerar a responsabilidade social do jornalista.
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Sim, porque uma das coisas que acontece com a comunicação é que ela é /jornalismo, /publicidade, relações públicas, e essa setorização não dá ao jornalista a real amplitude daquilo que ele atinge nas pessoas. Exemplo: dependendo do título que eu colocar na minha reportagem, vai causar um estrago muito grande, como jornalista tem como eu ter essa percepção, mas quando você faz uma pós, por exemplo, em comunicação e marketing, você entende que o marketing daquilo que você tá divulgando pode ter um estrago muito maior. Então eu queria ter essa visão ampla da comunicação, foi fazendo comunicação e marketing que eu entendi o porquê que aquela matéria X está do lado esquerdo e não do lado direito, a importância daquela foto, isso eu não aprendi na faculdade, a importância daquela foto, daquele foco, eu aprendi fazendo comunicação e marketing. (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
Palmira Ribeiro enfim, a partir da especialização, tem condições de interpretar o texto e saber como contar essa narrativa. Esse é o teor do reencantamento com a profissão do jornalismo. Para substituir a vaidade, fator de crítica e de abandono da TV, Palmira Ribeiro recoloca o marketing pessoal. Você é aquilo que você vende. E na verdade o jornalista vende o seu trabalho: a importância do marketing pessoal enquanto jornalista, tipo, você é aquilo que você vende? Você está vendendo uma imagem e você está vendendo o seu trabalho. Então o marketing acabou complementando essas coisas, e tinha marketing digital também, que abordava bastante isso que eu estou falando, título, texto, revista. Quando você está passando, diagramação, na faculdade a gente vê muito rápido a diagramação. Eu cheguei a diagramar vários jornais, e ai você chega assim, cara, se fosse hoje eu não tinha feito isso que eu fiz, entendeu? Quando você faz a comunicação e marketing você fica mais encantado ainda e entende muito mais do tanto e do porquê que aquela matéria tem que ficar do lado direito e não no esquerdo, sabe, é isso que me encantou e eu gostei bastante de ter feito. (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
A experiência no curso de especialização responde o caminho de superação de Palmira Ribeiro diante da tensão e conflito vivenciados na experiência acadêmica e no mercado de trabalho. E assim, com essa racionalidade sobre sua própria concepção, a jornalista define, em meio ao contexto já exposto: o que é ser jornalista?
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Gerson de Sousa O exercício de informar as pessoas, despido mesmo de vaidades e do dito quarto poder, dizem por aí? A serviço da sociedade. É o serviço de informar e eu não gostaria de perder nunca isso, de informar a sociedade aquilo que ela tem que saber, poder contribuir de alguma forma pra quilo que vai mudar a vida delas, ou que vai orientá-las de alguma forma. (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
Despido de vaidades significa que o papel do jornalista e do público tem de ser diferente ao que se defrontou na experiência vivida com TV. E despir do dito quarto poder implica em reconhecer que a interpretação do fato tornado notícia não pode ser superior ao interesse da sociedade. Informar não está articulado aqui a persuadir o público, mas em contribuir para que essas pessoas tenham material suficiente para que realizem a produção de sentido do Jornalismo. E diante desta afirmativa como entender que este Jornalismo em seu papel na história? Será que o trabalho jornalístico dentro deste contexto narrado por Palmira Ribeiro pode ser considerado como História? Palmira Ribeiro responde que o Jornalismo tem valor histórico. No entanto é necessário pensar na raiz jornalística, de quem faz Jornalismo, quem estuda jornalismo, quem são os jornalistas, quem ajudou a construir o Jornalismo. Essa análise permite entender os sentidos e ao mesmo tempo o significado do que é o Jornalismo. Embora a pergunta tenha sido sobre a produção, a entrevistada recorre a estabelecer a historicidade do Jornalismo como primeiro elemento importante. Pois, mais do que considerar se produz história, ela recoloca a história do Jornalismo. A preocupação também se direciona para que se produza valorização histórica daqueles que fazem o Jornalismo. Porque se não ele vai se perder, entendeu? Ele vai se perder, e é isso que eu não quero. Eu amo bastante o que eu faço, eu amo muito e eu acho muito importante quando vocês me chamaram porquê eu amo falar do que eu faço. E o meu sonho é que o diploma fosse exigido, defendido, sabe? E eu acho que tem que ter ali uma história, tem que ser divulgada e tem que falar, sabe? Por
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exemplo Seu Ivan Santos, é uma lenda da cidade viva, sabe, e será que as pessoas sabem quem é o seu Ivan Santos? O trabalho dele? Eu acho muito importante o trabalho de manter viva a história do jornalismo. (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
O segundo fator de destaque para responder sobre o Jornalismo na história é sobre os fatos. A outra parte é exatamente a parte boa e tal assim, é a cobertura daquilo que realmente faz história? Impeachment, manifestações, onde é que as pessoas vão encontrar isso se não tiver o Jornalismo? Se não tiver o jornal impresso, se não tiver arquivos de TV, documentários, se não tiver um livro, se não.. sabe? Pra mim, assim, tem que existir porque se isso acabar, a gente vai viver de facebook, e se viver de facebook, uma hora você... agora o facebook lembra a gente do que a gente fez há quatro anos atrás, mas antes não lembrava, e se de repente não lembrar? Como é que a gente vai viver? (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
A resposta revela que o sentido do jornalista está no ato de lembrar a sociedade sobre os acontecimentos ocorridos na sociedade. O elemento a ser problematizado aqui está nos fatos que passam a ser considerados história. Pois, a recusa em considerar o valor do sujeito jornalista nesta produção de sentido remete a ficar mercê da leitura interpretativa de outrem, como do Facebook. E o que significa do ponto de vista teórico viver da memória do facebook? Seria no mínimo considerar a inversão metodológica de sujeito e objeto. Diante deste quadro de objetificação da história, em que a sociedade é desprovida do ato de lembrar, surge o paradoxo: e se de re pente, o suposto sujeito, facebook, não lembrar? Como é que a gente vai viver? Antes de prosseguirmos a análise é importante aprofundar essa interpretação existencial lançada por Palmira Ribeiro: como é que a gente vai viver? Trata-se de entender que sem memória, não há vida. Essa leitura poderia nos conduzir então para mergulhar no debate sobre o valor do passado enquanto movimento na produção de sentido. Esse passado, tão desfigurado pelo olhar progressista, em que pro-
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clama a cada novo presente a desfuncionalidade para o social, agora é remetido ao ponto de égide do existir. Sem o passado, sem a história por ele narrada e entendida pelos sujeitos, não há vida. Mas poderia aqui também questionar se a frase disposta acima não estaria reduzida a plataforma, como se sucede impresso, arquivos de TV, documentários, livro. Esse sentido interpretativo poderia até ser levado adiante, se o contexto em que percorre a interpretação de Palmira Ribeiro não estivesse sobre quem produz. E neste quadro de enfrentamento se dispara outra pergunta que exige essa confrontação de sentidos: quem é o sujeito da narrativa de Palmira Ribeiro? A questão se desvela por esse contexto: Você acha que os jornalistas, no momento que estão produzindo a matéria, eles têm consciência de que estão fazendo história? A resposta vem de forma surpreendente com uma análise sobre a nova geração que se apresenta como o futuro do jornalismo. Não sei se todo mundo tem não. Não sei, sinceramente. Eu acredito que os novos estudantes, não. A experiência que a gente tem tido, a minha equipe ela é muito nova, a maioria da equipe tem menos de 30 anos e a preocupação do jovem jornalista é com o dia de hoje. Não é nem com o futuro nem com o passado, eu estou falando baseada na minha equipe. Então assim, acho que a preocupação deles é bem essa dinâmica do que anda acontecendo, então tipo assim: aconteceu um acidente, tá no Facebook? Tá no G1? Então sabe, é o imediatismo da notícia, não sei se eles tem muito a consciência do “estou fazendo uma história” “vou cobrir aquele fato político e vou fazer isso”, são poucos os mais novos que tem essa consciência. (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
Esses poucos dos mais novos que têm consciência de que está fazendo história é narrado pela entrevistada dentro deste quadro de exceção. É desta particularidade que renasce a felicidade da entrevistada sobre o Jornalismo: ela confidencia que se sente feliz ao ver a empolgação de alguns dessa nova geração. Todavia, o quadro geral apresentado pela jornalista sobre essa nova geração está na imediaticidade do
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presente, que abandona deliberadamente o passado e o futuro. Ao considerar esse diagnóstico, é preciso indagar se essa crise de conhecimento que assola o Jornalismo pelas novas gerações é em decorrência da estrutura da universidade ou também do mercado de trabalho que não consegue ter uma formação que os leve a se conscientizar que o trabalho Jornalismo é histórico? O problema que se apresenta como grave é levado ás suas últimas consequências na resposta de Palmira Ribeiro. O problema deste vazio histórico denunciado pelo imediatismo dos jovens é uma questão de ordem subjetiva. Eu acho que não é nem um nem outro. Eu acho que é pessoal, é o mundo, acho que é o mundo mesmo, porque a faculdade continua fazendo o trabalho dela, o mercado tá tentando se adaptar a esse imediatismo. Se cada dia eu não der algo novo pra minha equipe eles vão enjoar e vai dar tchau, entendeu? Só que o jornalismo já é dinâmico, todo dia acontece alguma coisa, mas todos os dias acontece acidente, todos os dias tem homicídio, enche o saco, entendeu? Então assim, ai enche o saco da pessoa, então eu acredito que é muito mesmo da geração, não é nem do mercado necessariamente, nem da faculdade, acho que é mais de pessoa mesmo. (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
O problema aqui se apresenta. O Jornalismo é dinâmico, mas os fatos que levam a produção de matérias no cotidiano tem uma tendência de se tornar rotina para essas novas gerações. E diante da rotina, de cobrir sempre acidente, todos os dias homicídios, coloca o Jornalismo em um círculo vicioso, de repetição de fatos cuja ausência de sentido é traduzido aqui pelo termo enjoar. E ao enjoar do jornalismo, pode se desfazer dele como sentido da vida. O teor desta resposta é importante dentro deste embate teórico de pensar a cultura como sentido em confronto à estrutura. Palmira Ribeiro é enfática ao exteriorizar o temor: precisa apresentar algo novo todo dia para a equipe para que ela mantenha o entusiasmo de que ela necessita. Caso contrário, corre o risco de perder esses sujeitos. É sintomático e necessário aqui problematizar o que significa esse enjoar, ou literalmente, o encher o saco. Primeiro é que a situação contextual nos remete ao individualismo, em que há a perda das refe203
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rências sobre ser sujeito. Há consequências graves na história do sujeito e do social quando a história do passado e das perspectivas do futuro se esvai no imediatismo. Mas o enjoar aqui está na repetição de fatos, no reconhecimento de que a produção jornalística é definida por uma estrutura em que o sujeito inexiste. Aqui estamos próximo do teor da frase disparada acima por Palmira Ribeiro, e , porque não, considerar o seu desafio dialético existencial. Viver com uma nova geração cujo sentido está no imediatismo e desprezo do passado e do futuro; e traba lhar como jornalista para mostrar que sem passado e consciência do presente para produzir sentido no futuro, não há sentido o viver. Enjoar dos fatos repetidos significa essa perda do sujeito da notícia. Pois não se trata de matérias de homicídios que se divulgam como texto. Mas de sujeitos diferentes, que possuem histórias diferentes, que estão neste momento como vítimas e acusados, e que de alguma forma implica em entender em outra vida. Como fazer com que esses estudantes tomem consciência desse processo no movimento dinâmico da realidade? E de que forma você acha? Como você passou pela estrutura curricular, o que poderia ser alterado na universidade pra ter uma dis cussão sobre essa estrutura mental para chegar às novas gerações? Não se tem uma fórmula pronta para se lidar nesse movimento do cotidiano. Palmira Ribeiro acredita que as novas gerações precisam ser levadas a pensar neste imediatismo. E de quem é esse papel: ela recorre como amparo a universidade. pensar que por mais que as coisas tenham que ser às vezes imediatas, tinha que ter um desenvolvimento pra eles entenderem que nem tudo acontece na hora que eles querem. E que é necessário até mesmo no Jornalismo ter um planejamento, eu acho que é preciso pensar aonde você quer chegar. Porque alguns, por exemplo, entram e é estagiário já quer ser repórter, já quer ser editor e já quer aparecer na TV, e esse imediatismo não deixa... eles pulam etapas, entendeu? Pula etapa de aprendizado e se queima muito fácil. Então eu acho que a universidade talvez tenha que trabalhar a questão do planejamento, a questão do explicar que existem coisas que tem que esperar, sabe? (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015) 204
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A universidade talvez tenha que trabalhar a questão do planejamento. É preciso considerar a grave situação pelo qual o individualismo se prenuncia no quadro da redação. A jornalista anuncia que não se trata de problema da universidade, nem do mercado de trabalho. É pessoal. Mas como combater esse pessoal, subjetivo? E as sim, na tentativa de encontrar espaços para retomar a historicidade no Jornalismo, a atenção e a esperança se fundam com um “talvez” para a universidade. Quem irá explicar, com legitimidade, para essa nova geração que existem coisas que é necessário esperar? Há outro sentido em que a experiência vivida se faz como problema na frase exposta pela entrevistada. O estagiário que salta, por ironia, o estágio de aprendizado está sustentando de que aprender determinadas regras é fácil. Mas, como sabemos, Palmira Ribeiro não está falando de regras, mas da linguagem específica, da malícia, da maturidade para o interpretar a ação do outro. O erro, que deveria fundamentar a experiência, é retirado de seu sentido de presente futuro. E assim a jornalista chega na crítica ao uso da experiência do jovem como obstáculo ao seu próprio desenvolvimento. Eu acho que nada tira a bagagem que você tem, você tem que ter uma baga gem pra chegar em algum lugar, claro que tem gente que começa como repórter e parece que foi repórter há anos. Parece que a pessoa já foi há mil anos, mas é preciso ter um pouco de paciência, eu não sei como que a universidade pode tratar isso, eu só às vezes falo assim “calma, gente” (risos) calma né, vamos com calma, até porque eu acho que eles nem ligam se tipo: “ah, eu errei” ok. Todo mundo erra, mas errar em Jornalismo tem consequência... (Entrevista, Palmira RIBEIRO, Out. 2015)
Palmira Ribeiro decidiu cursar o Jornalismo para unir o Direito e o Teatro e com isso ajudar as pessoas no cotidiano. O jornalismo era a forma rápida de conseguir este objetivo ao avaliar a mesma dimensão ao Direito. Ela descobriu, em seu percurso, a insuficiência do ensino da prática e da teoria na universidade e teve que
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aumentar a dose de tempo para aprofundar seus conhecimentos e assim conseguir ter entendimento para traduzir a Linguagem Específica. Justamente aquela linguagem que não temos como relação no cotidiano. E no caminho de formação do mercado, teve que abandonar o sonho de estar na TV, no questionamento da vaidade. Ao mergulhar na arte de interpretar o texto, se defronta com o imediatismo da nova geração que recusa o passado como problema vivido. Mais do que isso, a nova geração desconstrói o Jornalismo como dinâmico e precisa receber doses de novo para que não se torne enjoativo, como repetição incessante de fatos. Como conseguir encontrar saídas para esse horizonte? É preciso enfrentar com a profundidade que a própria complexidade desta questão se apresenta no presente. O que está em jogo é a historicidade do Jornalismo. E, como decorrência desse processo, o que está em discussão é que embora a nova geração esteja alheia ao futuro e alheia ao erro, o Jornalismo é uma profissão cujo principal teor é a vida do outro. Errar em Jornalismo tem consequência para a vida do outro. E enquanto se articula táticas e estratégias para recolocar a produção de sentido do Jornalismo no plano da responsabilidade social, Palmira Ribeiro recorre a um dos elementos de contraponto que simboliza muito mais que uma frase: calma. E complementa com uma frase que poderia ser direcionada para sua experiência vivida, para as novas gerações ou para que se estabeleça valor histórico ao jornalismo. Para encontrar o sentido de viver, a vida precisa ser vivida com paciência.
