Consciência e Liberdade N.º 20 (2008)

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CONSCIÊNCIA E LIBERDADE

DOSSIER

Nº 20 - 2008 – Publicação Anual - Preço 10,00€

Sexto Congresso Mundial da Liberdade Religiosa Cidade do Cabo, África do Sul, 27 de Fevereiro a 1 de Março de 2007 Estudos ......................................................... 8 Dossier ......................................................... 25 A luta contra o ódio religioso - o método europeu........................................ 33 Liberdade religiosa ou fundamentalismo religioso? .........................................................45 Resposta da Espanha à intolerância religiosa .......................................................... 50 Consciência e liderança religiosa: um assunto controverso ................................. 62 O futuro da liberdade religiosa ....................... 70 Resoluções .................................................... 81

Foto IRLA

Temas de Preocupação ........................................ 84

Documento 86 Resolução adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas a 20 de Dezembro de 2006 - Promoção do diálogo, do entendimento e da cooperação entre religiões e culturas ao serviço da paz 86



ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL PARA A DEFESA DA LIBERDADE RELIGIOSA Dotada de estatuto consultivo junto das Nações Unidas e do Conselho da Europa

Schosshaldenstrasse 17, CH 3006 Berne, Tel. +41 (0)31 359 1527 E-mail info@aidlr.org - Fax +41(0)31 359 1566 Secretário-Geral: Karel Nowak Comité de honra: Presidente: Mary ROBINSON, antigo alto-comissário para os direitos humanos das Nações Unidas e antigo presidente da República Irlandesa, Estados Unidos Membros: Abdelfattah AMOR, antigo presidente do Comité dos Direitos do Homem nas Nações Unidas, Tunísia Jean BAUBÉROT, presidente de honra da Escola Prática de Altos Estudos na Sorbonne, titular da cadeira de História e Sociologia do Laicado na EPHE, Paris, França Beverly B. BEACH, antigo Secretário Geral Emérito da International Religious Liberty Association, Estados Unidos. François BELLANGER, professor universitário, Suiça André CHOURAQUI, escritor, Israel Olivier CLÉMANT, professor universitátio, escritor, França Alberto DE LA HERA, professor universitário, Director Geral dos Assuntos Religiosos, do Ministério da Justiça, Espanha. Silvio FERRARI, professor universitário, Itália Alain GARAY, advogado do Supremo Tribunal de Paris e investigador, França Humberto LAGOS, Professor universitário, escritor. Chile Adam LOPATKA, antigo presidente do Supremo Tribunal, Polónia Francesco MARGIOTTA BROGLIO, departamento de Estudos sobre o Estado, professor universitário, presidente da Comissão italiana para a liberdade religiosa, representante da Itália na UNESCO Rosa Maria MARTINEZ DE CODES, professora universitária, Espanha Jorge MIRANDA, professor universitário, Portugal Raghunandan Swarup PATHAK, antigo presidente do Supremo Tribunal, Índia e antigo juiz do Tribunal Internacional de Justiça Émile POULAT, professor universitário, director de investigação no CNRS, França Jacques ROBERT, professor universitário, membro do Conselho Constitucional, França Jean ROCHE, do Instituto, França Joaquin RUIZ-GIMENEZ, professor universitário, antigo ministro, presidente da UNICEF Espanha Antoinette SPAAK, ministra de Estado, Bélgica Mohamed TALBI, professor universitário, Tunísia Rik TORFS, professor Universitário, Bélgica Gheorghe, VLADUTESCU, professor universitário, vice-presidente da Academia romena, antigo Secretário de Estado para os assuntos religiosos, Roménia ANTIGOS PRESIDENTES DO CONSELHO Srª de Franklin ROOSEVELT, 1946 a 1962 Dr. Albert SCHEWEITZER, 1962 a 1965 Paul Henri SPAAK, 1966 a 1972 René CASSIN, 1972 a 1976 Edgar FAURE, 1976 a 1988 Léopold Sédar SENGHOR, 1988 a 2001


Consciência e Liberdade Nº 20 - Ano 2008

Órgão Oficial da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa Nº de Contribuinte: 500 847 088 Proprietário e Editor: Associação Internacional para a Defesa e Liberdade Religiosa Sede da Redacção: R. Joaquim Bonifácio, 17 – 1169-150 Lisboa – Portugal Tel. 21 351 09 10 – Fax: 21 351 09 29

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© Dezembro/2008 – Consciência e Liberdade Tiragem: 700 exemplares Inscrição na E.R.C. nº 106 816 Depósito Legal: 125097/98 ISSN 0874-2405

Execução Gráfica: Gráfica Europam, Lda. – Mem Martins Política editorial: As opiniões emitidas nos ensaios, os artigos, os comentários, os documentos, as críticas aos livros e as informações são apenas da responsabilidade dos autores. Não representam necessariamente a opinião da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa de que esta Revista é o órgão oficial. Os artigos recebidos pelo secretariado da Revista são submetidos à apreciação do Conselho redactorial.


Número 20 – 2008 Editorial Religião e ódio... Que relação pode haver entre eles? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6 Estudos T. van Boven O 25º aniversário da Declaração das Nações Unidas sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e de descrimunação baseadas na religião ou na convicção . . . 8 G. Gebhardt As religiões - incendiárias do ódio ou bombeiros da paz? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12 Dossier Sexto Congresso mundial da liberdade religiosa, Cidade do Cabo, África do Sul, de 27 de Fevereiro a 1 de Março de 2007 Fazer face ao ódio religioso Abordagem Geral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25 R. Torfs A luta contra o ódio religioso - o método europeu . . . . 33 B.B.Beach Liberdade religiosa ou fundamentalismo religioso? . . . 45 R.M. Martinez A resposta de Espanha à intolerância religiosa: da de Codes intolerância institucional à tolerância institucional . . . 50 J. Contreras Consciência e liderança religiosa: um assunto controverso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62 M.A.Tyner O futuro da liberdade religiosa e a AIDLR . . . . . . . . . . 70 Resoluções . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81 Temas de preocupação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84 Documento Resolução adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas a 20 de Dezembro de 2006 – promoção do diálogo, do entendimento e da cooperação entre religiões e culturas ao serviço da paz . . . . . . 86


Homenagem a André Chouraqui (1917-2007) Foi com uma viva emoção que tivemos conhecimento do desaparecimento de André Chouraqui, a 9 de Julho passado, em Jerusalém, com 89 anos. André Chouraqui, antigo vice-presidente da Câmara de Jerusalém e Secretário Geral da Aliança Israelita, foi um membro destacado da nossa revista. Eleito, em 1973 para o Comité de Honra da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa, redigiu numerosos artigos e participou no Congresso para a defesa da Liberdade Religiosa organizado em Amesterdão em 1977. Amava a nossa revista devido à sua liberdade de espírito e a sua abertura ao mundo. Este enorme escritor, conferencista emérito, nunca abandonou o André Chouraqui (à direita) pouco seu território de eleição: a Bíblia, tempo antes da sua eleição para o nem a sua paixão: a fraternidade. Comité de Honra da AIDLR. Era um homem de aproximações, um homem de acção, um viajante infatigável apesar da dificuldade que tinha em se mover (sequelas de uma doença de infância). Por todo o lado, tinha ouvintes atentos aos seus apelos à paz e à união. Entre os seus inúmeros trabalhos, está a sua obra magistral, a tradução integral da Bíblia hebraica, A Bíblia Chouraqui, terminada em 1993 e que, rapidamente, se tornou numa obra de referência. Anteriormente, tinha escrito O Universo da Bíblia (10 volumes apaixonantes) e uma tradução do Corão. “Que os homens se unam, dizia ele,

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todos viemos de mesmo Pai, de mesma Terra. Nada justifica a pretensão de uma raça ter superioridade sobre outra. Para quê ferirmo-nos? Demo-nos a mão!” Declarava ainda: “A unidade passa pelo Amor. Ora o Amor são as mulheres!” salientando o valor das mulheres para fazer entender as Escrituras, como textos de Amor. Também tinha criado a Aliança Judaico-Cristã e tinha-se distinguido por todo o mundo, pela sua correspondência com personalidades de primeiro plano. “Um profeta” dizia, em título, o jornal La Croix no dia seguinte à sua morte. Sem qualquer dúvida, um humanista moderno, um homem livre, que não se deixava influenciar nem por um conceito, nem por um país. Procurava pela voz e pela pena inflectir o curso das coisas, cumprindo o Shalom judaico que significa, ao mesmo tempo paz, plenitude, perfeição, santidade, luz e alegria. Esta é uma homenagem discreta e reconhecida a este homem excepcional, que transbordava de energia que, pela sua coragem, ultrapassou todas as suas provas e contribuiu para o bem de todos. Com o decorrer dos anos, André Chouraqui tornou-se, para a Redacção, bem mais do que um colaborador: um amigo, um irmão! Édith Lanarès * * Colaboradora bem próxima e viúva de Pierre Lanarès, o antigo redactor chefe da revista Conscience et Liberte.

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Editorial Religião e ódio … Que relação pode haver entre eles? Todas as religiões são tidas como pregando o amor, a tolerância e a paz. No entanto, frequentemente, os membros de uma religião detestam os adeptos das outras, que lhes pagam com a mesma moeda. Mesmo aqueles que se baseiam nos livros sagrados – onde se ensina, também, o amor, a tolerância e a paz entre os povos – pregam, por vezes o ódio, frequentemente por detrás de “boas” causas, motivos “justos” e “nobres”. Como é isso possível? Um poeta romântico do século XIX escreveu que “o coração do homem está atapetado de ódio”. Não pretendo ter uma visão “poética” do coração humano, mas penso que sob muitos aspectos os acontecimentos actuais confirmam esta opinião. Bem entendido, o ódio não é prerrogativa da religião; ele toca muitos outros domínios. Também se aplica quando os habitantes de um país criticam e detestam os cidadãos de outro país, quando os apoiantes de um clube de futebol, olham de lado para os adeptos da equipa adversária. Mas todos os exemplos que podemos apresentar suscitam a mesma questão: porque é que sentimos, espontaneamente, a aversão por aqueles que são diferentes de nós? Donde vem este sentimento de rejeição? Será que vem do fundo do coração humano? É bem possível e foi o que levou Bertrand Russel 1 a interrogar-se: “Porque é que é muito mais fácil suscitar ódio do que simpatia?” Questão para a qual ele parece responder com a seguinte observação: “O que passa geralmente por idealismo é de facto o ódio ou uma ambição disfarçada”. O ódio, sentimento próprio da natureza humana, alimenta-se de outros sentimentos como o medo, a insegurança, a insatisfação, a incerteza ou a injustiça. A isso junta-se, parece, a tendência que os homens têm a acreditar numa culpabilidade colectiva, com todas as trágicas consequências que isso comporta. Há na História numerosos exemplos de homens traídos que procuraram vingar-se não na pessoa que os traíram, mas em membros da sua família, do seu grupo étnico, da sua tribo, do seu país, ou da sua religião. De igual forma justificam-se vulgarmente, os actos terroristas invocando a culpabilidade e a responsabilidade colectivas. Como já vimos, o ódio religioso está longe de ser a única forma de ódio. Contudo, uma vez que admitimos que as religiões devem pregar o amor e a tolerância, reconheçamos que o ódio religioso é, particularmente, revoltante. O que fazer para remediar esta situação? A solução parece simples e ao nosso alcance… em teoria, pelo menos. Porque como disse Jonathan Swift 2 “Temos 6


suficiente religião para nos odiarmos, mas não a suficiente para nos amarmos uns aos outros”. Na Primavera de 2007, a International Religious Liberty Association, em cooperação com várias outras organizações, organizou na Cidade do Cabo um Congresso Internacional, que tinha como tema: “Como fazer face ao ódio religioso”. O presente número da Consciência e Liberdade dá-nos conta desse acontecimento. Os textos de várias intervenções foram reunidos. Um dos discursos, extremamente emotivo, convidou os participantes a promoverem “a separação entre a Igreja e ódio” (church and hate), fazem assim alusão, através de um jogo de palavras à “separação da Igreja e do Estado” (church and state), expressão bem conhecida de todos nós. Assim como separando juridicamente a Igreja e o Estado se abrem as portas à verdadeira liberdade de consciência, de pensamento e à liberdade de escolher a sua própria religião, também, hoje, separando a religião e o ódio, se pode abrir a via do diálogo tão necessário, à tolerância e ao respeito entre os povos cujas convicções e formas de viver, diferem. A seguinte história poderá ilustrar este propósito: “Desenrola-se dentro de mim um combate terrível – disse um idoso homem ao seu neto – um combate entre dois lobos. Um é mau e representa a arrogância e a intolerância, o amor ao poder e ao domínio, a cólera e o ódio. O outro é bom: representa o amor, a paz, a alegria, a humildade, a gentileza, a compreensão, a tolerância, a generosidade e a compaixão. O mesmo combate desenrola-se em cada um de nós”. Então a criança perguntou: “Mas, avô, qual é o lobo que vai ganhar?” O velho homem respondeu, simplesmente: “Aquele que tiveres alimentado”. A nossa tarefa, o nosso objectivo e o nosso compromisso não será alimentar o lobo bom?

Karel Nowak Notas 1. 2.

Matemático e filósofo inglês (1872-1970) Escritor satírico irlandês de origem inglesa (1667- 1745)

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Estudos O 25º Aniversário da Declaração das Nações Unidas sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e de discriminação baseadas na religião ou na convicção Théo van Boven* Resumo histórico Tendo participado nos anos 1960-1970, nos primeiros esforços para dotar as Nações Unidas de um instrumento jurídico completo em matéria de liberdade de religião ou de convicção e de não discriminação religiosa, sinto-me particularmente feliz que me seja dada a oportunidade de submeter à vossa atenção algumas reflexões, neste dia que marca o 25º aniversário da Declaração das Nações Unidas sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e de discriminação baseadas na religião ou na convicção. Convém, desde já recordar que em 1962, após uma vaga de incidentes antisemitas ao nível mundial, a Assembleia-Geral das Nações Unidas pediu, para duas declarações paralelas, a redacção de uma declaração e de um pacto sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial e de uma declaração e de um pacto sobre a eliminação de todas as formas de intolerância religiosa. Perante as práticas políticas da época, é, no entanto, estranho constatar que os dois textos sobre a discriminação racial foram adoptados pelas Nações Unidas respectivamente desde 1963 e 1965, embora seja necessário esperar por 1981 para que apareça um acordo sobre a declaração relativa à intolerância religiosa. Mas o pacto sobre a intolerância religiosa nunca viu a luz do dia, se bem que tenha sido viva e continuamente defendido pelas partes interessadas. Voltarei a este assunto, mais adiante. Se a redacção dos textos sobre a liberdade de religião ou de convicção e sobre a não discriminação religiosa tem progredido lentamente, não é, certamente, por falta de um sólido trabalho de preparação. Os princípios fundamentais estão já inscritos no artigo 18 de Declaração Universal dos Direitos do Homem, assim como no Pacto Internacional Relativo aos Direitos civis e políticos. Por outro lado, a Sub-Comissão da luta contra as medidas discriminatórias e da protecção das minorias empreendeu trabalhos preparatórios de grande qualidade, baseados no excelente estudo realizado pelo Relator Especial, Arcot Krishnaswami. A 8


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razão desta lentidão era essencialmente política, no sentido em que o tema da liberdade religiosa foi eclipsada, no seio das Comissão dos Direitos do Homem, pelos desacordos Este-Oeste da Guerra Fria. Este foi uma grande fonte de frustração para aqueles que desejavam ver avançar a promoção da protecção da liberdade religiosa. Mas graças aos esforços incessantes de um certo número de governos e ao apoio das organizações da sociedade civil, a esperança de um resultado positivo tem sido mantida. Desejo, aqui, prestar uma homenagem particular, ao advogado senegalês, o saudoso Abdoulaye Dieye, que, em 1981, presidiu com competência e autoridade ao comité de redacção da Comissão dos Direitos do Homem. Ele conseguiu, com efeito, ultrapassar uma série de obstáculos e fazer pressão para que um verdadeiro e concreto processo de decisão fosse realizado. Foi, finalmente, nesse ano que deu o passo decisivo para a adopção da Declaração pela Assembleia-Geral. Ainda hoje, sinto uma grande satisfação quando penso que se chegou a este estágio há vinte cinco anos, quando eu era director da Divisão dos Direitos do Homem, nas Nações Unidas. Um pacto, em breve? Como já mencionei anteriormente, o pedido da Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 1962, para a adopção de um pacto sobre a eliminação da intolerância religiosa, não teve êxito, apesar das demonstrações de apoio que suscitou. Num relatório escrito em 1989 por conta da Sub-comissão da luta contra as medidas discriminatórias e da protecção das minorias, recomendei que se agisse com prudência e que se insistisse particularmente no diálogo inter-religioso e na procura de uma base de ética comum, que ultrapassasse as barreiras religiosas, culturais e sócio-políticas. Sugeri, igualmente, que se não se chegasse a produzir um novo texto obrigatório, seria, talvez, preferível sob a forma de um protocolo adicional ao Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos, em vez de ser como um novo tratado. Não ignoram que hoje se levantam menos vozes, do que no passado, para reclamar um pacto tal como foi encarado pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em 1962. Isto é, talvez, devido, em parte, ao facto de que passámos o estádio da redacção de normas para chegar à sua aplicação – ainda que não possamos, verdadeiramente, afirmar que o processo de redacção de normas tenha terminado. Em contrapartida, é um trabalho, bem mais concreto, que se realiza através dos cuidados de órgãos tais como a Comissão dos Direitos do Homem e pelo Relator Especial sobre a Liberdade Religiosa ou de Convicção, que são hoje os garantes, mais eficazes e influentes da liberdade e da não discriminação religiosas. Refiro aqui o Comentário 22 adoptado pela Comissão dos Direitos do Homem em 1993, que explica em detalhe o artigo 18 do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos. Quanto ao Relator Especial sobre a Liberdade de Religião e de Convicção, este viu o seu mandato e as suas actividades consideravelmente reforçados e ampliados desde 1985. Ele vigia para que a 9


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O Palácio das Nações Unidas em Genebra, Suíça. Foto Karel Nowak

Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e de discriminação baseadas na religião ou na convicção funcione como instrumento jurídico vivo e dinâmico e que seja utilizado como critério de referência para identificar e tratar das situações mais preocupantes assim como as acusações de violação da liberdade religiosa e de outros direitos conexos. Se bem que não deseje pôr em causa a ideia do pacto, penso que na hora actual é preferível, que nos concentremos sobre a manutenção e o reforço dos mecanismos de supervisão existentes, baseados nos Tratados e nas Cartas. Intolerância religiosa e discriminação racial À luz das duas resoluções da Assembleia-Geral das Nações Unidas já mencionadas, desejo tratar, brevemente, da relação entre intolerância religiosa e discriminação racial. Na época em que fui membro do Comité para a eliminação da discriminação racial, discutimos, de tempos a tempos, este assunto, e alguns dos meus colegas, tende presentes as resoluções paralelas da Assembleia-Geral, mantinham que os dois conceitos eram distintos. Eu não partilho desse ponto de vista. Creio, antes, que a sua ligação ressalta de forma evidente, dos actos e das práticas anti-semitas contra as quais a Assembleia-Geral se levantou. Vê-se, também nas atitudes e nas condutas islamófobas ou outras manifestações de hostilidade e de violência que se constatam em numerosas regiões do mundo, para com certas comunidades, por causa das suas crenças religiosas e a sua origem racial ou étni10


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ca. A Conferência Mundial contra o racismo, a discriminação social, a xenofobia e a intolerância que lhe está associada, reunida em Durban em Setembro de 2001, reconheceu, explicitamente, na sua declaração, a relação conceptual e contextual entre discriminação racial e intolerância religiosa. Todos nos lembramos muito bem dos atentados terroristas de 11 de Setembro de 2001, apenas alguns dias depois do encerramento da conferência de Durban sobre o aumento progressivo dos estereótipos negativos e das manifestações de hostilidade e de violência contra as pessoas, os grupos e as comunidades por causa das suas crenças religiosas e da sua origem étnica, ou pretensamente “racial”. Neste contexto, Robert Goldman, o especialista independente sobre a protecção dos direitos do homem e das liberdades fundamentais na luta anti-terrorista, criticou, no seu relatório, de 2005, nas técnicas de investigação anti-terroristas, o uso do profiling (retrato robot comportamental), baseado em características tais como a raça, a nacionalidade de origem e a religião. Como ele declarou, os alvos destes inquéritos são, frequentemente, residentes estrangeiros, refugiados, requerentes de asilo e imigrantes que são muçulmanos e/ou de origem árabe. O resultado quer seja desejado ou não, poderá ser o de estigmatizar estas pessoas ou estes grupos associando-as ao terrorismo. Conclusão Instrumentos jurídicos tais como a Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de todas as Formas de Intolerância e de Discriminação baseadas na Religião ou na Convicção, não estão ao serviço, apenas, dos órgãos internacionais de supervisão. Eles adquirem um impacto real se se fala ou apela para eles, e se são aplicados ao nível nacional. Eles deveriam servir de instrumentos e de estímulos para todos os órgãos da sociedade civil, incluindo as organizações religiosas e as instituições que desempenham um papel particular neste domínio. Mais do que nunca, o diálogo inter-religioso é necessário a todos os níveis da sociedade, quer seja no plano local, nacional ou internacional. Nesta perspectiva, a declaração de 1981 não constitui apenas uma fonte de inspiração, mas é também um forte instrumento normativo. * Professor de Direito Internacional, Universidade de Maastricht, Holanda

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As religiões – incendiárias do ódio ou bombeiras da paz?

Gunther Gebhardt* A expressão “pregador do ódio” pertence, desde há alguns anos, ao vocabulário corrente. Designa aquele que utiliza o seu papel religioso preponderante para suscitar o ódio e a violência contra os membros de outras religiões, contra outras culturas e contra aqueles que têm opiniões políticas diferentes. As motivações religiosas desempenham, sem dúvida, um papel em numerosos actos terroristas, mas a violência motivada pela religião não começou com os atentados terroristas destes últimos anos e também se apresenta sob outras formas diversas. Desde há algum tempo voltámos a interrogar-nos – sobretudo sobre o islão – sobre a relação entre a religião e a política, religião e violência e também nos questionamos se as religiões são capazes de viver em paz. Contudo, não se trata aqui, de forma alguma, de um problema puramente islâmico – uma tal opinião comportaria em si o germe do ódio e da violência! – uma vez que quase todas as religiões são afectadas por manifestações de violência. Na Índia, os hindus extremistas massacram tanto os muçulmanos como os cristãos. No Sri Lanka, o budismo, embora considerados pelo seu pacifismo, também se deixou fanatizar pelos nacionalistas cingaleses. Nesse país, os Tamiles hinduístas e cristãos entregam-se a terríveis actos de violência. Por fim, não esqueçamos que o cristianismo, por sua vez, manchou de sangue certos períodos da História e que, ainda hoje, pode levar à violência. Desta forma, frequentemente apresenta-se a guerra do Iraque, com as suas consequências, como uma manifestação do “choque de civilizações”, e isto, principalmente, desde que a Administração Bush lhe deu uma conotação cristã fundamentalista: como de Deus tivesse, por assim dizer, confiado aos Estados Unidos a tarefa de dividir o mundo entre o Bem e o Mal, e de lutar contra o pretenso Mal até à sua erradicação. Como explicar que a religião seja ainda e sempre uma das causas da violência, e como podem os crentes contribuir, mais eficazmente, para a paz? Será que a ideia de uma etnia planetária, isto é, de um consenso moral baseados sobre alguns valores, normas e comportamentos éticos comuns, teria um papel concreto a desempenhar? Fala-se facilmente de uma instrumentalização da religião para fins políticos. As religiões podem, em qualquer momento, atiçar o fogo dos conflitos que, contudo, causas bem diferentes – políticas, sociais, económicas, etc. As guerras dos 12


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anos 1990 na ex-Jugoslávia ilustram bem e de maneira notável, e com que eficácia, como as diferenças religiosas foram utilizadas num conflito de interesses etno-políticos. Mas antes de nos precipitarmos sobre esta tesa da instrumentalização, poderemos interrogar-nos se as religiões são realmente pacíficas e se são os políticos sem escrúpulos e os fanáticos cegos que a instrumentalizam para fins pessoais. Se esse é o caso, então é bem necessário que elas se deixem instrumentalizar! Portanto, elas têm em si mesmas os primeiros elementos de uma predisposição para a violência e não são, em si mesmas, “inocentes”. No seu livro Die Gewalt der Frommen1, o psicanalista indiano Sudhir Kakar aborda a psicologia dos conflitos étnicos e religiosos. Analisa, em particular, o conflito entre hindus e muçulmanos radicados na Índia e faz a seguinte constatação: “A bem dizer, as concepções que as religiões têm do paraíso reflectem o sonho do homem desde sempre: estar liberto da violência. Mas a esta representação opõe-se a realidade segundo a qual é indesmentível que em todas as religiões a violência é necessária para impor os objectivos religiosos.2” Esta perpétua contradição transforma em tragédia a história das religiões e da humanidade. I. As religiões “incendiárias” do ódio. 1. Profundidade e fanatismo Qual a razão pela qual se chega a instrumentalizar a religião de uma forma terrível? Porque as convicções religiosas podem facilmente integrar-se, não importa em que objectivo, trazendo-lhe como acréscimo, uma profundidade particular e uma dimensão sagrada. A fé constitui, para numerosas pessoas, um marco na vida: dá respostas e procura, através dela, um sentimento de segurança. As pessoas chegam a ser manipuladas de tal forma que elas já não consideram um conflito político ou social, como tal, mas mais como um combate no qual os valores fundamentais da vida e o próprio Deus estão em jogo; atribui-se assim a um problema puramente material uma dimensão espiritual e cai-se no “fanatismo”. Se “Deus é por nós” logicamente não pode estar com os outros. Portanto, aqueles que estão contra nós pertencem ao “Reino do Mal”, ou ainda ao “Eixo do Mal”. Como consequência, a nossa guerra é comandada por Deus e todos os meios são bons para combater o Mal. Juntar uma dimensão religiosa e moral a conflitos meramente políticos e contribuir dessa forma para espalhar uma visão simplista do mundo em que tudo é ou negro ou branco, sem cinzento, sem cambiantes, constitui uma ameaça real para a paz. Desde logo, não precisamos de nos admirar pelo facto das piores crueldades serem precisamente perpetradas em nome da religião, nem que os dirigentes políticos e os demagogos os menos religiosos se sirvam da religião para atingirem os seus objectivos políticos. Pode igualmente evocar aqui o culto dos mártires e os atentados suicidas, que se tornaram quase um fenómeno de massas, em particular no Iraque. Sacrificar a vida por uma ideia, religiosa ou não, também pode representar uma forma de fanatismo num caso isolado, mas este acto será classificado como nobre se 13


