Revista Redemoinho ano 11 nr 17

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Ano 11 • Número 17

Revista do Curso de Jornalismo do IESB - Brasília, julho de 2020

Mulheres pretas S.A. A resistência e as vitórias femininas no empreendedorismo em meio a um mundo racista e machista

“Quebrada” referência Moradores de periferia do DF e Entorno conquistam notoriedade nos ramos que trabalham

Coisa de cinema Cadeia produtiva da sétima arte enfrenta desafios para manter a paixão em meio à pandemia



EDITORIAL Superação. Esta é a palavra que resume esta edição da Redemoinho. Superar o deadline (o prazo para entregar uma reportagem), o limite de espaço, as dificuldades com fontes e dados, as encruzilhadas no texto, os percalços na apuração, o desafio da foto, às vezes até o desrespeito a quem faz jornalismo. Estas são superações cotidianas numa redação. A elas, soma-se o fato de, na Redemoinho, todas as redatoras e os redatores serem estudantes-repórteres. Acrescido às dificuldades enfrentadas no jornalismo e em um veículo acadêmico, chega algo novo, a pandemia. E que algo novo! Os efeitos da Covid-19 têm transformado o cotidiano da sociedade. Se por um lado fica provado que a ciência séria precisa cada vez mais de incentivo e investimento, por outro cresce a importância do que nos preparamos para fazer aqui: jornalismo profissional. Só a informação meticulosamente investigada pode ajudar a entender o que nos cerca, seja ou não em tempos de isolamento social. Ainda assim, ao mesmo tempo em que é essencial para tentar superar o novo coronavírus, o “ficar em casa” exigiu da equipe mais uma superação, afinal, lugar de jornalista é na rua. Não fomos para a rua, mas fizemos todo o trabalho. Superaram-se os repórteres, superaram-se as pessoas que têm histórias aqui contadas. São mulheres pretas, gente da periferia, estudantes insones, pessoas que desafiam a estética, que querem seguir a vida depois do câncer, que venceram relacionamentos abusivos, que fazem voluntariado, que não abaixam a cabeça para a situação de rua, que amam cinema, jovens interessados na política, garotas que batem um bolão. Tem também quem gire bambolê, jogue videogame, faça arte e cuide do meio ambiente por um mundo melhor. Tem até quem se relacione com parentes. Enfim, gente que supera, diariamente. Para nós, o desafio é fazer jornalismo. E foi superado. Boa leitura! RE D E M O IN H O | 1


Coordenação editorial e edição: Marcio Peixoto. Projeto gráfico: Gabriel Cordova, Maycon Cardoso e Thaynara Martins, sob a supervisão de Amaro Júnior, Cecília Bona e Noel F. Martínez. Direção de arte: Mônica Carvalho. Conselho editorial: Candida Mariz, Carlos Siqueira, Daniella Goulart, Luciane Agnez, Luísa Guimarães e Marcio Peixoto. Coordenação do curso de jornalismo: Daniella Goulart. Reitor do Iesb: Edson Machado Filho. Tiragem: 1.000 exemplares. Redação: (61) 3445-4577. Repórteres e fotógrafos do 5º semestre de Jornalismo: Adriely Karina, Alexia Oliveira, Catarina Loiola, Gabriel Pinheiro, Giovanna Wobeto, Guilherme Simmer, Isadora Gomes, Lucas Batista, Maria Luiza Farias, Mariana Fernandes, Marisa Wanzeller, Natália Bosco, Pedro Ângelo Cantanhêde, Rômulo Maia, Victoria Côrtes Vasconcellos e Willian Rodrigues. Ilustração da capa: Esmerinda Camila.


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Afroempreendedorismo: os desafios da mulher preta no mundo dos negócios Com orgulho de onde vivem, trabalhadores mostram o valor da periferia As consequências das noites mal dormidas dos estudantes universitários Saúde em risco para quem aceita a ditadura da beleza padronizada A vida de quem vence o câncer e tem de voltar ao mercado de trabalho Jovens ativos politicamente querem mudança e o exercício da democracia Febre nos anos 1950, bambolê ganha adeptos e opções no cotidiano Tabu em todas as culturas, incesto caminha com a história Vítimas de violência, mulheres encontram apoio nas redes sociais Voluntariado ajuda a combater os efeitos da pandemia da Covid-19 Projetos buscam novo olhar para quem está nas ruas da sessentona Brasília Educação ambiental é essencial para manter a vida no planeta Jogos digitais apresentam resultados positivos na educação e na saúde A trajetória de mulheres que decidem viver da arte no Brasil Fechamento gerado pelo coronavírus é desafio para setor audiovisual Conheça as histórias de quem faz o futebol feminino no Distrito Federal

Clarke Sanders/Unsplash

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E MPREENDEDORISMO

Resistência negra Em um país racista e machista, ser mulher e preta empreendedora é ultrapassar as barreiras do preconceito

por: Isadora Gomes

O racismo está presente. Numa fala, num gesto, numa agressão física. O preconceito faz parte do cotidiano, e isso limita as oportunidades profissionais para os pretos. A situação piora quando se pertence ao sexo feminino, mas elas não desistem, resistem. Uma das maneiras de estabelecer essa resistência é o abraço ao empreendedorismo. De acordo com a Pesquisa do Emprego e Desemprego 2019, da Secretaria de Trabalho do Distrito Federal, a presença dos negros no empreendedorismo no DF passou de 62,7% para 65,7% em comparação com 2018. Entretanto, o estudo também mostra que houve declínio na participação de empreendedores entre 25 e 39 anos e de 60 anos ou mais, de 12,2% para 10,3%. Já na faixa etária entre 40 e 59 anos, houve aumento de 46,3% para 48,1%. Mesmo estando em grande quantidade, os negros ainda enfrentam dificuldades, a maioria causada pelo racismo. No caso das mulheres, além

do racismo, elas precisam enfrentar o machismo, ainda muito presente na sociedade. Para Tânia Moreira, proprietária do Under Family Studio, “ser mulher negra e empresária é mais difícil do que qualquer outro gênero, pois somos a base. Para eles, mesmo se não tiver tanto dinheiro, têm algo que não temos: ‘crédito’. Quando olham para um homem e mulher negros dizem que temos um salãozinho, mas quando é um jovem branco, dizem que já se tornou empresário, dono de um studio”. Há mulheres que estão há muito tempo no mercado de negócios que são empresárias e que já conhecem muito esse espaço de diversas dificuldades. Segundo pesquisa do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), pessoas pretas são a maioria entre os empreendedores brasileiros: 52%. Entretanto, desenvolvem atividades mais simples, como oficinas mecânicas, manicure, vendas de balas e doces, além de terem menor tempo de RE D E M O IN H O | 5


escolarização que empreendedores não negros. Com experiência em micro e pequenas empresas, a analista do Sebrae e fundadora do Afroempreendendo, de Salvador (BA), Fau Ferreira, afirma que os empreendedores negros enfrentam dificuldades que afetam na vida financeira. “Tudo isso interfere diretamente no faturamento dos nossos negócios. Segundo a pesquisa do Sebrae, faturamos em média 50% a menos que negócios de empreendedores brancos. Outra grande dificuldade é o acesso ao crédito. Temos mais dificuldade de ter o crédito aprovado em bancos e sabemos que dificilmente um negócio consegue crescer sem capital para investimento”, esclarece. Daniela Estevam, formada em Administração, acredita que as maiores dificuldades são de acesso a crédito e oportunidade. Mas acrescenta: “Além disso, há uma ausência de políticas públicas efetivas. Isso acontece por falta de representatividade nos espaços de poder 6 | REDEMOI NHO

e decisão. E mais: sabemos que existem uma negação da existência do racismo e do preconceito e desconhecimento da própria população dos seus direitos, oportunidades e acessos”. O desafio é ainda maior quando a mulher preta resolve empreender em espaços considerados dos brancos, como gastronomia e moda. Fernanda Pimenta resolveu encará-lo e é uma das responsáveis pela loja Boom Alternativa. “Acho que a maior dificuldade não é ser empresária, mas ser uma mulher negra em meio a um espaço que sempre foi elitizado e colocado como um não espaço para meu corpo negro. A dificuldade é ter esse processo psicológico de não me deixar levar pelas feridas e pelo retrocesso do nosso país em relação ao racismo”, afirma. Já Cynthia de Oliveira, uma das proprietárias da confeitaria Delícias da Nega BSB, lembra a dificuldade de acesso da população preta a faculdades de gastronomia. “Os confeiteiros mais famosos são todos brancos. Penso que seja

Fernanda Pimenta, responsável pela loja Boom Alternativa

devido ao altíssimo custo das boas faculdades de gastronomia a que a população negra não consegue ter acesso. Então, hoje com a popularização pela internet, a maioria faz como nós: assiste a vídeos no YouTube, paga cursos on-line e vão se Arquivo pessoal

Alex Nemo Hanse/Unsplash

As mulheres, além do racismo, precisam enfrentar o machismo, ainda muito presente na sociedade

“Acho que a maior dificuldade não é ser empresária, mas ser uma mulher negra em meio a um espaço que sempre foi elitizado e sempre foi colocado como um não espaço para meu corpo negro, quanto mulher negra”

A fundadora do Afroempreendo, Fau Ferreira, fortalece os negócios de pessoas pretas, auxiliando e promovendo o acesso a conteúdo empreendedores


Arquivo pessoal

“Quando olham para um homem e mulher negra dizem que temos um salãozinho, mas quando é um jovem branco dizem como ele é novo e já se tornou empresário, dono de um studio” Tânia Moreira, proprietária do Under Family Studio

profissionalizando como podem, para que um dia consigam ter acessos a outros cursos mais renomados”, explica.

Apoio aos afroempreendedores

Para auxiliar os afroempreendedores no enfrentamento dessas barreiras, há redes de apoio de organizações e startups. Alguns exemplos são: AfroHub, PretaHub, Empregueafro, Banco Afro, Instituto Ponto Chic, Afroricas, Afrotik, Afronte Bsb. Estas iniciativas ajudam com oportunidades de negócio e acesso a crédito, gerando empregos, disseminando a cultura afro, criando representatividade, oportunizam autonomia econômica, empoderamento e independência, tanto financeira como emocional. O Afroempreendo auxilia e promove acesso à educação empresarial, com cursos, oficinas e palestras, além de promover o compartilhamento de conteúdo nas redes sociais. O apoio é fundamental, especialmente para quem está começando. “O Afroempreendendo

A proprietária do Under Family Studio, Tânia Moreira, conta que é difícil ser mulher negra e empresária, mas apesar das dificuldades, ela resiste e mantém o seu negócio

promove o acesso aos conhecimentos necessários para o desenvolvimento dos negócios e do próprio empreendedor”, resume Fau Ferreira. Fernanda Pimenta apoia iniciativas assim. “O empreendedorismo negro tem tido diversas formas de apoio. Digo isso porque já participei de algumas oficinas e de algumas formativas para auxiliar no empreendedorismo negro. Há mulheres que estão há muito tempo no mercado de negócios que são empresárias e que já conhecem muito esse espaço de diversas dificuldades”, avalia. Fau Ferreira constata que a mulher negra está na base da pirâmide social, elas que sustentam o país, mas são as que mais sofrem violência doméstica e mais têm crédito negado nos bancos. “Somos nós que lidamos com uma sociedade que nos estereotipa e, com um racismo muito cruel, diz que não é possível estarmos em local de destaque”. A trancista Debora Capistrano reconhece os obstáculos, mas não

desiste. “Além de negra, também sou mulher, os desafios são maiores, porém, temos conquistado nosso espaço com o nosso talento e com a nossa busca pelo conhecimento. Infelizmente, nós, empreendedoras pretas, precisamos provar para a mídia e para a sociedade a nossa capacidade de gerir um negócio”, diz. Adriana Lima, proprietária das marcas Sacoleiros de Luxo e Atêlie Adriana Lima, avalia que é preciso trabalhar a confiança. “Nunca fui a uma entrevista de emprego achando que eu seria reprovada por ser mulher negra. Pelo contrário, acredito que a confiança é algo fundamental na construção profissional. Por isso, percebi o momento, senti que era hora de vestir a camisa do trabalho dos meus sonhos, fui em frente, fui empreender”, recorda a empresária.

Solucionando problemas

As afroempreendedoras sofrem diversos tipos de injustiças e precisam enfrentar muitas batalhas. Entretanto, há soluções RE D E M O IN H O | 7


Christina @ wocintechchat.com/Unsplash

Fau Ferreira, fundadora do Afroempreendo

Segundo o Sebrae, negros faturam em média 50% a menos que negócios de empreendedores brancos

podem fazer com que haja muitos ganhos e lucros. Debora Capistrano avalia que poderia ter mais exposições do conhecimento e da valorização da cultura negra, mais informações que vão além do que encontramos na internet, por exemplo. “Um conhecimento vindo diretamente das negras que realmente vivem a cultura

Para os brancos, a taxa de assassinatos é de 34 mortes para cada 100 mil habitantes, já entre os negros é de 98,5 a cada 100 mil habitantes (DataSus) No DF, 57,6% da população é negra (Codeplan)

Os negros recebem 39,4% a menos que os não negros (Codeplan)

33% das jovens negras entre 19 e 24 anos não têm ensino médio completo, já entre as brancas, o número é de 18,9% (IBGE) 53% dos micros e pequenos empreendedores nacionais são negros, mas este número corresponde a 75% dos 10% de cidadãos mais pobres do país e a 67% dos desempregados (Movimento Black Money)

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Arte: Miquéias Zuza

viáveis para essa situação. A principal delas depende muito da sociedade, que é deixar de lado o racismo estrutural. Além disso, o investimento em conhecimento e em políticas públicas também são formas de contribuir para o desenvolvimento dessas empreendedoras. O potencial de consumo, o tamanho do mercado, organizações inclusivas e a diversidade

“Somos nós que lidamos com uma sociedade que nos estereotipa e com um racismo muito cruel que diz que não é possível para nós estarmos em local de destaque na sociedade”

trará um pouco mais de igualdade. Assim não será preciso gritarmos para sermos vistos e ouvidos, pois a informação já estará bem exposta”, justifica a trancista. Já Fau Ferreira, do Afroempreendo, acrescenta que são as questões sociais mais básicas que atingem a população preta. “Enquanto não tivermos igualdade nas condições de vida, na saúde, na moradia e principalmente na educação, sofreremos preconceito em qualquer âmbito. São as questões sociais básicas que atingem preferencialmente a população negra e que precisam ser resolvidas para que tenhamos oportunidades iguais”, detalha. Por sua vez, Fernanda Pimenta, do ramo de moda, defende classificar o negócio como preto, pôr a essência e a cultura pretas no empreendimento. “A partir do momento que eu me entendo enquanto pessoa negra e crio o meu negócio pensado para pessoas negras, sob a estética e a valorização do produto negro, já é um engajamento e me coloco enquanto afroempreendedora”. Ser mulher e negra é ter de lidar com grandes desafios, ser rebaixada,


Arquivo pessoal

estar na base de uma sociedade cruel e preconceituosa. É ter de vencer uma luta que muitas já perderam tentando. Significa não desistir, persistir perante o retrocesso dos preconceitos presentes no Brasil. Agarrar a essência negra: é ter de gritar que mulheres pretas podem, sim, ser destaque social.

Mesmo estando em grande quantidade, pessoas pardas ainda enfrentam diversas dificuldades, a maioria causada pelo racismo.

“Um conhecimento vindo diretamente dos negros e negras que realmente vivem a cultura trará um pouco mais de igualdade em cada lugar, assim não será preciso gritarmos para sermos vistos e ouvidos, pois a informação já estará bem exposta”

O termo black money, ou dinheiro preto, surgiu nos Estados Unidos, por volta de 1989, quando os negros decidiram se organizar para fazer com que o dinheiro deles circulasse apenas entre os próprios negros. Eles tentavam fazer com que o dinheiro passasse diversas vezes por mãos negras, antes de ir para os brancos. Um estudo havia mostrado que no país o dinheiro negro circulava apenas 6 horas de um dia, enquanto em outras comunidades, como a asiática, chegava a 28 dias. Assim, o black money é a ideia de fazer o dinheiro circular nas mãos de pessoas pretas o maior número de vezes possível, por meio de produtos e serviços realizados de negros para negros.

MAS, POR QUE FALAR SOBRE ISSO? No Brasil, mesmo sendo a maioria entre os empreendedores, os negros possuem metade do faturamento dos brancos. Os afroempreendedores realizam atividades mais simples, além da dificuldade de crescer no mercado, principalmente pela falta de acesso a créditos bancários. Nesse contexto, o black money pode ser uma alternativa para mudar o quadro de desigualdade nos negócios e investimentos entre negros e brancos. A ideia é que eles possam fortalecer o povo preto por meio do empoderamento econômico, com serviços, funcionários e consumo. Ilustração: Freepik

Christina @ wocintechchat.com/Unsplash

A presença dos negros no setor do empreendedorismo no DF cresceu de 62,7% para 65,7%

PRECISAMOS FALAR SOBRE BLACK MONEY

Debora Capistrano, trancista autônoma RE D E M O IN H O | 9


Daniel Lacerda

E MPREENDEDORISMO

Glamour da quebrada

por: Lucas Batista 10 | REDEMOI NHO

Jovens e adultos da periferia elevam o patamar de qualidade do Distrito Federal com produções independentes, perfeição nos cortes, artistas internacionais e cozinheiro de ponta


Luan Oliveira

Marx, 49. Elas e eles provam o que pode acontecer quando um periférico sonha e age: pode conquistar, pode ser referência.

Referência afro

Tânia Sarah e Mateus Kili, mais conhecido como Barbeiro de Favela, são cabeleireiros conhecidos em Ceilândia, Distrito Federal. Amigos de longa data e especializados em cabelos afros, já tiveram empreendimento juntos, mas, no fim de 2019, decidiram expandir as marcas e trabalhar separadamente. Tânia é mais chegada nos cachos, trabalha com coloração, tratamento natural e corte. A profissão como cabeleireira foi se tornando realidade de acordo com as vivências da empreendedora. “Em 2012 passei pela transição capilar, quando parei de alisar meu cabelo e comecei a deixar natural, durante essa fase comecei a ter mais autoestima. Aprendi sobre empoderamento e queria de alguma forma passar isso para outras mulheres negras. A ideia é levar para periferia autoestima com preços acessíveis, além de debates e rodas de conversas”, diz.

A cabeleireira Tânia Sarah cresceu no ramo após fazer um curso de empreendedorismo social

Gabriel Cunha

“Não tem progresso sem acesso/ Pense no gueto e é isso que eu te peço/ A quebrada produz, e é de qualidade/ Em agradecimento faz a arte da realidade”. Seguindo os ensinamentos dos versos da cantora Marina Peralta, empreendedores, cozinheiros e artistas das periferias do Distrito Federal e Entorno conquistam cada vez mais reconhecimento na capital e até no Brasil, provando que a quebrada tem, sim, produção de qualidade. A falta de referências conhecidas na mídia faz com que grandes produções intelectuais, e com técnicas de alto padrão não sejam associadas à periferia. Não se espera que nas quebradas haja chefes de cozinha, atores e cineastas nas principais plataformas de streaming, empresários que trazem refinamentos em seus produtos, ou até vencedores nacionais. Quando se vê alguém da periferia conquistando, é possível sempre escutar uma história de luta ou de reinvenção. São histórias assim as de jovens como Tânia Sarah, 24, Mateus Kili, 27, Naysa Camelo, 20, e William Costa, 26, além dos já mais velhos Adirley Queirós, 50, e Karl

Já o Barbeiro de Favela teve um grande aliado para o empreendimento: ensaios fotográficos. Mateus conta que tudo surgiu a partir de uma parceria despretensiosa com o amigo e fotógrafo Gabriel Cunha. “Decidi fazer os ensaios porque meu trabalho já era massa, mas não tinha aquele impacto para quem via nas redes sociais. Eu e Gabriel fizemos o primeiro, com mulheres com cabelos raspados, deu certo e continuamos”. De acordo com o barbeiro, a parceria tem valido a pena: “É uma parceria perfeita, porque eu não mostro só meu trabalho, mostro a beleza, força, a foto, tudo que engloba”. Mateus avalia que chegou ao patamar de referência tanto pela qualidade de trabalho, quanto pela carência de barbeiros afros no Distrito Federal. “A galera de Brasília é carente. Então acaba que sou só eu para atender a toda uma galera de pretos que gosta de fazer uma parada massa no cabelo”, reflete.

Diferencial na moda

O Barbeiro de Favela fez sucesso com o ensaio mostrando cortes em mulheres carecas

Uma brincadeira de infância virou uma forma de renda para a empreendedora Naysa Camelo. A costureira costumava criar as roupas das bonecas, a partir das RE D E M O IN H O | 1 1


produzir calças para ter um diferencial na marca Trappo Company

instruções da mãe, também costureira. Naysa cresceu e evoluiu, passou a trabalhar com a máquina de costura, e o que era divertimento se tornou uma marca. Em menos de um ano, ela superou as expectativas que tinha ao lançar a Trappo Company. A costureira faz entregas no centro de Brasília, mas mora no Jardim Ingá, Entorno do DF, e também usou um ensaio fotográfico para impulsionar os negócios. “Quando se faz fotos profissionais, você consegue chamar mais atenção do público. Se eu tirasse as fotos com meu celular, com certeza teria vendas menores”. Além das fotos, a empreendedora contou com outro artifício: o diferencial da marca. “Eu percebi que muita gente estava lançando marcas de camiseta, se eu também fizesse isso, seria mais do mesmo. Por isso pensei no diferencial e decidi trabalhar apenas com calças”. Hoje a costureira tem no catálogo calças xadrez, refletivas – que refletem quando bate a luz – e coloridas em tactel.

Do chão ao fogão

O nome Karl Marx chama atenção por toda bagagem histórica do filósofo, sociólogo e revolucionário socialista alemão. Mas em Ceilândia, o Karl Marx é outro, um chef de cozinha, com história de luta, 12 | REDEMOI NHO

“Eu sou de Ceilândia, não abaixo minha cabeça para nada, e essa minha atitude chamou atenção de muitas pessoas que possibilitaram meu crescimento” Karl Marx, chef de cozinha Arquivo pessoal

Tamires Vitória

A moradora do Jardim Ingá Naysa Camelo decidiu

aprendizado e resiliência. Sempre curioso, Marx aproveitou o primeiro emprego no restaurante francês Maison de France, para aprender a base que utiliza até hoje. “Fui contratado para limpar o chão, mas eu andava com meu caderninho e ia anotando, o ajudante de cozinha me passava alguns ingredientes que o chef colocava e eu aprendia. Quando o chef ficava de folga, os cozinheiros me chamavam para participar, e fui vendo que tinha jeito. Até que o dono me viu, levei uma bronca, mas disse que aquilo não ia me impedir de aprender”, lembra. A atitude fez com que Karl ganhasse uma vaga na cozinha, mas com o mesmo salário. A dedicação o levou a seguir carreira mesmo após o fechamento do restaurante. “O dono decidiu seguir apenas com a sede no Rio de Janeiro e fechou a de Brasília. Mas ele gostou tanto do meu aprendizado que me indicou para um teste no Hotel Nacional”, conta. No hotel, Marx cresceu, se especializou e foi de auxiliar a subchefe, até que assumiu o cargo de chefe executivo por 10 anos. No local, fez cardápios para a posse do ex-presidente Lula, artistas do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, e atletas que passavam pela capital. Karl atribui parte do sucesso a um fator: ser ceilandense. “Eu sou de Ceilândia, não abaixo minha cabeça para nada, e essa minha atitude chamou atenção de muitas pessoas que possibilitaram meu crescimento”, explica. Hoje, o chefe de cozinha retribui o carinho pela cidade com comida boa. Na Praça da Bíblia, o point da alimentação é certo: a Tenda do Chef Karl Marx, onde se pode encontrar comida de grã-fino, mas na quebrada. “O pessoal de Ceilândia merece comida boa, mas com preço que eles podem pagar”.