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Capítulo 9
Fernando Boente
Impresso
Narrativas da Realidade: O gosto pelo Jornalismo
“
Não tem uma coisa muito precisa para explicar como é que se deu esse processo.” A frase exposta acima do jornalista Fernando Boente é para identificar a imprecisão com que tomou a de-
cisão de fazer o curso de Jornalismo. Não se trata de uma decisão simples, muito menos de considerar que houve um único fator primordial que o conduziu para o mergulho na escolha da produção jornalística como meio de vida. O fato é que du rante a entrevista, a memória coletiva de Fernando Boente estabeleceu na narrativa o marco dessa decisão. E toda vez que a memória instaura como relevância determinado fato, temos de reconhecer que é o passado em movimento a partir da ressignificação da experiência vivida no presente. A primeira referência apresentada pelo entrevistado está na dimensão de temporalidade e espaço. Ao fim do Ensino Médio, permaneceu por um ano parado, mas com o pensamento exercendo a mesma atividade quando estudava. A pergunta a si mesmo, revela, era: o que vou fazer agora? E outras mais imprecisas que deixam nubladas qualquer caminho a ser seguido: o que eu gosto de fazer? Ao indagar a si mesmo sobre o que gostaria de fazer, a primeira imagem que se pode recorrer é de indefinição. Mas que pode remeter, por um lado ao vazio de referência, como pode suscitar, ao contrário, o preenchimento completo ao ter a sua frente essas diversidades de possibilidades no campo profissional.
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A segunda referência está no percurso da materialidade. Jornalismo não foi a primeira opção de Fernando Boente. Para o vestibular, prestou primeiro Psicologia, em seguida Direito. Nenhum dos dois caminhos o conduziu para a continuidade de formação a partir de uma justificativa: “na verdade nada tinha interesse no final das contas. Ai eu entrei em Jornalismo e deu certo. Quase um acaso, mas era pra ser provavelmente”. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015) A pergunta imediata que se pode vislumbrar é: quais são os motivos ou fatores que levaram o entrevistado a buscar como caminho acadêmico o curso de Direito ou mesmo o de Psicologia? Por ora, há a negativa que se descortina ao apontar que na verdade, se houve motivo, se dissipou com a mesma temporalidade em que se surge e se demole uma perspectiva criada sem enraizamento na experiência vivida do próprio sujeito. Entretanto, todas as ações enunciadas como experiência de vida tem uma repercussão na memória, cuja negociação em determinados períodos da existência do sujeito releva ou retira do suposto quadro denominado de esquecimento. O que nos coloca diante de outro fator importante: aqui é necessário desvelar se as faíscas despertadas para o Direito ou para a Psicologia se acendem para serem ressignificadas em outra etapa da decisão do entrevistado ao optar pelo Jornalismo. Ou se foram apagadas diante da proclamada ausência de sentido. Como compreender o significado deste ato de cursar o Jornalismo quando o próprio sujeito releva ao acaso, como se fosse acidente de percurso, em que a vida é surpreendida e só a partir daí é conduzida a reconhecer no movimento de produção de sentido? A indagação é mais complexa porque ela acontece a posteriori da narrativa do entrevistado, em que já havia justificado a opção que o levou a definir o Jornalismo. O que dimensiona outro fator: se a definição é remetida ao acaso, em que momento a memória passa a tornar relevante a referência da leitura de uma obra que o iria definir como marco na vida do fazer jornalismo?
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Antes de recorrer a resposta, é preciso entender quais os elementos que Fernando Boente demarca como marco do passado para justificar o porquê de fazer o curso de Jornalismo no Centro Universitário do Triângulo (UNItri), no período de 2007. É sintomático que antes de citar a obra sobrevenha a afirmativa reveladora de que gostava de ler. Está tácito aqui um dos motivos que por si só poderiam justificar a definição do curso de Jornalismo: o gosto da escrita. Entretanto, o entrevistado segue adiante para apresentar um objeto plausível, que demarca o horizonte na qual criará perspectiva de ser jornalista. Ao retomar aqui a pergunta inicial, por que definiu o Jornalismo para cursar na graduação, Fernando Boente demarca esse elemento: Não tem uma coisa muito precisa para explicar como é que se deu esse processo. Eu só sei que eu gostava muito de ler e eu fiquei um ano parado depois do ensino médio. E acho que eu entrei em 2007, e eu tinha acabo de ler um livro do José Hamilton Ribeiro, que é um jornalista que eu admiro muito, que chama: O gosto da guerra. Não sei se vocês conhecem o José Hamilton Ribeiro, talvez do Globo Rural. Na verdade ele é especializado em Jornalismo Cientifico e começou a carreira dele como jornalista de cidade e região, escreveu sobre política também. Ele foi contratado por uma revista que chama Realidade. Isso ele explica no livro, que tipo uma prévia do que seria a Veja depois nos anos 60 e ele foi mandado para o Vietnã, como jornalista brasileiro para cobrir a guerra. Acho que foi da América Latina e nessa cobertura dele, ele perdeu a perna inclusive. Então ele relata um pouco como foi essa cobertura dele lá e eu gostei muito do livro e pensei: nossa eu quero fazer isso. Uma coisa bem louca, mas jovem quer fazer isso. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
O livro O Gosto da Guerra trouxe para Fernando Boente o sentido do que faltava para entender do que iria fazer no futuro, ou mais precisamente, do que gostaria de fazer como profissional. Da ausência de sentido do presente sobre qual profissão seguir, o entrevistado estava assim produzindo o sentido da leitura de uma narrativa de quem mergulha na vida do outro. E a leitura, assim como a escrita, é sempre
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profunda quando o sujeito mergulha no outro para viver a sua emoção e razão e depois ser testemunha. É provável que a obra de José Hamilton Ribeiro tenha atraído o entrevistado por outro fator que lhe foi próximo: um relato sucinto da obra revela que se trata da “capacidade do autor em aliar a narrativa direta com a abordagem psicológica. No livro O Gosto da Guerra o leitor acompanha tudo que José Hamilton Ribeiro viveu e sentiu no Vietnã. É o dia a dia da guerra, o drama do acidente, e por fim, um rela to inédito e emocionado sobre a sua volta ao Vietnã 30 anos depois.” 1 Por isso a questão se torna importante: E foi só por causa do livro? A resposta, por um lado parece indicar que a questão da psicologia contribuiu para que ele produzisse sentido sobre a leitura. Estaria aqui um indicativo de que a faísca da Psicologia acendeu agora em outro campo, em que em vez do campo teórico, aparece materializado no relato da obra. Mas o entrevistado procura então discernir porque essa obra pode ser denominada de referência para sua vida. Não, o livro deu uma, foi um marco, eu vi o que os caras faziam e eu queria fez isso. Eu gostaria de fazer isso. Não correspondente de guerra, mas, participar de coisas que são importantes e que eu possa narrar isso para as pessoas e ter uma função social, ser um intermediador, a ponte entre as pessoas e as coisas que acontecem e tornar esse distanciamento de algumas coisas importantes e levar para as pessoas... eu pensava mais ou menos assim. Ainda penso, embora não tenho tanto a ingenuidade da época. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
Estamos aqui diante do quadro em que Fernando Boente nos traz o primeiro indicativo para conceituar o Jornalismo. Há sim de considerar que se trata de uma elaboração conceitual prematura ainda, pronunciada para encontrar sentido do que fazer na graduação, e reconhecido no presente como ingênuo. Um mergulho mais preciso redimensiona a ingenuidade do tempo passado para o presente. Fernando Boente deixa explícito que o pensamento elaborado sobre o Jornalismo é o mesmo 1 Pequena síntese da obra retirada do site https://books.google.com.br
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do presente. Cabe ao sujeito jornalista ser um intermediador, a ponte entre as pessoas. Como se pudesse, assim como José Hamilton Ribeiro, colocar as pessoas no estado de conflito do Vietnã para compreender a experiência vivida. Ao considerar que o pensamento teórico conceitual prematuro sobre o jornalismo está sobre o mesmo alicerce do hoje, temos de interrogar de onde parte a afirmativa do presente em que está identificado esse “embora não tenho tanto a ingenuidade da época”. A ausência da ingenuidade parece recair, como teremos de confrontar mais adiante, com a discussão sobre a prática jornalística. Essa prática que irrompe desde o seu ingresso no mercado de trabalho e que tem uma particularidade: Fernando Boente atuou na prática em seu período de graduação. A base teórica da formação no curso de Jornalismo na Unitri levou Fernando Boente a efetivar duas análises por meio de sua experiência vivida. A primeira é pela surpresa positiva que ultrapassou a sua perspectiva de formação ao entrar em uma universidade particular. Por sinal, essa base teórica se tornou o ponto central daquilo que defende sobre o que é comunicação. Mas me surpreendeu positivamente porque o curso de Comunicação Social, ele começa com uma base muito teórica, embora eu ache que o curso de Comunicação Social que vai habilitar pra uma dessas três áreas ainda é incipiente, mas depois eu falo disso, vou te explicar porque que é incipiente. Eu acho, eu achei condizente com o que eles propuseram na época, por quê? Porque você começava com bases teóricas, você começava a estudar Sociologia, Ciência Política, História, a depender e pra ser um jornalista, um comunicador, você precisa disso. Se você não tiver essa base bem fixa, se você não for uma pessoa que sabe dessas disciplinas, dessas áreas de conhecimento, você não faz comunicação, se faz comunicação você vai fazer muito mal, isso eu te garanto. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
O primeiro indicador dessa crítica está na relação entre Jornalismo e Comunicação. As bases teóricas de Sociologia, História, Ciência Política estão como fatores primordiais para que o sujeito se constitua como jornalista. É importante visualizar
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aqui uma relação direta entre produzir um bom jornalismo ou fazer muito mal a comunicação. A teoria para fundamentar a comunicação está articulada em uma proximidade teórica metodológica imprescindível para que o jornalista se torne sujeito do seu processo. E não se trata de conhecimento superficial ou somente para que seja instrumentalizado na prática. É isso que temos de entender com essa posição da base bem fixa, ou com maturidade, para conseguir olhar para a realidade e assim conseguir produzir uma narrativa consciente. Então você tem que ter esse suporte. Eu tinha Ciência Política, Realidade Sócio Brasileira, que a gente analisava todo o contexto desde o fim do século XIX pra gente entender o como era a comunicação que o Brasil estava fazendo... Filosofia, você precisava entender. Então assim, se tem maus profissionais na área, provavelmente é carência nessa base. Não é o técnico, o técnico você consegue muito bem suprir se você for interessado no assunto. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
A defesa premente da Teoria enquanto formação do sujeito jornalista se configura como atributo e ao mesmo tempo desvela a identidade de Fernando Boente em seu processo de formação. Embora a frase esteja se referindo ao passado, o jorna lista traz determinados conflitos para o movimento do presente. E a cada problema desvelado é preciso encontrar a dimensão de significado do que é o jornalismo, e do que é a comunicação. Se tomarmos como referência a própria divisão da estrutura curricular de Fernando Boente temos de entender que o ponto positivo está demarcado majoritariamente pelas disciplinas que configuram a comunicação. Para o sujeito que entrou na universidade tentando encontrar o sentido, encontrar uma narrativa que faça essa defesa nos leva a seguinte interrogação: será que essa construção consciente do jornalista está forjada na experiência vivida na graduação ou se trata de uma produção de sentido a posteriori? A importância de en tender esse momento é para considerar se a crítica se efetiva dentro da tensão e
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conflito vivenciado na universidade ou se trata de um entendimento a posteriori, quando se defronta com outros dilemas apresentados pelo mercado de trabalho. A resposta a essa indagação parece estar na denúncia de Fernando Boente sobre ser incipiente a formação em Comunicação Social na universidade. E aqui está a segunda análise de formação em Jornalismo. O primeiro indicativo da crítica do entrevistado para o reducionismo do ensino ou da técnica jornalística está no final da frase anterior. O conhecimento técnico você consegue suprir se for interessado no assunto. É sintomático frisar que essa frase está como contraponto ao conhecimento teórico. No primeiro momento somos conduzidos a chegar ao estado de conflito apresentado por Fernando Boente: se a técnica você consegue suprir por meio do inte resse, o conhecimento teórico é preciso ultrapassar esse ponto para que se pese a formação. A técnica se efetiva pela experiência na redação. Mas, se recorrermos a um pequeno contraponto da Psicologia e que pertence a base de estudos em comunicação, a prática se efetiva pela contingência de reforço, mas não é suficiente para levar a profundidade da consciência ao que o sujeito é conduzido seja pela razão, seja pelo inconsciente. Toma-se aqui o corpo da crítica: a teoria não pode ser utilizada com o mesmo método de ensino como se estivesse em contingência de reforço. É possível entender que a experiência vivida de Fernando Boente na universidade o fez a ir identificando essa sensação de falta, de ausência de sentido, em que as fissuras da Teoria para a Prática se tornaram cada vez mais visível ao ponto de considerá-los como corpos separados na produção da identidade do sujeito jornalista. De onde nasce a crítica da técnica em Fernando Boente? A narrativa efetivada pela memória revela que ela nasce na natureza da surpresa positiva da universidade. Há uma similaridade nesta surpresa, que podemos articular ao Gosto pela Guerra: é a base teórica que permite narrar de forma consciente a experiência vivida na realidade. Mas sem a profundidade da qual lhe tornou exigência no futuro, Fernan215
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do Boente se deparou com o ensino técnico, ou melhor, com as disciplinas práticas do curso. E como consequência da surpresa positiva, o ensino técnico lhe levou a novas confrontações sobre o sentido e o significado do que é a comunicação. O problema começa quando a gente passa pelo período que vai transformar uma graduação em uma coisa tecnicista, que é a produção técnica do jornalismo. Embora a produção técnica do jornalismo ter sido montada na fusão dessas teorias que a gente estuda antes, por exemplo, vocês tem que fazer uma matéria, tem que fazer o lead, o famoso lead que surgiu da pirâmide invertida da escola de Palo Alto, da Teoria Hipodérmica e o cara chegou nessa conclusão que pra ele fazer uma informação objetiva, clara e que vai interessar ele tem que escrever isso com as sete perguntas, eu estou sendo bem simplista explicando isso, mas é só pra vocês entenderem, tudo isso o cara chegou a conclusão e isso difundiu. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