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não toca senão a pessoa que o comete. Mártires como o teólogo protestante Dietrich Bonhoeffer, na Alemanha nazi, ou o padre católlico Oscar Romero, em El Salvador, são considerados, com justiça, como exemplos admiráveis porque morreram por outros uma vez que eles eram não-violentos. Mas o objectivo do sacrifício pode, facilmente, modificar-se para alguns: não será apenas o perder a vida, mas servir-se da sua morte para a causar noutros, bem entendido, num grande desígnio, se possível em nome de Deus, e com toda a terminologia e um simbolismo religioso. O mártir torna-se então o autor de um atentado suicida ou “kamikaze”. A etimologia deste termo é além disso interessante, porque está ligada à religião: “kami” representa, com efeito, a noção da divindade no shintoísmo japonês, e “kamikaze” significa “vento divino”. Mas é necessário sublinhar que nem todos os autores de atentados suicidas se baseiam na cultura japonesa ou sobre uma interpretação extremista e perversa do islão. No Sri Lanka, no seu combate contra o governo central, a maioria cingalesa, os Tigres Tamils apelaram a milhares de jovens autores de atentados suicidas, entre os quais numerosas mulheres. Estes actos são motivados, adornados pela religião. Vê-se como é fácil intrumentalizar a religião para suscitar a violência contra o outro, não apenas ao nível colectivo, mas igualmente ao nível individual. 2. As religiões como componentes da violência cultural Nos seus trabalhos de pesquisa sobre as estratégias da paz, Johan Galtung, após trinta anos, estabeleceu uma diferença entre a violência directa e a violência estrutural. A violência “directa” ou “pessoal” é exercida por pessoas identificáveis contra outras pessoas. Mas a “violência estrutural” é gerada pelas circunstâncias; tem causas estruturais. A injustiça da economia mundial poderia, por exemplo, constituir uma forma de violência estrutural. As religiões têm recorrido sempre a estes dois tipos de violência. Ainda hoje, não é raro encontrar em certas comunidades religiosas formas de violência estrutural, por exemplo, contra as mulheres. No início da década de 1990, Johan Galtung introduziu o conceito de uma terceira dimensão da violência: a violência cultural. Trata-se, segundo ele, de “aspectos da cultura da esfera simbólica da nossa existência – expressas pela religião e a ideologia, a língua e a arte, a ciência empírica e formal (a lógica, as matemáticas) – que podem ser utilizadas para legitimar a violência directa ou estrutural”3. Hoje dispomos de mais exemplos que não faltam para ilustrar este conceito: Igrejas ou guias religiosos que se apoiam em ditadores e em regimes que apenas têm desprezo pelos seres humanos – como no apartheid na África do Sul – ou introduzem mitos na História ou na religião e retomam-nos para justificar a violência em certas regiões da Europa, ou os conflitos armados nos territórios palestinianos, ou legitimam a guerra do Iraque invocando uma missão particular de que seria investido o actual fundamentalismo cristão, etc. 14


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3. Os aspectos “duros” e “suaves” das religiões É evidente que nenhuma religião pode ser considerada à partida, como a religião da paz, mas, por outro lado, também não é justo, denegrir as religiões classificando-as sistematicamente como violentas. Com efeito, elas não são blocos monolíticos imutáveis, mas correntes vivas, susceptíveis de evoluir no decurso da História, de oferecer diversas facetas, e pode haver diferentes fluxos na corrente. Uma vez mais, Johan Galtung aproximou-se da verdade colocando toda a sua atenção sobre a relação entre a religião e a violência. Ele observou os elementos “duros” e os elementos “suaves” de cada religião e classificou os primeiros de “religião pervertida” e os segundos de “verdadeira religião4”. Segundo ele, os elementos duros de uma religião são todas as doutrinas, as atitudes e as estruturas que criam a rejeição e a exclusão do outro. O lado macio representa os aspectos que encorajam a generosidade, a abertura e o acolhimento aos outros. Johan Galtung pensa que estes mecanismos estão em estreita relação com o conceito que cada confissão faz de Deus. Este pode ser acima de tudo transcendente – Deus é o Tudo em relação ao homem – ou imanente – Deus está em cada um de nós. É bem evidente que alguns tipos de religiões têm mais tendência de representar um ou outro. De facto, chega a dizer-se que as que são monoteístas, em razão da sua concepção de um Deus único excluindo todos os outros, seriam mais inclinadas à violência do que as que admitem uma pluralidade de divindades. Mas não podemos deter-nos em tais categorias esquemáticas. É necessário, antes de mais, compreender que em todas as religiões existem noções de transcendência e de imanência, tal como correntes e elementos duros e suaves. Por exemplo, nas religiões proféticas monoteístas representadas pelos judeus, os cristãos, os muçulmanos e os siks, um dos princípios fundamentais é que Deus seja o Deus de toda a criação, de todos os homens e de todos os povos. Todos crêem geralmente na imanência de Deus. A não ser assim, como se poderia dizer no islão: “Deus está mais próximo de nós do que a nossa veia jugular”? Mas também se encontram no conjunto das religiões, correntes místicas para quem o divino é a verdade situada no mais profundo do homem e que, por isso estão convencidos que todos os humanos estão profundamente unidos. Por fim, podemos encontrar nas religiões ditas místicas, como o budismo – que não conhece a representação de Deus – e o hinduísmo, elementos duros que excluem os outros quando alguns dentre eles se identificam, como sistema, a um grupo étnico oposto a outro grupo, como é o caso no Sri Lanka e na Índia. 4. Deter a verdade ou procurá-la? A religião reivindica a busca da “verdade” sobre a última realidade, Deus, o sentido da vida e o universo. As três grandes confissões proféticas, judaísmo, cristianismo e islão, têm precisamente consignado estas verdades nas suas Escrituras. Mas os problemas surgem quando uma religião pretende ser a única a possuir toda a verdade – exclusivismo – e que, por causa disso, obriga os 15


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seus adeptos a converter os outros, recorrendo, no pior dos casos, a coerção e à violência – universialização. Entregar-se a uma missão para levar outros a aderirem à sua religião (aquilo que se chama tradicionalmente “proselitismo”) pode igualmente levantar dificuldades, sobretudo se se é agressivo quando se procura convencer. Tais concepções da verdade assentam num grave mal entendido. Com efeito todas as religiões pretendem – com razão – que apenas Deus detém a verdade, sabendo, perfeitamente, que esta está para além de qualquer delas. Ninguém possui a Verdade. Pelo contrário: todos os crentes, seja qual for a sua confissão, deveriam considerar-se como um conjunto de peregrinos em busca da verdade. Isso teria repercussões não negligenciáveis sobre o comportamento de uns para com os outros. O pacifista belga Paul Lévy escreveu que os “detentores da verdade” se reconhecem na atitude agressiva que têm de uns para com os outros, enquanto os crentes seriam, como investigadores da verdade, muito mais dispostos a reconhecer os caminhos que os aproximam dos outros para chegar à verdade, a respeitá-los, a inspirar-se neles, seguindo o seu próprio caminho ao qual se sentem ligados. Aproximamo-nos muito mais da paz quando a compreensão estática da verdade dá progressivamente lugar a uma concepção mais dinâmica. As manifestações agressivas de uma religião não dependem unicamente de certos conteúdos marcados pela violência, mas essencialmente da forma de crer dos adeptos. Os fundamentalistas não são perigosos por veicularem mensagens fundamentais – podem existir fundamentalistas pacifistas, que preferem sacrificar-se mais do que fazer mal a outrem – mas mais porque são rígidos e convencidos de serem os únicos detentores da verdade. 5. A memória colectiva de um grupo A recordação de acontecimentos trágicos da História não integrados pode, numa situação de conflito, aumentar a tendência para a violência. Por exemplo, não há qualquer dúvida de que as cruzadas, as colónias europeias e o domínio contínuo da política económica ocidental constituem traumatismos históricos, que formam, em numerosas sociedades árabes, o terreno fértil para o ódio, que se apoderam de grupos extremistas para a transformar em actos violentos. A guerra dos Balcãs é o exemplo típico da forma como as tensões religiosas enraizadas na História podem ressurgir em períodos de conflito político levando a recusar o diálogo e conduzir por fim à violência mais brutal. Seiscentos anos depois, evoca-se ainda e sempre, a recordação da batalha do Kosovo Polje (“campo de melros”) perdida em 1389 pelos sérvios cristãos contra os turcos muçulmanos, para justificar os medos e a separação de hoje entre os sérvios ortodoxos e os bósnios muçulmanos. Outro exemplo, ainda mais concreto: o conceito que um bom número de europeus tem ainda hoje dos turcos, não tem como origem, consciente ou inconscientemente, os conflitos dos séculos XVI e XVII? Não é o espectro dos turcos na batalha de Viena em 1638, quer se queira ou não, uma razão para explicar que trezentos anos depois, os turcos muçulma16


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nos ainda encontrem frequentemente dificuldades para praticar a sua religião nos nossos países da Europa Ocidental porque temem uma nova “conquista islâmica” da nossa sociedade? Não seria esta velha recordação, em parte e de uma forma subjacente o que na União Europeia causa o receio de ver os turcos desencadear a “batalha de Bruxelas” e que a adesão da Turquia encontre tantos obstáculos? Assim, para chegar à paz entre as diferentes religiões, é necessário que cada um comece por se “curar das recordações” ou, dito de outra forma, que integre os traumatismos do passado: esta é a condição prévia, essencial na via que permitirá travar a violência 6. O medo da perda da identidade Também se pode explicar a tendência para a violência, tanto individual como colectiva, no domínio religioso por causa do medo de ver a sua identidade ameaçada, ou mesmo de a perder. Os movimentos migratórios e a multiplicação das deslocações têm trazido uma grande diversidade às religiões presentes nos nossos países. Este pluralismo é muitas vezes visto pelos crentes fiéis à sua doutrina como uma ameaça e um perigo, porque põe em questão as suas próprias certezas. Mas a minha religião não é a única possível? Poderia eu escolher outra? Mas então qual é o bom caminho? Uma tal incerteza arrisca-se a provocar um sentimento de pânico. A única forma de garantir a sua identidade seria, então, rejeitar a causa desta tensão: as outras religiões. Contudo a identidade de cada um deveria, em primeiro lugar, reforçar-se limitando-se, ao confrontar-se com outras ideias. Mas sentir que a sua identidade está ameaçada aumenta sensivelmente a propensão para a violência e é com razão que o escritor libanês Amin Maalouf, no seu livro epónimo5, fala de “identidades assassinas”. Ao longo dos séculos, as Igrejas cristãs – tal como outras correntes religiosas – reforçaram teologicamente os limites que as separavam das outras religiões. Elas não podiam salvaguardar a sua identidade senão opondo-se. Não agir como os ditos pagãos, tal era essencialmente a definição da cristandade. Hoje, devemos alterar a nossa concepção da identidade: quer se trate de um indivíduo, ou de uma colectividade, de um povo, de uma nação ou de uma comunidade religiosa, a identidade não pode, actualmente, ser vista senão como identidade plural. Isso implica, por um lado, compreender que cada pessoa vive adoptando várias identidades simultâneas, cada uma tomando de vez em quando a tomar o lugar das outras. Isso significa, por outro lado, que não se pode apreender a própria identidade sem a ver na sua relação com, e não contra, as dos outros. Nos nossos dias é precisamente no seio do pluralismo que se forja a identidade do ser humano. É necessário, portanto, passar de uma identidade definida por limites para uma identidade na sua relação com os outros. Pierre Claverie, o padre católico de Oran, na Argélia, assassinado por terroristas a 1 de Agosto de 1996, formulou de forma notável, a sua visão da relação 17


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e da dinâmica entre identidade e verdade, por ele próprio ter vivido e sofrido sob as tensões entre cristãos e muçulmanos. Eis como ele testemunha da sua experiência: “Descobrir o outro […] deixar-se afeiçoar pelo outro, isso não quer dizer, perder a sua identidade, rejeitar os seus valores, isso quer dizer conceber uma humanidade plural, não exclusiva. […] Adquiri a convicção pessoal que não há senão humanidade plural e que, desde que pretendamos […] possuir a verdade ou falar em nome da humanidade, caímos no totalitarismo e na exclusão. Ninguém possui a verdade, todos a procuramos. Há certamente verdades objectivas mas que nos ultrapassam a todos e às quais não se pode aceder senão através de um longo caminhar e recompondo pouco a pouco, essa verdade, e rebuscando nas outras culturas, nos outros tipos de humanidade, aquilo que os outros também adquiriram, procurando no seu próprio caminho em direcção à verdade. Eu sou crente, creio que há um Deus mas não tenho a pretensão de possuir esse Deus, nem pelo Jesus que m’O revela, nem pelos dogmas da minha fé. Não se possui Deus. Não se possui a verdade e tenho necessidade da verdade dos outros6.” Contudo seria verdadeiramente partidário e injusto na nossa busca do aspecto “violento” da religião e dos indícios que explicam o seu papel, de esquecer, ou mesmo de minimizar o seu lado “benevolente”. As religiões não são apenas incendiárias do ódio, elas também “bombeiros da paz”. II. As religiões, “bombeiros da paz” As religiões proclamam igualmente que uma das suas missões centrais é a paz: os textos, a doutrina, os ritos, as práticas espirituais e sociais indicam o caminho que permite viver em conjunto e em paz. Hoje ainda, como no passado, as religiões e os seus fiéis, são consideradas como forças que trabalham para a paz. Entre os inúmeros pacifistas, podemos citar S. Francisco de Assis, os Quakers e outras Igrejas pacifistas, o muçulmano indiano Abdul Ghaffar Khan assim como o seu movimento não violento baseado no Corão e, bem entendido, Gandhi e Martin Luther King. Todas as iniciativas sociais procuram reduzir o sofrimento e os movimentos que têm como objectivo erradicar a injustiça e a opressão são meios para atingir a paz. As personalidades religiosas ou os grupos religiosos que intervêm – a mais das vezes com sucesso – como mediadores em muitos conflitos políticos, por todo o mundo, desempenham um papel importante. Markus Weingadt, investigador para a paz natural de Tubingen, publicou recentemente um estudo aprofundado que descreve – ao analisar, entre outros, mais de trinta situações concretas em todo o mundo – como a religião pode contribuir para instaurar a paz7. Nos anos 1990, eu próprio apresentei um estudo inter-religioso que mostrava o potencial pedagógico de certos movimentos religiosos pacifistas8. 18


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Proporei a seguir, comportamentos e meios que permitem fortalecer a capacidade das religiões a trabalharem pela paz. 1. Enriquecer-se sobre o plano pessoal através do pluralismo Trata-se, desde logo, de compreender a diversidade e a diferença, não como ameaças, mas como oportunidades de enriquecimento e de viver outras experiências. Esta procura por uma personalidade relativamente forte, e, neste mundo cheio de incertezas, este elemento não deve ser substimado, quer se trate de indivíduos ou de grupos. Se desde logo crentes de todas as religiões chegam a considerar os outros como vizinhos com os quais partilham a mesma parcela de terra – que cada um trata à sua maneira – poder-se-á então triunfar sobre a rivalidade e a hostilidade. É igualmente essencial compreender que os membros das outras religiões têm algo enriquecedor para nos transmitir, sem que tenhamos por isso, de abandonar as nossas próprias convicções. Tais são as duas atitudes que permitiriam criar novos modos de diálogo. Aprendemos realmente a conhecer os nossos vizinhos se os descobrirmos, se nos aproximamos, se formos ao seu encontro. A coexistência inter-religiosa não se pode fazer se as pessoas não se aproximarem realmente. É necessário, portanto, aproveitar todas as ocasiões que se apresentem, na Europa e noutras regiões do mundo. As Igrejas cristãs oferecem, para isso, muito boas oportunidades, e não apenas pela sua infra-estrutura. Nada pode substituir os contactos humanos. 2. Autocrítica e trabalho para a paz no seio de uma religião Num primeiro momento é muitas vezes necessário que as religiões se familiarizem com os direitos do Homem, o pluralismo e a não-violência desde logo para o seu funcionamento interno. Com efeito se se deseja uma sociedade pluralista, na qual as pessoas de horizontes culturais diferentes vivam em paz e comuniquem, na qual se respeitam os direitos do Homem e as liberdades e obrigações que daí derivam, então não é necessário senão que as comunidades religiosas não violem esses princípios no seu próprio seio. Uma religião que deseja contribuir para a paz entre os homens deve, ela própria, abrir-se ao diálogo, e desmantelar as estruturas que tomam as decisões hierárquicas e autoritárias. Deve promover o pluralismo interno e praticá-lo. As religiões têm ainda um outro dever, o de enfrentar a sua própria violência no decurso da História e de se arrependerem. Os actos de crueldade cometidos em seu nome – ou pelo menos por elas tolerados – não podem ser minimizados invocando o contexto histórico. Estes últimos anos, as Igrejas têm progredido no caminho do arrependimento e têm procedido a confissões públicas importantes, que têm desde logo, um carácter simbólico que não se deve subestimar, mas que exprimem, também, que tais actos não se devem voltar a produzir. Estes exemplos ilustram as dimensões do trabalho para a paz, no seio das Igrejas. 19


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3. Sublinhar os aspectos “suaves” Mas as religiões não devem parar nessa autocrítica. Se querem servir a paz, é necessário desde logo identificar os seus aspectos “agradáveis” – para retomar a terminologia de Johan Galtung. Isto é redescobrir nos seus escritos os textos que encorajem a resolução dos conflitos, sem violência, a generosidade e a abertura para com os estranhos e os outros; as passagens que falam de reconciliação e que perante uma injustiça cometida procurar um novo caminho. Trata-se também de redescobrir e de valorizar as correntes teológicas correspondentes, e, sobretudo, de procurar na História da nossa própria religião as vitórias conseguidas nesse domínio e de as contar aos outros: tentar saber qual a razão porque uma iniciativa em favor da paz foi coroada se sucesso, porque é que uma reforma pacifista deu frutos. Assim, poder-se-ão encontrar modelos, não para os copiar tal e qual (o contexto histórico é diferente) mas mais para descobrir os mecanismos que, adaptados à nossa época, serviriam hoje, para resolver situações de conflito. Desde há alguns anos, o Conselho Ecuménico das Igrejas de Genebra fez progressos importantes nessa direcção. É revelador constatar que é na busca de uma teologia da Igreja Menonita, que faz parte das Igrejas pacifistas históricas – como os Quakers e a Igreja dos Irmãos (Church of Brethren) – que foi lançado no início de 2001, uma “Declaração para vencer a violência”: um apelo lançado a todas as Igrejas membros do CEI em todo o mundo para que desenvolvam, na medida das suas possibilidades, iniciativas e programas visando reduzir a violência a todos os níveis da sociedade. Há já vários anos, as acções das Igrejas têm, pouco a pouco, unido o principal movimento das actividades do Conselho Ecuménico no domínio da promoção da paz. A partir desses elementos, há uma vasta missão pedagógica para as religiões. Nos sermões, na educação religiosa das escolas, na catequese, nos textos litúrgicos, nos cânticos, no ensino da História – em tudo podem sublinhar-se os aspectos “suaves” e fazer assim um trabalho decisivo em favor da paz. 4. Colocar a ênfase sobre os pontos comuns entre as religiões e a partir daí, organizar a sua contribuição para a paz no mundo Com efeito, se o diálogo entre as religiões tem como objectivo promover a sua coabitação no seio de uma sociedade e de um mundo pluralistas, deve partir dos seus pontos comuns. O mais evidente dentre eles é que os humanos são responsáveis bem bem-estar e o futuro do nosso planeta. Todas as religiões devem, portanto, reunir-se e juntar igualmente os grupos não religiosos para encontrar os meios de se envolverem e de investir nessa tarefa. O diálogo tomará, então, a forma de uma cooperação prática para a paz e a justiça, ou os pontos de desacordo – principalmente a doutrina e os ritos – podem ser, por assim dizer, postos em paralelo, colocados entre parêntesis, sem apesar disso, serem nega20


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dos ou apagados. Colocar em primeiro lugar os pontos comuns e cooperar não significa propor uma “unidade” religiosa ilusória e, em caso algum, desejável. As diferenças, as separações e o pluralismo existem sempre, mas isso não impede de, em conjunto, fazer o que é possível e necessário. Todos os seres humanos, sejam quais forem as suas convicções religiosas, ou não religiosas, partilham um destino comum e, portanto, uma mesma responsabilidade. 5. Ética planetária É aqui que intervém o projecto da “ética planetária”. Esta compreende-se pela ideia de contribuir para a paz entre as religiões a fim de servir a paz no O Professor Hans Küng (3º a partir da esquerda) e Günther Gebhardt (à sua direita) por ocasião mundo: respeitando plenamente da abertura da versão chinesa da exposição e tomando em consideração as movel da Fundação Ética Planetária intitulada diferenças e as particularidades “As religiões do mundo – a paz mundial” em de cada religião, salientar uma Kuala Lumpor, na Malásia (Dezembro de 2005). posição comum a todas, é essa Foto Soka Gakkai, Kuala Lumpur. a responsabilidade e a acção em favor do mundo que nos envolve. A ética não compreende, bem longe disso, toda a complexidade de uma religião, mas procura muito mais, um comportamento responsável. O teólogo suíço Hans Küng, que é professor em Tübingen (na Alemanha), desenvolveu, sistematicamente, este conceito fundamental num projecto de “ética planetária” a partir da sua convicção de que “a paz entre as nações não é possível, sem a paz entre as religiões”. Em 1990, apresentou ao grande público, pela primeira vez, este conceito no seu livro Projecto da ética planetária. A paz mundial através da paz entre as religiões.9 a fase decisiva deste projecto foi atingida quando a “Declaração para uma ética planetária”, que ele redigiu em colaboração com os representantes de todas as religiões, foi adoptada pelo Parlamento das religiões do mundo em Chicago, em 1993. Mais de duzentos representantes de diferentes religiões dos cinco continentes assinaram esta declaração, dando assim um impacto mundial ao conceito de ética planetária. 10 21


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A declaração de Chicago resume os pontos comuns que as religiões têm ao nível ético sob a forma de dois princípios, que se subdividem em quatro “directivas”. 1. Exigência fundamental – O princípio da humanidade: que toda a pessoa humana seja tratada humanamente Este princípio fundamental deriva do carácter inalienável da dignidade do Homem, que advém da sua própria humanidade, e baseia-se, bem entendido, na Declaração Universal dos Direitos do Homem. Por agora permanece, acima de tudo, formal, mas, em quase todas as culturas e todas as religiões do mundo, encontra-se um segundo princípio que o desenvolve: é aquilo a que chamamos a “regra de ouro da reciprocidade”:

2. “Não faças aos outros o que não queres que eles te façam” ou de uma forma mais positiva, “Age para com os outros como gostarias que agissem para contigo!” Esta regra de ouro existe desde o tempo de Confúcio, o grande sábio chinês, quinhentos anos antes da nossa era. E é comum a todas as religiões. Foi também retomada por Emmanuel Kant, e por outros filósofos sem nenhuma ligação com a religião. Poderia, portanto, servir de base a uma concepção ética em que todos os humanos, crentes ou não, se poderia encontrar. Estes dois princípios englobam directrizes muito concretas, que se referem a quatro domínios essenciais da coabitação entre os homens e que se encontram, também, na maior parte das religiões. A Declaração de Chicago formula-os como compromissos pessoais: – O compromisso em favor de uma cultura da não violência e do respeito pela vida, baseado no mandamento “Não matarás” ou, mais positivamente: Respeita a vida! – O compromisso em favor de uma cultura da solidariedade e de uma ordem económica justa; “Não furtarás” ou: Age com correcção e honestidade! – O compromisso em favor de uma cultura de tolerância e de uma vida segundo a verdade, “Não mentirás” ou: Fala e actua de boa-fé! – O compromisso em favor de uma cultura da igualdade dos direitos e da parceria entre os homens e as mulheres, “Não terás relações sexuais ilícitas” ou, Respeitem-se e amem-se uns aos outros! O pensamento da ética planetária quer-se uma contribuição para a promoção da paz na sociedade e no mundo, particularmente para uma melhor compreensão entre as próprias religiões. No entanto, não se limita às religiões. Alimenta-se também, da ética humanista sem base religiosa. Ela convida à aliança entre as pessoas, crentes ou não, que se unem em busca da paz. A ética planetária demonstra que os valores fundamentais, as normas e as práticas que já existem são comuns às diversas religiões: é uma ética global, não uma ética específica. 22


