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Conta-me um conto
Coletânea de contos
Edição
Hora do Conto Grupo Solar de Poetas 2
Ficha Técnica
Título Conta-me um Conto Tema Coletânea de contos e narrativas Autores Vinte Autores, membros e amigos do Grupo Capa Arranjo de José Sepúlveda através de imagem encontrada mas sem identificação do autor Ilustrações Cedidas pelos autores e por Rosa Maria Santos Revisão de textos e Formatação Rosa Maria Santos e José Sepúlveda Publicado por Solar de Poetas
Editado em E-book em Maio 2022 https://issuu.com/correiasepulveda https://issuu.com/rosammrs/docs
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Participantes
Akira Dos Santos Albertina Fernandes Alda Melro António Correia Ramos António Ramalho Ascensão Lopes Catarina Dinis Pinto Celeste Almeida Céu Enes Dulci Ferreira Joana Rodrigues José Sepúlveda Josiclénio Sebastião Luís Filipe Coimbra Manoella de Calheiros Mary Horta Romy Macedo Rosa Maria Santos Sílvia Regina Costa Lima Teresa Subtil
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07 09 25 31 39 47 57 61 69 75 86 95 105 107 116 123 129 167 197 203
Livros e E-Books editados pelo Grupo
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Autor Akira dos Santos Um conto
RIMO E AS PALAVRAS MÁGICAS Numa das suas aventuras Rimo e Rima acharam uma terra encantada. Os cidadãos eram cá umas figuras pois rimavam até madrugada. Rimo também adora rimar: “Cão rima com João!” “Pé rima com chulé!” Para ele, as palavras são mágicas. Elas saltam, brincam, saltitam, brilham e comunicam. São livres e cheias de vida. Porém, um dia, apareceu o Ditador Capitão Analfabeto. Ele proibiu as rimas na cidade. Os cidadãos renderam-se perante sua majestade. Mas Rimo e Rima decidiram ir contra a sua vontade. Foram para o seu quartel. Estavam agora frente a frente. Rima com o seu robô Miguel, fizeram rap livremente. Enquanto isso distraía o Capitão, Rimo pôs-se atrás do vilão. Baixou-lhe os calções, viram-se cuecas aos corações. O Ditador envergonhado, foi assim derrotado. Na terra 6
mágica, cantaram vitória. Os nossos heróis fizeram história. As palavras recuperaram a liberdade e todos as abraçaram com saudade. O Analfabeto admitiu os seus erros e rimando com humildade, formou com Rimo e Rima uma bela amizade.
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Autor Albertina Fernandes Três contos
A MENINA QUE SE CANSOU DE SER BOAZINHA Sempre fui uma menina boazinha. Talvez por isso era tratada, na escola, pelos meus colegas, de modo diferente. Vivia na aldeia e os outros meninos e meninas viam-me como se eu fosse o modelo de perfeição: não diziam palavrões na minha presença, chamavam-me “menina Ritinha” e, quando, no recreio, se brincava às canções de roda, era a mim que eles convidavam para o centro, como ‘personagem principal’. Recordo-me da canção do Vestidinho Branco: Vestidinho branco a todas fica bem à menina Ritinha melhor que a ninguém
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Fica-lhe tão bem Quer por dentro quer por fora O amigo Zé É quem a namora É quem a namora Quem a namorou Ao sair da escola A mão lhe apertou A mão lhe apertou Muito bem apertadinha Ao sair da escola Ficou casadinha Ficou casadinha Ficou muito bem Batamos a palmas Olaré, meu bem! Eu ficava sensibilizada com o protagonismo que sempre me davam, mas corava muito quando tinha de apertar a mão do ‘noivo’; o escolhido também não se sentia muito à vontade, e, logo que a roda se desfazia, corria para junto dos outros rapazes, que se entretinham com atividades mais masculinas, seja jogar à bola de trapos ou fazer corridas com arcos de pipas velhas, acionados por uma haste de arame. Fui, pois, sempre assim, uma criança responsável. 9
Um dia, porém, dei por mim a pensar com todas as forças: “Basta, Ritinha! Chega de seres a menina modelar que todos tratam tão bem! Quero fazer como os outros, falar como eles, praticar ações interditas, desobedecer... Quero sentir-me com outra ‘pele’. Nem mais um dia de espera para concretizar este desejo! Por onde vou começar? Ah, já sei!” E, disfarçadamente, roubei uma borracha à minha colega de carteira. Eu sabia que os seus pais eram muito pobres e não tinham possibilidades de lhe comprar material escolar. Mas não quis que esse facto abalasse a minha decisão, embora o coração batesse com mais força e a mão tremesse. Consegui! Quando a colega se virou para trás, a pedir um lápis, eu, zás! Enfiei a borracha no bolso da bata e, como se não se tivesse passado nada de anormal, continuei a escrever a parte final da minha composição – curiosamente, a composição tinha como título A primeira boa ação do dia! A minha atrapalhação não foi notada e eu respirei de alívio. De regresso a casa, segui, sozinha, por um caminho mais isolado e, a dada altura, sentei-me numa pedra e disse, em voz alta, uma série de palavrões, que não vou reproduzir aqui, por serem impróprios de uma criança. Olhei à minha volta: ninguém... “Ainda bem – pensei – se alguém ouvisse, que vergonha!” Reparei, então, que, perto de mim, uma inocente lagartixa se estendia, descuidada, a receber o sol do meio-dia. Era pacífica, não estava a fazer mal a ninguém... A ocasião não podia ser mais favorável: com um pau, pressionei a cauda do pobre bichinho, que, ao tentar libertar-se, perdeu parte 10
dela. Tive um arrepio ao observar que a parte que se soltara do corpo saltava como se estivesse viva e quisesse unir-se à parte que fugira. Pensei que sim, que isto é que se podia chamar uma verdadeira maldade. Cheguei, finalmente, a casa. A minha mãe olhou para mim, voltou a olhar... Eu sentia que ela me observava, mas os meus olhos permaneciam baixos, comprometidos. Será que a minha mãe detetou em mim algo de diferente? Notar-se-ia assim tanto a minha mudança? A voz da minha mãe chamava-me com meiguice, como sempre. Não fui logo, logo. Uma coisa cá dentro me prendia no quarto. Seria a voz da consciência a começar a trabalhar? Não o sabia explicar, mas o que é certo é que o leite com chocolate e o pão com manteiga - de que tanto gostava , nessa tarde, não tinham o mesmo sabor. Comia, mas era quase desagradável, não sei até se eu achava que, no meio do pão, se me afigurava a cauda da lagartixa... Tive de desistir de comer. “Que tens, Filha, estás a ficar doente? Tu, sem apetite? É estranho, comes sempre com tanta vontade...” Um aperto na garganta incomodava-me e não deixava a comida passar. O que estaria a acontecer-me? Chegou a noite. Dentes lavados, pijama vestido, cama, sono... Sono? Esse não vinha. Dava voltas e mais voltas e os olhos, embora fechados, viam tudo claramente: a minha companheira à procura da borracha, a pobre lagartixa a fugir, deixando atrás um pedaço do próprio corpo, que continuava aos saltos descompassados… a minha voz, soltando palavrões, tão feios que sentia um rubor intenso a 11
inundar-me o rosto. Quando, enfim, adormeci, fui acometida por um sonho perturbador: a lagartixa cresceu assustadoramente, cresceu tanto que mais se assemelhava a um horrendo crocodilo, e voltava atrás, à procura da cauda perdida; procurava as minhas mãos, os meus dedos, e eu não conseguia fugir daquele lugar. A minha companheira, de cabeça dilatada e riso sinistro, acusava-me à professora. O seu dedo indicador crescia, crescia sempre, quase tocava a minha consciência, e a professora, de olhos redondos e vermelhos, indignada e medonha, expunha o meu roubo perante a turma. Eu não conseguia articular palavra. Queria desaparecer... Mas todos os meninos e meninas da sala me estendiam o dedo acusador, que era, no fundo, o da própria professora, transformado nos braços de um polvo cruel. Repetiam, ao mesmo tempo, em altos gritos, os palavrões que eu pronunciara na esquina do caminho. Acordei banhada em suor, e tão cansada como se tivesse passado a noite a subir e descer montanhas. E não precisei de pensar mais: logo que cheguei à sala de aula, procurei o momento certo para recolocar, no seu lugar, a borracha, que não me pertencia. Respirei de alívio e parte do peso começou a abandonar a minha consciência e a deixar normalizar as batidas do meu coração. E as outras duas maldades? Como repará-las? Devolver a cauda à lagartixa era impossível. Apagar da minha boca aqueles palavrões horríveis, igualmente impossível. Então, escrevi, desabafei com o papel o que me atormentava. Fiz uma cópia do texto e fui colocá-lo sobre a cómoda, no quarto da minha mãe. O original guardei-o numa caixa, 12
fechada à chave, como se, desse modo, aquela atitude que tanto me andava a perturbar ficasse, assim, encerrada para sempre. Estava, finalmente, aliviada. Ia voltar a ser a Ritinha, igual a si própria, a Ritinha que gostava de cumprir, de ser correta e educada, de se sentir respeitada e de respeitar as pessoas à sua volta. Hoje, ao escrever estas palavras, volvidos já muitos anos, reconheço, ainda, que o facto de ter fechado a minha confissão numa gaveta não impediu que a memória me devolvesse este episódio... Sabe-se lá porquê...
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O CÃO QUE PRECISAVA DE SABER FALAR Não era ‘nobre’, não tinha pedigree, era apenas um rafeirito que aparecera, uma tarde, no quintal, a escorrer doçura pelo olhar e a dar à cauda, como que a cumprimentar os proprietários e a dizer-lhes que gostaria de fazer parte da família. Andou com sorte, porque foi bem recebido. Quer o pai, quer a mãe de Tiago apreciavam cães; por isso, estenderam a mão para lhe fazerem festas, o que foi interpretado como uma receção favorável à sua adoção. Tiago não teria mais de oito anos quando Elias foi apareceu. Chamaram-lhe Elias, em memória de um outro cão que tiveram e que morreu atropelado. Talvez seja melhor contar como tudo se passou, para entendermos as razões que estiveram na base da escolha deste nome. Tiago adorava o primeiro Elias. O tio, que vivia no Porto, oferecera-lho como prenda de aniversário. Foi uma loucura, quando lho pôs nos braços e lhe disse: “Toma, é a minha prenda, espero que gostes. É um épagneul breton; trata-o bem, pois esta raça já não se vê muito pelos nossos lados. Se morre, será difícil arranjar outro.” Tiago tremia de emoção, não sabia se havia de agradecer a oferta, se fugir dali para começar a brincar com o seu novo amigo. Gerouse uma ligação tão forte entre os dois que nunca estavam 14
separados. Tiago chegou a pedir autorização à professora para o levar consigo para a escola. “Se me garantires que ele fica aí, ao pé de ti, sem perturbar, podes trazê-lo. De vez em quando. Sempre, não convém, porque, se o senhor inspetor vem visitar-nos e o vê, será muito negativo para a minha avaliação. Compreendes, não é verdade?” Tiago compreendia, e combinou, então, levá-lo, apenas, uma vez por semana. Todas as outras crianças reagiram com entusiasmo àquele novo ‘colega’. Elias sentava-se aos pés do Tiago e ali permanecia quieto e feliz. Às vezes, abria um olho, para verificar se o dono estava bem e voltava à atitude inicial. Quando começava o burburinho de fim de aula, Elias já sabia que estava na hora de se mexer, e, aí, espreguiçava-se e ia cumprimentar todos os presentes, incluindo a professora, que lhe fazia festas na cabeça. De regresso a casa, era uma alegria: Tiago e Elias pareciam doidinhos, ambos aos saltos, Tiago a cantar e Elias a latir de felicidade. As pessoas com quem se cruzavam no caminho paravam para apreciar e achavam graça àquela relação tão especial entre uma criança e um cão. Um mês antes de acabarem as aulas, Tiago sentiu-se mal. Queixava-se de fortes dores abdominais e começou a vomitar. Isso assustou os pais, que o conduziram, imediatamente, ao Centro de Saúde. O médico diagnosticou-lhe uma apendicite. Era urgente operá-lo. Não havia tempo a perder. A operação correu bem. Enquanto esteve internado, não deixava de pensar no seu Elias, que, de certeza, havia de sentir a sua falta. Os pais traziam-lhe sempre notícias; algumas eram preocupantes, porque Elias passava as noites a ganir à porta da cozinha e comia muito pouco; 15
andava de orelhas caídas e não tinha vontade de saltar. E um dia, o pior aconteceu: Elias, não suportando talvez, a ausência do dono, transpôs as grades e pôs-se a caminho... Não estava habituado à estrada, não sabia desviarse dos automóveis, ia sem rumo, aos ziguezagues, e um condutor mais apressado não conseguiu travar a tempo. Não foi possível evitar a morte. Os pais de Tiago não sabiam como levar-lhe esta notícia tão triste. Sabiam que ia ser um rude golpe para ele e tentaram, por isso, adiar a informação. Mas Tiago, na hora da visita, confessou que sentia um aperto no peito, como se lhe custasse respirar. O pai olhou para a mãe e os dois associaram, de imediato, esse mal-estar ao acidente de Elias. Mas continuaram a guardar segredo. Chegou, finalmente, o dia de Tiago voltar para casa. A ausência de Elias foi inevitavelmente notada, não sendo, assim, possível esconder a verdade por mais tempo. Tiago chorou em silêncio a perda do seu companheiro de todas as horas. Foi difícil chegar à resignação. O tio bem lhe tinha recomendado que tivesse cuidado com o seu épagneul, porque não seria muito provável arranjar outro. Os pais foram-no convencendo de que ele não poderia sentir-se responsável pelo acidente. E o tempo foi serenando a tristeza de Tiago. Até que surgiu aquele rafeirito, a dar à cauda e a lançar-lhes um olhar tão meigo que não deixaria ninguém indiferente. Tiago ia poder preencher o vazio afetivo deixado por Elias com este novo Elias. E uma nova grande amizade se desenvolveu entre ambos. Tinham chegado as férias grandes. Tiago gostava de ir para o monte com o seu Elias II, para apreciar o seu estilo 16
de caçador de coelhos. Não tinha intenção de que Elias capturasse os coelhos, pois achava que eles estavam no seu habitat e deveriam viver aí em liberdade, mas adorava ver como Elias se empenhava a descobrir-lhes as tocas e como latia vivamente a avisar que ali estava coelho escondido. Foi num desses dias que tudo aconteceu. Entusiasmado com a azáfama de Elias, Tiago não se apercebeu do poço, porque estava coberto com ramos secos. Alguém os tinha lá colocado, talvez para evitar que algum animal caísse. A verdade é que nenhum animal caiu, mas caiu Tiago. O poço era bastante fundo e tinha água. Foi a sua sorte, pois a água amorteceu-lhe a queda e ele não sofreu nenhuma fratura. Caiu bem, mas a água estava muito fria e Tiago começou a sentir a temperatura do seu corpo a baixar. Elias, completamente desorientado, ouvindo a voz do dono a sair do fundo do buraco, fez várias tentativas de se atirar lá para dentro. Não o fez, vá-se lá saber porquê. De repente, lança-se numa corrida vertiginosa, em direção a casa. Agitado e latindo de desespero, tenta saltar para o colo do pai de Tiago, que logo se apercebe de que algo de anormal se estaria a passar. Elias começa, então, a correr em direção ao monte. O pai de Tiago seguiu-o e, assim, tomou conhecimento daquele cenário inesperado. “Tiago, estou aqui, aguenta mais um pouco, que eu vou buscar uma corda para te tirar daí.” “Sim, pai, mas tenho muito frio, quase não sinto as pernas, estão geladas”. “ Pensa que estás salvo, para te dar coragem, eu volto já! 17
Em casa, embrulhado num cobertor e a beber um chá bem quentinho, Tiago recompõe-se do grande susto, que poderia ter sido mais do que um susto, não fosse o seu amigo Elias agir prontamente, como se tivesse pensamento e linguagem. Elias olhava para ele, como a querer dizer-lhe: “Como eu desejei saber falar para explicar ao teu pai o perigo que corrias!...
Rafeirito Era um pobre rafeirito Perdido em quintal alheio. Tiago pegou em mim. Por ter-me achado bonito, Levou-me pra sua casa. Não esperava vida assim. Antes de mim outro houvera, Pedigree de boa raça, Com meiguice e muita graça, Mas pouca sorte tivera A estrada foi o seu fim. Ocupei o seu lugar No coração de Tiago. Cresceu a nossa amizade. Eu, cão, a falar verdade, 18
Pelos olhos e o latir. Ele, gente sem maldade, Sempre a saltar e a sorrir. Voz de gente, quem me dera, Para o Tiago salvar. Sorte que o pai me entendera E ao monte o foi buscar.
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O FASCÍNIO DA ARTE Susana andava a preparar-se para o grande dia. Tinha o enxoval pronto, roupinhas mimosas, de cores suaves e muito fofinhas, artigos de higiene, caminha e carrinho; não se esqueceu de nada. Além disso, ia às aulas de ginástica, para aprender a técnica da respiração a adotar, quando chegasse aquela hora especial. Ah, e fazia outra coisa muito curiosa e talvez diferente da maior parte das outras grávidas: todos os fins de tarde, ia sentar-se, calmamente, no seu cadeirão e punha-se a ouvir música, de olhos fechados e com as mãos na barriga, massajando-a suavemente, como se estivesse a acariciar o seu bebé. Era uma menina e ia chamar-se Luz, assim, simplesmente, Luz. Luz era o que aquele bebé significava para ela. Por isso, não queria acrescentar mais nada a este nome. O pai de Luz era músico. Sempre que compunha novos temas, pensava na sua Luz e dedicava-lhe os seus trabalhos. Susana escolhia, precisamente, essas músicas para Luz ouvir. Estava convencida de que Luz as apreciava, pois, se estivesse a dar pontapés na sua barriga, logo se acalmava e ela entendia que isso era sinal de que estava a gostar. Luz nasceu, finalmente, e esses sinais de amar a música iam-se notando visivelmente. Deitada no seu bercinho de 20
rendas, a reação às melodias do pai era clara: deixava de esbracejar, recusava a chupeta e sorria, banhada de felicidade. E assim cresceu. Quando começou a falar, depois de “papá” e “mamã”, foi a palavra “música” que ela aprendeu. E fazia esta frase, que não era bem uma frase, mas que se entendia como tal: “Papá, mamã, música...”. E sentava-se, de imediato, no colo do pai, respirando de satisfação e aguardando, silenciosamente, que o aparelho começasse a debitar os sons que ela já conhecia tão bem. Ficava assim, muito quietinha, com os olhos inundados de luz... Um dia, estavam todos na casa dos avós paternos, onde iam, de vez em quando, e este cenário repetiu-se. No meio da conversa dos adultos, ouve-se a célebre frase de Luz, agora mais completa, porque já sabia falar melhor: “Pai, põe a tua música!” – e sobe para o seu colo e aguarda. A mãe, o avô e a avó assistiam, em silêncio; os avós nem queriam acreditar. Foi uma surpresa. Mas foi ainda uma surpresa maior, quando Luz, no fim da música, com os olhos carregados de lágrimas, diz: “Porque estou a chorar, Pai?”. O pai, emocionado, não sabia que dizer; a mãe e a avó ficaram também com lágrimas nos olhos, tal a emoção que estas palavras nelas provocaram, o avô afastou-se para que não vissem que tinha, igualmente, vontade de chorar. Foi uma cena única, ver uma menina tão pequena a sentir a música daquele jeito, a viver as emoções que a música do pai lhe despertava, sem ela própria saber definir por que acontecia assim. O silêncio dos adultos criou uma situação embaraçosa, pois Luz ficou à espera que lhe dessem uma explicação para estas lágrimas que lhe vieram 21
aos olhos. Geralmente, as crianças desta idade choram quando têm dor, ou alguém as contraria, não choram porque a música as emociona. Luz cresceu rapidamente, saudável e enérgica. No Jardim de Infância, maravilhava a Educadora, quando se punha a cantar. Tinha uma voz segura, nunca desafinava e não se inibia de subir ao palco, nas festas de Natal. Sabia de cor todas as canções que a Educadora ensinava e queria sempre aprender mais e mais. Era difícil satisfazer a sua ânsia de saber. Mas o que mais a seduzia continuava a ser a música. E depois veio a dança. No rés-do-chão do prédio onde viviam os avós maternos, havia uma escola de ballet clássico. A música subia até ao apartamento dos avós. Luz passava lá muito do seu tempo e foi-se habituando a ouvir. E começou a gostar da harmonia daqueles sons. Quando ia com a avó à rua, passear ou fazer compras, sempre espreitava pela porta entreaberta para descobrir que mundo se vivia naquele salão mágico. Um dia, a professora apercebeu-se de que alguém estava ali, à porta, e foi averiguar. Ao ver Luz, convidou-a a entrar, para que ela pudesse satisfazer a sua curiosidade. Foi uma coisa fantástica para ela! Desejou, naquele momento, pertencer àquele grupo de meninas, tão elegantes com a indumentária típica das bailarinas, executando movimentos tão harmoniosos e expandindo tanta alegria. “- Gostavas de aprender a dançar, Luz?” “- Gostava muito!”
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“- Então, é fácil. Basta pedires autorização aos teus pais, fazer a inscrição, comprar o fato e os sapatos e vir. Ficamos à tua espera”. Luz foi para casa da avó, muito, mas mesmo muito contente. Não falava de outra coisa até chegar a hora da sesta. Quando acordou, foi-se pôr ao espelho a ensaiar os passos que tinha visto as outras meninas executarem. Ficou encantada com a sua imagem. Mal a mãe a foi buscar, ao fim da tarde, foi a primeira coisa que lhe disse: “Mãe, quero que me deixes ir para a escola de Ballet. Eu quero ser bailarina, Mãe!” Hoje, Luz tem cinco anos. Já participa em espetáculos de dança clássica; fica linda, com o cabelo todo esticado com gel e preso atrás, como as bailarinas profissionais. Nunca deixou de gostar de música. O pai já compôs várias canções para ela; e ela canta-as tão bem que o pai decidiu gravar algumas. Luz tem, agora, uma irmãzinha, que já reconhece a sua voz no telemóvel e bate palmas quando a canção de Luz chega ao fim. Bate palmas e pede ao pai para repetir. Será que, também ela, vai ter a mesma paixão de Luz pela música e pela dança?
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Autor Alda Melro Três contos
O AVÔ JOÃO Joãozinho, é um menino que vive na zona piscatória da sua cidade. E por ser ainda de tenra idade, ia com o seu pai Manuel, ver a chegada da faina do seu avô João, que era um pescador exímio. Infelizmente, houve um dia que a faina não lhe correu bem e o barco do seu avô, chegou completamente vazio, sem um peixinho sequer. O Joãozinho ficou triste por ver o seu avô zangado, porque afinal segundo ele, tinha apanhado muito peixe na rede. Intrigado, Joãozinho perguntou: - mas então, onde está o peixe? Ao que o avô lhe respondeu: - Saltou todo borda fora meu neto, contente e a saltitar para o mar! Joãozinho riu-se tanto e correu para casa e contou à sua tia Rosa, o que tinha acontecido. 24
Sua tia, que gostava de fazer quadras, brincou também com a situação, vai daí, cantou ao seu sobrinho, estas quadras divertidas: Estrala a bomba e o avô foi pescar A faina foi boa e o barco veio a abarrotar Mal chegou ao cais o barco virou O peixe deu à sola e o avô chorou Foi um dia daqueles bem chalados Em que a pesca lhe moeu a cabeça Os peixes ficaram a ganhar Vieram de boleia lá do alto mar Estrala a bomba e toda a ribeira canta: -Ó Sr. João, tape o peixe com uma manta Estrala a bomba e lá vem mais um badejo Puxou alinha e era uma sardinha Que mordeu a isca e veio a linha.