A dissociação entre tecnicista e técnica já nos remete que a conceituação de Fernando Boente está amparada por uma base teórica e metodológica que se contrapõem ao funcionalismo. Esse horizonte teórico vai tomando corpo pela crítica ao tecnicismo aqui e depois se estenderá na denúncia da incipiência da teoria na formação do jornalista. O ponto central aqui está em entender que a memória de for mação do entrevistado remete à compreensão das Teorias da Comunicação e da Teorias do Jornalismo. Pois, mais do que analisarmos se as escolas estão sendo citadas de forma coerente ou das suas interligações, há de considerar que o entrevistado afirma ter compreensão de que a técnica é uma elaboração conceitual. E se ela tem essa natureza de ser elaborada a partir do dilema de um determinado sujeito em determinada realidade, retirá-la do contexto histórico e filosófico de sua elaboração é recair sim em uma tecnicismo. Então assim chegamos ao primeiro ponto da reflexão do entrevistado sobre as disciplinas práticas do curso de Comunicação: Então criou-se as técnicas com base nas teorias do jornalismo e aplicação do jornalismo. E essas técnicas foram desenvolvidas, praticamente todas, que o
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Paradoxo do cotidiano II
Brasil segue muito, hoje, os jornalistas brasileiros, com técnicas criadas pelos jornalistas norte-americanos. O que nós fazemos hoje aqui é praticamente uma réplica. Não que não seja mutável, as coisas vão mudando, mas basicamente é a sementinha que foi movido pela imprensa americana, foi sendo desenvolvido pela imprensa americana. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
Podemos interpretar que o tom de crítica efetivada por Fernando Boente está demarcada, primeiro, por uma falta de originalidade ou mesmo de criatividade do pensar a realidade. Pois ressoa o termo réplica aqui quase como um simulacro da operacionalidade do jornalismo em detrimento da ressignificação. É isso que poderia explicar que mesmo com a mudança na temporalidade de sua formulação até os dias de hoje, a sementinha permanece a mesma. Mas se essa técnica é deslocada do estado de crise, a técnica passa a ser fragmentada de seu potencial para se tornar um exercício repetitivo que se aprende com a contingência de reforço. Se o problema estivesse somente nesse esvaziamento, talvez a denúncia de Fernando Boente não o levaria a um mal estar. Pois se a técnica pode ser simplesmente suprida com o exercício, embora esvaziada, não tornaria um problema efetivo da comunicação. O problema mais emergencial é que o reducionismo técnico, dissociado do problema de origem, é levado ao entendimento de um outro conceito na ordem do Jornalismo. Essa nova conceituação advinda mais da réplica, do simulacro, do que da ressignificação, dos novos dilemas vivenciados na realidade, é que se torna o alvo de denúncia do entrevistado. Ai começou o problema porque, eu não sei, não tem como eu comparar com base de outra faculdade, mas, nós temos dois problemas: falta de estrutura nas universidades para fazer isso e por outro lado, nós temos alunos que estavam interessado totalmente nesse lado técnico, principalmente o televisivo, só preocupados com a câmera e não com uma base anterior. E isso corrói a profissão de certa forma, porque a pessoa deturpa um pouco do que ela está fazendo. Ela está preocupada mais em aparecer o lado certo dela na câmera do que qual informação ela vai levar. Quando vê assim, talvez ela já esteja no lugar errado, porque a última coisa que você tem que preocupar é a estética. 217
Gerson de Sousa Se você não tem formação a estética não interessa. Você pode ser feio, horroroso, ser o estrupício que se a informação for importante, não interessa. Então pelo menos lá, eu tive um pouco de estranhamento, porque havia coisas lá que não me interessavam, por exemplo: enquadramento, posicionamento de microfone, não sei o que não sei o que, isso pra mim é só uma futilidade. Nos fins das contas soava uma futilidade, isso é um padrão, não é correto, foi inventado, existe uma formula. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
A frase entoada no presente da entrevista revela que a produção de sentido de ser jornalista de Fernando Boente esteve diretamente ligado com sua filiação teórica que tomava corpo na graduação. O lado técnico que se critica do interesse dos alunos não está na crítica ao telejornalismo, mas ao reducionismo com que se busca a disciplina para somente aprender a manusear o microfone. Ou melhor: o posicionamento do microfone. O tom da crítica é que enquanto se mergulha nesta futilidade padrão do posicionamento do microfone, o reducionismo técnico se efetiva como distância da conceituação crítica do que é o telejornalismo. Poderíamos materializar essa interrogação com uma pergunta: qual o sentido de aprender a posição exata do microfone se ao abri-lo para o uso da voz não se tem consciência sobre o enfoque ou mesmo das perguntas que serão entoadas? Seria casual que tantos alunos estivessem com essa preocupação técnica ao ponto de incomodá-lo e relegar como futilidade? Se tomarmos como referência o último termo, como fórmula, como padrão, seria correto dizer que o tom de crítica é que o jornalista deixa de assumir a sua responsabilidade como sujeito do processo comunicativo para se ater somente a futilidades em que se efetiva como objeto do sistema. O incomodo está no sujeito ao recair como instância máxima para se render somente a uma fórmula. E ao se efetivar como objeto, Fernando Boente acusa que se trata de uma deturpação do que é o Jornalismo. O paradoxo da crítica do entrevistado, em sua memória de formação teórica, ao tecnicismo da universidade está em que ao mesmo tempo precisa entoar o lado posi-
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Paradoxo do cotidiano II
tivo da técnica sem que pareça uma análise meramente ao acaso. Pois como descrevemos anteriormente, um dos pontos que o conduziu ao Jornalismo é o gosto pela escrita. E não poderia ser diferente que justamente, da crítica ao reducionismo técnico, o aprimoramento da escrita tenha sido o ponto de interesse. Neste momento poderia se objetar: não estaria Fernando Boente sendo incoerente com sua afirmativa sobre o tecnicismo? Será que não há um reducionismo do próprio entrevistado quando considera negativo somente o que não pertence a sua lista de interesse?
São perguntas instigantes que tomam corpo nesta nova revelação. Entretanto, antes de recair nesta cilada da subjetividade, de considerar somente como positivo o que nasce da técnica de interesse particular, Fernando Boente procura articular o aprimoramento da escrita não com a técnica da escrita. Mas como mediador do pensamento nesta relação que se estabelece com o outro. 219
Gerson de Sousa Por outro lado, tinha algumas coisas que me interessavam muito, matérias técnicas que eram de aprimoramento de escrita. E você já começa a ter contato com isso também, de produzir textos. Eu acho que o jovem hoje ele lê pouco, lê muito na internet e ele escreve muito menos, escrever assim de forma concisa, não de internet, parar para pensar e montar um argumento acho que eles escrevem muito pouco. Então na faculdade de jornalismo você está sempre fazendo esse exercício, você está sendo desafiado a mon tar um argumento que seja coerente e que convença e faça sentido, não são coisas largadas. Então esse exercício é quando você pega toda aquela baga gem teórica de antes, que é a principal parte da base para apurar as coisas que você quer saber para ordenar uma coisa coerente e lógica, que faça sen tido né, e começar a treinar isso e aprimorar seu texto. E não só, aprimorar seu português também, pois quanto mais você escreve, mais as pessoas vão ler, vão criticar, mais vão te corrigir e mais você vai aprender e mais você vai formando a sua caraterística de escrever. Por essa parte também muito boa essa questão técnica. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
Não se trata da escrita pela escrita. Trata-se do desafio de escrever, elaborar um argumento que seja coerente e que seja convincente ao outro. Para se atingir com plenitude esse exercício é preciso retirar da bagagem teórica das disciplinas dos primeiros anos do curso de Comunicação Social. É essa base que possibilita apurar na profundidade do pensamento daquilo que se será materializado na escrita. A todo momento o argumento de Fernando Boente é desvelar que o interesse subjetivo pela escrita, por um lado, o conduziu para essa demarcação. Por outro, não está falando de lead, da pirâmide invertida, de fórmulas que já apontou como tecnicista. Uma das formas de entender que o entrevistado procura se esquivar de recair na cilada é a circulação do texto em que ele aponta sobre a produção do conhecimento. O exercício para o escrever contribui sim para o aprimoramento técnico e o conhecimento sobre o uso da ortografia e outras regras da Língua Portuguesa. Tratase do ponto de início, não o fim em si mesmo. Pois da escrita é preciso buscar a bagagem sobre como apurar e o que escrever. E da escrita se estende a dimensão da leitura. E os jovens, como vimos na crítica, leem pouca literatura, embora leiam
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Paradoxo do cotidiano II
muito de textos da internet. E escrevem pouco também de forma elaborada, sendo instigado a produzir um argumento que desafie e o leve a organização do pensamento. Por isso a característica de Fernando Boente sobre a escrita o mergulha neste universo de formação. E que se reforça cada vez mais em seu trabalho como profissional no Jornal Correio de Uberlândia. Todo esse estado de tensão e conflito vivenciados por Fernando Boente pode ser identificado pelo artigo em que produziu para o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) no sétimo período. Ele traz esse elemento como narrativa para revelar como o significado do que é Jornalismo foi sendo produzido nesta argumentação de análise. Ao ser questionado sobre o que tratou em seu artigo de final de curso, o entrevistado aponta para essa outra narrativa: O artigo que eu escrevi era exatamente sobre, boa pergunta, porque foi exatamente sobre a deficiência do curso de Comunicação Social, principalmente para a formação técnica. Por quê? Eu já tinha começado a trabalhar no Correio de Uberlândia há uns dois anos e eles me pegaram lá e me colocaram no Cidade e Região como estagiário. E num veículo de comunicação não existe um: senta aqui do meu lado que eu vou te ensinar a ligar o computador e a escrever uma linha do que nós fazemos. Não. É sua senha é essa, seu computador, o assunto é esse, se vire. Então você tem um choque, você tem que se tornar um profissional do dia pro outro, você tem que fazer, entregar o produto, é ruim falar produto, mas é que a gente pensa em produto no fim das contas e o nosso produto tem uma relevância social no fim das contas e isso é bom. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
A experiência profissional durante o processo de formação o levou a redimensionar o valor dos sentidos da técnica e da teoria. Qual o sentido do uso do termo choque, de se tornar profissional do dia para outro? É importante essa frase para entendermos como se opera os dilemas na experiência vivida do sujeito. É claro que não se trata de se tornar um profissional do dia para outro. Mas, de identificar, no momento em que se é exigido para ser jornalista, que não se tem base suficiente para que se possa produzir um texto com o mínimo de autonomia técnica e teórica. 221
Gerson de Sousa
O relato da deficiência não está somente na questão técnica. Ao estar no mercado de trabalho, Fernando Boente vai identificando outras questões teóricas que faltam para o ensino. Ele cita como exemplo o tema da Segurança Pública, de importância na área social e ao mesmo tempo uma pauta de interesse público. Tem outros também, mas pro jovem jornalista é o mais latente porque ele vai se deparar com isso logo no início da profissão, porque os veículos de comunicação têm mania de colocar coberturas policiais pra ele aprender, digamos perder um pouco da ingenuidade, pegar um pouco de malícia e perder a crueza em coberturas policiais. Nós não temos a formação que precisamos, por exemplo, de Direito nenhum, como que você quer escrever sobre uma coisa que envolve diretamente questões constitucionais, Direito Penal, sendo que você não tem ideia do que está acontecendo. Os jornalistas não estão preparados para isso e eles têm de fazer isso nos meios de comunicação. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
A perda da ingenuidade no campo profissional é instaurada a fórceps, sem possibilitar tempo suficiente para que o aprendiz possa ter maturidade. Adiciona a isso as implicações que o trabalho de Jornalismo incorre na qual o sujeito toma ciência de que não tem preparo para as consequências de seu próprio trabalho. Eis a conclusão problemática: os jornalistas não estão preparados para isso. Não se tem preparo porque a formação teórica para alguns fatores sociais não é tema da estrutura curricular da universidade. A indagação é premente e toma o sentido grave de preocupação sobre a responsabilidade social do ser jornalista. A gravidade está nesta dupla situação. Por um lado, parece já uma normativa social ou mania, que, para colocar o jovem jornalista diante da realidade, para pegar um pouco de malícia, ele seja levado a realizar cobertura de segurança pública. A cobertura policial se efetiva como primeiro passo. Mas a segurança pública exige, para que se escreva com a consciência devida, de conhecimento sobre o Direito. E assim Fernando Boente se ressente de que não há uma disciplina que trabalhe esse entendimento sobre o Direito ao ponto de possibilitar uma compreensão sobre o 222
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tema a que se escreve. E a problemática se torna coerente: na realidade social, o jornalista precisa escrever sobre temas que envolvem questões constitucionais. Mas como intermediar para a sociedade determinado fato se o próprio sujeito que fará a escrita não tem o entendimento sobre o que será escrito? Então, acontece muito erro, tem algumas falhas e não é incomum os jornais serem processados por veicular coisas relacionadas à segurança pública, é o mais normal. Eu, por exemplo, já tenho uns 10 processos relacionados, nunca perdi, graças a Deus nenhum, mas eles processam: ah você pôs meu nome lá no jornal. E ele foi preso, mas ele foi preso em flagrante, ai porque que o jornalista perde a crueza, o que interessa mais: o direito de imagem dele ou o direito coletivo de segurança pública? Com qual você vai estar preocupado? Ai você vai começar a enfrentar esses dilemas. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