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Cabe a cada cultura e a cada religião encontrar o meio de aplicar concretamente estes princípios aos seus campos de acção e à vida quotidiana. A Fundação ética Planetária de Tübingen, presidida por Hans Küng, consagra-se à realização e à promoção da busca da investigação, da formação e à realização de encontros interculturais e inter-religiosos no quadro do Projecto Ético Planetário11. Isso supõe um trabalho pedagógico junto da base da sociedade, isto é, na escola, em cursos de formação contínua, nos media e junto da grande público, assim como em discussões com os decisores nos domínios económico e político. O conceito de ética planetária é presentemente reconhecido como um dos elementos do diálogo intercultural no seio das Nações Unidas: em 2001, Ano Internacional do Diálogo entre as Civilizações, Kofi Annan, o secretário geral, formou um grupo de viste especialistas de grande prestígio e de todos os horizontes (dos quais Hans Küng) que redigiu uma declaração para a Organização das Nações Unidas12. Os autores pleiteavam em favor de um novo paradigma, de uma nova maneira de encarar as relações internacionais, baseada no diálogo e não na confrontação. Para atingir esse objectivo, é necessário que a diversidade e a diferença deixem de ser vistas, nestes tempos de mundialização, como ameaças, mas antes como oportunidades de enriquecimento no plano pessoal. Isso aplica-se, muito particularmente à diversidade de religiões e de culturas. As ideias do Projecto Ética Planetária têm um lugar importante nesta relação para as Nações Unidas, justamente graças à colaboração de Hans Küng e da Fundação Ética Planetária. Numa resolução oficial, a Assembleia Geral das Nações Unidas sublinhou que o diálogo entre as culturas era um excelente meio de desenvolver normas éticas comuns, o que vai, claramente, no sentido de uma ética planetária. No Projecto Ética Planetária, o papel das religiões como “bombeiros da paz” consiste essencialmente em suscitar uma mudança na consciência dos indivíduos e estimular a sua vontade de trabalhar para a paz. A Declaração para uma Ética Planetária de Chicago, em 1993, refere-se a isso na seguinte passagem: “É ilusório querer tornar este planeta melhor sem mudar à partida a consciência dos indivíduos.” Se o potencial de paz das religiões deve ter desde logo peso num mundo em que a violência se manifesta, é necessário que os membros de todas as religiões e todos os que estão dispostos a dialogar tomem a decisão de se reunir e de trabalhar em conjunto. Os fanáticos não devem ser os únicos a ocupar o primeiro plano na cena religiosa! * Conselheiro especial da Fundação Ética Planetária e vice-presidente de “Religiões para a Paz (RfP)/Europa”, Tübingen, Alemanha. 23


Günther Gebhardt Notas: 1. NTD: ou “Colors of violence”, não traduzido em português 2. Sudhir Kakar, Die Gewalt der Frommen. Zur Psychologie religiöser und et nischer Konflikte, Beck, Munique, 1997, p. 297. 3. Johan Galtung, “Cultural Violence” in, Journal of Peace Research, vol. 27, nº 3, 1990, p.291-305, cit. p. 291. 4. Johan Galtung. “Religious Hard and soft” in Cross Currents, vol. 47, nº 4 Nova Iorque, Inverno 1997-98. 5. Ver Amin Maalouf, Las Identités merutrières, Grasset, Paris, 1998. 6. Pierre Claverie, “Humanité Pluriel, in Le Monde, 4-5 de Agosto de 1996, pág. 10. http://www.ada.asso.dz/Histoire/Figures/Claverie/humanite.htm 7. Markuz Weingardt, Religion Match Freiden, Kohlhammer, Estugarda, 2007, Religião poder e paz (título traduzido do sitio da Fundação Ética Planetária www.weltethos.org). 8. Günther Gebhardt, Zum Frieden bewegen. Friedenserziehung in religiösen Friedensbewegungen, EB-Verlag, Hamburgo, 1994. 9. Hans Küng, Projekt Weltethos, Piper Munique, 1990. Versão francesa: Project d’éthique planétaire. La paix mondial par la paix entre les religions, L Seuil, Paris, 1991. 10. Hans Küng, Dokumentation zum Weltethos, Piper, Munique, 2002, p. 15-96. 11. Endereço da Fundação alemã Weltethos (Fundação Ética Planetária): Waldhäuser Strasse 23, D-72076, Tübingen. Sítio Internete www.weltethos.org. 12. Crossing the Divide. Dialogue among Civilizations, Seton Hall University/ EUA, 2001, (Em alemão: Brücken in die Zukunft. Ein Manifest für den Dialog der Kulturen. Eine Initiative von Kofi Annan. S. Fischer, Francfort-sur-Main, 2001).

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Dossier Sexto Congresso Mundial da Liberdade Religiosa, Cidade do Cabo, África do Sul, 27 de Fevereiro a 1 de Março de 2007 Enfrentar o ódio Religioso Apanhado Geral* Cerca de seiscentos participantes entre os quais representantes de governos, embaixadores, personalidades do mundo religioso ou secular e peritos na liberdade religiosa assistiram ao Sexto Congresso Mundial da International Religious Liberty Association (IRLA), organizada na Cidade do Cabo, África do Sul, de 27 de Fevereiro a 1 de Março de 2007, para estudar o tema “Enfrentar o Ódio Religioso”. “Este não é um congresso tradicional”, comentou o Dr. Jonathan Gallagher, Vice-secretário Geral para a imprensa, da IRLA. Nós lutamos contra um flagelo real, o ódio religioso, e procuramos respostas e soluções concretas. A noção das realidades e a necessidade imperiosa de agir levam os delegados a querer que as coisas mudem radicalmente. A coisa mais difícil no mundo é mudar as mentes (a nossa e a dos outros) mas isso é essencial se desejamos ver crescer e desenvolver-se uma verdadeira liberdade religiosa. A violência motivada pela religião está a aumentar, o extremismo e a intolerância tornam-se a norma. Acreditamos que este Congresso dará a oportunidade para as pessoas, qualquer que seja a sua fé, se aliarem e procurem, em conjunto em soluções para os diversos problemas relacionados com a Liberdade Religiosa e os Direitos do Homem ao redor do globo, acrescentou Gallagher. A maioria das perseguições acontece em segredo. Organizando um Congresso como este, chamamos a atenção sobre lugares onde intolerância religiosa existe, para que as pessoas tomem consciência de que isso é inaceitável”. Na sua introdução John Graz Secretário General IRLA explicou até que ponto um tal congresso era essencial. “Como há muito tempo que o direito de escolher a sua religião não é respeitado, a como há muito tempo que inocentes são vítimas de discriminação, perseguidas, e privadas dos seus direitos naturais por causa das sua convicções, precisamos de congressos, como este, sobre liberdade religiosa”. Depois precisou que a escolha da Cidade do Cabo – é o primeiro Congresso Mundial sobre a liberdade religiosa que se realiza no continente africano – foi um 25


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A sala de conferências do edifício do Congresso da Cidade do Cabo, na África do Sul. Foto Glen Mitchell

acto deliberado com o objectivo de tratar dos assuntos que existem em África e por todo o lado. O propósito deste Congresso, como dos cinco anteriores, é chamar a atenção para a necessidade da liberdade religiosa para todos, no mundo. Foi a isto que John Graz, se referiu quando falou “de um congresso sobre a liberdade religiosa […] e não um congresso religioso. “A nossa vinda à Cidade do Cabo não mudará o mundo num dia, mas contribuirá para mostrar ao mundo que discriminação religiosa e perseguição não são inevitáveis. Há aqui pessoas vindas de todos os horizontes, cuja fé e as tradições diferem, que querem demonstrar que há outro modo de lidar com as diferenças. Há as que escolheram vir a este Congresso porque estão determinados em promover a paz e a justiça através da liberdade religiosa para todos e por todo o lado. No seu discurso de abertura, Denton Lotz, Presidente da IRLA, definiu o primeiro objectivo deste Congresso que “contribuirá para a liberdade religiosa assim como para a harmonia e a paz entre as nações e as religiões. Mais do que a simples “pro-existência” isto é, viver em conjunto na verdade, para uma sociedade justa e equitativa para com todos, incluindo os pobres, os perseguidos e os oprimidos. […] Se, a partir deste Congresso, o nosso trabalho de investigação e de defesa da liberdade religiosa conduzir a um tal estilo de vida, então poderemos combater os ódios religiosos seja qual for o local onde nos encontramos”. 26


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O discurso de Ela Ghandi, vice-presidente da Conferência Mundial das Religiões para a Paz – World Conference on Religion and Peace (WCRP) – e neta do Mahatma Ghandi, desenvolveu a noção de liberdade. Declarou que “nenhuma crença se pode colocar num plano superior a uma outra” e que, ‘”enquanto podermos praticar livremente a nossa religião, não haverá nenhum problema no mundo”. O extremismo religioso foi condenado por vários intervenientes. O reverendo John Oliver falou abertamente sobre a forma como muitas denominações propagam e alimentam a ideia de que eles fazem parte dos “eleitos” e os outros dos “perdidos”. O vice-presidente de IRLA, Bert B. Beach exprimiu a sua preocupação em relação aos John Graz, Secretário-Geral da IRLA, entregando fundamentalistas, e descreveu-os uma lembrança ao Primeiro Ministro da Província Cabo Oeste, Ibrahim Rasool. como usando “uma canga ideoló- do Foto Glen Mitchell gica das mais apertadas – para não dizer paralisantes”. Termos como “perigoso”, “domínio”, “inflexível” e “controlador” foram usados para definir o que muitos chamaram “violações dos direitos humanos”. Quanto ao professor Jaime Contreras da Universidade de Alcala, Espanha, considerou que a união da religião e do governo mina a importância da consciência humana. Voltando ao carácter único de cada crença, Nokuzola Mndende lamentou que a Religião Tradicional africana tenha “ainda necessidade de ser liberta”, no sentido em que os tradicionalistas africanos são sempre representados oficialmente por porta-vozes cristãos. “Uma vez que falamos sobre liberdade religiosa, que se deixe falar as religiões indígenas; que não se fale em seu nome”. Foi com uma abordagem decididamente Sul-africana que o professor Aslam Fataar da Universidade do Cabo-Ocidental fez o seu discurso inspirando-se na luta contra o Apartheid. O seu objectivo era, naquela época, impressionar os dirigentes que se encontravam à cabeça das comunidades desfavorecidas, e oferecer a sua ajuda onde fosse necessária. “Devemos escutar”, disse ele. E teve a aprova27


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ção do dr. Mongezi Guma, presidente da Comissão para a Protecção e Promoção dos Direitos Culturais, Religiosos e Linguísticos da África do Sul. Sobre “a herança diminuída” este último insistiu em que as pessoas de diversos meios religiosos sejam tratadas com digSrª Helen Zille, Presidente da Câmara da Cidade do Cabo, dando as nidade sejam quais boas vindas aos participantes. Foto IRLA forem as suas convicções. Robert Seiple antigo presidente da organização humanitária World Vision, antigo primeiro embaixador extraordinário do Departamento de Estado americano para as questões da liberdade religiosa internacional, e que foi, durante longos anos, membro do conselho de especialistas da IRLA fez um jogo de palavras a partir da expressão bem conhecida “separação entre a Igreja e o Estado” (church and state) pedindo a todos os participantes do Congresso para promoverem “a separação entre a Igreja e o ódio” (church and hate). E acrescentou: “Este foi um ano extraordinário para as questões da liberdade religiosa, em termos de publicidade”. Sob a aprovação da assembleia, passou em revista as Srª Ela Gandhi, neta do Mahatma Gandhi, que é Presidente da principais circunstâncias World Conference on Religion and Peace (WCRP) e membro em que durante o ano de de várias organizações que trabalham em favor da paz. 2006, a religião inspirou a intolerância e a violência. 28


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A importância do diálogo. À esquerda o reverendo John Oliver, pastor da Igreja Anglicana, membro fundador de Interfaith Iniciative da Cidade do Cabo e director da organização de beneficência Chair of St. Anne’s Homes, que cuida dos sem abrigo assim como de mulheres maltratadas e dos seus filhos. À direita Seyed Mohammed Ali Abtati, antigo vice-presidente especializado nas questões jurídicas no Parlamento Iraniano (2000), antido conselheiro do presidente Khatami (2004) e autor de diversas publicações sobre o diálogo inter-religioso. Foto IRLA.

Entremeando o seu balanço com comentários amargos, falou de uma “liberdade de imprensa terrivelmente abusiva” a propósito da controvérsia sobre as caricaturas dinamarquesas. Depois evocou a condenação à morte de Abdul Rahman, no Afeganistão, por se ter convertido do islamismo ao cristianismo, os conflitos entre os esquadrões da morte xiitas e sunitas (“uns e outros tiveram de pagar um preço bem alto em termos de terror e brutalidade”), a guerra de trinta e quatro dias entre o Hezbollah e Israel durante o ano de 2006 (“uma guerra absurda entre os descendentes de Abraão, os povos do Livro”) e, por fim, a controvérsia que adquiriu um nível mundial quando o Papa Bento XVI utilizou um obscuro texto medieval num dos seus sermões. Pare resumir o seu objectivo, Robert Seiple declarou ainda: “Há as pessoas que estão prontas a morrer pela sua fé, mas infelizmente há da mesma maneira muitos que estão prontos a matar pela sua religião. Nós negligenciamos este assunto assim como os cálculos geopolíticos, mas os riscos e os perigos são nossos (e eles são consideráveis!).” Como actual presidente do Council for America’s Freedom, felicitou o Congresso pelo seu trabalho de incitamento ao respeito entre pessoas de hori29


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Jean-Paul Barqon (2º a partir da direita) secretário-geral da secção francesa da AIDLR. Foto Karel Nowak

zontes muito diversos, sublinhando a necessidade para encorajar, também, um melhor conhecimento mútuo. “É por falta de conhecimento uns dos outros que se instala a falta de respeito” insistiu. Se não nos preocupamos com os outros, como podemos respeitá-los?” Robert Seiple também encorajou os membros do Congresso a irem além da mera tolerância perante as diferenças. “Tolerância é uma palavra inconsistente”, afirmou. Tolerar o outro é apenas suportá-lo; Eu não tenho que gostar de si; Apenas tenho de o tolerar”. Recordou que se os que têm fé querem combater o ódio religioso, têm que promover mais a liberdade de acreditar. Devem promover um “ministério de presença” – isto é, a difícil tarefa de estar “suficientemente perto para tocar, compreender, e abraçar as pessoas que talvez ontem fossem, talvez, seus inimigos”. Numa intervenção cheia de entusiasmo, Ibrahim Rasool, Primeiro-Ministro da Província do Cabo Ocidental, falou com ênfase sobre as suas convicções de liberdade religiosa. O que devia ser apenas uma mensagem de boas-vindas aos delegados ao Congresso Mundial da IRLA transformou-se numa declaração argumentativa de apoio aos direitos religiosos que ultrapassaram, em muito, os discursos habituais. Ibrahim Rasool declarou que para combater o ódio religioso, “aquilo de que precisamos não são apenas de discussões entre muçulmanos, judeus, ou cristãos […]. 30


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Precisamos sobretudo de discutir as mentalidades que reinam nas diferentes religiões”. A propósito do problema da violência e do terrorismo inspirados pela religião, falou de “um mundo perturbado que se justifica baseando-se na religião. Segundo Monzegi Guma, membro do comité para a protecção e a promoção dos direitos culturais, religiosos e linguísticos dos grupos, antigo director dos ele é necessário programas de desenvolvimento do Conselho Ecuménico da África do Sul. c o m p r e e n d e r Foto IRLA. que a incerteza causada pelo mundo moderno provoca, por sua vez, um dogmatismo ainda maior. “É então que nasce o extremismo: cataloga-se, porque não se pode debater nem discutir; luta-se porque se esqueceu como amar. Isola-se e condena-se porque não se sabe como unir e encontrar um terreno de entendimento; E aperfeiçoou-se a arte de morrer por uma causa, porque não pode viver por essa causa”. Para Ibrahim Rasool, a liberdade religiosa “significa mais do que a liberdade de acreditar – é igualmente a liberdade de deixar acreditar. A liberdade religiosa significa, mais do que a liberdade de evangelizar – é também a responsabilidade de encontrar pontos comuns com o outro, mesmo evangelizando. “Creio que, no seu combate contra o ódio religioso, esta assembleia é uma bênção num mundo em profundo sofrimento, um sofrimento cuja origem se encontra muito frequentemente, nas convicções e nos comportamentos religiosos” […]. Reconhecer que cada um de nós tem em si o Espírito de Deus não pode senão fazer-nos progredir”, observou. Os delegados demonstraram a sua aprovação através de acenos com a cabeça e os aplausos. “Quando falamos uns com os outros”, concluiu o Primeiro-Ministro, “não falamos às suas roupas, mas ao que há de divino em cada um de nós. Mesmo se temos aparências diferentes, o nosso ponto comum é que cada um de nós tem em si o Espírito de Deus e Ele é digno de respeito, digno de amor e – no mínimo – de tolerância”. A Presidente da Câmara da Cidade do Cabo, Helen Zille assistiu ao Congresso Mundial da IRLA a 1 de Março e pediu mais do que tolerância. Ela qualificou 31


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Da direita para a esquerda, Rosa Maria Martinez de Codes, professora de História da Universidade Complutense de Madir, Espanha; Srª Bongiwe Kunene, que foi encarregada de ler a mensdagem de boas vindas do vice-presidente da África do Sul, Srª Phumzile Mlambo-Ngcuka e Robert A. Seiple, presidente do Council for America’s First Freedom em Richmond, Virgínia, Estados Unidos, antigo presidente da World Vision e antigo relator especial dos Estados Unidos para a liberdade religiosa, a nível internacional. Foto Glen Michell.

o Congresso como um “encontro muito enriquecedor, em que tantas crenças diferentes estão representadas” E declarou que a International Religious Liberty Association tinha um nome magnífico. Agradeceu à IRLA ter vindo à Cidade do Cabo, acrescentando que o tema Enfrentando o Ódio Religioso se aplica bem ao seu próprio país, porque resumia muito bem a situação que existiu durante muitos séculos. Segundo Helen Zille “a tolerância contêm a ideia de que se suporta uma coisa porque ela faz parte da vida, mais do que a celebra como parte da nossa diversidade religiosa”. Apoiando o trabalho do Congresso, concluiu esperando que todos serão “capazes de ser uma fonte de inspiração para fazer coabitar um bom governo e a liberdade religiosa. Obrigado por promoverem a liberdade religiosa na África do Sul e ao redor do mundo”. * Extracto do Relatório da IRLA

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A luta contra o ódio religioso – o método europeu Rik Torfs*

Introdução

sou, as consequências e a permanência das suas repercussões fazem-se sentir, mais do que nunca. Uma primeira abordagem consiste em limitar a liberdade religiosa muito mais do que no passado, claro que sem ir além dos limites de artigo 9.2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Uma segunda aproximação foca-se mais em proteger a religião, insistindo fortemente, no direito de exercer pacificamente essa liberdade. Uma terceira abordagem não se prende tanto com os limites de liberdade religiosa, mas tenta controlar melhor a influência da religião sobre a sociedade. A religião pode muito bem ter uma visão da sociedade, contudo o oposto também é possível: a sociedade pode procurar um consenso mais inspirado por um código de conduta geral do que pela religião. Descreverei estas três orientações incluindo exemplo recentes que ilustram claramente o meu objectivo. Tentarei, contudo, não recuar para além de 2003 de maneira a insistir na novidade de algumas tendências.

A questão do ódio religioso pode ser vista de um ponto de vista moral. E, nesse caso, vêem-se tensões enormes entre as altas aspirações da mensagem religiosa e os resultados práticos alcançadas pelos diferentes grupos que a reclamam. Mas pode pensar-se – e é uma opinião cada vez mais espalhada nestes últimos anos – que a luta contra o ódio religioso não é apenas um problema moral a ser negociado entre os grupos religiosos, mas também uma questão política e jurídica inevitável. A segurança, a coesão social e a co-existência pacífica vão, portanto, depender em grande parte, da forma como os líderes políticos, os juízes, os filósofos abordarem o assunto. Neste estudo, devo analisar brevemente, três métodos diferentes utilizados actualmente na Europa para reduzir o ódio religioso. Quando se diz “A Europa de hoje” refiro-me à Europa logo a seguir ao 11 de Setembro de 2001. Com efeito vemos claramente que as primeiras reacções aos acontecimentos de 2001 já estão no passado. Mas se o choque dos atentados já pas33


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de medidas que eu descreverei mais adiante. Realmente, esta lei britânica foca mais os grupos religiosos que são insultados do que os religiosos que insultam outros.

1. Limitar a liberdade religiosa. Uma primeira maneira de lidar com o problema do ódio religioso, consiste em eliminar directamente todo o ódio eventual. Eis uma série de medidas possíveis. a) Introduzir a ideia do abuso do Direito, na esfera de liberdade religiosa. É uma estratégia muito arriscada o abuso do Direito vindo do Direito Privado, e mais concretamente do Direito de Propriedade. Pode-se imaginar como abusar da propriedade de outro, por exemplo construindo no seu próprio terreno um grande muro que impeça o vizinho de aproveitar a luz do dia. Este tipo de abuso não levanta nenhuma questão. Mas que dizer sobre o abuso dos Direitos do Homem? Falar sobre o abuso da liberdade religiosa, pondo de parte as cláusulas limitativas conformes com as convenções internacionais, pressupõe uma definição escondida da religião o que, em si, é incompatível com liberdade religiosa. b) A decomposição da liberdade religiosa em vários elementos, não é como tal muito difícil. A liberdade religiosa inclui a liberdade de consciência, de fé, de organização, de expressão, de manifestação… Podem-se seleccionar alguns componentes “perigosos” e abordá-los separadamente. Por exemplo, limitar a liberdade de expressão no caso em que ela conduza ao ódio religioso. Falo aqui de livre expressão das ideias por grupos religiosos. Sob este ponto de vista, a lei britânica de 2006 contra o ódio religioso, ou “Religious Hatred Act”, pode constituir um exemplo, se bem que ela se ajusta (e talvez até melhor) ao segundo grupo

c) As medidas de segurança qualificadas de “neutras” são mais frequentes do que antes. Um exemplo: a proibição do uso da burka na rua pode ser definida como uma medida de segurança, mas ao mesmo tempo tem consequências claras para liberdade religiosa. Na Europa as disposições securitárias que afectam parcial ou maioritariamente os grupos religiosos são votadas sem grandes dificuldades. E nenhum caso Smith como nos EUA en 19901 era necessário para se chegar a uma interpretação semelhante da liberdade religiosa.

d) Uma quarta abordagem concentra-se mais na neutralidade passiva sem que a segurança seja clara ou directamente envolvida. Aqui, a lei francesa de 2004 sobre os sinais religiosos ostensivos na escola constitui um exemplo eloquente. Os lenços usados pelas alunas não afectam em nada a segurança. Contudo, de acordo com os defensores desta lei, eles ameaçam a neutralidade ou a laicidade do Estado, implícita ou explicitamente considerados como valores de uma importância extrema para a coesão social. Por outras palavras, a segurança é criada por precaução em lugar de ser simplesmente garantida em momentos difíceis. Ela é criada através de coesão social, a qual requer que os grupos religiosos se mantenham fora da esfera pública e permaneçam invisíveis.

