OUTUBRO 2021
46º Edição 7º ANIVERSÁRIO
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Indíce OUTUBRO 2021 04 ....... O
Ana Gomes
Mar Logo Ali |
06 ....... A Dignidade da Pessoa Humana e os Mariscadores do Tejo | Paulo Graça
08 ....... Cantinho do João | João Correia
10 ....... As “ameaças” da acção executiva | Fernanda de Almeida Pinheiro
12 ....... Porque Somos | José Luís Outono
14 ....... Flores na Abíssinia | Carla Coelho
16 ....... Crítica Literária | António Ganhão
18 ....... Junho, Mês da Consciência das Doenças Mentais - I | Maria Helena Carvalho Alves
22 ....... Pano para mangas | Margarida Vargues
24 ....... Ré em causa Própria | Adelina Barradas de Oliveira
28 ....... Presunção de Inocência | Renato Militão
34 ....... Manhã em Lisboa | Cid Orlando Geraldo
34 ....... Homenagem | Côrrea dos Santos
DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA DESIGN E PRODUÇÃO: DIOGO FERREIRA INÊS OLIVEIRA SITE: WWW.JUSTICACOMA.COM FACEBOOK: JUSTIÇA COM A
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Editorial
DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA
7 Anos de Escrita e Ser viço Em 7 anos de existência, JustiçA com A falou de tudo sem tabus e sem medos. Trouxe-nos olhares novos e diferentes, mostrou-nos outros rumos, outras formas de dizer, outras vivências e outros saberes. Fê-lo sempre de forma serena, de forma sensata e de forma a defender Direitos Fundamentais. Nunca negou o Direito à Liberdade de Expressão, mas também nunca pôs em causa Direitos de Personalidade. Não tem tendências, mas tende para os Direitos É feita de gente grande que tem corações grandes e multiplica os seus Talentos. Gente que partilha sem pedir nada em troca, de forma gratuita, pela vontade de dizer e partilhar, gente de palavra e que tem palavras e gestos. No dia 30.10.21 JustiçA com A vai para celebrar tudo isto e muito mais. E anunciamos já um Colóquio a 11 de Março (se a pandemia não se meter de novo pelo meio), com um tema sobre ser Mulher no século XXI que curiosamente será falado por muitos homens também. Neste número trazemos novidades, conversas, reflexões, vozes do direito pelos Direitos, poesia e fotografia, Mundos....... Parabéns a todos os que têm feito a JustiçA com A.
(No Outubro do 7º aniversário em que o Verão ainda não foi para celebrar connosco)
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E O MAR LOGO ALI Ana Gomes
O mar continua pendurado na janela da sala, mas já não é o mesmo (…)
José Eduardo Agualusa, Os vivos e os outros, 2020, Quetzal
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HABEAS CORPUS Os juristas adoram usar expressões em latim e Pilar não é exceção. As aulas foram poucas e, por muito que se esforce, não é idioma que dê para praticar como outra língua mais viva. Também não gosta de se exibir, embora muitas vezes lhe saia em latim o que hoje os jovens pensam do inglês: em duas ou três palavras, ou até num acrónimo, a síntese do que se quer dizer, sem hesitações do emissor nem dúvidas para o recetor. O mesmo sucede com a expressão habeas corpus, “que tenhas o corpo”. Num caso judicial de habeas corpus, recebido o requerimento, é o Juiz quem ordena a apresentação imediata do detido. Será o Juiz quem decidirá se restitui aquela pessoa à liberdade, se o seu corpo poderá vaguear pela rua, se poderá entrar no mar, se poderá reunir-se com os amigos, se poderá ir a um concerto, se poderá dar um passeio de mota, se poderá fazer tudo, sem que seja obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa, na expressão do art. 3.º da Constituição de 1911, a propósito das liberdades. O habeas corpus já estava previsto no artigo, § 31 e voltou a estar previsto na Constituição de 1933, no art. 8.º.
Foi o Decreto-Lei n.º 35043, de 20 de outubro de 1945, que regulou o procedimento a usar pelos cidadãos que se vissem ilegalmente detidos. Aí, o legislador justificou que só num estádio já não apenas de maturidade política, mas de excecional perfeição da organização judiciária, se consegue ir mais longe, até à garantia, não apenas indireta, mas direta da liberdade individual (…) A providência de habeas corpus (…) consiste na intervenção do poder judicial para fazer cessar as ofensas do direito de liberdade, pelos abusos de autoridade. A história mostrou que a liberdade dos indivíduos não foi suficientemente protegida, porque a Constituição remetia para a lei a definição das situações em que alguém poderia ser privado da liberdade. Hoje o procedimento está previsto no Código de Processo Penal e, como vimos na edição anterior da Justiça com A, transitou para a Constituição de 1976 de forma mais robusta do que estava em 1911 ou 1933, pois o art. 27.º elenca todas as situações em que alguém pode ser preso ou detido, excluindo todas as outras que a lei, um decreto-lei ou um decreto do Governo possam, por hipótese, vir a anunciar.
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Além da origem etimológica, a providência tem uma origem histórica que alguns situam no direito romano. No entanto, foi a “Magna Charta Libertatum”, de 1215, enquanto declaração geral de direitos, que veio garantir que nullus constabularius distringat aliquem militem ad dandum denarios pro custodia castri, si ipse eam facere voluerit in propria persona sua, vel per alium probum hominem, si ipse eam facere non possit propter rationabilem causam, et, si nos duxerimus eum vel miserimus in exercitum, erit quietus de custodia secundum quantitatem temporis quo per nos fuerit in exercitu de feodo pro quo fecit servicium in exercitu, i. e., e em resumo, que
NENHUM HOMEM LIVRE DEVA SER DETIDO, PRESO, PRIVADO DOS SEUS DIREITOS OU BENS SENÃO POR SENTENÇA LEGÍTIMA OU PEL A LEI DO PAÍS . Pilar trouxe de Londres uma reprodução do texto da Magna Carta. Tem-na pendurada. Está escrita em latim. Não conhece todo o texto que o King John assinou. Conhece os princípios que achava adquiridos há muitos anos pela Europa, sem retorno.
PAULO GRAÇA
A Dignidade da Pessoa Humana e os Mariscadores do Tejo
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princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da CRP), enquanto “dado prévio (a «precondição») da legitimação da República como forma de domínio político” nas suas dimensões, intrínseca do ser humano, aberta e carecedora de prestações, públicas e privadas, e expressão de reconhecimento recíproco, através da compreensão e respeito recíproco de uns com os outros fundamenta e fortalece outros direitos, como os direitos fundamentais dos trabalhadores enunciados no artigo 59.º.
vez mais residual, dos que sobrevivem de rendimentos, quer face aos que por razões várias sobrevivem de prestações de natureza social, quer face aos demais trabalhadores, o salário e os termos de que a obrigação laboral de que é sinalagma se estruturam, escoram-se em imperativos jurídicos, que o são porque o valor da dignidade da pessoa humana é sua pré-condição, e porque esta, porque socialmente fundada, aceite e absorvida, impõe que o sejam e o sejam da forma juridicamente reforçada que advém da sua inclusão no texto da Constituição.
Desde o Século XIX que a evolução social da Europa, em que geográfica e culturalmente nos situamos, foi gerando, paulatinamente, uma classe de pessoas cuja sobrevivência assenta em exclusivo na capacidade de ganho através de um salário que lhe é disponibilizado num “mercado”. Seja esse salário prestado por instituição pública seja por instituição privada, tenha a configuração que tiver, ele é o correspectivo de uma prestação que constitui parte fundamental do modo de vida de quem a presta, assegura as necessidades de quem o recebe e constitui para estes um limite da acessibilidade aos bens que o “mercado” produz.
O salário, enquanto factor de satisfação das necessidades básicas de sobrevivência do trabalhador e sua família, supõe-se digno, isto é, de valor que não só corresponda de forma justa ao valor da prestação que o gera mas, também, que permita pelo menos a sobrevivência condigna de quem o recebe. Por isso, a CRP impõe que a retribuição garanta uma existência condigna e a existência de um salário mínimo que atenda, simultaneamente, às necessidades dos trabalhadores e à dimensão e características de cada momento do “mercado” em que o mesmo é pago.
Enquanto elemento fundamental de diferenciação, quer face ao número, cada
O salário, enquanto prestação regular, é parte do desenho legal da subordinação,
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na relação que se estabelece com quem o paga e que se qualifica como “de trabalho” (artigos 11.º e 12.º, do Código do Trabalho), implicando um regime jurídico tendente à protecção de quem tem no salário o fundamento e a medida da sua da sua dignidade. Por isso, a lei protege o salário, impedindo, designadamente, o mecanismo da compensação, salvo nos casos expressamente previsto na lei (artigo 279.º do CT). Mas a dignidade da pessoa humana não esgota a sua projecção no salário: ela impõe que a relação que o gera conheça limites. O trabalho deve ser organizado em condições socialmente dignificantes, permitindo a realização pessoal e a harmonia com a vida familiar; deve ser prestado em condições de higiene, segurança e saúde; deve ser limitado no tempo, de forma a permitir o repouso físico e intelectual do trabalhador; em caso de perda involuntária, deve ser suprido por prestação social; em caso de acidente de trabalho ou doença profissional, deve gerar obrigações de assistência e justa reparação; Estes princípios, que a CRP enuncia no seu artigo 59.º são também projecções
do princípio da dignidade da pessoa humana e, como tal, estão (ou devem estar) absorvidos no nosso viver social. Ou não ?! Recentemente, e a propósito do surto de Pandemia que varreu o concelho de Odemira foi trazida aos olhos da opinião pública uma realidade, já conhecida, já denunciada, que jaz submersa na ignorância ou na indiferença de uma sociedade mais desperta para a “espuma dos dias” do que para as questões que a confrontam consigo própria. Não é preciso ser jurista para perceber que a realidade dos trabalhadores agrícolas de Odemira, na sua maioria imigrantes (ou migrantes - para que a ablação do “i” dê o conveniente ar da sua transitoriedade), pagos com salários abaixo do salário mínimo, obrigados a pagar a angariadores para trabalharem, sob condições fisicamente penosas em largas jornadas de trabalho, atafulhados à dúzia em cubículos, afronta a dignidade humana e não pode orgulhar o País que tal permite. Não é uma realidade única: às portas de Lisboa, outro fenómeno com características semelhantes exerce-se debaixo dos olhos de todos nós.
