CONSCIÊNCIA E LIBERDADE
DOSSIER
Nº 19 - 2007 – Publicação Anual - Preço 10,00€
O pós-modernismo e a Liberdade Religiosa Estudos ...................................................... 8 Dossier .................................................... 42 Preocupações em matéria de liberdade religiosa no mundo pós-moderno.............. 42 Cultura, religião e identidade nacional na sociedade pós-moderna ........................... 56 O progresso do diálogo inter-religioso na tradição europeia ................................ 75 A situação da liberdade religiosa no catolicismo moderno ................................... 87 A identidade religiosa na Europa pós-moderna - tendências actuais ............ 94 A laicidade, princípio como valor da Convenção Europeia dos Direitos do Homem ............................................... 104 Arte moderna ou vandalismo? Foto Peter Streit Documentos ............................................ 121
ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL PARA A DEFESA DA LIBERDADE RELIGIOSA Dotada de estatuto consultivo junto das Nações Unidas e do Conselho da Europa
Sede Internacional: Schosshaldenstrasse 17, CH 3006 Berne, Tel. +41 (0)31 359 1527 E-mail info@aidlr.org - Fax +41(0)31 359 1566 Secretário-Geral: Karel Nowak Comité de honra: Presidente: Mary ROBINSON, antigo alto comissário para os direitos humanos das Nações Unidas e antigo presidente da República Irlandesa, Estados Unidos Membros: Abdelfattah AMOR, antigo presidente do Comité dos Direitos do Homem nas Nações Unidas, Tunísia Jean BAUBÉROT, presidente de honra da Escola Prática de Altos Estudos na Sorbonne, titular da cadeira de História e Sociologia do Laicado na EPHE, Paris, França Beverly B. BEACH, antigo Secretário-Geral Emérito da International Religious Liberty Association, Estados Unidos. François BELLANGER, professor universitário, Suíça André CHOURAQUI, escritor, Israel Olivier CLÉMENT, professor universitátio, escritor, França Alberto DE LA HERA, professor universitário, Director-Geral dos Assuntos Religiosos, do Ministério da Justiça, Espanha. Silvio FERRARI, professor universitário, Itália Alain GARAY, advogado do Supremo Tribunal de Paris e investigador, França Humberto LAGOS, Professor universitário, escritor, Chile Adam LOPATKA, antigo presidente do Supremo Tribunal, Polónia Francesco MARGIOTTA BROGLIO, departamento de Estudos sobre o Estado, professor universitário, presidente da Comissão italiana para a liberdade religiosa, representante da Itália na UNESCO Rosa Maria MARTINEZ DE CODES, professora universitária, Espanha Jorge MIRANDA, professor universitário, Portugal Raghunandan Swarup PATHAK, antigo presidente do Supremo Tribunal, Índia e antigo juiz do Tribunal Internacional de Justiça Émile POULAT, professor universitário, director de investigação no CNRS, França Jacques ROBERT, professor universitário, membro do Conselho Constitucional, França Jean ROCHE, do Instituto, França Joaquin RUIZ-GIMENEZ, professor universitário, antigo ministro, presidente da UNICEF Espanha Antoinette SPAAK, ministra de Estado, Bélgica Mohamed TALBI, professor universitário, Tunísia Rik TORFS, professor Universitário, Bélgica Gheorghe, VLADUTESCU, professor universitário, vice-presidente da Academia romena, antigo Secretário de Estado para os assuntos religiosos, Roménia ANTIGOS PRESIDENTES DO CONSELHO Srª de Franklin ROOSEVELT, 1946 a 1962 Dr. Albert SCHWEITZER, 1962 a 1965 Paul Henri SPAAK, 1966 a 1972 René CASSIN, 1972 a 1976 Edgar FAURE, 1976 a 1988 Léopold Sédar SENGHOR, 1988 a 2001
Consciência e Liberdade Nº 19 - Ano 2007
Órgão Oficial da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa Nº de Contribuinte: 500 847 088 Proprietário e Editor: Associação Internacional para a Defesa e Liberdade Religiosa Sede e Redacção: R. Joaquim Bonifácio, 17 – 1169-150 Lisboa – Portugal Tel. 21 351 09 10 – Fax: 21 351 09 29
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Conscienza e libertà Lungotevere Michelangelo, 7-00192 Roma (Itália) Consciencia y libertad Cuevas 23, 28039 Madrid (Espanha) Savjest i sloboda (croata e sérvio) Krajiska 14, Zagreb (Croácia) Conscience and Liberty 119, St. Peter’s Street, St. Albans, Herts., ALI, 3EY (Inglaterra)
© Dezembro/2007 – Consciência e Liberdade Tiragem: 700 exemplares Inscrição na E.R.C. nº 106 816 Depósito Legal: 125097/98 ISSN 0874-2405
Execução Gráfica: Santos & Costa, Lda. - Vale Travelho - Porto de Mós Política editorial: As opiniões emitidas nos ensaios, os artigos, os comentários, os documentos, as críticas aos livros e as informações são apenas da responsabilidade dos autores. Não representam necessariamente a opinião da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa de que esta Revista é o órgão oficial. Os artigos recebidos pelo secretariado da Revista são submetidos à apreciação do Conselho redactorial.