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Muçulmanos em oração. Foto Churchphoto/Gerhard Grau

Europa que consiste em demonstrar boa vontade para com os grupos religiosos esperando receber o pagamento por isso. Esta abordagem também pode ser um sinal do poder crescente dos grupos religiosos. Como frequentemente na sociedade, os poderosos são temidos e assim são mais protegidos do que controlados. Pode mesmo dizer-se que de certa forma, a falta de coragem moral é uma das características de política europeia desde a Segunda Guerra Mundial. De qualquer maneira, desejo ilustrar esta nova tendência com cinco exemplos: a) A jurisprudência do Tribunal Europeu em Direitos do Homem (CEDH) é, bem entendido, sem-

No fim de 2006 uma medida semelhante foi tomada na Bélgica, com respeito aos funcionários civis que trabalham na cidade de Anvers. No futuro, o uso dos lenços deixará de ser autorizado. Será que se trata de uma medida de segurança? No fim de contas, talvez. Na hora actual este será mais um meio de estimular a coesão social, mesmo se esta forma de agir não é nem generosa nem atraente. 2. Mais protecção para a religião. As limitações descritas na primeira parte representam as reacções “previsíveis” das autoridades após o 11 de Setembro de 2001. No entanto, outra estratégia emerge, pouco a pouco, na

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pre pertinente. No que se refere a liberdade de expressão, o Tribunal tem-se mostrado sempre generoso. Já no caso Handyside v. Reino Unido de 7 de Setembro de 1976, a liberdade de expressão (art. 10 da Convenção Europeia) foi definida como um dos elementos essenciais do Estado democrático, e uma das condições primordiais do seu progresso e da sua prosperidade. Um vasto leque de ideias pode e deve ser expresso. Isso diz respeito não apenas as ideias bem aceites, ou consideradas como inofensivas e sem consequências, mas também as ideias podem magoar, chocar ou inquietar. No entanto, a liberdade tem os seus limites. O legislador pode, em cada país, impor restrições, na medida em que estas preencham três condições simultaneamente: (a) estarem consignadas numa lei, (b) ter um objectivo legítimo e (c) serem necessárias a uma sociedade democrática.

interesse geral, a livre comunicação comercial parece ser uma causa menos nobre. Ela não constitui, contrariamente, à liberdade de imprensa, uma das pedras angulares da moderna sociedade democrática. Em resumo, certos aspectos de liberdade de expressão, incluindo a comunicação comercial, não estão tão solidamente protegidos quanto a terminologia usada no caso Handyside pode sugerir. Ao mesmo tempo, a liberdade religiosa está melhor protegida do que antes. Isso torna-se evidente quando se trata de um domínio em que um conflito entre a liberdade de expressão e liberdade de religião já não pode ser automaticamente excluído. Tomemos como exemplo o caso Otto Preminger Institut v/ Áustria de 20 de Setembro de 1994. Neste litígio o CEDH aceitou a interdição pelas autoridades do Tirol de um filme abertamente anti-clerical, com a motivação do direito dos fiéis praticarem a sua religião em paz. Em todo o caso, o próprio Otto Preminger Institut descreve a religião como um dos elementos vitais que contribuem para a formação da identidade de cada um. Este princípio conduz a duas ideias, desde logo compatíveis, numa primeira abordagem e, no entanto, muito diferentes. Primeiramente, cada pessoa tem o direito para acreditar ou não acreditar, e de manifestar a sua religião sem interferência do Estado. Este aspecto da liberdade religiosa é bastante tradicional e não surpreende ninguém. Em segundo lugar, a liberdade religiosa também inclui o exercício calmo da religião e, em contrapartida,

b) Desde o caso Markt Intern Verlag Gmbh e Klaus Burman v. República Federal da Alemanha de 1989, a liberdade de expressão foi explicitamente estendida à comunicação comercial. Mas, ao mesmo tempo vemos, que, neste domínio preciso, o controlo do Tribunal Europeu sobre as possíveis limitações impostas pelos Estados membros é menos pormenorizado. Noutros termos, as três condições que precisam de ser observadas para impor restrições permanecem mas a Convenção Europeia dos Direitos do Homem deixa às autoridades estatais, uma maior margem de avaliação. Porquê? Porque se a liberdade de imprensa é um assunto de alto 36


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esse direito deve ser garantido pelo Estado. Nenhum problema existe contanto que o estado proíba qualquer violência, o recurso à força e à intimidação que podem importunar os crentes. Mas, o que acontece em caso de insulto ou blasfémia? Poder-se-á, com efeito, declará-los incompatíveis com o exercício calmo da religião. Mas deve dar-se esse passo? A este nível, um conflito entre liberdade de expressão e liberdade religiosa tornase, com efeito, muito plausível. Voltando ao assunto Otto Preminger Institut, dado o estatuto jurídico muito diverso na Europa, a margem de avaliação concedida a Estados membros deve, num caso como este, ser bastante grande. Porquê mencionar explicitamente a jurisprudência do CEDH? Primeiramente, claro, por causa da sua importância capital para o Direito europeu e para a jurisprudência em geral. Mas há uma outra razão. É que a liberdade de expressão parece estar ligeiramente menos protegida de que há algumas décadas atrás, quando a liberdade religiosa parecia gozar de uma melhor protecção. Esta evolução tem algumas consequências sobre as eventuais estratégias de luta contra o ódio religioso na Europa. Limitar a liberdade de expressão tendo em vista salvaguardar a prática tranquila da religião, incluindo o direito de não ser ferido nos seus sentimentos religiosos, não é completamente incompatível com a posição do Tribunal Europeu. O que segue, ilustra esta tese. c) Em 2006, foram aprovadas novas leis contra o ódio religioso

no Reino Unido, destinadas a todo o incitamento ao ódio contra pessoas por causa da sua religião – e já não só a sua raça. Elas visam impedir, quem quer que seja, de adoptar um discurso, ou um comportamento violento com o propósito, deliberado, de suscitar o ódio contra outro por causa das suas crenças. Era necessária uma nova lei? Os sikhs e os judeus já beneficiam de uma protecção alargada porque os tribunais os consideram como raças distintas. Mas os cristãos, os muçulmanos e outros não gozam da mesma protecção porque não constituem um grupo étnico particular. A Irlanda do Norte aplica as suas próprias leis para lidar com discriminação sectária entre os protestantes e católicos. O que acontecerá se alguém se mostra hostil a uma religião porque a considera como uma ameaça? A esta questão, o governo britânico responde que os critérios que permitem determinar o que constitui um incitamento ao ódio são suficientemente elevados para garantir, como nunca antes, o prosseguimento de debates livres e animados sobre as crenças. A versão definitiva da lei foi modificada sob a pressão da Câmara dos Comuns. Contém garantias específicas em matéria de liberdade de expressão, segundo as quais não pode ser declarado culpado a não ser que se incite voluntariamente ao ódio. Apenas as palavras e os actos ameaçadores serão proibidos, e não os comportamentos simplesmente críticos, injuriosos ou insultuosos. Esta distinção, foi objecto do artigo 29 J do Religious Hatred 37


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Act: “Nada nesta secção deve ser interpretado como interditando ou restringindo, a possibilidade de criticar ou de exprimir a sua antipatia ou a sua aversão, ou de utilizar o escárnio, ou a injúria contra certas religiões, ou as crenças, ou práticas dos seus membros, ou ainda, não importa contra que sistema de pensamento ou as crenças e práticas dos seus adeptos, nem como interditando o fazer proselitismo, ou de atrair os aderentes de uma outra religião, ou de outra convicção, para que deixe de praticar a sua religião ou de seguir a sua convicção”. Este texto é compatível com o resto da Lei? O futuro o dirá. Em todo caso, o Religious Hatred Act dividiu a sociedade britânica. Uma sondagem da BBC efectuada entre 8 e 10 de Julho de 2005 mostrou que os defensores da nova Lei eram quase tão numerosos como os defensores da livre expressão. d) A questão da blasfémia voltou a estar em cena. Sobre este assunto saliento dois casos particularmente significativos. Muitos muçulmanos consideraram que o romance de Salman Rushdie, Os Versículos Satânicos, continha blasfémias contra o Islão, e o líder espiritual Iraniano, Ayatollah Khomeini, proclamou em 1989, um fatwa reclamando a morte do escritor britânico. Na realidade esta fatwa devia-se à declarada apostasia de Rushdie, e não às blasfémias supostamente figurando no romance. Contudo, foram estes últimos que suscitaram o debate. Muçulmanos

britânicos pediram que Rushdie fosse levado perante os tribunais britânicos por blasfémia, mas nenhuma condenação lhe foi aplicada, porque o sistema legal inglês apenas reconhece a blasfémia contra o cristianismo. O caso Salman Rushdie criou toda uma polémica: alguns pediam que todas as religiões pudessem beneficiar da mesma protecção contra a blasfémia, ao passo que outros classificavam de anacrónicas as antigas leis britânicas sobre a blasfémia e reclamavam a sua abolição. Finalmente, a lei não foi emendada. No entanto, em 2005 perante a controvérsia sobre as caricaturas do profeta Maomé publicadas na Dinamarca, muito mais pessoas se pronunciaram a favor de uma restrição da liberdade de expressão em caso de blasfémia. O escritor socialista, flamengo, Kristien Hemmerechts disse na televisão durante um debate: “Se o preço a pagar é uma pequena restrição da liberdade de expressão ficaria contente. Não deveríamos reclamar”. Outros continuam a defender a liberdade de expressão, ou a fazer uma distinção entre a liberdade de expressão jurídica e cortesia social, que leva, por vezes, a escolher não ultrapassar certos limites em sociedade. Em todo o caso, enquanto que por ocasião do caso Salman Rushdie, os europeus, de um modo geral, pareciam pouco disposto castigar a blasfémia, a situação parece muito menos clara em 2005-2006. Muitos países europeus ainda têm legislação sobre a blasfémia, como a Áustria (artigos 188 e 189 do código 38


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Contraste chocante entre um bairro muito frequentado de Las Vegas, nos Estados Unidos, à noite (foto chuerchphoto Sascha/Schuster) e uma simples família beduína diante da sua tenda (foto churchphoto/Gerard Garu).

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religiosos dos católicos de uma forma intolerável. O juiz de primeira instância compartilhou este ponto de vista, e qualificou a campanha como um “acto de intrusão agressiva e gratuita, no mais fundo das crenças íntimas2” de natureza a ferir diretamente os espectadores involuntários que se encontram na via pública. O Tribunal de Segunda Instância de Paris confirmou esta decisão. Segundo o seu parecer, a utilização de um dos maiores símbolos do Cristianismo para fins comerciais e publicitários constituiam uma grande injúria feita aos católicos, causando assim, uma manifesta perturbação ilícita. Esta decisão revelou uma nova tendência para restabelecer o delito de blasfémia em França? Alguns observadores responderam afirmativamente. O jornal Libération, por exemplo, publicou a 12 de Março de 2005 um artigo intitulado: “O regresso em graça da blasfémia”. Outros, como o jurista legal Alain Gautron, são mais moderados. Contudo, o título de um artigo que ele escreveu exprime bem o dilema do debate: “A exploração publicitária dos símbolos religiosos e o juízo: em busca de um equilíbrio entre a liberdade de expressão e o direito ao respeito pelas convicções íntimas”. No seu artigo, Alan Gautron explica porque, segundo ele, neste caso, O Tribunal de Segunda Instância tinha o direito de dar prioridade à protecção das convicções íntimas dos crentes. Os criadores da publicidade tinham utilizado um símbolo religioso fun-

penal), a Finlândia (secção 10 de capítulo 17 do código penal), a Itália, e os Países Baixos (artigo 147 do código penal), a Espanha (artigo 525 do código penal) e, como já vimos, o Reino Unido. E mesmo que na hora actual, estas normas são pouco, na verdade, aplicadas, uma vez que elas existem, nada impede que coisas possam mudar.

e) A protecção dos símbolos religiosos em detrimento da liberdade de expressão em França. À primeira vista, esta fórmula pode surpreender.Todavia, até mesmo no país de laicidade existe uma tendência para uma melhor proteção dos sentimentos religiosos. Esta evolução pode ser ilustrada por uma decisão do Tribunal de Segunda Instância de Paris de 8 de Março de 2005. Embora o Supremo Tribunal tenha anulado esta decisão a 14 de Novembro de 2006, o caso merece ser discutido com mais detalhe.

A sociedade Marithé François Girbaud, tinha lançado uma campanha publicitária para uma coleção de pronto-a-vestir feminino e escolheu como elemento de atracção um célebre quadro de Leonardo da Vinci intitulado A Santa Ceia. Mas, nos cartazes, em lugar das personagens, figuravam mulheres com roupas da marca e sentadas em posições similares às de Jesus e dos Seus discúpulos. O cartaz apareceu na imprensa, e também foi afixado nas ruas de Paris. A Association Croyances et Libertés levou o caso perante os tribunais defendendo que a campanha publicitária ofendia os sentimentos 40


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damental para um fim exclusivamente comercial. Neste caso concreto, encontramos os quatro elementos constitutivos de um insulto, isto é (a) uma expressão caracterizada por uma terminologia insultuosa desdenhosa; (b) visando uma pessoa determinada; (c) com más intenções; (d) o carácter público da ofensa. Já em 1985, professor Lindon, fazendo um comentário sobre uma decisão do Tribunal de Primeira Instância em Paris datada de 1984, do caso Avé Maria, escreveu que num caso como este, uma decisão contra a ilimitada liberdade de expressão como este não deveria ser vista como a vitória de uma doutrina religiosa, mas mais como uma contribuição para o espírito de respeito recíproco que é um dos elementos de paz pública. Esta sábia conclusão soa como justa mas podemos perguntar se o respeito recíproco deveria ser realmente dotado de um estatuto jurídico, com o risco de limitar um direito tão essencial como liberdade de expressão. Afortunadamente, na minha opinião, no caso Girbaud o Supremo anulou a decisão da Relação a 14 de Novembro de 2006. Ele julgou que a publicidade não pretendia insultar os crentes católicos e que não se tratava portanto, de um ataque directo e dirigido contra um grupo de pessoas por causa da sua filiação religiosa. Por conseguinte, não se pode falar aqui de uma perurbação manifestamente ilícita. Contudo, retira-se disto tudo que, mesmo em França, não se desenha

uma tendência para proteger as religiões em detrimento da liberdade de expressão. f) Em 2006, o então Ministro da Justiça holandês, Piet Hein Donner fez uma declaração que causou muita controvérsia. Segundo ele, os Países Baixos deveriam acolher o Islão como um novo pilar da sociedade. E acrescentou: “E também seria verdade no caso da sharia ser adoptada. Se dois terços dos holandeses escolhe se declararem a favor da sharia, então dever-se-á aceitá-la”. Para Donner, tal é a essência da democracia: é a maioria que importa. Depois, atenuou as suas declarações. Sejamos honestos, a democracia significa mais do que a lei do maior número. Comporta também o Estado de Direito e a aplicação estrita dos direitos fundamentais inclusive a liberdade de imprensa. No entanto, a opinião de Donner simbolisa uma mudança do paradigma. Pouco depois do 11 de Setembro, as medidas restritivas para com a religião parecem o melhor meio de garantir a segurança. Mas hoje, adopta-se, cada vez mais, uma atitude de abertura – por vezes até de receio – para com os grupos religiosos.

3. O Esperanto Moral

Moreel Esperanto é o título original de um livro do autor holandês Paul Cliteur publicado em 2007. Erudito brilhante, Paul Cliteur passa por ser o representante da corrente de pensamento mais liberal (no sentido europeu do termo) neste momento. Ponto de partida do seu raciocínio: vivemos numa época confusa. 41


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Os julgamentos morais baseados na religião entram em conflito com juízos morais não baseados na religião. Como podemos reduzir esta tensão? Paul Cliteur adopta uma atitude céptica face ao tradicional apelo ao diálogo. Para ele, este diálogo implica geralmente uma atitude menos crítica para o fenômeno religioso que acompanha muitas vezes uma autocrítica sobre a nossa arrogância ocidental. Chegando assim ao seguinte raciocínio: uma vez que os terroristas se sentem frequentemente insultados e humilhados, admitindo a nossa culpabilidade, podem abrandar a sua raiva. Paul Cliteur rejeita tal argumento que, aos seus olhos, reforça os religiosos fanáticos na sua opinião. Se passamos o nosso tempo a desculpamo-nos, eles ficarão cada vez mais convencidos de que têm razão. Paul Cliteur propõe uma alternativa: procuremos encontrar um consenso que possa servir de base a uma sociedade multiconfessional. Mas procurê-molo numa ética de independência, sem fundamento religioso.É este esperanto moral que os crentes e os não crentes podem e devem praticar. Paul Cliteur desenvolve a sua argumentação em três partes. Na primeira, descreve os fortes laços entre ética e religião para em seguida os rejeitar: o Bem equivale à vontade de Deus, e Deus não diz o que devemos fazer. Claramente, este não é o caminho que Cliteur quer seguir. Na segunda parte, propõe uma alternativa a esta forma de pensar: a ética independente. Só o esperanto

moral torna possível um diálogo verdadeiro. Ele ilustra o seu ponto de vista com um exemplo. Imaginemos uma sala na qual se encontram pessoas de diferentes nacionalidades. Naquela situação, as pessoas comunicam-se, geralmente, numa língua que todos compreeendam. Seria estranho que alguém reivindicasse alto e bom som, o direito de se exprimir na sua própria língua e que continuasse a falar na sua língua, embora ninguém na sala esteja capacitado para a compreender. A conclusão parece evidente: a ética independente, se bem que imperfeita, é a única solução. Na terceira e última parte do livro Paul Cliteur aplica a ética independente à política e à sociedade. Ele luta por uma separação estrita entre religião e o Estado. Este deveria considerar as pessoas como cidadãos, não como membros de grupos religiosos. Eis porque a abordagem de paul Cliteur não é multicultural mas antes universal. Aos seus olhos, uma sociedade multicultural deveria ser regulada através de uma ética independente em relação com um Estado neutro. O raciocínio de Paul Cliteur é emblematicamente decorrente do actual pensamento europeu. Parece muito racional, contudo pode ser criticado em três níveis diferentes. Primeiramente, Paul Cliteur tem uma concepção muito racional da ética. Por exemplo, ele critica a ética pregada por Jesus Cristo por não ser realmente sistemática, embora disso lhe venha a sua força. Com efeito, quando a ética é elevada a sistema, 42


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casos, o antagonismo entre os dois é apenas uma ilusão. Frequentemente, com efeito, a liberdade religiosa contribui para a segurança. A segunda é mais recente. Tenta pela via da Lei e da jurisprudência, limitar os insultos ao carácter religioso e a blasfémia insistindo no direito que cada um tem de usar a liberdade religiosa pacificamente. É evidente que o respeito pelas religiões é uma atitude mais positiva; no entanto, esta segunda abordagem concentra­ ‑se demasiado no conflito entre a liberdade de expressão e a liberdade religiosa. Isto é lamentável por duas razões. – Primeiramente, liberdade de expressão reveste ainda uma importância capital; sem a crítica e a autocrítica, a Europa deixaria de ser ela mesma. – Em segundo lugar, é necessário evitar pôr em oposição a liberdade de expressão e a liberdade religiosa. As duas ocupam um lugar fundamental no seio dos Direitos do Homem. A terceira abordagem, o esperanto moral, é talvez muito racional e, mais do que isso, muito artificial para se tornar na solução do futuro. Trata-se mais de um sistema a ser posto no lugar de uma resposta às interrogações das pessoas e da sociedade. Qual destas abordagens deveria ser privilegiada na Europa? Eu adoptaria por uma atitude favorável à liberdade religiosa e aos grupos religiosos, mas que daria importância aos outros direitos do homem em geral e à liberdade de expressão em particular. Eis porque as medidas jurí-

a abordagem dedutiva é inevitável e o sistema é aplicado à realidade. Desnecessário é dizer que este tipo de abordagem é altamente discutível. Em segundo lugar, a análise de Paul Cliteur denota uma compreensão superficial do fenómeno religioso. É a característica actual de um bom número de filósofos. Ele escreve: “Cada um é livre de acreditar num ou mais deuses”. Juridicamente esta declaração está absolutamente correcta. Mas poderá ela aplicar-se realmente à vida diária? É como se se dissesse: “Todo o mundo é livre de se apaixonar”. Mas como explicar isso a adolescentes cheios de sonhos, e de desejos? Apaixonar-se não é propriamente falar em escolha e certamente não uma escolha racional. O mesmo é válido para a religião e a fé. Em terceiro lugar, o que pensar do esperanto? É um idioma inventado pelos homens mas não foi criado a partir do nada. Já existiam outros idiomas antes dele que tomaram forma ao longo do tempo e que são as mais praticadas. O esperanto permanecerá sempre uma língua artificial e os homens têm mais facilidade em falar línguas que não criaram a partir de diversas peças.

Conclusões

Das três tentativas que apresentei neste artigo, nenhum deles é totalmente convincente. A primeira teve um certo sucesso pouco depois do 11 de Setembro de 2001. Ela tendia a privilegiar a segurança à custa da liberdade religiosa ignorando o facto de que, em muitos 43


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A Europa sob o seu melhor aspecto é uma terra de liberdade religiosa generosa indo a par de uma liberdade de expressão corajosa e com a educação e o fair-play necessários para que o uso desses dois direitos se faça no respeito devido aos crentes, às ideias e aos sentimentos dos outros.

dicas contra os insultos ou blasfémias representam um perigo. Mas convém fazer a distinção entre o direito de exprimir as ideias desagradáveis e o comportamento real das pessoas. Tudo o que pode ser expresso não deve necessariamente ser dito, especialmente em matéria de opiniões religiosas. Isso aplica-se também às relações humanas no quotidiano, incluindo ao seio do casal.

* Professor. Membro da Comissão para o Diálogo intercultural do governo, Bélgica. Notas:

1. Referência ao assunto Employment Div. Dept. of Human Resources of Oregon v/Smith, em que o Supremo Tribunal dos Estados Unidos, numa sentença pronunciada em 1990, afirmou a constitucionalidade da interdição feita aos Ameríndios de comsumir, para fins religiosos, uma droga chamada peyote. O julgamento provocou protestos da imensa maioria das denominações religiosas, presentes nos Estados Unidos. Ludovic HENNEBEL, “Tea-Party em Washington: O uso de drogas para fins religiosos, perante o Supremo Tribunal dos Estados Unidos”. Site Direitos Fundamentais, Arquivos nº 5, Janeiro/Dezembro de 2005, Nota de actualidade. www.droitsfondamentaux.org/article.php3?id_article=108. 2. Citação do Le Monde, edição de 12 de Março de 2005. Artigo de Xavier Ternisien, “La Cène détournée de Marithé et François Girbaud est interdite d’affichage”.

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Liberdade Religiosa ou Fundamentalismo Religioso? Bert B. Beach *

No título do tema que me foi pedido que apresentasse, a palavra “ou” deixa claramente aparecer que os conceitos de liberdade religiosa e de fundamentalismo religioso são antagónicos e até mesmo que se excluem mutuamente. Contudo, originalmente, o adjectivo “fundamental” tem uma conotação positiva e nobre. Numa situação, uma política, ou mesmo uma religião, quando se fala do que é fundamental – o essencial – faz-se referência à sua natureza intrínseca ou ethos, o que caracteriza um conceito ou uma opinião e lhe dá o sentido, sem o que não existe fundamento sólido sobre o qual estabelecer e construir o que quer que seja, incluindo a liberdade. Porém, desde há alguns anos o sentido da palavra “fundamentalismo” desviou-se de uma forma inquietante, passando da ideia de criatividade à de algo ideologicamente altamente limitativo – para não dizer, paralisante. E quando se trata de religião, o espartilho intelectual fundamentalista torna-se ainda mais apertado! Este termo foi usado pela primeira vez nos Estados Unidos nos anos 1920. Nessa época referia-se a um movimento tradicionalista que

se opunha à “religião liberal”, e, em particular à “crítica radical” onde o Evangelho tinha uma forte vocação socio-política, e evolucionista.