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Os mariscadores do Tejo, maioritáriamente cidadãos de países do Leste Europeu ganham a sua vida na recolha dos bivalves, geralmente em dois tunos diários, que coincidem com as marés. Para além de ser um trabalho perigoso, pelas correntes que caracterizam aquela zona do rio, estes cidadãos trabalham nas mesmas condições que os imigrantes de Odemira. Tal como aqueles são engajados e explorados por máfias que se portam como os negreiros do passado. Nestes casos a dignidade da pessoa humana não conseguiu sair das folhas da Constituição e não motivou as autoridades competentes, com a Autoridade para as Condições do Trabalho e o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras à cabeça, a colocarem cobro ao regime de semi-escravatura que se exerce a céu aberto às portas da capital de um País da União Europeia. Proh pudor!
FOTOGRAFIA DE JORGE CASTRO
A PSICANÁLISE EM TRÊS ACTOS
I ACTO A psicoterapia poderia ser um mistério para muitos, mas não certamente para o Dr. Gerald. O mesmo partilhava o seu consultório com sua esposa, também profissional da área. A área da psique humana ou, como eles carinhosamente a apelidavam, a “psi”. Lewis, por sua vez, nunca se deitou no divã pois, ciente das complexidades que o conduziam semanalmente às consultas com Gerald, assumia que as mesmas eram menos complicadas no conforto relativo da poltrona. Esta encontrava-se estrategicamente colocada no canto lateral direito oposto àquele onde Gerald se sentava também, numa poltrona, em tudo, igual. Graças à sua localização, em momento algum ficavam sentados de frente um para o outro porém, a visão periférica de ambos permitia, desde que sentados direitos com as mãos colocadas
nos braços das respectivas poltronas, percepcionar a presença de cada um e, por sua vez, tudo se compunha num gabinete espaçoso, mas não amplo, organizado como se assumisse que a descoberta dos egos exigia um espaço físico confortável, mas não demasiado grande não fossem os egos transformar-se repentinamente, e de forma indesejada, em alter ego ou super ego, ou em qualquer outra coisa do género apenas devido a um erro na gestão do espaço em que ambos se encontravam, semana após semana. O estratagema da visão periférica funcionava bastante bem, de tal forma que Gerald quase se desabituou de comunicar olhando para as pessoas de frente, como se tal não fosse necessário e, como se o seu outro sistema comunicacional evitasse constrangimentos. Quem falava e escutava, de acordo com
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CANTINHO DO JOÃO João Correia MAS CONFISSÃO NÃO É PSICANÁLISE
este seu método, sentia a presença do outro, vendo-o com a sua visão periférica e não se sentia forçado a mais. Nem a expressar-se corporalmente transmitindo involuntariamente sinais ao outro, nem tendo os reflexos mímicos de quem fala, frente a frente, com o outro. Na realidade, sabia Gerald que a tentação de imitar os gestos, a entoação, as expressões faciais de um interlocutor é um instinto humano indispensável à sua sobrevivência, mas Gerald queria contrariar essa tendência. Comunicaria com os seus pacientes, cada qual na sua poltrona, colocada cada uma no seu canto, cada canto ao lado um do outro de forma a que, caso fosse possível traçar uma linha recta saindo dos olhos de Gerald e do seu paciente, cada uma delas em direcção ao canto oposto, ambas se cruzariam a dado ponto e seguiriam formando um X no centro da sala onde se sentavam. Na realidade, os padres faziam algo semelhante no confessionário, mas aí, evitavam mesmo
qualquer contacto visual ou, quando o havia, o mesmo era apenas fugaz, como se por acidente se tratasse. Mas confissão não é psicanálise. Por sua vez, neste registo, Lewis desabafava sobre o principio do fim dos seus problemas ou, pelo menos, do que ele achava que seria o principio, do que seria o fim e por fim, do que seriam os seus problemas pois, como Gerald lhe disse uma vez, o fim dos seus problemas não seria mais do que um problema de principio. Ou seja, Gerald era confuso e era isso que o tornava encantador. Cumprimentavam-se, sentavam-se e, nesse momento, iniciava-se a sessão. (continua)
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AS “AMEAÇAS” DA AÇÃO EXECUTIVA
As “ameaças” da Ação Executiva
T FERNANDA DE ALMEIDA PINHEIRO
odos sabemos que com a reforma de 2003 a ação executiva criou um novo operador judiciário, o então denominado Solicitador/a de Execução e que mais tarde, em 2009, passou a denominar-se simplesmente por Agente de Execução, sendo este (ou um oficial de justiça) o responsável pela realização das diligências de penhora levadas cabo no âmbito de processo judicial executivo.
Se até 2013 uma simples oposição à execução por parte dos/as Executados/as fazia cessar, de imediato, a tramitação processual, e bem assim as diligências de penhora sobre os bens do devedor, até que o tribunal declarasse o direito sobre a ação (título) em causa, em 2013, com a alteração imposta pelo NCPC, essas diligências passaram a cessar apenas na presença de algum dos motivos elencados no artº 733 do CPC, sendo um deles (e talvez o mais habitual) o da prestação de caução.
A alteração legislativa em causa, gizada pela então pela Senhora Ministra da Justiça, Dra. Celeste Cardona, visava imprimir uma maior celeridade ao processo executivo, de forma a garantir ao credor a rápida recuperação dos seus créditos, salvaguardando a garantia dos direitos processuais dos/as executados/as, quando confrontados/as em juízo sobre as suas obrigações.
Sucede que, na esmagadora maioria dos casos, essa caução não é prestada por manifesta falta de capacidade financeira dos/ as visados/as, que não conseguem dispor, no imediato, para entregar nos autos, o montante correspondente ao valor da ação e despesas do processo, para poder discutir a demanda sem que seja afetado o seu património.
Ora, nunca é demais recordar que a maioria dos títulos executivos que se encontram plasmados no artº 703º do Código do Processo Civil (CPC) não são sentenças judiciais, que nos oferecem já uma certeza jurídica compaginável com aquilo que será a execução do património do/a Executado/a, para concretização efetiva do que já foi declarado pela justiça através dos Tribunais. De facto, e bem ao contrário dessa realidade, a esmagadora maioria das ações executivas que são tramitadas nos nossos tribunais têm por base os títulos executivos referidos na alínea c) e d) do supra mencionado 703º do CPC, ou seja, são os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal e que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação, são os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos e são também os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva, ocupando os títulos de crédito a maior parte desses processos judiciais, por via da atividade das instituições financeiras e de crédito ao consumo .
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Significa isto, como consequência prática desta realidade, que na esmagadora maioria dos processo, mesmo que sejam deduzidos embargos, continuam a ser executadas diligências de penhora, até que um tribunal venha declarar se têm, ou não provimento, podendo até suceder, como já vi acontecer, que o processo seja pago antes de ser proferida a decisão, tendo o processo sido extinto, por inutilidade superveniente da lide, com base no pagamento, sem que nunca tenham sido julgados e decididos os embargos... E é assim que os/as executados/as vão vendo o seu património ser penhorado durante anos a fio, sem que sequer se encontrem representados em juízo por advogado/a, o que sucede quando o valor da ação é inferior ao da alçada do tribunal da primeira instância, ou quando, sendo superior e esse montante, não forem deduzidos embargos, o que significa, na prática, que a esmagadora maioria do/as cidadão/ãs comuns, são parte num processo onde desconhecem as suas possibilidades de reação judicial contra a ação que contra si foi instaurada, como também a idoneidade do título que foi dado pelo credor à execução, a existência (ou não) da obrigação, os limites
legais das penhoras, ou o tipo de bens que podem ser objeto das mesmas. E é assim possível que pessoas singulares, ou empresas (que em Portugal, na sua esmagadora maioria, são Pequenas e Médias Empresas (PME) ou Micro-Empresas (ME)), podem ser alvo de diligências de penhora que, naturalmente, são realizadas à custa do seu património existente, para saldar as suas alegadas obrigações. É por isso imperativo que as regras da ação executiva sejam cabalmente cumpridas e os seus intervenientes processuais atuem com o máximo rigor possível, sempre respeitando os direitos legais e pessoais dos visados e as regras deontológicas impostas pelas profissões reguladas. Em face desta realidade, pese embora não sejam surpreendentes, não deixam de ser chocantes as diversas reportagens jornalísticas que foram exibidas este verão de 2021 (uma delas até acompanhou uma dessas “diligências de penhora de bens móveis”, levada a cabo por uma sociedade que, alegadamente, se dedica a “recuperar créditos”,) não podendo o visionamento das mesmas deixar de nos fazer questionar se, afinal, o processo executivo nacional se transformou numa espécie de faroeste, ou se as regras processuais foram agora substituídas por profissionais que, ao estilo do Xerife de Nottingham, ameaçam e agridem pessoas e os poucos advogados presentes, perante inércia de muitos dos membros de Órgãos de Policia Criminal (OPC) ali presentes, dentro dos seus domicílios pessoais e profissionais, executando penhoras de legalidade muitíssimo duvidosa.