Número 19 – 2007
Editorial Estudos
2006, um ano comemorativo! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
M. Verfaillie A AIDLR festeja 60 anos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8 J. Rossel As relações Igreja-Estado em Espanha e Portugal . . . . 16 A. Carvalho Síntese Histórica dos direitos humanos . . . . . . . . . . . . . 29 Dossier O Pósmodernismo e a liberdade religiosa R. Bruinsma Preocupações em matéria de liberdade religiosa no mundo pós-moderno . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42 D. Little Cultura, religião e identidade nacional na sociedade pós-moderna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56 M. Verfaillie O progresso do diálogo inter-religioso na tradição europeia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75 T. Domanyi A situação da liberdade religiosa no catolicismo moderno . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87 R. Torfs A identidade religiosa na Europa pós-moderna – tendências actuais . . . . . . . . . . . . . . . . 94 A. Garay A laicidade, princípio como valor da Convenção Europeia dos Direitos do Homem . . . . . . . . . . . . . . . . 104 Documentos Declaração e relatório de Asma Jahangir Relatora especial das Nações Unidas . . . . . . . . . . . . . 121 Carta da AIDLR à Relatora especial das Nações Unidas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127 Discurso de Bento XVI em Castelgandolfo . . . . . . . . 130
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Editorial
2006, um ano comemorativo! O ano de 2006, ficará marcado na memória de todos aqueles que se encontram envolvidos na protecção e respeito pelos direitos do homem e, mais particularmente, no direito à liberdade religiosa, pela importante mudança que as Nações Unidas deram ao tratamento destas questões, pelas Nações Unidas. Com efeito, no dia 15 de Março de 2006, a Assembleia Geral das Nações Unidas votou a supressão da Comissão dos Direitos do Homem e aprovou a criação de uma nova estrutura: O Conselho dos Direitos do Homem, tendo em vista aumentar a eficácia e a influência da antiga Comissão. Esta tinha sido organizada em 1946. Estava encarregue de estudar e Depois de ter ocupado, durante dez anos as funções de Secre- de acompanhar a situtário-Geral e de redactor da revista Conscience et Liberté, ação dos Direitos do Maurice Verfaillie (à esquerda) dá as cordiais boas‑vindas ao Homem em países e seu sucessor, Karel Nowak. territórios específicos e as principais manifestações da violação desses direitos no plano mundial. Tinha, também, como tarefa redigir relatórios e publicá-los. No decurso destes seis decénios, passou por um certo número de evoluções, exercendo a sua influência e a sua credibilidade a diferentes níveis. O novo Conselho dos Direitos do Homem começou os seus trabalhos em Genebra a 19 de Junho de 2006. Nessa ocasião, o Secretário-Geral das 5
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Nações Unidas. Kofi Annan exprimiu as esperanças de numerosas pessoas no seu discurso de abertura: “Creio poder dizer, sem exagerar, que os olhos de mundo – e em particular os de todas as pessoas cujos direitos mais fundamentais são comprometidos e espezinhados, ou àqueles a quem esses direitos não são reconhecidos – estão fixados em vós e nesta sala e o órgão que aqui se reuniu. […] Sinto-me feliz por poder dizer que no último mês de Setembro, os dirigentes políticos do mundo, aceitaram esta visão das coisas. Decidiram integrar a promoção e a protecção dos Direitos do Homem nas políticas nacionais e contribuir para que os Direitos do Homem sejam sistematicamente tidos em conta em todo o sistema das Nações Unidas. Para que as questões relativas aos Direitos do Homem sejam examinadas, nas Nações Unidas, ao nível que convém, aceitaram, a minha proposta, de criar este Conselho cujos membros são eleitos pela Assembleia Geral e que trabalhe junto do Conselho de Segurança e do Conselho Económico e Social.” O Secretário-Geral também fez o seguinte comentário: “As organizações não governamentais (ONG) desempenham um papel importante na promoção e na protecção dos Direitos do Homem, no plano nacional, regional e internacional. É por isso que a Assembleia Geral vos pediu para manter as práticas da Comissão e de as reforçar a fim de que, mesmo os Estados que não são membros do Conselho, as instituições especializadas, as outras organizações intergovernamentais e as instituições nacionais dos Direitos do Homem, as ONG, possam trazer contribuições, o mais úteis possível, para os vossos trabalhos.” A nossa Associação, a Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa (AIDLR) – de que Consciência e Liberdade é o órgão oficial – crê que o Conselho dos Direitos do Homem pode ser um órgão mais forte e mais eficaz do que a antiga Comissão, na promoção dos Direitos do Homem, e deseja-lhe muito sucesso nos trabalhos que deve levar a cabo. Este ano será igualmente comemorado o 25º aniversário da Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e de Discriminação baseadas na Religião ou na Convicção. A AIDLR desempenhou uma parte activa na preparação desse documento que foi adoptado pela Assembleia Geral da Nações Unidas no dia 25 de Novembro de 1981 (ver Consciência e Liberdade nºs. 23, 27 e 28) A formulação da dita Declaração – considerada como uma explicação e uma extensão do Artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos do Homem – exerceu alguma influência na redacção de muitos outros documentos importantes. Apesar da pertinência da Declaração de 1981 e os decénios de esforços, de intervenções e de proclamações, milhões de pessoas continuam a ser expostas à discriminação, ao ódio e à violência por causa das suas crenças. Recusa-se a milhões de indivíduos o direito fundamental de crer e de manifestar as suas convicções pessoais. Alguns dentre eles são mesmo expostos à 6