Desde então, é evidente que a palavra fundamentalismo evoluiu consideravelmente. Hoje, o fundamentalismo insinuou-se em todas as grandes religiões – o exemplo mais evidente era o Islão – e tornou-se num fenómeno perigoso à escala mundial. Trata-se, essencialmente, de uma reacção, às vezes violenta, de rejeição de tudo quanto é “moderno”, (incluindo a democracia) e de uma recusa à secularização. A maioria das sociedades actuais é geralmente favorável a mudança e ao pluralismo. O fundamentalista, de uma forma geral, opõe-se à mudança, e mais particularmente, ao pluralismo das representações do mundo. Ele quer que apenas uma só e única visão – a sua – seja válida e, em consequência disso, ter o domínio do mundo. A sua concepção do mundo ou da religião, opõe-se, por vezes com raiva ou violência, às mudanças radicais que já perturbaram algumas sociedades ou ameaçaram fazê-lo. O fundamentalismo, como um sistema ideológico de pensamento orienta45


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engenhos explosivos matam cidadãos tranquilos em nome de Alá. Apesar de todas as diferenças entre todas as correntes, podem ser observados certos pontos comuns inerentes ao tecido fundamentalista: a procura da pureza e da perfeição, de uma certeza, de uma tradição e de uma autenticidade absolutas, e a predilecção por uma visão do radical e global que controla – ou pelo menos influencia – todos os aspectos de vida. A importância dada ao passado, e à tradição, testemunham, muitas vezes, uma tentativa de “restaurar” alguma coisa que historicamente nunca existiu. Este sonho impossível caracteriza muitas expressões de fundamentalismo. Não é bom idealizar o passado, como se a vida num passado distante fosse maravilhosa, como se todo o mundo tivesse boa saúde, fosse bem alimentado, sóbrio, moralmente irrepreensível, feliz, e em paz. O paradoxo do mundo moderno é que enquanto padrões científicos estão a ficar cada vez mais precisos e que se exige sempre mais exactidão nos discursos, os padrões morais torna-se mais vagos, cada vez mais imprecisos e dependem do contexto. Os fundamentalistas têm portanto, alguma razão para se insurgirem contra certos males das nossas sociedades como a queda da moralidade tradicional e as suas consequências: o aumento do laxismo e da exploração económica e cultural dos países do terceiro mundo e de certas categorias da sociedade ocidental. Uma das razões chave que explica o crescimento do fundamentalismo

dor, exprime o seu ressentimento contra a secularização de sociedade e os seus corolários: moral permissiva, mundialização e materialismo consumistas e amorais. O Século da Luzes, as revoluções americana, francesa e russa assim como a revolução científica dos dois últimos séculos, tiveram como consequências directas – ou mais frequentemente, indirectas – o haver menos interesse pela moral e por assuntos fundamentais como o pecado, e salvação e vida após a morte, em particular nas sociedades industriais do Ocidente. Dedicam-se cada vez mais a usar as oportunidades materiais concretas, para retirar o máximo. A tendência, pelo menos teoricamente, é para a liberdade e a tolerância – “viver e deixar viver” – o que favorece uma certa flexibilidade nos domínios cultural e socio-políticos. Penso que o fundamentalismo religioso não repousa sobre uma questão doutrinária, mas mais sobre uma forma de julgar o mundo actual e insurge-se contra as sociedades permissivas. Esta reprovação transforma-se frequentemente numa oposição veemente, inflexível, impiedosa para com qualquer coisa nova, e pisa todos os direitos humanos dos defensores de opiniões diferentes e progressistas. O fundamentalismo exprime-se, não só nos media, mas também no sangue vertido, cada dia desde fanáticos cegos que em nome de Jesus, fazem explodir bombas em clínicas onde se praticam abortos até aos integristas doutrinários cujos 46


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contemporâneo é a marginalização. Isto acontece quando um grupo – por razões raciais, étnicas, linguistas, religiosas ou económicas – se sente excluído na sociedade, impedido de participar no processo decisório. É este, cada vez mais, actualmente, o caso dos pobres. A rapidez dos transportes e das comunicações (que se tornaram praticamente instantâneas) ao nível mundial faz conviver estreitamente a miséria e a desigualdade social de que sofrem grupos inteiros das populações e quase imediata colocou, por um lado, a pobreza, a miséria, e as estruturas sociais desiguais para grupos inteiros de pessoas e, por outro lado, a riqueza e os privilégios. O fundamentalismo pode, portanto, constituir uma forma de protesto atraente, para aqueles que se sentem desesperadamente marginalizados e explorados. O número daqueles que se sente “posto à margem” não cessa de crescer. No seio dos jovens Estados, que ganharam a independência e o título de nação, muitos cidadãos têm sede de consideração, uma consideração, que, crêem eles, deveria acompanhar a identidade nacional. Eles sentem-se humilhados pela hegemonia económica, cultural, e ocasionalmente militar exercida pelos Estados mais poderosos. O ressentimento dos marginalizados é, provavelmente o terreno mais fértil do fundamentalismo, e tende a relegar liberdade religiosa para segundo plano. Muitos fundamentalistas religiosos, vêem, assim parece, nas nações laicisadas que estão a favor

dos Direitos do Homem, um sinal, ao mesmo tempo, de perigo e de desafio. Para eles, um tal país não consegue estabelecer nos seus cidadãos a justiça social, a estabilidade familiar, a sobriedade, o respeito e a honra. O resultado – ou pelo menos a realidade que as nações laicas apresentam – traduz-se muitas vezes por taxas de criminalidade e de divórcio crescentes, a droga, a pornografia, a homossexualidade e a corrupção de governo nacional secular aparece grandemente ter aumentado o crime e taxas de divórcio, cultura de droga, pornografia, homossexualidade, e corrupção excessiva nos negócios e na vida política. Com isto em mente, os fundamentalistas são levados a considerar a liberdade religiosa e a democracia como pouco importantes, até mesmo, um luxo supérfluo. Embora pudéssemos estar parcialmente de acordo com a crítica dos fundamentalistas, penso que o seu “remédio” é pior do que o “mal”! Como já mencionei acima, o pensamento e a solução do fundamentalismo alimenta-se de elementos da mitologia e de erros históricos. Enquanto os seus adeptos são em geral hostis à mudança, são, contudo, favoráveis a uma mudança bem específica: o regresso à “idade de ouro” da tradição e da perfeição. Este regresso às origens pode variar bastante: os muçulmanos fundamentalistas querem voltar aproximadamente mil anos atrás; para os cristãos isso vai do século XIX até àquilo que se chama o cristianismo unido da Idade Média, ao tempo dos Pais da Igreja, ou ainda 47


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agir ou de reagir de forma diferente, até mesmo de formas diametralmente opostas. Podem, muito bem, odiar outros fundamentalistas e combatêlos. Isso faz parte do quadro. Mesmo se partilham com um grande número de crentes um “alto conceito” das Santas Escrituras, parece que os fundamentalistas religiosos tendem a fazer uma escolha selectiva dos textos que tiram da Torah, da Bíblia, ou do Corão. Usam frequentemente, para justificar a sua doutrina, textos fora do seu contexto. Muitos fundamentalistas devotos, usam passagens sem as questionar e aplicamnas de uma forma simplista, a situações actuais, sem qualquer hesitação. Alguns chegam mesmo a racionalizar interpretações extremistas das suas Escrituras para legitimar a sua luta para erradicar opiniões divergentes, caucionar o uso da violência e do terror, e prometer a “a glória aos mártires dos atentados suicidas” que matam pessoas inocentes. Na perspectiva cristã, Deus inspira os Seus profetas, não para encorajar a intolerância e o dogmatismo rígido, implacável que conduz a perseguição, mas para dar inspiração espiritual, esperança, o amor, e uma linha de conduta razoável. A verdade que nos vem de Deus através dos mensageiros escolhidos por Ele conduz-nos à salvação, e, para retomar as palavras de Jesus, nos “tornar livres”. A humanidade está envolvida numa “guerra cósmica” onde a salvação e vida eterna estão em jogo. Mas, não se trata de um combate físico – nem conquista, nem jihad, nem cruzada,

ao I século; alguns judeus fundamentalistas sonham com o período de teocracia e do antigo templo. Os fundamentalistas procuram, cada um à sua maneira, fazer vingar a tradição, quer seja no regresso ao passado, à teologia dos pioneiros, ao heroísmo lendário dos cavaleiros teutónicos, à força moral dos Voortrekkers na África do Sul, ou à firmeza e a rectidão dos Puritanos na América do Norte. São numerosos os que não desejam outra coisa senão uma mudança radical: colocar as suas opiniões religiosas no centro de vida familiar, no governo, nos tribunais, nos media, nas escolas e até mesmo no exército – numa palavra, em todos lugares. Os fundamentalistas religiosos de hoje têm, ao mesmo tempo, uma percepção retrógrada do mundo e da mentalidade actual. A sua tendência para a rigidez exige que todos sigam os princípios religiosos como um só homem, e infeliz daquele que se afaste do caminho correcto! O fundamentalismo religioso parece progredir (o verbo “regredir” seria, neste caso, talvez mais apropriado) inelutavelmente para o extremismo religioso, o não respeito pelos Direitos do Homem e da liberdade religiosa, e por último, para uma aliança totalitária entre o Estado e a religião. O fundamentalismo não está isento de complexidades e de paradoxos. Chega a evoluir em diferentes direcções e mesmo a contradizer-se. A actualidade mostra-nos, cada dia, que os fundamentalistas são capazes de 48


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fundamentalismo demonstra beatice, fanatismo, rigidez e sectarismo, e isto, numa época em que o mundo, mais do que nunca, tem necessidade de mediadores e fomentadores da paz. O fundamentalismo tem um gosto pronunciado pelo controlo e justifica a sua recusa em dialogar e de aprender por causa da sua desconfiança para com as opiniões diferentes e as outras religiões. Devo rejeitar o fundamentalismo religioso porque ele encoraja o “ódio religioso” e reduz a nada a liberdade religiosa. Tentando preservar a verdade acerca de Deus, acaba por dar uma imagem terrivelmente deformada do carácter de Deus. O fundamentalismo religioso está em contradição com um Deus de amor e de liberdade.

nem envenenamento das mentes pelo ódio, nem guerra de extermínio entre crentes e infiéis – mas um combate espiritual entre a verdade e o erro. Não há nenhum lugar para recorrer a uma intransigência violenta, obstinada e impiedosa, nem a punições severas. Todos estes conflitos entre os homens não passam de falsos debates, que nos distraem da luta espiritual em favor dos corações e das mentes. Em conclusão, a mentalidade fundamentalista é inaceitável, porque é incompatível com a dignidade humana: o ser humano é moralmente livre e tem o direito de se envolver nas suas crenças e convicções. Segundo penso, à resistência à liberdade, à razão, à educação e à criatividade está fundamentada no fundamentalismo. Onde quer que ele se encontre, o

*Antigo Secretário Geral emérito da IRLA e um dos actuais vice-presidentes

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A Resposta de Espanha à Intolerância Religiosa: da intolerância institucional à tolerância institucional Rosa María Martínez de Codes *

A história de Espanha no decurso dos últimos cinquenta anos constitui uma excelente base de análise e de reflexão sobre a transição entre a intolerância institucional e uma tolerância institucional em matéria de religião. Nesta apresentação gostaria de introduzir vários elementos de natureza histórica, política e jurídica que explicam a importância do binómio de intolerância/tolerância religiosa no processo de consolidação do Estado democrático em Espanha1. Ouvimos em numerosas ocasiões dizer que sem memória não há futuro. O presente não tem nenhum sentido se não somos capazes de tirar lições do nosso passado. Também me parece útil evocar a voz e palavras daqueles que tornaram possível a transição religiosa em Espanha. Hoje em dia, a liberdade religiosa é um direito garantido pela lei nas democracias. Disso deriva uma interacção entre a Igreja e o Estado – a religião e a sociedade – e está na base da liberdade e da igualdade perante a lei. Este processo começou há duzentos a cinquenta anos quando Thomas Jefferson, um dos pais da Declaração da Independência dos Estados Unidos

introduziu novas ideias na Lei para estabelecer as liberdades religiosas na Virgínia: “Que a Assembleia Geral promulgue que nenhum homem será compelido a frequentar ou apoiar um culto ligado ao ministério religioso; que, ninguém será obrigado, aprisionado, atacado, ou ferido fisicamente ou nos seus bens, nem sofrerá de nenhuma outra maneira por causa das suas opiniões ou convicções religiosas. Pelo contrário todos serão livres de professar, e de defender as suas opiniões religiosas sem que isso retire, reduza ou afecte os seus direitos civis”.2

Muito cedo na história do pensamento e das liberdades, este homem soube como superar a intolerância religiosa para abrir o caminho para a liberdade: todos os homens e mulheres têm direitos iguais e podem exercê-los livremente. Esta é a direcção que as sociedades ocidentais seguiram desde então.

Porém, alguns países, principalmente a Espanha, levaram muito tempo para descobrir a liberdade religiosa. Quando se estuda a história europeia deveremos lembrar-nos de que as principais confissões da fé cristãs eram no passado religiões do 50


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Estado e desfrutaram de uma posição dominante em relação às minorias que eram, na melhor das hipóteses, toleradas. Está claro que foram essas comunidades minoritárias durante muito tempo submetidas ao domínio das Igrejas do Estado cristãs, que foram as primeiras a reivindicar a igualdade. As Igrejas grandes cujo destino se confundia com o das nações, resistiriam à mudança até que tomaram consciência que se tinha virado uma nova página da história. As evoluções jurídicas reagem frequentemente tarde às mutações sociológicas. Espanha foi sempre um Estado confessional. É necessário sublinhar que ela foi o primeiro Estado moderno na Europa, cerca do fim do 15º século. Como todos os países europeus, ela desenvolveu-se num contexto em que as unidades política e religiosa eram complementares. A conquista de Granada em 1492 e a reconquista do país pelos “Reis Católicos” – até aí totalmente dominado pelo Islão – deram à Espanha Cristã uma dimensão política que lhe tinha faltado até então. A unidade religiosa implicou a expulsão para fora do país dos Judeus e dos Mouros não convertidos ao catolicismo. No caso de Espanha o elemento novo não era a banimento dos dissidentes – isso já se fazia no conjunto da Igreja Católica para com o protestante – mas, acima de tudo, a institucionalização profunda da fé católica. Ao longo da Contra-Reforma, conduzida pelos monarcas espanhóis,

dos séculos XVI a XVIII, o facto de ser católico (a “catolicidade”) foi defendida como a verdadeira razão de ser do Estado, até que isto se tornou uma característica fundamental da consciência nacional.3 No século XIX e na primeira metade do século XX, o catolicismo era – explícita ou implicitamente – mencionado em todas as Constituições adoptadas, com excepção da Constituição Republicana de 1931 que permaneceram em vigor até o fim da guerra civil espanhola.4 Os dirigentes políticos da República fundada em 1931, introduziram duas alterações principais no sistema jurídico espanhol: a separação da Igreja e do Estado e o reconhecimento da liberdade de consciência.5 Porém, convém precisar que esta separação, defendida pelos representantes parlamentares nas Cortes espanholas, se identificou com a laicidade definida na lei francesa de 1905. Esta estipula que a República não reconhece nem subvenciona qualquer grupo religioso6, noutros termos que o Estado não deseja manter qualquer tipo de relação com nenhum culto e declara que os acontecimentos religiosos não têm nenhum carácter público. As convicções religiosas limitam-se, portanto, a questões de consciência individual de ordem puramente privada. O Presidente da República espanhola, Manuel Azaña, definiu isto claramente no discurso que pronunciou perante o Congresso da Acção Republicana: 51


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Milhões de espanhóis consideravam a Igreja Católica como a garantia do patriotismo autêntico e de vida política da época, o que servia como um freio à crítica de todos aqueles que a tinham, pelo menos em parte, como responsável dos fracassos políticos, económicos e sociais. Desde o início, em 1936, a Guerra civil, tomou um carácter profundamente religioso na consciência da maioria dos espanhóis. A maior parte dentre eles associavam estreitamente a religião e o patriotismo. Esta fusão, particularmente entre os que se alistaram no Movimento Nacional de General Franco, levando a hierarquia católica a defender a causa da Igreja. A “Carta Colectiva” difundida pelo episcopado espanhol em 1937 declarava que esta guerra fratricida era uma “cruzada” contra os infiéis e outros inimigos da pátria e civilização ocidental como os comunistas, os socialistas, os anarquistas e os liberais – uma ideia que, de resto, ainda circula hoje. Ela ditou a conduta da Igreja Católica unindo-a definitivamente ao regime político que iria ser instaurado depois da guerra.8 Entre os princípios que definiram o regime de Franco, é necessário citar a natureza confessional do Estado, o estabelecimento de uma legislação elaborada de comum acordo com o Vaticano e a submissão das outras denominações religiosas – não católicas – a um regime de tolerância com restrições consideráveis.9 Como consequência da confissão de fé regime franquista, a Igreja católica beneficiou de um tratamento

“O problema religioso é unicamente um problema de consciência individual e não um problema político, e aqui nós estamos a falar como homens políticos e legisladores, e não como crentes. Por conseguinte, o que normalmente é qualificado como um problema religioso equivale a um problema governamental, isto é, a atitude do Estado face a um certo número de cidadãos que usam longas túnicas, e de relações de Estado a Estado com um poder estrangeiro que por acaso calha ser católico romano”.7 As confissões religiosas foram portanto sujeitas a uma lei especial e muito restritiva que as impediu de adquirir e de conservar uma propriedade, com excepção dos bens para uso privado, proibindo-as de trabalhar em indústria, no comércio ou no ensino e limitando as orações em público. Uma vez mais na história de Espanha o mito de clericalismo contra o anti-clericalismo reapareceu: duas concepções totalmente diferentes da Espanha, e absolutamente incompatíveis. Ambas definindo-se pelas suas relações que a política deveria manter com religião e com as suas instituições. Metade da população espanhola pensou que a influência excessiva dos poderes clericais impedia o seu país de progredir à velocidade das outras nações europeias. A outra metade, pelo contrário, acreditou que Catolicismo – e portanto a Igreja – constituía o seu património nacional e que a Espanha deixaria de ser a Espanha se deixasse de ser católica. 52


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relativamente às confissões não católicas, como o pastor protestante, Juan Luis Rodrigo Marín sublinhou: “O Direito Comum do povo espanhol que data de cerca de 1945, garantia que ninguém pudesse ser inquietado como resultado das suas convicções religiosas. Este princípio prestava-se a confusão, na medida em que podia ser interpretado de forma diferente segundo as pessoas. O conceito “em privado” era muito elástico: tanto podia ser tomado em sentido lato, como em sentido restrito. Era assim, que em alguns lugares não era permitido acompanhar um cortejo fúnebre, de acordo com a nossa cultura e os costumes tradicionais (…) Felizmente nem todos eram tão extremistas: algumas autoridades locais demonstravam mais tolerância e indulgência, mas eram uma minoria (…) Um regulamento policial não autorizava senão um número máximo de 20 pessoas a reunirem-se no mesmo local. Para além disso, era necessário requerer uma autorização oficial que, bem entendido, não era concedida a uma religião dissidente nem a um dos seus membros.”12 Quando é que a transição religiosa começou realmente em Espanha? Duas datas são geralmente apontadas como ligadas a dois acontecimentos importantes: a Constituição de 1978 e a Lei Orgânica sobre a Liberdade Religiosa de 1980. Sem qualquer dúvida, que estes textos legais foram decisivos na configuração do Estado democrático e a erradicação da intolerância religiosa em Espanha. Não obstante, foram as minorias religiosas que travaram a batalha

preferencial, como o demonstra não só a propagação da sua doutrina e o reforço da instrução religiosa que ela dispensava nas escolas, mas também o conjunto de direitos e poderes que o Estado lhe concedeu através de regulamentações sobre as quais ambos se puseram de acordo. Gostaria de falar particularmente da Concordata assinada com o Vaticano em 1953 pela qual as duas partes concordavam em prerrogativas mútuas. A Igreja católica reconhecia ao Chefe do Estado a direito de nomear os bispos, e por seu lado ela exercia a sua autoridade sobre o casamento, a educação e censura, ao mesmo tempo que assumindo controle do clero e do culto em geral. A posição jurídica privilegiada da Igreja Católica descrita acima apresenta um contraste impressionante com a dos outros cultos em Espanha. Com efeito, os protestantes, os evangélicos e os judeus permaneceram subordinados a um estatuto conforme o artigo 6 da “Lei comum do povo espanhol” que permitia o exercício do culto privado, mas interditava as manifestações exteriores e o proselitismo religioso: “Ninguém pode ser importunado por causa das suas convicções religiosas ou do exercício da sua fé em privado. Em contrapartida, apenas as cerimónias ou manifestações públicas da religião católica serão permitidas.”11 As autoridades ministeriais era livres de interpretar os termos”o exercício privado da oração” a seu prazer, o que não deixa de criar uma lista infinita de conflitos e sanções económicas 53


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a favor da liberdade religiosa. Levantaram-se contra a discriminação de que os membros das suas Igrejas eram objecto desde a década de 1950, e denunciaram-na junto das embaixadas estrangeiras. A pressão internacional fez eco destas reclamações e denunciou a situação dos protestantes, dos evangélicos e dos judeus em Espanha, face a um princípio de tolerância totalmente insatisfatório. Para estas minorias era inconcebível reduzir a prática da sua religião apenas ao culto privado. A pressão exercida simultaneamente no país e no estrangeiro, assim como uma nova abertura do regime franquista – desejoso de obter o apoio da comunidade internacional e a ajuda económica dos E.U.A. e da Grã Bretanha – abriram a via para o projecto do Estatuto para os não católicos e as suas associações em Espanha.13 O homem que, naquele momento, se entregou à missão de defender os direitos cívicos das confissões minoritárias e que criou o debate neste domínio foi Fernando María Castiella o Ministro dos Negócios Estrangeiros. A 5 de Janeiro de 1965, o Secretário Geral da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa, Dr. Jean Nussbaum, prestou-lhe homenagem pelo seu vigor e tenacidade de que deu prova ao longo da redacção e do voto no Parlamento daquela que se chama a primeira lei sobre a liberdade religiosa.14 54

Sua Excelência Senhor Castiella Ministro dos Negócios Estrangeiros Ministério dos Negócios Estrangeiros Madrid

Paris, 5 de Janeiro de 1965

Caro Senhor Ministro Acabo de regressar de uma permanência na Suíça onde encontrei um certo número de personalidades e desejo, sem demora, após o meu regresso, dizer-lhe quanto fiquei agradavelmente impressionado pelo discurso de Natal pronunciado pela General Franco, Chefe de Estado Espanhol. Vejo, por esse, discurso que os vossos esforços foram coroados de sucesso e felicito-vos de todo o meu coração. V. Exas. fizeram uma obra magnífica e está quase a conseguir o seu objectivo. Nas minhas orações ao Deus dos Céus peço que Ele abençoe o vosso trabalho e que vos ajude a acabá-lo completamente. O discurso do General causou uma profunda impressão na Suiça e em França. Estou convencido de que o estatuto que prepararam terá uma influência considerável, não só no vosso país, mas na Europa e nos países de além-mar. Em todo o lado em que se dá conta de que há em Espanha espíritos muito abertos que compreenderam que é pela paz religiosa que um povo pode encontrar o ardor de que necessita para realizar a tarefa que se lhe impõe e que é particularmente dura nos tempos que vivemos.


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O Parlamento de Madrid, Espanha. Foto J. M. Weindel

escreveu ao General Franco15 que o seu “discurso de Ano Novo à Nação” lhe tinha causado boa impressão e felicitava-o pelo trabalho admirável empreendido pelo seu Ministro na preparação de um estatuto para os não católicos: Ex. Sr. General Franco Chefe do Estado Espanhol Madrid Paris, 5 de Janeiro de 1965 Sr. General, No decurso da viagem que acabo de fazer à Suiça para me encontrar com certo número de personalidades que se interessam pela liberdade

Aproveito esta ocasião para lhe apresentar, caro Senhor Ministro, os meus melhores votos para o ano que acaba de entrar e para lhe dizer com que interesse seguirei todos os esforços feitos para o cumprimento definitivo da tarefa que empreenderam. Junto a esta uma cópia da carta que enviei ao General Franco. Nada mais me resta para além de lhe exprimir todo o meu reconhecimento para obra admirável que levou a bom termo. Queira aceitar, caro Senhor Ministro, a expressão respeitosa dos meus bem devotados sentimentos. Dr. J. Nussbaum Depois desta carta, o Dr. Nussbaum 55


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religiosa, li, nos jornais, o discurso de Natal que vª Exª dirigiu ao povo espanhol. Esse discurso causou uma impressão profunda nos meios suíços e particularmente genebrinos, assim como nos meios franceses. Permita-me dizer-lhe da alegria que sinto ao lê-lo porque há mais de trinta anos sou responsável pelas relações exteriores da nossa Associação com os diversos países da Europa. Cada vez que estive no seu país recebi do seu Ministro dos Negócios Estrangeiros, Sua Exª M. Castiella, o mais cordial acolhimento. Tive, com ele e com o Director dos Assuntos Europeus do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Dr. M. Olivié, conversações muito edificantes que sempre me mostraram quão grande era o desejo de V. Exª. de ver reinar em Espanha, uma completa paz religiosa. Muito tenho admirado a tarefa realizada pelo seu Ministro dos Negócios Estrangeiros que, laboriosamente, elaborou um estatuto para os não católicos que, tanto quanto posso saber, parece dar plena satisfação a todos aqueles que são apaixonados pela liberdade religiosa. No decurso de uma das minhas viagens, tive também um encontro com seu Ministro da Informação, o Dr, Fraga Iribarne, em presença do embaixador da Suíça, e esse encontro de uma grande elevação de pensamento, como os que tive com o seu Ministro dos Negócios Estrangeiros, Dr. Castiella, assim como com o Dr. Oliviér, me mostraram, claramente,

que souberam escolher e procurar, no país de V. Exª., homens animados de uma fé sincera e de um espírito cheio de sabedoria. O seu discurso, sr. General, impressionou-me profundamente e é por isso que me permito dizer que seguirei a acção de V. Exª. com o maior interesse e que faço votos para consigam realizar a tarefa a que V. Exª se propôs. Peço a Deus que abençoe o povo espanhol, o seu iminente chefe e os seus ministros, para que o país de V. Exª., encontre, na paz religiosa, as forças de que precisa para cumprir o destino para que foi chamado. Peço-lhe sr. General, que aceite a expressão respeitosa dos meus sentimentos devotados e reconhecidos, Dr. J. Nussbaum Pode dizer-se que a transição religiosa em Espanha começou de facto no momento em que a liberdade religiosa começou a ser reconhecida. As novas abordagens propostas pelo Concílio Vaticano II estimularam consideravelmente, a evolução da liberdade religiosa sob o regime franquista. A Declaração “Dignitatis Humanæ” sobre a Liberdade Religiosa, aprovada pelo Concílio Vaticano II a 7 de Dezembro de 1965 constituiu, em si mesmo, um acontecimento com consequências de longo alcance, especialmente para os países, como era o caso de Espanha, que aplicavam aos não católicos um sistema de tolerância extremamente restritivo. Os protestantes e os judeus espanhóis acolheram esta Declaração com 56


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uma imensa esperança, persuadidos de que o seu começo progressista levaria à adopção de novos critérios para colocar em vigor uma maior tolerância religiosa que reconheceria os direitos fundamentais às suas comunidades religiosas.16 Com efeito, a Declaração abordou o assunto de liberdade religiosa de um ponto de vista jurídico, como indica o subtítulo: “Do Direito da pessoa e das comunidades à liberdade social e civil em matéria religiosa”: o conceito de liberdade religiosa é colocado em relação com a ideia fundamental de autonomia civil e jurídica. Segundo o Concílio Vaticano II, a liberdade religiosa inscreve-se perfeitamente no contexto. Não é definida em relação a Deus mas mais em relação a uma instituição civil, o Estado. Eis porque não deve ser confundida com autonomia moral. A chave para interpretação deste texto situa-se na afirmação de que liberdade religiosa constitui um direito real dos indivíduos, fundado sobre a própria dignidade da pessoa humana. Este direito deve ser reconhecido no seio da sociedade, como um Direito Civil. Mais precisamente, o direito à liberdade religiosa representa uma esfera de independência indispensável para fazer face aos poderes coercivos do Estado para que: “… em assuntos religiosos ninguém seja forçado a agir contra a sua consciência, nem impedido de agir, dentro dos justos limites, segundo a sua consciência, tanto em privado, como público, só ou associado com outros”.17