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O PRÍNCIPE SAPO Numa floresta muito distante, vivia uma velhinha muito baixinha, bonita e redondinha de seu nome, Maria do Bosque. Certo dia, andava ela a apanhar pauzinhos para a lareira e os seus olhos negros e brilhantes, viram um sapo perdido no meio de um monte de lama. Pensando ela que se tratava realmente de um sapo, levou-o para a sua humilde casa. Deu-lhe banho e meteuo numa velha caixa onde guardava os seus únicos sapatos. A casa onde morava era simples e pobre como ela. De inverno chovia dentro e de verão, o sol irradiava pelos buracos do telhado e o calor era tanto, que ela preferia ficar a nadar num lago que existia mesmo junto à sua casa. Assim que o sapo se viu aconchegado dentro da caixinha, adormeceu de tão bem instalado que se encontrava. Maria do Bosque, aproveitou para sair e procurar comida na densa floresta. O que a velhinha, Maria do Bosque, não imaginava, é que o sapo, não era realmente um sapo, mas sim um príncipe que tinha sido castigado por uma bruxa má, por ele se ter recusado a casar com ela. Então, furiosa de raiva, a bruxa disse-lhe: 26
_ Vou transformar-te em sapo para toda a vida, só serás de novo príncipe, quando fores beijado por uma velhinha bondosa. Entretanto, o sapo que ainda dormia acordou e feliz por a Maria do Bosque o ter ajudado pensou... _ Esta velhinha de coração tão bondoso, podia dar-me o beijo para quebrar o feitiço da bruxa e assim libertar-me. Logo depois, a velhinha de seu nome Maria do Bosque, chegou com um saco cheio de frutos que conseguiu encontrar pela floresta. Abriu a porta do seu humilde lar e viu o sapo já acordado, olhando para a entrada, como se estivesse à espera dela. Achou-lhe tanta graça e comovida, pegou-lhe ao colo e beijou-o. De repente, um clarão iluminou o espaço e ele ficou de novo na sua forma original. Um belo e jovem príncipe. Contou à velhinha Maria do Bosque o que lhe tinha acontecido e que o seu nome era Henrique e morava num reino ainda distante. Como recompensa, levou-a para o seu lindo palácio e ela lá ficou a viver para toda a vida no meio de tanta felicidade e riqueza. A moral desta história, é que se repartirmos o que possuímos seremos recompensados.
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PEDRO E O FUTEBOL Venham todos ouvir O que aqui vou dizer O Pedro é um menino Difícil de esquecer Com olhar matreiro Põe-se a analisar O pessoal está distraído É hora de zarpar Não gosta de estudar Em casa não quer estar Sai para a rua Para poder jogar Deem-lhe uma bola E fiquem a ver Os pés parecem faíscas Não param de mexer Quando for homem Quer ser jogador Não importa em que clube Que grande sonhador Chega a noite, vai dormir E mesmo a sonhar Fala alto, braceja Está num campo a jogar 28
É golo, chuta, atira, passa São palavras que ele grita O mano quer dormir e não consegue Fica a ouvir o desafio, em forma descrita
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Autor António Correia Ramos Três contos
O PRÍNCIPE É A PRINCESA Um Príncipe é uma Princesa De criança se enamoraram Viviam numa fortaleza E cedo se apaixonaram Ainda eram dois meninos Muito tempo iriam esperar Deixar de ser pequeninos P'ra se poderem amar Os anos foram passando Grande era a afinidade Os dois ficaram esperando Até terem mais idade A adolescência chegou Explodindo sua paixão Um e outro se beijou Começando uma união
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Um sem o outro não passava Ficando os dias juntinhos Ela dele muito gosta Ele lhe dava carinhos Se deitava em seu regaço E assim ela o acariciava Aí matava o cansaço E só mais tarde acordava Quando de frente se olhavam Esqueciam sua amargura Seus lindos olhos brilhavam Refletindo amor e ternura A idade foi aumentando O amor fortalecendo P'la vida se foram amando E tudo o resto esquecendo Ambos tinham lindos rostos Corpos bem delineados Estavam sempre bem dispostos Eram dois seres encantados Depois de tanta ternura E de um ao outro se amar Eis que é chegada a altura Os dois resolveram casar 31
Uma festa com muita flor Levados em coche dourado Com muitas Damas d'Honor Num ambiente encantado E quando o baile chegou A valsa se foi tocando Todo o mundo então parou E neles ficou reparando Pareciam dois siameses Seguindo o mesmo caminho E ao fim de nove meses Nasceu um Principezinho Mas que trio maravilhoso Sempre na boca um sorriso Com seu ar lindo e vistoso Vivendo no Paraíso
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A JOANINHA E O PIRILAMPO Dois animais de deslumbrar Qual deles o mais vistoso A Joaninha d'encantar Ó o Pirilampo luminoso Qualquer um subtileza E muita beleza irradia Um à noite dá beleza O outro embeleza o dia Vermelhas com pretas bolinhas É a cor do seu vestido Que lindas são as Joaninhas Que animal tão querido No campo gostam passear E também pelo jardim As flores gostam beijar Do malmequer ao jasmim O Pirilampo é engraçado De dia fica dormindo Como é muito envergonhado Só à noitinha saindo Então é vê-los voar À noite na escuridão Sua luzinha a piscar Avisando que ali estão 33
Já a Joaninha amorosa De luz não está precisando A sua cor é vistosa E ao Sol fica brilhando As plantas protegendo Lhes dando vida e saúde Ela as pragas vai comendo É essa sua virtude O Pirilampo é magia E na noite ele se assume Muita beleza irradia E lhe chamam Vaga-lume Todos deixam admirados São lindos e deslumbrantes Quando ficam iluminados Parecem luzes errantes São parte da nossa vida Não sei qual o mais vistoso Se a Joaninha colorida Se o Pirilampo luminoso Uma coisa tenho a certeza Um e outro é fantasia Embelezam a natureza E ambos são pura magia
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A ABELHINHA GULOSA Num lindo jardim florido Um enxame se passeia E num cantinho escondido Fizeram sua colmeia Como havia muita rosa Muito mel produziam Mas havia uma gulosa E isso elas não sabiam Num buraquinho disfarçada Ela se ficava escondendo Não estava ajudando em nada E muito mel ia comendo Voavam de flor em flor Não paravam todo o dia Mas apesar do seu labor O mel pouco crescia Já andavam aborrecidas Sem saber o que fazer Estavam ficando vencidas E sem nada perceber Pois a Abelhinha gulosa No buraquinho se escondia E cada vez mais volumosa Pois muito mel comia 35
Até que chegou o dia Que deixou de lá caber Ela então de lá saía Assim se deixando ver Que grande era seu tamanho Seu corpo era uma bolinha As outras acharam estranho O tamanho que ela tinha Então aí descobriram O que se estava a passar Assim a gulosa puniram A obrigando a trabalhar E então isso ela fez E logo o mel aumentou Em desculpas se desfez E a alegria voltou
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Autor António Ramalho Dois contos
A FLORESTA DO DESCONHECIDO Era uma vez uma floresta encantada. A floresta do desconhecido. Um dia, uma bela jovem chamada Lily foi incumbida de uma missão muito importante para a humanidade. - Disse que seria um desejo. - Atravessar a floresta do desconhecido e descobrir o que existia para além dessa floresta. - Estamos prontos. Lily sabia que não era uma viagem fácil e que iriam encontrar muitas adversidades. O seu amigo Bry quis acompanhá-la. E lá partiram. Sabiam pouco sobre o que iriam encontrar. - Está tudo muito calmo e silencioso. Lily tinha recebido um aviso importante: - Não podiam fingir! 38
- Faz sentido. E continuaram. - E o que significa isso? - Podemos ter só uma oportunidade. Ao entrarem na floresta do desconhecido, encontraram reflexos arrepiantes e vozes medonhas. Estavam diante do castelo do medo. Era um castelo de milhares de labirintos e diferentes espaços. Facilmente as pessoas se perdiam, a não ser que conseguissem controlar os seus medos. Havia muitos desafios no castelo do medo. Eram esses obstáculos que levavam a que as pessoas facilmente desistissem de caminhar. Mas a Lily e o Bry eram determinados e tinham coragem. Depois de verem figuras estranhas, eles deram as mãos. Queriam vencer, O seu propósito era conseguir descobrir o que existia para lá da floresta do desconhecido. - Ouviste aquilo? - Não te sei dizer o que era. Atrás deles a floresta era muito densa. Parecia uma noite tranquila, exceto a experiência daquela noite estranha. Essa era a diferença entre uma derrota temporária e o fracasso. Para não ser um fracasso, era preciso muita resiliência. O sucesso só se alcança com persistência e nunca o consegue quem desiste. Lily viu uma oportunidade em esconder o medo. Para vencer os medos tinha que lutar contra eles. 39
Continuaram a caminhar. Naqueles labirintos do castelo do medo, perceberam que carregavam muitos problemas na sua mente. Conseguiram bater à porta da mente e entrar. Conhecer a própria mente era a tática eficaz. Tinham de controlar os seus próprios pensamentos. Tinham demasiados pensamentos negativos. - Estás a ouvir? - Estamos escondidos ao longo do rio da vida. - Sim Bry, mas não percebes que estes labirintos no castelo do medo, somos nós que os criamos através da nossa mente. Saber escolher os pensamentos era a escolha a fazer. Estava tão silencioso, que até metia medo. Estavam muitos ansiosos. Não tardaram a descobrir uma casa na floresta. Era a casa da madrugada. Era aonde aprendiam a ter um propósito na vida. Onde podiam saber o que queriam da vida. Perto do rio da vida, encontraram o que eram muito importante. Sementes de medo e sementes de amor. Mas tinham de escolher que quantidade queriam daquelas sementes. O segredo estava nessa escolha. 40
A floresta do desconhecido deixava mais perguntas do que respostas. Havia imensos lagos e riachos. No trilho da sinceridade, aprenderam que precisavam sobretudo de sementes de amor. Colocaram 21 sementes de amor e 3 sementes de medo nas suas mochilas. A escolha das sementes podia ser importante. Conseguir chegar à terra da felicidade dependeria dessa escolha. No tempo necessário esperaram o que poderia nascer desse cultivo. Enquanto esperavam que as sementes crescessem, perceberam que estavam junto do lago dos peixes gigantescos. Era um sítio aterrador. Algo estava a mexer-se continuamente. Depois de escurecer, ficava sempre tudo muito escuro. - Até fiquei arrepiado. Não se podiam distrair. Sentiam que estavam a ser observados. As sombras mudavam de forma. Resolveram então caminhar em direção a uma luz. Era a luz dos valores morais. Aparecia e desaprecia de repentes. Era uma luz inexplicável. - Estou sem palavras. 41
As árvores da floresta eram estranhas. estavam sempre a mexer-se. Não tinham qualquer lógica. O que fazia a diferença no seu caminhar, era o propósito de ambos (sabiam o que queriam) e a sai determinação (o seu querer e a sua coragem). Havia uma quietude que não era natural. - O que foi aquilo? - Aquele som estava daquele lado. Perceberam que o segredo estava nas suas próprias mentes. Posicionaram-se sempre ao longo do rio, orientados pela luz dos valores morais. Sabiam que o rio da vida era a fonte dos alimentos. Por fim conseguiram chegar a uma clareira. Era a terra da felicidade. Tinham conseguido ultrapassar a floresta do desconhecido.
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O GATO CUSCAS Era uma vez o gato Cuscas. Era um gato que falava demais. Criticava muito e todos. E que não podia negar isso facilmente. Nas suas atitudes, estava sempre à procura de fofocas. Os seus olhos verdes gigantes, queriam sempre ver a perfeição, mas acabava sempre por dizer mal de alguma coisa ou de alguém. Não tinha amigos. Tinha apenas alguns conhecidos. Os outros gatos do bairro, sempre que o viam, afastavam-se imediatamente, evitando a sua direção. E todos sussurravam: - Olha o gato Cuscas! Vai dizer mal de alguém, de certeza! Na sua atitude de falar e criticar tudo e todos, não percebia que magoava sempre os outros gatos. Inevitavelmente, acabava sempre por arranjar conflitos e discussões. E também se envolvia em lutas desnecessárias. Um dia, O gato Sinceras, quando ia a passar próximo da casa do gato Cuscas, ouviu um ladrar estranho. Um ladrar agatinhado. Espreitou à janela e… 43
…Viu o gato Cuscas a tentar ser um cão. A andar como um cão. E a querer ladrar também. O gato Sinceras correu a chamar os outros gatos e todos assistiram à mesma cena. A partir desse dia, sempre que o gato Cuscas andava na rua, todos começavam a ladrar e a imitar um cão. Furioso recolheu-se em casa. O feitiço virou-se contra o feiticeiro. Tanto falou e criticou os outros que acabou sendo falado e criticado por eles.. Mais tarde, não aguentou tantos comentários sobre ele, e acabou por ir para outro bairro.
MORAL DA HISTÓRIA: Não fales dos outros, se não queres que falem de ti!
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Autor Ascenção Lopes Três contos
A QUINTA DO TIO ZECA O João e a Rafaela eram dois irmãos. Durante as férias de Páscoa, decidiram visitar a quinta do tio Zeca e levaram com eles os amigos que viviam na mesma rua. O tio Zeca morava distanciado da cidade havia muitos anos. A sua quinta e a sua casa eram o sonho de muitos meninos. Estes ao entrarem em casa do tio Zeca, logo sorriram imenso, pois tudo parecia quase perfeito. A cantoria dos perus, avestruz, galinhas, galos, pintainhos, patos, pavões, melros, cotovias, cegonhas, papagaios, rolas, rouxinóis, gaios, cucos, andorinhas, cavalos, bois e até dos grilos transmitiam-lhe uma infinda alegria. Tudo isto parecia uma orquestra musical num ambiente mágico.
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O João era o menino mais velho deles todos e não quis perder tempo, muito ansioso e curioso logo visitou o local dos cavalos e dos bois e exclamou: - Venham ver isto! É o nascimento dum bezerro e ele até já caminha e ainda agora nasceu?!...estou maravilhado! - Agora será amamentado durante cinco meses – disse a sua irmã Rafaela. - Olhem só os cachorrinhos, os gatinhos e até os coelhinhos brincam incansavelmente connosco – afirmou uma das meninas. - E já enrodilharam meia dúzia de novelos de lã! – acrescentaram alguns meninos apertando os atacadores das suas sapatilhas que já tinham sidas lambidas e puxadas pelos cachorrinhos. Os passarinhos voavam de ramo em ramo e chilreavam alegremente. A brisa soprava nos jardins e, nas árvores, as pétalas das flores soltavam-se embelezando e perfumando aquele pequeno universo. Os peixinhos bebés e as rãs bebés escondiam-se debaixo dos nenúfares, enquanto os peixes grandes mergulhavam e nadavam naquelas fontes e lagos que despertavam a curiosidade dos visitantes. - Ena! Ena! Olhem só! Como os patinhos nadam atrás da mamã pata – exclamaram as crianças extremamente comovidas com aqueles lagos que pareciam a segunda casa de algumas aves. - Uau! Uau! Estão aqui duas dezenas de ninhos e dez dúzias de ovos – contaram os mais crescidos muito entusiasmados com aquela linda descoberta. 47
Estas crianças enquanto procuravam outros ninhos, rimavam assim: Passarinho, passarinho Onde está o teu ninho? Ofereces música e alegria Eu não sei a tua idade Cedo, ao romper do dia Acordas a gente da cidade. Viajar é o teu caminho Contigo queria voar Ser teu amiguinho E abraçar a terra e o mar. Passarinho, passarinho Onde está o teu ovinho? Nas descobertas de outros ninhos, as mamãs pombas e as mamãs andorinhas não arredavam pé dali e também não paravam de cantar. - Meninos, é expressamente proibido tocarem nos ninhos e nos ovos. Devemos respeitar cada ovo, porque cada ovo significa uma nova vida! – disse o tio Zeca com a voz cheia de sabedoria. De repente, a Rafaela admirou-se e disse: - Uau! Uau! Isto continua a deslumbrar-me. Vou já montar em cima duma avestruz. 48
E assim foi. Ao montar, caiu, pois a avestruz detestava transportar pessoas. O seu irmão João ao vê-la caída no chão chutou imediatamente as galinhas e levantou-a. - Rafaela, estás bem? Magoaste-te? - Não, não me magoei simplesmente me assustei e também me preocupei contigo. João como é que tu conseguiste chutar as galinhas e tocar na avestruz se tens se tens medo das aves? - Sabes, mana, este acontecimento foi mais forte do que o medo que sentia por todos os seres cobertos de penas. E também cheguei á conclusão que afinal as penas são sedosas e fofinhas. Naquela tarde tudo corria às mil maravilhas. O tio Zeca sentia-se feliz com aquelas crianças todas e, enquanto ia mostrando a quinta, ensinava como se devia cuidar dos animais dando-lhes comida e bebida. E também como dar-lhes banho e escová-los. Explicou-lhes como os animais eram vivos e activos. Deu o exemplo dos burros que só eram burros de nome, se não eram muito espertos. E também se diferenciam dos cavalos através das orelhas e da voz: “hi - hon”. Caminham facilmente nas calçadas e pedregulhos. Entusiasmados com as lições do dono da casa, as meninas traziam os animais pequeninos ao colo e os meninos imitavam vozes e assobiavam. Enquanto a Rafaela, por sua vez, muito inspirada, desenhou o tio Zeca como um homem alto, robusto e com um grande chapéu de largas abas. 49
E o João escolheu desenhar a casa e a quinta com os animais que se encontram em via de extinção. As cores do pôr – do – sol já coloriam o Céu e antes das crianças regressarem às suas casas o tio Zeca resolveu contar a história daquela casa. Pois um dia fora viver para ali, para ser tão independente e feliz como aqueles belos animais a quem ele prometeu dar uma vida com qualidade sem incomodar os vizinhos.
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AS FÉRIAS DE PÁSCOA Num dia de Páscoa, depois da missa, os primos, tios, pais e avós da Ana Rita almoçaram todos juntos. Pela tarde, na hora do lanche, o Márcio e o Abel voltaram a meter os preparativos na enorme mesa familiar. Nesse preciso momento, exclamou a Ana Rita: - Oh, não! Não pegues assim no pudim que pode cair. Este pudim quase que o fiz, sozinha mas a minha mãe não deixou que eu o metesse no forno, porque ainda sou pequena e corro o risco de queimar as mãos. - Eu gosto de ajudar na cozinha! O compasso acabara de sair desta casa, quando o Abel todo contente rimou nesta quadra: Páscoa é o dia da Ressurreição Da grande aleluia e alegria Meus padrinhos deram-me o folar E com a família estou a festejar A revelação de Jesus neste dia. Toda a família estava radiante, uns conversavam dos tempos antigos e outros comiam amêndoas. E, de repente, o senhor João exclamou: - Antigamente na minha aldeia fazia-se o jogo da reza. - O que é isso pai? – perguntou a pequenita. 51
- O jogo da reza era assim: arranjavam um amigo ou amiga e sempre que o vissem dizia-se: reza, ou vice-versa. O último, ou seja, quem fosse um dos primeiros a mandar rezar no último dia antes de Páscoa ganhava um pacote de amêndoas. Entretanto bateram à porta. A senhora Joana, ao abri-la, ficou perplexa, pois era o sobrinho Márcio que trazia ao colo um gatinho pequenino. Olhou para a avó e disse: - Toma, avó Rosa, é ainda pequenino. Deixou há poucos dias de ser amamentado e tens que lhe dar um nome. Por uns segundos, o silêncio abraçou aquela casa. Todos apreciaram o gatinho e pegaram nele ao colo. A avó muito comovida disse: - O nome do gatinho é Pascoal. - Sabes, avó, é filho do Tareco. Nisto o gato rebolou-se no chão e com uma pata começou a tentar lavar o focinho e exclamou: - Miau, miau, miau, uf! uf! - Anda para mim Pascoal e lembra-te que somos dois amigos. - disse a avó Rosa. Finalmente o gatinho corou de alegria e continuou a miar. E mais uma vez todos o admiravam.
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O DIA DAS BRUXAS Num dia à tarde, a Ana Rita e os primos sugeriram: - Hoje é o dia das bruxas e dos finados, vamos encontrar as abóboras assustadoras? - Uau ! Uau ! Vamos ! Concordaram todos em simultâneo. Nisto comentou o Márcio: - E começamos pela nossa rua. - Olhem, primeiro visitamos a casa do amigo Pedro, ele festeja anualmente esta data – disse o Abel. Quando menos esperavam, o Nuno lamentou-se: - Caminhem devagar, caminhem devagar, não vêm que eu ainda sou pequeno á vossa beira. O Pedro ao vê-los ficou feliz e mandou-os entrar em casa, mostrou-lhes a varanda onde em cima dum grande vaso de barro tinha colocado uma enorme abóbora decorada e recortada com olhos triangulares e um nariz rectangular, tão cumprido que quase tocava na boca, esta tinha um corte idêntico a uma semi-esfera. Dentro desta boca brilhavam uns dentes branquíssimos extraídos duma cebola. Admirados, continuaram interessados em busca de diferentes surpresas. Já tinham percorrido a rua toda, quando avistaram ao longe uma casinha que reluzia imenso. 53
- Olhem, olhem, olhem só! Que luzes serão aquelas? Se calhar é um posto de luz da rua! - Cá para mim é a luz duma casa! – afirmaram um deles. Nisto o Nuno sugeriu: - Eu nunca vi nada assim, vamos lá ver? - Sim! Vamos! Vamos! E assim foi. Seguiram os cinco em fila com passos apressados e curiosos. Porém quando lá chegaram viram que ninguém lá vivia. Pois era uma velha cabana desabitada com uma única entrada e com duas janelas ruídas pelo tempo. No interior existia uma mesa com pernas muito altas, aonde nela descansava um gigante ovo preto com velas de multicores. Esta iluminação tremia com a aragem que vinha das janelas esburacadas. Nos quatros cantos negros da casa, apresentavam-se três caveiras e um esqueleto que também dançavam ao toque do vento enlaçado com as folhas daquela estação. Decepcionados com estranhos ruídos e com a mesa que vibrava, eles irreflectidamente assombrados olharam uns para os outros e disseram: - Que medo! Que medo! Que medo! Socorro! Socorro! Isto é medonho pois até parece bruxedo! O Nuno amedrontado começou logo a tremer, tremeu tanto e tanto que até fez com que os outros tremessem também. E nesse instante um deles teve o instinto de se esconder debaixo da mesa, e agarrou-se á perna dela. Esta por sua vez não resistiu e partiu. Imediatamente tudo caiu no chão, as caveiras, o esqueleto e aquele grandioso ovo da cor da noite. 54
- Socorro! Socorro! Socorro! - Parem, parem com esse terrível medo porque afinal isto foi divertido! – disse a Ana Rita durante o tempo em que pesquisava o ovo. E seguidamente o Nuno iniciou a gaguejar sem parar: - Di- ver - ti- do – do - do, isto diver - t i - do - do - do, nunca e nunca!? - Sim, isto até teve bastante piada, venham cá observar isto – disse outra vez a Ana Rita. - Realmente, o esqueleto é falso, porque para ser um esqueleto humano tinha que ter aproximadamente duzentos ossos. Contudo o ovo escuro é na realidade um excelente melão. Na qual tiveram o cuidado de extraírem o miolo, deixando as duas metades vazias, as quais foram pintadas com tinta preta. O pequeno Nuno ao ouvi-los suspirou aliviado e ficou tão e tão tranquilo que até rejeitou de gaguejar. Já estavam todos perto de casa, quando o Márcio contou: - A minha mãe sempre me disse que este dia de HALLOWEEN não é o dia dos bruxedos, mas é sim o dia dos divertimentos.
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Autor Catarina Dinis Pinto Dois contos
A ABELHA CICI APRENDE A LER O dia despertou, E a história começou, Pelo ar, Uma história para escutar… Na Aldeia da Alegria havia uma família de pequenas abelhas, que viviam muito perto de uma floresta e numa dessas ultimas árvores da povoação estava a casa dessas abelhinhas. E como era tão bonita e limpinha pela mãe da Abelha Cici.. . todos os dias abria a janela para deixar entrar o ar morno e o cheiro dos pinheiros em plena primavera. Era hora de despertar, a luz do sol entrava pelas largas janelas do quarto e acordava lentamente as irmãs Abelhas…. Sem dar conta já era hora do pequeno almoço, sentaramse na mesa um pão torrado com mel e um sumo fresco de laranja…
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Hoje sem duvida era um dia tão importante para a Abelha Cici, na verdade a Professora Lua tinha falado ontem que hoje iam começar a ler. Quanta emoção e pressa para chegar a sala de aula hoje…pois tinha começado há pouco tempo as aulas, mas já conheciam as silabas, sabiam juntar algumas e até fizeram uma lenga-lenga com elas, juntavam vogais e consoantes e faziam entoar uma melodia encantadora. E sem saber que estavam a fazer uma especial de magia com essas mesmas silabas, construindo pequenas palavras. A abelha Cici hoje aprendeu, com as suas irmãs, amigos, os livros e com a ajuda da professora Lua que é muito importante ler, compreender cada letra, cada texto, para sonhar e crescer… Quando sair da escola, vai à biblioteca buscar novos livros para finalmente começar a ler… Quando o dia começou… A abelha não entendia, O quanto é importante ler, E assim ajuda a crescer mais.