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pena de morte se escolherem abandonar a religião oficialmente reconhecida pelo Estado para adoptar a que eles próprios escolheram. Hoje, o ódio e os preconceitos originados pelas crenças religiosas estão de novo em questão. A discriminação, a intolerância e a perseguição revestem-se de numerosas formas. O mal-estar crescente devido à escalada dos conflitos no mundo e à ameaça do terrorismo é um terreno fértil para todas as formas de intolerância e de discriminação. Esperemos que não nos contentemos somente em recordar e comemorar a Declaração de 1981, mas que se respeitarão, aplicarão e desenvolverão, ainda, as suas ideias e os seus princípios! A AIDLR está decidida a continuar a trabalhar para atingir esse objectivo. Ela também comemora este ano o seu 60º aniversário. Ela deve a sua existência à visão, à coragem e ao envolvimento do seu fundador e primeiro Secretário Geral, Dr. Jean Nussbaum, que, dois anos depois da sua criação, públicou o primeiro número de Conscience et Liberté. Quero exprimir o meu apreço e o meu profundo reconhecimento ao meu antecessor imediato, Maurice Verfaillie, que, durante dez anos, lutou sem desfalecimento em numerosas frentes para promover e proteger a liberdade religiosa para todos. Para além da sua responsabilidade, como chefe de redacção da revista Consciência e Liberdade, ele assumiu a função de Secretário Geral da AIDLR, tornando a presença desta, fecunda, perante a Comissão dos Direitos do Homem em Genebra e no Conselho da Europa em Estrasburgo, como organização não governamental. Ele organizou, ou co-organizou, e acompanhou numerosos congressos, colóquios, convenções, reuniões e grupos de trabalho em que as questões da liberdade religiosa foram discutidas, promovidas e desenvolvidas. Entre os mais importantes destes acontecimentos figura o Colóquio Internacional organizado pela AIDLR em Paris em 2001, em colaboração com a UNESCO. Esse Colóquio tinha, como tema, “Os Direitos do Homem e a Liberdade de Religião: Práticas na Europa Ocidental” (ver Consciência e Liberdade, nºs. 12 e 13). Em 1998, o governo espanhol concedeu a Maurice Verfaillie uma das mais altas distinções nacionais, a cruz de comendador da Ordem Nacional de Mérito Civil, para recompensar o seu trabalho em favor da liberdade religiosa. Os nossos votos, mais calorosos acompanham-no, enquanto gozar de uma reforma bem merecida. Karel Nowak
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Estudos A AIDLR festeja os seus 60 anos Maurice Verfaillie*
1. O seu fundador Foi em 1946 em Paris, que Jean Nussbaum, médico francês de origem suíça, criou a Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa, cuja sigla se tornou AIDLR. Ele queria dar uma base legal à acção que iniciou desde o fim da Primeira Guerra Mundial, em favor da liberdade religiosa. Jean Nussbaum nasceu na Suíça, em La Chaux-de-Fonds, a 24 de Novembro de 1888. Exercia a medicina em Chamonix, quando rebentou a Primeira Guerra Mundial. Atingida por uma forte epidemia de tifo desde o início dos combates, a Sérvia lançou um apelo desesperado para obter a ajuda de médicos. Jean Nussbaum apresentou-se, voluntariamente, e ficou afecto ao hospital de Nis, na Sérvia, até ao fim de 1914. A direcção do estabelecimento deu-lhe como ajudante e intérprete uma jovem enfermeira sérvia, Milanka Zaritch. Pouco tempo depois de se terem conhecido, Milanka Zaritch, tomou a direcção do hospital. No Outono de 1915, casaram. Milanka Zaritch era sobrinha de Voyislav Marinkovic, que veio a ser o primeiro-ministro do governo sérvio. Este laço familiar introduziu muito rapidamente o Dr. Jean Nussbaum nos meios diplomáticos internacionais. No decurso da sua permanência na Sérvia, as circunstâncias levaram Jean Nussbaum a intervir junto do comandante do exército sérvio, para que este autorizasse um prisioneiro de guerra austríaco, afecto ao hospital de Nis, a praticar os princípios da sua fé. Tanto por falta de tacto, como por estreiteza de espírito, este último tinha-se colocado numa situação que lhe poderia ter custado a vida, ao recusar, como prisioneiro inimigo em tempo de guerra, a submeter-se às ordens. Este facto, provavelmente desempenhou um papel no despertar do interesse que Jean Nussbaum teve toda a sua vida, pela promoção e a defesa da liberdade de consciência e de religião. Depois de ter regressado à Suíça, e mais tarde a França, Jean Nussbaum abriu um gabinete médico no Havre. Quinze anos mais tarde, em 1931, instalou-se com a sua mulher em Paris, onde permaneceu até à sua morte, 8
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Esta foto histórica foi feita a 24 de Janeiro de 1952, por ocasião da Assembleia Geral das Nações Unidas, que se reuniu, pela última vez, no Palais de Chaillot, em Paris. Foi neste local memorável que, em 1948, foi adoptada a Declaração Universal dos Direitos do Homem. A partir daí, as sessões da Assembleia Geral realizaram-se no novo edifício das Nações Unidas, em Nova Iorque. Da esquerda para a direita: Beverly Bert Beach, futuro Secretário-Geral da International Religious Liberty Association (IRLA), Estados Unidos; o pastor André Lecoultre, Suíça; Eleanor Roosevelt, viúva do presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt, e primeira presidente do Comité de Honra da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa (AIDLR); o pastor Roberto Bertalot, França; o Dr. Jean Nussbaum, fundador e primeiro Secretário-Geral da AIDLR, Suíça. Esta foto foi-nos enviada, amavelmente por Nadia Cella Lecoultre.
em 1967. Foi ali que estabeleceu, em 1946, a primeira sede da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa. Pouco tempo depois do casal habitar em Paris, alguns meses apenas, o Dr. Jean Nussbaum foi convidado pelos meios religiosos, a intervir num debate em torno de um projecto de reforma do calendário mundial, que devia ser apresentado em Outubro de 1931, durante a sessão plenária da Quarta Conferência Internacional dos Transportes e das Comunicações, organizada em Genebra pela Sociedade das Nações. O Comité Preparatório da Conferência tinha afirmado, no seu relatório preliminar, que os delegados reunidos para esta sessão não tinham nenhum argumento para considerar 9
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que a reforma proposta fosse incompatível com as práticas religiosas. Os representantes dos meios religiosos eram portanto convidados a vir defender os seus pontos de vista. Enquanto que os representantes das nações olhavam para a questão do ponto de vista económico e social, a maior parte dos observadores religiosos tinham compreendido que a questão tinha que ver com milhões de crentes, cristãos, judeus e muçulmanos, no mundo. No relatório consagrado a esta Conferência, datado de 14 de Outubro de 1931, Joseph Herman Hertz, grande rabi da comunidade judaica do Império Britânico, relata a intervenção do Dr. Jean Nussbaum: “Ele [o médico] pediu insistentemente à Assembleia que se lembrasse que se tratava de uma importante questão de consciência, e que todo o atentado à consciência era incompatível com os ideais na Sociedade das Nações. Todas as intervenções dos observadores tinham sido feitas em inglês. Muitos delegados não tinham podido acompanhá-las senão através da tradução. Esta magistral intervenção, em francês, foi direita aos seus corações.” Dois anos mais tarde, o Dr. Jean Nussbaum, membro da Igreja Adventista do Sétimo Dia, foi solicitado pela assembleia de delegados da Divisão Sul ‑Europeia desta Igreja (organismo europeu do adventismo mundial, hoje denominado Divisão Euro-africana dos Adventistas do Sétimo Dia). Eleito para a função de Director do Departamento da Liberdade Religiosa, enquanto continuava a exercer a sua profissão de médico, envolveu-se na acção em favor da liberdade religiosa. Recebeu o apoio de diversas personalidades