O elemento prometedor para as denominações cristãs não católicas era que a Declaração não se preocupava apenas com a liberdade individual, mas também com o direito de formar associações religiosas em Espanha, o direito à liberdade de propaganda e direitos religiosos familiares. Por outro lado, ela facilitou uma aproximação satisfatória para as manifestações ecuménicas pelo Conselho Mundial de Igrejas. Resumindo, a luta pela liberdade religiosa travada pelas minorias religiosas em Espanha, foi legitimada por esta Declaração, que deu mais peso às suas reivindicações em favor de um reconhecimento da liberdade de consciência nas mesmas condições para todos. Os princípios contidos nesta Declaração tiveram um imenso impacto sobre o Direito espanhol. Os poderes públicos foram obrigados a adaptar a sua legislação de acordo com as directivas da Igreja católica. Para o Governo e o Episcopado espanhol este reajustamento foi complexo e delicado. Tratava-se de transferir para o conjunto da legislação civil a noção de tolerância civil para a da liberdade religiosa, mantendo o Catolicismo como a religião do Estado. Havia uma incompatibilidade total entre a definição de liberdade religiosa apresentada pelo Vaticano II e o facto de confinar o exercício do culto à esfera privada ou de interditar as manifestações e as cerimónias em público. Por conseguinte, o artigo 6-2 da Lei comum do povo espanhol foi emendado para exprimir, claramente, que o 57


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vigor, pode ser considerada como um símbolo de democracia e um exemplo de forma de reconciliar duas concepções de Espanha, do ponto de vista de uma dialéctica intolerância/tolerância, ela encarna a aplicação de um modelo de liberdade religiosa e da ultrapassagem das confrontações entre as posições anticlericais e profundamente confessional. Esta Constituição define um Estado não confessional, mas num contexto que torna esta definição positiva: em virtude do princípio da igualdade e do tratamento igualitário, sejam quais forem as religiões, o Estado já não estabelece distinção entre crentes e não crentes; aos seus olhos, todos são iguais e igualmente livres. O direito à igualdade e o direito à liberdade religiosa, originalmente concebida como direitos individuais para todos os cidadãos, também se aplica às religiões ou às comunidades às quais estes indivíduos pertencem. Isso permite, a essas comunidades, realizarem os seus objectivos, sem a necessidade de pedir uma autorização prévia ou de se inscrever num registo público. Ao mesmo tempo, de acordo com a Constituição, o Estado é obrigado a manter relações de cooperação com as diferentes denominações religiosas presentes na sociedade espanhola, a fim de que o direito à liberdade religiosa seja algo de real e concreto. Isto pode ser alcançado de modos diferentes com as denominações mencionadas no Registro das Organizações Religiosas. Após este mandato constitucional, uma nova lei sobre a Liberdade

Estado tomava a sua cargo a protecção de liberdade religiosa, que garantia através de uma protecção legal efectiva que: “O ensino e prática da religião católica que é a religião do Estado em Espanha, desfrutará de uma protecção oficial. O Estado assumirá a protecção de liberdade religiosa garantindo-a através de uma protecção jurídica efectiva. Esta protecção conduzirá, por sua vez, a uma salvaguarda da moralidade e da ordem pública”. Esta reforma teve como consequência, a promulgação daquilo a que se chama a primeira Lei da Liberdade Religiosa de 28 de Junho de 1967, no espírito da que o Ministro Castiella tinha iniciado anos antes. Os peritos concordam em que esta Lei representou um grande passo em frente na direcção da protecção de liberdade das religiões não católicas e, embora imperfeita, permitiu a estes grupos a sair do anonimato e existirem aos olhos de todos. Eu qualifico a lei de imperfeita porque na prática, o Estado conservava o seu carácter católico e de que, por isso, impunha limites e restrições às associações religiosas não católicas. Até à Constituição de 1978, o Estado espanhol era católico, a Igreja Católica beneficiava de um tratamento privilegiado previsto pela Concordata de 1953, ainda em vigor na época. Nestes últimos trinta anos, a Espanha evoluiu de um sistema religioso católico para uma democracia pluralista forjada pela Constituição de 1978. Se a Constituição, actualmente em 58


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Esta é justamente a peculiaridade e a novidade da situação em Espanha.

Religiosa foi votada a 5 de Julho de 1980. Em contraste com a lei de 1967, esta nova lei é a primeira que foi votada, por unanimidade, por um Congresso democraticamente eleito, e com a participação de todos os grupos religiosos inscritos no Ministério de Justiça. O Secretário Executivo da Comissão Espanhola para Defesa dos Cristãos Evangélica, José Cardona, afirmou: “Eis uma Lei sobre a Liberdade Religiosa única no seus género, em harmonia com um país profundamente arraigado na democracia ocidental. O Estado deverá aplicar o direito à liberdade religiosa sem favorecer injustamente um partido ou um grupo religioso. Deverá antes, respeitar e encorajar a paz civil e confessional em Espanha, utilizando os seus direitos, de forma medida e equilibrada.”22 Na aplicação da Lei Orgânica sobre a Liberdade Religiosa, o Estado tem igualmente a possibilidade de manter relações oficiais de cooperação com as comunidades religiosas não católicas, celebrando Tratados ou Acordos de Cooperação, com a condição dessas denominações religiosas, devidamente inscritas no Registro das Organizações Religiosas, e que possam demonstrar uma notória implantação em Espanha. Porém, estes acordos não foram assinados com as Igrejas, confissões e comunidades religiosas mas mais com as suas federações associadas em volta de uma convicção na qual elas reconheceram estar profundamente enraizadas.

Quatro cultos concluíram, até agora, acordos de cooperação: a Igreja católica – que tem vários acordos em vigor com o Estado espanhol –; a Federação de Entidades Religiosas Evangélicas de Espanha; a Federação das Comunidades Israelitas de Espanha; e a Comissão Islâmica de Espanha. O resultado deste esforço de integração por parte dos protestantes, dos judeus e dos muçulmanos permitiu ao Estado estender os benefícios dos Acordos de Cooperação a numerosas Igrejas e comunidades. Estas últimas, se tivessem agido sós, teriam dificuldade em demonstrar a notoriedade da sua implantação em Espanha, e, por conseguinte, a assinar, sem dificuldade, os acordos conseguidos pelos seus representantes.

De facto o Acordo é condicionado pela existência da Federação. O Estado conclui um acordo com uma Federação de Igrejas ou Comunidades que partilham uma mesma crença – e não com cada uma dessas igrejas ou comunidades. Em consequência, se uma Igreja ou uma comunidade já não é membro de uma comunidade – por escolha ou após exclusão – ela é automaticamente excluída do Acordo. Isto dá às Federações uma imensa autoridade e uma grande liberdade de acção para fazer evoluir os Acordos, na medida em que elas representam uma passagem obrigatória pelos grupos religiosos que desejam aproveitar as vantagens que lhes podem conceder.

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as partes e não se atingiu o melhor consenso. Em Espanha, as partes chegaram àquilo que, até ao presente, conduziu à aplicação de uma legislação específica que permite o exercício do direito à liberdade religiosa real e muito eficaz para as organizações que nela participam. Porém, seria judicioso considerar este sistema com um olhar crítico para mostrar as suas fraquezas. Ao nível do Estado, este sistema é institucionalizado. Uma vez que o Acordo de Cooperação foi assinado, é difícil denunciá-lo e retirar às Igrejas ou às comunidades os direitos adquiridos, mesmo que houvesse boas razões para o fazer. Por outro lado o sistema poderia pôr em perigo o princípio da igualdade entre grupos religiosos, uma vez que apenas os grupos federados beneficiam dos Acordos. Não obstante, a análise final é positiva. Um rápido olhar para trás, e compreendemos que estes Acordos permitiram virar a página de uma época de intolerância. Os cultos que tinham sofrido perseguição recuperaram a liberdade e a igualdade de que anteriormente estavam privados.

Da mesma maneira, as organizações religiosas que desejem obter um reconhecimento legal e civil – e que decidem portanto registar-se – devem poder provar que têm objectivos religiosos; esta prova pode ser fornecida pelas organizações que estão à testa das igrejas e/ou das federações de que dependem em Espanha. Com respeito aos conteúdos dos Acordos de 1992, o seu conteúdo é análogo. Eles regem aspectos importantes tais como: o estatuto de ministros do culto, a protecção jurídica dos lugares de culto, o ensino da religião protestante, muçulmana ou judaica em centros educativos, a fiscalidade dos activos e das actividades dessas religiões, os serviços religiosos que tenham lugar em edifícios públicos, a conservação e a valorização do património histórico e artístico islâmico ou judaico, etc. Por outro lado, os Acordos servem também para satisfazer as exigências específicas de cada religião em função da sua identidade. Por isto certos assuntos sensíveis, como o reconhecimento dos efeitos civis e jurídicos dos casamentos celebrados religiosamente, o reconhecimento de feriados religiosos e a conformidade com as regras religiosas que presidem à preparação de certos pratos. Gostaria de concluir com uma pergunta: Que nota se poderia atribuir ao sistema espanhol? Poderá ser considerado como um modelo de referência óptimo ou, pelo contrário, apresenta grandes dificuldades? Obviamente, que todo sistema de Acordos é fruto de negociação entre 60


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* Professora da Universidade Complutensa de Madrid, Espanha Notas: 1. N. B. Cooper, Catholicism and the Franco Regime, 1875; J. Delpech, The Oppression of the Protestants in Spain, 1956: G. Helmet, Les Catholiques dans l’Espagne franquiste, 2 vol., 1981. 2. Escrito por Thomas Jefferson em 1779 e adoptada pela Assembleia Geral em 1786. 3. E. Meinecke, La idea de la Razón de Estado en la Edad Moderna, Madrid 1983; La Razón de Estado en España, siglos XVI-XVII (Antología de textos), Madrid, 1988 4. L. Sanchez Agesta, Historia del Constitucionalismo español,Madrid, 1964; J. M. Cuenca Toribio, Relaciones Iglesia-Estado en la España Contemporánea, Madrid, 1989. 5. E- De Meer, La Custión religiosa en las Cortes Constituyentes de la II República española, Pampelune, 1975. 6. J. Robert et J. Duffar, Droits de l’homme et libertés fondamentales, Paris, 1996. 7. M. Azaña, Memorias políticas y de guerra, año 1931, Madrid, 1976 8. Las Confesiones del Cardenal Turancón, Madrid, 1996 9. I. Martinez Martín, El Desarrollo de la Iglesia española y sus relaciones con el Estado, Madrid, 1961; S- Petschen, La Iglesia en la España de Franco, Madrid, 1977; J. Ruperez, Estado confesional y libertad religiosa, Madrid, 1970. 10. I Martinez Martín, Concordato español de 1935 entre España y la Santa Sede, Madrid, 1961. 11. Loi commune du peuple espagnol, artigo 6, 1945. 12. M. García Ruiz, Libertad religiosa en España. Un largo camino, Madrid, 2006, p. 18. 13. A. De Fuenmayor, Archives de la faculté d’histoire, Pampelune, 1974. 14. Fondo Castiella, Archives de la faculté d’histoire, Madrid, 15/1/2626. 15. Fondo Castiella, ob. cit. 15/1/2626. 16. M. García Ruíz, ob. cit., p. 54-59. 17. Declaração do Vaticano sobre a liberdade religiosa Dignitatis Humanæ, nº 2, de 7 de Dezembro de 1965. 18. M. Blanco, La primera ley española de libertad religiosa. Génesis de la ley de 1967. Pampelune, 1999. 19. I. Martínez Martín, Texto del Concordato entre la Santa Sede y España de 27 de agosto de 1953 y Documentos anejos, Madrid, 1961. 20. L. Prieto Sanchis, “Las Relaciones Iglesia-Estado a la luz de la nueva Constitución: problemas fundamentales”, in La Constitución española de 1978; El Echo religioso en la nueva Constitución española, Salamanca, 1979; Iglesia y Estado en España, Madrid, 1980. 21. R. M. Martínez De Codes, “The Contemporary Form of Registering Religious Entities in Spain”, in Brigham Young University Law Review, vol 1998, nº 2. p. 369-385 22. Citado em Inglês por J. M. Monroy, Protestante Digital.com (Espanha 2006)

23. Ver os acordos de cooperação com os cultos no Direito Eclesiástico espanhol, in Spanish Legislation on Religious Affairs, Ministério da Justiça, Madrid, 1998 61


Consciência e liderança religiosa: um assunto controverso Jaime Contreras*

Normalmente as atitudes de intolerância encontram o seu espaço mais propício nas estrututas sociais e políticas de natureza confessional. Trata-se de uma constante histórica, e acontece que, além disso, em tais situações as manifestações de intolerância geram-se na relação de domínio versos subordinação entre a confissão doutrinária maioritária e os restantes credos minoritários. Nessa relação à confissão primária assiste toda a força do Direito Positivo e toda a capacidade dissuasora da chamada violência legítima que os poderes constituídos detêm. Pelo contrário, os outros credos religiosos, desprovidos do apoio e da assistência da Lei, e não reconhecidos pela legalidade vigente, apenas podem esperar a oferta gratuita de uma determinada tolerância, mais ou menos concedida por circunstâncias conjunturais. Pelo contrário, nas sociedades plurais, que se organizam politicamente por regimes de representação política universal, por uma garantia de divisão de poderes, pelo reconhecimento jurídico dos direitos humanos e, finalmente, por um regime de garantias processuais, nessas sociedades pode

acontecer que a dialéctica entre tolerância e intolerância religiosa deixa de ter relevância, pelo menos, nas suas formalidades jurídico-institucionais. Pode acontecer, isso sim, que atitudes intolerantes, se exprimam, evantualmente, com dureza no interior de certas relações sociais e em situações culturais concretos, naqueles em que uma confissão religiosa, se apresente como dominante e maioritária. Das reflexões anteriores segue-se um corolário: a tolerância, como atitude social e cultural, e a liberdade religiosa, como direito, serão mais operativos e funcionais se a estrutura dos conjuntos sociais assegura as garantias institucionais. Por isso parece evidente que numa sociedade dotada de recursos democráticos operativos as expressões tolerantes constituirão as formas ordinárias de relações interconfessionais e a liberdade religiosa, como direito garantido, será prática corrente porque, em tais circunstâncias o fenómeno religioso deixará de ser um problema político, uma vez que o seu espaço ficará reservado ao da consciência particular. É necessário indicar que a conquista do direito da liberdade 62


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João Calvino, reformador francês (1509-1564. Museu Internacional da Reforma em Genebra. Foto churchphoto/Matthias Mueller.

religiosa tem, obviamente, uma história complexa. Uma história que começou quando no seio da sociedade cristã confessional surgiu a questão do que era a consciência humana e se esta teria direitos1. Esta pergunta transcendental tornou-se muito importante porque quem devia,

de certo modo, responder-lhe era o Estado, quer dizer, o poder secular que, já então (séc. XVI-XVIII) se via obrigado a resolver o problema dos direitos da pessoa individual e os seus deveres para com Deus e o próprio Estado. Por isso, este não teve mais remédio senão reconhecer a 63


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evidência de que o universo religioso não era uniforme. Acontece que, perante a variedade de credos que existiam dentro do espaço da jurisdição estatal, não havia outro remédio – para além dos níveis da confrontação – senão arbitrar regras para garantir a coexistência religiosa. Tais regras nasciam de princípios filosóficos em que a tolerância era um denominador comum. E não se tratava de uma tolerância que nascia do comportamento, mais ou menos benevolente, do superior para com o inferior errado ou equivocado, nem tão pouco a tolerância que assentava no princípio pragmático do mal necessário. Não. Agora pensavase em aplicar uma política de tolerância porque a pertença individual a uma ou outra confissão religiosa dependia da consciência pessoal de um sujeito político que cada vez menos era súbdito e, paulatinamente mais cidadão. Estas grandes aventuras ocorreram no Ocidente entre os séculos XVII e XVIII2. Desde então a consciência ocupou o primeiro lugar no cenário da cultura e da política, e isso aconteceu porque apareceu como a razão primeira da dignidade humana e, como tal, atribuíram-se-lhe direitos inalienáveis: o de existir, o primeiro, e o de se manifestar, o segundo. A consciência apareceu, pois, como protagonista no espaço da diferença religiosa. Direito do indivíduo na diversidade interna de um conjunto social. Porque em sociedades confessionais, sociedades religiosamente monolíticas, o indivíduo não tem outro conhecimento antropológico

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senão o que deriva da adesão, mais ou menos pública, ao credo religioso dominante. Tal adesão espera-se que produza, não tanto de forma passiva, mas mais por convicção de que ser crente desse credo se deve a uma dádiva da divindade. Aqui, pois, neste espaço confessional a aceitação de uma doutrina não é um assunto de consciência mas de socialização em crenças e valores3. Em sociedades confessionais não há reconhecimento público nem da consciência, nem do valor inalienável da pessoa; nelas não há, tão pouco, lugar para a diferença. O ódio religioso que hoje se expressa em múltiplos cenários da nossa globalidade, não reconhece nem a consciência, nem a dignidade da pessoa, nem o direito à diferença. E, portanto, a condição principal para combater esse ódio é conseguir o reconhecimento público, sancionado pelo Direito, de que o outro diferente é sujeito de consciência e de direitos. Desta formulação e, como imperativo categórico irreversível, deve-se indicar que qualquer entidade política entenderá que todo o cidadão, como tal, pode ser crente e, por isso mesmo, pode definir uma relação determinada com o seu Deus que é preexistente ao Direito Positivo, por muito particular que tal crença seja. Trata-se pois, de exigir o direito de reivindicar o princípio da consciência e de outorgar prioridade à ordem moral sobre o qual se deve cimentar o ordenamento jurídico. Num tal moralismo humanitário, assente numa concepção optimista do sujeito, reside todo o princípio de tole-


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Não era o eu nem a minha consciência que iam ao encontro de um Deus por definir, mas, ao contrário, era um Deus já definido que procurava a adesão de meu eu predeterminado. E esta enorme diferença não implica, de forma alguma, que se identifique a consciência com a simples subjectividade, porque isso – falsamente – que a consciência não pode errar, e o que é pior, que mesmo neste caso escapa a todo o julgamento objectivo. Tem sido, historicamente, neste ponto, e de facto o é ainda na actualidade, que os protectores dos códigos de doutrina (clérigos e juízes) confiaram mais na bondade autoritária da norma do que no espírito da mesma. E com ele assumiram e assumem a convicção da bondade da sua causa. Juízes, clérigos, inquisidores e alguns tantos líderes que estão na mente de todos, acreditaram no poder justificativo de uma consciência da autoridade que se cria objectiva pelo facto de que dominava a hierarquia, a da pretendida verdade convertida em lei e, por isso, em força. Naturalmente, de tais princípios seguiu-se, e este é o horror moral mais espantoso, uma total ausência de culpa6. Com toda a certeza o ódio religioso e a intolerância nascem e desenvolvem-se no espaço de satisfação de uma consciência e autoritarismo isenta de erro e sem consciência de qualquer culpa. E, por isso, parece evidente que só a consciência individual objectiva, baseada na “imperiosa voz da verdade no interior do sujeito” – como escreveu J. H. Newman – é capaz de reconhecer a dialéctica do

rância porque situa a consciência numa relação dialéctica com a doutrina4. Por esta razão, pode entender-se que uma defesa acrítica de um determinado credo religioso pode soltar o ódio, a intransigência e a perseguição. Historicamente, correspondeu aos juízes e aos condutores religiosos a imposição dos códigos autoritários da doutrina sobre os espaços da consciência. Em tal sentido o duo clérigo-juiz tem sido a fonte da força e da intransigência. O uso da espada, quer dizer, da coacção em assuntos de doutrina, torna impossível que esta seja capaz de definir uma ordem moral, porque, então, o próprio juiz inabilita o exercício da justiça e o próprio clérigo obstaculiza o espírito da doutrina. É em tais posições hierárquicas de força que se constrói um princípio apriorístico perverso: a defesa da honra de Deus supostamente ultrajada. Tal é o argumento que a história repete até à saciedade. Em 1554, Calvino, por exemplo, tratando de se defender das acusações de ter levado à fogueira o médico antitrinitário Miguel Servet, escreveu o seguinte: “O próprio Deus exige que nos esqueçamos de toda a humanidade quando nos é pedido que lutemos pela Sua glória. Dissimulado com o erro e a heresia – continuava Calvino – dá-se a conhecer que se é cúmplice de crime5”. Naturalmente, o crime naquela cidade de Genebra nos meados do século XVI era a dissidência. E era crime porque para Calvino, como para outros inquisidores (juízes) anteriores e posteriores a ele, a consciência do sujeito não podia determinar nenhuma ordem moral, por si mesma. 65


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estrutura ou de uma nova conjuntura, não pode reconhecer a liberdade moral das acções individuais, e sem essa liberdade, não pode existir nenhum papel para a consciência. Esta respeita a autoridade que a reconhece e protege, mas recusa, com autoridade moral mais reforçada, a que lha nega porque no centro mais exacto está o ser humano. E o homem é sempre o princípio e nunca a consequência. Para ele é conveniente recordar que nem as estruturas políticas nem mesmo os sistemas sociais são causa da consciência, mas apenas o efeito da mesma. Não pode, portanto, pretender legitimidade moral alguma toda a liderança que não reconheça a consciência, como tão pouco o pode pretender aqueles sistemas sociais e políticos que organizam as suas estratégias pela força quantitativa de maiorias ou minorias.

Fernão de Magalhães (1480-1521), navegador português ao serviço do rei de Espanha. Tentou conquistar e cristianizar os países que descobriu, como se fazia na época, mas de maneira pacífica. Foto Getty Images.

Se hoje existe uma crise da consciência objectiva é porque existe um subjectivismo muito amplo a respeito da verdade objectiva. Porque a consciência não está liberta da verdade nem da procura da mesma. A chamada “ética da responsabilidade”, que Max Weber definiu como a que assiste ao político, se se apresenta despida de toda a objectividade de consciência, ao serviço do homem sem adjectivos, não é senão a expressão do autoritarismo, a manifestação de uma liderança que instrumentaliza, no seu interesse, o facto religioso.

bem e do mal e, por isso, de manter a capacidade de sentir a culpa, princípio básico do equilíbrio psicológico de todo o ser humano7. Destas considerações, conclui-se pela necessidade, actualmente, de afirmar o princípio objectivo da consciência, essa que, desde os seus direitos inalienáveis, se debate em permanência constante, com a verdade e que o crente situa na divindade e o não crente a assegura no compromisso moral para a descobrir, como Sócrates ensinou. Por ela a autoridade de um líder religioso não se pode entender em si mesma, na satisfação vaidosa do exercício do poder que não deseja reconhecer a responsabilidade individual dos actos. Os totalitarismos ideológicos, sejam de

Nestas condições parece impossível confiar nas intenções do poder religioso que se serve da sua posição de autoridade. Qualquer que seja a 66


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Sabemos bem, que as relações entre os “missionários” e os “indígenas” provocaram, no passado situações de profundas dissimetrias. Que na fronteira de contacto se quebraram muitos princípios de consciência e que a orfandade cultural afectou milhões de pessoas. Que se pretendeu ensinar, na maior parte das vezes, de forma compulsiva sem dar tempo ao conhecimento dos outros; e que o abismo entre o missionário e o indígena não pôde ser ultrapassado pela ética do encontro, porque este foi unidireccional; e embora em muitos casos a vontade de aproximação fosse sincera, quase sempre, atrás da Palavra de Deus vinha a rapina do comerciante e a força dos canhões. É verdade que houve empréstimos, influências de um lado e do outro, mas isso não impede que reconheçamos que a agressividade cultural vinha mais do lado dos missionários9.

confissão de fé, logo que as suas doutrinas não são sebtradas na consciência do homem, devem ser revistas porque não pode haver verdade doutrinária se esta nega a ontologia primeira do indivíduo, a sua consciência. Se a liberdade religiosa defende o princípio, segundo o qual, a relação do Homem com Deus está baseada na objectividade da consciência individual, isso implica que toda a religião reconhecerá a diferença, defendê-laá e procamá-la-á. É por isso que existe em toda a doutrina religiosa importante um espaço de tolerância. É, portanto, indispensável, no momento em que se definem estratégias de luta contra o ódio religioso, que se afirme que todo o condutor religioso, deve assegurar a sua autoridade e a sua influência sobre os pilares da objectividade da consciência individual e sobre o princípio de uma verdade inscrita na própria razão, que rejeita de forma radical a razão de Estado, da ditadura e do emprego da força. Consequentemente, não pode existir, nenhuma cultura de exclusão se se respeita o plano da consciência. É por isso, que o proselitismo empreendido pelos condutores religiosos náo deverá exercer-se contra o princípio da consciência. O famoso “ide evangelizar” do cristianismo não deve esquecer que o objectivo de ensinar não deve excluir a necessidade de aprender. É necessário que o proselitismo respeite a cultura dos povos que ele toque. Nenhum método de evangelizaão seria aceitável se destroi os sistemas de representação e os símbolos das culturas ou religiões que os acolhem8.