Karl Marx iniciou a carreira na cozinha como auxiliar de serviços gerais, e conseguiu chegar ao cargo de chefe executivo do Hotel Nacional

Quebrada no streaming

O cineasta Adirley Queirós e o ator William Costa têm carreiras bem diferentes. O jovem William tem 26 anos, nunca fez faculdade e conheceu a arte na infância, e desde então não perdeu contato. “Minha mãe gostava muito de desenhar. Um dia mostrou as obras dela para mim e meus irmãos, e nós tentamos imitá-las. Também me desenvolvi nas


Felipe Duque

Arquivo pessoal

brincadeiras, a ausência de brinquedos caros na infância fez com que eu começasse a usar a imaginação para fazer de lápis de cor e potes de creme personagens em minhas brincadeiras. Muitas vezes pegava fios de cobre e fazia meus bonecos para brincar. Essa parte da minha vida é muito importante porque vejo que a arte sempre supria uma falta de algo. O que pra muitos era dado, eu tinha que fazer”, Morador de Samambaia, o ator William Costa tem lembra William. participações em séries na Globoplay e HBO Aos 50 anos, Adirley já passou por diversas profissões que não tinham popular e pela crítica. Desde então decidi ligação com a arte, quase foi jogador seguir carreira”, conta. de futebol profissional, e se encontrou Mesmo com trajetórias diferentes, no curso de cinema na Uninversidade as histórias dos dois têm semelhanças. de Brasília, onde se Ambos vêm de peri“Vejo que a arte formou. “Entrei para ferias, William de o cinema bem tarde, sempre supria uma Samambaia, Adirley aos 35 anos, e antes da Ceilândia, e atinfalta de algo. giram um ponto alto não tinha nenhuma no mercado audiovirelação com a arte. O que pra muitos era sual: entrar para um Fiz o curso mais para conhecer, mas dado, eu tinha que catálogo de streaming. na universidade fiz o O diretor de cinema fazer o meu” filme ‘O rap, canto da está pela segunda vez Ceilândia’, que foi meu William Costa, ator disponível na Netflix trabalho de formação com o filme “Branco e ganhei o Festival de Brasília do Cinema sai, preto fica”, e o ator está nas plataformas Brasileiro como melhor curta em júri Globoplay, interpretando o personagem Cleiton na série Segunda Chamada, e HBO, com o personagem Piolho em Pico da Neblina. Sempre que atinge uma conquista, William faz questão de lembrar sua origem para mostrar que a periferia também pode vencer. “É importante levar o nome do lugar onde você nasceu e cresceu para o Brasil inteiro. Quando um sobe e fala o lugar de onde veio é para que olhem para lá e vejam que neste local O cineasta Adirley Queirós venceu o Festival de não existe só um. Pelo contrário, lá tem Brasília do Cinema Brasileiro, uma das maiores um que teve sorte e é a sorte que, infelizpremiações do cinema nacional mente, o sistema não oferece para todos”.

RESSIGNIFICAÇÃO PERIFÉRICA Com a falta de acesso a cursos, muitas das referências das regiões administrativas do Distrito Federal são autodidatas, aprenderam com pais ou fizeram oficinas gratuitas. O programa Jovem de Expressão (JEX), por exemplo, realiza uma série de atividades relacionadas à produção cultural e empreendedorismo social em Ceilândia, o que pode dar um norte na carreira de muitos talentos. Desde 2007, o JEX atua como espaço de acolhimento e capacitação na Praça do Trabalhador, no centro da cidade. Criado pelo Instituto Caixa Seguradora, o projeto é fruto de uma pesquisa que demonstrou como a violência afeta a juventude periférica. Para mudar esse panorama, o programa trabalha estimulando o potencial criativo da juventude, oferecendo cursos, oficinas e equipamentos que ajudam a evidenciar a inteligência dos jovens da região. O JEX conta com apoio da Rede Urbana de Ações Socioculturais (Ruas) que realiza uma série de atividades como eventos culturais na mesma praça do Jovem de Expressão. Assim, o projeto oferece curso pré-vestibular, Fala Jovem, uma adaptação da terapia comunitária com objetivo de ouvir os integrantes do programa, o Sabadão Cultural, que compartilha cultura, arte e lazer, incentivando o protagonismo juvenil, e palestras e cursos que ensinam sobre produção cultural e empreendedorismo. O Jovem de Expressão também oferece atendimento psicológico e terapia holística gratuitamente no espaço, com o projeto Periferia Viva. Todas as atividades e divulgações de inscrições são compartilhadas no perfil @jovemdeexpressao.

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Pedro Ângelo Cantanhêde

S AÚ D E

Virando a noite Muito estudo, poucas horas de sono: como a rotina estudantil dos universitários pode prejudicar diversas áreas da vida e até deixar sequelas no longo prazo por: Pedro Ângelo Cantanhêde 14 | REDEMOI NHO

por: Ana Maria da Silva


São muitos os estímulos que o cérebro do jovem recebe ao longo do dia. Horas em frente ao computador na faculdade, mais horas durante o trabalho ou o estágio, além de longos estudos em casa. Durante os intervalos, redes sociais, jogos e séries no celular. E, não satisfeito, o jovem ainda leva o celular para a cama, a fim de “relaxar” antes de pegar no sono. Estes são alguns dos motivos que podem contribuir para o começo de dificuldades para dormir, que muitas vezes evoluem e se tornam crônicas. A psicóloga do sono Mônica Rocha Müller trabalha na área há quase 20 anos e explica que, entre seus pacientes de 18 a 26 anos, a patologia mais comum, se tratando do sono, é a insônia. “Nos jovens, nós costumamos observar uma privação intencional de sono, por conta não só de festas, mas principalmente pela dificuldade em controlar os estímulos no período da noite”. Por estímulos, vale traduzir: o celular, a televisão, o computador, o tablet. “Tudo interfere de uma maneira bastante negativa, que gera não só a insônia, mas uma irregularidade nos horários de dormir e de acordar”, resume. Ana Carolina Alves é formada em publicidade e atua como freelancer em direção de arte. Porém, nos seus anos de estudante, enfrentou problemas e dificuldades para dormir, tanto no colegial, quanto na faculdade. Tudo começou em 2015, quando ela estava no último ano do ensino médio. A jovem relata que esse foi um ano decisivo, já que precisava escolher o curso da faculdade e enfrentou outras questões: “A principal foi a separação dos meus pais. Este acontecimento foi traumático na época, e isso desencadeou estresse e ansiedade”.

Ao entrar na faculdade, Ana Carolina passou a ter, gradualmente, mais dificuldades em relação ao sono. “Minha mente ficava muito agitada com as coisas que eu estava vivendo. Eu tinha problema familiar, problema de relacionamento”, lembra. A ansiedade fez com que a universitária dormisse poucas horas, e muitas vezes fosse “virada” para a aula. “Eu não conseguia me concentrar de forma alguma durante as aulas, então minha aprendizagem não foi tão positiva”, admite.

“Faculdade, estudo e trabalho não prejudicam o sono. O problema é quando a pessoa não consegue estabelecer um limite para essas atividades” Mônica Müller, psicóloga do sono

A ajuda profissional que ela procurou foi de uma psicóloga, mas acabou largando após um mês de terapia. De medicamento, utilizou o fitoterápico Maracugina, que não precisa de receita médica para ser comprado. Ana Carolina conta que a pior consequência de seus problemas para dormir foi no trabalho de conclusão de curso, produzido entre 2018 e 2019. “Eu acredito que, pelo meu potencial, eu poderia ter feito algo muito maior e melhor. Mas foi uma época difícil”, finaliza. No ano de 2000, época em que a psicóloga Mônica se especializava em sono através de seu mestrado, essa área de atuação se enquadrava dentro da análise do comportamento. Foi apenas em 2017

que a primeira turma de psicólogos do sono do Brasil foi certificada pela Associação Brasileira do Sono (ABS). E Mônica fazia parte dessa turma. Hoje, ela é um nome de destaque dentro da Psicologia do Sono no Brasil, e é membro do Conselho de Psicologia do Sono da ABS. Ela conta que grande parte de seus pacientes é formada por universitários. E as rotinas vividas por esses estudantes, se não forem bem cronologicamente divididas, podem ser prejudiciais. “Faculdade, estudo e trabalho são muito importantes, eles não prejudicam o sono. Quem consegue fazer tudo isso com sucesso e com bom desempenho é uma pessoa que aparentemente está saudável e dormindo bem. O problema é quando a pessoa não consegue estabelecer um limite para essas atividades”, afirma. “Um jovem pode estudar bastante durante o dia, mas é fundamental que, mais ou menos uma hora antes do horário de dormir, ele pare de fazer todas essas atividades que são estimulantes, do ponto

INSÔNIA CRÔNICA A insônia crônica é classificada em quatro tipos: • Inicial: a dificuldade de iniciar o sono, ou seja, a demora para começar a dormir. • Manutenção: quando a pessoa desperta várias vezes durante a noite. • Terminal (ou despertar precoce): a pessoa acorda muito antes do horário planejado e não consegue voltar a dormir. • Sono não reparador: queixa de não se sentir descansado após acordar, mesmo com todas as horas necessárias dormidas. RE D E M O IN H O | 1 5


Valeriy Khan /Unsplash

Passar noites em claro se tornou parte da rotina de universitários

de vista cognitivo, que utilizam principalmente o computador e eletrônicos”, explica a psicóloga. Para um sono rápido e saudável, é importante essa preparação e desaceleração.

Medicação

Mônica conta que a maioria dos pacientes jovens já chega ao consultório medicada, pois buscou ajuda médica. “As pessoas não sabem que existe o psicólogo do sono, então, nós temos uma cultura que, em primeiríssimo lugar, se busca uma assistência médica, da qual uma das principais características é oferecer uma medicação que seja de alívio”. Segundo ela, isso pode ser evitado, embora, em alguns casos, o medicamento seja essencial. “Quando o paciente tem um nível de ansiedade muito elevado, é importante (a prescrição de medicamentos), inclusive para que o paciente se sinta mais tranquilo para seguir as orientações e intervenções”, detalha. Pesquisa realizada em 2014 por estudantes da Universidade Federal da Paraíba mostrou que 72,2% dos alunos de medicina da UFPB apresentavam qualidade de sono ruim e 81,6% tinham sonolência diurna grave. Os números variam para cada ano do curso, mas, até 16 | REDEMOI NHO

no mais baixo, o nível de má qualidade do sono continua em mais da metade dos estudantes. Victoria Brilhante está no segundo ano da graduação em medicina no Centro Universitário das Faculdades Associadas (UNIFAE), em São Paulo (SP). É justamente no segundo período que os estudantes têm um dos piores níveis de qualidade de sono, de acordo com a pesquisa da UFPB. A jovem conta que passa grande parte das noites em claro, estudando para provas, praticamente todas as semanas do período letivo. As consequências não são nada boas: “Passo o dia inteiro cansada, devagar, com péssimo rendimento. Cansada tanto fisicamente, quanto psicologicamente, como se tivesse um peso nas costas”. Além das consequências físicas e mentais, a falta de sono afeta a relação com outras pessoas. “Eu fico completamente antissocial, sem paciência para dialogar”, afirma Victoria. E, para piorar, uma noite acordada é “impossível repor, só acumula”.

“A insônia não é a falta de sono, e sim o excesso de vigília” Nonato Rodrigues, neurologista

O olhar da neurologia

O neurologista Nonato Delgado Rodrigues trabalha quase que exclusivamente com a medicina do sono há 25 anos. Ele conta que, entre os pacientes jovens e estudantes, um dos problemas mais comuns é a sonolência excessiva diurna, que surge quando eles estão em tarefas monótonas, diante do computador, escrevendo ou lendo. A causa, em geral, está nas noites não dormidas, quando o tempo é investido em estudo ou atividades acadêmicas. Um exemplo dessa situação tão comum é Ane Elise Valadão, estudante de arquitetura e urbanismo na Universidade de Brasília. Ela relata que passou

Qualidade do sono de acordo com o ano de graduação (medicina) PRIMEIRO ANO 71,19% dos estudantes apresentam sono ruim 28,81% apresentam sono bom

Segundo ano

Terceiro ano

74,24% 25,76% sono ruim sono bom

58,82% 42,18% sono ruim sono bom

Quarto ano 83,12% 16,88% sono ruim sono bom

Em internato 60,98% 39,02% sono ruim sono bom

Fonte: Aspectos relacionados à qualidade do sono em estudantes de medicina (Luiza Vieira Gomes Segundo, Bartolomeu Fragoso Cavalcanto Neto, Débora de Araújo Paes, Maurus Marques de Almeida Holanda), 2017


PRESSÃO ARTERIAL

Megan te Boekhorst/Unsplash

muitas noites sem dormir nas vésperas Se tratando de medicamentos, o de entrega de trabalhos. “Isso acontecia neurologista explica que os remédios mais ou menos uma vez na semana”, diz utilizados na maior parte dos transtornos de sono são apenas como “bengalas”, a jovem de 19 anos. Essas vigílias afetavam não só os apoios a serem aplicados a curto prazo. dias em que não havia dormido, mas “A insônia não é a falta de sono, e sim o também a qualidade dos trabalhos para excesso de vigília. E o remédio que faz os quais havia sacrificado a noite de sono. dormir não trata esse excesso. Ele vai “Gerou muito estresse, e como muitos tentar mexer na área do sono, que está trabalhos eram manuais, também afetava intrinsicamente normal”, explica. minha criatividade ou minha precisão, e Nonato Rodrigues conta que os aí eu tinha que refazê-los”, recorda. “O remédios são prescritos nos casos em sono é uma coisa que eu priorizo muito, que o paciente já está sofrendo há algum mas por conta disso, já entreguei trabalho tempo: “Para que ele possa suportar um pela metade, ou meio pouco mais facil“Eu fico malfeito, ou atrasado”. mente o tratamento Dr. Nonato, que de verdade”. No caso completamente é membro titular da da insônia, o tratamento sugerido por Academia Brasileira antissocial, sem de Neurologia e espeele é a terapia cognipaciência para cialista em transtornos tiva comportamental, de sono pela Associaque treina o paciente dialogar” ção Brasileira do Sono, a assumir o controle Victoria Brilhante, estudante de explica como noites sobre o dormir. Para medicina não dormidas podem o atraso de fase de trazer complicações à sono, muito comum saúde do estudante: a privação de sono entre os jovens que dormem e acordam ativa dois canais de estresse no sistema muito tarde, prescreve-se a melatonina, nervoso central, um agudo (em curto hormônio produzido durante à noite, prazo) e um crônico (em longo prazo). “O para ajudar a regular o sono e a vigília, agudo é a noradrenalina e a adrenalina, combinada com a luminoterapia, para que vão fazer com que o coração acelere reequilibrar a secreção desse hormônio. e com que a pressão suba. É uma resposta aguda ao estresse”, explica, a respeito das PRIVAÇÃO DE SONO consequências mais imediatas. É ativado, também, o eixo HPA, que LIBERAÇÃO DE libera uma quantidade aumentada de NORADRENALINA cortisol, o hormônio do estresse crônico. E CORTISOL ADRENALINA “Tanto o cortisol, quanto a adrenalina, vão ser responsáveis, no longo prazo, por LONGO PRAZO alterações metabólicas, diabetes, aumento CURTO PRAZO CORAÇÃO da pressão arterial e arritmias cardíacas”, ACELERADO completa. AUMENTO DA

Estímulos visuais, como computador e celular, podem causar dificuldades para dormir e levar à insônia

HIGIENE DO SONO “Higiene do sono” é um termo utilizado dentro de diversas esferas médicas e comportamentais para descrever o ato de dormir da melhor maneira possível. Para alcançar esse nível, especialistas recomendam algumas regras, como: • Quarto silencioso, escuro e com temperatura agradável; • Horário uniforme para se deitar e levantar, até mesmo nos fins de semana; • Não realizar exercícios que exijam muito do corpo imediatamente antes de deitar; • Evitar bebida alcoólica ou com cafeína imediatamente antes de deitar; • Evitar o uso do tabaco após o anoitecer; • Não utilizar aparelhos eletrônicos que emitem luzes próximo ao horário de dormir; • Evitar os cochilos diurnos. A higiene do sono deve ser uma prática diária. Mas é importante destacar que ela não deve substituir acompanhamentos e indicações de especialistas, quando necessário. RE D E M O IN H O | 1 7


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Busca incessante por beleza

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S AÚDE

A busca incansável pelo padrão de beleza feminino imposto pode gerar sérias consequências para a saúde física e mental

por: Mariana Fernandes

As mulheres estão quase sempre em busca de melhorar a aparência, e isso vem desde a infância. Tentar pertencer ou se encaixar dentro de um perfil que não é o seu, pode ser uma tentativa sem sucesso. A busca incessante pelo corpo ideal pode trazer sérias consequências. Antes da preocupação estética, a saúde deve ser prioridade. O padrão de beleza imposto pelo mercado pode ser considerado uma ditadura, que asfixia o prazer de viver, e prejudica a autoestima. Além de ser um gatilho para que muitas mulheres desenvolvam transtorno alimentar, ansiedade e depressão. Juliana Klein, 20, é uma das pessoas que sofreu por causa desse padrão. Ela desenvolveu a bulimia. Ainda na escola, ela se considerava diferente das outras meninas por causa do peso acima do que os outros consideravam o ideal. “Eu sempre era excluída dos grupos, era considerada a gordinha engraçada”. Ela diz que as pressões em casa também podem ter ajudado a desencadear o transtorno alimentar: “Quando eu era criança, pedi para minha mãe me colocar na aula de balé, e ela me disse que não era para mim, que balé era coisa de gente magra. Meu pai sempre se alimentou bem, e praticou exercícios, então me sentia pressionada para parecer com eles, e não me sentir tão diferente”. Juliana diz que, aos poucos, vomitar virou uma rotina. “Eu comecei a vomitar depois das refeições, duas ou três vezes nas primeiras semanas, depois passou a ser logo depois de comer. Já cheguei a vomitar 15 vezes por dia, doía muito. Eu sentia calafrios, tremor, suava”, recorda. O tratamento começou logo depois que o pai de Juliana descobriu, tanto com a medicina como com a psicologia. “Os episódios ocorrem uma vez ou outra,

ainda é difícil dizer se me aceito do jeito que sou. Mas hoje entendo que meu peso não tem relação com minha saúde, todos os meus exames estão ótimos, sou uma pessoa saudável”, afirma.

“Dentro de casa sempre teve pressão dos meus pais. Uma vez, quando eu era criança, pedi para minha mãe me colocar na aula de balé, e ela me disse que não era para mim, que balé era coisa de gente magra” Juliana Klein, jovem com transtorno alimentar

A psicóloga Keila Brito diz que o transtorno alimentar começa a partir de um gatilho – bullyng nas redes sociais, por exemplo –, e é preciso analisar cada caso, mas em geral a questão começa na adolescência. “Algumas pessoas têm a sensibilidade de saber que é um problema, e muitos são por querer ser aceitos por um grupo, por querer pertencer a um grupo em que, provavelmente, essa pessoa está inserida ou ela quer ser inserida, e isso acarreta um prejuízo na saúde mental e física muito grande”. RE D E M O IN H O | 1 9


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Busca por um padrão pode ser doloroso e frustrante 20 | REDEMOI NHO

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A profissional explica que transtornos como a bulimia podem atingir mulheres e homens, mas são mais frequentes nas meninas. Ha uma relação com a autoestima, que tem a ver com a relação da pessoa com o mundo. Neste cenário, se o corpo é a única forma de pertencer a algo, é como se a pessoa fosse reduzida a um único ponto. “A autoestima não nasce com a gente, ela é desenvolvida com o tempo. Crianças que não tiveram uma afirmação, pais tentando ajudar a construir isso, vai fragmentar. A nossa cultura de certa forma é uma cultura que invalida, então, nós vamos ter sim uma autoestima um pouco mais frágil. É necessário construir pilares para desenvolver uma autoestima menos enfraquecida”, constata. É preciso entender que cada corpo tem uma natureza, um perfil e tentar modificar isso sempre vai ser um processo doloroso. Keila sugere: “Evitar comparação ajuda muito, é preciso entender que o corpo mais cheinho tem um filogenia que o define, não adianta ter um biotipo com algumas curvas mais arredondadas e querer ficar esguia, slim, porque a característica não bate”.

Seguir a ditadura da beleza pode gerar transtornos mentais e alimentares

“Já sofri algumas vezes quando ia pegar trabalho e não me aceitavam por eu não ter um vão entre as pernas, porque as pernas são grossas e uma encosta na outra. E por ter um bumbum grande demais e chamar mais atenção que a roupa. Além disso, o meu tom de pele já incomodou algumas pessoas, por não ser clara” Gabriela Borges, Miss Distrito Federal 2019

Padrão de beleza

O belo pode gerar muitas dúvidas quando analisado por diferentes pessoas, há quem diga que beleza está nos olhos de quem vê. É uma ideia que oferece uma experiência de prazer e satisfação por meio dos sentidos. Mas o que podemos considerar como belo ou não? Pesquisa realizada com mais de 7 mil pessoas pela plataforma de comércio eletrônico Groupon, em cinco países da América Latina, mostrou que 89% das pessoas estão insatisfeitas com a estética do rosto ou do corpo. De acordo com a Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica (Isaps), o Brasil ultrapassou em 2018 os Estados Unidos no ranking de países que mais realizam cirurgias plásticas. Em 2018, foram realizados 1.498.327 procedimentos cirúrgicos estéticos no Brasil, contra 1.492.383 nos Estados Unidos. O maior incômodo está entre as mulheres. É o que mostra estudo da Sophia Minds, empresa especializada


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contra a corrente de padronizar. Cada rosto tem uma proporção, e algumas pessoas consideram uns mais bonitos que outros. Quando eu trato um paciente, eu tento fugir do padronizar. Quando essa padronização acontece, você dificulta o processo de embelezamento”. O dermatologista avalia que é preciso entender os motivos quando alguém busca um procedimento estético no consultório. “O papel do profissional é questionar se tal procedimento vai resolver o problema do paciente, porque, muitas vezes, isso pode ser uma fuga de algum outro ponto mal resolvido”, alerta. No consultório, de 20 pessoas atendidas por dia, 15 são para queixas estéticas. O procedimento mais procurado é a toxina botulínica, conhecida pelo nome comercial botox. Doutor André alerta que é preciso respeitar o limite de cada corpo. “Eu trabalho sem excessos, acredito que o natural é o verdadeiro belo. É uma mistura de bom senso com técnica”, completa.

Moda e ditadura

Miss Distrito Federal, Gabriela Borges no concurso Miss Brasil Be Emotion 2019

Seguir um padrão ou repetir um comportamento com base em outras pessoas, nem sempre é a melhor saída. De acordo com o médico André Moreira, membro da Sociedade Brasileira de Dermatologia, é preciso valorizar a beleza natural de cada pessoa. “Eu sempre fui

Para muita gente, a moda passa uma imagem de glamour, fama e sucesso. No entanto, para outras, os padrões estéticos estabelecidos podem funcionar como ditadura da beleza. A indústria da moda é uma referência para muitas mulheres que enxergam nas roupas, maquiagens, modelos, e procedimentos estéticos uma forma de se sentir bem. Por trás dos bastidores, o cenário nem sempre tem o glamour das capas de revista. Com as exigências de um perfil magro e alto, a cobrança e a pressão além de virem das agências e da indústria, surgem das próprias modelos, que, por vezes, sofrem com transtornos psíquicos e alimentares.

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em análises sobre o universo feminino. Depois de ouvir 3.500 mulheres de todas as regiões do país com idades entre 18 e 60 anos, a pesquisa mostrou que 92% delas se sentem incomodadas com alguma parte do corpo. Mulheres crescem ouvindo como devem se comportar, como manter o corpo em forma. Estão sempre sob influência de algum padrão, muitas vezes, difundido na TV, revistas, desfiles, redes sociais, publicidade e até por pessoas próximas.

A auto estima pode ser uma aliada para incentivar mulheres a saírem da ditadura

“A beleza é muito mais que só um corpo, evidentemente precisamos zelar pelo nosso templo, mas não é só casca, é preciso ser conteúdo. Não adianta ser um receptáculo de coisas vazias, e sim de coisas boas. Tem que ter profundidade no ser, sempre buscando evoluir, pessoas melhores consequentemente são mais belas” Bárbara Monteiro, Miss Brasil Plus Size 2011

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de rótulos” diz a Miss Brasil Plus Size, Bárbara Monteiro

A miss Distrito Federal 2019, Gabriela Borges, admite que os padrões da indústria podem gerar sofrimento. Ela recorda que se aceitava bem até os 17 anos, porque se comparava a pessoas comuns. “Quando me interessei pelo mundo da moda, e da beleza, eu comecei a ver outro tipo de corpo como corpo comum, um corpo mais magro, definido, que fosse mais alongado. Então, minha realidade se tornou outra, por um momento eu me senti pressionada e não me aceitava como eu era, porque eu queria ser igual às outras”. No backstage e nos camarins, o tratamento muitas vezes é inadequado e chega até a faltar comida e água. “A verdade é que você fica muito distante da família, amigos, e isso te deixa muito solitária. É uma profissão que, por detalhes, você é deixada de lado, ou não serve mais pra ser modelo. Não recebe bem, principalmente em alguns lugares no Brasil, e você precisa ter uma rede social bombada. 22 | REDEMOI NHO

“A autoestima não nasce com a gente, ela é desenvolvida com o tempo, e alguns teóricos defendem que a infância é o ponto crucial de desenvolvimento da autoestima. Crianças que não tiveram uma afirmação, pais tentando ajudar a construir isso, vai fragmentar” Keila Brito, psicóloga

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Arquivo pessoal

“Ser uma modelo plus size é ser uma modelo livre

Nos bastidores nós temos casos de estilistas que não querem dar comida ou água para a modelo não criar barriga para as fotos ou desfile, não entrar na roupa, ou a roupa ficar folgada, e maus-tratos da equipe”, comenta a modelo. Gabriela avalia que buscar um padrão inalcançável só traz dor e sofrimento, e defende a aceitação. “Eu sou feliz com meu corpo e me aceito hoje, antes não, porque me comparava com pessoas que são totalmente diferentes de mim, e hoje eu aprendi a achar bonito minhas curvas. A minha dica é parar de se comparar”. Um movimento que reage ao padrão imposto “magro e esbelto” é o chamado plus size, que abre espaço para corpos mais “cheinhos”. As modelos plus size estão ganhando mais espaço a cada dia, elas vêm com uma mensagem para todas as mulheres não terem vergonha do seu corpo, e imperfeições. A modelo e Miss Brasil Plus Size 2011, Bárbara Monteiro, avalia que descobrir o que é considerado como ideal por você é a chave para não se abater com as

Aceitar o seu corpo como é e não fazer comparações é um caminho para a autoestima


da forma que é. “Ser modelo plus size é ser uma modelo como qualquer outra, só que uma modelo mais livre de rótulos. Uma modelo natural, uma pessoa como qualquer outra, que veio mostrar para sociedade que podemos ser todos representados”, comemora. A moda está em constante evolução, e sempre disponível para atender o mercado e as mudanças que acontecem de acordo com cada estação. Os estilos se reinventam a cada dia, e o que é ultrapassado são os julgamentos, o padronizado, e a ideia de que somente um biotipo é considerado ideal. Ninguém é igual a ninguém, e os diversos formatos de corpo representam a diversidade do ser humano. O diferente é o que há de bonito em cada um. Se aceitar, se amar, e se cuidar, são as maneiras mais significativas para descrever o que é belo. Enquanto você não se aceita, o mundo não vai te aceitar, solte sua voz, seja verdadeira, seja você.