internacionais. A mais significativa foi, sem nenhuma dúvida, a do Papa Pio XII, com o qual tinha estabelecido boas relações desde que este último era ainda o cardeal Pacelli. O Dr. Nussbaum consagrou, também, uma parte do seu tempo ao serviço da sua Igreja que, em 1887, tinha criado, ao nível mundial, a International Religious Liberty Association (cuja sede está em Washington). Depois da Primeira Guerra Mundial, a recomposição política da zona da Europa central, do Danúbio aos Balcãs, com as suas implicações económicas, sociais e religiosas, criou numerosas dificuldades para os cristãos em muitos Estados desta região. Nas suas notas pessoais sobre as suas actividades, Jean Nussbaum relata as suas visitas a personalidades políticas e religiosas na Bulgária, na Hungria, na Polónia, na Roménia e na Jugoslávia. Mas deslocou-se, também, a Espanha, Portugal, Etiópia, França, Grã-Bretanha, Grécia e Itália. A sua atenção voltou-se mesmo para o Japão, onde efectuou diligências em favor de protestantes, católicos, ou ortodoxos em dificuldade. Foi em Oxford, em Julho de 1937, que Jean Nussbaum encontrou, pela primeira vez, Marc Boegner, teólogo protestante e académico, então presidente da Federação Protestante de França. As suas relações prolongaram-se até à morte do Dr. Nussbaum. Os dois homens apreciavam-se, apesar de divergirem na opinião sobre a forma de proteger a liberdade religiosa. 2. Criação da Associação No dia 25 de Abril de 1945, Jean Nussbaum assistiu à Conferência das Nações Unidas em S. Francisco. O objectivo era criar uma organização internacional que sucederia à Sociedade das Nações. O Conselho económico e 10
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social devia tratar de assuntos concernentes aos direitos do Homem. O Dr. Nussbaum encontrou-se nessa Conferência com Eleanor Roosevelt, viúva do Presidente dos Estados Unidos. Os dois puseram-se de acordo sobre os pontos que diziam respeito aos direitos do Homem, o que os aproximou no combate que travaram e contribuiu para a sua colaboração ao longo dos anos seguintes: “[...] cada vez que se deslocava à América, pelo menos uma vez por ano, o Dr. Nussbaum era recebido pela Srª Roosevelt e os filhos, na sua propriedade. Quando ela permanecia em Paris, instalava-se no hotel Crillon e tinha vários encontros com o doutor, que organizava almoços ou na sua casa, na Av. du Grand-Armée, ou na cidade.” Jean Nussbaum falou-lhe do seu interesse em criar a Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa, em Paris e desejava que ela fosse a primeira presidente. As autoridades americanas deram o seu acordo. Em 1948, Jean Nussbaum criou a revista Conscience et Liberté, cujos primeiros três números foram publicados por ele mesmo. Trabalhador infatigável, pronunciou numerosas conferências sobre a questão da liberdade religiosa. Gravou emissões radiofónicas sobre o assunto. André Dufau, o seu principal colaborador na Associação Internacional de 1950 a 1966, escreveu, em 1988: “Depois da Segunda Guerra Mundial, desde 1946, ele utilizou a rádio para espalhar as ideias da liberdade religiosa de que o mundo tanto necessitava. Cada semana, durante uma dezena de anos, a Rádio Monte Carlo difundiu uma emissão intitulada Conscience et Liberté. Homens de Estado e diplomatas tomaram a palavra nessas emissões, assim como especialistas como Émile Leonard, professor na Sorbonne, Michèle-Marie Morey e Raoul Stephan professores agregados da Universidade. Ele mesmo confiava às ondas as suas esperanças de uma sociedade mais tolerante e mais fraternal, assim como o resultado dos seus esforços e das suas viagens.” Jean Nussbaum terminou as suas actividades alguns meses antes da sua morte. A 29 de Outubro de 1967, foi vencido por uma crise cardíaca. Tinha então, setenta e nove anos. Quando, em 1945, em S. Francisco, o ministro francês, Jean-Paul Boncour lhe tinha perguntado: “Quais os interesses que defende?” ele respondeu‑lhe: “Eu não defendo interesses. Eu defendo um princípio: o princípio da liberdade religiosa.” 3. A Filosofia da Associação Em 1948, dois anos depois da criação da Associação, Jean Nussbaum escreveu: “A Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa tem como objectivo divulgar no mundo os princípios desta liberdade fundamental e defender, através de todos os meios legítimos, o direito de todo o homem a praticar o culto da sua escolha ou de não praticar nenhum. A nossa Associação não representa nenhuma Igreja em particular, nem nenhum partido político. Ela entrega-se à tarefa de reunir todas as forças espirituais para 11
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combater a intolerância e o fanatismo em todas as suas manifestações. Todos os homens, qualquer que seja a sua origem, a sua cor, a sua nacionalidade, ou a sua religião são convidados para esta cruzada contra o sectarismo, se estão inflamados por um espírito de liberdade. A tarefa a realizar é imensa, mas não estará, certamente, para além das nossas forças e dos nossos meios, se cada um se dedicar ao trabalho com coragem. Realizamos assim o ecumenismo num plano particular, e de uma forma completa. Porque não nos dirigimos apenas aos cristãos de toda a Terra, mas aos crentes de todas as religiões e esperamos, inclusivamente, que o nosso apelo também seja ouvido por aqueles que não têm nenhuma religião. Porque não haveriam eles de se juntar a nós?” 4. Os Presidentes do Comité de Honra A primeira presidente desta Associação foi, portanto, Eleanor Roosevelt. Sobre isto, André Dufau escreveu: “Ela aceitou a presidência do Comité de Honra na nova Associação [... ] que incluía personalidades eminentes como, Édouard Herriot, Presidente da Assembleia Nacional francesa e membros da Academia Francesa como, Paul Claudel, Georges Duhamel, André Siegfried, o duque Louis de Broglie.” Desde a sua constituição, a Associação beneficiou do apoio de homens de renome vindos dos meios universitários, religiosos e políticos. Muitos, dentre eles, foram os presidentes. Depois de Eleanor Roosevelt foi o Dr. Albert Schweitzer, médico francês, académico, prémio Nobel da Paz; depois, em 1966, Paul-Henri Spaak, político belga, antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros, que tinha desempenhado um papel na formação da Europa do pós-guerra. De 1972 a 1976 sucedeu-lhe René Cassin, jurista, membro do Instituto, prémio Nobel da Paz em 1968. René Cassin foi um dos inspiradores da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948. Em 1977, a presidência passou para Edgar Faure, advogado francês, antigo Presidente do Conselho de Estado e Ministro da Educação Nacional, até à sua morte em Março de 1988. De 1989 até 2001 Leopold Sédar Senghor, antigo Presidente da República do Senegal, membro da Academia Francesa, deu-lhe, por sua vez o seu apoio. Hoje, a Presidência foi entregue a Mary Robinson, antigo Alto Comissário para os Direitos do Homem e antigo Presidente da República Irlandesa. 5. Objectivo da Associação O objectivo da Associação está estipulado no artigo 2 dos seus estatutos: “A Associação tem como objectivo divulgar as ideias de tolerância e defender o direito para todas as pessoas à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de crer ou de não crer, a liberdade de mudar de convicções ou de religião e de manifestar a sua religião individual ou colectivamente, em público ou em privado, através do culto, o ensino escrito ou oral, ou através da prática dos ritos.” 6. Declaração de Princípios “Acreditamos que o direito à liberdade religiosa foi dado por Deus e afirmamos que ela se pode exercer nas melhores condições, quando há separação entre as organizações religiosas e o Estado. 12