E se o relato histórico nos ensina tais coisas, não parece que hoje possamos comprovar que os contactos sejam simétricos e equilibrados. É evidente que não o são. Nos nossos dias, ainda, no espaço inter-religioso, a importância dos factores culturais hé determinante. Porque é evidente que todas formas de proselitismo religioso emanam de universos culturais que não são, nem podem ser, neutros. Não há cultura neutral em si mesma. Por isso, hoje a propaganda religiosa trata de operar a partir de posições culturais, técnicas e humanas, dominantes. E parece evidente que sobre tais posições de autoridade se infiltram, sub-repticiamente doutrinas e credos de natureza religiosa e as verdades 67


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em qualquer caso, garantir o princípio da consciência individual objectiva. Consciência primeira que expressa um domínio pleno de moralidade natural base necessária para, desde a adesão à verdade, conformar um espaço de civilidade pública sem o qual não pode ser possível o exercício da liberdade religiosa. Foi Voltaire quem, no século XVIII, proclamou o reinado dessa civilidade que repousa sobre um Deus cuja essência primeira era a moral da consciência individual objectiva. “Não é aos homens – escreveu no seu Tratado sobre a Tolerância – que me dirijo mas a Ti, Deus de todos os seres, de todos os tempos e de todos os mundos (…) Digna-Te olhar com piedade para os erros inerentes à nossa natureza. Que esses erros são causa das nossas calamidades. Tu não nos deste um coração para odiar nem mãos para nos estrangularmos. Que os que acendem as velas ao meio-dia para Te celebrar toleram os que se contentam com a luz do Teu Sol! Que os que cobrem as suas roupas com um pano branco para dizer que é preciso amar não detestem os que dizem o mesmo debaixo de um manto de lã negra”10.

doutrinárias ficam dissimuladas sob formas culturais destinadas a suscitar uma adesão emotiva e sentimental o que constitui uma forma de esclusão total.A propaganda religiosa representa, portanto, um aspecto suplementar de dominação.Tais situações, conhecidas de todos, são inadmissíveis porque agora, como antes, significam que se impede a objectividade consciência individual de se exprimir. A dissimetria ressurge nas relações, as frustrações colectivas são enormes e o ódio alimenta-se num caldo de cultura em que se misturam o desenraizamento do indivíduo e a arbitrariedade do poder. A intolerância e o menosprezo religioso, em consequência, expressam formas de domínio cultural que, além disso, manifestam uma moral pregada como segura e paternalista. Em resumo, reconheçamos que normalmente, o poder religioso, que está muito perto, do poder político, anatematiza frequentemente a consciência individual objectiva porque a considera inimiga da segurança da comunidade política que o líder diz representar. A História ensina-nos, muito justamente que o recurso dos lideres (políticos ou religiosos) aos argumentos da segurança constituem, desde logo, uma violação inquietante da liberdade e da tolerância. O reiterado apelo à ortodoxia e à segurança não é outra coisa senão um apelo demagógico para uma ordem conformista e dominante em que não cabe a liberdade nem a consciência. A ordem social da maioria não é senão uma falácia para desterrar, como perigosas e sectárias, as minorias. É necessário, 68


Jaime Contreras

Notas: 1. H. Kamen, “Estrategia dse tolerancia y de intolerancia en la Europa Moderna” in Intolerancia e Inquisición, ed. J.A.Escudero, Madrid, 2005, p. 21-32 2. I. Mereu, “Promesse ideologiche e conseguenza instituzionali del condetto de intolleranze nella storia dell’Europa medievale e moderna”, in J:A:Escudero, ob. cit. Madrid 2005, p. 29. 3 .Roger Williams. “The bloody tenant of persecution”, Londres, 1644 in CH. Hill, El mundo trastornado. El ideario popular extremista en la Revolución Inglesa del siglo XVII, Madrid, 1989, p. 315. 4. Joseph Ratzinger, “Conscienza e verita”, in La Conscienza, conferência internacional patrocinada pelo Wethersfield Institude de Nova Iorque, Orrieto, 27-28 de Maio de 1994, sob a responsabilidade de Graciano Borganovo, Cidade do Vaticano, 1996, p. 17-39. 5. J. Calvino, Declaratio ortodoxæ fidei, Genebra, 1554. Citado por J. Leclerc in Historia de la tolerancia en el siglo de la Reforma, T. 1, Alcoy, 1969, p. 380, 381. 6. A. Gorres, “Colpa e sensi de colpa”, in Communio 77, 1984, p. 56-73. Citado por J. Ratzinger, ob. cit. p. 22. 7. Ian Ker. John Henry Newman, A biography, Oxford-Nova Iorque, 1988, p. 254-256. 8. Jacques Robert, “L’éducation à la tolérance comme antidote aux violations religieuses de la libertá de religion et de conviction...”, in Consciência e Liberdade, nº , 2004, p. 138-142. 9. Paolo Broggio, Evangelizzare il mondo. Le missioni della Compagnia di Gesu tra Europa e America (secoli XVI-XVIII), Roma, 2004, 197-224. 10. Valtaire, Essai sur les mœures et l’esprit des nations et sur les principaux faits de l’histoire de Charlemagne à Louis XIII, Garnier, Paris, cap. 22, p. 112. Citado in J. Leclerc, ob. cit. p. 314.

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O Futuro de Liberdade Religiosa e a IRLA Mitchell A. Tyner*

Quando Bert se tornou Secretáriogeral, em 1980, ele teve de tomar tudo a partir da base. Empreendeu, imediatamente, o rejuvenescimento da organização, e um das primeiras tarefas que ele me confiou foi preparar e pôr em andamento um Congresso Mundial em Roma, em 1984. Os resultados foram tão encorajadores que, logo de seguida, planeámos um outro, cinco anos mais tarde, em Londres – além de todos os Congressos Regionais que realizámos em diversos locais do mundo. O resto, como se diz, é história. Desde que juntei à AIDLR, em 1982, tenho tido tempo para observar esta organização e os problemas que ela tem vocação para resolver. É por isso que me parece apropriado dar-vos a conhecer as minhas observações, baseadas numa experiência de um quarto de século, e antecipar, tanto quanto possível, as direcções a tomar para o futuro próximo. A AIDLR percorreu um longo caminho desde a sua renovação em 1980. Ela é hoje uma organização à escala mundial cuja a influência positiva, ao serviço da liberdade religiosa, se tem ampliado à medida que se estende geograficamente. Entre os

Concluímos o 6º Congresso Mundial da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa (AIDLR) e parece oportuno reflectir sobre o passado enquanto nos voltamos para o futuro. Com excepção do primeiro, tenho participado em todos os Congressos Mundiais da AIDLR. Nessa época, estava na Faculdade de Direito em Amesterdão, onde estudava gestão imobiliária, Direito Penal, Direito Civil, etc. Pouco tempo depois, em 1980, fui visitado por Bert Beach. Ele encontrou pela frente um pastor aguerrido com um novo diploma de Direito na algibeira, apaixonado pelas relações jurídicas entre a Igreja e o Estado para a defesa de direitos individuais. E antes da noite ter terminado, ele pediu-me para me juntar à sua equipa. Obrigado, Bert, por me ter dado a oportunidade de trabalhar para a Associação durante vinte cinco anos tão gratificantes como enriquecedores. Esses anos levaram-me a mais de cem países diferentes ao serviço da liberdade religiosa. Foi uma experiência fascinante que me abriu os olhos. Depois do congresso de Amesterdão, os efectivos da AIDLR tinha passado por profundas alterações. 70


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Vitral em forma da Estrela de David da sinagoga do Jardim das Religiões em Belek, na Turquia. Esta espaço, dedicado às três religiões monoteistas, em nome da tolerância inter-cultural, comporta também uma igreja e uma mesquita. Foi inaugurada em Dezembro de 2006. Foto churchphoto/Ulrike Mueller

mado, deu lugar a uma multidão de novos problemas. Estes últimos poderão ser repartidos em duas categorias: 1. A oposição entre grupos religiosos. Este é o tipo de problema que encontramos com mais frequência e que, infelizmente, conhecemos muito bem. Falarei, entre outros, da situação em Timor Leste, e da forma como a hostilidade alí se transformou numa guerra aberta, ou ainda da Sérvia, onde a má vontade para com as minorias religiosas conduziu aos atentados contra igreja protestantes e, por fim, a esforços que foram feitos para conter o crescente ódio religioso em países como a Rússia, a Bielorússia e o Turquemenistão.

Congressos Mundiais, foram organizadas assembleias regionais em todos os continentes habitados, e contamos hoje com representantes a parceiros em mais de 80 países. Os documentos publicados pelo Conselho de peritos da AIDLR têm tido um impacto considerável, especialmente sobre o assunto sensível do proselitismo. Para vos convencer disso, convido-vos a reportarem-se à lista dos participantes do presente Congresso. Aí descobrirão o nome daqueles que o organizaram e que o apresentaram. Mas não devemos embandeirar em arco, porque as notícias não são totalmente boas. Com efeito, parece que, desde a nossa anterior Assembleia Geral, cada conflito resolvido, ou acal71


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problema é-nos menos familiar, mas é igualmente grave. Nestes últimos anos, o mundo religioso e o estatuto da religião no mundo tem sofrido profundas transformações. Por um lado, temos visto a religião perder a sua posição privilegiada e respeitada na maior parte das sociedades e tornar-se um assunto de desconfiança. Por outro, temos visto o número dos seus membros aumentar e a sua influência decrescer. Nas sociedades mais secularizadas/desenvolvidas, passámos de uma época em que a religião era considerada por todos, ou quase, como um bem para a sociedade, para uma época em que ela é muito frequentemente vista como uma fonte de discórdia e de conflitos, algo perigoso a vigiar de perto. Se tomarmos, por exemplo, os resultados de uma sondagem ICM feita no Reino Unido e publicada no The Guardian de 23 de Dezembro de 2006, verifica-se que 82% dos inquiridos pensam que a religião provoca divisões e tensões entre as pessoas. Na Grã Bretanha, a maioria pensa que a religião faz mais mal do que bem. E esta opinião não se limita, infelizmente, a este país! Se as causas deste fenómeno são múltiplas, algumas dentre elas merecem ser aqui examinadas: 1. A mutação cultural. Paul Hollander, do Washington Post, expressou-a muito bem, “o que suscita as vagas do ódio é a modernidade. Os Estados Unidos tornaram-se o símbolo do bode emissário da modernidade – simultaneamente libertadora e destabilizadora. Os problemas criados pela modernidade não

Estas dificuldades não se restringem, de forma alguma, aos Estados totalitários, ou em vias de desenvolvimento, muito longe disso! Uma recente sondagem de opinião levada a efeito nos Estados Unidos diz-nos que para 44% dos indivíduos interrogados, os direitos civis dos muçulmanos deveriam ser restringidos. E quando mais crentes são as pessoas interrogadas mais parece concordar com aquela posição. A AIDLR e as suas filiadas americanas têm um grande desafio à sua frente: convencer estas pessoas irreflectidas que se os direitos dos muçulmanos não são protegidos, os cristãos também não o serão. Pouco antes do fim do seu mandato, o anterior Secretário Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, declarou: “Os mal-entendidos e os estereótipos subentendem a ideia do “choque das civilizações” estão cada vez mais espalhados, e a indiferença, queiramos ou não, para com as crenças e os símbolos sagrados, servem de pretexto a estes últimos – que não esperam senão que isso aconteça, para desencadear uma guerra de religião, desta vez ao nível mundial. Recordei estas importantes palavras quando Cole Durham disse na terça-feira passada (e eu vou parafrasear): “Se não chegarmos a promover e a defender a liberdade e a igualdade religiosas, a próxima vaga de violência corre o risco de fazer com que se dê a utilização das armas de destruição massiva” – as verdadeiras, não simplesmente aquelas que se supõe existir para fins políticos.

2. A hostilidade para com a própria religião. Este segundo tipo de 72


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são, em primeiro lugar, a pobreza – que ela aligeira mais frequentemente do que agrava – mas muito mais a perda de referências, o desaparecimento progressivo de uma visão coerente do mundo e a ansiedade gerada pela liberdade individual. As sociedades tradicionais, se bem que pobres, eram capazes de oferecer aos seus membros, uma concepção estável do mundo, baseado na religião. A modernidade mina esta representação, assim como a confiança e o sentimento de pertença que lhe estão ligados. O relativismo cultural e a instabilidade moral que a modernidade provoca inconscientemente estão no coração do movimento de protesto contra a mundialização, o Ocidente e os Estados Unidos.” É urgente que tomemos consciência que esta tendência nos afecta a todos nós e não unicamente os Estados Unidos. Para todos os grupos religiosos há nisto um desafio: ajudar os seus membros a encontrar um sentido e uma estabilidade neste mundo numa evolução cultural quase permanente. 2. Uma maior diversidade no seio da sociedade. Este elemento está estreitamente ligado ao anterior. As pessoas são confrontadas não apenas com mudanças no seio da sua própria cultura, mas igualmente com uma diversidade cada vez maior de pessoas e de opiniões nos seus países – e mesmo na sua vizinhança. Para citar um outro exemplo americano, penso na forma como a imigração recente transformou a paisagem religiosa da América. Quer se trate do cristianismo ou do judaísmo, já não há uma nítida separação entre as diferen-

tes variantes de uma mesma religião. A imigração acrescentou ao cadinho americano um mosaico de religiões teologicamente discordantes – 2 milhões de muçulmanos, 2,4 milhões de budistas, 1,3 milhões de hindus, etc. Para saber mais a este respeito é preciso ler a recente publicação de Robert Wuthnow, da Universidade de Princeton, America and the Challenge of Religious Diversity. O autor explica claramente que uma sociedade onde coabitam múltiplas religiões, mas onde poucas pessoas tentam compreender crenças diferentes das suas, corre o risco de ver a religião ser reduzida a uma esfera privada e as convicções religiosas perderam o seu valor. Uma tal sociedade está igualmente madura para que um conflito deflagre, como numerosas sondagens nos Estados Unidos revelam. Por exemplo, 20% das pessoas interrogadas dizem-se favoráveis a que seja declarado ilegal a reunião de grupos muçulmanos, budistas e hindus, e uma percentagem não negligenciável não deseja ver estes grupos tornarem-se mais numerosos na América. Os estereótipos negativos a propósito dos muçulmanos pululam: cerca de metade das pessoas interrogadas dizem que o Islão é uma religião fanática, estreita de espírito e bizarra. Aqueles entre nós que conhecem um pouco o mundo do Islão tentam, constantemente, mostrar às pessoas a realidade desta religião: que ela não é um bloco monolítico, mas que compreende um grande leque de crenças e de práticas, tal como o cristianismo, e que, por um só muçulmano que se desvia das crenças e das práticas do Islão 73


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Vitral de uma igreja cristã. “A Pesca Miraculosa”. Foto church/photo/Gunther Klenk

para justificar a violência, há milhões de muçulmanos praticantes que apenas pedem que os deixem tranquilos e livres para se reunirem cada sexta-feira, na mesquita. Se bem que o texto de Wuthnow trate do pluralismo religioso apenas ao nível dos Estados Unidos, é necessário não esquecer o resto do mundo. Assim como ao nível nacional os americanos são confrontados com religiões não cristãs no seu local de trabalho e de residência, ao nível internacional, a mundialização cria uma rede cada vez mais densa de conexões entre os países com história religiosa, com tradições e com visões do mundo fundamen-

talmente diferentes. Segundo Robert Wuthnow, é indispensável que todos procuremos compreender melhor os nossos vizinhos. 3. A hipocrisia e as más práticas no seio das religiões. Recentemente, o presidente da National Association of Evangelicals – uma associação americana que reúne cristãos evangélicos conservadores – teve de se demitir, quando o seu amante revelou publicamente a sua homossexualidade. Tratase de um pastor que muitas vezes teve atitudes marcadamente homófobas e fustigou os homossexuais. Sejamos claros: não condeno a sua orientação sexual, mas o que lhe reprovo, é a 74


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A famosa cúpula dourada da mesquita Al-Askari em Samara, ao norte de Bagdade, no Iraque. Este mausoleu muçulmano foi construído em 944. É considerada como um dos mais importantes lugares santos chiitas. A cúpula e os dois minaretes foram destruídos durante os atentados de 2006 e 2007. Foto churchphoto/Daniel Wagner

sua hipocrisia cínica, porque cobre de ridículo todos aqueles que tomam a religião a sério. Utilizo exemplos americanos, porque é preferível criticar a sociedade a que se pertence e as suas fraquezas, mais do que julgar outras sociedades. No entanto, este problema está longe de se limitar aos Estados Unidos. Alguns artigos recentemente publicados relatando o arresto, no Brasil, do pastor Estevan Hernandez-Filho e a sua esposa Sónia, acusados de desviar sistematicamente fundos pertencentes à Igreja. O casal, actualmente, fechado

em casa, estava à cabeça de mais de um milhar de igrejas no Brasil e na Florida. São acusados de ter dissimulado mais de $ 56 000 dólares em numerário e de terem escondido algumas notas entre as páginas da Bíblia. Como ousamos, nós que nos declaramos abertamente religiosos, sonhar, nem que seja por um instante, reclamar a protecção da lei para a defesa das nossas convicções e das nossas práticas religiosas, e, ao mesmo tempo, agir ilegalmente? Casos como estes (e existem muitos outros) não fazem senão crescer em todos aqueles 75


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que pensam, o cepticismo para com a religião. Quando se vê crentes – e os seus dirigentes – utilizar, com cinismo, a religião para fins pessoais, políticos e/ou financeiros, fica-se ainda mais convencido que isto não é apenas hipócrita, mas francamente perigoso. As consequências deste género de atitude são assaz evidentes. Entre outras, a negligência crescente do Estado e o seu desinteresse para com a religião. Os governos observam tão frequentemente a exaltação religiosa da população e o seu carácter variável que acabam por escolher a técnica do comentário apaziguador: dizem-nos aquilo que nós temos vontade de ouvir, mesmo se as palavras não são seguidas de efeitos. Consideram que os problemas das diferenças entre religiões são muito complicados e ultrapassam a sua competência diplomática. Este é um dos factores que levou à desastrosa situação no Iraque, onde a intervenção americana exacerbou, lamentavelmente, a clivagem entre sunitas e chiitas. Isso não é uma surpresa, sem dúvida, para aqueles que conhecem um pouco a região, mas era-o para os burocratas que recusaram tomar em consideração o contexto religioso desse país – as oposições sectárias – e não faziam nenhuma ideia das consequências dos seus actos. Actualmente, vemos o resultado da ignorância, que impuseram a si próprios. Para uma excelente análise desta assunto, aconselho-vos o livro de Madeleine Albright, publicado recentemente, The Mighty and the Almighty. Outra consequência: o desdém pela religião divulgada pelos líderes

intelectuais. Para ilustrar o que quero dizer, tirei de um artigo do Journal of the American Academy of Religion (provavelmente o jornal especializado mais influente destinado aos profissionais do mundo religioso) uma declaração de Ferren McIntyre, da Universidade Nacional da Irlanda: “Se o racismo e a religião alguma vez tiveram qualquer utilidade, a evolução da sociedade tornou-as contestáveis. Temo-nos apercebido que o racismo causa um grande prejuízo a uma sociedade multiracial e nós modificámos o Código Penal nesse sentido. Tomamos medidas concretas para eliminar as consequências do racismo e tentámos desencorajar esse género de comportamento. Paralelamente, torna-se evidente que, numa sociedade multi-religiosa, pretender deter a única verdade é tão prejudicial como ser racista”. “Mesmo as Nações Unidas deploram o racismo actual. Sugiro que trabalhemos sobre um regulamento internacional que trate a religião como racismo. Os termo “legalista” teria assim a mesma conotação pejorativa que “racista”, e pretende crer numa só religião verdadeira tão aceitável como falar da superioridade de uma raça, e seria objecto da mesma vigilância”. Estou seguro que muitos entre vós ficarão chocados, como eu fiquei, ao ouvir que um jornal universitário altamente respeitado ousou publicar um artigo sustentando também que o facto de deter a verdade absoluta deveria ser julgado tão duramente como falar da superioridade racial. Se bem que isto esteja longe de representar a opinião geral, este artigo diz muito sobre a 76


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a resolver numerosos problemas graças à nossa abordagem tradicional, a “diplomacia tranquila”. James Standish contou como se tinha alegrado quando se apercebeu que os nossos esforços para libertar um prisioneiro político tinham sido coroados de êxito: ele estava “nas nuvens”. Eu já passei por isso e sei como nos sentimos em tais circunstâncias. Espero que seja cada vez mais numeroso o número dos que vivem estes momentos. Infelizmente, em cada vez mais locais, é feito pouco caso da diplomacia tranquila e os nossos esforços não têm como resultados tangíveis, um punhado de casos e uma fotografia de recordação. Todavia, há pessoas vítimas de uma hostilidade evidente para com as suas crenças e as suas práticas religiosas, e esperam de nós, mais do que palavras.

credibilidade das religiões organizadas nos meios universitários. Temos nós soluções neste domínio? Que poderia fazer a AIDLR e aqueles que lhe dão o seu apoio e que defendem os seus objectivos? Em primeiro lugar, continuemos a fazer aquilo que fazemos bem. Devemos chamar a atenção das comunidades religiosas e das maiorias políticas para o facto de que só a imparcialidade do governo – caracterizada por uma espécie de neutralidade benevolente – para com a religião pode permitir que esta contribua para a paz social. Depois, devemos lembrar-lhe constantemente, que um país não se torna uma nação religiosa inscrevendo na sua Constituição o nome de Deus, nem fazendo recitar, nas escolas públicas, uma oração ditada pelo Estado, nem mesmo impondo a adopção de comportamentos “religiosos”, ou misturando religião e política. Não é dessa forma que se criará uma nação religiosa, mas far-se-á dela, seguramente, uma nação perigosa. Em segundo lugar, é necessário que encontremos novas formas de defender a causa da liberdade religiosa. Não basta saudar e falar com os funcionários que pensamos serem favoráveis à religião. O nosso trabalho, actualmente, é convencer os governos que a religião é importante: ela existe, ele é real e tem direito de ser tida em conta na tomada de decisões políticas. Agir, de forma diferente, nos nossos dias, seria correr para a catástrofe. Como ouvimos esta semana quer nas apresentações públicas, quer em conversas privadas, estamos decididos

É, portanto, necessário, por vezes, para apoiar estas palavras, recorrer a uma sólida publicidade que aponte e traga à luz do dia os problemas causados por numerosos governos às comunidades religiosas e aos seus membros. Aplaudo o trabalho do Fórum 18 e do Institute for Religion and Public Policy, que se têm servido da Internete para manter uma vasto número de pessoas regularmente informadas sobre as tentativas de diversos governos para sufocar as actividades religiosas. Para além desta publicidade, também se deve algumas vezes passar para as acções de justiça. Isso pode, é verdade, num primeiro tempo, exacerbar os problemas antes de os resolver. Mas chega o momento em que se deve aceitar que não é possível fazer omeletas sem ovos. Como já afirmei, algumas 77


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Monjes budistas na Tailândia- Foto churchphoto/Arkadiusz Pietka

circunstâncias exigem que se utilizem argumentos mais “musculados” para defender a liberdade e a igualdade religiosas. Em terceiro lugar, devemos apresentar uma argumentação válida se queremos que os não crentes dêem o seu apoio à liberdade religiosa. Que argumentos avançar para que um não crente dê o seus apoio à liberdade de qualquer coisa que ele considere como uma simples superstição? O que é que poderia levá-lo a apoiar a liberdade religiosa? Podemos adiantar o facto de que a liberdade religiosa contribui para a paz nas sociedades – se conseguirmos reunir provas credíveis para isso. Podemos dizer que a liberdade religio-

sa favorece a descoberta de novas ideias – se chegarmos a demonstrálo. Podemos defender que a liberdade religiosa facilita a autonomia uma vez que este deveria ser normalmente o caso. Mas ainda, é necessário apresentar argumentos rigorosamente baseados na realidade. Por fim, podemos avançar que a liberdade religiosa encoraja a igualdade social, com a condição de dispor de factos reais que o atestem. Em quarto lugar, e em consequência de que está atrás, é nossa responsabilidade trabalhar com as nossas próprias comunidades religiosas a fim de pôr fim à hipocrisia, aos abusos e ao desvio da religião. Como crentes, 78


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o nosso papel é começar por nos ajudarmos a nós mesmos, não insistindo para que os nossos direitos sejam protegidos pelos governos, mas corrigindo as nossas próprias igrejas para que elas apareçam ao público sob a melhor – e verdadeira – luz. Devemos dizer aos nossos correligionários que cometem acções repreensíveis em nome da fé: “Como ousam deturpar as melhores tradições e crenças da nossa religião para desculpar e até mesmo encorajar a violência contra inocentes? Que vergonha!” Os meus irmãos e irmãs muçulmanos têm o dever de explicar, claramente, que aqueles que alteram as palavras do profeta e se servem dos ensinos e dos princípios históricos do Islão para justificar a violência, desfiguram a sua fé. Eu não sou muçulmano, por isso não me compete transmitir esta mensagem – ela deve vir do interior da comunidade. Os meus irmãos e irmãs hindus devem dizer francamente aos que desejam ver o hinduísmo ocupar um lugar especial na Índia que os seus actos não seguem as maiores tradições do hinduísmo. Meus irmãos e irmãs budistas do Sri Lanka devem mostrar aos que querem que o budismo cingalês tem a preponderância no país que eles não seguem a via do fundador da sua religião. Àqueles que, entre nós, são cristãos têm o dever de pedir aos seus correligionários: “Como ousais pregar uma “cruzada” e utilizar a

imagem do Príncipe da Paz para justificar a violência? Os não cristãos não podem transmitir esta mensagem: eles não serão ouvidos. Nós somos os únicos que o podemos fazer. Conservemos também no nosso espírito as palavras de Paul Hollander que já citei acima: “Os problemas criados pela modernidade não são, em primeiro lugar a pobreza, mas a perda de referências, o desaparecimento progressivo de uma visão do mundo coerente e a ansiedade gerada pela liberdade individual.” Na hora actual, a tarefa de cada comunidade religiosa é ajudar os seus membros a encontrar um sentido para a sua vida e a sentir-se em segurança no meio das vagas incertas da mundialização. É indispensável que envolvamos as nossas congregações a agir segundo os princípios e a razão: procurar não um estatuto privilegiado, mas muito mais a neutralidade do governo em matéria de religião, apoiar a liberdade e a autonomia, dar o seu apoio aos direitos de todos – incluindo aqueles com quem estamos em total desacordo – e defender a liberdade comum, um dom fundamental de um Deus bom e sábio. Devemos lançar este desafio às nossas comunidades e, ao mesmo tempo, ajudá-las a encontrar uma segurança real e eterna na fé, e não através de um estatuto político efémero e puramente terrestre. Na minha opinião, os anos que nos separam do próximo Congresso representam um verdadeiro desafio. Forças dificilmente controláveis espalham-se por todo o mundo. Elas podem muito bem conduzir à 79


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hostilidade e à negação – a um grau raramente visto neste últimos decénios – dos direitos individuais e muito particularmente dos direitos religiosos. Os dirigentes da AIDLR e aqueles entre nós que apoiam os seus esforços têm recursos para o futuro. Mas eu sei que também falo em nome de Bert Beach assegurando-vos que seguiremos os vossos progressos com um interesse e um cuidado constantes, mesmo se desejamos, neste momento, passar para um plano secundário, num papel de apoio. Desejo-vos coragem,

consagração e determinação, discernimento e serenidade, um julgamento justo e ponderado. Que nunca sintam nem fadiga, nem desencorajamento nem fraqueza, porque a importância da tarefa que vos está confiada é imensa.