(independentemente do valor da causa), já que um processo judicial não é (nem deve ser nunca), um filme de cinema e nem o Agente de Execução que preside ás diligências, pode receber “ordens” do degradantes do Exequente (como podemos atestar através das imagens e do som transmitidos em mais eu uma das reportagens televisivas), precisamente porque existem direitos pessoais e processuais dos/ as Executados/as que devem ser garantidos, independentemente destes/as serem ou não responsáveis pelo pagamento dos seus créditos perante seus credores. Talvez a visualização destas reportagens que chocam qualquer um/a habituado a viver há quase 50 anos sobre a égide de um estado de direito democrático, nos faça trazer à luz e ajude a concluir a investigação criminal que se encontra em curso há meses, que terá sido iniciada depois de diversas denuncias das vitimas destas “diligências”, que nos retratam uma realidade tenebrosa e inaceitável, em que alguns (poucos), querem transformar o processo judicial executivo.
As reportagens em causa que deram origem a dois comunicados, um da Ordem dos Advogados (OA) e o outro da Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução (OSAE), evidenciam bem quais as regras legais que são impostas aos operadores judiciários durante este tipo de diligências, os seus limites e a necessidade de constituição de mandatário nestes processos
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PORQUE S
PORQUE SOMOS Porque somos os olhares criticados de presenças multifacetadas, no imaginário florir de horizontes nublados onde escrevem voos aves inocentes e destemidas, num mar questionador de clarezas e determinações onde assuntos pendentes mascaram-se de certidões e impostos poluidores de pensamentos absurdos. Porque somos alma e fado, cantos e encantos em sonetos diagnosticados de leituras ditas complexas. Ah país de fato preto meu país engravatado do grande amor em soneto da grande desgraça em fado. Porque somos grito de liberdade, mas com receios de fados intercalares onde questionamos o ser e o exercer. Porque somos contos infindáveis, onde o posfácio insiste nas reticências dos veludos criativos, em traçados geográficos de terras flutuantes, nos desperdícios da poluição inglória mas galopante, no extermínio das raízes incautas onde as algas perdem a coloração do iodo, e o sal sofre perda de valores sem justiças justas. Porque somos mera numérica de sobreviventes, aceleramos os actos de um virtual natural, não vá a foz fechar a voz de rios ontem naturais, hoje talhados nas conveniências de múltiplas inconveniências.
AGU«Á CIOSLÊN SED»
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SOMOS José Luís Outono
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FLORES NA ABISSÍNIA Carla Coelho
RECEBO A NOTÍCIA COM ALEGRIA. PAULINE CHIZIANE GANHOU O PRÉMIO CAMÕES ESTE ANO. Descobri-a no ano passado em pleno confinamento pandémico. Senti alguma vergonha por ter demorado tanto tempo a chegar a ela. Afinal tem muitos livros publicados em Portugal e eu sou uma leitora que luta contra o cânone. Mas enfim, as coisas são como são e o que posso dizer é que, uma vez descoberta a escrita desta autora moçambicana, ela passou a fazer parte dos meus escritores de cabeceira. Aqueles que nunca me abandonam e que fazem parte do meu dia–a-dia de tal modo
que se a encontrasse na rua creio que me dirigiria a ela com uma familiaridade que, em termos puramente sociais, é inexistente. O primeiro livro que li dela foi O Sétimo Juramento, tendo-se tonado uma das minhas obras favoritas. A acção decorre em Moçambique e tem na família constituída por David e Vera o ponto de partida. Ele é director de uma fábrica e ela dona de casa, procurando ambos reproduzir o modelo vivencial europeu, afastando-se das suas raízes africanas. Vivem de modo confortável, Vera subjugada às vontades e apetites do seu marido e senhor, que se esforça por antecipar. Neste ponto, a realidade descrita por Chiziane encontra eco na escrita de outras autoras como Oyinkan Braithwaite no seu livro de estreia A minha irmã é uma serialkiller. Para além do amarfanhamento de Vera o problema mais evidente da família é a estranha doença do filho Clemente, com crises que são entendidas
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CHIZIANE CHIZIANE
como ataques de loucura. O frágil equilíbrio da família desvanece-se logo nas primeiras páginas do livro. A contestação dos trabalhadores na fábrica leva David, já numa espiral descendente no início do livro, a perder-se cada vez mais, numa descida aos infernos que vamos acompanhando quase como se estivéssemos com ele nos vários episódios. Em busca de soluções David acaba por se envolver com magia negra. E mais não digo, para não estragar futuras leituras!
Sem nunca perder a ligação a Moçambique e às suas tradições (a magia negra e a poligamia são temas frequentes), a sua imaginação servida por uma linguagem rica e fluída puxa-nos para as suas histórias que evocam experiências e emoções que são comuns a todos os povos. A luta entre o Bem e o Mal, a paixão, as desilusões, a exploração do ser humano pelo seu semelhante, bem como a riqueza e a plenitude da natureza atravessam as suas obras
A este livro seguiu-se a leitura de Balada de Amor ao Vento e O Alegre Canto da Perdiz. Ambos confirmaram as minhas impressões iniciais que, aliás, conduziram a que presenteasse vários amigos com obras desta autora nos respectivos aniversários. Chiziane é uma contadora de histórias por excelência, termo que prefere à designação de escritora.
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de cuja leitura saímos mais ricos no modo como vemos o mundo. Paulina Chiziane nasceu em 1955 em Moçambique e tem uma vasta obra publicada em Portugal. Para quem não conhece, deixo a sugestão, agora reforçada pela atribuição do mais elevado galardão de letras lusófonas.
ANTÓNIO GANHÃO Critica Literária
Da Meia-Noite às seis
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Da meia-noite às seis, Patrícia Reis, Dom Quixote, 2021
Existem vários romances sobre espaços exíguos, náufragos presos numa praia rodeada de penhascos, gente aprisionada numa casa da qual não consegue escapar, obrigadas a partilhar entre si o labirinto das suas vidas. Este é um romance passado em plena bolha pandémica, com as suas perdas e reinvenções, impondo novas formas de luto e fugas possíveis, sem milagres, “não vamos ficar bonzinhos”. As horas mortas de uma estação de rádio estabelecem laços de partilha entre pessoas que nunca se viram, nunca se falaram, mas com algo a dizer que é sentido por todos. A perceção de que a pandemia está lá fora, condenando-nos a viver relacionamentos de distanciamento, cada vez mais próximos aos das redes sociais. Susana faz o luto pelo marido, pela sua ausência, como se a sua morte tivesse despoletado a crise pandémica ao revés de ter sido esta a levá-lo. O luto é sempre uma
reinvenção do outro, tropeçando em palavras que o revelam por inteiro. O nosso mundo a minguar num universo abundante. O agitar das horas mortas para além do permitido, do esperado pela direção da rádio, a vida a surgir, inesperada, pessoas com algo para dizer, a desejarem ser escutadas, acreditando que a sua dor, de certa forma, também pertence aos outros. O vírus que nos apanha à traição e as traições que a vida nos reserva. O viver dentro de si e esgotar as palavras que se reservam aos outros. Patrícia Reis oferece-nos um romance intenso, belo, de resiliência à bolha que nos confina e de sobrevivência aos equívocos que vamos alimentando e, nisso, é absolutamente intemporal.
“Morreu com a imagem de alguém dentro de um fato branco, uma viseira, alguém que lhe terá dito, vai em paz, pareceu-lhe ouvir isso mesmo, ela não queria ir, mas tinha de ser, estava tão cansada.”
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JUNHO,
MÊS DA CONSCIÊNCI DAS DOENÇAS MENT “aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música”
MARIA HELENA CARVALHO ALVES
Com algum atraso, mas com igual pertinência, aqui estou para vos falar sobre como vi funcionar o acolhimento e tratamento de doentes mentais em três hospitais distintos, todos no distrito do Porto. Salvaguardo o facto de ter muita admiração e orgulho no nosso SNS, que tive oportunidade de comparar com o de outros países e continuo a pensar que é muito bom, mas podia ser melhor. Nada é perfeito nem nunca será, contudo, e quando confrontados com situações que lesam os nossos direitos ou de outrem, devemos denunciá-los para podermos contribuir para a sua resolução. Compactuar com ilegalidades ou com atentados aos direitos do Homem torna-nos coniventes nessas acções. Para que este texto não seja muito maçador vou reproduzir algumas situações a que assisti mas podem nem ter sequencia temporal entre si, escolhi as mais pertinentes.