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O ALFABETO CURIOSO Era uma vez dentro de um livro antigo, empoeirado, numa biblioteca, umas letras muito curiosas, todas as letras chamavam-se Alfabeto… O Alfabeto que vivia no tal livro desejava-se transformar num castelo encantado, de supressas e risos. E aí viviam inúmeras letras: A aventureiro, B bem-educado, C curioso, D destemido, E engraçada, F feliz, G genuíno, H habilidoso, I inteligente, J jovial, K king sem duvida rei, L lutador, M Maravilhoso, N natural, O observador, P paciente, Q querido, R responsável, 58
S sábio, U único, V verdadeiro, X xadrez adora jogar, Z zeloso….
Tão zeloso que ainda anda a procura do W e Y, que estão presos em alguma torre juntamente com um dragão….
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Autor Celeste Almeida Três contos
CARNE QUEBRADA E NERVO TORTO Era uma vez um almocreve, que desafiava as tristezas, cantando para os penedos da serra. Com o burrinho carregado de carvão, percorria as colinas feitas de terra batida, na aridez do tempo. Os versos rimados, deixados no vento, eram rios de águas turvas, mergulhados no horizonte sem cor. Com o suor do corpo bebia os espinhos da paisagem muda, que o sufocava. Sempre que avistava algum povoado, fazia ouvir-se, rasgando a montanha com seu compasso, ritmado nos cascos do burrinho. - O almocreve e o burrinho, o carvão a carregar, a fim de alimentar, a família que tem. O almocreve e a pedinchona, 60
comendo pão e azeitona, Lamego vai, Lamego vem. Eu no caminho cansei, numa vida que eu nem sei, como venci tal guerra, sempre de terra em terra- entoava, sem alegria, o almocreve. Numa tarde, adormecido na melodia da vida, aproximavase do nicho do Senhor dos Aflitos, a caminho de Gosendinho, quando uma enorme cobra assustou o animal. Correndo sem destino, ignorou o chamamento do dono. O pobre do homem deu velocidade aos socos e desbravou terrenos virgens, na ânsia de pegar a corda que arrastava o verde do mato. Um grito de dor fez tremer o Senhor dos Aflitos. - Ai o meu pé! - queixou-se a si próprio, caído por terra. Permaneceu sentado na rocha durante longos minutos, até que o jumento se aproximou. - Anda cá, preciso do teu corpo, para me levares até Lamego. Eu não consigo dar um passo. Montou no burro e regressou à terra. Sua mulher era uma "santa" que curava todos os males. Mal viu o marido, preparou a benzedura. Pegou numa agulha e num novelo de linha. Com o pé no seu colo, começou a reza, fingindo que estava a coser um tecido de linho. - Eu te coso. - orava ela. - Carne quebrada e nervo torto. - respondeu ele. - Cosa a Virgem melhor do que eu coso pelo vão. Em louvor de Deus e da Virgem Maria, Padre Nosso e Avé Maria. Finda a benzedura, molhou os dedos em azeite e esfregou-lhe a parte dorida e inchada. Rezou um Pai Nosso e
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uma Avé Maria a Santo Amaro, advogado dos ossos partidos e ofereceu o marido a Nosso Senhor dos Aflitos, nicho do lugar onde o acidente tinha acontecido. Durante nove dias, todo este ritual foi feito. As melhoras faziam -se sentir, dia após dia, nas linhas do novelo. A agulha coseu, em cada ponto, todo o padecimento do marido. Os dias passaram. O vento soprou uma brisa suave suspensa em molhos de giestas. O tempo voltou a ter cor no negrume do carvão. O Senhor dos Aflitos em Gosendinho, acolhia de braços abertos na cruz, o almocreve que sempre que por lá passava, ajoelhava e mergulhava em oração.
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NOSSO SENHOR DA BOA MORTE Eremita num jardim de maias, ergue-se o nicho do Senhor da Boa Morte, na localidade de Peixeninho. Edificada num tempo imemorável, jaz na memória de uma vida escrita na dureza das rochas e nas linhas dos rostos. Beijada no sol da tarde, fechada na triste melancolia, muitas dores chora nas suas pedras. O chão, regado por rios de lágrimas, ouve o silêncio das promessas sussurradas nos peitos, celeiros de sofrimento. - Ó da casa, hoje, não precisa de nada! Venha ver o bom queijo fresco da Gralheira! Trago laranjas, carne fumada, sal, azeite e outras coisas mais! - gritava o almocreve com seu cavalo carregado de cansaço. - Hoje, não tenho dinheiro, bom homem! - responde, por um postigo negro, a Tia Albertina. - Pode pagar com lã ou linho! Eu aceito trocas! Eram muitas as vezes, que o almocreve percorria a pequena aldeia e de lá saía, com os bolsos cheios de nada. Numa manhã amputada de vida, ao chegar ao adro da capela da Nossa Senhora dos Prazeres, os sinos tocavam docemente. A aldeia acordava de mãos dadas, nas colinas 63
vermelhas da paixão. O senhor João, com muitos caminhos tortuosos rasgados na poeira do chão, desceu do cavalo e debruçou-se no fontanário para lavar o suor do rosto. Sentiu uma forte dor no peito e deixou-se cair naquele lugar. O cavalo, fiel amigo do dono e, companheiro de todas as horas, lambia-lhe as faces. Sentindo que algo de grave se estava a passar, deitou-se e com as patas dianteiras, abraçou a dor do homem inanimado. Lentamente, os olhos abriam as cortinas e a luz penetrava na alma. Agarrado à corda do cavalo, ergueu-se lentamente. Olhou a água do tanque. Uma imagem refletida nos limos, cor da esperança, sorria para ele. - Nosso Senhor da Boa Morte, valei-me! Que será dos meus oito filhos, se a morte me levar! Minha mulher, como bem sabeis, está muito doente. O bicho ruim, entrou no corpo e está a comer-lhe a carne. Não permitais que eu desfaleça aqui, Senhor da Boa Morte! E, já agora, que está a ouvir-me, interceda também pela minha Custódia. Curaia. Livrai-a daquele bicho, que onde se mete tudo destrói. Prometo um saco cheio de cera e sempre que venha a esta terra, rezarei um terço, em ação de graças, à volta do Seu chão sagrado. A imagem, misteriosamente, desapareceu. A água tornouse da cor do céu. A fonte sussurrava um cântico de louvor. Montado no seu cavalo, regressou a casa, onde sua mulher o esperava, com o caldo de cebola regado com unto na panela de ferro. À volta da mesa, os filhos rezavam o terço, olhando um crucifixo de madeira. - Louvado seja Deus, Nosso Senhor! Louvado seja, o Senhor da Boa Morte. - murmurou o homem. 64
A mulher, que esperava a passos largos o anjo negro da morte, tinha no olhar um feixe reluzente, que pintava as paredes da casa com cores de amoras silvestres. A alegria, há muito fugidia do lar, renasceu na chama dos corações, que pulsavam a seiva da gratidão. O amor e a paz ecoaram num punhado de suspiros, feitos pérolas de um rosário em lábios silenciados. Os espinhos ensanguentados de ternura, transformaram-se num tufão de flores amarrados com o prazer da vida. O almocreve, enquanto viveu, cumpriu a promessa ao Senhor da Boa Morte. O saco cheio de cera foi posto no nicho. O terço foi sempre rezado de joelhos nus, naquele espaço vazio, onde a terra canta em oração.
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POR TERRAS DO MONTEMURO Na aldeia de Pimeirô Na aldeia de Pimeirô Sem nada eu fui feliz O pão que Deus amassou Comi dele, quanto quis Uma humilde casinha Foi meu abençoado lar Encontrei na Teresinha Uma irmã para amar A cama era pequena De palha o seu colchão Na leveza de uma pena Nasceu amor no coração Sinto o cheiro do feijão Na panela a cozer Era feita uma oração Antes de se dar a comer Agradecíamos ao Senhor A chegada do novo dia Na silva nasceu flor Na tristeza alegria Meu castelo era a escola Pequenina e pobrezinha De pano tanta sacola Com a lousa escurinha
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Cada aluno, uma esperança Cada olhar um abraço Tanto sonho de criança Preso à raiz do sargaço A água fresca da fonte Encontro de namorados Corria livre nos montes Pelas bruxas assombrados Na capela rezei o terço No silêncio escrevi histórias Esta aldeia foi um berço Que embalou minhas memórias
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Autor Céu Enes Um conto
JOANINHA, A MENINA QUE NÃO GOSTAVA DO SOL Numa aldeia, morava uma menina, chamada Joaninha. Era bela esta menina, mas tinha uma vida muito sofrida, pois não gostava do amarelo. Ela, lá teria a sua razão, por onde passava associavam sempre o cabelo dela com o amarelo. A verdade é que tinha os cabelos tão loiros, tão loiros, que as pessoas quando a viam associavam o nome dela sempre a algo, amarelo. Certo dia, na escola e como de costume à segunda-feira era a “ Hora das Novidades “. Todos os alunos tinham algo para contar e ao longo dos tempos, até pensaram em conjunto um conto escrever, porque afinal todos tinham lindos contos, de fadas, animais, profissões, muitos sabiam versos, outros anedotas, outros sabiam fazer acrósticos e havia na sala muito artistas para dramatizar, dançar, cantar, bailar e sabiam fazer belas obras de arte nas pinturas retratadas…! 68
Então a professora Nandinha, perante tal situação, laçou o desafio vamos criar um conto, onde todos podemos sonhar…! Todos se alegraram, mas a menina Joaninha, triste e pensativa, só pensava, espero bem que ninguém de lembre do amarelo, do sol, do girassol…. e, aquela fofinha menina, com olhos cor do céu, do mar, as lágrimas no rosto eram rimas pouco espelhadas. Esta menina era admirada por todos, mas o que o coração sentia era bem diferente e vivia amargurada. Nandinha uma professora que conseguia ler a alma dos seus alunos, pois muito aprendeu com eles e de tanta entrega, sempre rodeada de flores, umas naturais, outras pintadas, outras desenhadas, mas todas com perfume de amores…, no dia seguinte, começaram a escrever o conto. Começaram o dia a registar o estado do tempo Os raios de sol até pela janela entravam E, lá no seu cantinho: - disse o Rafael Ó professora, eu não vejo o sol, porque à minha frente está a Joaninha. E Nandinha que sabia abrir corações Diz, diz…! Rafael Olha, vais-te sentar ao pé da Florbela Ela está a ficar muito inspirada, ao ver o sol a entrar…! É verdade professora, quero contar o que me aconteceu Conta, conta, linda menina… é do conto que queres falar? Sim. Sabem que fui visitar um castelo… E, vi reis, rainhas, quadros e até cavalos. E, neste misto de emoções começaram a falar de amizade e a Joaninha então disse que conhecia a flor do sol. 69
Flor do sol…! Questionou a professora. Os meus pais falaram-me que era o girassol. E, logo o Rafael comentou tem muitos na casa dos meus avós. E, mais disse-me que até podíamos comer as sementes, que eram muito boas para a nossa saúde. A conversa continuou e voltaram ao castelo, pois estava já em ruínas, mas banhado de histórias, lindas e tristes memórias. A professora que lição queria dar, ou pelo menos colocar os alunos a pensar, começou a cantarolar…” Sol de verão, sol de outono, sol desta ou de outra estação…” E, o silêncio tocou a imaginação, com tanta felicidade e na leveza das palavras motivada pelas flores, mesmo de cor amarela lá entrou no imaginário e foi visitar o castelo. No castelo tinha roupas de inverno e verão Trajes pintados a ouro e outros eram contos de fadas Todos os retratos eram diferentes, era gente linda de antigamente E, Joaninha voltou a falar…! As carpetes têm rendas, coroas, pérolas Olhos de malmequeres e sorrisos amarelos Diz, diz, Joaninha…! Tu és princesa neste castelo A sério…! Espantado e curioso estava o Rafael.
Ai, querida professora… que beleza de castelo Agora, fico a pensar e já gosto do amarelo Sabes Joaninha, também conheço joaninhas Aquelas vermelhas com pintas pretinhas? 70
E, Fernandinha aproveitou para continuar a cantar o fado, pois de contos até se apercebeu que não era o seu melhor lado. Mas, é preciso acreditar que os sonhos podem ser realidade, e, tal como uma criança, sonhos tinha abraçado, fantasias, tristezas, alegrias, criatividade, estimulação, sentimentos e prosperidade, tanta, tanta coisa… tudo é educação. Entre este viver escolhido, no meio do jardim florido existe muita beleza e por vezes bem escondido. De uma coisa tem a certeza, não conhece melhor profissão para além de ser bom jardineiro. Pois, a doçura deste conto está em tudo bem cuidar, a terra, as flores, os rios, o sol, o luar … e tudo o que fortalece os sentimentos é abraçar e ser abraçado na mais pura das verdades. Este conto não foi pensado, mas foi ilustrado com o Sol que é rei nesta realidade, e uma palavra errada passou a ser abençoada. Agora, temos a Joaninha a voar sozinha, a cor não importa, lá disse a amiga Florbela, pois a lição aprendeu ela, só é preciso gostar de nós e a cor pode ser dourada…! As joaninhas são pequeninas Mas, muitos gostam delas A doçura está nos olhos De quem olha para elas. Todos temos cores diferentes Rosas floridas são presentes Se juntarmos o amarelo O céu fica muito contente. 71
Este conto fica para a história Joaninha virou estrela na aldeia Os sorrisos pareciam joaninhas O amarelo até contagia.
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Autor Dulci Ferreira Dois contos
ESPÍRITO DE CONTRADIÇÃO A vida nas aldeias tem os seus encantos, mas também os seus desencantos. Não é fácil trabalhar de sol-a-sol na terra lavrada. Semear e tratar dos ‘mimos’. Vê-los crescer e frutificar. Até que aconteça, muito trabalho árduo há pelo meio. De certo modo, eu e Mercedes, minha irmãzinha, fomos sempre privilegiadas e poupadas ao trabalho nos campos, talvez por sermos as mais novas do núcleo familiar e ainda andarmos a estudar. Depois, alguém tinha que se ocupar do pastoreio. Em tempo de escola, íamos de manhã para as aulas e de tarde saíamos com o rebanho para os montes ou para as lameiras de pastagem. Apenas de vez em quando nos juntávamos à faina rural. Como meu pai trabalhava na cidade de Viseu e estava fora a semana inteira, só regressando a casa aos fins-de-semana, a lavoura ficava a cargo de minha mãe e de minhas irmãs mais velhas, Ester e Alice. Meu irmão António estudava na cidade e por lá ficava com o pai. 74
Quando digo que era uma adolescente muito irreverente e, por vezes, até rebelde, deve-se à força interior e à capacidade de encarar tudo e todos sem receio ou cobardia. Enfrentava, desafiava, respondia… Contudo, não entrava em brigas, a não ser para me defender ou defender aqueles que o não conseguiam fazer por si mesmos. Havia muita criança a sofrer bulling nas escolas e até fora delas. Eu também sofri na pele a crueldade de alguns colegas e mesmo de miúdos mais velhos. Lembro de, certo dia e já no liceu, um dos alunos se meter deliberadamente comigo durante o intervalo, provocando-me até me deixar muito irritada. Aguentei o que pude, avisando-o de que estava a habilitar-se a passar vergonha em frente dos colegas, mas ele não parou de me importunar. Nesse dia, dei-lhe uma tareia tão grande que lhe deixei o nariz a sangrar. Depois, senti tristeza por vê-lo assim. E vergonha também por tê-lo espancado. E pedi desculpa, prometendo a mim mesma, não mais me deixar provocar. Contudo, havia coisas que me irritavam profundamente. Se eu não me metia com eles, se não os tratava mal, se não beliscava aqui e ali a sua integridade física e estabilidade emocional, por que motivo me desacatavam? Talvez pelo simples facto de que gostavam de me ver furiosa e a reagir às provocações. Naturalmente que com um pouco mais de maturidade, me estaria marimbando para as instigações de uns e de outros. Todavia, esta postura de defesa também me valeu de forma positiva pela vida fora, em que muitas vezes precisei de defender-me das quezílias familiares e das investidas de alguns homens que de 75
tudo faziam para se aproximar de mim. Sim, cheguei a sofrer de assédio por parte de alguns sujeitos com quem trabalhava, durante o tempo em que fui empresária no ramo dos materiais de construção. Era um mundo praticamente masculino, no qual tive de me impor e exigir respeito e consideração. Ainda escutei algumas vezes as frases: “Você é muito nervosa para o negócio. Prefiro negociar com o seu marido. Vá mas é pra casa cuidar das criancinhas.” Ao que eu respondia: “A empresa é minha, não do meu marido. Se deseja alguma coisa, terá que se entender comigo.” Eram tempos diferentes, onde o lugar das mulheres era a cuidar dos maridos e dos filhos, da casa, dos animais e dos campos. Havia muita desigualdade e discriminação. Poucas trabalhavam nas empresas ou ocupavam lugares de topo. O escudo protetor, de autodefesa, que fui criando ao longo da vida ajudou-me a sair ilesa das mais variadas situações e a chegar aqui sem rancores, ressentimentos ou traumas, resolvendo com espírito aberto e muita sabedoria qualquer pendência ou discórdia que chegasse a existir. E não foi fácil esta imposição num mundo de homens, onde as únicas mulheres com que lidava eram as clientes que vinham à exposição da empresa para escolher os materiais para as suas casas, ainda em fase de construção. E eu consegui esse “empoderamento” e ser respeitada e admirada por todos, sem exceção. Já lá vão mais de 30 anos. …
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Enquanto adolescente, confesso que tinha um terrível espírito de contradição e é dessa personalidade complexa que pretendo falar. Há crianças que sempre que lhes mandam fazer algo, de imediato dizem: “Não Vou! Não faço! Não Levo!...” No meu caso, se alguém me mandasse fazer alguma coisa, eu dizia logo que não ia, mas indo imediatamente. Para exemplificar, vou contar-vos uma história: Antigamente não havia água canalizada nas casas e para ter acesso ao precioso líquido era necessário ir busca-lo às fontes, em baldes, jarros e em regadores. Também se usava uma espécie de canastras de madeira e as famosas cantarinhas ou cântaros de barro. Certo dia, minha irmã Ester precisou de água para cozinhar e lavar a louça. Como só estávamos as duas em casa e ela muito ocupada no momento, mandou-me a mim buscar um jarro cheio de água à fonte da aldeia. A minha primeira reação foi dizer que não ia. Ela repetiu que fosse e voltasse depressa, mas eu voltei a dizer que não ia. Que fosse lá ela. A fonte ficava relativamente perto (pouco mais de 100 metros) e eu era destemida e ágil. Rapidamente corri a encher a vasilha, voltando para casa com a mesma celeridade com que saíra. Ester nem se apercebeu da minha curta ausência. Entrei em casa com pés de lagarta e coloquei o jarro cheio de água exatamente no mesmo lugar de onde o tinha tirado. E continuei entretida a brincar, como se nada se tivesse passado. A dada altura, Ester levantou a voz e perguntou: “Já fizeste o que te mandei?” 77
“Não! Já disse que não vou buscar água nenhuma!” Furiosa, ameaçou: “Vai lá depressa ou estoiro-te o lombo!” “Já disse que não vou. Não vou e ponto. Por que não vais lá tu?” E a cena repetiu-se até Ester se passar da cabeça e me dar a maior sova da minha vida. Até a pés me calcou. Ainda debaixo de pancada e banhada em lágrimas, gritei: “Paraaaa! Não vês aí a água? Já a fui buscar há mais de meia hora!” Ester ficou desolada e com remorsos por me ter maltratado tanto. Depois de constatar que o jarro estava mesmo cheio, virou-se para mim e disse: “Maldito espírito de contradição! Parece que gostas de apanhar. Por que não disseste logo, sua doida? És mesmo ruim! Ainda devias apanhar mais por seres tão casmurra!” E virou-me as costas bruscamente para que eu não visse uma lágrima a escorrer-lhe pela face, como cascata a despenhar-se do cimo de uma montanha. Sentia-se culpada por me ter batido tanto e injustamente. Afinal, eu tinha cumprido a tarefa. Ao ver minha mana tão triste e chorosa, doeu no mais profundo do meu ser. Uma certa agonia mexeu com as minhas emoções e fez-me pensar que tinha de ser diferente. Nesse dia cresci em maturidade e também em responsabilidade.