* Advogado. Antigo conselheiro jurídica da International Liberty Association, Silver Spring, Maryland

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Resoluções do Sexto Congresso Mundial da International Religious Liberty Association (IRLA) sobre o Tema “Fazer face ao ódio religioso” Cidade do Cabo 27 de Fevereiro a 1 de Março de 2007

A International Religious Liberty Association (IRLA) reunida para o seu Sexto Congresso na Cidade do Cabo, na África do Sul, agradece, vivamente, aos habitantes deste pais, pelo acolhimento caloroso que lhe foi reservado, e elogia a prática e a política da liberdade religiosa que ali constatou. A África do Sul pode servir de modelo ao resto do mundo em matéria de respeito mútuo e da harmonia entre as pessoas de crenças e de fé diferentes. O Congresso não esquece que o país se libertou recentemente do seu passado e felicita os responsáveis religiosos pelo apoia que dão aos direitos fundamentais do Homem. Lamenta-se que no passado se tivesse, muitas vezes, de recorrer a argumentos religiosos para justificar as diferenças praticadas no seio da sociedade. A Comissão Verdade e Reconciliação é um exemplo da metodologia que se poderia igualmente utilizar para fazer face à intolerância e às tensões religiosas, e, eventualmente, adaptar à luta contra o ódio religioso.

Os representantes do comunidade internacional reunidos no quadro do Congresso Mundial da IRLA deploram o incremento da violência e do terrorismo com carácter religioso em numerosas regiões do mundo. O tema que os une “Fazer face ao ódio religioso”, sublinha a urgência desta situação dramática. Apenas um diálogo aberto e relações francas entre as pessoas de confissões ou de convicções diferentes podem conduzir a um progresso de liberdade religiosa e ao respeito mútuo. O Congresso afirma, igualmente, a sua convicção de que a religião deve desempenhar um papel positivo na sociedade e que não deve ser desviado do seu objectivo para servir uma outra causa, seja ela política, nacional, ou pessoal. Por outro lado, de acordo com os princípios da IRLA, o Congresso está convicto que a liberdade religiosa se realiza melhor quando a Igreja e o Estado, têm cada um a sua esfera respectiva e estão claramente separados. O Estado deve permanecer neutro perante todas as religiões, sem mani81


Resoluções do Sexto Congresso mundial da IRLA festar hostilidade para com a religião em geral, mas tendo em conta contribuições que esta pode trazer e que realmente traz à sociedade. A IRLA regozija-se por ver que tem havido uma orientação progressiva no sentido de uma cooperação entre a sociedade civil, os governos e as organizações internacionais, como as Nações Unidas em favor da liberdade religiosa. Ele acredita que, tanto quanto se persigam os objectivos do milénio para o desenvolvimento, a sociedade no seu conjunto beneficia disso e o respeito entre as diversas tendências religiosas, aumenta.

2. Infelizmente, são, frequentemente, as comunidades de fé que são responsáveis pela intolerância e as violações da liberdade religiosa suportadas pelos outros. O Congresso apela, portanto, a todas as comunidades de fé e seus dirigentes, para ensinarem, e a praticarem a liberdade religiosa, no seio das suas assembleias bem como nas suas relações com os outros, em particular, nas regiões em que essas comunidades ocupam uma posição influente, ou maioritária, na sociedade. 3. A necessidade de segurança e de protecção não devem sobrepor-se a todos os outros direitos, particularmente, os direitos à liberdade de religião, de convicção e da prática do culto. 4. Ninguém deve, conscientemente, dar uma falsa ideia ou ridicularizar as crenças de outro. Em todas as discussões sobre convicções, convém, adoptar uma atitude respeitosa e de crítica sincera. No entanto, a liberdade da palavra é uma condição sine qua non para que haja liberdade religiosa e é por isso que é necessário protegê-la, mesmo para propósitos, considerados por alguns, como ofensivos. 5. A educação a todos os níveis deve promover uma cultura de tolerância e de compreensão mútua. Deveria prevenir contra o perigo de preconceitos, inculcar o respeito pelos outros e ensinar que o respeito e a dignidade de todos os seres humanos, constitui um dos meios de garantir a paz para o futuro. 6. É necessário encorajar aqueles cuja tarefa é modificar a atitude da sociedade para com os diferentes

O Congresso preocupa-se, igualmente, com as formas mais insidiosas de discriminação e de intolerância que se manifestam em certos países sob a cobertura de laicidade. Práticas como as que consistem em interditar o uso de símbolos religiosos, em impedir os crentes de celebrar o seu culto em dias bem precisos ou em anular o estatuto de objector de consciência, ultrapassam questões quanto à atitude tomada por esses países para com a liberdade de religião, ou de convicção. Consequentemente, o Sexto Congresso Mundial da IRLA proclama que:

1. Todas as confissões de fé devem lutar contra o ódio religioso. Um diálogo franco e um respeito mútuo devem caracterizar as relações interconfessionais. Apelar para as convicções religiosas para justificar actos de violência ou de terrorismo é uma prática absolutamente inaceitável, que deve ser nomeadamente condenada por todos. 82


Resoluções do Sexto Congresso mundial da IRLA grupos, sejam eles religiosos ou não. Os jornalistas, os redactores e os produtores devem ter dentro de si a vontade de fugir dos estereótipos que estigmatizam, um lado da sociedade, em particular, quando difundem informações não verificadas ou acusações difamatórias. É necessário interiorizar que as consequências se revelam, muitas vezes, impossíveis de dominar. 8. Deploramos a obrigação do registo imposto por alguns países, na medida em que visa particularmente as organizações religiosas e poderá ser utilizado para restringir ou impedir, o livre exercício dos direitos religiosos. 9. Insistimos, mais uma vez, sobre as normas internacionais em matéria de liberdade religiosa, e, particularmente, sobre o artigo 18 da Declaração

Universal dos Direitos do Homem. Reafirmamos o direito que cada indivíduo tem de mudar de religião ou de convicção, de acordo com aquilo que ditam a sua consciência e as suas convicções pessoais. É necessário pedir contas aos Estados que violam esse direito e infligem, aos que mudam de religião, castigos que chegam à prisão, a tortura ou mesmo a morte. 10. Recomendamos, vivamente, a criação de novas organizações nacionais e regionais, filiadas na IRLA que permitirão proteger, promover e defender o princípio e a prática da liberdade religiosa para todos no mundo inteiro.

* Advogado. Antigo Conselheiro jurídico da International Religious Liberty Association, Silver Springs, Maryland

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Temas de preocupação do Sexto Congresso Mundial da International Religious Liberty Association (IRLA) sob o tema: “Fazer face ao ódio religioso” Cidade do Cabo 27 de Fevereiro a 1 de Março de 2007

como a Arábia Saudita, a Coreia do Norte, a Líbia e as Maldivas. Que uma tal situação persista neste novo milénio, é assunto de grande preocupação. Constitui, também, um ultraje aos direitos fundamentais do Homem. O Congresso testemunha, igualmente, as suas preocupações sobre a liberdade religiosa no Sudão, na Birmânia, no Vietname, na China, no Irão, no Bangladesh, no Paquistão, assim como no Iraque, em virtude do violento conflito que opõe sunitas e chiitas. Consequentemente, pede, insistentemente aos governos, às instituições da sociedade civil e aos indivíduos que combatam estas situações deploráveis, que ameaçam a paz, a justiça e a segurança.

Após as resoluções adoptadas na Cidade do Cabo, na República da África do Sul, o Sexto Congresso Mundial da International Religious Liberty Association (IRLA) exprime a sua real inquietação sobre o facto de que, apesar dos avanços da liberdade de religião ou de convicção no mundo, assiste-se, ainda, a violações flagrantes deste direito fundamental. A presente Declaração assenta sobre alguns assuntos particularmente preocupantes. Desde o anterior Congresso mundial que teve lugar em 2002 em Manila, nas Filipinas, a liberdade religiosa progrediu, em particular em certas regiões da América do Sul, da Europa de Leste e da Ásia. O Congresso reunido hoje observou favoravelmente, estas evoluções e presta homenagem a todos aqueles que fizeram progredir estes direitos fundamentais do Homem. Em contrapartida, noutros territórios, a situação da liberdade religiosa não melhorou; até mesmo piorou. 1. O Congresso deplora a ausência de liberdade religiosa em países

2. A IRLA reconhece as melhorias tangíveis de que beneficiou o Turquemenistão. O Congresso tomou conhecimento da recente mudança de governo no país e exorta o novo presidente a tomar imediatamente as medidas necessárias na persecução do processo de reforma, a fim de que, dessa forma, seja posto termo definitivo às perseguições, à marginalização e 84


Protecionismo e livre-mudança - A nova gestão jurídica

6. O Congresso exprime a sua satisfação a propósito da nova situação do Nepal, onde a população goza do direito de escolher a sua religião. Contudo inquieta-se com o facto da Constituição provisória do Nepal não garantir o direito de mudar de religião. O Congresso convida, portanto, vivamente, a nova Assembleia a assegure que este direito fundamental faça parte integrante da nova Constituição nepalesa.

à discriminação praticada contra pessoas ou entidades por causa das suas convicções religiosas. 3. A adopção por países como a Bielorrússia e a Sérvia de leis discriminatórias recusando a igualdade de direitos aos diferentes grupos religiosos é um facto novo, alarmante, e deve ser condenado. A ideia de classificar os cidadãos em primeira e segunda classe em função das suas convicções religiosas é inaceitável. O Congresso exige, portanto, a anulação imediata dessas leis. 4. O presente Congresso. Tal como o de Manila, continua preocupado com a situação actual na Indonésia, onde é um facto a violência incessante entre as comunidades cristãs e muçulmanas. Deploramos os milhares de mortes e as centenas de milhar de refugiados vítimas deste conflito religioso. O Congresso apoia as acções empreendidas pelas autoridades indonésias e as organizações não governamentais, para pôr termo à violência e encorajar a reconciliação, a fim de que reine um espírito de paz e de harmonia no seio das diversas comunidades religiosas. 5. Na Eritreia, o encerramento de certas igrejas pelas autoridades nem sempre é anulado, apesar de numerosas reclamações e protestos. Que lugares de culto possam ser fechados por decreto governamental representa um abuso de poder extremamente grave e uma violação evidente das normas internacionais em matéria de liberdade religiosa. O Congresso pede ao governo que anule, imediatamente, a sua ordem e permita às Igrejas abrirem e funcionarem, livremente, no país.

7. Em muitos países, entre os quais a França, o Gana, o Botswana, o Uganda, o Lesoto e a África do Sul observa-se que eleições e/ou exames são marcados em dias de repouso religioso. Isso ilustra bem a forma como a laicidade ou as decisões religiosas afectam os fiéis das religiões minoritárias que não têm o mesmo dia de culto da maioria. Um número consequente de eleitores fica assim privado dos seus direitos eleitorais e muitos estudantes não podem progredir nos seus estudos. O presente Congresso convida, portanto, todos os governos a planear eleições e exames durante a semana, tendo o cuidado de evitar os dias de repouso religioso e os dias de culto. As participantes do Congresso exprimem o seu apoio, a sua compaixão e a sua solidariedade para com as vítimas da discriminação, da intolerância e das perseguições religiosas como as mencionadas acima. O Congresso reafirma a vontade de International Religious Liberty Association de cooperar com os governos dos países citados a fim de encontrar soluções para essas situações dramáticas. 85


DOCUMENTO Nações Unidas Resolução adoptada pela Assembleia Geral a 20 de Dezembro de 2006, durante a sua 61ª Sessão 61/221. Promoção do Diálogo, do entendimento e da cooperação entre religiões e culturas ao serviço da paz.

A Assembleia Geral Reafirmando os objectivos e princípios consagrados pela Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos do Homem1, em particular o direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião, Recordando as suas resoluções 56/6 de 9 de Novembro de 2001 sobre o Programa Mundial para o Diálogo entre as civilizações, 57/6 de 4 de Novembro de 2002 sobre a promoção de uma cultura de paz e da não-violência, 57/337 de 3 de Julho de 2003 sobre a prevenção dos conflitos armados, 58/128 de 19 de Dezembro de 2003, sobre a promoção da compreensão, a harmonia e a cooperação entre as culturas e religiões, 59/23 de 11 de Novembro de 2004 sobre os diálogo entre as religiões, 59/143 de 15 de Dezembro de 2004 que se refere ao Decénio Internacional para a Promoção de uma Cultura da Não-violência e a Paz em Benefício das Crianças do Mundo (2001-2010) e 59/199 de 20 de Dezembro de 2004 sobre a eliminação de todas as formas de intolerância religiosa, Sublinhando que é essencial favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre os seres humanos, em toda a diversidade de religiões, das suas convicções, das suas culturas e das suas línguas, e recordando que todos os Estados se envolveram na Carta a promover e a encorajar o respeito universal dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, de sexo, de língua ou de religião, Tomando o acto da adopção do Documento final da Cimeira mundial de 20052, pelo qual os chefes de Estado e do Governo reconheceram a importância do respeito e da compreensão da diversidade religiosa e cultural no mundo inteiro, reafirmou o valor do diálogo sobre a cooperação inter-confessional e defende o envolvimento para promover o bem estar geral da humanidade, a liberdade e 86


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o progresso, assim como encorajar a tolerância, o respeito, o diálogo e a cooperação aos níveis local, nacional, regional e internacional e entre as culturas, as civilizações e os povos, a fim de defender a paz e a segurança internacionais, Alarmando-se por ver que o número de manifestações graves de intolerância e de discriminação, com base na religião ou na convicção, especialmente actos de violência, de intimidação e de coerção motivadas pela intolerância religiosa, aumentam em numerosas regiões do mundo e comprometem assim, o exercício dos direitos do Homem e das liberdade fundamentais, Insistindo na necessidade de reforçar, a todos os níveis da sociedade e entre as nações, a liberdade, a justiça, a democracia, a tolerância, a solidariedade, a cooperação, o pluralismo, o respeito pela diversidade de culturas, de religiões e de convicções, o diálogo e a compreensão, que são indispensáveis para a paz, e convencida que a comunidade internacional deve, activamente, promover os grandes princípios da democracia, Reafirmando que todos os Estados devem prosseguir nos esforços realizados ao nível internacional para aprofundar o diálogo e favorecer uma melhor compreensão entre as civilizações a fim de impedir qualquer difamação contra as religiões e as culturas diferentes3, de favorecer a resolução pacífica dos conflitos e dos diferendos e de reduzir os riscos de animosidade, de afrontamentos e de violência, Considerando que a tolerância para com as diferenças na forma de prestar culto, étnicas, religiosas e linguísticas, assim como o diálogo entre as civilizações e no seu seio, são essenciais para a paz, a compreensão e a amizade entre os indivíduos e os povos de diferentes culturas e nações do mundo, enquanto que, as manifestações de preconceitos culturais, de intolerância e de xenofobia para com certas culturas e religiões podem dar origem ao ódio e à violência entre os povos e as nações de todo o mundo. Reconhecendo a riqueza da civilização nómada e a sua importante contribuição para a promoção do diálogo e da interacção entre todas as formas de civilização, Notando o grande interesse que apresentam diversas iniciativas tomadas aos níveis regional, nacional e internacional, especialmente a Aliança das Civilizações, a Declaração de Bali sobre a construção da harmonia inter-confessional no seio da comunidade internacional4, o Congresso dos Dirigentes das Religiões Mundiais e Tradicionais, o Diálogo entre civilizações e culturas, a estratégia de “moderação esclarecida” a reunião oficiosa de dirigentes sobre o diálogo e a cooperação ecuménica para a paz5, o diálogo entre o Islão e o Cristianismo, a Cimeira Mundial dos chefes religiosos em Moscovo e o Fórum tripartido sobre a cooperação ecuménica para a paz, porque elas são perfeitamente conciliáveis, estreitamente ligadas e que se reforçam mutuamente, 87


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Consciente que, no quadro destas iniciativas, foram definidos domínios de intervenção, a todos os níveis da sociedade, para encorajar o diálogo, a compreensão e a cooperação entre as religiões, as culturas e as civilizações, Sabendo que todas as religiões estão ligadas à paz, 1. Afirma que a compreensão mútua e o diálogo entre as religiões constituem factores importantes do diálogo entre as civilizações e a cultura da paz; 2. Toma nota, com satisfação da acção em favor do diálogo interconfessional levado a cabo pela Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura, no quadro dos seus esforços para fazer avançar as mudanças entre as civilizações, as culturas e os povos, assim como das suas actividades relativas à cultura da paz, felicita-se por este organismo se preocupar em tomar medidas concretas no plano mundial, regional e local, e saúda o seu projecto orientador de apoio ao diálogo interconfessional; 3. Constata que, num mundo cada vez mais interdependente, o respeito pela diversidade religiosa e cultural contribui para a cooperação internacional, favorece o diálogo entre as religiões, as culturas e as civilizações e ajuda a criar um clima propício para as mudanças entre os homens; 4. Constata igualmente que, apesar da intolerância e os conflitos que criam clivagens entre os países e a regiões, e ameaçam cada vez mais as relações pacíficas entre as nações, todas as culturas, religiões e civilizações têm em comum um conjunto de valores universais e que podem, todas elas, contribuir para o enriquecimento da humanidade; 5. Reafirma que todos os Estados se comprometeram solenemente a promover o respeito universal, o exercício e a protecção de todos os direitos do Homem e liberdades fundamentais para todos, conforme a Carta das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e outros instrumentos relativos aos direitos do Homem e ao Direito Internacional, o carácter universal destes direitos e liberdades sendo incontestável; 6. Exorta os Estados, conforme as suas obrigações internacionais, a usarem todos os meios necessários para combater os actos de violência, de intimidação ou de coerção assim como o incitamento a tais actos motivados pelo ódio e a intolerância baseados na cultura, na religião ou na convicção, que podem semear a discórdia e o desentendimento no seio das sociedades, ou entre elas; 7. Incita igualmente os Estados a tomarem medidas eficazes para prevenir e eliminar toda a discriminação fundada sobre a religião ou a convicção susceptível de intervir no reconhecimento, o exercício e a fruição dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais a todos os níveis da vida civil, económica, política, social e cultural, a não poupar nenhum esforço para adoptar ou ab-rogar as leis, segundo o caso, a fim de interditar toda a discriminação desta 88


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espécie e a tomar todas as disposições necessárias para combater a intolerância baseada na religião ou nas convicções; 8. Reafirma que a promoção e a protecção dos direitos das pessoas pertencentes a minorias nacionais ou étnicas, religiosas ou linguísticas contribuem para a estabilidade

Política e social e para a paz nos Estados onde essas pessoas vivem e enriquecem a diversidade e o património culturais de sociedade no seu conjunto, e convida, insistentemente, os Estados a agirem de forma a fazer com que o seu sistema político e jurídico traduza o pluralismo cultural da sua sociedade e, se for caso disso, melhorar as suas instituições, organizações e práticas democráticas e políticas a fim de lhes acrescentar o carácter participativo e evitar assim, que certos grupos sejam marginalizados ou excluídos ou que sejam objecto de discriminação;

9. Exorta os governos para que favoreçam, particularmente pela via da educação e da elaboração de programas e manuais escolares progressivamente adaptados, a compreensão, a tolerância e a amizade entre os seres humanos, em toda a diversidade das suas religiões, das suas convicções, das suas culturas e das suas línguas, a fim de atacar as raízes culturais, sociais, económicas, políticas e religiosas da intolerância, e adoptar, dessa forma, diligências específicas a cada sexo para favorecer a compreensão, a tolerância, a paz e as relações amigáveis entre as nações e todos os grupos raciais e religiosos, conservando presente que a educação, a todos os níveis, é um dos principais meios de estabelecer uma cultura da paz; 10. Constata que os média podem contribuir para a compreensão entre as religiões, as crenças e os povos, facilitar o diálogo entre as sociedades e criar um clima propício às mudanças entre os homens;

11. Apoia as medidas concretas tomadas aos níveis regional, e nacional por todas as partes envolvidas, incluindo os representantes dos média, para encorajar estes últimos a participarem desde logo, no avanço da compreensão e da cooperação entre as religiões e as culturas, no interesse da paz, do desenvolvimento e do respeito pela dignidade humana; 12. Encorajar a promoção do diálogo entre os média e todas as culturas e civilizações, sublinha que cada um tem direito à liberdade de expressão, e reafirma que o exercício desse direito comporta certas obrigações e responsabilidades e que pode ser submetida a certas restrições, mas apenas àquelas que estão prescritas pela lei e necessárias para o respeito dos direitos ou da reputação de outrem e a salvaguarda da segurança nacional, da ordem pública, da moral ou da saúde pública;

13. Declara que os órgãos competentes da Organização das Nações Unidas, dela mesma e do Conselho dos Direitos do Homem se dedicarão a implementar 89


meios coordenados para promover, ao nível mundial, o respeito pela liberdade de religião ou de convicção e da diversidade cultural, e para prevenir os casos de intolerância, de discriminação e de incitamento ao ódio contra os membros de certos grupos ou contra as pessoas que professam tal ou tal religião ou convicção; 14. Decide que promoverá, em 2007, um diálogo de alto nível sobre a cooperação entre as religiões e as culturas tendo em vista promover a tolerância, a compreensão e o respeito universal pela liberdade de religião ou de convicção e pela diversidade cultural, em coordenação com outras iniciativas do mesmo tipo; 15. Anuncia que tem como objectivo proclamar um dos próximos anos o “Ano do diálogo entre as religiões e as culturas”; 16. Pede ao Secretário Geral que assegure um acompanhamento sistemático de todas as questões ligadas ao diálogo entre as religiões, as culturas e as civilizações no seio da Organização das Nações Unidas, assim como a coordenação e a coesão do conjunto de actividades da Organização das Nações Unidas com o objectivo de apoiar o diálogo e a cooperação entre as religiões, as culturas e as civilizações, e de criar, no seio do Secretariado, um serviço encarregue destas questões. 17. Pede igualmente ao Secretário Geral que preste contas, durante a sexagésima segunda sessão, da aplicação da presente resolução. Notas: 1. Resolução 217 A (III) 2. Ver resolução 60/1 3. Como o Conselho de Segurança reconheceu na resolução 1624 (2005) 4. Ver A/60/254 5. Ver A/60/383

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Declaração de Princípios Acreditamos que o direito à liberdade religiosa foi dado por Deus e afirmamos que ela se pode exercer nas melhores condições, quando há separação entre as organizações religiosas e o Estado. Acreditamos que toda a legislação, ou qualquer outro acto gover­namental, que una as organizações religiosas e o Estado, se opõem aos interesses dessas duas instituições e podem causar prejuízo aos direitos do homem. Acreditamos que os governos foram instituídos por Deus para manter e proteger os homens no gozo dos seus direitos naturais e para regulamentar os assuntos civis; e que neste domínio tem o direito a obediência respeitosa e voluntária de cada individuo. Acreditamos no Direito natural inalienável do indivíduo à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de ter ou de adoptar uma religião ou uma convicção da sua escolha e de mudar segundo a sua consciência; assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, individualmente ou em comum, tanto em publico como em privado, através do culto e da realização dos ritos, das práticas e dos ensinos, devendo, cada um, no exercício desse direito, respeitar os mesmos direitos nos outros. Acreditamos que a liberdade religiosa comporta, igualmente, a liberdade de fundar e de manter instituições de caridade e educativas, de solicitar e de receber contribuições financeiras voluntárias, de observar os dias de repouso e de celebrar as festas de acordo com os preceitos da sua religião, e de manter relações com crentes e comunidades religiosas tanto ao nível nacional, como internacional. Acreditamos que a liberdade religiosa e a eliminação da intolerância e da discriminação fundadas sobre a religião ou a convicção, são essen­ciais para promover a compreensão, a paz e a amizade entre os povos. Acreditamos que os cidadãos deveriam utilizar todos os meios legais e honestos, para impedir toda a acção contrária a estes princípios, para que todos possam gozar das inestimáveis bênçãos da liberdade religiosa. Acreditamos que o espírito desta verdadeira liberdade religiosa está resumido na regra áurea: Tudo o que quiserem que os homens vos façam, façam-no a eles.

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