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Começo pelo processo Kafkaniano da entrada no internamento. O meu concelho, Marco de Canaveses, assim como Amarante, Baião, Felgueiras, Penafiel e outros, tem como hospital de referencia o Hospital Padre Américo/Vale do Sousa em Penafiel. Se um dos habitantes desses concelhos tiver uma emergência médica será encaminhado para este hospital. Os doentes mentais, vítimas de tentativa de suicídio, etc., passam pelo mesmo processo. Só que, e isto é muito importante, o hospital de Penafiel não tem urgências de psiquiatria, apesar de ter um edifício ao lado, construído para consultas externas e internamentos nessa área da saúde (???). São sedados e enviados para as urgências do hospital de S.João, paga o SNS. Este hospital também tem internamentos, mas nunca vi ninguém ficar lá. Os doentes são vistos por um psiquiatra e no caso de necessidade de internamento, chamam uma ambulância privada (paga paga SNS) SNS e são transportados para o hospital Magalhães Lemos,
IA TAIS - II Porto, onde, estranhamente, não há urgências nem serviços noturnos e nem psiquiatras de serviço ao fim de semana. Quem entrar numa sextafeira é “drunfado” para aguentar até segunda-feira, quando chegam os médicos e isto se tiver sorte. Os doentes dos concelhos da abrangência do hospital de Penafiel serão transferidos para lá consoante existam vagas, podem passar semanas à espera. Estas transferências são realizadas com utilização de ambulâncias privadas (paga paga SNS). SNS) Nunca entendi o critério da escolha da empresa que vai fazer o transporte, mas calculo que dependerá tudo do administrativo que estará de serviço e que terá as suas simpatias e/ou interesses. Sei é que um doente de psiquiatria pode ser transferido numa ambulância sem condições absolutamente nenhumas (não sei como passam nas inspecções), com mais outro paciente sentado e mais uma maca onde um homem se tenta manter vivo, ligado ao oxigénio, sem qualquer apoio e acompanhados apenas pelo motorista. Não é difícil imaginar quantas viagens
foram cobradas numa só.....fica aqui um tema que poderá ser investigado por quem de direito. O serviço de psiquiatria do Hospital de Penafiel é um edifício construído de raiz para esse fim e relativamente novo. O internamento está sempre lotado e chegam a acrescentar camas em lugares inimagináveis para aumentar a capacidade. O corpo clínico é de um profissionalismo irrepreensível mas só está lá durante a semana e de dia. Alguém que tenha uma simples dor de cabeça durante a noite e pedir um paracetamol, medicamento à venda em supermercados, instalase o caos porque os enfermeiros não têm autoridade para dar um comprimido ao doente, têm que ligar para o serviços de urgência e pedir autorização a um médico que esteja a trabalhar aí. Surreal... Não me parece normal que uma pessoa que está internada com depressão, esquizofrenia, por tentativa de suicídio ou com outra doença mental, seja confrontada, numa só semana com duas tentativas de suicídio por enforcamento. Nunca entendi que tipo de supervisão existia para os potenciais suicidas, os enfermeiros estavam sempre fechados no gabinete
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JUNHO, MÊS DA CONSCIÊNCIA DAS DOENÇAS MENTAIS - II M A R I A H E L E N A CA RVA L HO A LV ES
envidraçado e cabeças enfiadas nos computadores, o pessoal auxiliar chegava a estar reduzido a um ou dois para cerca de 60 doentes. Cruzávamonos no corredor, a vaguear e quando estavam piores até pediam ajuda mas ninguém os ouvia. Um homem que foi encontrado por outro potencial suicida, que por infeliz acaso, tinha encontrado a própria mãe, morta, enforcada, em sua casa, estava em paragem cardio-respiratória, no quarto, tinha utilizado os canos que passam sobre o tecto falso e um lençol. Ele tinha estado todo o dia a dizer que não se sentia bem, ninguém quis ouvir e nem sei o resultado desta vida pois foi para os cuidados intensivos e nunca mais o vimos. Outra mulher com cerca de 30 anos tentou o mesmo, desta vez no chuveiro, na mesma semana, saio do meu banho e deparo-me com o cenário. Fiquei em estado de choque. Fixei apenas o rosto dela roxo e molhado, o chuveiro ainda a funcionar, senti o meu corpo petrificado e tive a certeza que se aquela vida dependesse de mim, naquele momento, eu não mexeria um músculo para a salvar. No dia seguinte fui visitá-la e ainda estava amarrada à cama, consciente, mas mal conseguia articular uma palavra de tão medicada
que estava. Mais tarde e segundo outra paciente, tive conhecimento que este incidente foi desvalorizado e constava no processo como uma tentativa de chamar a atenção!!!!!! No que diz respeito à sobrelotação, em 2021 encontrei uma situação bastante mais grave que em 2018. Ainda lá estavam muitos pacientes de há 3 anos atrás, a maioria abandonados pelas famílias, alguns a viver no hospital há tanto tempo quanto o tempo de existência do hospital, vestem roupas do hospital e ninguém os visita. Tenho a certeza que muitos deles estariam mais confortáveis num serviço de cuidados continuados pois não constituem perigo nem para eles nem para os outros. Limitam-se a estar sentados ou deitados, alguns deambulam, o acto de apanhar um pouco de ar fresco é limitado a um pátio com uns 100m2 e vedado por muros altos, de onde é visível uma nesga de céu e os últimos pisos do hospital principal. Neste aspeto, os serviços sociais não têm cumprido com a sua função e no meio disto tudo é gravíssima a situação dos idosos ali armazenados por não terem cabimento em qualquer outro serviço. As doenças que têm fazem parte do
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envelhecimento, não fazem deles doentes mentais, são apenas idosos, o lugar deles seria junto das famílias ou em lares para a terceira idade, mas não, levam-nos às urgências com uma gripe e desaparecem. Dão contactos falsos ou não atendem as chamadas para irem recolher os seus idosos. Acabam por ser entregues na psiquiatria. Deve ser uma das situações mais desgastante para os profissionais de saúde. É bastante fácil entender que enquanto os idosos estão internados não gastam dinheiro (paga paga o SNS) SNS e não dão trabalho, entretanto os bens e as reformas são gastas em benefício daqueles que deviam cuidar deles. Nem a lei dos Cuidadores Informais serviu para aliviar esta praga, pelos dados que tenho apenas entraram no sistema 300 e poucos pedidos de subsídio para esse estatuto. Afinal porque vão “prender-se” à troca de 350 euros mensais se o rendimento mínimo de inserção são quinhentos? Não sou contra subsídios, sou contra a falta de controle na atribuição, também aqui os serviços sociais falham. Um dia, estava a sair do meu quarto e vejo uma situação chocante: pelo comprido corredor vinha um idoso acompanhado por um auxiliar de saúde que o agarrava pelo braço esquerdo, esquálido, vinha nu, apenas uma fralda e a suprema humilhação de carregar a própria urina num saco, na mão direita. Ia para a sala dos banhos assistidos que ficava para lá de meio do corredor. O olhar do idoso era o de alguém que tinha desistido de sentir e até de viver, olhar vazio de quem já não se importava com o que lhe faziam ou diziam, limitava-se a seguir em frente. Perguntei-me se aquela pessoa que o levava
não teria noção do quanto humilhante era a situação, de que aquele senhor era um ser humano, que provavelmente já poderia ter dado muito à sociedade, que não merecia (ninguém merece), passar por aquela humilhação, que deveria ter coberto a sua nudez nem que fosse com um lençol. Acredito que tivesse podido fotografar a preto e branco poderia fazer crer que a foto sairá dos arquivos de um qualquer campo de concentração da II guerra mundial. As comunicações para o exterior, outro caos. Em tempo de pandemia, sem visitas, sem acesso aos telemóveis pessoais (regra do hospital) começamos todos a ficar mais irritados, mais ansiosos, mais focados em insignificancias, um pandemónio. Não é que a administração teve a brilhante ideia de comprar (imagino o esforço económico) um único telemóvel para que os pacientes pudessem comunicar com a família. O mais caricato da situação eram as regras: os enfermeiros faziam o papel de telefonistas, só era possível ligar a partir de uma certa hora da tarde, cada paciente tinha direito a uma só chamada por dia, se telefonasse para alguém que não estivesse disponível tinha de dar a vez ao seguinte, se alguém ligasse de fora e nós atendêssemos, perdíamos o direito de fazer outra chamada. Entretanto e enquanto os pacientes faziam uma fila (foto foto a preto e branco) branco à porta do gabinete de enfermagem como se estivessem na fila de uma qualquer sopa dos pobres, todos os funcionários TODOS usavam os seus telemóveis durante o trabalho, atendiam e faziam chamadas e até acediam a redes sociais. E assim vai a saúde da saúde mental no nosso País, lamentavelmente.