Não basta que o jornalista tenha uma disciplina que apresenta tecnicamente as leis ou determinadas leis. Isso faria com que o ensino de Legislação recaísse também em um tecnicismo. Mas o ponto fundante aqui é que a falta de compreensão do Direito leva o jornalista ao erro. Não o erro consciente, mas o erro de quem utiliza a escrita de forma mecânica por causa da incompreensão do sentido do que é o Direito. Justamente o curso que Fernando Boente tornou relevante em determinado momento da sua vida antes do Jornalismo. Para superar esse reducionismo, o mercado deveria possibilitar como nesta mania para aquisição de malícia uma compreensão sobre Direito Penal. Enquanto isso não ocorre, a perda da ingenuidade parece estar mais vinculada aos processos jurídicos efetivos que necessita responder pela assinatura das matérias do que da maturidade na compreensão conceitual sobre a produção jornalística que se efetiva por meio da experiência vivida. E com esse dilema, sobrevém outros de outra ordem que remetem o jornalista a ter de estabelecer valor. Ou a ter de considerar uma ordem hegemônica de valor, do qual se descobre estar despreparado. Fernando Boente traz para a cena o dilema sobre o estupro. E sua construção apresenta sobre como vários fatores sociais estão 223
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envoltos nesta discussão do qual o jornalista nem sempre está preparado no mercado de trabalho. Porque os estupros eles são averiguados muita das vezes, através de denúncias, que as vezes não são reais, que eram outras circunstâncias por trás, sociais, e não tem a ver com o estupro, tem a ver com a questão de discussão da família mal formada. E já aconteceu até de prisão irregular de pessoas que foram acusadas de estupro e quando acontece, ai você tem o dilema: eu faço a reportagem sobre estupro, eu exponho o rapaz, eu exponho a família, não exponho? Quem tem mais direito: a sociedade saber que ele está fazendo isso ou que supostamente ele estaria fazendo isso ou eu tenho que esperar? Essa é área que é mais complicada. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
A tônica da crítica está na denúncia desse movimento do mercado de trabalho, de ter malícia, mas recai também na universidade. E assim, o entrevistado avalia que se os problemas com os jornalistas, como os processos jurídicos, acontecem de forma sistemática, qual seria o melhor meio para se resolver essa questão. O ideal seria, eu estou dando um exemplo, de uma disciplina que a gente deveria ter ou reformular: seria a questão jurídica. Nós temos que ter uma base jurídica também como nós temos as bases teóricas da Sociologia, História, para exercer a profissão, se não tivermos, nós vamos ter muitos problemas. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
Os processos jurídicos respondidos pelos jornalistas não tem força suficiente para que se repense essa construção formativa? Ao analisar as indagações de Fernando Boente, podemos ressoá-las como crítica ao tecnicismo do mercado. É com este quadro emblemático que somos levados a indagar ao entrevistado: qual seria então a formação ideal para que o Jornalista estivesse na redação com compreensão sobre os dilemas da realidade em que irá atuar no social? Fernando Boente acrescenta a disciplina de Economia como outro conhecimento fundamental: Além de dessa base de disciplinas como Sociologia, Ciências Sociais, História, Filosofia, matérias ligadas a Letras. Precisamos acrescentar a área jurídica urgentemente, que talvez seja o aviso maior de urgência. Questões ligadas 224
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à Economia eu acho muito fraco, o jornalismo invariavelmente lida com essas questões que interessam diretamente. Então esses dois pontos fossem mais urgentes. Em relação a disciplinas ligadas á Economia, não é matemática não gente, é entender a Economia de uma forma como funciona a sociedade. Eu considero que deveriam ter mais semestres com Direito e Economia. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
No momento em que se finaliza sobre as implicações da prática e da teoria na produção de sentido do jornalista, torna-se necessário indagar o valor do “produto” com o sentido histórico. E a pergunta que se efetiva ao entrevista: Você considera que seu trabalho é um documento histórico? Fernando Boente responde que sim. Primeiro é necessário identificar qual o conceito que o entrevistado se orienta sobre documento histórico. Na verdade o documento histórico é qualquer documento que tenha informação e perpasse o tempo. Isso é uma definição de documento histórico. Se eu escrever um bilhete aqui e ele ficar aqui, ele vai ser um documento histórico, pois eu escrevi num ano, perpassou o tempo e ele vai estar lá. Foi o que eu pensei no dia, entendeu? Até coisas não escritas, coisas simbólicas é um artefato histórico. Por definição. Então o jornal, como ele é uma comunicação linguística, está lidando com uma língua, informações ou virtualmente, no papel, não sei, daqui anos vai ser um banco de dados virtual que nós vamos pesquisar, é o documento histórico, sem dúvida. Por si só ele já é um documento histórico. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
O conceito de documento histórico apresentado por Fernando Boente está demarcado pela temporalidade da matéria. O bilhete se torna histórico porque foi escrito no ontem, assim como o jornal Correio de Uberlândia, no qual escreve. Por ser um documento a ser consultado no futuro, ele já se torna documento histórico. Ora então a produção jornalística se efetiva em sua dimensão de história pelo fator de temporalidade ou por se enquadrar neste campo: qualquer documento que tenha informação e perpasse o tempo. E assim ele tem a justificativa plausível para apre sentar o Jornal Correio de Uberlândia como documento histórico. E acentua ainda 225
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mais esse grau de importância: a empresa Algar que envia exemplares do Jornal Correio de Uberlândia para serem arquivados no Acervo Municipal. Por conter uma informação e estar disponível ao longo do tempo, para consulta, o Jornal Correio de Uberlândia é um documento histórico. Ao se efetivar como documento histórico torna-se necessário entender se, para além de configurar a informação como técnica, o entrevistado irá colocá-la como elemento de embate no processo comunicativo. Pois, há os dilemas envoltos nesse processo de produção. E o primeiro a ser enfrentado é sobre a ideologia da empresa. Ou mais precisamente no cerne da questão desta pesquisa: qual o tipo de história que está sendo narrada pelo jornalista? Fernando Boente afirma que há, claro, um conflito entre a responsabilidade social de jornalista e as questões da empresa. E pondera: “Mas não existe um meio de comunicação sem interesse”. A resposta poderia indicar, em primeiro momento, que se trata de uma aceitação sem questionamento. Mas o entrevistado logo precisa que o ponto importante para entender esse interesse de uma empresa não está no fator de ganhar dinheiro. Pelo contrário: o veículo jornal em determinadas situações até deixa de ganhar dinheiro, quando não fecha em vermelho. E o exemplo do Jornal Correio de Uberlândia, que fechou no dia 31 de dezembro de 2016, pode ser listado neste processo de análise econômica. O primeiro elemento é como instrumento de força política. O veículo de comunicação, o jornal impresso, quando eles são criados por uma empresa privada, ele tem duas intenções e não é ganhar dinheiro, você pode ter certeza que não é ganhar dinheiro, nenhum jornal dá dinheiro. The New York Times foi vendido por um grupo mexicano por quê ?! Primeiro ele é um instrumento de força política, quando você tem um canal de comunicação, você está falando com as pessoas, quem fala com as pessoas tem o poder de talvez, não estou dizendo que vai manipular, mas tem o poder de mostrar aquilo que você quer. Isso não seria manipular, seria distorcer. Mostrar o que você quer não é mentir, é ignorar alguma coisa e mostrar o que você quer. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
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Paradoxo do cotidiano II
Usar o canal de comunicação como instrumento de força política. Em vez de manipular, há a afirmativa do distorcer a informação. E assim temos de voltar ao enfrentamento: que história distorcida está sendo armazenadas nos arquivos municipais e que se tornou documento histórico por trazer a informação e por estar no fator tempo? E com que forças ou conhecimento suficiente será possível desvelar dessa mensagem o que foi ignorado, ou por interesse, deixado de lado? Esse fator nos coloca diante de um estado de conflito: o reconhecimento da distorção da notícia pelo interesse político da empresa está em oposição justamente no item considerado como primordial de Fernando Boente ao responder o porquê de cursar o jornalismo. No entanto, Fernando Boente apresenta que o veículo de informação adquirido pelo empresário com a finalidade de ser utilizado como poder, como instrumento de força política, necessita do Jornalismo. E ao ter de empreender o Jornalismo, torna-se fundante outro valor social: a credibilidade. E é assim que a produção jornalística se encarrega de sua responsabilidade social para estabelecer credibilidade ao social. Então ele existe por isso. Só que quando uma empresa monta isso, pra ele ter esse poder de voz, ele tem que ter credibilidade. E credibilidade você só constrói quando se trabalha de forma que, não estou dizendo que é perfeita, mas que você vai seguir as regras do bom funcionamento do jornalismo, no meio de comunicação. Então ele vai criar um setor de jornalismo que vai ter esse preceito, um princípio. Ele vai ter, nem sempre as limitações são compartilhadas com o setor de jornalismo. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
O conflito então se apresenta: o interesse da empresa em contraponto aos princípios definidos pelo Jornalismo. Há uma linha tênue que parece interligar esses dois valores para estabelecer o estado de tensão e conflito. Fernando Boente explica que esse processo é explicito em grandes empresas quando tomam posição política O problema é nas empresas de comunicação do interior, cuja ideologia se faz de forma explicita a partir do jogo de interesses.
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Gerson de Sousa Não existe orientação, ele não vai dizer isso na sua cara, ele meio que joga duplo, entendeu? E às vezes parece que está jogando com interesse e às vezes nem dá pra saber. Ai na rotina que a gente tem que fazer as coisas, acaba caindo nisso, querendo agradar a gregos e troianos, mas é um dilema que você vai conviver, não tem jeito. Ou você põe a cara pra fazer ou desiste, arruma outra profissão, porque você vai ter que conviver, a linha é muito tênue, sabe?! Até pra você mesmo, porque fora as questões da empresa, tem o seu posicionamento em cima das coisas também, então você tem que ter um bom discernimento, bom senso, parar e pensar... É complicado, não é fácil não, você vai trabalhar com informação. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
A linha tênue que separa o manipular do distorcer, da informação para a comunicação, do aprimoramento técnico para o tecnicismo. Não há uma solução à vista: é preciso enfrentá-la. Caso contrário, o melhor caminho é desistir, ir para outra profissão, e porque não, revisitar outros cursos não realizados no passado. Mas é preciso que nesta luta se discuta com mais ênfase sobre que tipo de narrativa de história está sendo orientada em cidades do interior. Como mensagem aos novos jornalistas em meio ao desalento, Fernando Boente explica que é necessário parar com essa utopia de trabalhar em grandes veículos. O problema não é só jornalístico, mas de interesse histórico. Agora o que eu gostaria muito, por exemplo, que se difundisse muito na cabeça dos novos jornalistas que estão saindo ai, que nós precisamos fortalecer a imprensa regional, a gente tem que parar de ficar pensando: eu quero trabalhar na Folha de São Paulo, veículos de imprensa nacional... Eles não tem espaço, eles já tem o quarto poder atuado e nós precisamos levar a imprensa para o país. Nós precisamos entrar, as pequenas cidades, as de pequeno porte, elas não têm imprensa e as sociedades democráticas precisam de imprensa. As pessoas não sabem o que está acontecendo na sua cidade, não sabem o que a prefeitura está fazendo, não sabem que tipo de coisa vai acontecer, porque é tudo muito centralizado em polos. Os profissionais precisam explorar a imprensa e de fato começar a exercer sua função nos espaços do país. É uma coisa que pra mim tem que ser difundida, esquecer essa utopia de grandes veículos, nós precisamos é pensar no jornalismo como uma coisa que tem função e onde ela vem ter fun-
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Paradoxo do cotidiano II
ção? Onde não tem! Então a gente tem que levar pra lá. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
O Jornalismo precisa assumir o seu papel de responsabilidade social. Para isso, por mais contraditório ao que defende o entrevistado, tem de ultrapassar de ser somente um documento histórico por conter informação e pelo tempo. É preciso que ele possibilite ao outro a compreensão sobre a realidade vivida. Aqui está o peso de pensar o Jornalismo para que se tenha uma função específica. Ao romper com a utopia de trabalhar nas grandes imprensas, o debate sobre a história da cidade pode ser entendido, em uma de suas instâncias, pelo meio de comunicação. E se prosseguirmos neste enfoque somos obrigados a reconhecer que o sentido da história está na prática definindo referências para a memória coletiva. Há um determinado momento em que as críticas postas para a profissão vivenciada é conduzida a fazer uma auto-análise. Com todos esses estados de tensão e conflitos expostos, será que o entrevistado se sente realizado com o percurso definido pelo Jornalismo. Eu me sinto, eu gosto do que eu faço. Tenho minhas decepções com a profissão, mas é porque eu convivo com um monte de gente, entrevisto muita gente, vivo um monte de coisas, vejo crime, picaretagem, vejo muita coisa e você vai discrençando, vai perdendo um pouco a crença na sociedade. Como profissional eu me sinto realizado assim, tem muita coisa pra fazer ainda mas são oito, nove anos atuando e assim eu estou satisfeito. Vou continuar nessa linha. (Entrevista, Fernando BOENTE, Out. 2015)
Fernando Boente entrou no Jornalismo pelo impulso consciente por meio da leitura do Gosto pelo Jornalismo e por gostar de ler. Se surpreendeu positivamente na Unitri em sua formação teórica. Ao mesmo tempo em que produzia sentido sobre a base teórica da técnica, desvelou na experiência vivida o esvaziamento proporcionado pelo tecnicismo. A preocupação dos alunos de sala estava majoritariamente em aprender como se manuseia o microfone, e não o olhar analítico da realidade. 229
Gerson de Sousa
No mercado se defrontou com a ausência de ensinamento. E aos poucos a realidade profissional permite identificar que há momentos em que não se tem conhecimento sobre o que será escrito. Ao que parece, a decepção com a profissão ainda não chegou ao seu limite plausível de ter de desisti-la. E, ao recair em outro paradoxo, é preciso pensar que história está sendo narrada ao considerar que a informação pode estar assim destorcida. É foi ao final desse nove anos que Fernando Boente teve que presenciar o fechamento do Jornal Correio de Uberlândia. As cidades precisam de jornalistas para que o público possa saber de outras histórias que são silenciadas pelo interesse de poder politico da empresa. Enquanto permanece em sua luta na produção de sentido, Fernando Boente mantém esse gosto pelo Jornalismo.