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críticas. “Nós precisamos encontrar um limite de bem-estar com nós mesmos, se cuidar. Eu me cuido, tenho 45 anos e sou saudável. Não devemos pensar nos extremos, nem ser magra demais, nem ser obesa. Precisamos encontrar o nosso melhor e nosso limite para estar bem”. O autoconhecimento e a aceitação pelo que você é te colocam em uma outra posição no mercado. “Nunca fiquei depressiva por querer ser magra, sempre tive uma boa relação com autoimagem. Acredito que isso está muito dentro da gente, da nossa mente. Então, não fico me comparando muito com outras pessoas, eu acho que quando você se compara com outras pessoas, isso faz ter uma cobrança maior sobre você. Eu acredito que cada um tem seu caminho, seu corpo, seu jeito e a gente tem que procurar adaptar nossa vida à gente e não aos outros”, comenta Bárbara. Ela avalia que o plus size conquistou espaço e mostra que qualquer mulher pode alcançar o que deseja, se aceitando

“Nós que não nos enquadramos no padrão ideal da moda, também queremos ser representadas, nos amamos e somos belas” Bárbara Monteiro, Miss Brasil Plus Size 2011

DICAS PARA ACEITAÇÃO O processo de aceitação pode ser uma tarefa muito difícil para algumas mulheres. Para isso a psicóloga Keila Brito dá oito dicas de como agir para driblar a sensação de não pertencimento a um padrão imposto pela sociedade: • Não querer alcançar uma realidade que não é a sua • Evitar comparações (principalmente nas redes sociais) • Desenvolver autoconhecimento • Fazer terapia e se autoquestionar • Buscar ajuda psiquiátrica • Desenvolver pilares (identificar os gatilhos que o levam as comparações) • Evitar as redes sociais em excesso • Desenvolver autoestima RE D E M O IN H O | 2 3


Annie Spratt/Unsplash

S AÚDE

Depois do câncer

por: Willian Rodrigues 24 | REDEMOI NHO

Para se restabelecer, recuperadas do câncer enfrentam barreiras invisíveis para a sociedade, principalmente no retorno ao trabalho


“Encontrei As demandas são diversas. “É Volta ao mercado o medo de deixar os filhos, Se a descoberta do pessoas a questão da autoestima, de câncer é traumatizante, perder o cabelo, de perder a que vivem o o retorno ao trabalho mama, são questões que atraapresenta-se como um mesmo dilema vessam a vida delas”, observa desafio, como conta Fernanda Gontijo, psicóloga que eu, que Luzeni. “Eu não podevoluntária da rede. Luzeni ria parar de trabalhar, foi atendida e faz parte da estão vivendo até porque o trabalho RFCC. “Encontrei pessoas funciona como uma a mesma que vivem o mesmo dilema terapia. Chegou a hora que eu, que estão vivendo de voltar, e eu fiquei me realidade” Luzeni Silva de Lima, preparando um mês a mesma realidade, entrei nesse grupo e fui me forta- técnica de enfermagem antes. Preparando meu lecendo”, recorda. psicológico. É como se O apoio da RFCC começa logo estivesse indo para o primeiro dia de aula. quando as atendidas iniciam o trata- Era ansiedade, era medo”. mento, que é agressivo. Para ajudar as A recepcionista Maria de Fátima mulheres, que muitas vezes se sentem Oliveira ainda cita um dos principais mutiladas devido à retirada das mamas, motivos de conflito entre empresas e a rede conta com diversos projetos funcionários nessa volta. “Você não tem para resgate da autoestima, associados disponibilidade igual antes. Você precisa à costura, ao artesanato e à produção ir numa consulta, fazer exame, fazer de perucas. Todos são ligados a um fisioterapia. Eu não tive tanto tempo. trabalho com psicólogas que atuam As empresas não são compreensivas na terapia em grupo. “Nós, psicólogas, (quanto) a isso, então, a dificuldade ajudamos as pacientes a ressignificarem maior é que você continua em trataesse momento”, detalha Fernanda. mento”. Ela faz parte de uma ONG de apoio a mulheres em tratamento do câncer, a Vencedoras Unidas. O paciente de câncer pode se afastar pelo INSS, conforme a necessidade, de acordo com o laudo do médico. Mas muitos optam por voltar ao trabalho devido às perdas financeiras geradas pelo auxílio doença da Previdência Social, que é menor em relação ao salário original. Além disso, é consenso entre as entrevistadas que a rotina de trabalho acaba se transformando em ferramenta terapêutica. Ainda assim, adaptações são necessárias, porque A blogueira Micheline Ramalho busca ser muitos pacientes não conseguem inspiração e dar visibilidade à luta contra o câncer desempenhar as funções como antes. Arquivo pessoal

Medo e apoio são palavras que surgem quando o assunto é o câncer. Medo da doença, do tratamento, de como a sociedade irá tratar aquele que passou pela doença e a venceu. Por outro lado, o tratamento sempre passa pelo apoio – dos médicos, da família, dos amigos. Segundo o Inca, Instituto Nacional do Câncer, a previsão é de que o Brasil tenha 625 mil novos casos no ano de 2020. Sendo assim, como ir além da doença? E quais iniciativas dão suporte para quem enfrentou o câncer? “Não foi fácil quando eu descobri. Eu tinha um ritmo de vida já delimitado. Você faz planos e de repente tudo muda, da noite para o dia”. Luzeni Silva de Lima, técnica em enfermagem, foi diagnosticada com câncer de mama em 2017. O Inca estima que no ano de 2020, quase 30% dos casos de câncer em mulheres serão nas mamas. A blogueira Micheline Ramalho enfrentou a doença e admite que a primeira sensação é muito difícil: “Foi um baque muito grande, o câncer. O primeiro contato que você tem te gera aquela sensação de morte”. De fato, a primeira impressão traz um impacto forte para o paciente. O Instituto Hospital de Base do Distrito Federal (IHBDF) conta com apoio psicológico para mulheres com a doença por meio da Rede Feminina de Combate ao Câncer de Brasília (RFCC) desde 1996. A instituição acolhe, informa, dá apoio emocional e material, motiva para o tratamento e integra a equipe médica para o melhor atendimento dos pacientes. Todo o trabalho realizado pela RFCC é voluntário. O apoio é fundamental na recuperação das pacientes, todas mulheres.

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“É necessária uma conexão forte entre a capacitação e a empregabilidade”

Arquivo pessoal

José Rogaciário dos Santos, presidente do Instituto Cooperforte

Luzeni durante o tratamento

voltou ao trabalho dois anos após o diagnóstico inicial. Há também o medo de ser demitido depois de um longo período ausente. Saaranh Souza do Lago, recepcionista, passou por isso. “Voltei, estava muito ansiosa, querendo trabalhar, muito tempo parada, um pouco lenta. Foi um tratamento muito barra pesada, mas eu fui pegando o ritmo. Logo voltei ao normal. Eu até pensei ‘poxa eu vou ficar aqui, daqui um tempo ela (a empresa) vai me mandar embora’. Lembro como hoje, o gerente responsável pela empresa falou para mim ‘não se preocupa, você sempre foi uma excelente funcionária’”, relata. Saaranh ficou pouco mais de dois anos afastada. Apesar das dificuldades, Maria de Fátima, Luzeni e Saaranh venceram o câncer e conseguiram voltar ao trabalho.

Já a blogueira Micheline Ramalho optou por outro caminho. Ela conciliava a paixão do trabalho nas redes sociais como influenciadora digital e um emprego convencional. “Trabalhava no Ministério da Educação antes de tudo isso acontecer. Eu tive que ser aposentada devido às complicações do tratamento. Não foi uma decisão minha, trabalhar só com as redes sociais. Eu fiquei muito triste, sabe, porque quando você fala ‘aposentadoria por invalidez’, bate aquele desespero. Só que eu quis dar a volta por cima. Mostrei nas minhas redes sociais o quanto eu tenho serventia pro mundo”, avalia. Ela viu nas redes sociais a oportunidade de gerar empoderamento para Arquivo pessoal

Outra psicóloga da RFCC, Ana Paula Fernandes, explica: “Muitos dos pacientes tem dificuldades para retornar. Alguns, devido à debilidade do tratamento, outros devido à necessidade de se ausentar do trabalho para consultas. Alguns pacientes conseguem aposentadoria. O retorno ao mercado de trabalho depende de como foi todo o tratamento. Alguns pacientes recebem alta do tratamento, mas não contam com tantas oportunidades de emprego”. As adaptações precisam ser consideradas para um retorno adequado, já que o tratamento prossegue em muitos casos. “Você não volta no mesmo ritmo. A sua mente não trabalha como antes, porque o tratamento deixa a gente um pouco mais lento”, relata Luzeni, que

Fátima encontrou apoio na ONG Vencedoras Unidas

Dados do Instituto Nacional de Câncer / Ministério da Saúde 26 | REDEMOI NHO


Rafael Nakaoka e Fernando Beagá/SORRI-BAURU

Rede Feminina de Combate ao Câncer de Brasília

O presidente do instituto, José Rogaciário dos Santos, avalia que é preciso não só valorizar a empregabilidade, mas promover transformação social. “Vamos atender uma necessidade de trabalho demandada por um mercado ou por uma localidade, mas as pessoas que ingressarem nos projetos, têm que ser envolvidos por uma capa de consciência crítica. A proposta do instituto sempre foi de revestir de técnica, do Mulheres da RFCC recebendo próteses mamárias desenvolvimento humano, do cuidado mulheres no meio da moda. “Tinha com o ser humano, da formação de uma pessoas que tinham passado pelo câncer consciência crítica para dar a ele uma e simplesmente se resguardaram, não nova visão de mundo”, detalha. quiseram mostrar que estavam com Entre os projetos apoiados pelo câncer. Eu falei, ‘gente, eu preciso instituto, estão os de capacitação em mudar isso’. Eu acredito “Alguns pacientes corte e costura, em muito em Deus, sabe, massoterapia e em eu acredito que a minha rotinas adminisrecebem alta cura veio para alcançar trativas. Todas as do tratamento, vidas e dar testemunhos”, atividades têm finaresume. Micheline conta mas não contam lidade de encurtar o com apoio de diversas caminho de volta ao com tantas marcas locais e nacionais mercado de trabalho e comemora: “Quando oportunidades de e atuar no empodeeu comecei o meu trataramento e melhoria mento, há 3 anos, eu da autoestima. “Não emprego” tinha 10 mil seguidores. Ana Paula Soares Fernandes, adianta se capacitar psicóloga da RFCC e não ter onde exerHoje, eu tenho 24 mil”. cer essa capacitação. Busca por emprego É necessária uma conexão forte entre As dificuldades do acesso ou retorno ao a capacitação e a empregabilidade”, trabalho motivaram instituições dispostas destaca o presidente. a trazer novas possibilidades. O Instituto No ano de 2019 foram 52 iniciatiCooperforte é uma dessas entidades que vas apoiados pelo Instituto Cooperforte, apoia e financia projetos sociais para capa- sendo um deles voltado para o apoio ao citar jovens, pessoas com deficiência e recuperado do câncer, em São Paulo. outros tipos de fragilidade social, como o Assim como o instituto e a RFCC, recuperado do câncer. O instituto é uma diversas organizações oferecem apoio organização social ligada a uma coopera- por meio de programas com funções tiva de crédito, a Cooperforte, criado há terapêutica e de capacitação. Vencer o 17 anos com foco em capacitação para o câncer é mais um passo de uma jornada que continua. mercado de trabalho.

José Rogaciário, presidente, discursa em um dos projetos apoiados pelo Instituto Cooperforte

FIQUE ATENTO Pessoas portadoras ou que tenham dependentes com câncer têm direito a sacar o FGTS. Podem ser efetuados saques enquanto houver saldo até o valor total. Para efetuar o saque na Caixa Econômica são necessárias as seguintes documentações: 1) Documento de identificação; 2) Carteira de Trabalho; 3) Número de inscrição PIS/PASEP/NIS; 4) Atestado médico com validade até 30 dias; 5) Laudo do exame laboratorial que serviu de base para elaboração do atestado médico; 6) Caso tenha cargo de diretor de empresa em fim de mandato, além da documentação acima, deve-se apresentar uma cópia autenticada das atas das assembleias que comprovem a eleição, eventuais reconduções e término do mandato; 7) No caso de ter dependente em situação de câncer, também é necessário o comprovante de dependência. RE D E M O IN H O | 2 7


Daniel Lacerda

C OMPORTAMENTO

Jovem é político, sim!

por: Maria Luiza Farias 28 | REDEMOI NHO

Pesquisa mostra que os jovens são o segmento com maior interesse em participar da política, seja disputando eleição ou assumindo cargos públicos


“A educação política deveria ser praticada pelos partidos políticos que recebem esses recursos pelo fundo partidário” Antônio Testa, cientista político

Afinal, o que é democracia?

Muito se fala em fazer democracia, exercer a democracia, progredir democraticamente, afinal, o termo democracia vem da junção, no grego, de demo (povo) e kratos (poder). É um sistema exercido pelo povo, tendo livre escolha dos seus governantes, voto, liberdade de expressão, respeito às minorias e equidade, e garantia de acesso à informação. Tudo isso é um conjunto de conceitos que precisa ser vivenciado na sociedade e é previsto na constituição, fazendo assim um país democrático. Na opinião do cientista político e sociólogo Antônio Testa, o sistema democrático e republicano é funcional. “Funciona, desde que as instituições cumpram suas missões organizacionais e ajam tecnicamente. Os órgãos de Estado devem agir tecnicamente. A política deve se restringir ao parlamento e órgãos conexos. Porém, o Brasil vive uma situação difícil porque o Estado está ideologicamente aparelhado em vários escalões’’, constata. Segundo o Datafolha, em 2020, apenas 62% dos brasileiros concordam que a democracia é a melhor forma de governo. Para 22%, tanto faz uma democracia ou uma ditadura e, para 12%,

em certas circunstâncias uma ditadura é melhor que um regime democrático. Comparando os dados do Datafolha com os do Latinobarômetro, de 2018, a maioria dos brasileiros acredita que a democracia é extremamente importante para o bem comum. Ainda em 2018 o Datafolha fez uma pesquisa e constatou que os jovens são o grupo com maior interesse em participar da política, seja disputando eleição ou assumindo cargo de governo. Organizações e movimentos são criados para entender, ajudar e combater esses altos índices da nossa política.

Mudanças jovens

Organizações e movimentos sociais têm o poder de influenciar nas mudanças graduais e constantes que a sociedade precisa, propondo soluções e melhorias. Neste cenário, a ONG Politize tem como missão formar uma nova geração de cidadãos atuantes e comprometidos com a democracia, por meio da educação política. Arquivo pessoal

Já dizia o filósofo Edmund Burke: “Um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la”. A frase, escrita no século XVIII, nos remete aos dias atuais, quando a polarização domina o cenário político brasileiro. As divergências presentes na sociedade a divide em extremos, e em grupos de direita ou de esquerda. A organização Latinobarômetro é responsável por uma pesquisa anual de opinião pública feita em países da América Latina. Os dados mais recentes, de 2018, mostram que 41% dos brasileiros acreditam que tanto faz viver ou não em uma democracia, sendo o 2º pior resultado entre os países. Cerca de 25% dos brasileiros deixaram de acreditar que a democracia é o melhor sistema de governo em apenas 5 anos. A descrença na política e no sistema governamental acontece e se perpetua, com agravamento a cada 4 anos, justamente quando acontecem eleições para os principais cargos eletivos do país, presidente, governador, senador, deputado federal, deputado estadual e deputado distrital. A confiança no sistema e nos governantes só piora graças à corrupção e fraudes no poder e mesmo entre os partidos políticos. Segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), 31,3% dos brasileiros não compareceram para votar em 2018. Essa é a maior soma de votos em branco e nulos registrados desde 1989. Fomos instituídos em uma república no ano de 1889 por Marechal Deodoro da Fonseca, o primeiro presidente do Brasil. Somente em 1945, após o Estado Novo de Getúlio Vargas, o Brasil teve a sua primeira experiência democrática real. Foi também a primeira vez que as mulheres votaram para presidente democraticamente.

Gabriella Prado mobilizadora do grupo Politize em Brasília RE D E M O IN H O | 2 9


A instituição foi criada em 2014 por plural e apartidária, levando a educação Diego Calegari na esteira das manifesta- política para todas as pessoas em todos ções de rua que aconteceram em todo o os lugares’’. Na opinião da jovem, o projeto Brasil em 2013. Diego percebeu o interesse do público jovem se manifestando significa esperança. “Para mim, é a espepela primeira ativamente. Diego notou o rança em um futuro em que os jovens grande interesse dos jovens pela política, conheçam e entendam o seu papel na mas percebeu que faltava informação política, para que nosso país seja cada qualificada. vez menos desigual. É importante que as A ONG tem pessoas tenham acesso “É uma rede que e conhecimento sobre como princípio levar o conhecimento sobre educação política, para se dedica única política de forma mim o Politize repree exclusivamente senta uma esperança apartidária, fácil, e para todas as pessoas para o futuro”, conta a propagar a por meio da interMariana. net. Hoje, a iniciativa Ao total a instituieducação política está presente em 127 ção tem 26 embaixadas e proteger a municípios, com 26 espalhadas por 14 estados mais o Distrito embaixadas espademocracia’’ lhadas pelas cidades Federal. Gabriella Prado, brasileiras. O projeto Gabriella Prado, mobilizadora do 25, é mobilizadora do Politize consegue alcançar grupo em Brasília e quase 25 milhões de lembra ter buscado se usuários pelo portal politize.com.br. informar mais depois das eleições de Na opinião do cientista Antônio 2018. “Estava extremamente cansada e Testa, a educação política começa na frustrada depois das eleições de 2018, escola: “Na educação formal a educa- e me sentia sozinha por não torcer por ção política deveria ser cidadã, isenta nenhum dos lados, sempre gostei de de tendências políticas. Deveria formar debater sobre política. Entrei no Politize cidadãos, direitos e deveres. Se esse fosse por eles tratarem de forma apartidária, o foco seria possível ter uma sociedade levando conhecimento e informação para as pessoas”, diz. mais harmoniosa e racional’’. Mariana Fernandes, 24, é responsável pela comunicação do Politize e explica Direita x esquerda como o grupo atua. “O Politize existe para Na opinião do antropólogo Cláudio que a democracia na política faça parte Ferreira, a polarização entre as ideias de da rotina dos jovens. Acreditamos que o direita e de esquerda começou na Revopreparo para democracia e para a polí- lução Francesa, no século XVIII, e foi tica é o que há de mais democrático no consolidada ao longo do século XX com Brasil. Levamos conteúdos e experiência a divisão do mundo em dois blocos, o de qualidade para as pessoas entende- socialista, liderado pela União Soviética, rem sobre política, buscando passar uma e o capitalista, com os Estados Unidos mensagem de uma forma descomplicada, à frente. 30 | REDEMOI NHO

“A população não superou essa ideia e estamos muito arraigados a esses termos. A tradição ocidental é pautada numa religião que trabalha com a ideia do bem e mal, tendo uma tradição muito forte dentro do maniqueísmo e do cristianismo e isso foi levado para a integração do cotidiano. A partir disso as ideias são construídas dentro desses discursos políticos”, explica o antropólogo. Em termos históricos, no Brasil essa divisão se intensificou na ditadura militar iniciada em 1964: os considerados de direita apoiavam o golpe e os de esquerda, defendia o regime socialista baseado nos ideais de Karl Marx. Porém, com passar do tempo e a mudança cotidiana na


Arquivo pessoal

O publicitário Victor Marques defende o movimento Roda de Homens Negros em entrevista à TV Brasil

de várias profissões, como o jornalismo e a docência, só é possível por meio da democracia”. O Brasil ficou em 50º lugar no ranking das democracias do mundo, segundo a pesquisa feita pela Democracy Index publicado pela Unidade de Inteligência do The Economist. O antropólogo Cláudio Ferreira diz que, enquanto pesquisador e professor, nunca tinha notado a população tão engajada e envolvida com os debates políticos como agora. “O processo democrático vai depender muito da atuação dos jovens, da conscientização e da participação e do engajamento juvenil”, resume. Andressa Morais/Arquivo pessoal

Arquivo pessoal

política outras divisões foram mente para qualquer “O jovem é criadas e a forma de identificadebate, e sabemos que fundamental ção é livre e individual. a política é feita de O termo ‘’direita’’ reprepara entender debates sobre diversenta um posicionamento sos assuntos. Acredito a importância político, partidário e ideolófielmente que a demogico. O posicionamento de da democracia cracia é o melhor direita é marcado por caracsistema de governo, terísticas mais conservadoras e da luta pela mesmo que isso em relação aos aspectos sociais possa servir de base liberdade e do governo. Defende também para algumas atitudes que o poder do Estado seja igualdade no “antidemocráticas”. O termo limitado sobre o funcionaBrasil” mento e regulamentação dos ‘’esquerda’’ é usado setores da sociedade e apoia para denominar um Luiza Almeida, professora o livre mercado, com menos posicionamento políregulação e participação estatal. tico, partidário e ideológico que tem como Rafael Emery, 22, formado em principal objetivo a defesa de interesses de ciências políticas, tem ideais de direita grupos sociais e de igualitarismo. Significa e conta que é importante a participação que concorda e compactua com os posida população nas principais decisões cionamentos ideológicos deste espectro do país: ‘’Sou conservador, acredito na político, que defende uma atuação mais preservação dos costumes e valores que intensa do Estado em defesa da sociedade. O publicitário Victor Marques, a humanidade conservou até a consolidação da sociedade civilizada, baseada 33, faz parte do grupo social e político no ocidente cristão”. Roda de Homens Negros em Brasília, que aborda diversos temas políticos, sociais e da consciência negra. Ele tem visões políticas alinhadas com a esquerda. “O melhor sistema que temos hoje é a democracia, mas acredito que ainda pode ser melhorada. Me preocupa a ascensão da extrema direita aqui no Brasil e no mundo inteiro, pautas conservadoras que podem pôr em risco anos de conquista dos movimentos sociais”, relata. A professora Luiza Almeida,40, é ativista do Rosas pela Democracia e também se considera de esquerda. Acima Rafael Emery participou das manifestações em de tudo, ela defende a democracia: “Ela favor do presidente Bolsonaro nos permite denunciar as coisas que estão O técnico em informática Weudes erradas e a resistir e defender nossos direiSantos, 26, se considera de direita, sem tos enquanto cidadãos. A liberdade de extremismo. “Extremismo fecha sua expressão, tão elementar ao exercício

Luíza Almeida defende a educação política como a chave de mudança RE D E M O IN H O | 3 1


Alexandre Salomão

C OMPORTAMENTO

Diversão, arte, saúde A prática de rodar bambolê invade ruas, festivais e academias no Brasil desde 1950, além de se misturar com outras vertentes como yoga e pilates

por: Catarina Loiola 32 | REDEMOI NHO


Bambolear. Seja em palcos circenses, em festivais musicais, praças públicas, academias ou no quintal de casa, a palavra tem apenas um significado: balançar o corpo e os quadris em diferentes ângulos. Criado há três mil anos, o bambolê serve exatamente para mexer-se conforme a ginga e a vontade de cada um. A popularização do objeto começou em 1958, nos Estados Unidos, quando o brinquedo foi batizado de hula hoop e mais de 25 milhões de unidades, feitas de plástico, foram vendidas em apenas quatro meses pela loja estadunidense Wham-O. A aposentada Cecília Abreu, 79, Rio de Janeiro (RJ), viveu parte da explosão do bambolê no fim dos anos 50. “Na minha adolescência era uma febre. Aparecia sempre na televisão e as pessoas andavam para todo lado com o bambolê pendurado no ombro. Todo adolescente queria ter um, era fashion”, lembra. No entanto, a aposentada afirma que era incomum encontrar rapazes praticando. “Naquele tempo era considerado coisa de mulher que queria se exibir, então, de jeito nenhum homem podia usar. Também diziam que bambolê era indecente para moça direita e que suar não fazia bem”. Aos poucos, a aposentada conta que a onda do bambolê foi diminuindo nas ruas. O objeto voltou à vida de Cecília quando a filha começou a utilizá-lo como ocupação profissional. “No início, eu achava uma loucura trabalhar com aquilo. Mas sempre estimulei. Já com três anos ela brincava com bambolê”, completa. Depois de adulta, a prática de bambolear voltou à rotina de Cecília, que, durante a quarentena causada pela Covid-19, passou a rodar o bambolê para exercitar a coluna. A filha de Cecília é a bambolista profissional Pitila Hossmann, 43, Recife (PE). “Em 2010, o bambolê começou

a surgir como cultura urbana e tomei conhecimento do movimento hooping, em que jovens levavam os bambolês para festivais de música e festas. Isso tava criando uma comunidade”, conta Pitila. A partir de 2011, ela começou a dar aulas e depois a fabricar o instrumento, em sua loja Bambolê Arte. O movimento bambolista no Brasil foi crescendo a partir de 2008, com a criação de companhias e grupos profissionais. Em 2010, surgiu o grupo Movimento BamBamBam, criado no Facebook, uma comunidade virtual para os praticantes de todo o país. Em 2011, o nome mudou para Bambolê Brasil, hoje são mais de 3,9 mil integrantes. A consolidação do movimento ocorreu em 2012, com o 1º Dia Mundial do Bambolê, em Santa Catarina, em formato de retiro, com aulas e rodas de conversa. A 6° edição teria ocorrido em maio de 2020, em Goiás, mas foi adiada para outubro devido à pandemia do novo coronavírus.