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Acreditamos que toda a legislação, ou qualquer outro acto governamental, que una as organizações religiosas e o Estado, se opõem aos interesses dessas duas instituições e podem causar prejuízo aos direitos do homem. Acreditamos que os governos foram instituídos por Deus para manter e proteger os homens no gozo dos seus direitos naturais e para regulamentar os assuntos civis; e que neste domínio tem o direito a obediência respeitosa e voluntária da cada indivíduo. Acreditamos no direito natural inalienável do indivíduo à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de ter ou de adoptar uma religião ou uma convicção da sua escolha e de mudar segundo a sua consciência; assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, individualmente ou em comum, tanto em público como em privado, através do culto e da realização dos ritos, das práticas e dos ensinos, devendo, cada um, no exercício desse direito, respeitar os mesmos direitos nos outros. Acreditamos que a liberdade religiosa comporta, igualmente, a liberdade de fundar e de manter instituições de caridade e educativas, de solicitar e de receber contribuições financeiras voluntárias, de observar os dias de repouso e de celebrar as festas de acordo com os preceitos da sua religião, e de manter relações com crentes e comunidades religiosas tanto ao nível nacional, como internacional. Acreditamos que a liberdade religiosa e a eliminação da intolerância e da discriminação, fundadas sobre a religião ou a convicção, são essenciais para promover a compreensão, a paz e a amizade entre os povos. Acreditamos que os cidadãos deveriam utilizar todos os meios legais e honestos, para impedir toda a acção contrária a estes princípios, a fim de que todos possam gozar das inestimáveis bênçãos da liberdade religiosa. Acreditamos que o espírito desta verdadeira liberdade religiosa está resumido na regra áurea: Tudo o que quiserem que os homens vos façam, façam-no a eles.” 7. Extensão geográfica Em 1966, a sede internacional da Associação foi transferida de Paris para Berna na Suíça. Era necessário, com efeito, responder às necessidades de uma maior proximidade com os locais de reunião da Comissão dos Direitos do Homem e da Sub-Comissão da ONU, para lutar contra as medidas discriminatórias e a protecção das minorias, que estava em Genebra, no Palácio das Nações Unidas. A partir de 1973, foram constituídas novas secções nacionais em diversos países da Europa e da África, e, de 1990 a 1995, nos países da Europa de Leste, como a Roménia, a Bulgária e a Tchechénia. Uma secção nacional camaronesa está em vias de formação. 8. Reconhecimento Em 1978, a Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa recebeu o estatuto de Organização Não Governamental (ONG) junto das Nações Unidas e, em 1985, obteve o mesmo estatuto junto do Conselho da Europa. 13
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A 15 de Setembro de 1987, no quadro do Ano Internacional da Paz, Pérez de Cuéllar, então Secretário-Geral das Nações Unidas, outorgou à Associação o título de “Mensageira da Paz”. A 27 de Abril de 1998, o seu Secretário-Geral em exercício, Maurice Verfaillie, recebeu a Cruz de Comendador da Ordem de Mérito Nacional atribuída pelo rei de Espanha, Juan Carlos. 9. Actividades A Associação envolveu-se, desde a sua criação, em quatro domínios: as relações com as personalidades políticas, civis, religiosas e académicas; as relações com as organizações internacionais; a organização ou a participação em seminários, conferências, colóquios nacionais e internacionais consagrados às questões relativas à liberdade de consciência, de religião ou de convicção; a publicação da revista Consciência e Liberdade. A Associação contribuiu activamente na preparação da Declaração para a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Baseadas na Religião ou na Convicção adoptada pelas Nações Unidas em 1981. Também colaborou com o Comité dos Direitos do Homem que, na sua Observação geral sobre o artigo 18 do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos, precisa que o direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião “implica a liberdade de ter ou de adoptar uma religião ou uma convicção da sua escolha, assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, individualmente ou em comum, tanto em público, como em privado”. 10. A Revista Consciência e Liberdade A contribuição mais conhecida da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa, para a reflexão e a promoção do direito fundamental à liberdade de pensamento, de consciência e de religião, é a publicação do seu órgão oficial, a revista Consciência e Liberdade. Esta revista está catalogada em numerosas bibliotecas universitárias, de organizações internacionais ou religiosas em todo o mundo. Desde a sua criação, a política da redacção tem sido promover uma publicação de carácter académico, não confessional e pluralista. A Revista é editada em francês, alemão, espanhol, italiano, português e em romeno. O primeiro número em búlgaro saiu da imprensa em Dezembro de 1998 e em checo, em 2005. De 1949 a 2005, a Consciência e Liberdade na sua versão francesa, públicou 976 artigos e estudos sobre os fundamentos, história e implicações da liberdade religiosa, 234 documentos e 504 informações. No fim do ano de 1999, um total de 534 autores de mais de 70 nacionalidades diferentes, vindos de todos os horizontes académicos, políticos e religiosos, tinham assinado os artigos e os estudos. 11. Recursos O orçamento da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa, em Berna, é alimentado pelas quotizações das secções nacionais 14
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e as assinaturas da revista Consciência e Liberdade. As ofertas e as quotizações contribuem para cobrir as despesas de funcionamento e a publicação da Revista. A Associação não tem nenhum pessoal remunerado. * Antigo Secretário-Geral da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa e antigo redactor da revista Conscience et Liberté.