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SER CRIANÇA NUM TEMPO DÍSPAR Dos meus tempos de criança, não recordo se alguma vez tive um brinquedo especial ou se realmente tive algum brinquedo. O que recordo é de uma boneca de trapos que minha mãe me fez com pedaços de tecido velho; uma boneca sem olhos nem boca mas tão expressiva que para nos entendermos bastava que eu a olha-se sem qualquer sentimento menor, de inveja ou despeito por não ter as mesmas possibilidades de certos meninos da minha aldeia. Alguns tinham os pais emigrados e, quando em tempo de férias regressavam a casa, traziam na mala, não apenas a dor da saudade e a alegria do reencontro, mas também brinquedos e guloseimas para, de certa forma, compensarem a prole pela prolongada ausência. Talvez algo que nem os mesmos degustavam durante o ano inteiro, levando uma vida dura, de grandes sacrifícios e privações em terras distantes, sujeitando-se a todo o tipo de tarefas e a laborar muitas horas seguidas, quase sempre, com mais do que um emprego para que o soldo fosse maior no final do mês. Tudo angariavam para, no regresso, encherem os cofres dos bancos que, naquela altura, não se queixavam de crise por falta de caché. Quantas lágrimas vertidas, dores da alma ou sorrisos apagados pelo hífen da distância?! Se é difícil emigrar na atualidade com todas as facilidades de viajar e de comunicar, imagine-se há 50 79
anos atrás!... Isto para nos situarmos na minha época de criança. Mas estávamos a falar dos brinquedos que nunca tive e penso que meus irmãos também não, à exceção de Mercedes, minha mana mais nova, a quem o padrinho certa vez, em viagem numa excursão, comprara uma boneca de plástico sem roupa, já com o intuito de mostrar à afilhada que estava na hora de aprender a fazer alguma coisa. E porque não, a costurar, começando por confecionar as roupinhas da sua boneca? Lembro que para mim trouxe um anel de pechisbeque com uma pedrinha vermelha. Eu achei lindo o gesto do meu tio. Afinal, sempre era uma lembrança gira. Coloquei-o no dedo e só o tirei quando o amarelo dourado começou a oxidar e a pedra perdeu completamente o brilho. No meu tempo, as crianças inventavam as próprias brincadeiras. Naquela altura, a televisão ainda não tinha chegado às aldeias e a interação entre a criançada acontecia naturalmente nas ruas ou nas eiras, nos recreios e pelos montes, enquanto pastoreávamos o gado. E fazíamos imensos jogos. Lembram-se de “O Lencinho Vai Na Mão e Ele Quer Cair ao Chão”? E daquele em que dizíamos “Um Dois Três Diga Lá Outra Vez”? E o “À Conquista do Mundo”… Este era particularmente ambicioso. Primeiro, desenhávamos uma grande circunferência no chão a representar o mundo inteiro. Depois, cada um partindo de um ponto, lá íamos espetando uma cavilha de ferro na terra e conquistando pedaços de chão. Perdia-se a vez quando a cavilha (prego de grande dimensão ou pedaço de verguinha afiada) tombasse por terra. Quem mais 80
mundo conquistasse ganhava o jogo. E lembram-se de “O jogo do Mata”? A um certo momento, um dos jogadores ficava sozinho com a bola nas mãos e tinha que perseguir os outros e atirar-lhes com ela. Se conseguisse acertar em alguém, o jogador atingido tinha de fingir-se de morto e era automaticamente excluído do jogo. Era divertido ver a malta a ziguezaguear para esquivar-se a levar com a bola. E o Jogo do Alho, em que a malta se dividia em dois grupos. Um grupo amochava e os outros saltavam-lhes para cima, gritando: “Aqui vai alho!”. Havia ainda o Jogo das Escondidas, o Jogo do Pião, e aquele de O Senhor Guarda dá Licença? E O Jogo da Macaca? E o jogo do Um, Dois, Três Macaquinho Chinês? O Jogo dos Elásticos e Saltar à Corda… Na verdade, com tantos jogos e brincadeiras, não faltava diversão aos mais jovens. E quando aprendi a jogar às Cartas? Dava cada capilota aos meus adversários!... Até a mim doía. O problema era que nem tudo corria bem!... Vou contar-vos uma história: Quando pastoreava o rebanho pelos montes, geralmente rondavam por ali outros pastores e o cenário tornava-se belo e bucólico, com as ovelhas e as cabras a polvilharem de pontos brancos, cinzentos e castanhos a paisagem. O cinzento era mais dos penedos que, de maior ou menor dimensão, também tinham muitas histórias para contar. Não havia dia em que não nos juntássemos para uma brincadeira qualquer ou, então, um jogo de cartas à Bisca ou à Sueca. Na verdade, se as atividades destinadas às crianças já não satisfaziam, adotávamos as dos adultos e tudo 81
aprendíamos fácil e rapidamente. Desconfio que se os livros de estudo nos estivessem proibidos, de certeza que maior interesse teríamos em os ler e estudar. Cabe aqui a velha máxima: “O fruto proibido é sempre o mais apetecido.” Contudo, o que eu mais gostava era de jogar à Sueca. Para um jogo de Sueca são precisos quatro jogadores, silêncio absoluto e perspicácia para conseguir deduzir, logo nas primeiras jogadas, onde para o jogo. Isto é, quais as possibilidades de jogo dos adversários. Segundo reza a história, este jogo foi inventado por mudos, daí a necessidade de se fazer silêncio para a total concentração. Quando era pequena, uma das coisas que me fascinava era ver os homens a jogar à Sueca. Se nos livros que lia me embrenhava nas histórias até fazer parte delas, ao vê-los a “bater” as cartas na mesa captava cada sinal, cada movimento e rapidamente aprendi a jogar também. Todavia, não era apenas eu que me interessava por este tipo de jogos, mas quase todos os miúdos da aldeia. E a cena que vos quero contar tem como mote principal um jogo de cartas. Certa tarde, levei comigo para os montes minha irmã caçula, para me ajudar a guardar o rebanho. Mercedes era o “benjamim” da família e sempre foi muito protegida por todos. Até por mim que virava fera se alguém ousasse fazer-lhe mal. Os miúdos podem ser muito cruéis e a rudeza da ruralidade levava-os a não terem grandes modos. Como tal, era preciso chamá-los à atenção e até dar-lhes uns “sopapos” se fosse preciso para que não aborrecessem a pequena. 82
Naquele dia, juntámo-nos com outros pastores e decidimos fazer uma espécie de torneio de Sueca ao “bota fora”. Embrenhados no jogo e tomados por um nervoso miudinho, aliado à ânsia de ganhar aos adversários, claro está que a distração com os animais era total. Nos momentos de “jogatina” nem lembrávamos que existiam. O tempo foi passando e de repente, eis que minha irmãzinha gritou: - Mana, mana! - Agora não, princesa. Não me interrompas, por favor! - Mana, o gado desapareceu! Não vejo nem cabras nem ovelhas… - A sério? Ai, meu Deus! O gado fugiu novamente. O pai vai matar-me! E todos dispersaram imediatamente, correndo monte abaixo, à procura dos animais que já andavam a destruir o labor nas terras de cultivo. Os donos iam virar feras e crucificar-nos (simples força de expressão). Para piorar, meu pai passava no momento junto às lameiras do dono das terras onde o gado andava a roer o milho e as videiras. Ai, Deus… Que me estaria reservado naquele fim de tarde? Nem queria imaginar… Era sexta-feira, dia em que o pai regressava a casa, depois de passar a semana inteira a trabalhar em Viseu. Para ajudar minha mãe na lavoura, ia abrir às poças das terras que ficavam longe da povoação. Como os dias eram grandes, visto estarmos no final da primavera e quase a acontecer o solstício de verão, sendo preciso regar, apesar de cansado, lá subia o monte de enxada ao ombro para ir abrir à poça da tapada da Juvenca, uma propriedade da família onde semeávamos milho e feijão e tínhamos videiras com 83
uvas de qualidade. Quando vimos o meu pai a falar com o dono das terras para onde o gado fugira, e aquele a fazer queixas e a cobrar pelos estragos, meu pai desatou a correr pelo monte acima com a enxada empunhada nas mãos. Nós, “ó pernas para que vos quero!” Desatámos as duas a fugir, galgando mato e penedos, nem olhávamos para trás, enquanto ele, furioso, batia com a enxada no chão para nos assustar. Tenho a certeza de que nunca teve intenção de nos acertar, mas que estava muito zangado… lá isso estava. - Mana, foge! – gritava Mercedes a choramingar, apavorada. – O pai vai bater-nos quando chegar a casa e a culpa é tua. És sempre a mesma! - Cala-te queixinhas! Deixa-me pensar em como descalçar esta bota. Olha… Enquanto o pai abre à poça e rega o milho, nós reunimos o gado e vamos embora. E foi o que fizemos. Rapidamente atravessámos a aldeia e metemos os animais nas respetivas lojas. Os nossos e os dos outros. Cabras para um lado, ovelhas para o outro. Depois disto, corremos para casa e enchemos a barriguinha. Já a meio da aura crepuscular, pegámos numa capucha de burel e fomos sentar-nos nas escadas da casa de uma vizinha, bem ao lado da nossa, ali ficando embrulhadas no agasalho horas a fio. De vez em quando, minha mãe mandava Alice, minha mana do meio, chamar-nos, dizendo que o pai estava calmo e que não ia fazer-nos mal. Todavia, não entrámos em casa enquanto não foi ele a garantir que estava tudo bem e que desta vez não nos castigaria. No entanto, foi advertindo que nunca mais se repetisse cena idêntica, sob pena de se arrepender e nos 84
castigar a dobrar. Mal ele sabia o que aconteceria pouco tempo depois e desta vez por causa do meu vício pela leitura…
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Autor Joana R. Rodrigues Três contos
NO RECREIO DA ESCOLA Era uma vez um menino, de seu nome João, e tinha por alcunha Janita. Tinha seis anos o pequenito, quando foi para a escola gostava que lhe chamassem de João, como a professora sempre o chamava, ... Mas os colegas que o conheciam sempre chamavam o Janita, até que ele disse aos pais que não queria ir para aquela escola, os pais estranharam, porque ele estava tão entusiasmado e gostava da escola e de repente ficou triste sempre cabisbaixo e os pais estavam a ficar preocupados, e resolveram ir à escola falar com a professora para saber o que se passava! ---A professora disse que não sabia de nada, mas ia observa-los no recreio, os pais insistiram para que a professora resolvesse o assunto, a professora disse para eles irem descansados, no dia seguinte a professora esteve a ver os miúdos no recreio mas o João estava sozinho num canto! até que a professora começou a ver vários miúdos 86
a correrem para ele e puxarem por um braço e chamavamlhe o (Janita Caganita), então a professora foi falar com o diretor para que assistisse aquela situação. Quando regressaram do recreio, a professora reuniu, todos os alunos, estava presente também o diretor que perguntou a todos o que é que se passou no recreio com o João? ninguém falou, todos caladitos que nem uns ratitos, até que a professora disse! vocês sabem o que fizeram? Já cansada de eles não falarem, disse-lhes isso é bowling é humilhar os vossos colegas, devem ser todos amigos e não fazerem aos outros aquilo que não querem que façam a vocês, Para que nunca se esqueçam vão levar trabalho para fazer em casa, vão escrever duzentas vezes (eu nunca mais faço bowling aos meus colegas,) e amanhã quero que me tragam tudo escrito num caderno! e não quero desculpas, e a seguir vou falar com os vossos pais, os meninos quando voltaram a casa começaram logo a escrever, mas estavam há tanto tempo a escrever que os pais estavam desconfiados que havia alguma coisa diferente, eles nem queriam jantar! e o João chorava a mãe, perguntou porque chorava, ele diz que os colegas tratavam-no mal e ele já não queria aquela escola. Até que os pais decidiram ir novamente à escola para saberem o que tinha acontecido? quando lá chegaram já a professora estava a reunir com os pais dos outros alunos que já estavam convocados para uma reunião... para todos saberem o que os filhos faziam no recreio, e todos ficaram pasmados com o que ouviram! 87
assim todos os pais estiveram de acordo, para se os filhos voltassem a fazer bowling ou maltratar algum colega, ficavam na sala de aula e não tinham recreio, Ficaram os meninos a pensar Como resolver a situação Sem recreio não queriam ficar E sem brincarem, isso é que não! Primeiro, foram pedir perdão Para que tudo fosse esquecido Abraçaram o amigo João E o grupo ficou mais unido, O João a todos perdoou E todos amigos são, O João à bola com eles jogou Pois aprenderam a lição!
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UMA MENINA FELIZ Era uma vez, uma menina, de seu nome Joaninha que não gostava de ir sozinha para a escola, mas também não queria faltar, então não tendo ninguém, por perto para a acompanhar, começou a pensar! e se eu combinasse com as minhas colegas? mas nem todas se vão desviar do caminho! mas eu vou falar com a minha mãe! que anda no campo a trabalhar, ela por certo vai ter alguma ideia para me ajudar! a minha mãe chega tarde do trabalho, e o meu pai teve que imigrar, pois quer uma vida melhor para todos nós, mas a verdade é que estou com este problema, e não os quero preocupar, a mãe que já se tinha apercebido, dos receios da filha, e fez -lhe uma surpresa chegou a casa com um lindo cãozinho, para lhe fazer companhia e a menina Joaninha, começou a sorrir e a cantar pois foi tão grande a alegria, que já não pensava em mais nada senão no cãozinho que a mãe trouxera, e pensou dar-lhe um nome, e deu-lhe o nome de (companheiro) bastava ela dizer vamos companheiro e ele ☺ sempre a seguia, a joaninha sempre gostou dos animais trata-os com carinho e eles gostam muito dela, o companheiro ia com ela para a escola, e ficava no pátio do recreio, à espera que as aulas terminassem para regressarem novamente a casa, e assim a Joaninha nunca mais se sentiu só, e a chegada do ( companheiro), foi a maior alegria que teve nos últimos tempos, 89
e a mãe está também feliz porque a sua filha gosta muito de animais e trata todos bem, e se encontra algum gato ou cão maltratado na rua chama logo o( S O S) animal) e assim a Joaninha passou a ser uma menina mais Feliz, A felicidade de uma criança Não se resume a muitos bens Se ela tem um animal na presença Com amor, estima tudo o que tem Se um animal, faz uma criança feliz Porque não! fazer a vontade Dar-lhe amor e carinho, ao petiz Adotar animais, é um ato de humanidade Joaninha, não se esquece do presente Que sua mãe um dia lhe deu, Mesmo que esteja ausente Leva o companheiro, pois diz que é todo seu E com tão pouco, se fazem crianças felizes Quem não gostar de animais é louco Porque fazem a felicidade, dos petizes E todos são, mais carinhosos, por tão pouco,
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PERDIDA NO BOSQUE Era uma vez uma avozinha, que se perdeu no bosque. Estava muito frio e ela pobrezita, precisava de ir buscar lenha, para fazer uma fogueira para se aquecer. Ela tinha dois netos, a quem ela pediu ajuda. Mas o Manuel disse que não tinha força para cortar lenha e o António disse o mesmo. Então a avó decidiu ir ela mesma buscar a lenha. “Está bem, então fiquem em casa e portem-se bem, que eu não demoro.” Mas o dia escureceu e avozinha, que já estava muito longe de casa, começou a ficar assustada pois já andava perdida com o seu molhinho de lenha. Começou a gritar: “quem me pode ajudar?” Mas ninguém a ouvia, por isso sentouse numa pedra e começou a rezar a Deus e à Virgem Maria. Não aparecia ninguém e era já noite. Ao longe, passa um lenhador que viu uma velhinha sentada à beira do caminho. Pensou “eu não vou lá deve ser alguma bruxa que me quer enfeitiçar”. E a avozinha sentada estava, sem poder continuar a sua viagem, a rezar para que os netos a viessem buscar. Mas os netos estavam tão distraídos com os jogos de computador, que nem deram pelo tempo passar. Só se lembraram da avozinha porque eram horas de jantar. 91
Enquanto a avó chorava perdida no bosque, chegou uma cabrita que falava, e disse “não te preocupes eu vou levarte a casa”. Entretanto os netos ao verem que a avó não estava, resolveram ir procurá-la. Seguiram a caminho do bosque, mas como estava muito escuro caíram num buraco. Agora eram eles que choravam, arrependidos de não terem ajudado a avó. O Manuel dizia “Agora ninguém nos vem salvar”, ao que o António respondia “Pois é! Tenho medo e não tenho jantar e num buraco vou ficar!”. Mas a cabrita que seguia com a avó ouviu gritar e aproximou-se e disse “Não tenham medo, eu vou-vos salvar!” “Mas como? Cabrita tu falas tenho medo de ti!” “Não tenham medo, eu só pratico o bem, o que vocês deviam fazer também. Esperem um pouco.” E a cabrita desceu ao buraco e disse “um de vocês sobe para as minhas costas”. O Manuel foi o primeiro, depois diz a cabrita “agora puxa o teu irmão António, que sobe para as tuas costas”. E assim foram saindo e todos saíram do buraco. A avó ficou radiante de ver os netos, e os netos também. A cabrita foi levá-los até a casa da avozinha, quando lá chegaram agradeceram à cabrita o bem que lhes tinha feito. Deram tantos beijinhos à cabrita, tantos, mas tantos, que ela se transformou numa linda Princesa. Ela era a fada do bem, que foi enfeitiçada por uma bruxa que lhe disse “Não fazes bem a mais ninguém! Vou transformar-te em cabrita e só quando duas crianças te beijarem perderás o teu feitiço!”
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O feitiço foi quebrado Pelas crianças inocentes Valeu a pena ser beijada Pois eles foram valentes Foi uma lição de vida Para aqueles meninos Ajudam a avó querida E a enchem de mimos Para o bosque não vão Sem serem acompanhados Aprenderam a lição E pela fada são abençoados Só vão praticar o bem Como a fada bem lhes disse Quando a avó for, vão também Para não fazerem uma burrice Agora que todos estão bem Convidaram a fada madrinha Para fazer a festa também Só faltava a menina Joaninha E assim fizeram a festa Cheia de amor e alegria Se a Joaninha não chegasse A festa não se fazia E assim vence o bem, Amor e muita alegria, Acabou-se a estória Outra virá um outro dia! 93
Autor José Sepúlveda Três contos
STRADIVARIUS
De tempo a tempo, vinha ao povoado Com seu bornal ao ombro. E com prazer Satisfazia assim algum recado Que os seus pais pediam p'ra fazer. E sempre que lá ia, ele parava Na casa desse velho marceneiro E com encantos mil apreciava As obras que fazia, prazenteiro. O mestre era já velho e consciente Que aquele sacerdócio feito amor Iria precisar e muito urgente De encontrar agora um sucessor. 94
Um dia o jovem viu surpreendido O anúncio: "Preciso de aprendiz" E fez-se luz no sonho adormecido De ser um marceneiro e ser feliz. Mas não, como podia ele pensar Em ser um marceneiro se sabia Que havia tanto jovem no lugar Que estar nele lugar almejaria! Mas quando o mestre como desafio Propunha aos candidatos por tarefa Limpar aquele sótão negro e frio, Fugiam do lugar a toda a pressa. Passaram-se semanas. Ao voltar Um dia ao povoado, com surpresa, Olhou e viu ainda a anunciar "Preciso de aprendiz": Eu, com certeza! E cheio de coragem, entra e diz: "Bom dia, mestre, queira me aceitar, Humilde e pobre, como o aprendiz Que o mestre está tentando encontrar" O mestre olhou o jovem com espanto E disse-lhe: "Às sete da manhã Quero te aqui limpando cada canto Do velho e sujo sótão que ali está". 95
Esfuziante, cheio de alegria, Ao regressar das lidas da cidade, Contou ao pai e disse: "Eu sei que um dia Vou ser um marceneiro de verdade". E se a distância longa que existia Do lar ao povoado, com vontade, Um dia e outro dia a percorria E logo se encontrava na cidade. Chegou o mestre. Olhou com simpatia, E disse para ele calmamente: "Sobe essa escada e limpa a porcaria Que anda lá pior cima, faz-te gente!" Subiu a velha escada. A escuridão Cobria aquele sótão. Com coragem, Foi gatinhando, andando pelo chão, Limpando cada canto na passagem. Passou-se uma semana, outra semana E o mestre observava com surpresa A força e a coragem que ele imana Enchendo essa oficina de beleza. Um dia, o jovem desce aquela escada E disse: "Meu bom mestre, aqui me tem, A lida que me deu ei-la acabada, Me diga por favor se ficou bem" 96
O mestre, com a ajuda do aprendiz, Subiu a escada e com grata surpresa Olhou a sala, viu-se tão feliz, Tão cheia de frescura e de beleza E o jovem foi crescendo passo a passo, Fazendo jus à arte que aprendia E desbravando para além do espaço As sensações imensas que sentia. E prosseguiu seu sonho dedicado Levando a sério o mestre e o seu ensino. E um dia se sentiu determinado E ei-lo a construir um violino. Não era mais o humilde fazendeiro, Cresceu e ao seu redor tudo mudou, Evoluiu e num violineiro Prestigiado um dia se tornou. E a fama deste mestre se espalhava E viu a sua indústria florir E toda a gente vinha e procurava Também um violino conseguir. E foi mil violinos construindo Com ávida paixão e amor profundo E pode assim viver seu sonho lindo E ver o Stradivarius correr mundo! 97
A ÚLTIMA CEIA
Contavam que Da Vinci, o grande Mestre, Quando pintava a Ceia do Senhor, Foi a um Mosteiro, a um lugar agreste, Para encontrar modelos a rigor. Então, com todo o gênio e inspiração, Pintou rosto após rosto. Mas depois, Viu um vazio. Olhou com atenção E nesse grupo lhe faltavam dois. Só quando certa orquestra ouviu tocar E o seu maestro irradiava luz, Da Vinci prontamente o foi buscar Para pintar o rosto de Jesus. Para findar a sua obra de arte, Faltava agora Judas, o traidor; E ao procurar por Roma, em toda a parte, O encontrou num torpe malfeitor.
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- Olha meus olhos, vê, não vês quem sou? Aqui me tens, um reles pecador! Da Vinci olhou seus olhos e gritou: - Não pode ser! O rosto do Senhor! - Sim, sou eu mesmo, vê quanto contraste Encontras neste meu olhar profundo No qual há pouco tempo te inspiraste Para pintar o Salvador do Mundo! E a lenda diz que à sombra desse olhar Sentiu como um punhal no coração E pela vida inteira foi pagar A pena dessa insigne criação.
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RÓMULO E REMO (A Fundação de Roma) Rómulo e Remo são, segundo a mitologia romana, dois irmãos gêmeos, um dos quais, Rômulo, foi o fundador da cidade de Roma e seu primeiro rei. Segundo a lenda, eram filhos de Marte e de Reia Sílvia, descendente de Eneias. A data de fundação de Roma é indicada, por tradição, em 21 de abril de 753 a.C. Em terras onde Ítalo se assentava, No tempo dos Etruscos, certo dia, A lenda em pergaminhos registava A estória duma infame rebeldia. Amúlio - que de Reia era tio Da jovem quis fazer uma Vestal Mas Marte foi ao Templo em desafio E engravidou-a sem ver nisso mal. E nessa relação, amor infesto, Rómulo e Remo, gémeos naturais, Seriam concebidos e de resto, Depressa separados de seus pais.
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Dizia-se que Amúlio, em desvario, Furioso com tamanho despudor, Mandou lançar os filhos seus ao rio Num gesto de perfeito desamor. A lenda que no tempo perdurou Foi que uma loba, nessa tarde obscura, Em busca de alimento, os encontrou E os escondeu numa caverna escura. Qual extremosa mãe, os dois meninos Amamentou e eis que, entrementes, Os viu crescer, moldou os seus destinos, E se tornaram fortes e valentes. Até que um dia, Fáustulo, o pastor, Perdidos lá na serra, encontraria Os dois rapazes cheios de vigor E para sua casa os levaria. O doce leite dessa loba mãe, Os fez medrar. E cheios de fulgor, Seguiram conquistando o mundo além, Tornando-se guerreiros de valor. A lenda diz que Remo pretendia Fazer vingar a sua liberdade Mas Rómulo por fim o mataria E construiu assim sua cidade. 101
Depois, seguiu, vitória após vitória A conquistar o mundo - a terra e o céu. E Reia - que perdera sua glória Do incesto com seu filho renasceu! Do fruto dessa vã leviandade Surgiu por fim a Roma Imperial, E no seu seio cresce outra cidade, Quem sabe, um novo Império Universal. Relata a lenda que p'la noite dentro Se ouve a loba uivar com grão clamor, Deixando a sensação, o sentimento, Que Reia incesto foi de um grande amor.
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Autor Josiclénio Sebastião Um conto
ALADIN Chamava-se Aladin A ave que conheceu A gaiola muito cedo. Aladin, colocava um olhar macio como cetim, sempre que sonhava viajar sem medo. O pássaro do jardim azul, em tardes amenas, amava estar entre flores multicoloridas juntinho da sua amada Dona Teresa, o belo pássaro... Adorava rosas e girassóis pois para ele, as vermelhas simbolizavam paixão as cor-de-rosa amor e as amarelas amizade. Tivera seis meses de vida quando lhe tiraram a sua independência, o privilégios de desfrutar do seu jardim do Éden. Por muitos anos, o pobre pássaro viveu longe da sua natureza longe da sua zona de conforto.
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Mas ele nunca soube o que significava desistir até ganhar a sua liberdade e, novamente voltou a sua amada casam junto a suas belas e cheirosas flores.
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Autor Luís Filipe Coimbra Dois contos
A HISTÓRIA QUE A AVOZINHA NUNCA QUIS CONTAR
A História que a Avozinha nunca quis contar. A avó Clementina era adorada por todos os seus netinhos. Miguelito, o mais vivo e traquinas de todos eles, era o primeiro a sentar-se no banquinho de madeira junto do velho cadeirão de verga, cuidadosamente almofadado, onde a avó Clementina passava a maior parte do dia. Nas noites frias de inverno, ali se passavam belos serões no aconchego da lareira. Miguelito, deliciava-se com os momentos mágicos que a avó Clementina lhe proporcionava! Era puro deleite para ele, ouvir as estórias, as adivinhas, os jogos e as brincadeiras que a avó lhe contava. Aquelas noites eram para ele, para a irmã Teresa e para os primos João e Natália, os momentos mais apetecíveis e agradáveis que poderiam ter.