“Na minha adolescência era uma febre. Aparecia sempre na televisão e as pessoas andavam para todo lado com o bambolê pendurado no ombro. Todo adolescente queria ter um, era fashion” Cecília Abreu, aposentada

De acordo com Pitila, a adesão ao bambolê tem aumentado muito nos últimos cinco anos. “No mercado bambolista tivemos altos e baixos entre 2012 e 2014, mas, do ponto de vista geral, está sempre crescendo e ainda pode crescer mais”, explica. “Hoje em dia tem várias pessoas trabalhando com isso no Brasil todo, e mesmo assim não temos concorrência direta, trabalhamos muito em parceira pra popularizar o bambolê de qualidade”. No grupo Bambolê Brasil há um arquivo com nomes de fabricantes do equipamento de várias localidades do país e no exterior. O grupo no Facebook foi inspirado no blog Movimento BamBamBam!, disponível na internet desde 2006. A criadora é a podcaster e empreendedora Mariana Bandarra, 39, Porto Alegre (RS). Ela conheceu o bambolê naquele mesmo ano, a partir do filme “The cost of living” (“O custo de viver”, em tradução livre), junto com a amiga Vera Carvalho. Mariana ficou encantada com o bambolê e decidiu criar o próprio. “Criei o blog como sinal de fumaça, porque pensei que deveria ter outras pessoas usando. Não o atualizo desde 2014 e mesmo assim ele é um documento histórico da internet”, constata. Pouco depois de aprender a criar bambolê, Mariana chamou um amigo para praticar na praça do bairro, evento considerado por ela como o primeiro encontro de bambolês. “Aquilo se tornou uma coisa terapêutica e foi algo que me conectou com meu corpo”.

Fabricação

Os melhores materiais para o bambolê são o propietileno e o polietileno, que oferecem maior resistência e durabilidade. No entanto, também é possível fabricar com mangueiras de água, encontradas em lojas RE D E M O IN H O | 3 3


Arquivo pessoal

Joyce e Julia ensaiam semanalmente e se apresentam em festivais de música

“Hoje em dia tem várias pessoas trabalhando com bambolê no Brasil todo, e mesmo assim não temos concorrência direta, trabalhamos muito em parceira pra popularizar o bambolê de qualidade” Pitila Hossmann, bambolista e instrutora de Hoop Yogini

eletrônica de Brasília

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fora, para acalmar a mente em situações estressantes”, afirma. No Hoop Yogini, o bambolê atua como um acessório, servindo para exercícios de força, de alongamento e de meditação ativa. O aro também é acessório no Hoopilates, técnica pioneira no Brasil, desenvolvida em 2009 pela artista de circo e teatro Vera Carvalho, 45, Porto Alegre, formada em pilates e praticante precursora do bambolê profissional no país junto com Mariana Bandarra. “O Hoopilates mexe com todas as musculaturas. O foco é no corpo de cada pessoa e na experiência dela”, afirma Vera. A primeira aula completa da prática aconteceu em 2015, no 3º Encontro Bambolê Brasil, em São Paulo (SP). Arquivo pessoal

de materiais de construção. Desde 2012, Camila Rocha, 39, Rio de Janeiro, produz bambolês com o objetivo de ampliar a prática para todas as idades, em sua loja Hoop Rio. “No início, tínhamos que trazer material importado, mas mais caro e demorava quase um mês para chegar. Hoje em dia temos o material disponível nacionalmente”, detalha. A confecção funciona sob demanda, de acordo com os gostos e intenções do solicitante. Camila, integrante do movimento bambolista desde 2010, acredita que a dificuldade de adesão dos adultos vem da memória de não saber rodar quando criança, já que os aros infantis são menores e mais leves. Segundo ela, quanto maior e mais pesado, mais fácil é rodar. “A minha relação com o bambolê tem muito a ver com essas pessoas, que ainda não descobriram que podem praticar também”, conta Camila, que se apresenta com o instrumento em eventos, oficinas e no bloco de carnaval carioca Mulheres Rodadas. O bambolê se soma a outras práticas. A junção dele com o yoga recebe o nome de Hoop Yogini, que é a integração do bambolear, hatha yoga e meditação mindfulness. A bambolista Pitila é a primeira e única Instrutora Certificada de Hoop Yogini no país. “A aula ainda está em crescimento no Brasil, e tem procura mais no meio do bambolê do que no movimento do yoga”, conta Pitila. Ao redor do mundo, são entre 150 e 200 instrutores de Hoop Yogini, formados ou em treinamento. Aulas para novos adeptos ou futuros professores podem ser encontradas no site hoopyogini.com. Jocelyn Gordon, 46, Nova Iorque (EUA), foi quem idealizou a prática, em 2014, quando passou por um processo de redescobrimento e de mudanças. “O objetivo principal é se conectar com seu eu maior e lidar melhor com o caos que existe

Bárbara é conhecida nacionalmente por misturar a dança com o bambolê a outros elementos, como tintas e o próprio cenário


Monica Imbuzeiro/O Globo

Arquivo pessoal

Pitila usa bambolê desde os três anos, conforme

Pitila leciona aulas de bambolê e de Hoop Yogini semanalmente, presencial em Recife ou por

recordação da mãe, Cecilia

chamada de vídeo

Saracura do Brejo, palhaço

Rebolado

Depois da popularização do modelo de plástico na década de 50, o bambolê voltou a ser febre nos anos 90, quando começou a ser usado em festas e raves, em versões com LED e fogo. A cantora e compositora Silvia Machete é conhecida por rodar bambolês em seus shows, enquanto canta e dança. Em 1997, o grupo É o Tchan lançou a música e o brinquedo Bambotchan, sobre a dança com o aro. Foi também nos anos 90 que se começou a comemorar o Dia Mundial do Monica Imbuzeiro/O Globo

“No circo contemporâneo o bambolê é praticado sempre por mulheres, pela contorcionista, sempre sendo um número virtuoso e explorador do corpo. Quando comecei a praticar, depois da infância, quis fazer o contrário ao número tradicional”

Registro do primeiro encontro de bambolê realizado por Mariana e um amigo, em uma praça pública de Porto Alegre

Bambolê, 11 de novembro, com o intuito de incentivar o uso. No Brasil, a artista circense especializada em bambolês Bárbara Francesquine, 32, São Paulo, foi uma das primeiras a utilizar o aro em festivais, em 2008. Atualmente, ela une o bambolê aos malabares e outras habilidades do circo. “Hoje em dia, tenho muito mais técnica do que antes. Os números que faço são muito mais virtuosos. Me dedico a criações em que eu comunico alguma verdade minha ao mundo”, explica a artista, que integra o cenário e o público em suas apresentações. Referência no meio, Bárbara considera que bambolear não é rebolado, como se diz popularmente. Para ela, é questão de impulso, que pode ser frontal, lateral ou redondo. “O bambolê se desdobrou em inúmeras possibilidades, que vão desde giros pelo corpo, na cintura, pescoço ou cotovelo, até muita coisa de manipulação, de mão, malabares, jogar para cima”, comenta Bárbara, que ensina bambolê presencialmente ou a distância. RE D E M O IN H O | 3 5


H I S T Ó R I A

Arquivo pessaol

A

D O

BAMBOLÊ

3000 A.C

Crianças e adultos egípcios brincavam com bambolês feitos de parreiras secas

SÉCULO XV O bambolê é banido da Inglaterra sob acusação de causar ataques cardíacos e problemas de coluna

Em 2012, bambolistas de todo o Brasil se reuniram em Santa Catarina, no 1º Dia Mundial do Bambolê

ANOS 1950 Richard Knerr e Arthur Melin lançaram o bambolê de plástico. Em um ano no mercado, mais de 100 milhões de unidades foram vendidas

ANOS 1960 A popularidade do bambolê diminuiu entre jovens e adultos, mas se manteve entre as crianças

ANOS 1990

ANOS 2000

Era comum encontrar bambolês em parques e festivais. No Brasil, o grupo É o Tchan lançou a música Bambotchan

O bambolê invade academias no mundo inteiro e é reconhecido como instrumento fitness Fonte: Blog BamBamBam!

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Em 2020, Bárbara Francesquine organizou as primeiras três edições do Festival Virtual e Internacional de Bambolês, com caráter social e sem apoio financeiro.

Sem preconceito

Além da presunção de que rodar bambolê é rebolar, existe a crença de que é “coisa de mulher”. Focado em acabar com este preconceito, o palhaço e malabarista Saracura do Brejo, 35, Goiás (GO), se apresenta no meio circense com uma sátira: “No circo contemporâneo o bambolê é praticado sempre por mulheres, pela contorcionista, sempre sendo um número virtuoso e explorador do corpo. Quando comecei a praticar, depois da infância, quis fazer o contrário ao número tradicional”. Os elementos da crítica sexista são principalmente o uso de paetê, franjas, e do próprio contorcionismo. “Tudo na linguagem do palhaço, uma forma de falar sobre igualdade de gênero sem ser muito militudo”, completa Saracura. “Criei um estilo de movimentação que envolve todo o corpo com gestos ridículos, porque fazer rir é se colocar ao ridículo”. Saracura é o principal organizador do encontro de bambolês este ano, em Goiás. Como Saracura e Bárbara, outros artistas utilizam o bambolê para passar uma mensagem. É o caso de Joyce Luz e Julia Mendonça, 23 e 21, Brasília (DF), que criaram a Yuna Performance. A dupla tem o objetivo de promover a arte dentro da psycotrance, com foco em mulheres. “A gente se apresenta em festas e festivais, tudo que possa envolver a arte”, explica Joyce, que também é professora de bambolê e dona da loja Luz Bambolês. As apresentações da dupla são coreografadas com base em estilos de música, por meio de passos simultâneos para entrar no ritmo.


circense e faz sátira ao preconceito com o uso masculino

Joyce acredita que a cena cultural de Brasília relacionada com bambolês está em crescimento. Assim como ela, outros fabricantes do Distrito Federal comercializam bambolês em lojas físicas e virtuais. No Instagram, a hashtag #bambolebrasilia acumula mais de 100 publicações. Porém, na visão de Miguel Galvão, idealizador

“O bambolê se desdobrou em inúmeras possibilidades, que vão desde giros pelo corpo, na cintura, pescoço ou cotovelo, até muita coisa de manipulação, de mão, malabares, jogar para cima” Arquivo pessaol

Arquivo pessaol

Bárbara Francesquine, bambolista

Com referências internacionais, Vera é a única no

Jocelyn Gordon criou o Hoop Yogini em 2014 e

Brasil a lecionar o Hoopilates

capacitou mais de 150 instrutores por todo o mundo

Lorra Prado/Bloco Planta na Mente

Arquivo pessaol

Saracura é referência do uso de bambolê no meio

do evento alternativo Picnik, Brasília não possui presença forte de bambolistas, sobretudo, pela ausência da prática nos ambientes públicos da cidade. “Para considerar um movimento esperaria mais regularidade. Vejo interesse das pessoas, mas não é um movimento de fato”, opina. Em São Paulo, ações com o bambolê em espaços públicos são comuns, muitas vezes realizadas pela Cia Bambolística, que desde 2014 promove intervenções e encontros. A integrante Hiari Femi, 24, considera que rodar bambolê nas ruas promove maior integração entre as pessoas. Para ela, a internet trouxe o imediatismo de aprender todos os truques de uma só vez. “Viver a cultura do bambolê é estar com outras pessoas bamboleando e trocando conhecimentos. É sair na rua com ele no ombro e ter a certeza de que alguém vai falar com você, porque todos se identificam”.

Camila se apresenta com o bambolê em eventos e oficinas, além de participar de blocos carnavalescos

BENEFÍCIOS DO BAMBOLÊ O bambolê fortalece a coluna vertebral e cria novas conexões neurais, além de estimular a circulação sanguínea e linfática. As vantagens são tantas que na Grécia Antiga já o utilizavam para manter a forma física. Além disso, os bambolês também servem como estímulo de capacidades sensoriais. De acordo com Mariana Mello, terapeuta ocupacional, o bambolê sensorial é indicado para crianças a partir de quatro meses, com ou sem hiper-responsividade, que é a aversão com algo. “Esse tipo de bambolê auxilia no desenvolvimento de aspectos táteis, auditivos e visuais, além de estimular a coordenação fina e viso motora, que é olhar para tal objeto e fazer a ação com a mão”, afirma. Em cada uma das categorias sensoriais, cada pedaço do bambolê é envolto em algum material diferente, podendo desenvolver mais de uma capacidade ao mesmo tempo. “É preciso que o terapeuta avalie a criança primeiro, para saber o que deve ser melhor desenvolvido. Não se pode usar qualquer coisa no bambolê quando a criança tem dificuldade com aquilo”. Mariana utiliza a ferramenta há cerca de quatro anos, sobretudo com pacientes dentro do espectro autista. RE D E M O IN H O | 3 7


CO M P O R TA M E N TO

Sangue do meu sangue

Heather Mount /Unsplash

Como toda prática que é considerada tabu, o incesto acontece às escondidas; relação sexual entre parentes é mais comum do que parece

por: Natália Bosco 38 | REDEMOI NHO

por: Natália Bosco


“Bagulho absurdo, né?”, indaga Rafael (nome fictício) após contar sua história. “Sou apenas simpatizante”, ele deixa claro. Nunca teve coragem de se envolver com ninguém da família, apesar de sentir atração pela mãe e pela prima. Admite que a consciência pesa depois que o tesão passa. Ele não sabe muito bem como explicar, mas deixa claro que a prática acontece de verdade. “Não é apenas um fetiche de sites pornográficos”, ele diz. E não é mesmo. Incesto. Palavra forte carregada de tabu. Capaz de assustar, só o som pronunciado dessa palavra pode causar repulsa em muita gente. “Incesto” tem origem do latim incestus, que significa ação contra a castidade. Hoje, porém, o vocábulo representa muito mais. Segundo o dicionário Silveira Bueno, trata-se da “união sexual ilícita entre parentes”. O Aurélio define a prática como “união ilícita entre parentes; torpe; desonesto”. O Google, por sua vez, explica que é a “relação sexual entre parentes (consanguíneos ou afins) dentro dos graus em que a lei, a moral ou a religião proíbe ou condena o casamento; que não é puro, não é casto; impudico, impuro, incestuoso, torpe”. Incesto. “Eu só não quero me expor e continuar a fazer tudo o que faço com o meu pai em segredo”, explica Marta (nome fictício). “Só isso”. Sua fala demonstra como é simples sua vontade. A jovem iniciou um perfil no Instagram com a descrição “adoro o proibido” com o intuito de compartilhar histórias incestuosas. A ideia surgiu após ouvir relatos de suas amigas que gostam de provocar sexualmente seus pais. “Eu adoro incesto. E fiquei sabendo que muita gente gosta e tem caso”. E os casos não são recentes, histórias de envolvimento sexual entre parentes são contadas desde a antiguidade. A mitologia grega nos apresenta o incesto pela história

de Édipo rei. Na tragédia, Édipo se casa com sua mãe e tem três filhos com ela sem saber de seu laço sanguíneo. Quando descobre, ele se cega e ela tira a própria vida. Seria esse um indicativo de que o incesto sempre foi assunto proibido?

“Eu só não quero me expor e continuar a fazer tudo o que faço com o meu pai em segredo” Marta, praticante de incesto e administradora de um perfil sobre incesto no Instagram

A antropologia acredita que sim, incesto sempre foi condenado. “Se encontrou que a proibição do incesto era um universal da cultura humana”, conta a antropóloga Aline Sapiens quando fala sobre as primeiras pesquisas dessa ciência social. “A princípio os antropólogos buscavam conhecer esses povos distantes para elaborar um catálogo da diversidade humana e encontrar quais eram os universais das culturas. É aí que surge essa pesquisa a respeito do incesto”. Aline cita como obra importante para essa percepção o livro “As estruturas elementares do parentesco”, de Claude Lévi-Strauss.

“No fundo é como a gente dá conta de ir vivendo com isso” Fauzi Mansur, psicólogo humanista

188, esse é o número de vezes que a palavra “incesto” aparece no exemplar de Strauss. Escrito em 1949 pelo antropólogo considerado o fundador da antropologia estruturalista, o livro é um estudo analítico sobre as relações de parentesco e a proibição do incesto. Nessa que é uma de suas principais obras, Strauss se esforçou para perceber a passagem dos homens da natureza para a cultura e buscou encontrar uma lógica formal por trás das estruturas do parentesco. Foi assim que reconheceu a proibição da prática incestuosa em diferentes povos considerados primitivos. “Acontece? Talvez aconteça, mas, em uma sociedade primitiva, quando alguém não cumpre as regras sociais ou ele é banido, ou ele é morto”, diz Aline. A antropóloga lembra que em comunidades simples não há regras escritas, porém, apesar da falta de algo que ateste a proibição do incesto, toda população daquele grupo conhece a norma e a respeita. “Acho curioso que tenham pessoas buscando as exceções e que tenham pessoas querendo legitimar isso, mas, ao mesmo tempo, é compreensível. Quando você está tratando de sociedade complexa, você tem diversos grupos convivendo no mesmo espaço, você tem uma multiplicação de sentidos e, também, o questionamento. Hoje a gente está no pós-moderno, pós-verdade”, avalia. Na Bíblia, porém, a prática não era condenada no Antigo Testamento. “Adão e Eva povoaram o mundo sozinhos. Como fizeram isso sem incesto?”, pergunta um perfil anônimo no Instagram. A questão aparece em diversos comentários da rede social. Em uma publicação para o blog Esboçando Ideias, o presbítero André Sanchez explica que “no início da humanidade descrita na Bíblia, vemos que Deus criou homem e mulher e ordenou que se multiplicassem. Nesse tempo, a única RE D E M O IN H O | 3 9


Christina Rivers/Unsplash

“Eu via a minha irmã como uma mulher, às vezes nem lembrava que era irmã” Gabriel, praticante de incesto e administrador de um perfil sobre incesto no Instagram

No Brasil, incesto não é considerado crime. A prática, porém, é condenada em alguns países

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família, claro que ficaram assustados”. Ela lembra que, para tranquilizar o pai, ela e o marido, depois de casados, fizeram um teste genético para saber se poderiam ter filhos tranquilamente. Certificados por uma universidade estadunidense, o casal teve dois filhos saudáveis. Carla e o primo, já falecido, não sofreram preconceito. “As pessoas sabiam que éramos primos e achavam normal”. “Meu casamento até melhorou com isso”. Gabriel (nome fictício) conta que parou de cobrar afeto e atenção da esposa depois que começou a se relacionar com sua enteada. Essa, entretanto, não é sua primeira relação incestuosa. “Eu tenho uma irmã e já fizemos na adolescência. Éramos jovens, eu tinha 14 anos e ela, 15. E aí, começou aqueles namorinhos, né? E a gente acabou que brincando, aquelas brincadeirinhas de criança, de pai e mãe, tal. E acabou que rolou. Sexo de verdade”. Ele fala que a única pessoa que sabia do relacionamento dos dois era uma amiga, que acabou virando cúmplice da relação. Atualmente, Gabriel administra um perfil no Instagram que tem como foco ouvir pessoas que queiram contar seus casos incestuosos. “Às vezes a gente pensa

que é só a gente, mas, na verdade, centenas de pessoas praticam”, garante. Para Gabriel, sexo entre parentes é normal. “Eu via a minha irmã como uma mulher, às vezes nem lembrava que era irmã”. E isso acontece porque a irmã de Gabriel é mesmo como qualquer mulher. O psicólogo humanista Fauzi Mansur explica que esse tipo de conclusão feita por nós, seres humanos, faz parte do nosso lado natural, biológico e do nosso lado cultural. “É uma complicação danada”, ele Mahkeo/Unsplash

forma possível de multiplicação da espécie humana era através do casamento entre irmãos, mais tarde entre primos e assim consecutivamente. Nessa época, esse tipo de casamento era permitido por Deus, portanto, não era considerado pecado”. Muito além dos descendentes de Adão e Eva, em matéria para o site, a Revista Superinteressante lista seis casais incestuoso da Bíblia. “Enquanto algumas uniões foram pacíficas e formaram casais felizes, algumas histórias de incesto do Livro Sagrado são de arrepiar os cabelos”, escreve a jornalista Livia Aguiar. Logo, quando a relação sexual entre parentes passou a ser pecado? “Foi nas leis que Deus deu ao povo de Israel, no tempo de Moisés, que Deus proibiu vários tipos de uniões, entre elas a união entre parentes, que originou o conceito de ‘incesto’, ou seja, um tipo de união ilícita diante de Deus”, esclarece o presbítero André. “Até o padre que nos casou não se assustou, não”. Carla (nome fictício) oficializou o relacionamento com seu primo na década de 1980. Eles cresceram em cidades diferentes e o namoro engatou de verdade quando Carla se mudou para Brasília para cursar faculdade. “A

Em 2015, o Conselho Nacional de Ética da Alemanha defendia a relação sexual envolvendo pais, irmãos e filhos como um direito humano fundamental


“Até o padre que nos casou não se assustou, não” Carla, viúva de seu primo

confessa quando fala que a psicologia entende o ser humano como ser biopsicossocial-histórico-cultural. Eventualmente, na biologia, as relações incestuosas em algumas espécies são possíveis. “Mas o ser humano já saiu da natureza há muito tempo. A grande questão, no final das contas, é que é quase tudo cultural”. Fauzi lembra que a construção sociohistórica-cultural do ser humano é o que vai gerar a noção do certo ou errado, liberado ou proibido. “Eu vejo o incesto, como qualquer outra coisa, como sendo uma construção basicamente cultural”. Mas não significa que essa seja uma questão fácil para nós entendermos. Toda construção cultural é formada de maneira histórico-cultural e é a base para nosso modo de pensar, do que aceitar, do que reprimir. Fauzi conclui: “‘É tabu, não é tabu’, no fundo é muito mais complexo que isso. No fundo é como a gente dá conta de ir vivendo com isso”.

TABU E PORNOGRAFIA O site Pornhub, maior site de conteúdo pornográfico da internet, mostra que as palavras “mãe” e “milf” (sigla em inglês para “mães com quem eu gostaria de transar”) estão entre os termos mais buscados desde 2009. O termo “madrasta” se junta aos vocábulos mais pesquisados em 2014. Em 2016, “irmã postiça” entrou para a lista das 10 palavras mais procuradas no website. Nesse mesmo ano, “madrasta”, “milf”, “irmã postiça” e “mãe” estavam entre os seis termos mais buscados. O ranking se repete em 2017. No primeiro episódio da série “Explicando… o sexo”, da Netflix, o psicólogo social e pesquisador de sexo Justin Lehmiller apresenta um pouco da sua pesquisa feita com base nas mais de 4.000 entrevistas realizadas com estadunidenses de todo país, dos 18 aos 87 anos, de todos as identidades de gêneros e orientações sexuais. Justin aborda fantasias sexuais e como os termos mais taxados como tabus em uma sociedade são, também, os que mais aparecem em qualquer tipo de conteúdo pornográfico. RE D E M O IN H O | 4 1


Jairo Alzate /Unsplash

CO M P O R TA M E N TO

Mas ele me amava Elas saĂ­ram de um relacionamento doloroso com apoio de grupos organizados em redes sociais

por: Marisa Wanzeller 42 | REDEMOI NHO

por: Ana Maria da Silva


cada mulher que solicita participação, para garantir que não seja um abusador por meio de um perfil falso. Ao entrar no grupo, além do apoio recebido por especialistas, as mulheres que se sentirem à vontade podem relatar suas histórias e ainda apoiar outras colegas.