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Capítulo 10
Gleide Correa
Impresso
A Maturidade da liberdade criativa na prática jornalística
O
sonho de infância de Gleide Correa era ser professora. No período em que tinha os seus 18, 19 anos, o Jornalismo sequer aparecia como possibilidade pra seguir como profissão. Entre o sonho e a realização de ser
educadora infantil, 1985, e o término do curso de Comunicação Social: Jornalismo do Centro Universitário de Uberlândia (UNITRI), em 2004, há uma distância de duas décadas. É neste intervalo que o sonho de educadora se dissipa ao ponto de que a narrativa da memória no presente a considere como uma outra vida vivida, distante da atuação como editora de redação do Jornal Correio de Uberlândia. O relato de Gleide Correa nos permite revisitar o conceito de alternação biográfica empregado pelo sociólogo José de Souza Martins 2. O próprio sujeito, ao analisar a história vivida do passado, sente tamanha distância em relação ao presente, que o recoloca como uma outra vida. É preciso ter cuidado ao considerar o tema de alternação biográfica para compreender a narrativa de Gleide Corrêa. Primeiro porque embora a própria entrevistada demonstre esse distanciamento de sentido da realidade, temos de considerar essa alternação como elemento analítico, para entender inclusive determinadas avaliações que percorre as preocupações da entrevistada. Segundo, porque a distância 2 Martins, José de Souza. A aparição do demônio na fábrica: origens sociais do Eu dividido no subúrbio operário. São Paulo: Ed. 34, 2008.
Gerson de Sousa
considerada do sujeito sobre si mesmo no passado, não pode ser critério de desconsiderar que há interligação entre elas que demarcam inclusive posições no presente. Então a pergunta que se efetiva logo no início é: de que forma a experiência vivida de educadora infantil demarca ou sinaliza elementos que permitem compreender Gleide Correa como profissional do Jornalismo? Para que se articule essa resposta é preciso apresentar dois fatores históricos que anunciem a experiência vivida pela memória no passado. O primeiro é sobre os desejos vivenciados pela educadora na juventude em outras áreas. E em seguida, como procedeu o contato com o Jornalismo como produção de sentido. E mais precisamente, quais foram os motivos que a conduziram para a tomada de decisão: vou fazer a graduação no curso de Jornalismo. O principal aspecto nesta análise é considerar como essa distância de duas décadas trouxe para a entrevistada um outro sentido interpretativo de sua própria formação. É sintomático que em determinado momento da entrevista, a palavra empregada para a consciência de sua formação seja maturidade. É visível que ao destacar a maturidade, a entrevistada está deslocando para a experiência vivida como fator primordial a que o sujeito é levado ao conhecimento. A experiência, neste caso, é um termo substantivo. As duas décadas entre uma experiência vivida para outra permitiram problematizar a realidade social. Aqui a memória não só desvela como esclarece que o sujeito, mesmo em seu estado de tensão e crise, produziu um valor para os seus enfrentamentos e desafios. Essa produção de valor nos coloca que se está ao contrário de considerar a experiência como gratuita. Ou se formos mais preciso: a enumeração do tempo de anos não indica, de forma automática, a produção de identidade do sujeito. Apenas que houve passagem de tempo. Neste reducionismo do vivido, o tempo, inutilizado para problematizar a experiência vivida, é deslocado como espaço a ser ocupado pelo sujeito no futuro. Como é possível entender essa distância na narrativa do tem234
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po de memória do sujeito: pode ser pelos fatores que ele passa a tornar relevante assim como a análise de si mesmo no processo. Essas considerações demarcam que, para entender a Gleide Correa do presente é preciso compreender sobre os desejos vivenciados pela educadora na juventude em outras áreas. É necessário nesse momento considerar que a juventude também tem seu aprofundamento na experiência vivida. E é esse mergulho inicial que atravessa a história vivida da entrevistada. Antes de decidir pelo Jornalismo Gleide Correa prestou vestibular para o curso de Letras e em seguida para Administração de Empresas. Estava em sua fase inicial da juventude, aos 18 anos. O sentido da memória justifica esses passos como uma tentativa de produzir o sentido da realidade. Eu fazia um monte de coisa, eu comecei... é, aos 18 anos eu dava aula, na escola de ensino infantil. Então acho que fui levada a fazer Letras por conta das aulas, foi “ah, bom, vou seguir a carreira de magistério, é isso mesmo que eu quero e pronto” mas ai acabou que logo acabei desistindo do curso e acabei desistindo de dar aula. (Entrevista, Gleide CORREA, Nov. 2015)
Qual o sentimento de você ter de desistir do seu sonho de infância pelo motivo de não encontrar sentido? Num momento anterior, a resposta acima Gleide Correa já havia alertado que a desistência do curso de Letras veio por falta de identifica ção. E com a ausência da identificação, dissipa-se também a projeção de prosseguir a carreira na educação infantil. Aos 18 anos, a entrevistada se vê diante do primeiro dilema demarcado em sua história vivida. Então, quando eu penso assim “ah, porque que eu resolvi fazer jornalismo”, eu não cresci, não fui uma menina que cresceu sonhando “ah, eu quero ser jornalista” coisa que as pessoas, todo mundo sonha “ah, que que você quer ser quando crescer?”. Eu enquanto criança eu queria, sempre quis, ser professora. “Quando você crescer o que você quer ser” “eu vou ser professora”, mas ai essa mudança... (Entrevista, Gleide CORREA, Nov. 2015)
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Mas aí veio outra mudança. O principal sintoma em que podemos desvelar no processo de construção de identidade do sujeito vem em compreender como ele vivencia os dilemas da experiência vivida. No caso de ser educadora, Gleide Correa passa por uma situação de ruptura com o sonho da infância. Não se irá aqui apro fundar de onde surge a opção por ser professora, mas o elemento primordial é que no momento em que desiste, no momento em que não há mais identificação, há o primeiro processo de alternação biográfica. Do sonho de infância, da atuação de ser educadora infantil e do início da graduação em Letras. Todos esses fatores são então colocados a margem para que prossiga novo caminho. O problema desse novo caminho é que o sujeito precisa sempre, em sua produção de sentido, encontrar no passado outros indicativos que demarquem no horizonte da sua história de vida. Mesmo que seja no horizonte da preocupação metafísica. Mas no caso de Gleide Correa essa referência se localiza mais na experiência prática do presente da juventude, sem atribuir fato ao passado. Quando decidiu iniciar e em seguida desistir do curso de graduação em Administração de Empresa, Gleide Correa estava em sua primeira experiência em um Jornal. Ai um ano depois eu já estava trabalhando num jornalzinho que tinha, um jornal aqui de Uberlândia que era aquele informativo comercial e diário, que era só de classificados, e ai... mas também, lá não é jornalismo, né? É um jornal mesmo de anuncio, então a minha função era só atender os clientes, receber os anúncios e passar pro pessoal que fazia a montagem do jornal. (Entrevista, Gleide CORREA, Nov. 2015)
A narrativa da memória de Gleide Correa nos indica que a área de Jornalismo entrou em sua vida como algo inesperado. Mais do que isso: surge no momento em que desiste materialmente de realizar o sonho de ser professora para se estabelecer como nova produção de sentido. E é assim em estado nu, sem as roupas do sonho, que a entrevistada aos 19 anos passa a construir essa nova narrativa biográfica. Qual era a sua concepção de Jornalismo? Se por um lado o ser professora parece que a entrevis236
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tada esteja utilizando sua memória individual, no campo do Jornalismo não pode escapar da memória coletiva. Porque é o encontro com o inesperado no presente que a leva a conceituar o sentido de algo que sequer tinha compreensão. Da memória coletiva do passado, as referências precisam se tornar relevantes para produzir sentido no presente. Gleide Correa tinha alguma concepção sobre o Jornalismo quando teve seu primeiro contato com o trabalho? A resposta tem de ser buscada no interior dos dilemas do sujeito. Eu não sou de Uberlândia. Eu nasci no interior, estudei em escolas de zona rural. Então a gente não tinha muito essa visão, embora ouvia muito rádio e acompanhava as notícias por meio do rádio porque lá na roça nem TV não tinha, mas eu não tinha muito essa... pra mim assim, era algo que eu nemm... ah, alguém tá falando aqui no rádio, está dando as notícias aqui, mas eu não tinha esse conceito, não sabia como que funcionava isso. E ai abandonei de vez a vontade, o sonho de dar aula e fui para o jornalismo. (Entrevista, Gleide CORREA, Nov. 2015)
A experiência do passado tornado relevante é somente como ouvinte em que mais a mídia se efetiva como sujeito do que esse processo de ser receptor. A refe rência superficial de quem veio e estudou e viveu na área rural está definido por este elemento: não sabia como funcionava isso. Gleide Correa não sabia o conceito de Jornalismo nem na memória coletiva da infância, nem nos primeiros anos em que esteve envolvida com o jornal. Mas uma coisa é taxativa: o movimento da experiência irrompeu com o passado e deslocou para outro horizonte o sonho. eu nem lembro mais de querer ser professora, não me arrependo nem um pouco “ai que pena não fui cedo” não, fiz uma escolha que eu não me arre pendo dela em nenhum momento, quando eu fui trabalhar com esse jornal e depois em 1999 vim trabalhar no Jornal Correio (de Uberlândia), que também não era na área de jornalismo, mas até então eu não sabia o que é um jornalista, o que o jornalista faz né, não tinha essa noção, talvez por conta da forma ção mesmo. (Entrevista, Gleide CORREA, Nov. 2015)
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Esse desconhecimento sobre o sentido da produção jornalística se efetiva como particularidade de Gleide Correa. É no momento em que se relacionará com essa área que sua experiência vivida irá atribuindo sentido. Por um lado, teremos de identificar como se constitui essa produção de sentido na prática da profissão para que somente duas décadas depois estudar sobre o conceito teórico de Jornalismo. Em 1991, a entrevistada passou a ser contratada pelo Jornal Correio de Uberlândia.3 Embora havia uma relação próxima da redação, a atuação como diagramadora a conduziu para um outro embate sobre o sentido na realidade. É preciso reconhecer que a decisão da entrevistada em fazer o curso de Jornalismo veio de um momento decisivo em sua vida. Trata-se do período em que o sujeito está diante de um determinado quadro: o trabalho que se faz no presente impos sibilita que o eu possa construir uma identidade. Ou se preferirmos: o momento em que o sujeito se descobre que não é sujeito de seu trabalho. Ou que as determinações pelo qual está atuando o redefine por meio da rotina. É neste contexto que a memória coletiva de Gleide Correa demarca na narrativa o ponto de referência que a irá conduzir para o futuro. Ah, me lembro direitinho assim, eu já estava no jornal já há bastante tempo. Aí eu fiquei, bom, ou eu vou fazer jornalismo e vou virar repórter: porque tudo que eu queria era ser repórter. Ou então vou mudar de ramo, porque não dá pra eu ficar mais a minha vida inteira diagramando jornal. Porque a diagramação ela é legal mas ela é um processo muito técnico, e ela te permite pouca criatividade. Você tem uma página que você tem que fazer um desenho pra aquela página, mas você tem que respeitar o projeto gráfico do jornal. Então se é para o factual, não dá muito pra você inovar, pra você “ah, perai, então vou fazer uma página com uma foto de ponta cabeça” não, você tem um padrãozinho que você segue, então foi muito dessa vontade de fazer algo diferente, de ter novas perspectivas que eu resolvi fazer jornalismo. (Entrevista, Gleide CORREA, Nov. 2015)