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PANO PARA MANGAS Margarida Vargues
Preconceito Segundo a gramática esta não é mais que uma palavra derivada por prefixação, onde a “conceito” se junta o prefixo “pré-”, que significa anterioridade. Nada de extraordinário se se tratasse da resolução de um exercício sobre processos morfológicos de formação de palavras num teste de Língua Portuguesa, porém, ao analisarmos a palavra, a simplicidade muda-se para os antípodas e ficamos com algo entre mãos que, fazendo jus, a esta rubrica, dá pano p’ra mangas. Por todo o lado vemos grupos, mais ou menos organizados que lutam ferozmente contra os preconceitos que, quer queiramos quer não, estão enraizados na nossa sociedade. São os “ismos” e as “ias” da actualidade, como o machismo, o sexismo ou o racismo, a misoginia, a xenofobia ou a gordofobia. Podemos aqui também incluir o preconceito religioso, contra os pobres ou ainda contra portadores de deficiência. Com excepção dos extremistas que derrubam monumentos, queimam livros ou destroem filmes, como se quisessem apagar da memória
coletiva de um povo a sua história, estes grupos têm, na minha opinião, um papel relevante nos dias de hoje, mais que não seja para chamar a atenção, gerar burburinho, mostrar uma vontade de mudança. Há que arrancar as raízes como se de ervas daninhas se tratassem. Mas por onde começar? É difícil... Por vezes, na trivialidade do quotidiano usamos expressões que, analisadas, são testemunho da profundidade destas plantas invasoras. Não são nossas, apenas. Ouvimo-las dos nossos pais, dos avós e, para os mais sortudos, dos bisavós. Ouvimo-las também de vizinhos, da mesa ao lado no café, de familiares e amigos, dos amigos dos pais e dos avós que, de vez em quando, aparecem lá por casa para “dar de vaia”, que é como quem diz “dizer olá e ver como anda a familia”. Pensando bem, também as usamos e nem damos por isso, ou quando nos apercebemos já as dissemos. De todos os “ismos” e “ias” que referia acima há dois que me tocam em particular: o sexismo e a gordofobia.
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Os “ismos” e as “ias” do nosso mundo (A R a iz do Pr econceito) Numa outra vida convivi diariamente com uma pessoa – mulher, de salientar – que de vez em quando dizia, como quem não quer a coisa, que uma mulher jovem com filhos pequenos era um verdadeiro estorvo numa empresa. Porquê? Porque faltava muito, porque saía mais cedo, porque lhe doía a cabeça, a barriga ou a unha do pé. A sua produtividade era mínima e representava um prejuízo enorme a qualquer entidade. Ouvia-a. Calava-me. Afinal, precisava do emprego... As raízes cresciam cada vez mais fundo. Quanto à gordofobia, e não sendo eu obesa – “ligeiramente” mais pesada do que o desejado, pois herdei a amplitude da minha avó – volta e meia levo com ela, especialmente, nas ancas. Tem a certeza que lhe vai servir? Que número de calças veste? Depois não pode trocar. Ouvi isto há dias depois de ter solicitado uma peça de roupa que sabia ser o meu tamanho. Grandes marcas já iniciaram este processo de re-educação da sociedade. Fazem por passar a mensagem de forma a chegar às massas. E fazem-no porquê? Porque acreditam? A medo? Conscientes da necessidade? Ou apenas para calar algumas bocas? Teria de levar a cabo uma investigação mais profunda para ser mais assertiva nas conclusões, se é que as há.
Tenho dúvidas. Muitas dúvidas mesmo. Até porque num mundo de Big Brothers e outros que tais, “outros valores se alevantam” – com o perdão de Camões pelo uso da expressão. É tão mais fácil carregar no ícone de “skip”.
O preconceito está nas palavras, nos actos e espelhado no rosto. Melhor: no olhar! – já que o uso de máscara oculta muito do que dizemos sem abrir a boca, como o sorrisinho trocista, o nariz franzido, os insultos em surdina que não precisam ser pensados e podem ser balbuciados,... A lista é infindável. Cabe a cada um de nós prestar atenção ao que faz, ao que diz, ao que vive. E de cada vez que pisarmos o risco, tenhamos consciência disso. Não podemos voltar atrás, mas compete-nos não perpetuar o erro cometido. A mudança somos nós que a fazemos. Sejamos o exemplo para quem está ao nosso lado e pouco a pouco começaremos a ver o jardim que nasce onde havia ervas daninhas.
Basta passar os olhos pelas redes sociais, especialmente pelo Instagram, Youtube e TikTok – sim, aqui não há só adolescentes a dançar! Deslizamos o dedo pelo ecrã do telemóvel e eis que algumas das tais marcas surgem a cada 4 ou 5 publicações. É de aplaudir, sem dúvida. Mas...e na prática? Será que a mensagem é verdadeiramente integrada?
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AS PEGADAS ECOLÓGICAS E AS CHICUELINAS HIPÓCRITAS 24
RÉ EM CAUSA PRÓPRIA Adelina Barradas de Oliveira
Lembro-me que aprendi a tratar bem todos
das memórias infantis ignorando o Dever Ser.
os animais e recordo as partilhas que tinha com eles nas férias, de como criava laços e de
Recordo como me senti feliz por, na altura
como era o adeus que lhes dava quando se
do meu mestrado, me deparar com o livro do
iniciavam os anos escolares longe de todas as
Professor Eduardo Vera Cruz – Curso Livre de
folgas e criaturas de Verão.
Ética e Filosofia do Direito
É claro que a pressa da vida é cega e,
Todo
com o tempo, esquecemos todas essas
impulsionadora e o livro não o é menos.
sensibilidades, sentimentos ou talvez ligações
Eu que já tinha uma enorme consideração
com os outros seres.
pelo Professor, rejubilei quando me deparei
Embora eu fosse apenas uma criança nascida
com as seguintes passagens no seu livro:
este
título
é
de
uma
liberdade
e criada na cidade que se deslocava aos arredores e ao sul para poder correr, sorrir
“Na literatura com autores bem conhecidos –
e respirar ar puro e partilhar o Verão com os
em que saliento La Fontaine – os animais são
primos e os tios, gostava de sujar-me sem
motivo para a afirmação de regras morais
restrições e andar com coelhos bebés e gatos
destinadas à perfeição do humano, do Homem
ao colo, montar a cavalo sem sela ou estribo,
– e ao convívio entre humanos e essa dimensão
alimentar o burro do Manel Valente e correr
das fabulas interessa ao Direito”
atrás das galinhas, não deixar o cão dormir ao
(...)
relento e não deixar o gato sem comida.
Porque por princípio de Direito fixado a pensar no Homem, não devemos sacrificar qualquer
Mas nós “crescemos” com uma pressa
forma de Vida como modo de divertimento
alucinada (também alucinante), e um desejo
e só para isso, mesmo que quem mata se
devorador de Ser, e perdemos essas vivências
considere um artista e a encenação da
chegando mesmo a relegá-las para a gaveta
morte corresponda a uma forma de arte ou a
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RÉ EM CAUSA PRÓPRIA As pegadas ecológ icas e as ch icuel i nas h i pócr i tas
expressão de uma tradição popular.”
com o equilíbrio ou desequilíbrio ambiental do
(...)
séc. XXI.
O legislador de hoje poderia reler a legislação
Os séculos XVI e XVII tiveram pensadores como
de D. Dinis e aprender algo sobre o valor jurídico
Thomas Hobbes que lançaram a discussão que
da tradição e a sua formulação legal.
se estendeu até pelo séc XVIII e que se vê agora mais acesa no séc XXI.
O Direito exige como dever a cada pessoa que respeite a Vida dos animais, que não os torture
Não podemos negar que é uma questão
ou humilhe; que não os trate como humanos
eminentemente jurídica.
desrespeitando a sua condição animal. Não deixa de ser depois, uma questão económica Se o Direito é para os humanos, só há humanidade
porque, sabemos bem que se mexermos com
no Direito se este constituir como dever o respeito
os lucros de mercado do fast food, conseguir-
devido pelos homens e animais. “
se-á ter do lado dos direitos do animais os principais impulsionadores dessas indústrias
É que na verdade é tudo tão simples. Será que
de produção de carne para hambúrguer, de
não o intuímos?
transporte desastroso e indigno de seres vivos,
Será que desconhecemos as opções ou nem
da poluição provocada por todas essas indústrias
queremos conhecê-las ou vivemos submersos
de abate de animais em série para alimentar
dentro dos nossos umbigos?
um comércio voraz e inconsciente e, segundo dizem os entendidos aumentar o tal efeito de
Os instintos predadores dos humanos, as
estufa que nos leva à extinção. E ficarão do lado
ambições de lucro e sucesso a todo o custo,
dos que clamam por menos poluição e menos
levam a espécie a esquecer que não habita
tratamentos desumanos a animais porque os
sozinha este pedaço de Universo a que
seus lucros diminuírão com as nossas recusas de
chamamos planeta e demos o nome de Terra.
consumir os seus produtos.
Terra, te-rra, como se Terra fosse o centro absoluto do universo, a célula mãe do Universo,
É certo que terei de ler mais e estudar mais para
e nós humanos fôssemos Deus.
entender esta ligação da indústria de carne com o meio ambiente, mas, diz-se por aí que juntas,
É importante perceber que nos arrastamos nas
as cinco maiores empresas de carne e laticínios
mudanças ou na capacidade de mudar como se
do mundo já são responsáveis por mais emissões
a Vida fosse eterna. Este debate sobre os direitos
de gases do efeito estufa do que as empresas
dos outros animais não é de agora, não surgiu
petrolíferas isoladas, como a Shell ou a BP.