Esse foi o momento em que Daiane tomou consciência de que o homem com quem se relacionava seria capaz de agredi-la Além da possibilidade de atender mulheres de diferentes locais do mundo, como Europa e América Latina, a rede social permite que as pessoas envolvidas mantenham uma certa privacidade, como descreve a jornalista. “A gente sente que existe uma maior entrega do problema pelo fato de você não conhecer a pessoa com quem você está falando, muitas mulheres sentem vergonha, então a internet ajuda nisso”, analisa Marega. A psicóloga Miriam Pondaag, especialista na área de violência de gênero e professora do IESB, explica que grupos de apoio, tanto em redes sociais quanto em contextos institucionais são importantes para as vítimas. “São espaços de escuta em que elas se sentem menos julgadas”, pontua. A violência doméstica gera impactos na saúde mental das vítimas, por isso é importante buscar ajuda. De acordo com a especialista, mulheres em situação de violência podem perder a capacidade de dimensionar

riscos. “Por estarem envolvidas e abaladas, elas começam a naturalizar essa violência, às vezes, elas não percebem que o agressor pode ir além, pode cometer um ato mais grave”, explica. Assim, ao compartilhar a história com outras pessoas, elas passam a dimensionar o risco conforme as reações aos relatos. “Elas se dão conta da seriedade”. Regina Baronio, 39 anos, mora na região metropolitana de Curitiba (PR) e entrou no grupo de Marega em busca de dicas para conseguir se separar do então marido. Ela esteve com seu abusador por 22 anos. “O grupo foi essencial na minha saída do relacionamento, eu estava tentando me separar há três anos e não conseguia, acabava voltando”, conta. Ao entrar no portal, a empresária contava com uma medida protetiva para manter o agressor distante. Porém, ele não seguia as regras e ela não tinha forças para denunciar. “Na mesma hora que enviei a solicitação, a Mari já me aceitou e perguntou o que eu precisava. Eu fiz um breve relato e ela me instruiu sobre como eu deveria agir”. Segundo Regina, nessas situações as vítimas ficam “perdidas”. @i_am_nah/Unsplash

No mundo, uma em cada três mulheres sofreu violência física ou sexual por parte do parceiro ou de terceiros, aponta pesquisa da Organização Mundial da Saúde (OMS). Cerca de 30% das mulheres que estiveram em um relacionamento relatam ter sofrido alguma violência. A situação no Brasil não melhora. O país possui a quinta maior taxa de feminicídio do mundo, sendo 4,8 em cada 100 mil mulheres assassinadas por serem mulheres. Mesmo que a violência doméstica esteja proibida por lei e seja passível de punição, potenciais agressores não se inibem no momento de cometer o crime. Atualmente, mulheres vítimas de agressão podem contar com pelo menos um ponto de acolhimento, as redes sociais. Em uma plataforma como o Facebook é possível participar de grupos onde pessoas estão dispostas a escutar e aconselhar a vítima, seja judicial ou psicologicamente ou apenas com uma escuta amiga. As jornalistas Marisa Marega e Mariana Kotscho são moderadoras de um desses espaços virtuais há quatro anos. A comunidade on-line “Violência Doméstica - Grupo de Apoio” conta com 3.800 participantes que buscam por orientação. Marisa Marega relata que pelo menos 95% dessas mulheres foram encaminhadas pelo grupo a acompanhamento psicológico ou às autoridades competentes. “Nós encaminhamos para a rede pública, mas também temos parceria com a rede feminista de advogadas que dão atendimento gratuito, com a defensoria pública do estado de São Paulo, com psiquiatras e psicólogos que nos ajudam na orientação”, relata. Marega conta que, para criar um ambiente seguro, o grupo é privado e as moderadoras investigam rapidamente

Regina sentia vergonha das brigas RE D E M O IN H O | 4 3


“Ele basicamente me usou enquanto eu amamentava meu bebê” Regina Baronio, vítima de violência doméstica

Primeiros sinais

Noah Buscher/Unsplash

No quarto ano de casamento, Regina sofreu as primeiras agressões do marido. “Na época eu não fazia ideia do que eu estava passando”. Enquanto amamentava o primeiro filho do casal, Regina era obrigada a ter relações sexuais com o marido, uma situação que se repetiu diversas vezes. “Eu estava deitada na cama, amamentando meu filho e ele fez ali, eu fiquei ali, em uma situação bem constrangedora, chorei”, desabafa. No ano seguinte, o marido se mostrou ainda mais agressivo. “Ele ficou nervoso por uma bobeira e quebrou toda a nossa cama”. Na época, o sentimento que a envolvia era vergonha. Depois da

Mulheres vítimas de violência doméstica ficam vulneráveis a depressão e ansiedade 44 | REDEMOI NHO

primeira vez, os episódios que Regina descreve como “surtos” nunca mais cessaram. “De repente, ele começou a jogar objetos em mim. Controle, celular, copo, chave. Sempre algum objeto que me machucava”. Depois, começaram os empurrões. Para Daiane Oliveira dos Anjos, 31, os indícios de um relacionamento abusivo foram as crises de ciúmes. “Começou de fato com ciúmes excessivo, das pessoas que me cumprimentavam, das pessoas que eu conversava pela internet”. Daiane mora em Poá (SP) e também está no grupo de apoio de Marega. Ela conheceu o ex-namorado ainda aos 13 anos de idade: “Com 20, iniciamos um namoro, após três meses eu engravidei e no 4º mês de gestação terminei o relacionamento após sentir que ele poderia me agredir”. “Quando eu fiz o teste (de gravidez), a primeira coisa que ele falou foi que seriam 18 anos de pensão para pagar”, lembra Daiane, revelando a principal preocupação do seu agressor. Uma conversa sobre o dinheiro necessário para o enxoval da criança levou a uma discussão. Ao perceber que ele se recusava a ajudar financeiramente, Daiane anunciou: “Eu sei os meus direitos, eu sei o que eu tenho que fazer”, ameaçando colocá-lo na justiça para contribuir. Nessa hora, “ele levantou, segurou no meu braço e falou: ‘Você não me conhece’”. Esse foi o momento em que Daiane tomou consciência de que o homem com quem se relacionava seria capaz de agredi-la. Então, decidiu que mesmo aceitando todas as “bobagens” faladas durante o namoro, a respeito de traição e controle de para onde ela deveria sair ou não, agressão ela jamais permitiria. “Mesmo não aceitando, não impediu que ele, posteriormente, viesse a fazer”, pontua.

Vieram as agressões

Quando Regina Baronio já tinha três filhos, o parceiro se mostrou, mais uma vez, agressivo. “Nesse dia eu surtei”, desabafa Regina, como quem justifica os acontecimentos seguintes. “Toda vez que ele ficava assim eu sentia vontade de dar na cara dele. Nesse dia ele chegou quebrando tudo, amassou a porta do carro, quebrou um monte de coisa na cozinha, quando foi para o quarto tirar o colchão, ele me empurrou e me prensou na porta”, conta. “Nessa hora, eu não me segurei e essa vontade que eu sempre tinha de dar na cara dele, eu dei na cara dele”. Regina procurou ajuda em acompanhamentos psicológicos e passou a tomar antidepressivos e vitaminas. “Eu estava bem desgastada”. Em 2017, fez o primeiro boletim de ocorrência contra o agressor, mas, por um tempo, sempre voltava atrás. Além disso, a falta de flagrante das agressões impedia que o marido fosse preso. O ponto de ruptura foram cápsulas de balas encontradas pela empresária nos bolsos do casaco do agressor.

“Por estarem envolvidas e abaladas, elas começam a naturalizar essa violência, às vezes elas não percebem que o agressor pode ir além, pode cometer um ato mais grave” Miriam Pondaag, psicóloga especialista em violência de gênero


Então, Regina gravou uma agressão. “Ele ficou três dias preso na delegacia. Na audiência de custódia ele ficou em liberdade condicional e teve que se retirar de casa”. Mesmo com medida protetiva, o agressor ainda conseguia se aproximar de Regina. Até que o vínculo fosse quebrado, ele voltou a agredi-la fisicamente, na frente dos filhos, e ameaçou sua carreira profissional. Regina chegou a sair de casa para se esconder do ex-marido. A primeira agressão física que Daiane sofreu foi tentando impedir que o pai de sua filha levasse a criança a um ambiente inapropriado para ela, que estava doente. “Ele disse que eu afrontei ele”. A mãe do agressor presenciou a cena e alertou Daiane: “A mesma cabeçada que ele te deu, é a que ele já deu em mim, ele fez da mesma forma”. Na delegacia, Daiane foi desencorajada a prestar queixa. Com isso, ela resolveu mudar de cidade. “Há quatro anos ele conseguiu na justiça o direito de visita de 15 em 15 dias. Ele mentiu dizendo que eu o impedia de ver minha filha”. A segunda agressão ocorreu quando o pai da criança não devolveu a filha para a mãe no dia, horário e local combinado. “Ele me chutou e com isso eu quebrei o meu pé”, conta Daiane.

Justiça seja feita, ou não

Hoje, Regina Baronio está em processo de divisão dos bens que o casal possuía. Ela está em acompanhamento terapêutico e se sente liberta, apesar das dificuldades. “Tomo antidepressivo, tive várias crises de pânico, mas estou bem melhor, apesar das dificuldades, a parte financeira tem sido bem difícil, mas assim está bem melhor”. Daiane dos Anjos ainda recebe ameaças do agressor, que se fundamentam no dinheiro que seria gasto para manter a filha: “Reza para Deus para eu não te encontrar no meio da rua porque eu sei lá o que é que eu vou fazer com você se um dia eu te trombar. Você é uma desgraçada, mano. Você fodeu minha vida, você tá fodendo minha vida com esse bagulho de pensão aí”. Esse é um áudio enviado por ele, após ser orientado a conversar apenas com o advogado de Daiane. Para ela, dói a justiça não ter sido feita. “É a mulher que acaba sendo presa, sendo privada”, lamenta ao constatar que não sai à rua sem sentir medo. “Hoje eu uso uma platina na perna, com seis ou quatro pinos de um lado e dois do outro, acabei me esquecendo a quantidade exata, e um ano depois saiu a sentença eu entreguei nas mãos de Deus”. O promotor do caso disse que a versão dos fatos contada por Daiane era improcedente.

META A COLHER

DENUNCIE BRIGA DE MARIDO E MULHER O Brasil é o 5º entre os países com as maiores taxas de violência doméstica contra mulheres. FONTE: MAPA DA VIOLÊNCIA 2015, FACULDADE LATINO-AMERICANA DE CIÊNCIAS SOCIAIS (FLACSO)

Você não deve ficar parado ao notar uma agressão DISQUE 180: SECRETARIA DE POLÍTICAS PARA MULHERES DISQUE 100: “PRONTO SOCORRO” DOS DIREITOS HUMANOS DISQUE 190: POLÍCIA MILITAR

OS TELEFONES FUNCIONAM 24H POR DIA EM TODO O PAÍS

A vítima ou a testemunha pode procurar uma delegacia comum, onde deve ter prioridade no atendimento ou mesmo pedir ajuda por meio do telefone.

VOCÊ PODE AJUDAR NESSA CAUSA!

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Unsplash

C IDADANIA

Além do voluntariado

por: Alexia Oliveira 46 | REDEMOI NHO

De dentro para fora: movimentos voluntários ganham força em meio ao cenário de pandemia


me deu forças e alegria para continuar. Eu descobri uma nova versão de mim”, afirma Freitas. Laços de Alegria

Andresia Matos atua como terapeuta cognitiva e psicóloga, faz parte de um grupo voluntário com atendimento psicológico gratuito à população. Para ela, embora sejam necessárias mudanças no comportamento dos brasileiros, ainda é possível notar um avanço para que a população se torne mais voluntária. “Acho muito difícil haver uma mudança radical. Mas acredito que a mudança possa vir a partir dos comportamentos, se não com relação ao outro, mas em relação à maior valorização das ações, atitudes e pensamentos a respeito do coletivo”, expressa. Favela Solidária

Solidariedade, irmandade e afeto. Estas são apenas algumas das palavras que fazem parte do novo cotidiano. Mesmo com o cenário de crise em decorrência do novo coronavírus, os brasileiros não deixaram de ser generosos uns com os outros. Seja por meio de trabalho em equipe ou de forma individual, o comprometimento em ajudar o próximo e o interesse em promover a solidariedade têm sido comuns em muitos países. O Brasil ocupa a 5ª posição entre os países da América do Sul com maior número de voluntários. Os dados são do estudo realizado pela Charities Aid Foundation (CAF), intitulado World Give Index, que tem finalidade medir o nível de solidariedade das nações. O país totaliza um engajamento de 33 milhões de pessoas, o que significa que um em cada cinco brasileiros realiza algum tipo de trabalho voluntário. Caracteriza-se o voluntariado como expresso nas normas de Lei 9.608/1998, que define trabalho voluntário como atividades não-remuneradas e prestadas por pessoas físicas às entidades públicas, de qualquer natureza, ou a instituições privadas de fins não lucrativos, que tenham objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência social. Existem muitas formas de ajudar. Seja por meio da doação de alimentos, confecção de máscaras, adoção de animais, distribuição de roupas, agasalhos, por consultas gratuitas com profissionais diversos, como psicólogos, conversas com amigos, ou até mesmo com um simples prato de comida, os cidadãos e as instituições estão se unindo por meio da solidariedade. É uma espécie de corrente do bem para ajudar as outras pessoas.

O coletivo Favela Solidária é responsável por ajudar e levar a esperança para 500 famílias no entorno do Distrito Federal

Germano Freitas alia ao voluntariado uma de suas maiores paixões, o teatro. Atua como coordenador de atividades voluntárias no Hospital das Forças Armadas (HFA), em Brasília, em parceria com o projeto social Laços da Alegria, que realiza visitas dentro dos hospitais do Distrito Federal e Entorno. Germano diz que o voluntariado o transformou: “Quando entrei no Laços da Alegria, eu estava passando por momentos bem difíceis. Além disso, sempre fui apaixonado por fazer as pessoas rirem. Sabendo que eu estava mal naquela época, a situação

Germano Freitas (à direita) é um dos auxiliares no projeto social Laços da Alegria. O grupo realiza visitas nos hospitais do Distrito Federal

“Sabendo que eu estava mal naquela época, a situação me deu forças e alegria para continuar” Germano Freitas, voluntário

Na periferia

Mesmo em tempos de pandemia, que geram incertezas e dificuldades, o amor pelo voluntariado possibilitou que pudessem existir pessoas empenhadas em fazer a sua parte e irem em busca de compartilhar a corrente do bem. É o caso de George Pauher e Matheus Moreira. Juntos, os dois deram asas para o Favela Solidária, projeto que nasceu em 29 de dezembro de 2018. A iniciativa RE D E M O IN H O | 4 7


Alexia Oliveira

Os dois jovens Matheus Moreira e George Pauher são os idealizadores do projeto social Favela Solidária, que ajuda famílias com doações de alimento nas regiões do DF e Entorno

“O que nos move é saber que existem pessoas que precisam da nossa ajuda e que não podemos parar”

Favela Solidária

Matheus Moreira, voluntário

começou com apenas duas pessoas e, hoje, 135 oferecem ajuda para 500 famílias nas regiões administrativas do Distrito Federal e no Entorno. “As pessoas nos relatam sobre a falta de oportunidade e capacitação. Um dos problemas que observamos é que eles não têm a informação do que se trata este vírus”, explica Matheus. O grupo tem doado produtos de higiene e de proteção em relação ao vírus. “Além das doações, nós levamos a eles a informação, e também uma palavra de esperança, para não perder a fé, confiar e acreditar. A ajuda com as doações é sempre bem-vinda, mas às vezes existem pessoas que necessitam apenas de uma palavra amiga”, completa George. O Favela Solidária começou com um torneio de futebol que arrecadava alimentos como forma de inscrição e hoje organiza diversas ações coletivas, definidas por meio de um grupo no WhatsApp. Com a Covid-19, as saídas externas estão suspensas. Matheus explica que as ações continuam de forma remota e convida quem quer ajudar: “Basta apenas você querer, o primeiro passo é que você nos conceda o seu número para contato e nome. Em seguida, te colocamos em um grupo para que faça parte do projeto”. Para se inscrever basta mandar uma mensagem para os números (61) 9 8100-4565 ou (61) 9 9364-5246.

Além da crise

Em ação realizada no bairro Céu Azul, em Valparaíso de Goiás, as crianças exibem em seus rostos a alegria em receber as doações de Páscoa, regada a chocolates e doces 48 | REDEMOI NHO

Há quem diga que após o cenário da pandemia do coronavírus o mundo ainda possa continuar o mesmo. Por outro lado, existem pessoas que acreditam na possibilidade de mudança por meio dos coletivos e que as pessoas, de modo geral, possam sair desconstruídas ou com uma nova visão depois do contexto atual. De certo

há os efeitos em diversas áreas da vida, como no emprego, na saúde pública e na alimentação. Em todo o mundo, os dados apontam que a economia foi uma das áreas mais afetadas pelo confinamento necessário para conter a propagação do vírus. Na América Latina, 89% da população foi afetada com os danos da pandemia, já na África 83%, na Ásia e no pacífico 73% e na Europa chega a 64% juntamente com a Ásia Central. Os dados são da Organização Mundial das Nações Unidas (ONU) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Nos países de baixa renda, a pobreza entre os trabalhadores deve aumentar em 52 pontos percentuais, totaliza 1,6 bilhão da pessoas da classe informal que seriam afetadas pelas medidas de contenção e isolamento. São pessoas que necessitam de maior proteção contra a pandemia, especialmente por questões como desemprego, saúde alimentar e emocional. A psicóloga Andresia Matos avalia que o momento gera crises de ansiedade e gera adaptação de todos, inclusive sobre a forma de trabalhar – o que também muda para profissionais como ela. “É uma fase de adaptação para todos nós. No atendimento tudo sobre o paciente é importante e observamos tudo. No método on-line perdemos esses elementos, entretanto, alguns pacientes se sentem mais à vontade”, explica. Para o sociólogo Eladio Oduber, os brasileiros podem enfrentar danos tanto na saúde, quanto nas questões que refletem a desigualdade de distribuição dos recursos e receitas. “Em nosso país existem estados que são mais ricos e outros com poucos recursos. O fechamento do comércio leva as cidades marginalizadas, sem teto ou


comida, a dependerem das ações caritativas que a população empenhada aos serviços oferece”. Nos estudos da sociedade, os especialistas acreditam que o homem se adapta ao meio e se transforma. Partindo desse pressuposto, acredita-se que existam formas de se reinventar no ambiente de trabalho, transformando a crise em oportunidade. Para o antropólogo e professor do IESB Claudio Bull, uma das táticas que têm sido utilizadas são as formas diferentes de se comunicar. “Observo que as pessoas estão criando novas táticas de entrega via delivery ou novas formas de se comunicar, talvez diferentes do habitual. Outro fator de análise é a economia, um assunto importante de ser debatido, mas a vida ainda é muito mais”, cita o antropólogo.

“Outro fator de análise é a economia, um assunto importante de ser debatido, mas a vida ainda é muito mais” Claudio Bull, antropólogo

Em tempos difíceis, o voluntariado aparece como uma prática essencial. O ser humano necessita da pessoalidade nas relações. Para grandes pensadores como o Dalai Lama, orar não é apenas o importante, mas é produzir a caridade com obras e o amor, o que vale para todos, mesmo que a pessoa não seja religiosa. Jorge Recife trabalha como professor de música e produtor cultural, e também pratica o trabalho voluntário. Ele

promove atividades culturais em cidades do Entorno no DF, como Valparaíso de Goiás. Para Recife, o voluntariado pode mudar vidas. “Acredito que se temos uma fé sem obras, a nossa se torna morta. Através do voluntariado que muda a vida de outras pessoas, também nos tornamos capazes de mudar as nossas vidas. Nós nos tornamos pessoas melhores e amadurecemos a cada ação e lição realizada”.

POR DENTRO DA LEGISLAÇÃO Você conhece os principais pontos que regem o voluntariado? São eles: • Expresso na Lei 9.608/1998, que fundamenta e regula o trabalho voluntariado, caracteriza-se como trabalho voluntário todo aquele que é exercido por qualquer pessoa física, como atividade não remunerada a entidade pública de qualquer natureza, ou a instituição privada de fins não lucrativos, que tenha objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência social, inclusive mutualidade; • Expresso pelo ato normativo Nº 226/TST.GP, de 25 de março de 2013 no Art. 8º:“A carga horária de prestação de serviço voluntário deverá observar o horário do expediente, a necessidade e o interesse da unidade em que se realizará o serviço e a disponibilidade do voluntário, e não ultrapassará o limite de 4 horas diárias e um total de 20 horas semanais”. • De acordo com a Lei doVoluntariado, a idade recomendada para iniciar os trabalhos voluntários é de minimamente 16 anos. Quando o voluntário for menor de 16 anos, é importante lembrar que deva ter o Termo de Adesão e Plano de Trabalho Voluntário que deverá ser preenchido e assinado pelos pais ou responsáveis legais.

Distribuição de comida no Brasil Segundo dados da FAO e do IBGE

149 milhões de crianças sofrem privação alimentar

7,9 % da população da América Latina e do Caribe sofre de fome e desnutrição

No Brasil são 5,2 milhões de brasileiros que passam fome

2,4% dos brasileiros não tem o que comer todos os dias

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Flávia Campêlo

por: Ana Maria da Silva 50 | REDEMOI NHO


C I D A D A N I A

Esperança no quadradinho Ao completar 60 anos, Brasília tem grande população em situação de rua, mas a solidariedade traz alento ao centro da cidade

por: Guilheme Simmer

Cidade planejada e repleta de identidade, com traços arquitetônicos assinados por Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, Brasília completou 60 anos em 2020. Mesmo com o pouco tempo de existência, a capital do Brasil carrega adjetivos e simbolismos que exaltam a sua modernidade. No entanto, os traços únicos da cidade em formato de avião - considerada em 1987 como Patrimônio Imaterial da Humanidade pela Unesco - não se refletem em sua região central. E a cidade caracterizada pelo moderno, se equipare a outras metrópoles quando se trata de problemas com pessoas em situação de rua, drogas e prostituição. De acordo com a Secretaria de Desenvolvimento Social do DF (Sedes), cerca de 3 mil pessoas vivem em situação de rua em todo o Distrito Federal. Os dados são de 2019. Porém, a concentração maior ocorre na área central do Plano Piloto, que une Setores Comercial e Bancário Sul e Norte e a rodoviária.