3 O Jornal Correio de Uberlândia encerrou suas atividades em 31de dezembro de 2016.
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A frase que justifica o motivo que a conduziu para fazer o curso de Comunicação Social – Jornalismo em si já está permeado de crítica. A primeira é de ordem subjetiva: não dá para ficar mais a vida inteira diagramando jornal. Trata-se de um grito para si mesmo. E nessa exteriorização Gleide Correa passa a enfrentar então o segundo dilema: ser diagramadora deixou de ter sentido, passou a ser uma atividade sem identificação. Para se manter no jornalismo, do qual não se efetivou como sonho de infância, a entrevistada passou então a construir esse desejo de se tornar repórter como ponto de projeção. Pois a decisão sobre a própria vida estava neste elemento: ou me torno repórter ou mudo de profissão. Entretanto, temos de medir que a decisão de fazer o curso de jornalismo esteve estruturado nesta proposta de criar perspectivas no campo subjetivo e, porque não, no campo objetivo. Pois a primeira crítica desferida por Gleide Correa ao Jornalismo veio do campo da diagramação. O trabalho em si mesmo é bom. O problema está em que se trata de algo muito técnico. O que implica esse tecnicismo? O termo mais doloroso apresentado pela entrevistada é a perda de criatividade. Se articularmos o conceito de criatividade com o de humanização da diagramação, teríamos de considerar que a crítica que se efetiva está calcada na objetificação. A página do jornal já tem um padrão daquilo que irá se desenhar. O sujeito que a desenha deve distribuir as imagens e os textos nas páginas conforme o projeto gráfico de cada jornal. Isso significa: seguir um padrão definido. Em busca dessa nova perspectiva em ser repórter, de encontrar identificação subjetiva e objetiva, Gleide Correa inicia o curso de Jornalismo na Unitri em 2001. E se considerarmos que os acontecimentos passados já a levaram a uma compreensão dos dilemas sobre o que é o Jornalismo, por outro havia o fator idade. Há uma idade ideal para se fazer a primeira graduação? A resposta da entrevistada deixa claro que se fosse ontem, se tivesse iniciado o curso com 18 anos, possivelmente
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teria desistido. O ponto forte é você iniciar um curso em que o principal ponto é a maturidade. Eu costumo dizer que eu entrei na faculdade na época que as pessoas já fizeram doutorado, já fizeram pós doc. e eu estava entrando na faculdade, mas pra mim foi uma época muito boa, eu acho que entrei na hora certa e que tinha que ser mesmo naquela época e foi bem legal. (Entrevista, Gleide CORREA, Nov. 2015)
Gleide Correa entrou na universidade aos 34 anos. No ritmo rápido em que se está às vistas no tempo atual de fazer a graduação em quatro anos, mestrado em dois e doutorado em três ou quatro anos, a soma da entrevistada está correta. Um jovem que entra na universidade aos 18 e segue toda essa linha acadêmica, aos 28 já terminou o doutorado. E basta somar mais um para o Pós-Doc, que ainda está distante dos 34 anos. Por outro lado, quando Gleide Correa inicia sua formação já não está mais nua dos dilemas de ser jornalista. A experiência vivida e o dilema posto sobre encontrar no Jornalismo uma nova perspectiva de vida a leva a definir um horizonte de formação, que nem sempre o sujeito de 18 anos possui como problema existencial. A primeira pergunta era sobre esse fator maturidade. Para Gleide Correa, a maturidade se tornou o elemento de força em sua formação? A questão é saber se do aspecto social, coletivo, a idade, esse enfrentamento de geração, se tornou fator positivo ao outro. Então talvez tenha sido a questão de maturidade mesmo, mas começar uma faculdade aos 34 anos, a idade não foi problema em momento algum, tanto de relacionamento com a turma. Tinha um relacionamento super tranquilo. É claro que tinha divergências como acontece em qualquer ambiente mas o fator idade não influenciou assim, não foi algo que foi mais difícil, não, não teve. Pra mim, acho que a idade ela me deu... eu tinha uma maturidade que eu não tinha aos 19 anos, aos 18 anos, então eu estava muito mais consciente do que eu queria, do que eu precisava fazer e então, pra mim, o meu aproveitamento foi muito melhor. Talvez se eu tivesse feito jornalismo aos 18 anos, eu 240
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não teria tido a mesma consciência o mesmo aprendizado que eu tive começando aos 34 anos de idade, né? (Entrevista, Gleide CORREA, Nov. 2015)
A maturidade lhe concedeu ter consciência dos desafios que a levaram no decorrer da formação em Jornalismo. Esse reconhecimento faz com que a entrevistada apresente, por meio da memória, uma primeira análise do que é o conhecimento. O aprendizado não se faz de forma unilateral ou, se preferirmos, colocando a sua história de vida como dissociada do processo educativo. Ainda mais quando a experiência vivida se efetiva como problema teórico e como método para a produção de identidade. Gleide Correa é enfática ao revelar que em nenhum momento teve alguma indefinição se deveria prosseguir o curso de Comunicação Social – Jornalismo na Unitri. Os semestres lhe possibilitaram reforçar a convicção de que queria ser repórter. Mais precisamente: repórter de impresso. E durante a entrevista, em meios aos risos, ela relembra como essa definição de ser repórter de jornal impresso a conduziu a uma nova realização profissional. Mas os risos são assim desfeitos em determinado momento em que a realização do presente se defronta com os temores sentidos do passado. A decisão de fazer o curso de Jornalismo, para deixar de ser diagramadora para repórter, redefiniu o sentido da perspectiva do curso. Gleide Correa já tinha conhecimento de como funciona a profissão. Então a expectativa deixa de ser no conflito objetivo, sobre o jornalismo, e passou a ser problema de ordem subjetiva. A frase em que pronuncia “ou sou repórter ou mudo de ramo” ecoou como elemento de problema metodológico e teórico. E antes da experiência vivida apresentar outros resultados do qual a memória agora testemunha, sobreveio o medo e a insegurança. Minha expectativa ela foi além do que eu esperava. Porque como eu já trabalhava aqui no jornal, então eu já conhecia, já convivia com essa rotina de jornalista e tudo. Mas eu sempre tinha aquele medo, aquela insegurança de assim “se eu vou conseguir”, “será que eu vou dar conta? E aí, a hora que eu estiver lá fa241
Gerson de Sousa zendo uma matéria eu vou conseguir fazer igual meu colega está fazendo? Não vou dar conta, não vou saber o que perguntar” aquelas coisas todas e felizmente eu acho que em função de muito trabalho mesmo, eu sempre digo que as coisas nunca caem de graça pra gente, de estudo mesmo, de batalhar ir atrás, acho que consegui fazer um trabalho como repórter razoável. Claro, sempre tem muito a melhorar, muito a aprender mas consegui fazer um trabalho que eu avalio que foi razoável. (Entrevista, Gleide CORREA, Nov. 2015)
O paradoxo da angústia de Gleide Correa está na incerteza da certeza de sua própria decisão de cursar Jornalismo. A crítica, como diagramadora, de que o projeto gráfico do Jornal impossibilita o processo de criatividade, porque já está defi nido como padrão. O diagramador executa um trabalho técnico de organização de imagens e textos, sem que consiga efetivar a individualidade neste processo. Para atingir essa individualidade, essa criatividade, a entrevistada decidiu arriscar neste projeto de ser repórter. Mas é justamente no momento em que se posiciona, que o temor de se irá conseguir fazer mesmo o jornalismo lhe tomou de assalto. Poderíamos traduzir a pergunta “será que vou saber o que perguntar ao entrevistado” como: será que tenho criatividade suficiente para que eu possa ser jornalista? Como se sabe, o desejo de ser nem sempre acompanha o temor de desistir. Para que esse caminho não fosse levado à desistência era necessário trabalhar, batalhar, ir atrás para atribuir sentido ao aprendizado e o transformar no que se fundou como conhecimento conceitual. Ainda mais quando se compreende que Gleide Correa teve toda a sua formação de Ensino Fundamental e de Ensino Médio na zona rural. Por isso é que o termo que ela define sua formação teórica é a persistência. E se estendermos a persistência para o relato anterior, chegaríamos a interpretação que a entrevistada precisou ultrapassar os seus próprios limites para que se chegasse a um resultado de formação que ela classifica como razoável. Eis o teor da afirmação: as coisas nunca caem de graça.
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“Porque eu acho que tudo que a gente se propõe a fazer, se você não tem persistência e não persegue tudo aquilo, todos os caminhos que precisam ser percorridos, você não vai conseguir ter um bom resultado no final”. (Entrevista, Gleide CORREA, Nov. 2015)
A persistência pode ser localizada como uma resposta à angústia de Gleide Correa no temor de saber se conseguiria realizar o trabalho jornalístico. Talvez soe surpresa para alguns ao rever que, o desafio para a entrevistada não se apresenta de forma prática. A entrevistada já estava acostumada com o processo da redação e apresentava crítica inclusive da rotina com que as coisas se moviam. Se considerar mos este quadro, teríamos então de deslocar que o quadro de preocupação estava mais premente na ordem teórica. A interpretação aqui a ser realizada é que a dúvida teórica nesse processo sobre “o saber o que perguntar ao entrevistado” está mais articulada em uma posição do método, que define o enfoque da entrevista, do que de procedimento de listar perguntas. E não será esse o fator adicional que Gleide Correa busca como atributo de valor para o ser jornalista? Ao ser questionada sobre a memória de formação teórica de quais disciplinas a marcou ela faz esse contraponto entre o desvelar da teoria e as da prática, esta últi ma com quem já havia produzido uma leitura por meio da experiência vivida. A questão apresentada para a entrevistada é se tem alguma disciplina que a marcou em sua graduação. A resposta vem em tom de esclarecimento: Das disciplinas que mais, que assim, que eu me lembro, talvez pelo contexto, pelo professor, por tudo, era a disciplina de Realidade Política, que era um tema que acabava que a gente tinha boas discussões, bons debates. Que isso eu acho que fez uma diferença na minha formação que a gente acaba que faz uma discussão mais ampla, mais geral. As disciplinas mais práticas, por exemplo, as disciplinas de rádio, as disciplinas de telejornalismo e mesmo de impresso, claro que elas agregavam mas era algo que eu já estava mais familiarizada, por trabalhar no jornal já há bastante tempo. Eu já tinha uma certa familiaridade porque também já convivia com pessoas que trabalhavam em TV, em rádio. Então elas não foram assim algo desconhecido pra mim. Como 243
Gerson de Sousa eu já tinha bem essa familiaridade, claro que elas sempre acrescentam, mas não foram algo assim “nooossa, então é assim que faz TV, é assim que faz rádio”, não, eu já tinha essa noção. (Entrevista, Gleide CORREA, Nov. 2015)
As boas discussões, os bons debates são pontos essenciais para dirimir as dúvidas e ir se afirmando neste processo de construção de identidade. São esses pontos que qualificaram a formação de Gleide Correa e reverbera como imprescindível para responder sua principal indagação: “saber o que perguntar”. Uma olhar pouco mais profundo sobre essa indagação nos levaria a afirmar que o tema da Realidade Política lhe possibilitou não só saber o que perguntar, mas de qual lugar do conhecimento se efetiva a realização da pergunta. Poderia recair numa armadilha em considerar que somente as boas discussões seriam suficientes para esse processo de aprendizado. Entretanto, as indagações de Gleide Correa nos impulsiona para outro posicionamento que nos permite entender outra dimensão do que consiste estudar com persistência. Se a memória coletiva elege a disciplina Realidade Política como referência, a entrevistada entoa que se trata de exceção. Eis o tom que percorre a resposta sobre a análise de sua formação teórica. E então se dispara o questionamento: você considera que a forma como é trabalhado o ensino em jornalismo possibilita ter uma construção crítica? Não, não, ela não possibilita, a formação teórica, eu não posso dizer de outras faculdades porque eu não conheço a grade curricular delas, mas a formação da Unitri ela deixa bastante a desejar. Se a gente não complementa isso, você realmente sai com muita deficiência, muita mesmo. Então quem ficar só na grade curricular vai ter mais dificuldade quando chegar no mercado de trabalho, porque não tem esse embasamento. (Entrevista, Gleide CORREA, Nov. 2015)
A preocupação latente de Gleide Correa está em quem irá para o mercado de trabalho sem ter o conhecimento teórico suficiente. É o que está premente em ter mais dificuldade quando tiver de ir para a realidade social. Ou terá dificuldade sobre o que perguntar ao outro. E assim a entrevistada relata que participou de um 244
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grupo de estudos que passou a questionar e exigir questões mais profundas nas aulas teóricas. E uma delas, da qual menciona, é da disciplina de Teorias da Comunicação. Ao se recordar das aulas, a memória desvela o movimento que o sujeito fez no passado para se tornar sujeito. Então, ela precisava, em Teoria da Comunicação... a gente estava muito, muito superficial, sabe? Tinha pontos que a gente precisava e que poderia ter sido melhor aprofundado e que a gente fez isso em separado, pra poder ter essa, esse ganho mais de conhecimento, de aprendizado. (Entrevista, Gleide CORREA, Nov. 2015)
A orientação subjetiva diante do quadro da sua história de vida era buscar complemento para suprir também as deficiências de formação de Ensinos Fundamental e Médio. E quando o sujeito toma consciência dos seus próprios limites ele faz um movimento dialético para que consiga compreender a realidade social. A solução 245
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encontrada por Gleide Correa, ao revisitar pela memória, é recorrer aos próprios sujeitos professores para que indicasse de onde retirar determinadas concepções que a levariam ao conhecimento. Eu fui atrás dos próprios professores pra que eles me dessem caminhos. Peraí olha isso aqui pra mim, onde mais eu posso aprofundar as coisas sobre esse assunto? Porque eu preciso saber mais sobre isso. Sem entrar na questão “ah, o que você tá me ensinando aqui tá pouco” não, eu preciso de mais. E ai fui buscando. A gente tinha um grupo de estudos, que a gente estudava muito juntos e a gente buscava isso sabe? Ai acabava que um ia ajudando o outro e a gente lia, fazia as resenhas, compartilhava tudo pra poder conseguir superar, suprir essa carência que a gente encontrava nas disciplinas. . (Entrevista, Gleide CORREA, Nov. 2015)
A insistência em desenvolver esses parágrafos sobre os dilemas teóricos de Gleide Correa está sustentado em dois fatos primordiais. O primeiro é que a experiência vivida lhe possibilitou considerar que a parte prática na universidade foi boa, a partir das orientações dos professores, mas não causou surpresa. O segundo é que toda essa crítica que se efetiva no ensino teórico da universidade está alicerçada nesta busca subjetiva, que toma corpo coletivo no grupo de estudos, de aprender para saber o que perguntar. E mais uma vez, temos de esclarecer que é na prática onde nasce o problema teórico conceitual de Gleide Correa. Ao ser indagada para narrar algum fato que tenha se defrontado, como repór ter, com sua deficiência, a entrevistada cita a área Política. Hoje a memória revela que naquele momento do passado não estava pronta para que pudesse pegar qual quer matéria. Eu me lembro que no meu primeiro mês que eu estava no jornal eu fui cobrir câmara e era um assunto que eu não estava totalmente familiarizada. E aí assim, eu tinha todo o suporte do editor, que me orientava e me conduzia, “deve ser discutido isso e isso, você precisa ficar atenta a isso e isso”. Não vou me lembrar, isso foi em 2005, não vou me lembrar o que exatamente qual que era a sessão do mês, mas lembro que era o mês de março, mas… Enfim, eu não
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podia simplesmente pegar a pauta aqui e ir pra lá sozinha, sem essa orientação, que eu ia ter certamente muito mais dificuldade. Muito mais. . (Entrevista, Gleide CORREA, Nov. 2015)
E a outra pergunta se torna inevitável: qual é esse sentimento que toma força no sujeito que está no mercado de trabalho e toma consciência de que não está prepa rado para a atividade que irá fazer naquele momento? Nossa isso é péssimo. Você pensa assim “caramba, onde que foi que eu errei? Onde que eu esqueci de prestar atenção nisso?”. Isso acontece ia e voltava e o editor fazia uma perguntinha básica? “Opa, perai, esqueci, isso eu não sei”. Então aí você fala “caramba, isso eu deixei passar”. Isso acontece. Isso aconteceu já. (Entrevista, Gleide CORREA, Nov. 2015)
A revelação do testemunho assim se materializa com os dilemas da prática. Num primeiro momento, a memória de Gleide Correa efetiva a disciplina de Realidade Política como referência de sua formação. E justifica que se recorda porque aconteceram nas aulas boas discussões que se traduziram em conhecimento diante de seu aprendizado sobre Jornalismo. Mas com mesmo ímpeto, a memória eleva para a superfície da consciência também outro fator decisivo: a cobertura de política em que o eu, de repórter, esteve totalmente dimensionado ao conhecimento do editor. Sem a orientação dele, a entrevistada ficaria completamente perdida. E esse sentimento de se descobrir despreparada diante de uma profissão que exige responsabilidade social ela traduz como péssimo. Existe alguma ligação entre esses dois pontos para serem estabelecidos de ordem hierárquica como referência na construção de identidade do sujeito por meio da memória? A resposta parece atravessar a preocupação da prática. Os indicativos já tornam precisos. Gleide Correa tem consciência de que sua formação escolar inicial tem problemas de ordem teórica. E quando decidiu optar por fazer o jornalismo estava diante deste quadro, em que a universidade se apresenta como o espaço e tempo para lhe dar essa base. Mas os dilemas na universidade também a remeteram para um ca247
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minho preciso: é preciso fazer com que o conhecimento atinja o mesmo patamar de esclarecimento das disciplinas como Realidade Política para que o sujeito jornalista não atravesse o péssimo sentimento de se descobrir despreparado. Mas em determinado momento a entrevistada relativiza essa missão teórica da universidade para deslocar para outra ponta: é o mercado que tem essa missão de formar o jornalista. É claro que aqui a entrevistada está distante de afirmar que Teoria é desnecessária. A teoria é importante para saber o que perguntar. E é por isso que ela remete a importância do estágio. Diante deste quadro de dilema que é importante entender qual a concepção de Jornalismo formulado por Gleide Correa neste paradoxo instaurado entre a teoria e a prática da academia e do mercado. A resposta caminha no sentido de desvelar o sentido produzido depois de anos de profissão. Pra mim jornalismo é a profissão mais apaixonante do mundo. Mais estressante, mais cansativa, mais remunera mal, mas é a mais gratificante. Sabe, é onde ela te permite a contar as histórias e principalmente a ter um olhar. Porque assim, a gente é muito privilegiado porque a gente está no meio dos acontecimentos na hora em que eles estão acontecendo. Então isso pra mim não tem… Eu não vejo nenhuma profissão que te dá essa oportunidade e que exige que você esteja atento pra ver todos os lados daquela notícia, daquele fato, daquele acontecimento. Então eu defino isso. (Entrevista, Gleide CORREA, Nov. 2015)
Esse é o sentido encontrado por Gleide Correa em contraponto ao padrão, o cerceamento da criatividade identificado pela estrutura do projeto gráfico durante o seu trabalho como diagramadora. Ser jornalista é ser um sujeito privilegiado por estar no meio dos acontecimentos no momento em que eles estão acontecendo. E este movimento exige atenção que as histórias a serem narradas ao público estejam devidamente efetivadas por esse olhar. Ao contrário da estrutura do projeto gráfico, a responsabilidade do jornalismo está estabelecida de que o aprendizado é todo dia. Por isso a prática é uma formadora.