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A magia daqueles momentos, eram de tal forma talentosos, que chegada a hora de deitar, quando a mãe lhes recordava que eram horas de recolher, a pequenada obedecia sem reclamar e despediam-se da avó Clementina pedindo-lhe a sua bênção! Era tal a sensação de satisfação e conforto em todos eles que docemente se abandonavam aos braços de Morfeu! E sonhavam com reinos distantes, sumptuosos palácios, onde lindas e adoráveis princesas, na companhia das suas aias, se entretinham a bordar lindos e alvos lenços da mais fina cambraia! Naquele serão, naquela noite, a avozinha Miquelina a pedido do Miguelito, tinha uma história diferente para contar!... E lá começava a hora de magia, que a pequenada tanto ansiava! - ERA UMA VEZ... Palavras mágicas para o Miguelito, cujos olhos começavam a brilhar mais que as vivas brasas da lareira!... E a avó Clementina começou a narrativa: -Havia no Oriente um reino muito próspero e rico, sabiamente governado por um Rei adorado por todo o seu povo. O pão não faltava em nenhuma casa do reino! Os girassóis cresciam e embelezavam os relvados, espelhavam-se nos rios e ribeiros onde saltitavam peixes e onde as aves e outros animais matavam a sede. 107
Do outro lado daquele reino, na sua fronteira mais a Norte, havia um país governado por um rei tirano vil e traiçoeiro, cuja ambição não tinha limites! Seu povo levava uma vida penosamente sombria e triste. Esse rei governava com a intenção de alargar os seus domínios e conquistar os povos que estavam ao seu redor! Subjugava os seus súbditos com pesados impostos, que usava na construção de terríficas armas de guerra. Maquiavélico, despudorado e sem coração, passava o tempo a pensar no dia em que conquistaria o reino vizinho! Assim o pensou e mais depressa o fez! De imediato, deu ordem para que o seu poderoso exército invadisse o reino, objeto da sua vil cobiça. As suas tropas espalharam o terror pelas terras onde passavam, não poupando nada nem ninguém! A carnificina era enorme e depressa se instalou o terror e o medo nas populações. Mulheres, idosos e crianças apressaram-se a fugir. Yulia não o podia fazer, por ter a sua mãe doente e não a querer abandonar. Mas Hassan, seu filho de apenas onze anos, era a sua maior preocupação, com medo que algo de mau lhe pudesse acontecer. Decidiu então mandá-lo sozinho, ter com os irmãos que residiam num país amigo e vizinho. A viagem era longa e perigosa, mas Hassan prontificou-se a fazê-lo.
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Levando consigo apenas um saco de plástico, onde a mãe lhe meteu uma muda de roupa, alguns nacos de pão e uma garrafa de água. E determinado lá partiu ele! Nas mãozinhas, tinha escrito a cidade e a morada dos irmãos. Percorreu milhares de quilómetros, palmilhou alguns deles a pé! Durante o percurso a lembrança da mãe Yulia, e da avó, constantemente lhe vinham à memória. Idealizava como estaria seu pai na frente da batalha, na defesa do seu país e da liberdade. Pela janela do comboio onde viajava, assistia à devastação dos campos e cidades do país onde sempre fora feliz sem entender a razão daquela inesperada agressão. Neste instante da narrativa da avó Clementina, os rostos do Miguelito, da irmã e dos primos, ensombreceram ao darem-se conta de como eles eram felizes por terem a seu lado a avozinha e suas mães. Depressa a avó Clementina os animou, ao descrever que Hassan tinha chegado são e salvo ao seu destino, encontrando-se já no conforto dos seus irmãos. Volvidos poucos dias juntaram-se-lhes a avozinha e sua mãe para felicidade de todos. O pesadelo passou. A esperança renasceu em todos eles, acreditando que cedo regressariam todos ao país onde foram livres e felizes.
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O LAGO DA CONCHINHA O lago da conchinha, era dos sítios mais belos que havia na serra. Situado num ameno vale encastoado entre dois montes, era assim chamado por ter a forma de uma concha do mar e visto ao longe parecia também um coração. Rodeado de árvores frondosas a bordejar as suas margens, nos dias quentes de Verão era lugar onde aos domingos, muitas famílias iam apanhar o fresco nas tardes mais acaloradas. Em toda a vasta serra, não havia lago mais bonito! De frescas e cristalinas águas, lindos tufos de plantas aquáticas, onde pairavam libélulas e variadas borboletas das mais lindas cores! Era também ali, que as rãs se quedavam em insistente coaxar. De todas elas sobressaía a rã "Milita", também conhecida pelos habitantes do lago como a " sineta" porque devido seu coaxar estridente e contínuo muito incómodo criava aos restantes animais que habitavam o lago. Um deles, o rabugento cágado "Eustáquio", resmungão como era, não se cansava de se queixar, do desaforo coaxar da rã " Sineta"! Era uma perdição para o cágado "Eustáquio", aquela chinfrineira constante e ensurdecedora! 110
Sempre que a " sineta" desatava a coaxar logo o "Eustáquio" de imediato imergia no lago e só parava nas suas águas mais profundas! O "Eustáquio", não perdia nenhuma ocasião para se queixar à vizinhança. As libélulas, escutavam-no com paciência, mas continuavam pairando no seu voo rasante às águas sem nada dizer. As borboletas à volta, lá davam uns acenos de aquiescência aos reparos do cágado, mas não se comprometiam com qualquer opinião! O "Eustáquio" rabugento e resmungão como sempre fora, é que não parava de se lamentar. E dizia para os seus botões: - ninguém liga ao que eu digo, mas isto não pode continuar assim! Os dias iam passando e com o correr do Verão, as noites quentes convidavam a " sineta " e suas amigas a prolongar a chinfrineira até horas mais tardias. Eustáquio não parava de se lamentar e muito se esforçava para arregimentar outros habitantes do lago para defesa da sua causa e fazer calar de vez o coaxar das rãs no lago, particularmente a barulhenta " Sineta". Tantas queixas fez, que os peixes do lago começaram a prestar-lhe mais atenção. As trutas começaram aos poucos a dar-lhe razão. Quem não estava a gostar nada, mesmo nada com a situação era o peixinho vermelho, grande amigo da " Sineta ". Preocupado com o desfecho que iriam ter as constantes reclamações do "Eustáquio ", junto dos restantes animais que habitavam o lago. 111
o peixinho vermelho, decidiu pôr ao corrente do que se estava a passar, a sua amiga rã. E se assim pensou, melhor o fez. Foi ter, ao fim da tarde, junto da sua amiga rã e informoua do que se estava a passar. A "Sineta", ouviu atentamente o peixinho vermelho e perguntou: -Eles disseram que medidas iam tomar? O peixinho vermelho, um tanto aflito respondeu: -Não sei. Ainda não disseram o que iriam fazer, mas as trutas, concordam com o descontentamento do rabugento cágado e a lontra à porta da sua toca com olhos gulosos assiste prazeirosa ao debate A rã agradeceu o gesto amigo do peixinho vermelho e disse: - Não te preocupes. E prosseguiu: -Quando eles tornarem a falar nisso, propõe-lhes para marcarem um plenário em que participem todos os habitantes do lago, para ver de que forma se pode resolver o problema. E assim aconteceu: quando o cágado Eustáquio, voltou à carga com as suas lamúrias, o peixinho vermelho, sugeriu a marcação de um plenário dos habitantes do lago onde se iria resolver o assunto. A proposta teve o assentimento de todos e logo ali ficou agendado o dia do plenário do Lago da conchinha. Volvido algum tempo, chegou o dia marcado para o grande julgamento. 112
Num dos lugares mais recatados do lago, à hora marcada, ali se reuniram todos os residentes no lago. Lá estavam as libélulas, as borboletas, as trutas, as carpas, o peixinho vermelho, o cágado rabugento, a lontra e as rãs. As mais variadas sugestões foram dadas! As trutas queriam proibir as rãs de coaxar. A lontra sugeriu que as rãs fossem expulsas do lago. As carpas, concordavam com a sugestão das trutas e as libélulas e as borboletas inclinavam-se mais para a proposta da lontra e sugeriam também que as rãs, fossem banidas do lago. O peixinho vermelho, atarantado e aflito não sabia o que fazer e temia pela punição que iria ser dada à sua amiga rã. De repente, um coaxar forte e estridente se ouviu por todo o lago. Era a rã Sineta que o tinha soltado. Um largo silêncio se propagou por toda a assembleia ali presente! A "Sineta" fez-se ouvir dizendo: - Vocês todos, habitantes e vizinhos aqui no lago, que nos conhecemos há tantos anos, ainda não perceberam como é importante para a maior parte de nós o meu coaxar e o das minhas irmãs?! Toda a assembleia ficou calada, certamente a pensar na pergunta que a " Sineta " lhes fez... Até que se ouviu o Eustáquio resmungão replicar: -Diz lá "Sineta "? O que é que tem de importante para nós, 113
O vosso barulhento coaxar? A " Sineta" retorquiu de imediato: -É que quando nós paramos de coaxar, é sinal que o perigo espreita… Ou é o pescador que se aproxima do lago e se prepara para pescar os peixes que aqui moram, ou é a lontra que sai do buraco e se prepara para abocanhar os incautos peixinhos. Fez-se um silêncio enorme na assembleia, que logo foi quebrado pelo ruído da imersão do cágado Eustáquio, para as profundezas do lago da conchinha.
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Autor Manoella de Calheiros Três contos
A BONECA DE PAPELÃO Passou uma vida desde aquele dia, distante e inesquecível. O meu primo, Adão, marinheiro naqueles anos de meados do século XX, veio de uma missão e dessa vez trouxe umas prendinhas à Ti Manuela que era sua madrinha e também para as meninas da casa. Para mim, uma boneca, Meu Deus, que ilusão, eu nunca tinha tido uma boneca e aquela prenda passou a ser a minha companhia, ainda não andava na escola, razão porque todo o dia me fazia acompanhar da rapariga. Um dia levei-a para ver o poço, o efeito dela na água era bonito, então comecei a mexer com ela para ver as sombras o que originou um desastre para a minha pouca idade, a boneca caiu no poço, comecei a gritar e a minha mãe veio a correr saber o que tinha acontecido. Minha mãe a boneca caiu no poço e eu quero a minha boneca! 116
Ao fim da tarde, de picos às costas e a cesta da comida veio à taberna beber um copo o Ti Manel Bouças, quis saber porque eu estava a chorar. Disse que a minha boneca tinha caído no poço, que gostava muito dela e a queria. Decidido, perguntou à minha mãe se tinha uma corda, que atou na laranjeira para descer ao fundo do poço. Como lembro estes momentos enquanto descia e deitou a mão à pobre boneca afogada. Quando chegou cá acima e ma entregou o desespero fui enorme, aquele brinquedo em forma de boneca, feita de papelão estava desfeita com o efeito da água, chorei, chorei tanto, que passados mais de sessenta anos ainda recordo, talvez, o mais trágico acontecimento da minha infância.
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A GALINHA DOURADA Anastácia, a galinha de bico preto, penas douradas e de todas as cores anda muito contente e passa o dia a cacarejar, ao lado do seu marido, o galo Zacarias. Depois de um tempo meia sem graça e sem penas, ganhou esplendor com a sua nova roupa, umas penas lindas com as cores do arco-íris, Há muitos dias que põe ovos, começou a estar rouca, parece que está constipada, mas não é verdade, está choca. Vou ter de fazer um ninho de palha, colocar ali os ovos e a Anastácia. Depois de vinte e um dias deitada nos ovos, os filhos, os pintainhos batem à porta e com o seu bico, delicado e pequenino partem o ovo para nascer. Um dia pela manhã ouço piar, a Anastácia já é mãe de oito lindos filhos, pequeninos e sem defesa que não seja a mãe. É ela que os ensina a comer, tal como a nossa mãe, pouco a pouco vão nascendo as penas, uns parecem - se com o pai, outros com o bico negro como a mãe e já sabem comer sozinhos. A Anastácia e o Zacarias vivem no campo, andam soltos a comer erva com os filhos. São uma família, mas ainda não chegou o dia do batizado dos filhos, que cada dia vão crescendo e tendo belas penas coloridas. 118
A GATA BRANCA A Ritinha é uma gatinha, branca com pelo brilhante e sedoso e olhos azuis, muitos azuis. É filha da Marusca, uma gata, velhinha e sem casa, que teve meninos, mas apenas a Ritinha sobreviveu. Depois de ela nascer, a mãe ficou doentinha e morreu. Todos os dias a Ritinha chorava pela mãe, às vezes não tinha nada para comer, lá se foi criando só, aprendeu a defender-se e a sobreviver. Dormia debaixo de um banco de jardim, havia por ali outros gatinhos, também sem pais, Um dia, o Matias, um gatinho de pelo negro e tudo falador, foi dormir debaixo do mesmo banco, fazia muito frio, ele disse boa noite e a Ritinha não disse nada. Então, ele foi ao pé dela e perguntou-lhe se tinha frio, Ela respondeu que tinha frio, medo e fome. Oh! Disse o Matias, não tenhas medo, deixa-me ficar ao pé de ti, que assim ficamos quentinhos e ali dormiram abraçados. Na manhã seguinte lá foram os dois procurar comida, foram para os jardins de Belém, Havia ali meninos a brincar, uma das meninas, a Maria viu os gatos, começou a chamar por eles, pediu à mãe para lhes dar comida, disse que os queria levar para casa, que gostava muito de gatos e aqueles eram muito lindos. 119
Então, a mãe da Maria pegou na Ritinha e no Matias foi tratar deles ao veterinário, levou-os para casa, onde brincavam e eram muitos felizes. Um dia a Ritinha começou a ficar gorda, mas não era da comida, ela ia ser mãe, teve um filho muito lindo, de riscas brancas e pretas que se chama Baltazar e ainda mama na mãe e dorme com ela na cama. A Ritinha, o Matias e o pequeno Baltazar são muitos felizes.
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Autor Mary Horta Três contos
A ESTRELA A menina, na janela, observava a estrela mais brilhante e bonita do firmamento...E pensava… quantas estrelas tem o céu, quais as mais brilhantes e as mais bonitas? Para ela eram todas iguais, exceto aquela que todos os dias piscava à mesma hora, quando ela estava na janela e essa sim era diferente, porque era maior e o seu brilho era mais cintilante...então a menina apontou para o céu e disse ... Quem és tu estrelinha que todas as noites me visitas e brilhas tanto para mim? E uma voz vinda de longe respondeu eu sou a estrela mãe e vim para proteger, com a minha luz, todas as crianças do mundo, principalmente as que se encontram abandonadas e não têm ninguém...Então a menina disse, olha estrelinha, eu gostava muito que a minha mãe, que está no céu, brilhasse para mim; podes darlhe o recado é que eu tenho pai e avós, mas não tenho a minha mãe e uma fada disse-me que a minha mãe brilhava no céu e eu queria vê-la, pode ser? Está bem, eu vou dizer122
lhe que tu estás à espera dela…quando vires outra estrela parecida comigo, a brilhar ao meu lado, já sabes que é a tua mãe. Obrigada, estrelinha, vou ficar na janela para ver a estrela minha mãe a brilhar só para mim ...E nessa noite a menina dormiu na janela com o brilho da estrela a brilhar só para ela ...
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ERA UMA VEZ QUATRO AMIGOS Era uma vez quatro amigos, um flamingo e um casal de gaivotas e seu filhote ... Um dia resolveram ir à conquista da liberdade. O flamingo procurou as margens do rio para passear e as gaivotas voaram em direção ao mar... Os dias passaram, as gaivotas brincavam à beira da praia a comerem o seu peixinho, a brincarem com as conchas, a ouvir as ondas do mar e a brincarem com o seu filhinho ... O flamingo, mais triste sem os seus amigos, passeava pelas margens do rio a olhar para o ar, para descobrir nas nuvens as gaivotas que andavam a voar ... O vento passava a uivar, as gaivotas não conseguiam parar de voar, pois o vento empurrava-as, com toda a força, até que avistaram o seu amigo flamingo nas margens do rio a brincar. As gaivotas começaram a chamá-lo para que ele pedisse ajuda para elas conseguirem parar de voar, junto de um abrigo. O flamingo começou a grasnar e um barco, por milagre, ali passava a navegar começou a flutuar de mansinho e as Gaivotas, ajudadas por uma brisa mais calma, no barco vieram pousar. Assim se encontraram de novo os quatro 124
amigos, muito felizes por de novo estarem juntos e todos poderem conviver e brincar e nunca mais se separaram. Assim reza a história destes quatro amigos que viveram para sempre muito felizes.
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OS DOIS URSINHOS Era uma vez dois ursinhos muito amigos que gostavam de brincar no jardim e divertiam-se a ouvir os passarinhos, a brincar com as borboletas, correndo atrás delas e gostavam muito de andar de baloiço. Uma tarde em que, divertidos, andavam de baloiço, ouviram um passarinho piar, em jeito de aflição, piu, piuuu, pararam o baloiço e olharam para a árvore por cima deles onde a mãe passarinho piava desesperada porque os seus filhinhos estavam em cima das cordas do baloiço a andarem juntamente com os ursinhos, mas em risco de caírem... Os dois ursinhos sossegaram a mãe dos passarinhos dizendo que estavam a andar devagar, no baloiço e que nada de mal iria acontecer, ela que não se preocupasse... Assim passaram o resto da tarde todos juntos, a brincarem no jardim, a andarem de baloiço, atrás das borboletas e os passarinhos a cantarem e a divertirem os seus amigos ursinhos que, a partir desse dia, ficaram todos amigos e a mãe dos passarinhos, a partir desse dia, também tomava conta dos ursinhos para que nada de mal lhes acontecesse... 126
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Autor Romy Macedo Três contos
JOÃOZINHO E O ARCO-ÍRIS Mariqueta era ainda muito jovem com os seus nove anos. Gostava de ir ao parque das crianças ter com as suas colegas de escola, acompanhada do seu irmão Joãozinho, que tinha ainda cinco anos. Para ela, às vezes considerava um enfado ter que o levar com ela, manietava-lhe um pouco da sua liberdade para brincar com as amigas da sua idade. Julgava-se já uma mulherzinha e apreciava ter a sua independência, embora gostasse muito do irmão. Mas, cada coisa no seu lugar, não achava graça nenhuma ter que o arrastar sempre consigo. Era muito possessivo e impedia-a de ter a sua própria liberdade de movimentos. Era aí que podia usufruir da companhia das colegas. Além do mais, se algo viesse a acontecer com o irmão, os pais não lhe iam perdoar, e para agravar a situação, teria que carregar esse peso consigo. A mãe trabalhava num pequeno estabelecimento comercial junto ao parque e de quando em quando vinha até à
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porta para deitar uma vista de olhos sobre os filhos, ela bem sabia quão irrequieta era o pequeno João. - É bom ter um irmãozinho. Diziam as coleguinhas. Olhavam-no com carinho À volta das florinhas. Que responsabilidade A sua amiguinha tinha, Privada de liberdade Para brincar, coitadinha! O Joãozito a chamava, Precisava de atenção A sua mão agarrava E ela largava, então. Queria saltar, brincar, Olhar as nuvens nos céus. - Ai se as pudesse alcançar! Mas não são minhas, meu Deus! As colegas nem imaginavam a sorte que tinham em não terem um irmão irrequieto para aturar. Elas, sim, eram livres, podiam brincar o tempo todo. Certo dia, Mariqueta levantou-se mais cedo. Era o primeiro dia de férias. Tomou o pequeno almoço, para ir ao encontro das colegas até ao parque, conforme tinham combinado. Iriam aproveitar o tempo e apanhar folhas, caules, 129
tubérculos e flores, para em conjunto fazerem um Herbário Escolar, trabalho que lhes foi sugerido pela professora Idália, da disciplina de Estudo do Meio. - Mãezinha, posso ir hoje ao Parque sem levar o mano? É que temos uma tarefa escolar para cumprir e com ele será mais difícil. Necessito estar livre para apanhar os componentes para esse trabalho. É para a aula de Estudo do Meio. Já combinei com as minhas amiguinhas! Pode ser? - Hoje não pode ser princesa, há muito material novo a chegar à loja, e sabes como é o teu irmãozinho! Ainda por cima, a avó Anastácia não pode ficar com ele, é muito irrequieto e como sabes, a tua avó, sempre apegada àquela bengala, não o consegue vigiar, não dá conta dele. Depois, ele precisa de sair, gastar energias. Por isso, hoje não dá, filha. Se o meu patrão o visse lá no estabelecimento, não ia ficar satisfeito e eu não posso prescindir desse trabalho. Desculpa, mas terás de ser tu a cuidar dele, tenta entender. - Está bem, mãezinha, eu levo-o comigo, vai-me obrigar a maior esforço na recolha dos elementos que precisamos, mas em conjunto havemos de os conseguir. - Vem ajudar, Joãozinho, Dá-me uma mão, por favor. Corta esse caulezinho! E no saquinho vai por. - Estrelinha, vem cá ver Como esta flor é bela - Mas temos que a colher Retorquiu a Anabela. 130
O João, ali presente, Tinha gosto em ajudar E encontrou finalmente Uma raiz p’ra levar. Aqui e ali, o petiz Saltitava sem parar Sentia-se tão feliz Que nem queria parar. Mas, cansado, se deitou Com o papo para o ar E no relvado observou. Muitas nuvens a passar E com o seu dedo em riste, Apontado para o céu, E o seu olhar persiste Quando de um salto se ergueu. Gritou para a irmãzinha: - Oh, Carneiros a voar! Mas não, a sua maninha Não o queria aturar. - Mariqueta, Mariqueta olha o céu, como está lindo, parecem carneirinhos a voar! Vem ver! São tantos! – gritava o menino, enquanto olhava a irmã que parecia não lhe prestar atenção. – Vê, parece uma coruja! Deve andar a procurar alimento para as corujinhas que tem no ninho. Olha ali, 131
um elefante! Parece zangado com as nuvens. Como é grande! Às tantas, ainda faz as nuvens chorar! E mal tinha acabado de dizer isso, e logo começou a chover. De imediato, as crianças desataram a correr em busca de um abrigo, que foram encontrar junto da pequena casinha que existia ali perto, junto ao parque infantil da pequena Aldeia das Flores. - Joãozinho, vem depressa ou vamos ficar encharcados – tentava Mariqueta arrastá-lo pela mão, enquanto ele, colado ao relvado, estupefato, mantinha o olhar fixo na nuvem que não parava de despejar água a jorros. - Vem depressa, Joãozinho, Nossa mãe não vai gostar. Se chegas ensopadinho, Comigo se vai zangar. Mas João, estupefato, Sem saber o que mais viu, Nesse lugar tão pacato Um Arco-Íris surgiu. Que lindo, com sete cores, Ali frente ao seu olhar O colorido das flores Numa magia sem par. 132
- Mana, vê, mas que engraçado, As cores vão a fugir, Arco-Íris desvairado, Logo se vai esvair. Enquanto atónito contemplava aquele fenómeno da natureza, Joãozinho, de repente, grita para a irmã: - Vem ver, Mariqueta, as cores do Arco-Íris, estão a desaparecer. - Só mesmo teu, miúdo, não sabes que o Arco-íris é mesmo assim? Vem mas é daí que estás mesmo a ficar lindo. Além disso, está a chegar a hora de voltarmos para casa. A mãezinha disse que não podíamos ficar aqui muito tempo. - Mana – reclamou o menino – pelo menos, vem ver as cores do Arco-Íris, vê a cor amarela, está a desaparecer. Mas Mariqueta tentava dar agora um pouco de atenção às amigas e quase não ouvia os clamores do irmão. - Não liguem ao miúdo, inventa-me cada uma! Vejam lá isto, agora diz que as cores do Arco-Íris está a fugir, dálhe para cada uma! E distraída com esta conversa, e com a recolha das folhas, flores e raízes para o herbário, nem se apercebeu do que estava a acontecer com o irmão. Joãozinho, ao ver a cor amarela a saltar do Arco-Íris, instintivamente, aproximou-se e perguntou-lhe: - Porque saíste do Arco-Íris? Zangaste-te com as outras cores? Vamos ficar sem o Arco-Íris? - Não sei, nem me importa – respondeu - quero ir ver o mar, visitar o parque, sentir-me livre. Não quero ficar presa 133
a outras cores que passam o seu tempo a barafustar comigo. Quero conhecer crianças como tu, conversar. Preso a seis outras cores, nada posso fazer, tenho que as seguir, estar sempre preso a elas, naquela mesma posição. Que tédio! Além disso, sinto-me sufocada entre o Laranja e o Verde, quero mais do que isso, muito mais, quero sentirme livre, caminhar por onde me apetecer, sem atrofias, sem amarras, sem destino, sem imposições, à espera que alguma nuvem, no meio dos seus lamentos, se lembre de começar a despejar um vale de lágrimas à toa, para então surgir o tal Arco-Íris, dizem que o símbolo de uma qualquer aliança entre o céu e a terra. - Vou sobrevoar o Mar E o mundo conhecer, O ar puro respirar E em liberdade viver, Quero gozar o tempo Como eu bem quiser usar, Sentir-me a voar ao vento E sem me preocupar. Quero cheirar o jardim Dar mais cor a cada flor, Beijar a rosa, o jasmim E espalhar seu olor.