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As Relações Igreja-Estado em Espanha e em Portugal Jaime Rossell* I. As relações Igreja-Estado em Espanha Durante vários séculos, com excepção de breves intervalos em que houve Constituições Republicanas, em 1973 e em 1931, a Espanha era um Estado confessional, com o catolicismo como religião do Estado. Depois da guerra civil, a Espanha assistiu à implantação de um regime autoritário, que tinha à cabeça o general Franco. Ao nível legislativo, a Igreja Católica gozava de uma posição dominante e omnipresente: o catolicismo era a religião do Estado1. Todo o acto legal incompatível com a doutrina da Igreja Católica era anulada2. Membros da hierarquia da Igreja estavam presentes em numerosas instituições políticas; a presença e o controlo da Igreja Católica eram reforçados no domínio cultural, e os domínios comuns à Igreja e ao Estado (ou res mixta) eram regulados por meio da Concordata3. A fusão entre o Trono e a Igreja teve o seu apogeu com a assinatura, em 1953, da Concordata entre o Estado espanhol e a Santa Sé, na qual o Estado aceita garantir que o catolicismo será a única religião do Estado e que privilégios que reclama de Direito Canónico serão respeitados4. Todavia, durante os últimos anos do regime, houve grandes mudanças no seio da Igreja, provocados pelos documentos do Concílio Vaticano II e, em particular, pela Declaração sobre a Liberdade Religiosa Dignitatis Humanae. Uma vez que o Estado considerava como pedra de toque a Lei de Deus, de acordo com a doutrina católica e segundo o artigo 2 da “Lei de Princípios do Movimento Nacional”, isso levou a alterações do Direito espanhol6, anteriormente baseado na doutrina católica romana. A Lei sobre a liberdade religiosa foi adoptada em Junho de 1967. Ela representou um progresso real neste domínio, uma vez que as confissões não católicas podiam aproveitar-se de direitos de que tinham estado privadas durante séculos. Este sistema de liberdades permanece, todavia, extremamente restritivo em razão dos limites que a doutrina católica impunha e da suspeição de que sofria, na época, o fenómeno associativo em geral. A lei garantia simplesmente direitos, sem que as autoridades públicas se envolvessem a promover esses direitos. De facto, poder-se-ia classificar este sistema simplesmente de tolerante. Com o advento da democracia e a promulgação da Constituição Espanhola em 1978, as condições de existência de uma liberdade religiosa autêntica estavam reunidas, o que significava o fim da discriminação. A Constituição serviu de base para um Estado de direitos democráticos e sociais, e colocou em acção um novo sistema de relações entre a Igreja e o Estado. 16
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O artigo 16 17 garante a liberdade de ideologia, de religião e de culto aos indivíduos e às comunidades, autorizando unicamente as restrições necessárias à manutenção da ordem pública. Por outro lado, afirma que ninguém pode ser obrigado a declarar a sua ideologia, a sua religião, ou as suas crenças. Esta concepção da religião parece excluir fenómenos como o ateísmo, a indiferença ou o agnosticismo que estão compreendidos na expressão “liberdade ideológica”. Por fim, o artigo estabelece a existência de um Estado não confessional mas tendo em conta as crenças religiosas da sociedade espanhola, e obrigando as autoridades públicas a pôr em ordem e a manter relações apropriadas de cooperação com a Igreja Católica e as outras confissões religiosas. A basílica da Sagrada Família (Temple ExpiaPara uma melhor compreensão tori de la Sagrada Familia) em Barcelona, um do sistema constitucional, convém dos edifícios religiosos mais prestigiosos de ligar este artigo a outras disposições Espanha. Esta verdadeira joia, cujos planos constitucionais. Estas estipulam que foram desenhados pelo arquitecto Antonio os poderes públicos têm a responsaGaudi, no fim do século XIX, oferece à refle- bilidade de agir de forma a que os xão os grandes temas do cristianismo. A sua indivíduos e os grupos gozem de uma construção ainda não acabou, mas com os liberdade e de uma igualdade reais e meios técnicos actuais, os trabalhos deverão completas8, de criar as condições que permitam a igualdade religiosa9, de acabar em 2026. Foto J.M.Wiendel garantir a interpretação dos direitos fundamentais e liberdade de acordo com tratados e acordos internacionais ratificados pela Espanha10, assim como o direito, para cada um, de escolher a educação religiosa dos seus filhos11. Por outro lado, outras disposições constitucionais diversas podem influenciar o sistema no seu desenvolvimento: a consciência académica12, o direito de fundar escolas13, a objecção de consciência ao serviço militar14, etc.. A Constituição de 1978 procurou um equilíbrio justo entre o separatismo da Segunda República espanhola e o Estado católico do franquismo, procurando tirar lições da História. A fim de atingir este objectivo, ela seguiu implicitamente quatro princípios que regem as relações entra a Igreja e o Estado: 1. O princípio da liberdade religiosa. A ideia principal é que a liberdade religiosa não consiste apenas numa liberdade fundamental proclamada pela Constituição, mas define, igualmente, a atitude geral do Estado para com a religião. O Estado não procura adoptar uma atitude particular para com um 17
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grupo religioso definido. O governo deve promover a religião como uma liberdade para cada cidadão, e, a fim de proteger melhor esta liberdade, evitar escolher legalmente uma religião oficial. 2. O princípio de um Estado secular. O Estado permanece imparcial face aos diversos sujeitos religiosos individuais. Não pode professar a sua fé; isso não faz parte dos seus direitos e liberdades. Este princípio não encoraja, no entanto, um sistema de separatismo estrito entre a Igreja e o Estado. 3. O princípio da igualdade e da não discriminação. Segundo o artigo 14 de Constituição, a não discriminação é um dos direitos fundamentais do homem e deveria aplicar-se inteiramente aos indivíduos e, em certa medida, aos grupos. 