Magazine60+ #34

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fazendo seu papel, colocando o dedo na ferida ou emulando com a vida, às vezes com adiantamento, às vezes com atraso. O leitor, por sua vez, pode fazer da obra de arte - o texto - sua arma de superação. Só precisa atentar para suas configurações, pois, cada grito coletivo ou pessoal contém a massa de traumas e ações contidas e reprimidas que uma boa leitura é capaz de fazer emergir e levantar. De tal modo, o acaso que me colocou diante da canção de Gonzaguinha interpretada por Badi Assadi e, principalmente, diante do refrão “Você merece” que me faz pensar, justamente, nos ecos que estendem os gritos da “Ode ao burguês”, declamada no Teatro Municipal de São Paulo, com o mesmo propósito de sacudir a “pasmaceira grossa” dos brasileiros (nas palavras de Mário de Andrade), até a letra de “Comportamento Geral”, na qual a indiferença é aclamada por meio das palavras ”cerveja”, “samba” e “carnaval”. Três ícones da displicência do brasileiro disputam com as “aristocracias cautelosas”, o “burguês-funesto”, as “mesmices convencionais” que motivaram o “Fora! Fu! Fora o bom burguês”, da Ode. Nesse sentido, essa chave-de-ouro que encerra o poema tem a força comparável à do refrão da canção. Paralelismos a advertir o leitor. Além disso, o “Você merece”, repetido ao longo da letra, dramatiza o silêncio que dominou os quase cinquenta anos que separaram um texto do outro, pois, enquanto, os que “algarismam os amanhãs”, amplamente desqualificados na ”Ode ao burguês” seguiram agindo abertamente ou à ocultas, os famintos não saíram de sua impassibilidade, nem entre 1922 e 1973 e nem entre 1973 e 2022. Foto: MarcelloCasalJr - EBC

Denúncia, por um lado, protesto, por outro. Até que outros ecos daqueles gritos e ressonâncias expressos enfaticamente no refrão fossem ouvidos, como afinal aconteceu na canção “Ode ao burguês” (2019), de Revolta MC, no mais autêntico espírito de paródia, tão ao gosto do Modernismo. Acaso? Não. Seu Zé acabou por vocalizar seu próprio ódio ao burguês. Tal qual a vida, a arte tem seu próprio tempo de incubação e de explosão.

magazine 60+ #34 - Abril/2022 - pág.46


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