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Não ouvir reprovação, Antes, cantar e sorrir. - Queres uma opinião? Do Arco deves sair! Sou ainda pequenino, Desta vida pouco sei Mas sinto ter algum tino Pelas coisas que passei. - E se fossemos ambos dar um asseio? Nem te perguntei como te chamas! - João, chamam-me Joãozinho. Vim com a minha irmã Mariqueta que está para ali entretida com as amigas e até parece que me esqueceu. - Ai, sim? Então que achas à minha ideia? - Até que devia ser engraçado, mas não posso ir, a minha mãe já está à nossa espera, está a chegar a hora do almoço. Queres um conselho? Porque não vais ter com as outras cores do Arco-Íris? Elas precisam de ti, só assim o Arco-Íris ficará completo. Além disso, a tua cor é preponderante e dá ao Arco-Íris mais cor e beleza. Depois, o Amarelo é a cor da amizade, a componente que dá ao ArcoÍris toda a razão de ser. - Não, ainda é cedo. Vou dar uma volta por aí e depois verei o que fazer. Agora que me sinto livre, vou aproveitar para viajar por aí, conhecer coisas novas, sem as ter sempre ao meu redor a reprovar tudo o que eu digo. Aproveita a tua irmã estar distraída e vem daí, sempre me fazes um pouco de companhia. 135
De soslaio, Joãozinho olhou o grupo das meninas, compenetradas no trabalho escolar, e resolveu seguir a sugestão de Amarelo. - Salta para aqui e partamos à aventura, logo te vou-te explicar como se forma um Arco-Íris. Este aparece quando a luz branca do sol é intercetada por uma gota d'água na atmosfera. A luz branca, na verdade, não é mais do que uma mistura de várias cores. Quando a luz atravessa uma superfície líquida - no caso, a gota da chuva - a refração faz aparecer o espectro de cores: violeta, anil, azul, verde, amarelo, laranja e vermelho. E temos o Arco-Íris. - Que giro! – respondei João arreguilando os olhos. Logo vai aparecer Com a luz do sol a brilhar E uma gotinha irromper. P’ra suas cores formar A sua luz vai surgir E ao céu escuro dar cor, Depois, a chuva ao cair O Arco vai recompor. Dizem ser uma aliança Que Deus fez com o seu povo, Vai-se o mau tempo e a bonança Logo vai surgir de novo.
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Dizem ser uma ilusão E o Arco não existir, Mas em cada posição De novo vai ressurgir. Violeta, verde, anil, Vermelho, laranja, azul Amarelo e cores mil Vão do norte até ao sul. Realmente, o Arco-Íris não existe, é apenas uma ilusão de ótica, cuja imagem aparente depende da posição do observador. Todas as gotas de chuva refratam e refletem a luz do sol da mesma forma, mas somente a luz de algumas delas chega ao alcance do povo. E enquanto absorvia esta verdadeira lição do Estudo do Meio, lá ia o Joãozinho sulcando os céus, montado na cor Amarela roubada ao Arco-Íris. Voaram sobre um mar triste e apagado, passaram sobre o jardim onde as flores pareciam debotadas, sobrevoaram algumas ruas e viram gente a caminhar sem alento. Foi então que Joãozinho pediu à cor Amarela do Arco-íris para descer. Ele queria descobrir as razão porque a gente caminhava triste, porque razão o azul do mar era agora cinzento, o porquê de as flores estarem a perder a cor.
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- Desce lá, lindo Amarelo, Quero saber a razão Deste grande pesadelo E de tanta solidão. Um Arco-Íris doente Porque tu vieste embora E o mundo tristemente Tua ausência tanto chora. Sem saber o que fazer Nem sequer a volta dar, O Arco-Íris vai morrer? Se o Amarelo não voltar. Santo Deus, misericórdia, Como foi acontecer? Foi o fruto da discórdia Que lhes foi aparecer. Está triste, sente saudade, Ofusco, sem reação, Em tu, ó cor da amizade Podem ter a solução. - O Arco Iris necessita de ti, Cor Amarela, vamos descer. Nossa aventura chegou ao fim. A grande lição da nossa viagem é que não te podes separar das outras seis cores do Arco-Íris, ou ele vai desaparecer para sempre. 138
- Sabes, João? Na verdade, sinto falta daquelas cores rezingas sempre a resmungar. Mas, se pensar bem, nem tudo é perfeito. Nem eu! O mais veloz que pode, a Cor Amarela, voou em direção ao parque onde a azáfama era muita. As meninas corriam cada canto à procura de Joãozinho que, sem que se apercebessem, saltou do dorso da amiga e voltou até perto do lugar onde Mariqueta o havia deixado. E Logo se se fez ver, sem que de nada elas se tivessem apercebido sobre a sua aventura. Feliz pelo reencontro, Mariqueta perguntoulhe carinhosa e ainda apreensiva: - Onde te meteste, Joãozinho? Estávamos tão aflitas! - Andei por aí, maninha, desculpa. – e de si para si - Só fui dar uma voltinha com a Cor Amarela do Arco-Íris, mas voltei. E acho que, como candidato a escuteiro, já fiz a minha boa ação de hoje – sorriu. - O importante, é que tudo acabou bem. Ao largo, Joãozinho já podia ver de novo o Arco-Íris com a sua Cor Amarela que se tinha reunido de novo com as restantes cores. Tudo ia bem agora. Compreensão é preciso, Muita paz e muito amor E construir com juízo Um mundo sempre melhor. Amigas sempre leais, Sete cores em união Voam no céu e jamais Elas se separarão. 139
Joãozinho lhe acenou Quando ao longo o viu surgir E aventura terminou Quando acenou a sorrir Mariqueta respondeu Afagando o seu rostinho Um abracinho lhe deu Com tanto amor e carinho. Foram ter com a Mãezinha Que os esperava ansiosa - Então, linda princesinha? Lhe disse toda vaidosa Minha mãezinha querida, Quão belo foi nosso dia, Estou grata pela vida Que nos enche de alegria.
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O GALPÃO DO AVÔ ANTUNES O Avô Antunes vivia numa enorme casa pintada de amarelo que tinha umas grandes janelas e um extenso galpão onde haviam feito os seus ninhos aves de várias espécies. No tempo de férias, o Avô Antunes recebia naquela casa os seus queridos netos Gininha, Nelito e Quinito, três meninos que o adoravam. O Avô Antunes era muito respeitado e acarinhado pelos habitantes da Aldeia. Tinha exercido a sua profissão de médico durante um bom par de anos no Posto Médico e conhecia cada um dos aldeões como as palmas das suas mãos. Ora, certa altura, os habitantes lá da aldeia, um dia decidiram pintar a casa do Avô Antunes de Amarelo, para a distinguir de todas as outras casas lá na Aldeia dos Laranjinhos. A partir desse dia, ficou a ser conhecida como a Casa Amarela. Em tempos de verão, a Casa Amarela enchia-se de crianças. Era vê-las a correr no vasto jardim, mergulhar na refrescante piscina que o Avô Antunes abria a todas as crianças lá da aldeia. Era por isso uma casa diferente. O lugar onde se situava, numa pequena aldeia localizada nos subúrbios da cidade, tornavam-na num lugar atraente onde toda a gente gostava de ir. 141
O inverno na Aldeia dos Laranjinhos, era muito rigoroso. Nos dias de inverno, as portas da Casa Amarela fechavamse e só o Avô Antunes, as crianças e dois serviçais lá viviam. Havia dias em que a neve caía dia e noite, transformando as ruas e os jardins num imenso manto branco imaculado. O céu toldava-se de nuvens claras, o ar era gélido, a neve caía docemente pelos ramos das árvores, muitas delas agora nuas, desprovidas de folhas. As poucas aves que se conseguiam avistar, resguardavam-se nos seus ninhos nas poucas árvores de folhagem perene que por ali havia. A neve tomba no chão E espalha-se no jardim E o nosso coração Vai pulsando mais assim. As plantas adormecidas Sentem o vento a passar E mostram-se agradecidas Com os seus caules no ar. Logo a neve de mansinho Chap, chap, vai caindo E os olhos de um menino Que olha alegre, sorrindo. De brancura imaculada A estrada escorregadia, E a pobre da passarada No alvor de um novo dia. 142
Olhando o amplo galpão Daquela Casa Amarela, Gozamos a ilusão Duma paisagem tão bela Na Casa Amarela, Gininha, Nelito, e Quinito, deslumbrados e simultaneamente nostálgicos, olhavam através da grande janela da sala a idílica paisagem toda vestida de branco. O vento fustigava as árvores desprovidas de frutos no farto pomar e em todo o terreno à volta do pomar. O jardim não se vestia agora das belas rosas multicolores, apenas algumas folhas secas encenavam aquele bailado improvisado entre os canteiros do jardim. Lá dentro, na sala, embora se sentissem confortavelmente aquecidos pela velha lareira, ouvindo o crepitar das canhotas que o avô Antunes ia colocando, as três crianças olhavam e sorviam as lições que a natureza lhes queria transmitir. O avô bem sabia o quanto elas gostavam de andar a cirandar pela casa descalços e sem preocupações. A dado momento, Gininha, a mais velha dos três, chamou a atenção para algo que estava a ver no pomar. E logo o avô se aproximou. - Avô, avó, vem depressa! - O que foi que aconteceu? - Vem aqui ver, ora essa! E o avô logo se ergueu.
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- O que se passa, querida, Porque me chamaste assim? - Estava aqui entretida E algo mexeu no jardim! Vi qualquer coisa a correr Lá no meio do Pomar. Um bichinho, vai morrer Se não o formos buscar. - Um coelho, um gatinho? - Só vi que era pequenito. Que má sorte, coitadinho! Lamentava-se o Nelito. - Avô, vamo-lo buscar Trazê-lo p’ra nossa casa. - Se se deixar apanhar! Mas pode bater a asa. O avô logo saiu, Gininha foi p’ra janela E o avô lhe sorriu: - Uma gaivota amarela! Para casa regressou Trazendo-a na sua mão, Mas depressa se soltou E foi noutra direção. 144
- Oh, que pena! A gaivota fugiu. Coitadinha, tremia como varas verdes! - Avô – gritou o Nelito vai atrás dela ou vai morrer de frio! - Não receies, pequerrucho, se ela sentir frio, há de vir à procura de um lugar aonde se proteger. As aves fazem isso por instinto. Não tarde e vamos encontra-la no galpão junto de outras aves. Elas sabem que ali estão abrigadas da neve, do vento e do frio. - Deus te ouça, avô.- retorquiu Quinito, que até então se tinha mantido em silêncio, como que a matutar numa forma de trazer a gaivota para casa. Não era uma ave como as que habitualmente faziam os seus ninhos junto ao teto do galpão, não. Esta ia precisar de ajuda. - Diz-nos, avô, como foi essa gaivota aparecer por aqui? Não é habitual vê-las tão longe do mar. - Responder-te-ia com prazer se soubesse, meu neto, mas não sei e essa é a questão. Giroflé, o gatarrão pachorrento lá de casa, saltou agilmente da janela e aproximou-se, circulando à volta das suas pernas ronronando e afagando-as com a sua farta cauda, como se quisesse intervir na conversa.
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- Miauu, Miauuu, mas que fome! E afagava Gininha - Gato que dorme não come! – Respondia-lhe a menina. - Miau, miau! – ripostava, Sem parar de ronronar E logo rodopiava Mas sempre, sempre a miar. - Vem, Giroflé, vem comer, doutro modo, nunca mais te vais calar - dizia o avô Antunes, já farto de tanta lamúria, enquanto dava umas palmadinhas no dorso do felino. Este, com andar pachorrento, seguiu o Avô Antunes, certo que este lhe ia saciar a fome, ao que as crianças acorreram, seguindo-os. E logo, de barriguinha cheia, Giroflé regressou ao seu poiso de sempre, para descansar. Afinal, era a única coisa que sabia fazer nos últimos tempos, deitar-se no seu aconchego, naquela caminha fofa de penas que o avô tinha comprado em tempos na Feira do Artesanato. - Avô, Avô, vem aqui depressa! A gaivota voltou, está aqui no parapeito da janela! De um pé para o outro, o Avô vestiu a samarra, abriu a porta e foi na direção da gaivota amarela. Cheios de entusiasmo, os meninos bem que queriam segui-lo, mas logo o avô os admoestou: - Nem pensem vir cá para fora! Fiquem onde estão. Está um frio de rachar os ossos, ainda apanham uma pneumonia! 146
Os meninos não tiveram outro remédio senão acatar as ordens do avô. Assim, aproximaram-se do gato pachorrento que apenas pestanejou e logo fechou os olhos, embora com o ouvido à escuta. - Vá lá, deixem-me dormir, Silêncio, façam favor! Gininha olhou a sorrir E o abraçou com dulçor. - O avô tem a gaivota! Como está amedrontada! Quinito corre p’rá porta E tocou-lhe. – Está gelada! Vão p’ra junto da lareira Para ela se aquecer Giroflé, ali na beira, Via o que ia acontecer. - Giroflé, olha a prenda que o avô trouxe para nós! - dizia Gininha cheia de alegria – Afinal, não era todos os dias que tinham consigo uma gaivota, além do mais, tão linda. Quando recuperou do frio, a gaivota olhou as crianças e disse: - Obrigado por me ajudarem, meus amiguinhos, mas queria pedir-vos que ajudassem também os meus filhinhos e a minha companheira, posso contar convosco? Coitados, estão presos no nosso esconderijo. Uma rocha deslizou pela colina e caiu sobre ele, bloqueando a sua saída. 147
Pasmado com a sua narrativa, logo o Avô Antunes lançou mão do gorro que ainda tinha sobre a cabeça, esfregou as mãos para as aquecer, olhou a Gaivota e disse: - Eh lá! Será que estou a ouvir bem? Como podes tu falar? Pensei que as gaivotas apenas grasnavam! - Tem razão – disse a gaivota, dirigindo-se não só ao avô como também aos meninos, que olhavam estupefactos com tudo o que estava a acontecer. - Não ne olhem com esses olhos, que me assustam. Sou a Gaivota Golias. Os animais, quando é preciso, também aprendem a falar. Será que posso contar convosco? Se assim for, peço-vos por favor para virem comigo. Receio que a minha família corra grande perigo. - Conta connosco, – respondeu o avô – vamos ajudar-te. – e virando-se para as crianças – Meninos, vamos a isso, agasalhem-se bem e vamos ajudar a nossa gaivota! - Vamos sim, avô, vamos até onde ela nos levar! E em poucos minutos, saíram com a amiga que ia voando à sua frente, a fim de lhes mostrar o trajeto a seguir. - Vamos salvar a família Da Gaivota nossa amiga, Ela será nossa guia, Que toda a gente me siga! A gaivota, voa, voa Naquele branco tão puro E avistam uma pavoa Junto do lago inseguro. 148
A neve tudo cobria, Havia que ter cautela Mas toda a gente a seguia Até à Patinha Estela! - Eu vos vou acompanhar, Podem precisar de mim, Já não tenho onde morar O lago gelou, enfim! E lá foram ao longo daqueles caminhos carregados de gelo. O avô carregou ao colo a Patinha Estela que estava a sentir dificuldade em caminhar sobre a neve e tinha as patinhas geladas. A determinado momento, a Gaivota parou junto a um amontoado de pedras esbranquiçadas, cobertas de neve, o avô entregou a Patinha Estela a Gininha, a neta. E começou a retirar uma a uma as pedras que impediam o acesso ao refúgio da família da Gaivota Golias. E logo conseguiu resgatá-las. Quando já todos estavam reunidos, o avô Antunes dirigiu-se à gaivota e perguntou: - O que pensas fazer agora com os teus, amiga, para onde ireis agora? Aqui não pode ser, este lugar é inseguro e não tem quaisquer condições. - Pois é! – respondei a gaivota – sem saber o que responder. - Se quiseres, podeis abrigar-vos no nosso galpão. Há ali muito espaço. – e virando-se para a patinha – E tu, Patinha Estela, também podes lá ficar, se quiseres. 149
- Como é generoso, avô Antunes, aceitamos, sim, obrigado. – responderam a gaivota e a patinha. O frio apertava e toda a comitiva logo regressou a casa. Pelo caminho, encontraram a Galinha Pedrês com os seus três filhinhos, e mais à frente o Ganso Sarapata, o Siracura, o Coelho Saltitão e a Tartaruga Sarapinta. Conforme cada um ia surgindo, o avô sorria de alegria, ao ver aumentar a sua prole. E sorria feliz para os seus três netinhos. - Que grande família temos Cantarolava Gininha E pouco ou nada sabemos O que mais se avizinha. Sarapata, Siracura E o Coelho Saltitão Embarcam na aventura Porque alguém lhes deu a mão. Golias e a Família Muito felizes estão Com tamanha cortesia De irem para o galpão. Já se avista o doce lar, Que vai ser o seu cantinho E todos juntos ficar Tão perto do avozinho. 150
Esta vida é mesmo assim; Giroflé veio ao postigo A Casa Amarela, enfim, Irá ser o nosso abrigo. Haja amor no coração Que Deus nos proteja sempre, Haja paz e união Entre toda a nossa gente. Agora há mais animais Que surgiram no caminho Todos tão especiais À procura dum carinho. Quando chegaram à grande Casa Amarela, o Avô Antunes encaminhou toda a bicharada para o seu novo lar, no galpão, lugar onde passaram todo aquele inverno agreste, rigoroso e frio, que atormentara toda a região. Na Aldeia do Laranjinho, Na linda Casa Amarela, Vivia o doce avozinho E os animais, dentro dela.
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Tiago e o Passarinho Azul Tiago, aquele menino irrequieto de dez anos apenas, nascera na Vila de Arrojo. Como gostava de brincar no aprazível Parque da sua terra, um extenso espaço com frondosas árvores, algumas já centenárias, agora, o habitat de alguns pequenos roedores, como lebres, coelhos ou esquilos, muitos arbustos e onde havia um formoso lago no qual se pavoneavam alguns cisnes, gansos, patos e dois pavões com uma cauda encantadora que quando aberta em leque se tornava na atração principal de quem ali ia. Aos domingos de tarde, sobretudo, quando o tempo o permitia, ali se reunia uma multidão de pessoas, residentes ou não na pequena vila, para desfrutar das delícias do lugar, partilhando uns com os outros as suas habilidades gastronómicas alegres piqueniques e se divertiam na pratica de jogos populares em que participava toda a gente, crianças ou adultos. Entre os habitantes da aldeia vivia-se uma grande cumplicidade. Possuindo Arrojo cerca de duzentos habitantes, não era difícil que todos se conhecessem entre si, fossem elas duma facha social médias ou a uma classe de melhores recursos ou mais humilde. As portas de suas casas permaneciam abertas todo o dia.