4. O princípio da cooperação. A Constituição reconhece que o Estado, as confissões ou grupos religiosos formam entidades diferentes. O governo e os grupos religiosos são considerados como entidades distintas, com objectivos diferentes; não estão subordinados uns aos outros. As Igrejas e o Estado operam no seio de uma mesma sociedade e não estão isolados uns dos outros, evitando assim, um sistema separatista estrito, como em França. O Estado e os grupos religiosos têm domínios de interesse em comum, uma vez que o Estado encoraja a liberdade religiosa e que os grupos religiosos constituem organizações e instituições da liberdade religiosa. No que concerne ao Direito Eclesiástico, ninguém pode negar que o modelo espanhol é um modelo de cooperação, mas unicamente perante os cultos. A Constituição parte do princípio de que o fenómeno religioso é particularmente digno de ser protegido. A concretização da liberdade religiosa não deveria ser devolvida à sociedade; as autoridades públicas deveriam acima de tudo intervir para estabelecer um equilíbrio onde ele seja necessário e facilitar o exercício dessa liberdade. A partir daí, a cooperação com os diferentes cultos será obrigatório para chegar a uma liberdade religiosa completa, uma vez que os indivíduos, por si só, não a poderão obter. Depois da morte do general Franco, uma das primeiras tarefas respeitantes às relações entre o Estado e a Igreja Católica foi a conclusão de um certo número de tratados destinados a substituir a Concordata de 1953. Estes tratados têm o estatuto de tratados, de acordo com o Direito Internacional. De facto, eles não formam senão um (os quatro principais têm precisamente a mesma data). Pode, portanto, dizer-se que eles constituem uma Concordata composta por vários documentos. Seguindo esta explicação, de acordo com a Constituição, mas perante a Lei orgânica sobre a liberdade religiosa, à qual voltarei, a Igreja Católica assinou quatro acordos. Este método de divisão pode ser justificado por um cuidado na eficácia na negociação. Os acordos assinados em Dezembro de 1979, dizem respeito a quatro assuntos principais. O primeiro cobre o aspecto jurídico, compreendendo o casamento, o reconhecimento da personalidade moral, segundo o Direito Canónico, a protecção dos locais religiosos e dos arquivos religiosos, o respeito pelos dias de festa religiosos. O segundo refere-se às questões financeiras tais como a exoneração de taxas e os fundos governamentais. O terceiro prende-se com a religião e a cultura, incluindo o ensino religioso nas escolas públicas, os locais de educação ligados a uma Igreja e as propriedades da 18
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Igreja que tenham valor cultural ou histórico. Por fim, o quarto acordo trata da actividade religiosa nas forças armadas, do serviço militar e dos membros das ordens religiosas. A Lei orgânica sobre a liberdade religiosa de Julho de 1980 procura um apoio jurídico para todas disposições da Constituição. Os únicos limites à liberdade religiosa estabelecidos pela lei são os que estão ligados a uma restrição possível das liberdades públicas – cujo exercício está expressamente garantido pela lei – e à salvaguarda da moralidade, da saúde e da ordem públicas, protegidos pela lei em toda a sociedade democrática15. Na minha opinião, esta lei que protege a liberdade religiosa16 tem como objectivo determinar a posição dos outros cultos, com exclusão da Igreja católica, uma vez que a posição desta última estava já determinada pelos tratados com a Santa Sé já mencionados. Esta lei introduz um elemento completamente novo no sistema das fontes do Direito Eclesiástico espanhol: a possibilidade de concluir tratados com os outros cultos, com exclusão da Igreja Católica, como já sublinhámos. Em conclusão, esta lei contém diferentes instrumentos que permitem ao Estado e às outras entidades religiosas cooperarem. O primeiro instrumento é o registo das entidades religiosas. A inscrição neste registo, submetida a algumas condições, confere aos grupos religiosos um papel ou uma posição jurídica particular no sistema jurídico espanhol: pertencer à categoria ou ter o estatuto de “confissão religiosa”. Portanto, o termo “confissão religiosa” qualifica o elemento de base específico da organização do sistema de relações entre o Estado espanhol e a Igreja. Apesar disso, nem todos os grupos religiosos pertencem automaticamente à categoria de “confissão religiosa”. De acordo com a lei orgânica, são exigidas condições formais para ser inscrita no registo: o grupo religioso deve ter sido fundado em Espanha, dar informações sobre a sua identidade, os seus órgãos representativos 17 e, condição determinante, tem “fins religiosos” – termos que não são definidos na Lei orgânica. Em contrapartida, esta última explica o que não são “fins religiosos”. O artigo 3.2 estabelece que “ficam fora do quadro de protecção da presente Lei as actividades, objectivos e associações ligadas ao estudo e à experimentação de fenómenos psíquicos ou parapsicológicos, à difusão de valores humanistas ou espiritualistas ou a outros fins análogos estranhos à religião”. Este controlo indirecto do carácter religioso foi submetido a muitos critérios, porque ele encoraja indirectamente um sistema Igreja-Estado: por um lado, as confissões religiosas que assinaram um acordo de cooperação com o Estado; por outro, as confissões religiosas registadas que não assinaram o acordo e, por fim, os grupos religiosos não inscritos ou registados. Esta inscrição, ou registo, tem outras consequências: os cultos inscritos podem decidir negociar um tratado, obter o reconhecimento de efeitos civis dos casamentos celebrados segundo os seus próprios ritos, propor um acompanhamento espiritual nas escolas, etc.. Por outro lado, e é sem dúvida o mais importante: “1. As Igrejas, confissões e comunidades religiosas inscritas gozarão de uma plena autonomia e poderão estabelecer as suas normas de organização, disposições internas e regulamentos a respeito do seu pessoal. Estas normas, como as que regem as instituições criadas para realizar os 19