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Somos feitos de pó de estrelas... mas às vezes não parece.
alimenta as palmas os bravos e as flores. Teremos de matar constantemente para nos
Quem vai gosta, não se sente violentado. Quem
alimentarmos? E de “produzir” animais para abate
corre atrás de um cavalo e é sucessivamente
constantemente para nos alimentarmos? Não há
espicaçado, nas costas, no lombo, nos flancos,
uma forma menos predadora, pecadora, de não
não quer aquilo a que o sujeitam.
morrer à fome e habitar o lobo com o cordeiro? Continuar a permitir as touradas nestes termos Arrepiamo-nos, nós ocidentais, quando se fala de
leva-nos a fazer escolhas pessoais com efeitos
mercados que vendem cães e gatos para comer,
públicos e gerais.
mas não dispensamos um bom bife com batatas
Continuar a fechar os olhos a uma indústria de
fritas, uma caldeirada de cabrito, um coelho à
carne poluente e desenfreada é ser hipócrita
caçadora........ Estranho, não é?!
e esquecer a fome que há neste pedaço de Universo a que chamamos Terra.
Voltando à minha mentalidade da infância e
No sentido de que pecado é aquilo que me
parando para pensar, pergunto-me muitas vezes
pode prejudicar a mim ou aos outros, falo-vos
se é difícil entender o sofrimento de outro ser, o
de dois pecados neste texto: o pecado da Gula
entendimento que ele tem do Mundo em redor
e o pecado da Soberba, de mãos dadas na
e dos seres que com ele se cruzam. Criar para
nossa existência curta e cega.
consumir em série não é instinto predador? Não é gula e soberba?
Não vos peço que se confessem, peçam
A soberba de se entender superior a todos os outros
perdão ou se convertam. A única coisa que
animais inferiores, indefesos, vistos como bens de
pretendo é que voltem à vossa infância e ao
consumo ou apenas animais de companhia. Sem
vosso relacionamento com os outros animais,
dignidade, sem vontade, sem entendimento.
que isto de ser pecador não nos enxameei-a com as fúrias do Inferno mas, cria-nos o inferno
É por isso que entendo que a fixação da idade
que já vamos vivendo e estamos a preparar
para entrar em touradas é hipócrita. Não se vende
para o Futuro.
violência a menores de 16 anos mas deixamos que
É que neste mundo é que se paga tudo e é cá
tenham liberdade para decisões que os poderão
que o aquecimento global tem lugar.
violentar uma vida. Somos feitos de pó de estrelas.... mas às vezes Tentar numa chicuelina proibir a ida a touradas
não parece.
de menores de 16 anos é tentar “tapar o sol com a peneira”. A violência continua lá e não é para quem assiste, é para quem está no espetáculo, quem
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Mediatização do processo penal e presunção de inocência
Renato Militão
É comum afirmar-se que a mediatização de processos criminais pendentes, não só se mostra suscetível de ofender, como ofende frequentemente, o direito do arguido à presunção de inocência. Trata-se, todavia, de uma tese, no mínimo, questionável. O direito fundamental do arguido à presunção de inocência importa que este sujeito processual seja tido e tratado como não culpado até à passagem em julgado de sentença condenatória. Trata-se de uma dimensão do direito fundamental a um processo equitativo, o qual, em brevíssima síntese, requer que todo o procedimento seja informado pelos princípios materiais da justiça. O direito à presunção de inocência não deve,
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pois, ser compreendido restritivamente, designadamente sendo reconduzido ao princípio in dubio pro reo, como por vezes sucede. Apesar de a principal repercussão deste direito ser no domínio da prova, o mesmo possui uma amplitude vastíssima, com reflexos no processo penal em geral, no regime da organização e funcionamento dos tribunais, no direito penitenciário e no próprio direito penal substantivo, aqui, sobretudo, proibindo presunções de culpa. Ademais, o direito em apreço deve ser encarado com a mesma amplitude ao longo de todo o iter processual. É, pois, de rejeitar a tese – infelizmente frequente – segundo a
qual a presunção de inocência do arguido requer diferentes níveis de tutela, em função da evolução do processo, dado que quanto mais este avança maior é o convencimento da culpa daquele. Todavia, como todos os direitos fundamentais, também o direito à presunção de inocência se traduz num princípio. E também ele está sujeito à ponderação com outros direitos e interesses constitucionais, sobretudo com o interesse, inerente, desde logo, ao princípio do Estado de Direito Democrático, na realização da justiça penal. Deste modo, pode ser restringido para satisfação de tais direitos e interesses, em qualquer fase do procedimento. Ponto é que não seja totalmente postergado, antes devendo procurar-se soluções que harmonizem os bens em causa, assegurando a sua convivência equilibrada até onde for possível. Como sai precípuo do que já deixámos dito e resulta claro do art. 32.º, n.º 2, da CRP, o direito à presunção de inocência não é um direito de todas as pessoas. Somente nasce na esfera jurídica do arguido. Só este sujeito processual goza de tal direito. Pese embora deva adotarse, nesta sede, um conceito amplo de arguido, que abranja o suspeito. Bem se compreende que assim seja. Com efeito, ao arguido, lato sensu, é indiciariamente imputada pelo Estado a prática de um ilícito criminal, ou a sua preparação. Justamente por isso lhe confere a Constituição o direito a que o Estado não o trate como culpado, ou presumível culpado, antes o presuma inocente, enquanto não for condenado por decisão transitada em julgado. Assim, segundo cremos, o direito à presunção de inocência é uma posição jurídica perante o Estado, e não frente a particulares. Efetivamente, porque o exercício do jus puniendi é, pelo menos por enquanto, monopólio estadual, esse direito destina-se a proteger o arguido face ao Estado, maxime ao tribunal, ao MP, aos OPC e a quem os coadjuvar. Não visa protegêlo perante terceiros, designadamente em relação aos media e aos jornalistas, os quais não podem levar a cabo ações de obtenção
de prova danosas para direitos fundamentais do mesmo, nomeadamente buscas, revistas, apreensões e escutas telefónicas, aplicar-lhe medidas de coação, levá-lo a julgamento, decidir da sua culpabilidade ou inocência, puni-lo e executar a respetiva sanção. De resto, mesmo perante o Estado, por princípio, os direitos fundamentais conferidos ao arguido (e a outros intervenientes processuais), enquanto tal, somente protegem os respetivos titulares nessa qualidade. A título de exemplo, sublinhe-se que o direito fundamental à não autoincriminação, seja qual for a referenciação que se lhe reconheça, prima facie, não desonera do cumprimento de deveres de informação e de colaboração relativamente ao Estado, ainda que esse cumprimento importe declarações autoincriminatórias, apenas determinando que as informações assim fornecidas não sejam valoradas como prova, para efeitos punitivos, em processos desta natureza. Por conseguinte, do nosso ponto de vista, apenas comunicações de órgãos, entidades e agentes estaduais, rectius, que exerçam poderes públicos, e não já comunicações de particulares, nomeadamente de órgãos de comunicação social, poderão agredir o direito do arguido à presunção de inocência. Aliás, após ponderação do assunto nos respetivos trabalhos preparatórios, foi exatamente este o entendimento acolhido na Diretiva (EU) 2016/343, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 09/03/2016, relativa ao reforço de algumas dimensões da presunção de inocência e do direito de comparecer na audiência de julgamento em processo penal, como resulta, a contrario, dos respetivos considerandos, sobretudo do considerando (19), e do seu art. 4.º, n.º 1. De resto, em face desta Diretiva, ao menos por princípio, as próprias declarações de autoridades públicas somente violarão o direito à presunção de inocência se apresentarem o arguido como culpado, podendo e devendo tais autoridades prestar informações à comunicação social e ao público sobre processos criminais pendentes que não importem essa conclusão. Acresce que a Diretiva (EU) 2019/1937, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23/10/2019, relativa à tutela das pessoas que
De resto, a entender-se que a incidência dos media sobre processos criminais prejudica, ou é suscetível de lesar (...)