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Em Arrojo, quem diria, As portas eram abertas Fosse de noite ou de dia, Sem vigias ou alertas. Logo pelo alvorecer Strip, o galo cantava E só ao entardecer De novo cacarejava. No galinheiro ficava Como para descansar Mas quando a tarde chegava, Toca de se levantar. Neste vila assaz pacata, A população se unia Junto ao seu lago de prata Com toda a sua alegria. Mas certa manhã, enquanto se divertia no baloiço, Tiago avistou ali mesmo junto a si um pequenino pássaro azul que despreocupadamente voava. Instintivamente, Tiago entendeu a sua mão e tentou alcançá-lo, mas o passarinho, apercebendo-se, assustou-se e voou desordenadamente até que caiu sobre o relvado. De imediato, Tiago saltou do baloiço e correu no seu encalço, tentando apanhá-lo. Coitado do passarinho! Ei-lo caído sobre a relva, estonteado. Como era lindo! As suas 153
penas azuis brilhavam ao sol. Indeciso sobre o que fazer, desabafou para si: - Como teria vindo aqui parar? Perdeu-se, certamente, esta espécie não é vista por estes lados. Terá fugido ao calor dos grandes incêndios que por aí lavraram e devoraram tantas matas? Devia andar a ver se encontrava os pais. - Vem aqui, meu passarinho! E tentava-o apanhar À espera que pobrezinho Acabasse de cansar. - Desculpa pelo que fiz, Fi-lo mesmo sem querer! E cabisbaixo, o petiz Se foi a ele a correr. Sentia-se irresponsável Ao vê-lo assim assustado, Era tão desagradável Vê-lo ali, inanimado! Nem lhe tocou com a mão, Não queria fazer mal. Viu-o cair lá no chão Daquele modo irreal. Tiago, parou por segundos, olhou a pequena ave que tentava recompor-se lentamente ainda um tanto aturdido. Na 154
verdade, verificou, era um passarinho diferente de todos aqueles que proliferavam pelo Parque Infantil de Arrojo. - Pobrezinho, está perdido, Que será que aconteceu? Deixa ver se está ferido Depois do tombo que deu! Outro igual eu nunca vi Nem no Parque, nem na Aldeia. Pensou de si para si Com a sua alma cheia. Caminhou devagarinho, Pé ante pé, com cuidado, Mas o pobre. Coitadinho, Ainda estava atordoado. Mas quando viu o menino A caminhar para si, Deu à asa o pobrezinho Tentando fugir dali. Via nele um inimigo E só pensava em fugir Sua vida estava em perigo, Mas acabou por cair. Tiago ficou com medo De assustar a avezinha, E estendendo-lhe seu dedo Mais um pouco se avizinha. 155
- Estás perdido passarinho? Não tenhas medo de mim Quero ser teu amiguinho! O que fazes no jardim? Com toda a cautela, aproximou-se da avezinha, a pensar. - De onde terá vindo? - Não te aproximes! – pediu a avezinha com voz trémula. Tiago olhou em todas as direções, tentando aperceber-se de quem era a voz. Como não se apercebeu de ninguém ali ao redor, pensou: - Devo estar a ouvir coisas, deve ser o vento, às vezes parece que quer dialogar connosco, não é a primeira vez que acontece. Sem vacilar, estendeu de novo a mão para o passarinho, na tentativa que subisse para ela. - Posso ver se estás magoado? Vi que deste uma grande queda. Talvez possa ajudar-te. Não tenhas receio, não te vou fazer mal! Depois de verificar que estás bem, podes de novo voar. Acaso, no entanto, necessites de ajuda, levote até junto do meu pai, ele sabe cuidar os animais e as aves. É o veterinário cá da Vila, não tenhas medo, sim? - Prefiro não o fazer. Além disso, quem provocou esta queda foste tu. Não me obrigues a defender-me à bicada, olha que as minhas bicadas doem muito! - Ah, afinal, a voz que ouvi antes era a tua. Um pássaro que fala! Muito bem! Mas, ouve-me bem, já levei muitos passarinhos magoados à Clinica do meu pai, e nunca ouvi nenhum a falar! Serás tu um pássaro encantado? Até que 156
podes ser. Também nunca tinha visto um pássaro azul. Quem és tu? - O Bluebird oriental Onde tudo é muito azul, Uma ave tropical Que vive ao Norte e ao Sul. - Longe do teu habitat Algo desorientada, Precisas de quem te trate Mas não queres fazer nada. - Sialia sialis, família Que quero reencontrar! - No meio de tanta tília Não te vais orientar! Vem daí, vou-te arranjar Água, conforto, comida, Liberdade pra voar O resto da tua vida. - Hei de ao meu lar regressar, Mas não sei como fazer! Quando isto terminar, Vou lá voltar, tu vais ver! - Na verdade, de momento necessito da tua ajuda. Posso contar contigo? 157
- É isso que te venho a dizer há já algum tempo, meu amigo. Vou-te levar comigo pois deves estar cansada e com fome! - Irei sim, mas peço-te que entendas que não posso ficar aqui muito tempo. Neste preciso momento, já todos devem andar numa azáfama à minha procura. Sem mim, no Paraíso Azul tudo pode acontecer. Temos mesmo que nos despachar, o tempo urge. Antes, reconheço que me sinto fraco e tenho necessito restabelecer as minhas forças. Logo após, viajarei de novo à procura da Pérola Azul, da Flor da Felicidade, da Planta da Amizade, da Flor da Bondade, da Flor do Amor, e da Flor da Esperança. Meses atrás, o nosso Lugar Azul perdeu as cinco flores da Virtude, os seus Tesouros, os quais não eram compostos por bens materiais mas pelas Essências da Virtude. - Não entendo bem o que me queres dizer. Como se pode perder uma coisa imaterial? - A Essência da Virtude vive no nosso coração. Às vezes, uma coisa ou outra de índole material tenta corrompê-la. Isso afeta a nossa vida pois não nos serve para nada, se perdermos a inocência, perdermos a Liberdade e a raiz da Amizade, bens preciosos para nós. Não são palpáveis, mas trazem-nos a paz interior que necessitamos para viver. Entendes o que te quero dizer? - Não entendo muito bem. Deixa ver: a Liberdade, sei o que é, é assim a modo que te deixar livre, não te meter numa gaiola. Também eu gosto de ser livre, de correr no parque. Posso até dizer que a Liberdade é como o vento que sopra solto pelos campos, sobrevoa o mar e o faz ondular. O vento ninguém o prende, não tem amarras. Oh, 158
como gostava de ser como o vento, livre, solto, sempre a soprar. - Se eu fosse como o vento Correria sem parar, Varria do pensamento A palavra aprisionar. Com as nuvens brincaria E a chuva a fustigar, Á noite me deitaria Lá no mar, a repousar. E de manhã, bem cedinho, Corria na esperança De encontrar um passarinho A voar com confiança. E os ventos de bonança Traria ao empobrecido Pra que um tempo de mudança Soprasse com mais sentido. - Vem, salta para a minha mão e vamos ter com o meu pai, a ver se encontra alguma mazela no teu delicado corpo. - Vamos, meu amigo, vejo em ti uma criança muito especial que jamais pensaria 159
fazer mal a uma ave indefesa como eu estou neste momento! Dito isto, saltou para a pequenina mão de Tiago que de imediato teve uma sensação estranha de se ver transformado também ele numa pequena ave, em tudo idêntica ao do Pássaro Azul. - O que me aconteceu? – perguntou Tiago surpreendido. - De momento, és o Pássaro Azul que me vai ajudar a salvar o meu Lugar Azul e a recuperar as Cinco Flores da Virtude: Amizade, Amor, Felicidade, Esperança e Bondade. - Mas como podes tu transformar-me numa ave? - Só o posso fazer com meninos especiais como tu. E isso aconteceu. A primeira coisa que necessitamos fazer, é encontrar a Pérola Azul. Temos de sobrevoar o Mar Azul e encontrar a Ostra Saguyr, ela dar-nos à a Pérola Azul. E desataram a voar por esse céu sem fim, sobrevoar a imensidão do Mar Azul, procurar a ajuda do Vento e desbravar esse mundo além. Tiago rejubilava de alegria, ia participar na maior aventura da sua curta vida. O Vento agitou o mar e penetrou nas suas profundezas, arrastando consigo o Passarinho Azul e Tiago, ora transformado em ave também. - Santo Deus, que beleza quanta beleza encerra o fundo do mar! Tiago nem querida acreditar! Os Cavalos Marinhos ali, mesmo frente ao seu olhar. Como sentiu vontade de ter de novo as suas mãozinhas para tentar levar um que fosse para casa! Mas logo reconsiderou: - Não, se o levasse comigo, depressa sucumbiria! Correram por todo o lado em busca da Ostra Azul, só ela lhes podia conceder a Pérola que os levaria à Liberdade. 160
Tiago e o Passarinho Vão buscar a liberdade E abrir o seu caminho Para encontrar a Amizade. - Oh, quem nos pode ajudar Nesta longa caminhada? Precisamos encontrar A nossa Ostra Azulada. Tiago se transformou Para ajudar a ave Azul O Vento os ajudou Ali na Praia do Sul. Quando chegaram ao local onde proliferavam as Ostras. perguntaram a uma jovem Sereia, que suavemente penteava seus longos cabelos. - Sereia, diz-nos, Sereia, onde podemos encontrar a Ostra Azul? - Saguyr, a Ostra Azul? Vamos ter com o meu avô, penso que ele está à vossa espera. Sigam-me com cuidado para que não toquem em nada do que veem ao redor, ou esta magia que circula à vossa volta se quebra sem retorno. Tomai a máxima atenção. - Sim, entendemos bem, seguiremos com todo o cuidado! E lá foram eles com a Menina Sereia até ao lugar onde estava Saguyr, a Ostra Azul. Esta, logo que os viu, foi de imediato buscar a Pérola Azul. 161
Felizes e contentes, agradeceram a amizade e o empenho e partiram de imediato a fim de procurarem as Flores da Virtude: - Muito gratos, Saguyr, E linda Pérola Azul. E esta disse: - A seguir, Vais do Norte para o Sul. Quando saíram do Mar, Voaram pelas alturas Pra seu plano traçar Nessas novas aventuras. Procuravam as Virtudes Que um dia alguém lhes roubou E quando nas altitudes, Algo a atenção lhes chamou. - Olhem ali, é a Planta da Amizade, vinda da China! A Pilea Peperomioides é conhecida como planta da amizade porque gera uma infinidade de brotos no seu caule que permite fazer mudas para presentear os amigos. Logo que a apanharam, juntaram-na à Pérola Azul que de imediato a absorveu enchendo-se de brilho. Tiago e o Passarinho Azul entreolharam-se e ficaram espantados ao verem o resultado dessa metamorfose entre a Pérola Azul e a Planta da Amizade. Refeitos da surpresa, partiram dali à procura da Flor do Amor. 162
- Essa eu conheço, Passarinho Azul, é o Amor Perfeito. Temos muitos no nosso jardim, vamos até lá. Temo-los de diversas cores. E lá foram voando na direção da casa do Tiago. Quando ali chegaram, escolheram o que lhes pareceu mais belo e juntaram-no à Pérola, que, a exemplo do episódio anterior, o absorveu, assumindo uma nova cor, a Rosa , cor que se alojou num dos cantos da Pérola Azul. Em seguida, partiram no encalço da Flor da Felicidade, que foram encontrar em certo Jardim Botânico. Originária da India, trata-se dum belo espécime, tendo levado consigo um exemplar que logo foi absorvido pela Pérola Azul. Ah, agora só faltavam duas Virtudes. Havia que procurar a Flor da Bondade, a que muitos chamavam Margarida que prolifera por aí, em muitos jardins. Sobrevoaram baixo e logo a encontraram no primeiro jardim que encontraram, levando-a de imediato até junto da Pérola Azul, agora com uma cor indefinida, que de imediato a absorveu. Faltava uma, a Flor da Esperança. Logo, o seu Paraíso Azul estaria livre daquele feitiço maquiavélico que lhes retirara as Virtudes. Era o Girassol, a Flor da Esperança. - Tiago, olha ali aquela planície vestida de amarelo, é um campo de girassóis! Vamos descer e recolher a última flor que nos falta e ver o resultado. 163
E ei-los num voo estonteante em direção ao campo de girassóis que seguiam o brilho do astro rei. Quão felizes estavam! - Cumprida a nossa missão, Para casa podes voltar. O teu nobre coração Eu nunca vou olvidar. -Vais de regresso ao teu lar, Sê feliz, meu amiguinho. Basta quereres chamar E estou aqui, passarinho. Contigo gostava de ir, O teu País conhecer. - Disse Tiago a sorrir Mas não pode acontecer! Logo após Pérola Azul ter absorvido a Flor do Girassol, assistiram a uma transformação magnífica. Ela era agora a mais bela pérola que brilhava ao sol refletindo as cores do Arco-Íris. Subiu às alturas e aquele belo Arco da Aliança brilhava nas alturas. O pequenino Passarinho Azul voava ainda ao lado de Tiago, que mantinha ainda a forma de um delicado passarinho. Foi então que num golpe de magia o fez voltar à sua condição de menino traquina que era a sua. - Vento amigo, - suplicou - leva-me ao Paraíso Azul, quantas saudades sinto de ali regressar! 164
Tiago recordava agora os momentos lindos que vivera durante essa viagem efémera ao Paraíso Azul, onde tudo se revestia dessa cor linda que se espalhava para lá do universo – o seu Azul Celeste. - Tiago, Tiago, acorda filho! Deixa ver se acaso tens febre! Que coisa mais estranha adormeceres no banco do jardim! - Não mãezinha, fiz uma longa viagem até um lugar onde encontrei o Arco-Íris, que devolveu as cinco Virtudes ao Paraíso Azul! - Tu e as tuas histórias – sorriu. - Esse Passarinho Azul Não sei bem o que lhe deu, Foi para norte ou sul? Não sei, desapareceu! - Tiaguinho, meu filhinho, Sempre no Reino da Lua, Vem para casa, menino, Com esta mãezinha tua.
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Autor Rosa Maria Santos Três contos
Um presente do céu Amanheceu na Floresta Simálya. Os animais noturnos recolhem aos seus esconderijos, os diurnos preparam-se para uma nova jornada na procura de alimentos. Malika, a mãe coelha, levantou-se cedo para ir à horta de Inácio Flores procurar umas cenouras tenras com que ia alimentar as suas crias na sua refeição matinal. Ela bem sabe que uma boa refeição logo pela manhã trará a força precisa para mais um árduo dia de trabalho. Então, saltou do leito macio e chamou Limarke, o seu companheiro. - Acorda, Limarke, já se veem os primeiros raios de sol, toca a levantar, menino, e enquanto te arranjas, vou acordar o Molin, a Milay, e o Benjamim, vamos levá-los connosco à horta do Inácio Flores.
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- Limarke, acorda marido, É hora de levantar! Segredava-lhe ao ouvido O sol não tarda a raiar. Os meninos vou chamar Porque é tempo de aprender E na horta procurar Cenouras para comer. - Malika, deixa-os dormir, Ainda são tão novinhos! Nós iremos e a seguir, As trazemos, coitadinhos! - Não achas ainda cedo para os levantar do seu leito? São ainda muito pequenos e inexperientes para terem de enfrentar a bocarra do Fandango. Aquele cão tira-me do sério. Um dia destes atiro-me a ele e vais ver que perde a vontade de nos voltar a atacar. - Pois, pois, logo tu meu, fanfarrão, saíste-me cá um medricas do caraças. - Fala baixo, Malika, se os nossos filhos ouvem, ainda pensam que sou algum covarde. - Eles não vão ouvir, o que tu não gostas é de me ouvir a mim, pois não, Limarke? – Caramba, não sou mais que um coelho. - Um coelho, eu sei, mas se o teu paizinho aqui voltasse, não se iria orgulhar de ti, isso não. Ele, sim, era um valente, não tinha medo de nada, um herói como antes não hou167
vera na Floresta Simálya. Já tu, sempre que pressentes algum perigo, acagaças-te e ninguém mais te vê. E não me estejas a olhar com esse ar de reprovação, tu sabes bem que esta é a pura verdade. Mas, vamos ao que interessa, levanta-te e lancemo-nos à vida, é de manhã que começa o dia e como diz o ditado, … deitar cedo e cedo erguer, dá saúde e faz crescer. Logo, virou as costas e foi acordar os seus filhos, deixando para traz Limarke que não parava de resmungar. No seu cantinho, Molin, Milay, e Benjamim estavam já bem despertos, a traçar planos para as aventuras que imaginavam ter e já tão perto de se concretizar. Quando ouviram os passos da mãe, deitaram-se de novo, como se ainda dormissem. - Bom dia, dorminhocos, vamos lá a levantar, hoje temos que sair cedo para uma nova aventura, vamos colher umas saborosas e tenras cenouras na horta do Ti’ Inácio Flores, que dizem? Ali perto, o galo Gylas prepara-se para dar o toque da alvorada e depois será tarde demais para a nossa ida à horta, vai começar a faina. - Vá lá, toca a levantar, O sol não tarda a nascer, À horta vamos buscar Cenouras para comer. O dia parece estar lindo, Já é quase primavera, E a horta no prado lindo Já está à nossa espera. 168
Os filhotes, aos pulinhos, Logo da cama saltaram E depois de aprumadinhos, Os seus dentinhos lavaram. - Vamos ter com o paizinho Que nos espera à porta. - Bom dia, meus coelhinhos, Vamos lá dar uma volta? Alegres e felizes, saíram para a rua, não são antes ocultarem o seu esconderijo, para precaver intrusos. Dirigiramse então para a horta do Ti’ Inácio Flores. O sol subia lentamente em direção ao céu. Pelo caminho, encontraram a coruja Semêa, que seguia para o ninho, depois de uma noite de vigília à procura de alimento. A vida não estava fácil, os seus seis rebentos precisavam de alimento que cada vez se mostrava mais escasso na Floresta Simálya. - Bom dia, Coruja Semêa - saudou Malika – por acaso reparou se o cão da horta do Ti’ Inácio Flores anda por aí à solta? - Não, por acaso não o vi. Que noite estafante esta, vaguei por aí por toda a parte há procura de alimento para as minhas crias e mal o encontrei. Imagine ,comadre, que elas estão sempre esfomeadas! Uma coisa lhe garanto, quando cair no ninho, não me levanto tão cedo. E por aqui me vou. Tenham cuidado com esse Fandango, é muito matreiro. 169
- Teremos cuidado, sim. Até mais logo, comadre. – e virando-se para o seu par - Limarke, segura os nossos filhos, estamos quase a chegar e não quero que nada de mal lhes aconteça. Esta horta é uma beleza, As cenouras tão tenrinhas, Como é boa a natureza Que dá tantas cenourinhas. Vejam bem à vossa volta, Que boas para comer Gostamos de vir à horta Ver tudo isto a crescer. Mas prestem muita atenção Ao que vos quero dizer: Aqui na horta há um cão Que pode tentar morder. Tenhamos muito cuidado Para quando ali chegar, Olhar para todo o lado Não vá Fandango atacar. Depois de passar a cerca, entraram com a cautela possível. Aquelas cenouras tenrinhas chamavam por si. Quando a Fandango, ninguém o ouvia. O Ti’ Inácio Flores também parecia não andar por perto. Havia que aproveitar e degustar ali mesmo um bom pequeno almoço. 170
- Venham atrás de mim, o vosso pai virá atrás, para vos proteger. Vamos aproveitar o tempo que temos para nos saciarmos com estas cenouras tenras e de alguns dos frescos legumes. Mas sempre atentos, de olho e risco e de ouvido afinado, o perigo pode espreitar por todo o lado. No seu poleiro, já o Galo Gylas, tocava a alvorada. - Có-có-ró-có-có, có-có-ró-có-có! - Desmiolado Galo Gylas, já está a despertar a atenção do Ti’ Inácio Flores! Este, ao toque do Galo, saíu da porta a correr, acompanhado de Fandango. - Au-au-au-au, au-au-au-au – ladrava furioso, farejando todo o espaço ao seu redor, como a aperceber-se de alguém que estava a perturbar o sossego da horta. - Busca, Fandango - gritava Ti’ Inácio Flores -busca, meu fiel amigo. Fandango corria agora pelos carreiros que circundavam os canteiros de legumes, em direção ao plantio das cenouras. Malika, fugia desenfreada, arrastando consigo os filhos, logo seguidos por Limarke, o pai, que tentava assim protege-los. Era uma corrida contra o tempo. Quando alcançou o limite da horta, Malika olhou aliviada, ao ver os seus três filhos ao lado dela em segurança. Mas… - Limarke, aonde te meteste? 171
O companheiro tinha tropeçado durante a fuga e caído num enorme buraco que Ti’ Inácio tinha aberto no dia anterior, tendo em vista plantar um novo talhão de legumes que comprara quando se deslocou ao mercado lá da vila.
- Limarke – grita Malika Santo Deus, que aconteceu? Limarque, Limarque! – grita Ajuda-me, Pai do céu! Eu nem quero acreditar No que pode acontecer, Mas nós vamos-te ajudar E esse cão desfazer. - Vem, cãozinho, vem a nós! - Quem me chama? Um coelhinho? E o cão, ao ouvir a voz Logo se pôs a caminho. Benjamim ali ao lado, Milay, Molin à direita E Fandango, atordoado, Farejava ali à espreita. Malika, muito apressada, o companheiro alertou Ti’ Inácio não viu nada E o Fandango chamou. 172
- Que diabo se está a passar na minha Horta? – resmungava, erguendo a sachola - Ai, se vos apanho, ai se vos apanho, invasores de terras alheias, nem imaginais o que vos pode acontecer! E enquanto caminhava para o talhão das cenouras, reparou nos pequenos montículos de rama que por ali proliferavam e nos pequenos buracos no chão, com pedacitos de cenoura espalhados por todo o lado. - Malvados coelhos! Ou seriam as toupeiras que passam o tempo a dar cabo do meu talhão de cenouras? - Vem cá, Fandango, só posso contar contigo, meu fiel amigo. E ia-lhe afagando as orelhas, segredando-lhe baixinho: - Sabes, amigo? Até que bem podia colocar aqui umas armadilhas e apanhar esses bichinhos atrevidos, mas na verdade, de pouco me serviria. Hoje são estes, amanhã surgiriam outros, é a lei da sobrevivência. E além disso, são seres criados por Deus, têm direito à vida. Depois, meu Fandango, Deus tem sido generoso connosco, vai providenciando tudo o que nos faz falta. Vê como é farta a nossa horta, porque não repartir com os animais aquilo que Deus nos dá? - Au-au-au-au-au – latiu Fandango, abanando o rabito de contente e girando sobre o dono, como que a concordar com as sábias palavras que acabava de ouvir. Entrementes, do outro lado da cerca, Malica, Limarke, e os seus três filhotes, Molin. Milay e Benjamim, ainda mal refeitos do susto, regressavam a casa com o estomago reconfortado, deixando a promessa que no dia seguinte vol173
tariam de novo à horta do Ti’ Inácio Flores, mesmo sabendo dos desafios que de novo teriam de enfrentar para bem da sua sobrevivência. Afinal, a vida é mesmo assim. - Amanhã vamos voltar Para cenouras comer E a nossa vida enfrentar Sem temor, mas com prazer. Tudo a natura dá É bom pra nosso viver E o futuro nos dirá O que temos de fazer. Precisamos descansar E seguir nosso caminho, As agruras enfrentar Com muito amor e carinho. Inesperadamente, avistam Ti’ Inácio do outro lado da cerca que se aproximou e, antes mesmo que pudessem esboçar uma forma de fugir dali a toda a pressa, lhes disse: - Não se assustem, nem eu nem Fandango lhes faremos mal. Venham connosco. - virando-se para Fandango – 174
Ajuda o coelho Limarke que me parece estar ferido. Vamos levá-lo connosco e tratá-lo, coitado, parece muito fragilizado. Surpreendidos com aquele nobre gesto de benevolência, seguiram-nos, com um agradecimento aos céus. E desde aquele dia, os animais da Floresta Simálya, foram convidados a visitar a sua horta e ali partilharem dos alimentos que a pródiga natureza tão liberalmente lhes proporcionava, como se cada um se tornasse assim membro da sua família. Família, bem precioso, Um tesouro sem igual, Como é bom, maravilhoso, Seja pessoa ou animal. Deus nos deu este presente Dum viver mais puro e são E de agora, alegremente, Vivermos em comunhão.
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Ludy no Lugar do Faz de Conta Numa pequena casa à beira mar, vivia Ludy, uma menina com a bonita idade de seis anos. Na casa onde vivia, havia um sótão com uma enorme claraboia que a Menina adorava e onde passava muito do seu tempo, na companhia de Lorne, o seu gato. Até que certo dia, pediu à mãe que lhe permitisse dormir naquele espaço ou mesmo para que transferisse para ali o seu quartinho. Numa primeira reação, os pais não acharam piada à ideia. Mas depois de alguma ponderação, acabaram por concordar. E assim, o mobiliário do seu quarto foi transferido para lá. A menina sentiu-se muito contente, argumentando que agora ficaria mais perto da lua e das estrelas. - É tão bom, mãe, ver as estrelas à noite a brilhar lá em cima! Às vezes, estendo o meu braço e tento agarrá-las. E a lua? Oh, é tão grande! Há dias em que me dá a sensação de ver meninos a brincar. Outras, parece um jardim zoológico, com uma quantidade enorme de animais, - A lua está recortada. Foi o Fly, que a cortou Estrelas na noite alada Que a lua nos preparou. 176
Tal qual um naco de queijo, É tão grande é mesmo linda! Irei pedir-lhe um desejo Pois nunca pedi ainda. - Sabes, mãezinha? Quando a lua se apresenta recortada em forma de queijo, como aquele que às vezes compras, quando vais à loja do Ti’ Lino, parece que alguém a mutilou. A culpa deve ser do ratinho Fly, penso que foi ele quem fez alguma matreirice. Nós bem sabemos que os ratinhos são matreiros e loucos por se lançar sobre um pedaço de queijo, não é verdade, Lorne? - pergunta, virandose para o seu estimado gatinho – Mas tem cuidado, se tentas lançar-lhe a tua patinha, era uma vez um ratinho. – Vamos lá dormir e deixar essas questiúnculas para amanhã, – acrescentou a mãe - por hoje, chega de brincadeira. E logo lhe estende um longo abraço, acompanhado do mais carinhoso beijo. - Dorme bem, princesinha. Ligou a luz de presença e assim afastou-se, descendo de seguida. Como todas as noites, Ludy deitou-se ficou por ali a admirar as estrelas e a lua. Até que, vencida pelo sono, adormeceu - Ludy, acorda, vem comigo. - O que está a acontecer, Porque hei de eu ir contigo? Desculpa, não pode ser! 177
- Vem comigo, por favor Ao Lugar do Faz de Conta, Chegaremos ao sol pôr… - Um instante e fico pronta. Mas que grande confusão Na pequena cabecinha, - Levo o Lorne, porque não? Logo pensou a menina. Roupa quentinha vestiu E confortáveis botinhas, Olhou p’ra Lorne e sorriu Ao ver no céu, estrelinhas. - Vamos, Ludy – chamava aquela voz meiga que a menina mal conseguia distinguir - Vem comigo, vou-te levar ao Lugar do Faz de Conta Ludy arregalou os olhitos, espreguiçou-se, bocejou e ainda com voz ensonada, perguntou: - Porque me chamas! Qual a razão para ir contigo seja onde for, se nem sequer te conheço? Além do mais, a minha mãe diz-me sempre para nunca falar com desconhecidos. Diz-me quem és, deixa-me que te veja. - Sou eu, Ludy, o teu gatinho Lorne. - Lorne? Olha-me este, agora resolveu falar! Acho que estou a sonhar! Na verdade, ao que vejo por aí, já nada me surpreende. - Vem comigo, Ludy, fecha os olhos e conta até três. Depois, tudo pode acontecer. 178
Ludy levantou-se de um salto, preparava-se para obedecer e contar até três, quando reparou que ainda estava de pijama. - Espera, Lorne. Primeiro, tenho que vestir uma roupa bem quentinha, ou ainda morro de frio. Esta primavera está a ser bem fresquinha e quando anoitece, o frio aumenta. - Vai-te lá vestir. E calçar, também, pois se estiveres descalça, não te vais desenrascar. - Ainda sou pequenina Para entrar nesta aventura, Sair da minha caminha Numa noite fria e escura. Mas o Lorne, o meu gatinho, Quer-me levar a um Lugar… Saio dum lugar quentinho, Nem sei onde vou parar. Espreito pela janela, Vejo um céu anil escuro, Lá no alto tanta estrela, Não sei bem se é seguro. É bom olhar o universo, Ver ao longe o firmamento E aqui perto do meu berço, Ter o mundo em pensamento.