“A gente fala muito de Brasília que é a cidade da arquitetura e da modernidade, mas infelizmente faz parte de uma sociedade que ainda tem muito preconceito com quem está na rua. Falta um olhar do governo para essa população. Espero que a pandemia sirva de lição para ajudar esse povo, que eles usufruam dos direitos que merecem”, afirma Fredy Ayvar, peruano de 34 anos, ex-morador de rua. No meio das asas do avião, a rodoviária é o ponto de entrada de muitas pessoas na capital e também de ligação para os outros setores da área central. O local, ponto de movimentação e de comércio, tem uma de suas maiores problemáticas ligadas à grande quantidade de pessoas que vivem desabrigadas. A circulação diária de pessoas na rodoviária é na casa das 700 mil, de acordo com levantamento da Agência Brasília. Foi lá que Fredy se abrigou entre o fim de 2019 e o início deste ano. Peruano - como é conhecido - chegou ao país em julho do ano passado com o sonho de RE D E M O IN H O | 5 1


Arte: Flávia Campêlo

acompanhar a final da Copa América de futebol entre Brasil e Peru, mas teve a mochila com pertences e dinheiro roubada em Rio Branco (AC). “Me restou só um pouco de dinheiro na carteira e acabei ficando dois dias na rua até que uma pessoa deixou eu ficar na casa dela. De lá decidi continuar a viagem atrás do meu sonho e fui pegando carona até chegar em Brasília”, lembra. Aqui, as coisas não saíram como planejado e ele acabou morando por quase dois meses na rodoviária, depois de ficar 15 dias na estação de metrô do ParkShopping. Fontes: Sedestmidh, 2019 e projeto No Setor

Banho e cultura

Reprodução/Instagram

Para ajudar pessoas como Freddy e outros tantas que precisam de mais atenção na rodoviária, a empresária Adriana Calil Amorim comprou há cerca de dois anos um ônibus modificado para oferecer espaço para banho a quem está em situação de rua. Nasceu assim o Banho do Bem. “O que me motivou (criar o Banho do Bem) é a gratidão por minha própria vida. É uma forma de agradecimento por não me faltar nada”, explica. “Tenho certeza, que estamos aqui não só de passagem e por isso precisamos ajudar os menos favorecidos. É a nossa maior tarefa aqui na Terra”, afirma Calil. Focado inicialmente na região central de Brasília, o projeto agora atende também na Praça do Relógio, em

Ação do Banho do Bem na Praça do Relógio 52 | REDEMOI NHO

Taguatinga, outro ponto característico da que procuram estes locais para buscar população em situação de rua. O ônibus alternativas de subsistência. A questão conta com quatro chuveiros e um espaço não é nova e nem exclusiva de Brasília. para corte de cabelo. A Inspirados pelas iniciativa também faz “Tenho certeza grandes transformações doações de marmitas, urbanas realizadas nos que estamos centros de Nova Iorque roupas e de produtos de higiene pessoal, além da aqui não só de e Londres, Caio Dutra, lavagem das peças usadas Felipe Veloso e Ian Vianna das cerca de 50 pessoas passagem e por decidiram em meados de que são atendidas todos isso precisamos 2015 traçar um plano para os domingos. O Banho do reestruturar o SCS por Bem já contabilizou mais ajudar os menos meio da cultura. A ideia passa por tentar diminuir de 5.700 atendimentos. favorecidos. É ao máximo os efeitos da Perto da rodoviária, milhares de pessoas a nossa maior gentrificação (veja box passam todos os dias em Saiba mais). tarefa aqui na uma região que concentra Surgiu daí o Instiescritórios, órgãos e sedes tuto Cultural e Social No Terra” de empresas. No Setor Setor. A ideia é promover Comercial Sul (SCS) esti- Adriana Calil, fundadora do reestruturação urbana por Banho do Bem ma-se que 200 mil pessoas meio da cultura e transfortransitam diariamente, de mação social para quem acordo com o projeto No Setor. está em situação de rua, além de usar os Aliada a outras problemáticas como eventos culturais promovidos, como o pontos de tráfico e uso de drogas, o centro Setor Carnavalesco Sul, para gerar renda da cidade é morada de muitas pessoas, para essa população.


Imagem de arquivo

Festuc, pelada com população em situação de rua foi pontapé inicial para o No Setor

O No Setor deu o pontapé inicial justamente no esporte mais popular do país: o futebol. Como tentativa de inclusão para as pessoas em situação de rua, foram iniciadas “peladas” semanais, que permitiam também conhecer essas pessoas e identificar suas necessidades. “É muito louco, porque as pessoas tendem a generalizar, tendem a falar: ‘fulano tá ali por causa de droga’. Mas cada Arquivo pessoal

“A gente solicita para as empresas de limpeza e montagem de estruturas/som, que no mínimo 30% dos funcionários que vão trabalhar sejam pessoas em situação de rua e tentamos colocar os comerciantes locais para trabalhar também nos nossos eventos, crescendo e ganhando junto com a gente”, detalha Caio. A iniciativa já resultou em trabalho para cinco pessoas que antes estavam em situação de rua.

O peruano Fredy Ayvar veio parar no Brasil por conta da Copa América e acabou em situação de rua

pessoa ali tem seu motivo. Não adianta, não tem como você pegar uma solução e tentar aplicar para todas”, explica Caio. Hoje, o Instituto Social No Setor trabalha com quatro projetos de inclusão social: Festuc (futebol), Setor de Capacitação Social (geração de renda), Tour SCS (capacitação de pessoas em situação de rua para guiar passeios pelo SCS) e Escuta e Apoio (apoio psicológico). O diretor social do No Setor, Rogério Barba, já esteve em situação de rua e hoje tenta mudar a vida de quem está nesta condição. Abandonado pela mãe nas ruas da Vila Mariana, em São Paulo (SP), quando ainda era criança, Barba passou mais de 20 anos perambulando entre a fome, as drogas e a solidão. “Minha primeira cama foi a rua. Alguém passou por lá e me levou para um orfanato onde morei até meus 18 anos e nunca conheci meu pai ou minha mãe”, conta Barba, que após deixar o orfanato se envolveu com o crack. Ele relata algumas das experiências que teve na rua: “Assim, vivi muito tempo da minha vida na rua e é um mundo muito terrível, tive que comer muita comida do lixo. Passei frio e fome, levei facada, paulada e até tiro. Só em 2014 que consegui vencer as drogas e o álcool. Foi nessa época que eu decidi lutar por políticas públicas voltadas para a população de rua”. Hoje, fora das ruas e livre das drogas, Barba tem feito parcerias pelo No Setor, como Bike Geração de Renda, que fornece qualificação, celulares e bicicletas para os assistidos trabalharem com serviços de entregas. “Hoje 24 pessoas fazem parte do projeto, onde a gente entrega bikes e celulares para que elas trabalhando consigam pelo menos o básico, que é pagar aluguel e ter alimentação “, detalha. RE D E M O IN H O | 5 3


Arquivo pessoal

Através do projeto de Rogério Barba (primeiro plano), Fredy conseguiu sair da rua

reabilitação em 2018, em Ceilândia, e passar por idas e vindas morando de favor, Hebert foi parar na rua no fim de 2019. Nesse período, Hebert conheceu Barba e entrou no Bike Geração de Renda. Agora, trabalha fazendo entregas por meio de aplicativos e mora em um apartamento na região de Vicente Pires. “Já não tô mais na rua, nem de favor. Enfim, tenho minha bike que é do projeto, tenho minha bag, meu telefone e assim consigo correr atrás de um dinheiro”, comemora. Hebert elogia quem atua em projetos voluntários de resgate social e os compara a iniciativas de governo. “A

Hebert Renault se viu na rua após perder tudo para o mundo do alcoolismo 54 | REDEMOI NHO

Caio Dutra, um dos idealizadores do No Setor

gente lá (espaço do Estado) é tratado só como mais um número, não como pessoa. É um trabalho desempenhado de forma automatizada, sabe? Não é como tapar um buraco na rua. Eles estão lidando com seres humanos e essas pessoas já são sofridas”, desabafa. Igor Kishi

Arquivo pessoal

Uma destas pessoas é justamente Fredy, o Peruano. Por meio do projeto, ele conseguiu deixar as ruas e mora há seis meses em um quarto na Asa Norte. “Depois de quase dois meses morando em uma casa de acolhimento comecei a trabalhar como entregador, só que a pé. Foi quando conheci o Barba e ele me conseguiu uma bicicleta e um celular que era o que mais eu precisava. E hoje estou aqui”, lembra o peruano. Quem também conseguiu sair da rua foi Hebert Renault, 58, que diz ter perdido tudo para a bebida. Após pedir para ser internado em uma clínica de

O Tour SCS é um dos projetos do No Setor

“É muito louco, porque as pessoas tendem a generalizar, tendem a falar: ‘fulano tá ali por causa de droga’. Mas cada pessoa ali tem seu motivo. Não adianta, não tem como você pegar uma solução e tentar aplicar para todas”

Pandemia

Os problemas sociais de Brasília, em 2020 se somou a pandemia do coronavírus, que exigiu isolamento social para tentar conter o avanço da Covid-19. Neste contexto, as iniciativas da sociedade ganham ainda mais importância para a população em situação de rua, que nem sempre tem acesso a materiais de proteção, como máscara e álcool em gel.


“Minha primeira cama foi a rua. Alguém passou por lá e me levou para um orfanato onde morei até meus 18 anos e nunca conheci meu pai ou minha mãe”

SAIBA MAIS Gentrificação: Processo de recuperação do valor imobiliário e de revitalização da região central de uma cidade após período de degradação; enobrecimento de locais anteriormente populares, de acordo o dicionário Aulete.

O Setor Carnavalesco Sul reuniu mais de 350 mil pessoas somando todos os eventos de carnaval

Agência Brasília

organizados no local

Ponto de entrada para muitas pessoas na capital, a Rodoviária do Plano Piloto concentra número grande de pessoas em situação de rua

Centro Pop Brasília, na 905 sul

Lado do governo. O principal apoio à população em situação de rua do DF são os Centro Pop (Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua) localizados na Asa Sul e em Taguatinga, pontos com maior concentração de pessoas nessa situação. Lá são ofertados atendimentos individuais e coletivos, oficinas, atividades de convívio e socialização, além de ações que incentivem o protagonismo e a participação social das pessoas em situação de rua.

Agência Brasília

No período da pandemia, o Banho do Bem passou a fornecer cestas básicas e marmitas para as 87 famílias cadastradas, apesar da redução de 100 para 14 no número de voluntários. Já o No Setor criou uma rede de arrecadação e distribuição de alimentos em vários pontos do DF. Além disso, o projeto, em parceria com o Conselho das Empresárias Mulheres do Distrito Federal, reformou o banheiro público do SCS para que a população de rua da região possa utilizar. Barba explica ainda que a ideia é pensar também no futuro dessas pessoas. “Nós temos uma conta para, mais na frente, tentarmos cuidar da saúde da população de rua. Porque além do problema do coronavírus, que é uma realidade, a gente também tem uma outra preocupação, porque a população de rua tem muitas doenças que nunca foram tratadas, como tuberculose e DSTs”, encerra.

Divulgação

Rogério Barba, ex-morador de rua e diretor social do No Setor

O Centro Pop é um espaço de referência que funciona como ponto de apoio para a guarda de pertences, higiene pessoal, alimentação (café da manhã, almoço e lanche) e provisão de documentação, além de informar e orientar sobre os direitos e o acesso a benefícios socioassistenciais. As pessoas atendidas nos centros são adultos, idosos e famílias que utilizam as ruas como espaço de moradia e sobrevivência. O Centro Pop funciona em duas localidades no DF: na Asa Sul (Centro Pop Brasília - 903 sul) e em Taguatinga (na QNF). RE D E M O IN H O | 5 5


Felipe Barros

56 | REDEMOI NHO


E DUCAÇÃO

Reciclando gerações Líderes de projetos de educação ambiental acreditam que crianças são multiplicadoras do conhecimento e podem salvar o planeta

por: Adriely Karina

“Meu Deus! Enquanto eu tiver energia tenho que jogar esse olhar para essas crianças, porque o planeta é único”. Essa fala demonstra o carinho pela profissão e certa inquietação da professora do curso de Saúde Coletiva da Universidade de Brasília (UnB), doutora Aldíra Guimarães Dominguez. Ela, que também é coordenadora do projeto de extensão Agente Ambiental Mirim, dedica o tempo diário em busca de formar gerações mais sustentáveis. Em conjunto a professora Vanessa Cruvinel, também do curso de Saúde Coletiva, Aldíra distribui conhecimento em escolas públicas de ensino fundamental do DF, para crianças e adolescentes com idades entre 9 e 10 anos, tudo isso com a ajuda dos próprios alunos da universidade. Durante uma ação do Recicle a Vida, que é uma associação considerada modelo em cooperativa de reciclagem na

usina de Ceilândia-DF, tudo começou a se concretizar. O evento é direcionado às mulheres catadoras de resíduos sólidos, a maioria delas é mãe e leva os filhos para o local das atividades. A oportunidade de tornar real um objetivo internalizado há muito tempo estava frente a frente com a professora Aldíra. Foi quando a equipe da UnB se juntou ao público infantil e realizou oficinas condizentes com o tema. Assim nasceu o projeto Agente Ambiental Mirim. A consolidação dessa ideia aconteceu somente no segundo semestre do ano seguinte, na Escola Classe 66, do Sol Nascente. O projeto piloto formou a primeira turma de defensores ambientais mirins, em 2016. De lá para cá, cerca de mil crianças tiveram a oportunidade de aprender sobre a conservação do meio ambiente e sustentabilidade, tudo isso de maneira complementar ao que é ensinado nas escolas, normalmente. RE D E M O IN H O | 5 7


“Guardiã da água”, em 2016

Trabalho de formiguinha

Nágylla Soares, 21, é instrutora no projeto há dois anos. Ela comemora a oportunidade de compartilhar o conhecimento com crianças. “Eu sinto muita satisfação por trabalhar com eles. É como eu digo a gente não só ensina, mas aprendemos muito e é muito legal chegar lá e ver o engajamento daquelas crianças, eles se interessam e levam o que falamos muito a sério”, relata. Além disso, a experiência trouxe para ela, assim como para outros estudantes da Universidade de Brasília, a oportunidade de se engajar em eventos importantes relacionados ao meio ambiente. “Tive a possibilidade de participar do 8º Fórum Mundial da Água que ocorre sempre em um país diferente e teve aqui em Brasília. Com o passar do tempo eu fui amadurecendo, fui crescendo muito como pessoa”, conta Nágylla. Outra estudante do curso de Saúde Coletiva na UnB que participa do projeto é Lorranny Xavier, 19. Para ela, aplicar a teoria na prática dentro do Agente Ambiental Mirim é essencial, além da possibilidade de ensinar quem vai um dia cuidar do planeta. “É uma iniciativa que vai incentivando outras pessoas porque o conhecimento é esse, ele nunca para. Ele sempre vai se renovando. Uma coisa que aprendemos hoje e repassamos para outras pessoas e essas pessoas vão repassando para outras, no fim vira um trabalho de formiguinha”, constata. De acordo com as experiências de Nágilla e Lorranny, no final das contas, o objetivo central das professoras que levam à frente esse trabalho é consolidado com sucesso: o repasse do conhecimento e a esperança de um planeta saudável. Lorrany tira uma lição de tudo isso para a vida: “Nós criamos uma maneira de pensar totalmente diferente do que antes de fazer parte do projeto. A gente começa a ter uma sensibilidade muito maior com as questões ambientais”. 58 | REDEMOI NHO

Aldíra Dominguez, coordenadora do projeto Agente Ambiental Mirim

Colhendo o que plantou

Durante seis meses de curso de agente mirim, os ensinamentos são muitos. Eles desenvolvem lições práticas como o uso racional da água, o destino adequado dos resíduos, o combate à dengue, à poluição, ao desmatamento e ao aquecimento global, dentre outros temas que surgem ao longo do tempo. Após esse aprendizado, os estudantes recebem um diploma considerado símbolo de compromisso com preservação do planeta. A professora Aldíra diz que a formatura acontece na própria UnB: “Fazemos questão de levá-las até lá para mostrar que a universidade é pública, gratuita e está ali. Também para elas se aproximarem desse mundo universitário, pois esperamos que cheguem um dia até lá”. Em cinco anos, o Agente Ambiental Mirim conquistou um grande espaço de reconhecimentos. Em 2016, a professora Aldíra e uma estudante, na época bolsista de extensão, receberam da Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento do DF (Adasa) o título de “guardiãs da água”. O programa participou Arquivo pessoal

Arquivo pessoal

Professora Aldíra Dominguez, de vestido azul, recebe prêmio da Adasa de

“O que me faz correr atrás disso é porque acredito que vai valer a pena, sim! Temos que fazer com que essas gerações possam usufruir o mesmo que eu, no que diz respeito aos recursos naturais”

Formação de mais uma turma do Agente Ambiental Mirim


também do Fórum Mundial da Água, que ocorreu em Brasília no ano de 2018, e fez parte de congressos e outros eventos fora da capital. O projeto de extensão da UnB tende a se expandir e fechou parcerias com a Adasa e com o programa Bombeiro Mirim, realizado pelo Corpo de Bombeiros Militar do DF, que objetiva complementar o processo educativo. Fora as crianças da escola classe 66 do Sol Nascente e do Recicle a Vida, alunos da Escola Classe 28 de Ceilândia e do Centro de Ensino Fundamental 2 da Estrutural tiveram a possibilidade de participar. Para a coordenadora das atividades, é possível que as ações se disseminem para outros pontos do Distrito Federal, futuramente.

Escola da Terra

Arquivo pessoal

A educação ambiental vai muito além de um discurso pró-natureza e está prevista na Constituição Federal por meio da lei nº 9.795/1999. Essa legislação estimula a adesão de valores sociais, habilidades, conhecimentos, atitudes e competências voltadas para a preservação do meio ambiente, de modo individual ou coletivo. Com base nessas informações e na realidade de uma comunidade no Entorno de Brasília, nasceu a Escola da Terra Nicandro Hosano Batista. Em 2018, a escola, que fica localizada na Cidade Ocidental em Goiás, foi reinaugurada, mas desta vez sob comando do professor de biologia do município, Josiel Barbosa. O então diretor da instituição viu a oportunidade de transformar aquele espaço em uma escola de educação ambiental formal. Hoje, o espaço atende uma média anual de 15 mil alunos, sem contar os produtores rurais. Aulas sobre preservação do cerrado, fauna e flora, sustentabilidade, e até mesmo sobre práticas rurais fazem parte do

E V O L U Ç Ã O

N O

B R A S I L

EDUCAÇÃO AMBIENTAL

Principais feitos pela educação ambiental no Brasil. Fonte: Ministério do Meio Ambiente

1808 Criação do Jardim Botânico no Rio de Janeiro

1850 A Lei 601 proibia a exploração florestal nas terras descobertas, mas foi ignorada

1932 1961 Governo declara o pau-brasil como árvore símbolo nacional, e o ipê como a flor símbolo nacional

1977 Implantado o Projeto de Educação Ambiental em Ceilândia

Primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza

1976 No DF, acontece o primeiro curso de extensão para professores do 1º grau em ecologia.

1981 Lei 6.938, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente

1987 Aprovada a inclusão da educação ambiental nos currículos escolares

1989

1988 Constituição dedica o Art. 225 ao meio ambiente e prevê a promoção da educação ambiental

Criação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente

1999 2002

Josiel Barbosa, diretor da Escola da Terra, no centro da imagem,

Lei 9.597 institui a Política Nacional de Educação Ambiental

Lançado o Sistema Brasileiro de Informação sobre Educação Ambiental e Práticas Sustentáveis

de camisa branca RE D E M O IN H O | 5 9


Bruno Taitson, analista do WWF-Brasil

Logomarca Escola da Terra

cronograma de ensino. Essas atividades condizem com a realidade do município, porque boa parte da economia da Cidade Ocidental é movimentada com base nas criações de gado bovino de corte e leite, no plantio de soja e na produção de doces de marmelo. Para Josiel Barbosa, o projeto está disseminando a preservação. “A satisfação que nós temos de ir à cidade e ver a marca da Escola da Terra, os pais e as crianças querendo participar das ações. O retorno

é exatamente a prática que as crianças têm em casa sobre o que aprenderam na escola, sobre o entendimento em conservar e preservar o meio ambiente”, conta.

Ação humana

Arquivo pessoal

Ações humanas se tornaram um dos motivos mais alarmantes para o meio ambiente ao longo dos séculos. É como se fosse um efeito dominó, um pequeno erro gera um grande desastre e há exemplos muito claros sobre isso. O aumento

Biologia também faz parte das lições na Escola da Terra 60 | REDEMOI NHO

exacerbado da população, de indústrias e empresas são alguns dos fatores de intensificação do desmatamento, da poluição da água, do ar e do solo. O estilo de vida insustentável dos seres humanos intensifica o agravamento do efeito estufa e do aquecimento global, com desastres na natureza como resultado. Nesse cenário, vale lembrar alguns fatos que mudaram o planeta e são resultado da ação humana, como o lançamento de bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, no Japão, em 1945, no contexto da Segunda Guerra Mundial. Ainda na área atômica, em 1986 houve a explosão do reator em Chernobyl, na Ucrânia, cidade que continua inabitada até hoje por causa dos níveis de radiação. No Brasil, há o inesquecível caso de rompimento das barragens de rejeitos da exploração de minérios em Mariana e Brumadinho, localizadas em Minas Gerais, nos anos de 2015 e 2019, respectivamente. Para o analista de políticas públicas do WWF-Brasil, Bruno Taitson, foco na educação ambiental é fundamental não somente nas escolas, mas em todos os âmbitos sociais. “Em qualquer faixa etária, Arquivo pessoal

Arquivo pessoal

“Pessoas precisam fazer a conexão das atitudes delas, de como elas voltam, de como elas consomem, de como elas usam os recursos naturais com a vida real e com a qualidade de vida delas”

“O professor tem que fazer das tripas coração em sala de aula e dar amor para as crianças. Isso é hipocrisia! Ele precisa ser valorizado e respeitado” Ailton Krenak, ativista e ambientalista

Lições de biologia com exposição de insetos e animais peçonhentos.


Arquivo pessoal

PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL

Em 27 de abril de 1999 foi criada a lei 9.795/99, que institui o Plano Nacional de Educação Ambiental (PNEA). Conhecida como lei de educação ambiental, surgiu com base nas preocupações de ecologistas e estudiosos em alertar sobre o uso insustentável dos recursos naturais bem como a destruição de florestas, uso excessivo da água e poluição industrial, entre outras ações.

Equipe educacional faz plantação de novas árvores na escola

em qualquer escolaridade, esse tipo de questão deve ser efetivamente discutida, ensinada, debatida, colocada na agenda das pessoas, na agenda pública. A gente costuma dizer tem a ver com as pessoas terem hábitos mais sustentáveis, quando consumir menos e conseguir com mais consciência, do sentido de também produzirem menos lixo e usarem com inteligência dos recursos naturais”. O analista do WWF também defende escolhas inteligentes nas eleições, com voto em candidatos preocupados com a questão da sustentabilidade. Sim, a política é importante. O líder indígena e ambientalista Ailton Krenak fez história ao participar da Assembleia Nacional Constituinte que elaborou a Constituição de 1988. Ele defende a melhoria da educação e da proteção ambiental a partir da valorização dos professores. “Se a gente for pensar a educação em termos do Brasil, só houve piora nos últimos anos. Eu não tenho

nenhuma satisfação de constatar isso, é triste. Mas, na verdade, é que tivemos uma descontinuidade do Plano Nacional de Educação Escolar. Perdemos recursos que poderiam estar fomentando seminários, congressos, conferências, melhor preparação dos professores e a remuneração destes que continua sendo desprezível. É impossível melhorar a educação com professores que não estão sendo remunerados direito”. Ainda assim, profissionais como Aldíra Dominguez e Josiel Barbosa estão empenhados diariamente em mudar o lidar com o meio ambiente. Bruno Taitson, do WWF, entende que a educação é a chave de tudo: “Por isso que é de fundamental importância que os jovens, as crianças tenham acesso a esse conteúdo de sustentabilidade. A gente não pode deixar de acreditar que a educação juntamente com as políticas públicas são os grandes fatores que provocam transformações na sociedade”.

O PNEA visa disseminar informação, conhecimento e tecnologias sustentáveis, aperfeiçoar as metodologias de ensino das escolas públicas e privadas, visando à conscientização de gerações futuras mais sustentáveis, além de outros assuntos pertinentes ao tema. Apesar de duas décadas do surgimento dessa legislação e das políticas públicas, a prática ainda é desafiadora pelo modo como o assunto é abordado. Quando se fala em direitos do meio ambiente ou da própria educação ambiental logo se assemelha à temática da fauna e flora, ou do processo de educação infantil mais simplificado. Mas o que ocorre é que as ações de todos os indivíduos estão inteiramente ligadas ao ecossistema e isso não pode ser ignorado. Quando se fala em empresas mais sustentáveis, por exemplo, é preciso uma conscientização contínua em não produzir resíduos perigosos, conforme são classificados. Logo, seguindo a mesma linha de raciocínio, ter empresas futuras mais responsáveis está ligado a gerações de pessoas mais conscientes, daí a importância da propagação mais ostensiva do tema.