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Mediatização do processo penal e presunção de inocência R ENATO M I LI TÃO
denunciam violações de direito da União, a qual, no essencial, deve ser transposta para o direito interno até ao dia 17/12/2021, requer que os Estados-Membros estimulem, protejam e premeiem a «divulgação pública», designadamente através dos media, por particulares, de factos criminalmente relevantes e de provas dos mesmos, com vista ao êxito da respetiva investigação, medidas com as quais, clarifique-se, discordamos. Uma vez mais se conclui, pois, que a União Europeia e, por consequência, o legislador interno consideram que a revelação desses factos e provas, por particulares, no espaço público, nomeadamente através da comunicação social, não agride o direito à presunção de inocência dos visados. De resto, a entender-se que a incidência dos media sobre processos criminais prejudica, ou é suscetível de lesar, o direito à presunção de inocência, impondose a sua restrição para salvaguarda deste direito, em coerência, importará que tal restrição tenha lugar ao longo sobretudo na fase do julgamento. De facto, é nesta fase que se determina a culpabilidade ou inocência do arguido, produzindo-se e valorandose as provas apresentadas para o efeito, designadamente os depoimentos testemunhais. Todavia, é incontornável que, num Estado de Direito Democrático, por mais que se pretenda esconder os processos criminais da comunicação social e da comunidade, pelo menos as respetivas audiências de discussão e julgamento não podem deixar de estar sujeitas ao princípio da publicidade. Admitimos, porém, que, em qualquer fase do procedimento, fortes campanhas de imprensa, que afirmem inequivocamente a
culpabilidade do arguido, possam, indireta e mediatamente, acabar por afetar negativamente o direito deste à presunção de inocência. Neste sentido compreendemos a norma do art. 14.º, n.º 2, al. c), do Estatuto do Jornalista, que impõe aos jornalistas o respeito pela presunção de inocência. Perante essas situações radicais, a nosso ver, deverá, sempre que possível, abrir-se um amplo espaço de discussão dentro do processo sobre os seus eventuais efeitos neste, devendo, em qualquer caso, ser aí tomadas as medidas que, em fase das circunstancias, se mostrarem adequadas, necessárias e proporcionais para assegurar o referido direito. O que acabámos de dizer não chega, porém, para se ter uma perspetiva completa do tema. É que também a publicidade mediata do processo penal, concretizada através da comunicação social, é um direito fundamental do arguido, constituindo igualmente uma dimensão do direito fundamental a um processo equitativo. Efetivamente, reitere-se, o Estado imputa ao arguido, pese embora a título indiciário, a prática de um crime, agride, não raramente com enorme gravidade, sobretudo por virtude das investigações que realiza no âmbito do processo respetivo e das medidas de coação que aí lhe aplica, direitos fundamentais do mesmo, leva-o a julgamento e decide sobre a sua culpa ou inocência. Deste modo, logo desde o início, em abstrato, o arguido carece, tanto do direito à presunção de inocência, quanto da publicidade mediata do procedimento. No caso desta, para que a comunidade sindique a correção do comportamento dos órgãos, entidades e agentes que exerçam poderes públicos no processo relativamente a ele, o que afinal é dizer, em grande medida,
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para que o seu direito à presunção de inocência seja efetivamente respeitado. De facto, a publicidade mediata do processo penal permite que a comunidade fiscalize a atuação dos referidos órgãos, entidades e agentes, bem como, adiante-se, dos demais intervenientes no processo, nomeadamente assistentes, ofendidos, vítimas, partes civis e testemunhas, relativamente ao arguido, sendo inegável que tal fiscalização comporta um efeito disciplinador dessa atuação. Mas mesmo que na maioria dos casos os media não incidam efetivamente sobre os processos, a possibilidade de essa incidência se concretizar, só por si, afasta em grande medida eventuais tentações de agressões ilegítimas a direitos do arguido por parte dos restantes intervenientes processuais. Ao contrário, a opacidade do processo é suscetível de fomentar motivações e procedimentos anómalos, sobretudo por parte das autoridades judiciárias e dos OPC, e favorecer a ocorrência de graves violações de direitos dos arguidos, nomeadamente do direito à presunção de inocência. Desde logo porque o MP e, mais ainda, os OPC tendem a querer comprovar a prática de um crime. Instinto que igualmente poderá estender-se ao próprio juiz de instrução. O que é especialmente de temer nestes tempos em que atingir objetivos, só por si, assume grande importância para todas estas entidades, magistratura judicial incluída. De facto, a história, longínqua e recente, tem evidenciado à exaustão que o instituto propício ao desenvolvimento de agressões ao direito à presunção de inocência é o segredo de justiça. Ao invés,
é a publicidade do processo, principalmente a respetiva publicidade mediata, que permite minimizar essas agressões. Ademais, mal se compreende que, no quadro de um sistema processual penal que permite ao Estado comprimir grandemente o direito à presunção de inocência do arguido desde o início do procedimento, se pretenda que os media sejam impedidos de noticiar e opinar sobre processos dessa natureza para defesa do referido direito. Não fora coisa séria, não deixaríamos de gargalhar perante a defesa de tais restrições para se assegurar a presunção de inocência de quem está preso cautelarmente ou se encontra detido há vários dias para ser interrogado, prática recorrente das autoridades judiciárias, a nosso ver, as mais das vezes, ilegal. De resto, parecem ser muito raros os casos em que a atuação dos media acabou por gerar realmente, ainda que de forma indireta e mediata, lesões para direitos processuais de arguidos, designadamente para o direito à presunção de inocência. Os próprios autores que enfatizam os riscos dos chamados julgamentos paralelos não fornecem exemplos de relevo que sustentem os seus receios e as suas propostas. Justamente por isso, autores mais atentos têm alertado para a facilidade com que se invocam e se empolam os perigos dos ditos trial by newspaper. E pior ainda é o facto de os defensores da opacidade do processo penal para salvaguarda de direitos dos arguidos, designadamente do direito à presunção de inocência, esquecerem totalmente os casos em que, por ausência de publicidade mediata dos procedimentos, tais direitos foram gravemente agredidos. Não nos parecendo atrevido aventar que os casos em que a incidência dos media sobre processos pendentes acabou por lesar realmente os referidos direitos são incomensuravelmente menos numerosos do que aqueles em que, por não se ter verificado essa incidência, tais direitos foram seriamente ofendidos. Seja como for, à conta da alegada prevenção de situações, no máximo, raras, os adeptos do enclausuramento do processo penal para defesa dos arguidos sustentam soluções que envolvem um elevadíssimo potencial lesivo para
estes. Não relevamos, pois, o argumento, frequentemente invocado, segundo o qual, sendo vedada a publicidade mediata na fase da investigação, os arguidos que não cheguem a ser acusados não verão diminuído o seu direito à presunção de inocência. Para além do que já dissemos sobre as caraterísticas deste direito, sempre se trataria de um argumento redutor, uma vez que apenas considera hipotéticos benefícios pontuais para alguns arguidos, sustentando, à conta deles, uma solução suscetível de implicar enormes desvantagens para muitos mais arguidos. Tudo visto e ponderado, tendencialmente, o direito à presunção de inocência deve ser protegido por via da ampliação da publicidade mediata do procedimento e não pela restrição desta. Por este caminho apenas se alarga a margem para o desenvolvimento de gravíssimas agressões a esse direito. Como sustenta parte da doutrina, que acompanhamos, do ponto de vista da proteção do direito à presunção de inocência, é preferível um controlo público com defeitos, ou mesmo tendencioso, do que a ausência de controlo público. Sem prejuízo de considerarmos que deverão ser estabelecidas restrições pontuais à publicidade mediata do procedimento para garantia do mencionado direito, nos casos e termos referidos supra. Tal conclusão impõe-se hoje acrescidamente, quer perante a progressiva redução de garantias de defesa do arguido, quer em face da paulatina importação isolada de medidas de caráter securitarista e punitivista inerentes a outros modelos de processo penal e de direito penal substantivo, do que é exemplo a já referida promoção, proteção e recompensa da delação, incluindo na esfera pública, através da comunicação social, de factos de natureza criminal e de provas dos mesmos. É imperioso que os media deem a maior atenção aos processos criminais daí resultantes, logo desde a sua abertura, de forma a que os arguidos fiquem protegidos dos superlativos riscos inerentes a procedimentos desta natureza assentes em denúncias instigadas, apoiadas e presenteadas pelo Estado. Aliás, seria anacrónico que este restringisse a publicidade mediata de tais processos para assegurar a presunção de inocência dos respetivos arguidos. Acresce que, para além de ser um direito fundamental do arguido, a publicidade mediata do processo penal é um direito fundamental de outros intervenientes processuais particulares, nomeadamente dos assistentes, dos ofendidos,
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Mediatização do processo penal e presunção de inocência R ENATO M I LI TÃO