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Ludy espreitou pela vidraça da janela e à sua frente apenas via um mar de negritude com mil pontinhos cintilantes. Olhou bem os olhos do seu gatinho Lorne, e perguntou: - Lorne, diz-me, como vamos sair daqui? Não temos asas para voar! Se me lanço da janela, estatelo-me no chão e vai ser lindo! - Não tenhas receio. Dito isto, Lorne assobiou bem alto e logo apareceu a Coruja Sábia que logo os saudou: - Boa noite, Sir Lorne, sua Alteza chamou? E parece que não está só, tem uma menina por companhia! Não me queres apresentar essa preciosidade? - Olá, minha amiga Coruja Sábia. Aqui tens a Ludy. – e virando-se para a menina - Ludy, esta é a Coruja Sábia, não tens nada a temer, sim? É uma ave pacífica e conhece todos os recantos por aí. - Boa noite – cumprimentou, temerosa. - É um prazer conhecer-te, Ludy. Olha, a noite está fria, ainda apanhas um resfriado. Aonde pensas ir com o gatinho Lorne? - Coruja Sábia, é amiga, Não temas, minha pequena. Ela mexeu na barriga, Lorne viu e sentiu pena. 180
- Gato Lorne, por favor, Há que ter muita atenção, Vê bem ao que a vais expor, Quem sabe, constipação. - Porque estás preocupada? Vamos ter muito cuidado. Ludy está bem cuidada E pode ir p’ra qualquer lado. - Vamos lá, Ludy, – disse o gatinho – voemos para o Lugar do Faz de Conta! - Para o Lugar do Faz de Conta? – gritou a coruja, já no seu voo de regresso – Que peça rara me saíste, Lorne. Como vais levar a menina ao Lugar do Faz de Conta? Não temes as consequências que podem advir dessa tua maluquice? Bem sabes que não deves levar ninguém ao Lugar do Faz de Conta sem a prévia autorização de Carmelita Farine. - Acalma-te, Coruja Sábia, eu e a Carmelita já conversamos sobre esta viagem, não há problema algum. - Pois, pois. Tem cuidado, Gatinho Lorne, quem pode acabar por passar as passas do Algarve, é ela, não és tu! - Agradeço muito o teu cuidado e estima, boa amiga. - Mas, diz-me, como pode ela ir ao Lugar do Faz de Conta, se não pode voar, acaso pensaste nisso? - Na verdade, nem me ocorreu. Como nós podemos fazêlo, nem pensei nisso. - Bonito! 181
- E se do alto caísse, Que podia acontecer? - Ó coruja, que chatice! Não penses que vai sofrer! O melhor era pensar, Que tudo bem correr ia. Um balão surge no ar, Ludy saltou de alegria. Coruja Sábia partiu, Ao trabalho regressou Ludy quase nem a viu, Foi p’ró balão e voou Enquanto isso, Ludy olhava o chão, agora tão distante do alcance dos seus pequeninos pés. E lá ia ela pelas alturas em direção às longínquas estrelas que pareciam lhe acenar, como que a convidá-la a participar daquele desafio impar. O Gatinho Lorne, ocupado com a corda que segurava o balão, cantarolava feliz. E a viagem parecia agora mais próxima do seu destino. Não faltava muito para chegar com a amiga ao Lugar do Faz de Conta. Há tanto tempo esperava por esse momento! - Depressa vamos sair Agarra a minha patinha. - Sinto medo de cair! - Confia em mim, amiguinha. 182
Nada receies, pequena, Vai ser espetacular E vais ver que vale a pena Conhecer este lugar. Até três vamos contar, Depois, voar nas alturas, Só tens que te agarrar, Viver novas aventuras. Um, dois, vai acontecer! No tempo que serve o tempo, Um céu de estrelas vais ver Seguindo a rota do vento. E lá ia o balão ao sabor do vento, com a menina a deliciar-se com toda aquela maravilha. Ludy tentava tocar em cada estrela, a lua, fascinada com o seu vestido de rendas e brocado e acenava feliz. - Boa noite, linda Lua saudava Lorne, feliz. - Lorne, que bom ver-te de novo – respondia. – Vem aqui – chamava Ludy cheia de entusiasmo – Quero tocar-te! Lorne puxou três vezes o balão e este, depois de três voltas, parou mesmo perto da lua. 183
- Olá Ludy, como te sentes a viver esta aventura? - perguntava a Menina Lua. - Como sabes o meu nome? – perguntou com voz trémula. - Há muito tempo que te conheço Ludy, esperava esta ocasião para te dizer que és uma menina muito especial! Mas de repente, tudo mudou, a lua desapareceu, o balão rodopiou, rodopiou e foi embater em qualquer lado e parou. Ludy, ainda zonza, chamava por Lorne, o gatinho. - Lorne, Lorne, onde estás? O que aconteceu? Onde estou eu? Disseste-me que o Lugar do Faz de Conta era mágico, mas não vejo aqui magia nenhuma. - Ludy, estou aqui, não tenhas receio, algo estranho se passou, mas vamos já reencontrar o equilíbrio. De repente, ouvem chorar, Algo estranho aconteceu. E esse choro invulgar, Ouvia-se lá no céu. - O que se está a passar? Vamos ter de descobrir, Quiçá, poder ajudar, Vamos de novo subir. Porque choras, estrelinha? Vem e diz-me, por favor! A estrela olha a menina E diz: - Perdi minha flor!
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- Uma flor? Rosa, Jasmim, Um bonito malmequer? - Não é do vosso jardim É a paz que o mundo quer. Oh! Vamos então dar as mãos e juntos procurar a tua flor. Qual é a sua cor, a sua fragância? - É branca, da cor da Paz, tem a fragância do Jasmim, tão pura, tão bela, qual Lírio-da-paz, que nos liberta de todas as energias negativas. O mundo precisa dela, Ludy, ajudame a encontra-la e trá-la sem demora antes do amanhecer, ou nunca mais teremos a Flor da Paz. Ludy lançou-se desenfreada à procura do Lírio da Paz. O céu estava vestido de negro, as estrelas eram agora ocultas. Ludy sentia muito medo, mas todas as esperanças recaíam agora sobre si. Por momentos, desejou estar no aconchego da sua cama, lá no sótão, com quem partilhava as suas confidências. Mas não podia esmorecer. - Vamos, Lorne, temos que nos despachar, vamos encontrar o Lírio da Paz ou então, pobre do mundo. E lá foram os dois, de estrela em estrela, questionando pelo almejado Lírio da Paz. Mas nada, ninguém sabia o que havia acontecido. Quando, desanimados, se preparavam para desistir, eis que avistam ao longe, num buraco negro, algo a brilhar. Aterrorizados, veem o buraco a fechar-se lentamente. Lucy correu, mas ao aproximar-se, sentiu receio de entrar. E se ficasse ali encarcerada para sempre? Reuniu as forças que ainda tinha e num rasgo de coragem resolveu entrar. Ao comando do balão, ficou Lorne. Segurando bem a corda que ligava ao balão, Ludy 185
mergulhou no buraco negro, apanhou a Flor e logo puxou três vezes o fio do balão. Quando Lorne sentiu os três esticões, puxou com toda a força que tinha e logo Ludy surgiu à superfície com a Flor na mão. O seu rosto transpirava felicidade. O mais depressa que puderam, regressaram até junto da sua amiga estrela que, ansiosa, aguardava notícias e lhe entregaram o Lírio da Paz, logo que o tinha nas mãos, exclamou: P’lo poder do Sol, da Lua, Pelas ondas lá do Mar, P’la menina pura e nua Que esta Flor foi encontrar, Pelo tempo sem demora, Pelo dia a clarear, Eu proclamo aqui e agora Que haja paz em cada lar. - Como é bom ver-te no Lugar do Faz de Conta, Ludy. Um dia vais entender o contributo maravilhoso que cada um de nós pode dar para que a nossa terra seja mais feliz. Sê bem-vinda, Ludy, esta terra é também tua! Obrigada!
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O Milagre da Paz O país entrou em guerra. Que dia estranho! A neve caía, o chão estava completamente branco, o céu estava carregado de nuvens chorosas, o vento soprava forte, das árvores desprovidas ainda da sua ramagem farta, brotavam alguns rebentos soltos que anunciavam o novo ciclo primaveril que se aproximava a passos largos. Na pequena escola da Aldeia, Nadezhda, uma menina de olhos verdes, ruiva, despedia-se das amigas, apertava o blusão, colocava as luvas, passava a mão no cabelo aos caracóis e colocava o gorro de lã, verificava os atacadores das botas e pronto, estava preparada para partir. Abraçou as colegas e partiu em direção a casa. Fora mais um dia de aulas. Amigas, até amanhã Dizia ela a sorrir, Prendendo o gorro de lã P’ra que não fosse fugir. Dois amiguinhos chegaram E no caminho a seguiram, Dois coelhos saltitaram E as crianças sorriram. 187
Branquinho, da cor da neve, Com seus olhos bem pretinhos Pulava qual pluma leve Ao longo dos seus caminhos. Tudo estava tranquilo No campo, na natureza E nem faltou o esquilo Com toda a sua destreza. Eis que se ouviu um estrondo E eles ficam assustados: - Mas que barulho hediondo, Há fogo em todos os lados! Sem saberem para onde ir, Com a neve a derreter, Os coelhos a fugir, Onde se iam meter? - O que está a acontecer? Perguntava uma criança – - Vamos para casa a correr, Já não é grande a distância! Nadezhda, Aleksandr e Vladimir desataram a correr para casa. Mas… - Onde está a nossa casa? Só vejo escombros e ruinas por todo o lado! 188
Nadezhda olhava aterrorizada para o lugar que antes fora o seu aconchegante lar, agora, totalmente destruído. Aflita, chamou: - Maezinha, mãezinha, onde estás? Onde está a avozinha? Responde, mãe! Ajudem-nos, por favor! Aleksandr e Vladimir aproximaram-se de Nadezhda, abraçaram-na e perguntaram: - Que terá acontecido? O que vamos fazer agora, Nadezhda? Onde estão os nossos pais? - Não sei, estou com medo, cansada e triste. – respondeu a choramingar. A rua estava deserta, parece que todos tinham desaparecido. Nem um animal, sequer. Por todo o lado, apenas eram visíveis escombros do que foram antes lindas moradias. Os três amiguinhos sentaram-se no chão abraçados e, vencidos pelo cansaço, acabaram por adormecer. A noite foi chegando. Agora, era a fome, o frio. O que haviam de fazer? - Que nos vai acontecer? Ainda somos meninos Sem saber o que fazer, Perdidos e tão sozinhos.
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Depois, quando amanhecer, O que virá a seguir? Iremos sobreviver? Para onde vamos seguir? Mãe, pai, avó, onde estão, Mas o que vai ser de mim? É tão grande a confusão, Não posso ficar assim. Oiço vozes! Quem me chama? Preciso de descansar E a minha alma clama Por não querer despertar. - Nadezhda, Nadezhda, abre os olhos e segue-me, depressa, não temos tempo a perder! Nadezhda acordou sobressaltada, abriu os olhos e viu um homem idoso, de barba branca e cabelo longo. Usava um tipo de burca escura. Embora temerosa, o seu sorriso inspirava-lhe confiança. Parecia que a conhecia há muito tempo. - Olá, como te chamas? - perguntou Nadezhda. - Não temas, não te irei fazer mal! Segue-me em silêncio, sem fazer perguntas. Coloca os teus pés nas marcas dos meus, não te desvies do trilho, pode haver por aí espalhados estilhaços ou engenhos ainda não acionados. Segueme e mais tarde vais entender porque te vou levar comigo.
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Confusa, mas sem pestanejar, Nadezhda seguiu o velhinho sem fazer perguntas, seguindo cautelosamente as suas indicações. Quando chegaram a certo lugar, viu pendurados muitos balões coloridos, uns de cor uniforme, outros multicolores. Os seus olhos brilharam. Nunca tinha visto tantos balões juntos. - Ena, tanto balão – disse, sem conseguir disfarçar alguma emoção. Porque estamos aqui? – perguntou ansiosa. - Já te explico. - respondeu o seu novo amigo de barbas e cabelos brancos -Aproxima-te e ouve o que tenho para te dizer. A guerra instalou-se não só por aqui, mas pelo mundo. E essa gente louca precisa muito rapidamente de encontrar um caminho para terminar com isso, com tamanho arsenal bélico, vão acabar com tudo em poucos dias. - Mas como foi isso acontecer? Que mal fizemos a essa gente? Além disso, sou ainda tão pequena, tenho apenas nove anos. O que podemos fazer para trazer os meus pais e avó de volta? - Olha, Nadezhda, os teus pais e avós já descansam, filha. Quem sabe, um dia possas voltar a abraçá-los. Mas, uma coisa é certa, tu podes ajudar muitas crianças tuas amigas ou não, ao dares-lhes o teu apoio. Quanto a ti, havemos de te ajudar a encontrar uma nova família, onde poderás ser feliz. - Não quero outra família, Quero a minha, por favor, Essas noites de vigília A ouvir histórias de amor. 191
Não posso viver sem ela, Trá-la de volta para mim, Eles não são uma estrela Um anjo, ou um querubim. Quero sentir o seu abraço, A sua voz com doçura, Deitar-me no seu regaço E ouvir sua voz tão pura. - Confia, Nadezhda, vais ficar bem, confia. É só recolheres cada balão. Quando isso acontecer, vais receber um desafio. Escolhe também balões para entregares aos teus amiguinhos. Tenho a certeza de que todos juntos vão encontrar os caminhos para acabar com esta guerra sem sentido que jamais devia ter começado. Depois de muito pensar, Nadezhda virou-se para o amigo e disse: - Escolho o verde, verde cor de Esperança, que é também o significado do meu nome. Depois, o balão azul, o balão do mar, Galina, que significa Serenidade. Galina é uma das minhas melhores amigas da escola. A seguir, escolho o balão encarnado, Aleksandr, que significa Defensor da Humanidade. Aleksandr é um dos meus grandes amiguinhos, meu vizinho. Também, escolho o balão branco, Vladimir, 192
cujo nome significa senhor da Paz. Vladimir é o amiguinho que estava a dormir ao meu lado, quando chegaste. - Que maravilha! Continua, criança linda, que belas as tuas escolhas. Começo a entender porque me foste indicada pela Divindade. Mas olha, escolheste quatro balões, podes ainda escolher mais três. - Escolho, sim. - respondeu Nadazhda, apontando para o balão laranja – Escolho este, da cor do Sol, da Luz, da Natureza. O nome do meu primo Dimitri, que significa filho da terra. Faltam dois. Vamos ver se acerto no próximo, o balão amarelo. Tem o nome de Gennady, um grande amigo, cheio de Bondade. - Que belas escolhas. Falta um, qual vai ser? Nadezhda olhou ao redor. Quantos mais balões ainda por ali, quiçá, com prontos para serem escolhidos para missões diferentes- Mas o eleito teria que ser algum que pudesse trazer a paz a mundo. Olhou atentamente para todos os balões. Precisava de encontrar um que fosse capaz de alterar estes tempos conturbados que tão intempestivamente tinham invadido as suas vidas. - Lyuba, é esse mesmo. Lyuba é a minha coleguinha de carteira. O seu nome significa amor! Afinal, de que mais precisamos de momento que não de Amor? - Perfeito! – exclamou o seu amiguinho de barbas brancas. São esses mesmo os balões de que necessitamos para transformar o mundo. Agora, só tem que os distribuir por cada um dos teus amigos. Agora, segue o mesmo percurso que fizeste comigo e tudo vai correr bem. Que possas alcançar o maior êxito na tua missão. E de imediato, desapareceu. 193
Ainda surpreendida pelo seu desaparecimento inesperado, Nadezhda lá se meteu ao caminho pelo percurso indicado e foi no encalço de cada amigo, a fim de entregar a cada um o balão que lhe estava destinado. Quando entregou o último balão, o pequeno homem de novo apareceu e proferiu algumas palavras que a menina não entendeu bem. A seguir, virou-se para o grupo e disse: - Juntem-se em círculo, todos de mãos dadas, cada um com o seu balão na sua mão direita e repitam comigo estas palavras em voz alta, todos ao mesmo tempo: “PELA PAZ DO MUNDO, NÃO À GUERRA, QUE HAJA UNIÃO E PAZ”. Quando acabaram de as dizer, soltem os balões ao vento e vejam bem o que vai acontecer. Logo, as crianças se juntaram numa roda, proferindo aquelas palavras e de seguida, soltando os balões. Estes, voaram até grande altura, até atingirem as casas dos Senhores do Mundo. Logo, os balões se multiplicaram aos milhares, espalhando-se ao longo de todos os continentes. Surpresos pelo que estava a acontecer, os homens deram as mãos… e a guerra terminou. Para o mundo ser melhor, Há que praticar o bem, Com alegria e calor Não só aqui, mas além. Não há pobre nem há rico, Vai e abraça teu irmão Num mundo bom e bonito Onde haja compreensão. 194
Que não haja fome ou dor, Mas só paz entre as nações E prevaleça o amor Em todos os corações.
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Autor Sílvia Regina Costa Lima Três contos
A DESCOBERTA Se a vida estava difícil, ela pensou, era porque as chances não se ofereciam igualmente para todos. Sempre se sentia assim aos sábados, pois era o dia que a sua mãe entregava as roupas costuradas para suas freguesas. A mãe costurava que era uma beleza, sendo seu forte os vestidos novos. As clientes traziam os tecidos mais variados e também um ou dois modelos que queriam fazer, sempre copiados de revistas famosas. E tanto a mãe como ela e o irmão menorzinho viviam desse abençoado dinheiro. Não havia a presença masculina e a mãe evitava falar sobre isso. De algum modo, ela já sabia não dever insistir pois, sentada à máquina desde cedinho, a mãe pedia silêncio apenas com um olhar. Viviam então uma vida digna, mas bem sacrificada. A mãezinha se acabava de tanto costurar. 196
De muito ajudar a mãe com alfinetes e botões, pespontos e bainhas, coisas que detestava fazer, ela aprendera a conhecer a diferença entre os tecidos: o caimento, a largura, as tonalidades, sua trama, a delícia de sentir-lhes a textura entre os dedos delicados, a nobreza - e até mesmo o nome de cada um. Ela podia fechar os olhos e dizer, quase sem erro, qual deles estava em suas mãos pequenas e sensíveis - e para que eles serviriam melhor. Nessa manhã, quando a jovem senhora colocara uma nobre seda sobre a mesa da sala pedindo à mãezinha para fazer-lhe um modelo que achou sem graça e sem charme, inadequado, ela não pode mais se conter. Com a audácia dos que sofrem privações, olhou longamente para a mulher à sua frente, sentou-se e desenhou o mais belo modelo que a rica cliente já vira. Então, ali na intrepidez de seus treze anos, foi descoberto o seu lindo Dom!
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A PRMEIRA DESILUSÃO Benê disse à menina: - Vamos ao mercado buscar ervas para o machucado de painho. Não me peça nada! O pai precisa delas para fechar a ferida da perna e poder voltar ao trabalho. Você me entendeu? Clara, menina de grandes olhos no rostinho expressivo, balançou a cabeça em relutante concordância e ambas saíram para a concorrida feira semanal. Ali havia de um tudo, apelo de todos os tipos: roupas coloridas e leves feito um varal de sonhos a balançar na brisa suave; verduras verdinhas, legumes e frutas de diversos formatos e cores, texturas, bem como uma banca de sandálias e botinas de couro além da de animais mortos: galinhas, preás, bezerros magros e umas tantas coisas tão esquisitas que nem era bom lembrar o que, de fato, eram. O xodó da menina era a banca de brinquedos. E havia muitos deles ali entre os de madeira todas, bem artesanais, pintados de vermelhão, azul caipira e verde berrante. Seu olhar buscava o que mais adorava: a boneca de pano singela e delicada. Ah, como a amava! Para ela, a boneca tinha vida e daria tudo para poder segurá-la, senti-la contra o peito, só sua por um segundo que fosse... tê-la nos braços! 198
Durante alguns meses, Clara a vira ali, sempre tão perto e sempre tão longe... uma vontade enorme crescendo dentro de si, até que ela puxava a sala de mainha num gesto de infantil esperança – coisa que não comovia Benê pois esta sabia que não podia dar-lhe tal mimo. `Pagando as ervas curadoras na banca de cheirosos temperos, Benê tentava levar embora a filha ainda hipnotizada no encanto da boneca desejada. Foi então que tudo se precipitou: uma elegante mulher e a menina bem vestida aproximaram-se dali e a voluntariosa criança apontando para o brinquedo recebeu-o assim que a mãe, sem pestanejar, pagou por ele indo embora a seguir, bem ligeira e sem olhar para mais nada. No coração da menina Clara, a dor da primeira grande perda, da primeira desilusão, fez sua cicatriz eterna. Naqueles grandes olhos escuros, a lágrima consoladora não chegou a descer – congelou.
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O CONVITE Como era possível sair-se bem naquela empreitada, aos 15 anos recém feitos, se ainda não se sentia bem preparado para ela? A insistente pergunta estava alojada em sua mente desde que recebera um insólito convite. De que modo haviam chegado até ele não podia sequer imagina! Pensara sempre ser discretíssimo e que apenas umas três pessoas sabiam de seu segredo bem guardado. No colégio, ele pertencia a uma das turmas mãos bagunceiras e agia como todos os demais. Aliás, ele era até bem popular e tinha a sorte de não ser alvo de bullying – que tantos alunos sofriam por ali. Sim, sorte era um importante fator na vida, que sabia ser implacável com os que não correspondiam ais ditames tirânicos de uma preconceituosa e tola sociedade. No pátio de sua escola e também na hora da saída, os feios, os pobres, os mancos, os baixinhos, os negros, os gordinhos, os surdos e até mesmo os deficientes especiais, todos eram alvos constantes de humilhações se, fim, desde apelidos malvados até grandes e doloridas surras. Ah, pensou, se eles soubessem... se apenas imaginassem o que estou por fazer agora! Sua grande dúvida era como iriam reagir quando descobrissem tudo, e isso estava lhe pesando intimamente. A oferta recebida era muito tentadora para sua pouca idade 200
tão cheia de devaneios e impulsos fortes. E mostrava-lhe que vivia um momento especial, quase um rito de passagem. Ainda uma vez, retirou do bolso da jaqueta escolar o inesperado cartão - que cintilou à luz do Sol – e o releu atentamente. Lembrou-se dos muitos meses que precisara fazer o que tanto amava totalmente escondido dos demais, privando-se de festas com os colegas e passeios, tendo que arranjar pretextos e desculpas para dar-lhes. Quantos sacrifícios já enfrentara! E então, pisando em pés velosos – os seus tão talentosos pés de bailarino – ele dirigiu-se decidido à sede da Escola de Teatro Bolshoi – com o passaporte para a sua Felicidade.
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Autor Teresa Almeida Subtil Uma narrativa
DO GUADIANA AO DOURO Era quase noite quando passámos pelo acampamento e trocámos acenos com os pinheiros verdes e aprumados de sempre. Passava das 23h quando nos levantámos da mesa de jantar em frente ao Guadiana. No dia seguinte passaria a vigorar o horário relativo às restrições impostas pela Covid-19 e já não seria possível desfrutar calmamente do jantar, do convívio e da maravilhosa noite de verão. O Algarve era, agora, a zona mais permeável do país. Os ingleses deram à sola mais cedo do que previam. Vai longe o tempo do acampamento. Não era de finalistas, era apenas o apelo do mar. E demorávamos o dia inteiro para ali chegar. Vem-me à ideia o espírito campista. Um chá à chegada era uma nota de boas-vindas, um brinde aconchegante. E, no dia seguinte, um balde de conquilhas como gesto de boa vizinhança de quem partilhava o chão, de quem se aproximava no passo, no estendal, na mesa e na cadeira. As tendas enchiam o pinhal de vida e alegria. 202
E quando se fala em Monte Gordo digo: conheço, foi aí que a minha Guida deixou as fraldas. Com mais umas saídas à Sanábria-Espanha, acabaram os acampamentos. Foi, no entanto, uma enriquecedora experiência. Com um tom moreno regresso a Miranda do Douro, entre o JN, a Visão, alguns livros, plantas, malotes e esta repetida vontade de poetizar as encostas ora verdes ora nuas do Marão. É uma serra que me habituei a amar porque a atravessava ao crescer. As cicatrizes dos incêndios custam a passar. Apesar disso, a poesia do Marão é intensa em qualquer estação. E, como não vou ao volante, vou-me embrenhando em cada recorte de paisagem. "Já passaste o túnel? ", pergunta a que deixou as fraldas no acampamento. O túnel do Marão e a auto-estrada encurtaram distâncias. E de aeronave Porto-Faro faz-se apenas em 45 minutos. E eu já não tomo enjomin, só um ben-u-ron para aliviar a pressão nos ouvidos durante a aterragem. A passagem pelo Porto na ida e no regresso é um hábito gratificante. Desta vez pude participar - presencialmente num evento de arte grafite e arte poética. Eventos culturais entusiasmam e enriquecem quem os promove e 203
quem participa. É sempre preferível que sejam presenciais, mas a pandemia provocou reuniões online, modalidade que veio para ficar, com vantagens evidentes nalguns casos. Ao alto das minhas hortênsias esperava-me a lua e eu, reconhecida, aceno-lhe com beijos. Quem vive em Miranda do Douro ou em Lagoaça não tem fronteiras no olhar. Como o meu rio Douro que salta, encolhe-se, esbraceja e espraia-se infinitamente. E, se lhe põem algemas, é para saltar com mais força. Até chispa!
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