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Victória Côrtes Vasconcellos

por: Ana Maria da Silva 62 | REDEMOI NHO


E DUCAÇÃO

Além do entretenimento Jogos digitais, antes vistos como distrações do aprendizado, hoje podem ser estratégicos na educação, na saúde e até no marketing, desde que usados com limite

por: Victoria Côrtes Vasconcellos

Com a evolução da tecnoestá mudando “É inegável que interativo logia, os jogos digitais têm o cenário do mercado, sido consumidos em larga os jogos digitais que já comprovou eficiescala no mundo inteiro. ência dos métodos em Versão mobile, para são importantes diferentes âmbitos. Hoje, de acordo consoles, ou computapara o dor, o número de gamers com os dados apresené cada dia maior. E o desenvolvimento tados na 19ª Pesquisa reflexo para gerações que de habilidades Global de Entretenijá nascem inseridas na mento e Mídia, realizada tecnologia não poderia ser pela prestadora de servicognitivas” diferente: os jogos digitais Rodolfo Medeiros, mestre em ços PwC, o mercado de educação estão revolucionando o jogos no Brasil já é o funcionamento de divermaior da América Latina, sas áreas além do entretenimento, como e quando se trata do ranking mundial, a educação, a saúde e o marketing digital. o país está na 13ª posição. Além disso, Mas existe um cenário em que o resultado também constatou que, no os jogos digitais são julgados como Brasil, o mercado deve crescer 5,3% até distrações, e muitas vezes são vistos o ano de 2022. A produção de jogos com maus olhos por profissionais da brasileiros, nos últimos anos, também saúde e da educação, como também cresceu consideravelmente. É o que por responsáveis por crianças e adoles- aponta o 2º Censo da Indústria Brasicentes. No entanto, a necessidade de leira de Jogos Digitais, realizada pelo implementar o dinamismo em um antigo Ministério da Cultura (atual mundo cada vez mais digitalmente Secretaria Especial da Cultura), em RE D E M O IN H O | 6 3


Carl Raw/Unsplash

“Como qualquer atividade feita por uma criança, é preciso supervisão de um adulto, que regule o tempo e observe se o jogo é adequado” Rodolfo Medeiros, mestre em educação

Annie Spratt/Unsplash

Em diferentes versões, os jogos digitais já são consumidos por 66,3% dos brasileiros

Mesmo com tantos benefícios, o período em que jogos são consumidos por entretenimento devem ter monitoria de pais 64 | REDEMOI NHO

2018. O levantamento revela que de 2016 a 2018 foram produzidos aproximadamente 1.718 jogos no país, sendo 874 games educativos, número ainda maior do que da produção voltada para o entretenimento, 785. O sucesso do mercado dos jogos educacionais não é à toa. Além de ser muito eficiente usar de uma estratégia que alia a educação e a tecnologia que hoje nasce junto com as crianças, a experiência lúdica proporciona aos alunos a visão de diferentes realidades e mundos. Jogos que utilizam a realidade virtual, por exemplo, podem levar os estudantes a lugares jamais pensados, como ao deserto do Saara, ou até à lua. O interesse, estimulado pelas mudanças nos métodos de ensino, é a chave para que os estudantes sejam desafiados continuamente e desenvolvam novas habilidades. Sendo assim, não só as matérias como matemática e português são mais bem recebidas pelos alunos, como também a criatividade e o interesse pelas artes são aflorados.

“É inegável que os jogos digitais são importantes para o desenvolvimento de habilidades cognitivas”, é o que afirma o mestre em educação Rodolfo Medeiros. De acordo com o professor, para você superar os desafios estabelecidos em um jogo, precisa ter determinado conhecimento, estratégias e soluções, tomando decisões rapidamente. “Pela tentativa de acerto e erro, você vai reconhecendo padrões que funcionam, outros que não, você processa informações, usa a criatividade, como também usa o pensamento crítico. Ou seja, você está fazendo o uso de uma série de habilidades cognitivas no sentido de avançar”, detalha. Apesar da visão positiva sobre o uso dos jogos na educação, é importante que o consumo seja monitorado e controlado. A preocupação com os vícios relacionados ao consumo exagerado de jogos, principalmente por crianças e adolescentes, portanto, não é descartada pelo mestre em educação. “Há crianças que ficam muito tempo


específico seja assimilado. Podemos de forma criativa e divertida fazer com que algo maçante se torne mais fácil”, explica. As estratégias para o desenvolvimento, portanto, devem ser alinhadas com o objetivo principal pelo qual o jogo está sendo criado. Os jogos também já são estratégias para a área do marketing. Chamado game marketing, muitas empresas têm procurado os jogos como forma inovadora de divulgar produtos. Além de chamarem a atenção por ser uma estratégia nova, os jogos são capazes de proporcionar uma experiência

Felipe Medeiros, coordenador do curso de Jogos Digitais do IESB

RE-MISSION

Christina @wocintechchat.com/Unsplash

envolvidas nessa questão do jogo e perdem um pouco a noção da realidade, deixam de fazer algumas atividades importantes do cotidiano”. Ele aponta a supervisão por adultos como o melhor caminho. Na perspectiva do desenvolvimento, o professor e coordenador do curso de Jogos Digitais no Instituto de Educação Superior de Brasília (IESB), Felipe Ferreira, abraça a ideia de que a tecnologia facilita o aprendizado e desenvolve o potencial dos alunos. “Por meio dos jogos é mais prático e intuitivo fazer com que um conhecimento

“Por meio dos jogos é mais prático e intuitivo fazer com que um conhecimento específico seja assimilado. Podemos de forma criativa e divertida fazer com que algo maçante se torne mais fácil”

Jogos digitais podem aproximar a empresa do público-alvo, quando bem direcionados

Criado em 2006, o Re-Mission é o jogo com objetivo de otimizar o tratamento contra o câncer, e é capaz de ajudar pessoas de diversas idades, incentivando a adesão aos tratamentos. Com várias opções de jogos simples e temáticos, os pacientes são estimulados a lutarem contra a doença. Na plataforma, hoje na segunda versão, há opções de games em que a primeira pessoa é o paciente que luta contra inimigos, que representam as células malignas. A efetividade do game foi comprovada por meio de uma pesquisa realizada pela revista Pediatrics, com 375 pacientes entre 13 e 29 anos em tratamento contra o câncer. O estudo revelou que aqueles que tiveram acesso ao jogo durante o tratamento foram capazes de manter os medicamentos no corpo durante tempo maior do que aqueles que não tiveram, apresentando melhores resultados. RE D E M O IN H O | 6 5


POSITIVO VERSUS

NEGATIVO COMPARAÇÃO PELA PSICÓLOGA RAQUEL ÁVILA

Quando bem utilizados:

Quando mal utilizados:

Jogos educativos podem favorecer a aprendizagem de conceitos matemáticos ou palavras de uma segunda língua

Podem comprometer relacionamentos ou atividades profissionais

Jogos esportivos podem permitir aos jovens conhecer e seguir regras específicas

Podem causar dependência

Podem favorecer a atenção, orientação espacial, raciocínio lógico e resolução de problemas

Podem ser utilizados como fuga de problemas reais

Jogos ativos podem encorajar movimentos físicos

Podem gerar baixo desempenho escolar

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única aos consumidores e construir a imagem positiva das empresas. Sobre isso, o programador e game designer Ricardo Lins explica que as experiências ficam mais leves quando os jogos são aliados das estratégias de marketing. “Temos que levar em consideração as principais propostas das empresas, para assim conseguirmos um resultado, unir tudo e colocar dentro de um jogo de uma forma criativa, deixando as pessoas o mais à vontade possível”.

Saúde eletrônica

Pesquisa realizada pelo Pennington Biomedical Research Center, em Louisiana, nos Estados Unidos, aponta que crianças de 10 a 12 anos acima do peso apresentaram facilidade para emagrecer por meio de videogame. Seja dança, luta, ou tênis, quando se trata das atividades físicas, os jogos fazem sucesso na vida fitness e apresentam benefícios para a saúde. Lucas Palma, estudante de 21 anos, já praticou vários exercícios pelo videogame e relata que a principal vantagem é a flexibilidade de horários. “Eu queria fazer um exercício, eu só ligava o videogame, colocava o jogo e fazia. Eu não precisava, por exemplo, me arrumar, ir até um lugar”, completa. Quando se trata da área da saúde, a solução é capaz de apresentar resultados impressionantes. Complementando a medicina, os jogos não precisam ser, necessariamente, criados para essa finalidade. Já faz parte do tratamento de muitos pacientes de fisioterapia o uso de consoles para jogos normais que exigem concentração e movimentos corporais. A sensação de ser recompensado não só nos jogos, como no resultado do tratamento, pode motivar os pacientes. No âmbito da psicanálise, existem diferentes opiniões sobre o consumo dos jogos. Ana Amélia Mansur, psicanalista e especialista em inteligência emocional e técnicas de estudos para crianças e adolescentes, explica que os jogos digitais podem ser benéficos, mas o excesso pode ser prejudicial. “Os jogos, se usados de maneira adequada e equilibrada, podem auxiliar na educação, na interação social. Infelizmente, o que vejo é o uso indiscriminado e excessivo, e aí sim, traz muitos prejuízos”. Entre as consequências do mau uso, a especialista aponta ansiedade, depressão, síndrome do pensamento acelerado e até nomofobia, o medo irracional de ficar sem celular. A game designer brasileira Thais Weiller é responsável pelo desenvolvimento de Rainy Day, um jogo focado em mostrar aos usuários que os hábitos e a rotina podem estar


indicando problemas psicológicos e que um profissional deve ser procurado. O game tem uma narrativa baseada em fazer com que os usuários tomem decisões para iniciar e dar continuidade às tarefas do dia a dia. Quando o jogador escolhe opções como ir ao trabalho ou à livraria o jogo, que inicialmente é em apenas uma cor, reconhece como opções positivas e fica colorido. Apesar da longa discussão acerca do consumo dos jogos digitais, as influências positivas têm tomado grandes espaços. Sendo assim, pedagogos e psicólogos acreditam que o bom uso dessa ferramenta pode contribuir para a evolução tecnológica de diversos âmbitos.

CUIDADOS A SEREM TOMADOS Confira parte do bate-papo da Redemoinho com o psicólogo Nikolai Sousa sobre a relação da psicologia com os jogos digitais. Como os jogos podem influenciar a vida dos jovens? Além da motivação por diversão e curiosidade, há casos de escape também, seja se projetar no personagem para fazer o que não poderia na vida real, ou um distanciamento da realidade vivida que lhe traz um sofrimento em algum ponto. Como os responsáveis devem regular o uso por crianças e adolescentes?

“Os jogos, se usados de maneira adequada e equilibrada, podem auxiliar na educação e na interação social”

O que se tem em comum no consumo de diversas mídias é a falta de atenção dos responsáveis na classificação indicativa. Isto é um ponto muito importante a se atentar porque desde cedo a criança é exposta a conteúdos adultos que podem influenciar e prejudicar no seu desenvolvimento social.

Ana Amélia Mansur, especialista em inteligência emocional e técnicas de estudos para crianças e adolescentes Leslie Jones/Unsplash

Até que ponto o consumo dos jogos digitais é apropriado? Qualquer coisa em excesso faz mal. Além da parte do conteúdo consumido estar de acordo com a idade, muitas horas diante de uma tela também podem prejudicar a postura e a visão, causando dores no corpo e de cabeça. E é necessário se atentar à possibilidade de gerar uma dependência. Neste caso, o melhor é procurar ajuda profissional. Sendo assim, quais são os pontos negativos e positivos do consumo dos jogos? Existem diversas discussões relacionando jogos e violência infanto-juvenil e até adulta, sobretudo do gênero masculino, o que é um ponto bastante problemático e deve ser debatido com cautela porque isenta a responsabilidade da sociedade ao colocar um videogame ou computador como bode expiatório, a única justificativa de tal comportamento. Os jogos digitais também são uma ferramenta de desenvolvimento de comunidade, criatividade e até estratégia. Empresas grandes ou independentes estão cada vez se empenhando mais nos gráficos e em desenvolvimento de histórias, algumas trazem uma abordagem filosófica ou histórica no enredo, até mesmo para falar de saúde mental.

Alguns jogos têm o objetivo de fazer com que pessoas com depressão e ansiedade procurem por tratamento RE D E M O IN H O | 6 7


C U LT U R A

Camilla Siren

Arte, feminismo e resistĂŞncia

Na luta por reconhecimento e igualdade, mulheres artistas enfrentam preconceito e crĂ­ticas, mas se consolidam no mercado artĂ­stico

por: Giovanna Wobeto 68 | REDEMOI NHO


Bunker Art Lab

Camilla luta pelo reconhecimento da arte feminina em grandes festivais

Foi com a arte que Camilla conseguiu conhecer e colorir vários cantos de Brasília e do Brasil. Entre seus trabalhos favoritos está a participação no festival internacional “Além da Rua”, em Fortaleza (CE), em 2019. “Cada artista pintou a vela de um pescador. As velas iam zarpar todas juntas, só que o meu pescador atrasou, então, todas foram e voltaram para a areia e, quando o meu pescador chegou, Bunker Art Lab

Estabilidade financeira, valorização, reconhecimento. Estes são só alguns desejos comuns usados para escolher uma carreira. Agora, imagine o seguinte: uma mulher decide viver da própria arte. Pode não parecer, mas é uma decisão repleta de desafios, obstáculos e barreiras. Isto porque o trabalho de uma mulher é, historicamente, menos valorizado que o de um homem. Em seguida, a arte ainda não é valorizada como deveria no Brasil. Além do mais, faltam incentivos para que a valorização aconteça. Porém, nada disso intimidou cinco mulheres que você vai conhecer agora. Aliás, não só elas, como tantas outras Brunas, Camilas, Luísas e Nathálias espalhadas pelo Brasil. Antes, um convite para reflexão: O que é arte para você? Já reparou em quantas artistas vivem ao seu redor? Arte urbana, ilustração, bordado, pintura e mulheres fortes. Essa é a biografia da artista independente Camilla Siren, 23, em sua rede social. Camilla é formada em Design Gráfico pelo IESB e tem uma grande paixão: o grafite. Além disso, é militante pela valorização e respeito às mulheres. Começou a grafitar na adolescência e hoje garante o sustento por meio do trabalho autoral. “Vem sempre uma descrença das pessoas quando digo que sobrevivo com meu trabalho autoral. Algumas pessoas não acreditam por inocência mesmo, porque, realmente, é um meio muito difícil. Mas também tem outras pessoas que não acreditam pelo fato de não darem o devido valor à arte”, afirma. A artista ressalta que as mulheres se ajudam no mundo da arte, uma apoiando o trabalho da outra, mas cobra reconhecimento vindo de fora.

“Pintar com spray” é a especialidade de Siren

a minha entrou sozinha no mar. Eu vi aquilo e, nossa, foi incrível, muito intenso, muito à flor da pele, me emocionei”. A história de outra Camila também inspira. É a da tatuadora Camila Corrêa, 35, que veio a Brasília há 10 anos para ser professora temporária de educação física. Após 3 anos, com o contrato prestes a vencer, Camila começou a pensar em mudar de ramo. Apesar de gostar de dar aulas, não procurou emprego em escolas particulares. Trabalhou um tempo em academia, mas ainda não era o que estava buscando. Pegou, então, o dinheiro que havia juntado nos anos de docência e decidiu investir na arte da tatuagem. Comprou material, começou a treinar em pele de porco comprada em açougue, depois, em si mesma, e, quando se sentiu apta, começou a tatuar os amigos, que divulgaram o trabalho. Desde então, ganha clientes. As resistências foram grandes e ela relata o que ouvia dos pais: “Não, não pode, você vai jogar seus 4 anos de faculdade no lixo”. Atualmente, eles entendem e admiram muito o trabalho da filha. Camila tatua há 7 anos e hoje tem clientela fiel e divide o estúdio com mais três tatuadoras. Também pinta quadros sob encomenda e ama tatuar elementos da capital. “As pessoas gostam e querem tatuar Brasília porque representa quem elas são, onde elas vivem, onde elas nasceram, onde elas se apaixonaram”, explica. Camila Corrêa teve coragem para mudar a sua história, por mais traçada que parecesse estar. Ela não teve medo de encarar a mudança, planejou e, aos poucos, fez acontecer. É uma lição para quem não está verdadeiramente feliz com o trabalho que exerce. Sempre há tempo para aprender e tentar algo novo, diferente. RE D E M O IN H O | 6 9


70 | REDEMOI NHO

Arquivo pessoal

Os detalhes fazem toda a diferença no trabalho de Luísa

a empresária, a pessoa que marca tudo, que vai às reuniões, que faz o show, que monta o roteiro”. A participação de Nathália no The Voice Brasil alavancou a carreira, deu visibilidade e credibilidade. Ela também ganhou autoconfiança. Além dos shows na noite de Brasília, a cantora gosta de projetos sociais. Em 2019, participou do Brasília Rosa in Concert, um show feminino para apoiar instituições que ajudam mulheres com câncer de mama, e do Elas cantam Roberto, evento com o maestro do Roberto Carlos, Eduardo Lages, para apoiar entidades que cuidam de crianças carentes. Em janeiro deste ano, o show de Shodo Yassunaga

Arquivo pessoal

Os pais de Luísa são funcionários públicos, mas ao contrário do que seria o comum, foi ela quem os incentivou a seguirem seus passos. Hoje, eles trabalham junto com a filha na confeitaria. Apesar do sucesso, a artista confeiteira pondera: “O trabalho manual ainda é desvalorizado no Brasil, justamente porque as pessoas não sabem o valor do tempo. A gente senta e fica fazendo uma coisa por muito tempo, trabalhando com as mãos e muita gente não consegue valorizar esse trabalho”. Luísa foi à luta pelo que queria e A arquitetura e os monumentos de Brasília são tema para muitas tatuagens criadas por Camila pode ser um modelo para quem quer ter o próprio negócio. Mais, é uma artista, A arte da confeitaria sempre buscando aprimorar as técnicas Lembra da reflexão acerca do que é e superar a própria criatividade. Para arte? Não há outra definição para o que quem quer começar na confeitaria, ela a confeiteira Luísa Akemi faz, se não a dá o recado: “Vai fundo, porque dá resulde arte comestível. “Eu considero, sim, tado. Você pode começar em casa, não a confeitaria uma forma de arte, prin- precisa de um investimento muito grande cipalmente a área que sou especialista e consegue ter um retorno muito rápido”. hoje, que é a parte de Outra artista da decoração”, afirma. Ela capital sabia, desde “Tá, mas você fez de cupcakes decopequena, o que queria rados obras-primas. Os só trabalha com ser. E cresceu. É a cantora bolinhos personalizados Nathália Cavalcante, isso?” nos mínimos detalhes são 23, que participou do o carro-chefe da doceira, Nathália Cavalcante, cantora programa The Voice que diz entregar o seu Brasil em 2016. Ela está melhor em cada encomenda, como se se formando em Relações Internacionais fosse única. pela UnB, mas o sustento vem da paixão A história de Akemi é pura inspi- pela música. ração. Aos 14 anos, decidiu que faria “Já fui julgada pela minha carreira. cupcakes para vender na escola. Aos 16, Você fala que trabalha com arte, aí a passou em administração na Universi- pessoa fica assim: ‘Tá, mas você só trabadade de Brasília (UnB), cursou um ano, lha com isso?’”, conta. Ela relata que mas não gostou. Depois, aos 18, começou são muitos os desafios de uma cantora a cursar Gastronomia no IESB e, com 20 independente: “É como qualquer outro anos, se formou. Agora, aos 22, Luísa é trabalho que você seja seu próprio conhecida nacionalmente pelos cupcakes chefe, que você não seja uma pessoa impecáveis e pelos cursos que ministra. contratada e que tudo depende de você. Então, eu sendo cantora sou: a cantora,

Para Nathália, cantar é sua “cura”


Arquivo pessoal

aniversário de Nathália foi destinado a surtou. Porque é uma coisa muito inconsajudar o abrigo Fauna e Flora, que cuida tante, você depende só de você, não tem de animais. como passar para outra pessoa”, recorda Nathália é mais um enfatizando que o “Até conseguir Bruna, exemplo de quem seguiu a desejo da mãe era para ela carreira artística, buscando uma carreira no serviço um nome reconhecimento para seu público ou na área da saúde. no mercado, talento e trabalho árduo. A artista fez cursos Bruna se orgulha de cada dos seus trabalhos Além de viver da música, para aprimorar e conhevocê ainda ajuda outras pessoas por cer mais técnicas para vai ser muito desenhar letras, e ganhou perceber, existe arte por toda parte, para meio dela. É daquelas pessoas que amam cantar desvalorizado” espaço. Entres os trabalhos todos os gostos e estilos. A terceira, é que desde pequena. Quem em destaque, estão os diplo- os julgamentos existem e, provavelmente, também descobriu sua arte Bruna Carone, artista mas escritos à mão para a sempre vão existir com quem decida fazer ainda criança foi a artista embaixada da Venezuela. da arte não só um hobby, mas o sustento. Bruna Carone, 28. Porém, Bruna desabafa: “Até conseguir A quarta é que, com esforço e dedicação, Ainda menina já fazia o que viria a um nome bem forte no mercado, você há possibilidade de viver de arte. Por último, e talvez mais imporser sua arte, só não sabia que aquilo que ainda vai ser muito desvalorizada”. tante, vem o fato de as protagonistas ela tanto gostava era considerado trabalho artístico, muito menos, que possuía Arte é resistência dessas histórias serem mulheres. Fortes, um nome: lettering. Passou anos estu- Cinco histórias depois, algumas conclu- corajosas, perseverantes e cheias de dando para vestibulares de cursos que sões. A primeira é que ser artista não é atitude. Diferentes uma da outra, porém, não gostava tanto, chegou a iniciar várias nada fácil e demanda muito trabalho e com uma coisa em comum: o amor pela graduações, até que viu no lettering a investimento. A segunda: mesmo sem arte e por tudo que ela proporciona. oportunidade de sustento por meio daquilo que realmente amava. QUEM AS INSPIRA? Precisou passar pela aprovação da mãe: “Quando eu fui para a área das artes, ainda mais autônoma, sem faculdade, ela Saiba quem são as e os artis- Camila C. (tatuagem): Lincoln desiree.feldmann); Pri Barbosa tas que inspiram o trabalho de Lima (@lincolnlimartist); (@priii_barbosa); Bruna Carone, Camila Corrêa, Victor Octaviano (@victoroctaCamilla Siren, Luísa Akemi e viano); Victor Montaghini (@ Luísa (confeitaria): Nancy Nathália Cavalcante: victormontaghini); Silverton (@nancysilverton) e Christina Tosi (@christinatosi), Bruna (lettering): Cristina Camilla S. (grafite, bordado ambas participam do docuPagnoncelli (@crispagnoncelli); e ilustração): Kelsey Beckett mentário Chefs Table da Netflix, Lauren Hom (@homswee- (@kelseybeckett); Pomb (@ o qual Luísa também indica; thom); Lucas Malta (@ pomb_); Pedro Sangeon (@ lucasabilly); Victor Tognollo (@ gurulino); Magrela (@magma- Nathália (cantora): revela que victortognollo); Jackson Alves grela); Clube do Bordado (@ suas influências são os detalhes (@letterjack); Samuel Lenzi clubedobordado); Brunna que mais a encantam de vários (@samuellenzi); Na Lousa (@ Mancuso (@brunnamancuso); artistas, e cita algumas inspinalousa). Willian Santiago (@willian_ rações: Marisa Monte, Beatles, santiago); Desirée Feldmann (@ Frank Sinatra e Maneva. RE D E M O IN H O | 7 1


Gabriel Pinheiro

por: Ana Maria da Silva 72 | REDEMOI NHO


C U LT U R A

Além da telona Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, mas e o coronavírus? Covid-19 afeta a cadeia cinematográfica, que busca novos caminhos

por: Gabriel Pinheiro

Ao passo em que, no dia a dia, os cidadãos poderiam estar se sentindo em um filme, por conta da pandemia de coronavírus, os que trabalham com cinema no país foram atirados em uma dura realidade, a paralisação total das atividades profissionais. Trabalhadores que estavam em pré-produção ou filmagem foram enviados para casas, e sem possibilidade de trabalhar em home office, pela natureza da atividade. O Sindicato Interestadual da Indústria Audiovisual (Sicav) destaca que os ocupados nessa atividade somam mais de 300 mil no Brasil. Do outro lado da cadeia do cinema, as salas de exibição foram fechadas. Sem poder funcionar, não se pode contar com o dinheiro dos ingressos, fator essencial para manter funcionando bem uma rede de profissionais. O setor audiovisual já vinha sofrendo uma recessão muito forte desde 2018, a Agência Nacional do Cinema (Ancine) teve as atividades

reduzidas e muitos projetos ficaram parados em diversas etapas. Por outro lado, uma crise política, ataques por parte do governo de Jair Bolsonaro ao setor foram feitos. O presidente apresentou um projeto que previa corte de quase 43% no FSA (Fundo Setorial do Audiovisual), a maior fonte de fomento do cinema nacional. A Ancine determinou que os efeitos da crise serão levados em conta em processos de fiscalização, regulação e de prestação de contas, mas, para tanto, será necessário um pedido formal com justificativa. Isto se aplicará, por exemplo, para pedidos de dispensa de cumprimento de obrigações, como a suspensão de prazos para conclusão de projetos para captação de recursos. Outra medida anunciada propõe diálogo com o Ministério da Economia, através de uma Secretaria Executiva, para que sejam analisados os impactos da crise da pandemia do novo coronavírus sobre o audiovisual. Desta forma, RE D E M O IN H O | 7 3


profissionais, ao mesmo tempo em que colaboram para que o vírus não fosse disseminado. “Preferencialmente, as filmagens devem ser realizadas em local aberto e quando não for possível devem ser instalados equipamentos permitindo a circulação do ar; todos os equipamentos profissionais devem ser previamente higienizados e também higienizados após o seu uso; a higienização do set de filmagem é fundamental e deve ser constantemente realizada”, detalha Sonia.