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A partir do momento que você acha assim “não, pronto, eu já sei tudo” é porque tem uma coisa muito errada. Você nunca sabe muito, nunca. Então desde uma abordagem diferente que eu posso fazer, o desafio do jornalismo é justamente esse, é você pensar na mesma pauta, mas com um gancho diferente. “O que eu posso fazer diferente? O que eu posso fazer de melhor?” Então é esse aprendizado, essa formação ela é contínua. Não dá pra parar “ah, não, já tem dez anos, então ó, posso cruzar o braço que já sei tudo”. Nunca. Aprendo todo dia com esses meninos novos que tão chegando aí. Então é essa luta diária. (Entrevista, Gleide CORREA, Nov. 2015)
O desafio do jornalismo que a levou a formular a pergunta: “O que eu posso fazer diferente? O que eu posso fazer de melhor?” é a saída encontrada por Gleide Correa para transformar o negativo da angústia do passado em positivo estímulo para viver o presente. Trata-se de como o sujeito em meio a esse processo de produção de sentido consegue em um período de duas décadas, ir atravessando seus dilemas em meio a tensão e conflitos. Aprende-se quando está na rua entrevistando. E quando se é editor, aprende-se com os novos estagiários que estão enfrentando os dilemas da rua. Poderia se objetar aqui que a tensão desvelada a todo momento até aqui de Gleide Correa está somente na ordem subjetiva. E esta objeção tem sim razão. E tam bém uma justificativa: fomos levados para essa ordem subjetiva no momento em que a entrevistada recorre para suprir as carências teóricas de sua formação, sem que nos leva a discutir sobre as disciplinas técnicas. Ao afirmar a narrativa por esse caminho, chegamos então em outro lugar que exige a retomada da articulação do subjetivo e o objetivo. E o problema tem de ser apresentado sem rodeios: o repórter, ao contrário do diagramador, é livre para materializar os seus desejos e criatividade no exercício da profissão? Não teria também o repórter que se recorrer a uma estrutura já definida sobre o que é notícia, ao manual de redação, em que a liberdade voltaria a ser di-
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mensionada por outras questões? E em que medida essa liberdade do sujeito que escreve pode ser dissociada da ideologia da empresa que o contrata? É com esse teor que a entrevista perpassa agora para o debate objetivo, a ter início com o principal dilema: se o ponto importante de ser jornalista é contar histó rias, é preciso entender qual dimensão de história perpassa pelo conhecimento da entrevistada. E em que medida ao ser desvelada a determinação daquilo que se escreve, de que forma essa concepção de Jornalismo pode sofrer abalo no futuro. Para isso é necessário revisitarmos a concepção de Jornalismo exteriorizada por Gleide Correa. Pois se por um lado, há o elemento dito positivo, “Jornalismo é a profissão mais apaixonante do mundo”, há o dito negativo: “Jornalismo é a profissão mais estressante, mais cansativa, mais mal remunerada”. Se atentarmos para o negativo atravessado pela entrevistada, entendemos que se trata de elementos objetivos na qual o sujeito se defronta em conflito e estado de tensão. Essa identificação estabelece outro peso para o fator que será discutido a partir daqui. O debate é que ao considerar que o jornalista está sempre em um local privilegiado para narrar, qual a consequência de esta narrativa ser submetida à determinação econômica e ideológica da empresa? A resposta a essas interrogações agora são deslocadas para a análise de Gleide Correa. A construção da pergunta perpassa pelos três fatores importantes. A primeira: o repórter sabe pra quem ele escreve? E ele escreve pra o leitor, ele tem essa dimensão do leitor? Segundo fator: Ou escreve ás vezes muito mais pro seu ego, pro seu posicionamento? Terceiro fator: Ou ele escreve muito mais pra ideologia da empresa onde ele está? É claro que o que mais marca é a linha editorial da empresa. Não tem jeito. Por mais que eu queira escrever de uma determinada forma, mas eu vou ter que seguir a linha editorial da empresa, não tem jeito. Então isso, se for pra pesar es ses fatores, primeiramente é a linha editorial da empresa. Não tem como fugir dela. Não adianta eu querer fazer uma matéria criticando o governo Dilma se a minha empresa é mais aliada ao governo Dilma, não vai permitir isso. Então
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esquece, isso não vai acontecer. Então primeiramente eu tenho que seguir a linha editorial da empresa. (Entrevista, Gleide CORREA, Nov. 2015)
A resposta da entrevistada demarca o primeiro sentido hierárquico para a qualificadora objetiva da produção Jornalística. É o momento em que a liberdade subscrita na criatividade do jornalista é posta em confrontação com a estrutura de determinação do Jornalismo. É preciso seguir a linha editorial da empresa. Embora essa afirmativa seja plausível, por se tratar de uma empresa que possui como meta a obtenção de lucros, o fato importante é considerar qual a intensidade atinge e redefine o sujeito jornalista. Pois embora se trata de empresa, o jornalista produz matéria para o público, como se pode perceber pela defesa de Gleide Correa. E assim, surpreende a continuidade da resposta de Gleide Correa. Na ordem hierárquica, ela analisa e problematiza que o público vem depois da ideologia da empresa e do ego do jornalista. Tirando a linha editorial, muitas vezes o repórter esquece que ele está escrevendo pro leitor. Ele escreve muito mais pra ele, pra seus pares, do que para o leitor. Porque quando você está escrevendo pro leitor, você tem que perguntar “e eu com isso?”, “o que isso tem a ver? E aí, o que isso vai me interessar?”, né? Se colocar no lugar do leitor pra saber “e ai, o que isso que você está dizendo aqui me interessa?”. Então as vezes ele esquece um pouco disso. Por isso as vezes falta um pouco de aprofundamento, um pouco de apuração, na hora de você ir pra sua matéria, pra sua pauta, pra que você possa entregar mais pro seu leitor, entregar mais algo que interessa a ele e não simplesmente um registrozinho do factual. (Entrevista, Gleide CORREA, Nov. 2015)
“Muitas vezes o repórter esquece que ele está escrevendo pro leitor”. Quais as implicações para se pensar o sentido do Jornalismo ao considerar esse esquecimento do leitor? A frase em cima já funda um problema teórico para conceituar o jornalismo. E esse problema tem duas agravantes que se torna necessário levar em conta na análise. Primeiro, é porque é o momento da narrativa em que Gleide Correa reú ne os seus conhecimentos teóricos e instaura um problema justamente na prática, 251
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lugar fundante em que defende como lugar da construção crítica do jornalista. Para quem considera que o constante aprendizado se efetiva na prática, considerar o esquecimento do leitor é sintomático. A segunda agravante é que temos de revisitar o conceito de Jornalismo formulado por Gleide Correa para realizar o enfrentamento da frase. O termo gratificante que ela utiliza para demarcar o que é o Jornalismo está diretamente vinculada a essa possibilidade de estar em uma profissão que “permite contar as histórias e principalmente a ter um olhar”. Há uma distância entre contar as histórias a partir dos diversos olhares em contraponto ao fazer “simplesmente um registrozinho do factual”. E o sentido desta agravante está justamente em compreender esse estado de enfrentamento entre o cotidiano e a rotina da produção jornalística. Se muitas vezes ele esquece, podemos considerar que há outros momentos em que o jornalista lembra do leitor como referência. A diferença entre o cotidiano e a rotina da produção jornalística pode ser entendida assim nesta concepção teórica. O jornalista quando estiver naquele momento privilegiado precisa pensar para além de si, da ideologia da empresa, e do simples registro do factual. Ele precisa tomar consciência de que sua responsabilidade social tem de ser materializada em sua projeção e identificação com o público. As perguntas a serem formuladas pelo jornalista, e apresentadas por Gleide Correa, parecem, num primeiro momento, soar como da ordem subjetiva do jornalista: “e eu com isso?”, “o que isso tem a ver? E aí, o que isso vai me interessar?” Mas quando a entrevistada se posiciona de que é necessário o jornalista se colocar no lugar do leitor, para se alcançar a profundidade do saber, ela aposta no interesse público. Eis aqui a primeira resultante do enfrentamento do sujeito jornalista em meio a determinação econômica. Mas o segundo problema, para além do esquecimento do público, é que o jornalista só lembra de escrever para si mesmo e para os seus pares. As consequências desse procedimento podem ser sentidas no complemento da 252
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frase de Gleide Correa: problemas de apuração, falta de aprofundamento, um registrozinho do factual. Se as perguntas com interesse do leitor não são formuladas pelo jornalista, é porque ele não está cumprindo com o seu papel de ser jornalista. Ao ser indagada sobre o dia a dia de um jornalista, Gleide Correa defende que para se estar preparado para a profissão é preciso ter alguns procedimentos: ler os principais jornais do dia, preparar e estudar a pauta, entender os dilemas e verificar as angulações e produzir entrevista e texto tendo como referência o leitor. Mas nem sempre este cami nho é cumprido. E aqui está a instauração da rotina no jornalismo. Aí você pode me perguntar “mas isso acontece todos os dias?”. Não, infelizmente a maioria dos profissionais, não sei se por tempo ou porque, eles não fazem muito essa tarefinha de casa de ler, de saber que que está acontecendo, de estudar a pauta dele. Infelizmente isso não acontece, mas era o que devia acontecer. (Entrevista, Gleide CORREA, Nov. 2015)
Infelizmente isso não acontece no dia a dia. Temos aqui um referencial suficiente para caminharmos para o outro debate: o sentido do valor histórico do jornalismo diante deste estado de conflito da determinação econômica e do questionamento da pragmática da atuação do jornalista, na ordem subjetiva. A pergunta chave desta pesquisa então se exterioriza: Você considera que o Jornalismo tem um valor histórico e por que? Claro, ele tem valor histórico, porque é por meio do Jornalismo que a gente descobre, que a gente tem o registro de vários acontecimentos importantes que vão ficar aí marcados ou que já marcaram pra sempre. É preciso ter um cuidado de não achar que o Jornalismo é o quarto poder, como muita gente acha. Não. O jornalismo tem a simples função de mostrar os fatos, perseguir a verdade dos fatos a qualquer custo, e mostrar todos os lados. Se a gente for pegar pela história tem muita coisa aí mostrando, até na história atual recente que é contada pelo jornalismo. O jornalismo que vai lá, registra e mostra tudo isso. (Entrevista, Gleide CORREA, Nov. 2015)
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Ao elencar o registro do fato como fator importante, a primeira indagação é se há um reducionismo aqui referente ao processo de produção jornalística. O segundo é sobre a distinção entre acontecimentos importantes que ficam marcados no registro do jornal e em seguida se torna história. Mas o mais importante é retornarmos para o estado de tensão e conflito da rotina jornalística e sobre o “muitas vezes” do esquecimento do leitor para indagarmos: será que o repórter tem consciência, no momento em que ele está produzindo a matéria, de que aquilo que ele escreve é histórico? No primeiro momento Gleide Correa retorna com uma afirmativa quase em tom interrogativo. “Ele, pelo menos, deveria ter essa consciência. É difícil falar assim ‘ah, todos os jornalistas têm consciência’, não sei.” (Entrevista, Gleide CORREA, Nov. 2015) Mas o prosseguimento a conduz novamente para o valor da história da mídia para o registro. A minha impressão é que na maior parte das vezes sim. Que ele tem essa consciência, porque ele sabe que aquilo que ele está escrevendo ali vai ficar registrado pra sempre. Que ali não vai acabar. Não vai acabar. Sempre, se você faz uma coisa, você descobre, tem um furo de reportagem bacana, aquilo ali vai ficar pra sempre, sempre, sempre, sempre, daqui 20, 30 anos, olha “essa história começou com a reportagem de fulano de tal, que descobriu isso e isso e isso”. Então vai ser lembrado. (Entrevista, Gleide CORREA, Nov. 2015)
A demarcação de que ele está escrevendo e ali vai ficar registrado nos obriga a fazer uma análise direta da crítica desferida por Gleide Correa sobre a necessidade de ir além do registrozinho do factual. E em meio ao contexto é preciso questionar se o valor histórico do Jornalismo está enquanto registro ou enquanto construção crítica. O que realmente efetiva o jornalismo enquanto histórico? Seria realmente o fato de que há 10 anos alguém possa tomar o documento? Ou podemos considerar que é o fato de que eu tenho consciência e escrevo uma matéria de certa forma que me leve a uma construção crítica sobre determinado tema?