das vítimas, das partes civis e das próprias testemunhas. Consequentemente, a entender-se que a mediatização de processos dessa natureza agride, ou comporta o risco de lesar, o direito do arguido à presunção de inocência, sempre este direito teria de ceder em alguma medida para permitir a realização daquele outro. Porém, no quadro da CRP, a publicidade mediata do processo penal não é apenas um direito fundamental. É igualmente um princípio institucional. A nossa Lei Fundamental, globalmente considerada, mas sobretudo em face da centralidade e do amplíssimo âmbito normativo que confere ao princípio democrático, aponta para que, tendencialmente, o povo possa e deva conhecer, compreender, discutir e validar (ou não) os atos praticados no exercício dos poderes estaduais, não escapando a este programa os atos dos órgãos, entidades e agentes que exerçam poderes dessa natureza nos processos jurisdicionais, em qualquer das respetivas fases. Pese embora se dirija a todos os processos jurisdicionais, tal princípio impõe-se acrescidamente no que concerne ao processo penal. Desde logo porque, ao ter por finalidade a realização do direito que visa proteger, pelas vias mais agressivas, os valores de maior relevância para a sociedade, o processo penal é um assunto radicalmente comunitário e político. Acresce que, neste domínio, são inúmeros e profundamente danosos os poderes de que dispõem diversos órgãos, entidades e agentes estaduais ao longo de todo o procedimento. Ademais, logo nas fases iniciais deste podem ser proferidas decisões, bem como praticados ou omitidos outros atos, suscetíveis de afetarem grandemente a fase do julgamento e a decisão final, por vezes sem que tal seja, sequer, percecionado nestas. Consequentemente, mostra-se indispensável a tendencial abertura de todas as fases do processo penal em relação à comunidade, sobretudo através dos media. A par, claro está, da fundamentação, de facto e de direito, profusa e acessível das decisões aí tomadas pelas autoridades judiciárias, para que possam ser facilmente apreendidas (também) pela generalidade dos cidadãos. Por fim, importa ter-se presente que a limitação da publicidade do processo penal, sobretudo na fase inicial deste, propicia o favorecimento de determinados arguidos. Aliás, como surpreendeu CLÁUDIA SANTOS quando o segredo de justiça era regra no inquérito,
ou seja, antes da reforma do CPP operada pela Lei n.º 48/2007, de 29/08, os dados disponíveis indiciavam que a seleção da criminalidade que tinha como consequência a não punição de agentes white-collars encontrava o seu apogeu nos momentos iniciais do processo, o que permite precisamente supor, como igualmente avançou a citada autora, que o referido instituto proporciona essas opções desrespeitadoras dos princípios da legalidade, da oficialidade e da igualdade (SANTOS, 2001: 222-226). Na verdade, são inúmeras e de plúrimas naturezas as realidades que podem influenciar, e que efetivamente influenciam, magistrados, jurados, polícias, peritos, testemunhas e outros intervenientes processuais, por vezes, apesar de impercetivelmente, com enorme eficácia e danosidade. Porém, tais influências são tão mais vastas e eficazes quanto maior for a margem do segredo de justiça e, portanto, menor a da publicidade mediata do processo. Não olvidamos que os media representam um poder social fortíssimo. Sequer recusamos que também eles pressionam e influenciam intervenientes processuais, incluindo magistrados. Porém, dado que atuam publicamente, à vista de todos, as suas pressões e influências afiguram-se bem menos desleais e perniciosas do que as igualmente desenvolvidas por muitos outros poderes. Para além disso, existindo plúrimos órgãos de comunicação social, em regra, alguns deles contrabalançarão ou suprirão o eventual comportamento pernicioso de outros. Seja como for, num Estado de Direito Democrático, os tribunais, bem como as demais entidades e agentes envolvidos na realização da justiça, mormente da justiça penal, têm de conviver e, portanto, saber estar com a pressão mediática, pois a legitimação dos seus atos depende, em grande medida, da incidência, ou da possibilidade de incidência, da comunicação social sobre os processos jurisdicionais. A encerrar este texto, vale a pena deixar um pequeno exemplo de como logo aqui ao lado, em Espanha, foram já definitivamente enterrados os fantasmas dos pretensos malefícios da abertura do processo penal à comunidade para a presunção de inocência do arguido. Em linha com a prática habitual dos Tribunais Superiores das regiões autónomas desse país, em 07/09/2020, o Tribunal Superior de Justiça da Andaluzia, Ceuta e Melilha publicou, no sítio do Poder Judicial de Espanha na internet, o seguinte anúncio, informando que 18 dias depois iria ter início uma audiência com jurados populares:
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Three Studies for Figures at the Base of a Crucifixion FRANCIS BACON
«Un jurado popular enjuiciará a partir del próximo día 25 de septiembre en la Audiencia Provincial de Sevilla al varón acusado de asesinar en noviembre de 2018 a su madre, de 49 años de edad, en la vivienda donde ambos convivían en la localidad de Alcalá de Guadaíra, hechos por los que la Fiscalía reclama para el investigado un total de 22 años de cárcel. De este modo, está previsto que el juicio comience el día 25 de septiembre con la constitución del jurado popular, la presentación de las alegaciones previas por las partes personadas en este procedimiento y la declaración del encausado, tras lo que los días 28 y 29 de septiembre comparecerán los testigos y los peritos. En su escrito de acusación, el Ministerio Público relata que los hechos tuvieron lugar sobre las 4,00 horas del 13 de noviembre de 2018, cuando el acusado, al salir de su habitación, se encontró con su madre “y se inició entre ambos una discusión” en el salón del domicilio familiar, donde el investigado “agredió a su madre dándole una serie de empujones”. La Fiscalía añade que, cuando la víctima se dirigió hacia su dormitorio, el acusado, que llevaba cinco años practicando boxeo, “la siguió y comenzó a propinarle una serie persistente de golpes con los puños” en el rostro y en el cuerpo, principalmente en la cabeza, hasta que la víctima cayó al suelo, donde el encausado “continuó golpeándole con varias patadas en la cabeza”, tratando la mujer de poner sus brazos delante para defenderse. Según indica el Ministerio Público, estando la víctima tendida en el suelo, le pidió a su hijo un vaso de agua, “pero éste continuó golpeándola, propinándole un golpe con el pie en la cabeza”, tras lo que, estando la mujer “ya inconsciente y por tanto sin posibilidad de defensa alguna”, el acusado cogió un trozo de cristal de un espejo que salió fracturado durante la discusión y “le produjo a su madre una serie de incisiones en el abdomen y el tórax”, tras lo que seguidamente procedió a cortarse la mano con dicho cristal. Al hilo de ello, la Fiscalía señala que, sobre las 6,10 horas de ese mismo día y “una vez finalizada la brutal
agresión”, el encausado se fue del salón y se sentó en el sofá, de forma que “no procedió a comunicar lo sucedido a nadie sino transcurridas más de tres horas”, ya que a las 9,10 horas se puso en contacto vía whatsapp con una mujer y sobre las 10,26 horas con su hermano, comunicándole a ambos que “había matado” a su madre, “siendo plenamente consciente de todo lo sucedido”. Así, fueron estos últimos los que llamaron al 112 para informar de lo ocurrido, precisa el fiscal, que agrega que, sobre las 12,00 horas del día 13 de noviembre de 2018, los servicios de emergencia certificaron el fallecimiento de la mujer, determinándose por los forenses que se trataba de una muerte de etiología homicida por traumatismo, en concreto por distintos golpes efectuados sobre el cráneo principalmente y otras partes de su cuerpo. De este modo, la víctima presentaba 17 heridas de carácter inciso-contuso en la parte posterior e inferior del cráneo, así como una agrupación de 16 lesiones erosivas en el abdomen y el tórax y heridas defensivas tanto en brazos como en piernas. En el momento de los hechos, el investigado se encontraba afectado por un trastorno ansioso depresivo que mermaba, sin llegar a eliminar, sus capacidades volitivas e intelectivas, según indica la Fiscalía en su escrito, en el que solicita para el acusado un total de 22 años de prisión por un delito de asesinato con la eximente incompleta de anomalía o alteración psíquica y la agravante de parentesco» . Estamos em crer que, no nosso país, não só tribunal algum publicaria uma nota informativa equivalente, como nenhuma autoridade judiciária autorizaria a transcrição por jornalista das passagens da acusação constantes dessa nota, incorrendo na prática do crime de desobediência simples o jornalista que as citasse desprovido de tal autorização (art. 88º, nº 2, al. a), do CPP). Tudo, seguramente, com o pretexto de se proteger (também) o direito à presunção de inocência do arguido.
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MANHÃ em Lisboa Sento-me numa esplanada ainda deserta no coração adormecido da cidade... Descrevo em palavras de papel o mistério das avenidas habitadas
O ruído habitual recomeça a sua senda interminável,
e a fantasmagoria dos pequenos transeuntes
polui por direito o ar da manhã,
ainda entorpecidos
Mas que importância isso tem?
pelo vento da manhã.
O quadro em movimento,
Parece-me que por momentos
essa obra viva do comum citadino,
a cidade se esquece de quem é,
configura-se e m total ple nitude
e Lisboa matutina sepulta descuidada
e no espaço de pouco minutos
a sua identidade.
a urbe resplandesce em vitalidade.
O ruído está esquecido entre a brisa visível e as pedras
O cheiro pestilento dos mendigos,
ainda por calcar.
os perfumes banais da burguesia “channel”, o mofo azedo das casas de fado,
Contudo a cidade é vida
unificando-se num todo.
e o seu frémito cresce,
(onde estás tu Fernando Pessoa?...)
busca o fumo dos cafés,
A rua é o albergue do povo,
a sodoma dos pedintes,
do fumo de escape dos carros,
e o anelo barroco das luzes natalícias.
mais o suor dos quartos fechados,
Então, como uma horda de formigas agitadas,
o néon adormecido das fachadas fulgentes
correm as pessoas a preencher os lugares do costume,
Esse universo prosaico e tangível...
mulheres emanando fragâncias, noite, vícios e ambição... personagens de odores instalam-se sobre o calvo sol da manhã
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CID ORLANDO GERALDO
Lisboa acordou e perfilhou-se para o dia, a brisa corre agora mais ténue entre a pessoa e o espaço vazio, em alinho de parada,
Quando a manhã subir e o sol se tornar claro
prestam-se as pedras a serem pisadas
a cidade vai cheirar a fogo;
A horda é o sangue da cidade
depois acalmará o vento
e o seu pulsar é ritmado
o lume agreste do perpétuo meio-dia;
guitarras em semi-fusa,
mais tarde virá do pulso do astro
pianos atonais,
reclamar as cores a palidez faminta,
o nexo é o padrão morto do pensamento.
e o manto púrpura deste epílogo adensar-se-á em negritude e exotismo. A cidade não guarda tempo para dormir, sua vitalidade recobra da lua o fôlego, Constelações... corpos por agitar... os lobos acorrem à rua com o seu uivo mudo, com soberba nos corpos e fome no olhar o ritual reemerge das volúpias da memória Busca novos contornos, novos cheiros e novas forças, até que a lua se ponha.
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CORRÊA DOS SANTOS 36
- T RI BU TO -
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- T RI BU TO A C O RRÊ A D O S S AN TO S -
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Al gum a s d a s fo to g raf i a s tira d a s durant e a car reira d e 70 an o s do re p ór t er fo tog ráf i c o qu e t e st emunh ou al gun s do s m om ento s m ai s m arcant e s do sé culo XX em Por tu gal
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