“Vale entender que o que está em risco com este baque provocado pela pandemia não é só o fazer audiovisual, mas toda de toda a sua cadeia produtiva” Guilherme Lobão, jornalista e professor

Gabriel Pinheiro

as medidas econômicas apropriadas poderão ser articuladas. As 88 salas de cinema do Distrito Federal foram fechadas por decreto do governador do DF, Ibaneis Rocha. Em uma carta aberta às produtoras e profissionais do audiovisual brasileiro, Sonia Santana, presidente do Sindcine, sindicato que reúne trabalhadores da área, advertiu que todas as produtoras deveriam implementar e intensificar medidas para propiciar um ambiente seguro de trabalho aos

“Todas as produtoras deveriam implementar e intensificar medidas objetivando propiciar um ambiente seguro de trabalho aos profissionais” Sonia Santana, presidente do Sindcine Bruno Torres (à direita) estava em pré produção de uma série em Alto Paraíso chamada “A Sustentável Leveza do Ser”, para o Canal Futura

1936: Governo Getúlio Vargas

Linha do tempo do Cinema Brasileiro

cria o Instituto Nacional do Cinema Educativo (Ince) para promover e orientar a utilização do cinema como auxiliar do ensino

1896: Primeira exibição de cinema no Rio de Janeiro, por iniciativa do exibidor itinerante belga Henri Paillie

74 | REDEMOI NHO

1947: O escritor Jorge Amado, como deputado federal, propõe a criação do Concine, para cuidar da política de governo do cinema. Em 1966 o Concine é incorporado ao INC, antigo Ince


Kal Visuals/Unsplash

Crise na pele

Sem salário, trabalhadores do setor ficam sem opções

“É curioso, não existe uma pessoa que não esteja consumindo cultura neste momento, neste sentido, a paralisação tem seu lado benéfico e cumpre o seu papel: nos torna conhecidos e valorizados” Bruno Torres, ator, produtor e cineasta

Bruno Torres é ator, produtor e cineasta. Brasiliense. Seu desempenho no papel de Fê Lemos no longa-metragem “Somos Tão Jovens”, uma biografia sobre a juventude de Renato Russo, lhe rendeu uma indicação na categoria de melhor ator coadjuvante ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, o mais importante do país. Ele concorreu com Jesuíta Barbosa, Wagner Moura, Antônio Calloni e Matheus Nachtergaele ao troféu, vencido por Wagner Moura. Torres estava em pré-produção de uma série em Alto Paraíso, chamada “A Sustentável Leveza do Ser”, para o Canal Futura, porém, com a pandemia, tudo foi paralisado. “Além dela, eu estou com meu primeiro longa-metragem como diretor, A Espera de Liz, pronto para ser lançado comercialmente, estávamos escolhendo datas, e agora só vamos definir quando os trabalhos forem retomados”, conta. Ele também atuaria em um longa em junho. “Tudo ficou pendente, prejuízos são inevitáveis, porém, eu tenho uma visão otimista disso tudo”. Para o ator e cineasta, a humanidade vem sendo avisada há tempos de que nossa relação com o planeta gera

1969: Criada a produtora

sobrecarga. “Acho válido tudo o que está acontecendo, embora seja muito triste ver diversas vidas em jogo. As produções no Brasil todo foram paralisadas, e tem que ser mesmo. É momento da gente rever também a maneira que produzimos o audiovisual no Brasil e no mundo”, afirma. Ele classifica como nocivo o impacto ambiental de muitas produções. Bruno Torres acrescenta que a paralisação é um grande desafio pessoal para os profissionais e para o setor como um todo, mas espera lições positivas. “É curioso, não existe uma pessoa que não esteja consumindo cultura neste momento, neste sentido, a paralisação tem seu lado benéfico e cumpre o seu papel: nos torna conhecidos e valorizados. Importantíssimo esse dado neste momento, pois a importância da cultura e do setor vem sendo questionado há um tempo, e estávamos vindo com um histórico de censura de forma quase nazista”, analisa. Para ele, é importante ressaltar que o setor audiovisual “não foi paralisado na pandemia, foi paralisado antes, pelo governo Bolsonaro”. Torres afirma que bilhões de reais estão retidos no Fundo Setorial do Audiovisual desde 2019. A

1992: Apenas três filmes brasileiros chegaram às telas. Começa a ser produzida a Lei do Audiovisual, que entraria em vigor no governo de Fernando Henrique Cardoso.

estatal Embrafilme. O Estado passa a financiar a produção, enquanto o Concine se preocupa com a legislação do setor

1990: Na presidência de Fernando Collor, são extintos Embrafilme, Concine, Fundação do Cinema Brasileiro, Ministério da Cultura e as leis de incentivo à produção

2001: Substituindo a

Embrafilme, é criada a Ancine, agência do governo federal para executar a política nacional de fomento ao cinema RE D E M O IN H O | 7 5


afirma Marisa Peixoto

assessoria de imprensa da Ancine, no está parada”. O diagnóstico do jornalista dia 22 de abril, afirmou que a diretoria é enfático, o audiovisual já sofreu um colegiada da agência aprovou medi- duro golpe, do cineasta independente das para a reorganização do FSA e o aos festivais, passando pelas grandes restabelecimento de suas linhas de produções. investimento. “Estamos diante de uma nova O jornalista e professor de cursos virada no sistema produtivo, semede Comunicação Social Guilherme lhante ao da recessão de 1929. Veremos Lobão avalia que há muito em perigo falências de pessoas, de estúdios e de neste momento: “Vale entender que salas de cinema”. Ele observa que, o que está em risco com este baque neste momento, o exibidor que era provocado pela pandeconsiderado extinto é mia não é só o fazer “Aulas, consultas, o único que subsiste: o audiovisual, mas toda Cine Drive-in, em Brasítrabalho e a sua cadeia produlia. “Eis um modelo de tiva”. Para ele, vale que pode se entretenimento. exibição entender que cultura tornar o novo normal tem uma participação A procura para da experiência de ir ao enorme na economia cinema”, aposta Lobão, empresas mundial, para além que prevê desconfiança do que um olhar redue insegurança dentro de gravarem e cionista faz ver. “O uma sala de cinema por editarem aulas causa do coronavírus. audiovisual é afetado da mesma forma Como prevê Lobão, para EaD está a crise afeta a todos, que todas as demais correntes produti- crescendo muito” independentemente vas. E, como todos Marisa Peixoto, recém-graduada do tempo de mercado. em cinema os demais serviços, o Marisa Peixoto, 22, audiovisual precisará recém-graduada em se reinventar.” cinema e assistente de direção, comenta Lobão aponta para o fortaleci- que os problemas não são apenas pela mento das plataformas de streaming Covid-19, mas começaram há dois neste período. “O Disney + sem anos, com ataques e falta de apoio do querer chegou no momento de grande governo. “Infelizmente, ainda dependemanda, mas é preciso saber que demos de recursos governamentais mesmo estes dependem muito de toda para realizarmos o nosso trabalho. Em a cadeia profissional, que no momento Brasília mesmo não tivemos FAC (edital 76 | REDEMOI NHO

Arquivo pessoal

Arquivo pessoal

“Tudo isso gera uma incerteza e uma ansiedade, ainda mais no contexto onde eu acabei de me formar”,

que financia atividades culturais) ano passado, e por mais que esse ano está programado ter um, não sei como ele ficará após essa crise do vírus”. Por lei, o dinheiro destinado ao Fundo de Apoio à Cultura não pode ser usado para outra finalidade. “Tudo isso gera uma incerteza e uma ansiedade, ainda mais no contexto onde eu acabei de me formar e fico com a sensação de ‘será que conseguirei exercer minha profissão em algum momento?’. Por outro lado, Marisa admite que o audiovisual está circulando em diversas esferas. “Aulas, consultas, trabalho e entretenimento. A procura para empresas gravarem e editarem aulas para EaD está crescendo muito. Com as pessoas consumindo conteúdo com muito mais força, existe uma demanda para novos conteúdos, e existe também uma maior validação de que o streaming é, sim, uma plataforma viável de distribuição, coisa que nem todos os cineastas ou órgãos públicos entendem”.

Max já comentou a cerimônia do Oscar em 2019, ao vivo pela TNT Brasil


Chris Greene/FreeImages

Vírus também evidenciou a importância do setor

Mesmo diante de todo o caos e incerteza, Maria Peixoto conta que não perde as esperanças de que esse momento irá mostrar, principalmente para o governo e as empresas privadas, que investir em audiovisual e cultura não é desperdício. “Iremos, sim, passar por uma crise, como qualquer outro setor, mas acho que isso está mostrando a importância que o audiovisual tem na vida de todos, e que temos que lutar para isso continuar crescendo”, finaliza.

Nova realidade

Max Valarezo é criador do canal EntrePlanos, que já tem mais de 280 mil inscritos no Youtube. Por lá, ele faz análises aprofundadas semanais sobre filmes e o mundo do cinema. O brasiliense, que criou o projeto como trabalho de conclusão do curso de jornalismo na Universidade de Brasília , afirma que hoje o canal é seu trabalho integral. Ele apresenta uma perspectiva um pouco diferente para a pandemia: “Neste período de coronavírus, para mim, na minha rotina de trabalho de produzir conteúdo, não mudou absolutamente em nada.” Desde o início do projeto, Max já trabalha de casa e o tempo inteiro sozinho. “Eu tenho dois editores de vídeo, mas já faz mais de dois anos que a gente trabalha só remotamente”, explica. O trabalho dele, que se encontra na parte da cadeia audiovisual encarregada de pensar e refletir o meio, pôde facilmente se adaptar ao período, porém, em termos pessoais, ele diz sentir a diferença de forma mais acentuada. “Tá sendo chato não poder sair para ver os amigos, passar mais tempo com outros familiares que não estão aqui em casa, poder sair para andar de bicicleta, que era o meu exercício diário.”

CINEFILIA DE QUARENTENA Muitas pessoas em suas redes sociais relataram durante o período da pandemia que tiveram tempo de atualizar a lista de filmes assistidos. O cinema em casa ganhou força com o isolamento social. Max Valarezo, criador do canal EntrePlanos, que em 2019 comentou a cerimônia do Oscar ao vivo na TNT Brasil, fez uma seleção para o leitor da Redemoinho ver durante a pandemia. Confira! Enigma de Outro Mundo (The Thing) - 1982: “Você tem um grupo de pessoas que fica isolado no meio da Antártida. Ver esse filme nesse período acaba dialogando um pouco com o que a gente tá vivendo, porque é um filme que você tem um uma ameaça invisível e você fica meio desconfiado, não sabe quem tem ou não a ameaça. Esqueceram de Mim (Home Alone) - 1990: “Um garotinho isolado na casa dele e se divertindo às custas de dois ladrões que querem invadir a casa. Aí o isolamento passa ser uma coisa de ‘tô aqui na minha casa, preciso proteger meu território, eu vou usar isso aqui como a minha base para me sentir bem e estruturado’”. Náufrago (Cast Away) - 2001: “É um filme que você olha e percebe que a nossa situação com o coronavírus poderia ser pior. Você tem um cara que tá isolado da modernidade, sem poder ter acesso a eletricidade, internet e tudo o mais. Podemos pensar, poxa pelo menos estamos vivendo um momento em que a gente tem muitas opções e possibilidades”. O Iluminado (The Shining) - 1980: “Esse é pra quem quer realmente chafurdar na lama! O Iluminado é sobre como alguém pode simplesmente perder a cabeça no meio do isolamento social. Para esse tipo de filme tem que gostar da tensão”. Na Natureza Selvagem (Into the Wild) - 2007: “Ele mostra para gente que estar sozinho não necessariamente precisa ser algo triste e horrendo, pode sim ser muito bom e, muitas vezes, necessário. Talvez esse filme possa trazer uma perspectiva diferente sobre como é não ter ninguém à sua volta”. RE D E M O IN H O | 7 7


78 | REDEMOI NHO Lucas Figueiredo/CBF


E SPORTES

A bola é delas Altos e baixos marcam a história do futebol feminino no Distrito Federal desde 1963

por: Rômulo Maia

“Começamos numa brincadeira do dia das mães. Fizemos um torneio na rua mesmo e percebi que tínhamos muitas meninas que tinham talento pra jogar”. A história não é do início do futebol feminino brasiliense, mas poderia ser. O depoimento é de Lurdinha, que presidiu o extinto Guarany e relatou acima como foi a criação do time, em 1995. A história do futebol feminino em Brasília passou por diversas fases, desde as dificuldades constantes no começo até a recente melhora, ainda que não tão avançada, para alguns clubes. Mesmo com tantas particularidades, a capital federal tem sua importância no futebol feminino nacional, tendo inclusive atletas na seleção feminina principal, como Victória Albuquerque. Com apenas 22 anos, a jogadora coleciona sucessos em sua curta carreira. Em 2018, ainda jogando pelo Minas Brasília, ela foi campeã estadual e nacional da A2, a segunda divisão do futebol feminino, e de quebra foi titular e campeã pela seleção sub 20 no sul-americano. Em

2019, ela continuou a ter sucesso e foi contratada por um dos maiores times do país na modalidade feminina, o Corinthians, e por lá ganhou nada mais nada menos que a Libertadores de 2019. A coroação do grande ano veio quando fez o primeiro gol pela seleção profissional. “Foi um dos melhores anos da minha carreira, marcar como profissional e representar a seleção do meu país é algo que sempre quis e estou muito feliz por todo esse bom momento”. Outro sucesso que passou pelo futebol candango foi a centroavante Nathane Fabem, artilheira da libertadores e campeã do brasileirão no ano passado pela Ferroviária. Em 2012, ela teve boa passagem pelo Minas Brasília, sendo vice-campeã do DF. “Tivemos uma grande temporada, apesar da derrota na final do candangão”, diz. Antes do sucesso recente, o futebol feminino em Brasília teve diversas dificuldades. Os primeiros registros de jogos de futebol entre as mulheres no RE D E M O IN H O | 7 9


Guará FC feminino

Distrito Federal aconteceram em meados de 1963, quando o ex-administrador do Guará e hoje integrante do Ministério Público do Tocantins Francisco Bernardes fez um pedido inusitado à época aos dirigentes do Clube de Regatas Guará: montar um time de futebol feminino para jogar a preliminar do jogo festivo que comemorava os 14 anos da região administrativa, que seria disputado entre Guará e América Mineiro.

“Foi um dos melhores anos da minha carreira, marcar como profissional e representar a seleção do meu país é algo que sempre quis e estou muito feliz por todo esse bom momento”

destaque foi a atacante Veronica, que fez seis gols. O título ficou com a equipe do Vila Dimas, após disputa de um triangular final com o Jardim e o São Paulo Júnior. Naquele mesmo ano, uma seleção de jogadoras de todos os times foi escolhida para disputar a Taça Brasil, o equivalente de então ao campeonato brasileiro, com a camisa do Vila Dimas. A equipe foi muito bem e conseguiu já na sua primeira participação o vice-campeonato, perdendo para a fortíssima equipe do Radar. No ano seguinte, a equipe jogou em casa representando o Distrito Federal, mas novamente ficou com o vice-campeonato, em nova derrota para o Radar. Na final que aconteceu no Serejão, estádio que fica em Taguatinga, as brasilienses foram derrotadas nos pênaltis após o empate em 0 a 0 no tempo normal.

Campeões extintos

Até 2019 foram 23 edições do campeonato candango feminino, sendo 11 times campeões. Destes, oito times já não possuem mais a categoria feminina Maria de Lourdes Silva

Jornal do Guará

Um dos primeiros times de futebol de DF, equipe

O desafio era grande, poucas mulheres jogavam futebol nos anos 60. Uma das meninas que topou foi Leni Silva, então com 14 anos de idade. “Não era nada fácil a situação, naquela época o preconceito era ainda maior, assim como o apoio (falta dele). Sempre joguei com os homens porque as meninas acabavam batendo demais em nós. A carreira não deu certo porque ou era o futebol ou o meu emprego”, explica. Leni chegou a ser convocada para o mundialito feminino em 1986 antes de abandonar o esporte para trabalhar. O primeiro campeonato organizado de futebol para mulheres no DF aconteceu no mesmo ano de 1986, quando a Federação Metropolitana de Futebol do Distrito Federal criou um departamento de futebol feminino, algo inédito e inovador na época. A coordenação ficava com a Diretoria de Futebol Amador. O distrital teve seis clubes: Gama, Guará, Jardim, São Paulo Júnior, Sobradinho e Vila Dimas. O jogo inicial aconteceu em Sobradinho, com vitória de 9 a 1 das donas da casa sobre o Guará. O

Victória Albuquerque, jogadora do Corinthians Primeira equipe de futebol feminina campeã do candangão feminino, Flamengo Tiradentes 80 | REDEMOI NHO


“Eu fiquei feliz de ver que aqui em Brasília nós temos o mesmo tratamento que é oferecido aos atletas do masculino, diferente de outros clubes, aqui somos tratadas da mesma maneira, e isso é importante pra nós” Keyssiane “Keykey”, goleira do Real Brasília

Lucas Figueiredo/CBF

Victória Albuquerque comemora seu primeiro gol com a camisa da seleção brasileira

Outro time extinto, mas que fez história foi o Guarany, com o recorde de cinco vice-campeonatos locais. A presidente do antigo time, Lurdinha, recorda com orgulho o início da equipe, a partir de um jogo no dia das mães que deu certo: “Sugeri que fizéssemos um time de campo society para poder jogar mais. Fizemos um torneio, com apenas três equipes, pois na época tínhamos poucos times aqui, era uma fase ainda mais difícil, ganhamos, e seguimos empolgadas”. Lurdinha diz que as dificuldades eram enormes, incluindo falta de uniformes. A equipe do Gama, hoje bem conhecida pelas boas campanhas no masculino, também já teve time no feminino. Marcelo Gonçalo, narrador esportivo e criador do Blogama, site que acompanhava o futebol da região administrativa, explica que o time era uma espécie de terceirização, e não uma prioridade para o Gama. “No começo foi bem difícil, apesar do vice em 99, a equipe levava diversas goleadas que desmotivavam as atletas, mas ai foi melhorando o nível e crescendo, principalmente quando

chegou o treinador Célio Lino, que hoje trabalha com o futebol feminino em Portugal, mas nunca mais conseguiu chegar a finais e, após a saída do Célio, em 2019, a equipe se desfez”. Além das equipes que representam o Distrito Federal, a capital também sempre foi considerada uma das referências quando se trata do futebol universitário Lurdynha Silva

ou deixaram de existir por completo: Flamengo Tiradentes, Aruc, Iate Clube, CFZ, Apollo IV, Luziânia, Asscop e Capital. O maior campeão da história é o Cresspom, clube da Polícia Militar, com sete conquistas, seguido por CFZ, com quatro conquistas, logo após vêm o Minas Brasília com três e o Apolo IV, com dois títulos. A maior revelação do time com mais conquistas em Brasília é a atleta Dany Helena. Ela foi bicampeã pelo Cresspom, em 2014 e 2015, e é a jogadora que mais vezes foi artilheira do campeonato local, três vezes. Em seu último jogo pelo Cresspom, ela fez quatro dos oito gols da final do último título, conquistado em 2015. No ano seguinte, foi para o Iranduba-AM e na sequência pro Flamengo, virando em pouco tempo a melhor jogadora da equipe, sendo artilheira isolada da série A1 em 2018, e, com isso, conseguindo a sonhada convocação para a seleção brasileira.

Guarany comemora título de torneio antes do começo do estadual feminino em Brasília RE D E M O IN H O | 8 1


futebol feminino, o Candangão 2020

Marcelo Gonçalo

feminino. Em 2014, foi realizada aqui a primeira Copa Brasil Universitário de Futebol Feminino, a CBUFF. Participaram cerca de 700 atletas de 24 estados. Brasília foi representada pela União Pioneira de Integração Social (Upis), que chegou à final, mas acabou derrotada pelas representantes de Santa Catarina por 4 a 0. Algumas atletas que estiveram no elenco da Upis viraram jogadoras de futebol profissional no Distrito Federal ou em outros estados brasileiros.

Uma das primeiras equipes de futebol feminino do Gama 82 | REDEMOI NHO

Divulgação

Ricardo Botelho/Real Brasília

Real Brasília comemora seu primeiro título no

E hoje?

Jogar no Minas Brasília ou no Real Brasília é, hoje, o objetivo da maioria das jogadoras do Distrito Federal. São as duas equipes mais organizadas, que conseguem pagar salário às atletas e ainda oferecem ótimas estruturas. A diferença das duas equipes tem trazido o resultado em campo. Atualmente, os dois times Cresspom, maior campeão candango feminino com representam a capital federal, respectisete títulos, comemorando seu último, conquistado vamente, na A1 e na A2, as duas divisões em 2015 do futebol feminino nacional. O Minas Brasília tem condições que uma dívida de gratidão e resolvi voltar”, fazem inveja até a outros clubes grandes diz. do país. A equipe possui dois fortes apoiaA história da equipe se mistura a dores, o Minas Brasília Tênis Clube, local de Singol Santos, treinador que passou onde elas fazem todo o treinamento e têm oito anos à frente da equipe. Em 2011, toda estrutura à disposição, e também o enquanto treinador da Ascoop ganhou Centro Universitário Icesp, que oferece o campeonato brasiliense e disputou a patrocínio e bolsas de Copa do Brasil. Com estudo para as atletas. “Nós começamos o o fim da Ascoop por Uma das jogaGuarany em 1995, problemas com bolsas doras de destaque de estudo, Singol propôs da equipe é a meia numa brincadeira a criação de um novo time ao então presiRayane Rodrigues, do dia das mães. dente do Minas Brasília conhecida como Robinha. Descoberta Fizemos um torneio Tênis Clube, Wagner em uma escolinha Gripp. Nasceu assim o na rua mesmo, de futsal do Paranoá, Minas Icesp, hoje Minas ela chegou a jogar Brasília. “Foram anos e percebi que na Itália, mas voltou de muito aprendizado para o Minas Brasília, tínhamos muitas e trabalho a frente da equipe, o Minas Brasília segundo ela, por uma meninas que tinham foi um dos meus melhodivida de gratidão. ”Cheguei ao time na talento pra jogar” res trabalhos como temporada 2017, para treinador, agradeço por um torneio rápido, e Maria de Lourdes (Lurdinha), tudo que passei pela presidente do extinto Guarany agradei as presidentes equipe, as presidentes e fiquei. Desde então, tem feito um grande vi o quanto o Minas Brasília nos valoriza. trabalho ate aqui e merecem colher os Fui campeã do brasileiro série A2 e tive frutos e estar aonde estão”. vários títulos com elas também no futsal. A primeira participação no distrital Em 2019 fui pra Itália, foi uma experiên- foi em 2014, e de forma tímida, sem um cia muito boa, mas eu sentia que tinha resultado bom. Nos anos seguintes os


na Itália, um dos destaques do Minas Brasília

Minas Brasília conquista o título de campeãs do Brasileirão Feminino Série A2, feito inédito no futebol feminino candango

“Só estamos de pé ainda pra conseguir realizar o sonho das nossas atletas, queremos que evoluam e cresçam no futebol” Ricardo Botelho/Real Brasília

resultados foram aparecendo, e a equipe conseguiu ser tricampeã de forma consecutiva no candangão feminino, vencendo de 2016 a 2018. E não parou por ai, em sua primeira participação no brasileirão A2, em 2018, a equipe se consagrou campeã. Em 2019, a equipe teve dificuldades, mas conseguiu permanecer na série A1. No Real Brasília, que em seu segundo ano de história já disputa uma competição em nível nacional, as meninas também têm tratamento diferenciado. Todas as atletas moram em um hotel na Candangolândia, que fica próximo aos

Cláudio Bispo

Assessoria de Comunicação do Minas Brasília

Meia atacante Robinha, de azul, que já jogou até

campos de treinamento. O time feminino usa a mesma estrutura da equipe profissional. A goleira Keissyane, conhecida como Keikei, chegou ao Real este ano e comemora: “Eu fiquei feliz de ver que aqui em Brasília nós temos o mesmo tratamento que é oferecido aos atletas do masculino, o que infelizmente não acontece na maioria dos clubes no país. Aqui somos tratadas da mesma maneira, e isso é importante pra nós”. Diferentes das equipes que disputam as competições nacionais, vários times locais enfrentam dificuldades em Brasília. No Santa Maria, por exemplo, faltam patrocínio e estrutura. O time sofreu bastante, como conta uma das jogadoras e organizadoras da equipe, Amanda Alencar: “Hoje nós não temos nenhum patrocínio fixo, temos materiais de treino, mas ainda não é o ideal, também temos dificuldades com os uniformes e com os materiais pra usar nos treinos que são poucos. Só estamos de pé ainda pra conseguir realizar o sonho das nossas atletas, queremos que evoluam e cresçam no futebol”.

Amanda Alencar, atleta e dirigente do Santa Maria

DE CEILÂNDIA PRO MUNDO

Victória Guimarães começou jogando na Ceilândia, junto com a família, ainda no futsal, onde também fez uma grande carreira. No futsal também colheu frutos sendo diversas vezes campeã. Dos grandes momentos na carreira, um dos que mais a marcou foi o de atleta revelação da edição 2019 do brasileirão feminino, além da eleição para a seleção do campeonato. Estréia do Real Brasília em uma grande competição nacional, Série A2 feminina RE D E M O IN H O | 8 3





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