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Diante desse novo dilema, a entrevistada vai para o cerne das mudanças que podem ser provocadas pelo Jornalismo para além do registro. O Jornalismo, por conta de matérias que foram veiculadas, ele provoca mudanças, então ele tem um valor crítico. Ele serviu para uma construção crítica. Ou que não provocou uma mudança, mas que levou a um debate, quando você pega por exemplo uma matéria, sei lá, que virou tema da redação do Enem, por exemplo. Tem um valor crítico grande aí, porque ou ela provocou uma mudança ou, no mínimo, ela suscitou uma discussão. Então pra mim isso é um valor crítico. Claro que tem o registro também, né, porque vai ficar o registro ali, mas eu analiso mais nessa questão desse registro crítico. (Entrevista, Gleide CORREA, Nov. 2015)
O Jornalismo tem de ser analisado pelo seu valor crítico para entender esse sentido histórico. E que vai além do registro. Mas é possível identificar que as afirmativas não podem ser simplesmente enunciadas por uma concepção ideal sem que você recorra ao conflito instaurado na rotina do produzir o Jornalismo. E com esta complexidade no caminho de respostas, se define um último contraponto para esse sentido histórico. E assim temos de retornar a ideologia da empresa, ou mais ao ego do jornalismo, tendo o público como última referência, para indagar: que tipo de história o jornalismo está narrando? A resposta tem de ser buscada neste contexto de tensão. Nós muitas vezes… Porque assim, não dá pra você distanciar a linha da empresa. Não dá. Então assim, a gente está contando aquilo que a empresa nos permite contar. Mas mesmo quando falta um pouco de aprofundamento, mas a gente está contando um fato real e sem deturpar. Isso, assim, eu falo claramente do jornal Correio, a gente está contando a história como ela realmente acontece. Né, eu posso as vezes não noticiar um fato? Sim, as vezes eu vou não noticiar, porque a empresa assim quer. Mas eu jamais vou deturpar aquele fato “ah, eu vou contar que aconteceu dessa forma, mas aconteceu de outro jeito”, não… Eu tenho que relatar ele da forma como realmente acontece. (Entrevista, Gleide CORREA, Nov. 2015)
Os dilemas para a produção jornalística estão delineados na narrativa de Gleide Correa. Da dissolução do sonho de infância de ser professora, o Jornalismo surgiu 255
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primeiro por acidente e depois pelo desejo de ser repórter. A experiência vivida na prática da redação a conduziu para os contrapontos de ser sujeito jornalista. Por um lado, a estudante da zona rural passou a descobrir formas para aprofundar o conhecimento da realidade social diante dos limites da formação teórica universitária. Por outro, os conflitos para transpor os obstáculos da criatividade em ser diagramadora a levou a ter consciência da determinação na qual a produção jornalística está enredada pela ideologia da empresa. E tudo isso diante do seu conceito de que o valor maior de ser jornalista é este contar história, esse estar em um local privilegiado do qual nenhuma outra profissão possibilita. Mas o esquecimento do leitor como referência é a turbulência da qual não se pode fugir ao enfrentamento do ser jornalista. Primeiro porque Gleide Correa estabelece a importância do trabalho do jornalista em levar esses fatos escondidos para a sociedade. Segundo, porque sem essa referência, o jornalismo está fadado a produzir matérias superficiais. Isso porque já parte-se do pressuposto de que a narrativa histórica do jornalismo está diretamente vinculada àquilo que a empresa nos permite contar. Diante desse quadro problemático, a entrevistada explica que há uma diferença entre o deixar de contar e o deturpar o fato. Essa diferença exteriorizada, longe de encerrar, somente agudiza o enfrentamento da determinação. Para que não seja objetificado pela estrutura, uma das alternativas parece estar na mudança de concepção teórica. E isso não pode ser realizado de vez em quando, mas todos os dias, da mesma forma que o estudo da pauta. É preciso restaurar o sentido do cotidiano, em meio a mecânica da rotina, para que a produção de sentido do leitor esteja como referência sobre de qual lugar nasce as indagações epistemológicas do sujeito jornalista. Porque o Jornalismo quando não está reduzido ao registro factual, deve possibilitar um olhar crítico sobre a realidade para a produção do conhecimento. E só assim terá condições de olhar para o que
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produz como notícia e com o tempo poder analisar qual o significado que a produção jornalística está edificando como sentido da história. Entre a liberdade para a criatividade subjetiva do jornalista e a determinação econômica da ideologia da empresa no jornalismo existe o conflito dialético. Gleide Correa testemunha que é imprescindível não deturpar o fato. Mas o valor da história exige outras indagações: quem terá condições de retomar o não dito pelo jornalista no cotidiano? Quem poderá ressignificar o outro olhar do fato, quando o jornalista esquecer do público? A pergunta e a resposta estão redefinidas na com plexidade da experiência vivida de Gleide Correa. Mas agora não se trata de colocar para si mesmo como um ultimato: ou o jornalismo ou mudo de ramo. É preciso ter maturidade para se atingir essa profundidade do dilema da profissão, para poder reconhecer na estressante rotina da produção jornalística o que significa de fato essa paixão que se transfigura no cotidiano da identidade do sujeito jornalista.
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Capítulo 11
Considerações finais
Considerações finais
O
resultado deste livro pode ser destacado em quatro vertentes para entendermos o processo. A primeira vertente está inscrita no seguinte questionamento: em que momento da sua história de vida tomou a decisão de
fazer o curso de jornalismo? O problema inicial conduz o entrevistado para o tempo da infância e da sua formação e principalmente os impasses para definir qual o curso iria entrar na graduação. As respostas mostram que boa parte dos 10 entrevistados só optaram pelo Jornalismo a partir da segunda ou terceira desistência de outro curso. E que direcionaram as ambições frustradas de outros cursos para a principal preocupação de estar formado em Jornalismo. Esse relato identifica o processo seletivo de valor que os sujeitos mergulham no tempo e no espaço universitário, em que os conflitos iniciais afluem como ingredientes para a produção de sentido acadêmico. A segunda vertente está na memória de formação teórica. O que você recorda das aulas teóricas e das disciplinas práticas? Qual o olhar que se tem do mercado quando se está no processo de formação acadêmica? Essa questão levou os entrevistados a relatarem que a base conceitual não é o ponto forte das universidades enquanto sistematização de conhecimento. As lembranças percorrem um ou outro professor, mas pouco para efetivar a consistência de formação como pesquisador. Por outro lado, as disciplinas práticas são denunciadas como mero produto de adaptação de mercado. Os testemunhos dos entrevistados revelam que trata-se de uma necessidade, pois a universidade deve preparar o aluno para o mercado de tra balho. Mas as demarcações dessas aulas revelam que trata-se de contingência de
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reforço, no sentido behaviorista de comportamento, do que exercício prático que remete ao pensamento crítico da realidade. A prática em nome do mercado se esfa cela no primeiro confronto do discente ao espaço que busca se readequar. Por isso, esse relato vem mergulhado entre o desejo de querer mais prática, como se o des preparo fosse sempre considerado como insuficiente diante dos exercícios de reforço. A critica que se pode efetivar a esse entendimento narrado pelos entrevistados é que há uma confusão entre o tempo acadêmico e o tempo do mercado de trabalho. Tem se a impressão de que se busca uma uniformização do tempo que poderia ser mais prejudicial do que levar a um aspecto construtivo do ser sujeito. A terceira vertente está no ingresso do formando ou da atividade prática no mercado de trabalho. A questão de fundo: o mercado realmente forma o sujeito? Os dilemas dos entrevistados mostram um paradoxo: os primeiros anos levam a reconhecer que a contingência de reforço das disciplinas práticas dão pouca base para o percurso que ora se inicia. Mas essa revelação se faz materializada no editor, ou mais precisamente, na figura que toma outra autoridade em substituição ao papel do docente. A critica remetida ao diagnóstico fundado pelo editor é o elemento crucial que direciona a preocupação profissional do sujeito. É neste processo que o entrevistado reelabora sua proposta de vida, a partir dos traços em vermelho das correções, dos comentários do que falta em sua potencialidade para atingir o que se vislumbra como jornalismo. As entrevistas revelam que a superação a esse caminho está ora no entendimento funcional do trabalho do jornalista, ora na procura de reconstruir, agora com novo olhar, a formação teórica na especialização. Mesmo nesta via há um paradoxo: A rotina e o sempre novo se tornam discursos para produzir sentido na vida que não escapam de uma colisão no presente. A rotina decreta em determinado momento que a exigência na quantidade de pautas e na velocidade da escrita levam a uma despersonalização ao ponto de não se reconhecer nas matérias. Sabe-se que não se escreve livremente. E o que predomina mais neste aspecto é a ideologia da empresa. Em segundo, o sujeito se refugia em sua autoestima quando revela que escreve para se satisfazer os seus percursos teóricos e de conhecimento. 262
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A fragilidade está quando se exige a identificação do público com a pergunta: para quem se escreve? É neste momento em que a responsabilidade social do jornalismo se torna um problema a enfrentar na realidade. Pois este aspecto revelador leva a outro ponto que tratarei na próxima vertente. Para fechar esse quadro, estamos diante do discurso do novo. O prazer de ser jornalista é que a cada dia se tem um entrevistado diferente, uma situação diferente e, porque não, uma emoção diferente por dia. O termo matar um leão por dia mostra esse inigualável momento em que o preenchimento das atividades do dia tem início com a incógnita de como se chegará ao fim da tarde. A quarta vertente tem peso complexo. A produção do jornalismo pode ter atribuído em seu sentido o status de história? Primeiro é necessário efetivar aqui a defesa da produção de sentido do jornalismo. Por meio do método de análise cultural e da teoria dos Estudos Culturais ingleses, a defesa é que o sujeito esteja com consciência de seu destino histórico quando efetiva uma parte do processo comunicativo. Mas as indagações no percurso do pensamento durante as respostas de nossos entrevistados demarcam que ora pela rotina, ora pela distração do novo, o jornalista poucas vezes tem consciência de que, no momento em que escreve o texto, está efetivando uma leitura histórica fundante para o seu tempo. O impasse está exatamente neste elemento: é possível remeter a produção do sujeito jornalista como história sem que ele tenha consciência de se estar fazendo história? Seria o jornal tornado história somente pela plataforma e por estar em um tempo distante da data do fato registrado? As respostas indicam que o jornalismo é história, mas os jornalistas não tem consciência de história. E ao considerar esse dilema vem outro problema: que tipo de história está sendo narrada pelo jornalismo, quando se perde o vínculo com o social em que ele está inserido? A tônica das respostas é que a história que vem sendo narrada pelo Jornalismo é o da ideologia da empresa, ou aquilo que a empresa deseja deixar como dito ou visto. E aqui está uma parte do dilema existencial do sujeito jornalista: lutar para transformar uma realidade para que o jornalismo possa chegar ao outro, ao leitor, 263
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sem que este seja reduzido a mero consumidor de produto. Trata-se de uma luta pela Comunicação em seu processo. A lógica perversa deste processo está no diagnóstico de que com o tempo, o jornal será um documento histórico. Mas que histórias as novas gerações irão tomar como sentido dominante em sua leitura no futuro? E será que essas pessoas têm condições para escavar o solo conteudista e mergulhar nas disputas da redação e do social para entender a notícia para além do seu padrão informativo? O principal aspecto da construção deste livro está em reconhecer os dilemas e os impasses que definem a construção da identidade do jornalista. É preciso dimensionar a força dos embates para se atingir um fundamento teórico: compreender pelo mundo da vida a importância de defender o processo comunicativo e o sujeito como produtores de sentido. O fator aqui não é situar a sociedade da informação, mas desvelar os caminhos desses sujeitos, que em determinado momento da história de sua vida passa a se denominar como jornalista, e por consequência passa a produzir sentidos em comunicação que permitem narrar a história micro e macro do país. A análise cultural leva a um redimensionamento histórico para pensar a própria atividade jornalística. Este livro é um trabalho sobre o jornalismo, mas sustentado na dialética de que a experiência vivida e a cultura, em que esses sujeitos se constroem no cotidiano, definem o movimento cíclico que denominamos conceitualmente de comunicação. A resultante de todo esse processo de entrevista como diálogo está em considerar, em seu profundo paradoxo, que há outros dilemas no sentido da formação teórica e da praticidade do mercado que necessitam ser debatidos, a partir da análise da reformulação das estruturas curriculares dos cursos de jornalismo. Este livro tem como compromisso social contribuir para a análise sobre a formação do jornalista e as implicações da cultura na produção de sentido da realidade no contexto denominado de pós-modernidade. Ao definir e entender essa responsabilidade social, as análises permitem identificar a responsabilidade do debate político-pedagógico das diretrizes do jornalismo. E, ao mesmo tempo, como a defini264
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ção de caminhos pelas universidades estabelecem mais do que adequações à tecnologia ou de trocas simples de disciplinas: o que se efetiva é a construção da identi dade do jornalista. O resultado deste livro tem pretensão de contribuir para a análise dialética da experiência vivida de homens e mulheres no cotidiano da Comunicação. Espera-se que as análises realizadas contextualmente, por meio dos Estudos Culturais, possam auxiliar na discussão dos rumos da formação do jornalista e da importância da formação teórica cultural para se efetivar o processo comunicativo.
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