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seus objectivos, podem incluir cláusulas de salvaguarda da sua identidade religiosa e do seu carácter próprio, assim como do respeito devido às suas crenças, sem prejuízo do respeito pelos direitos e liberdades reconhecidas pela Constituição e, em particular, a liberdade, a igualdade e a não discriminação. 2. As Igrejas, confissões ou comunidades religiosas podem criar e promover, para a realização dos seus objectivos, associações, fundações e instituições conforme as disposições da ordem jurídica em vigor18.” Em resumo, na minha opinião, a inscrição neste registo significa que o culto em questão entre no domínio protegido pelas leis especiais do Direito Eclesiástico espanhol. O segundo instrumento é a Comissão Consultiva sobre a liberdade religiosa. Ela foi criada “junto do Ministério da Justiça, paritária e permanente, composta por representantes da administração assim como das Igrejas, das comunidades religiosas ou das federações destas últimas, onde devem absolutamente figurar as que têm uma implantação notória em Espanha, e, por fim, pessoas ou competências reconhecidas de quem seria interessante receber conselhos sobre as questões ligadas à presente Lei. No seio desta Comissão poderá existir uma Comissão permanente, igualmente paritária. Esta Comissão deverá realizar estudos, apresentar relatórios e propostas sobre todas as questões relativas à aplicação da presente lei e, em particular, obrigatoriamente, sobre a preparação e a elaboração dos acordos ou convenções de cooperação mencionadas no artigo anterior19.” O terceiro instrumento é representado pela possibilidade de concluir acordos com o governo espanhol. Esta possibilidade é estipulada no artigo 7.120. Para ter o direito de estabelecer acordos, devem ser preenchidas duas condições: estar inscrito no registo das entidades religiosas e poder testemunhar, pela sua influência e número de fiéis, de uma implantação notória em Espanha. A segunda condição é uma cláusula obscura sem significado preciso. Os universitários têm-na estudado em detalhe e têm-na comparado com disposições similares tiradas dos sistemas de acordos da Itália e da Alemanha. Esta tentativa tem-se revelado vã, uma vez que o governo interpretou esta cláusula à vontade. De facto, o governo não escolheu basear-se em números, mas mais na História. Isso explica a razão pela qual a Espanha concluiu acordos com os muçulmanos e os judeus. Em contrapartida, não foi assinado nenhum acordo com as Testemunhas de Jeová, que são, contudo, mais numerosas em Espanha. A Igreja Católica representa um caso à parte no que concerne à cláusula da “implantação notória”, uma vez que se considera estar implícita na Constituição21. Em Novembro de 1992, a Espanha concluiu acordos com três grupos religiosos: as entidades evangélicas, as comunidades judaicas e a comissão muçulmana. Estes acordos, elementos marcantes do nosso sistema, são e têm sido sempre muito bem considerados pelos cultos religiosos, porque encarnam, pela primeira vez, um sistema de cooperação entre as minorias não católicas e o Estado espanhol; no entanto, uma análise da sua forma levanta outras questões. Se bem que a administração tenha encorajado os diversos grupos a formarem federações22, com o objectivo de negociar um tratado com cada um deles, o conteúdo de natureza jurídica formal dos diferentes tratados são muito semelhantes, até mesmo idênticos em certos casos. Estes acordos, que 20
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funcionam como leis ordinárias no sistema jurídico, comportam disposições análogas às que se encontram nos acordos assinados com a Igreja Católica. Os tratados com a Santa Sé têm, portanto, servido de modelos. No entanto, embora os tratados com as denominações não-católicas cubram os mesmo domínios que os tratados com a Santa Sé (e, portanto, a Igreja Católica), contêm cláusulas declarativas sem nenhum carácter normativo. Estes tratados dão a impressão de não ter sido frutos de negociações: o seu texto parece muito mais ter sido proposto pelos administradores e julgado por eles apropriado e deviam ser aceites quase à letra. Limitam-se a oferecer simplesmente algumas vantagens de que os outros cultos não gozavam. A título de exemplo, os tratados dão a possibilidade de obter vantagens fiscais, de fornecer um acompanhamento espiritual nas forças armadas e, em certa medida, nas prisões, e permitem, a certas religiões, ensinar nas escolas e obter o reconhecimento dos efeitos civis dos casamentos celebrados segundo os seus próprios ritos. Incluem, igualmente, estipulações sobre as regras dietéticas e os locais de sepultura. No que diz respeito à estrutura e ao conteúdo dos três acordos, não os qualificaríamos de similares, porque alguns detalhes diferem, em virtude do carácter único de cada um dos grupos mencionados. O sistema de acordos actua entre o Estado espanhol e os grupos religiosos a diversos níveis. A organização da Espanha, como Estado “de comunidades autónomas” na qual estas unidades territoriais e políticas podem votar actos legislativos, tendo o estatuto de lei, supõe a possibilidade de um Direito autónomo, regional, eclesiástico relativo aos assuntos pelos quais estas unidades são competentes23. Por exemplo, as unidades regionais chamadas “comunidades autónomas”, têm o poder de assinar acordos. De facto, elas assinaram‑nos com os bispos católicos sobre os locais e terrenos religiosos assim como de bens de interesse artístico. Mas nestes últimos anos, também têm sido assinados acordos entre diferentes governos autónomos e outros cultos religiosos. Por exemplo, pela comunidade autónoma de Madrid com o Conselho Evangélico de Madrid24, a Comunidade Israelita de Madrid25, e a União das Comunidades Islâmicas de Espanha26; na Catalunha, entre o governo autónomo (Genelaritat)27 e o Conselho Evangélico da Catalunha. Podemos imaginar um sistema legislativo no qual coexistem diferentes tipos de acordo: entre as Igrejas e o Estado, por um lado, e os acordos entre as Igrejas, ou os grupos religiosos regionais e as comunidades autónomas por outro. Apesar disso, convém não esquecer que a Constituição não estabelece quais os mecanismos técnicos que esta cooperação deve pôr em acção. Os acordos com os cultos podem representar um meio de a pôr em prática, mas não é claro que eles não sejam apenas um meio e que a sua simples existência não garanta esta cooperação. A Lei geral sobre as associações aplicar-se-á também aos outros grupos religiosos que não estão protegidos pela Lei orgânica sobre a liberdade religiosa: eles não estão registados como “confissões religiosas” porque esta, com efeito, os exclui do conjunto das suas disposições protectoras. De facto, a Lei geral sobre as associações aplicar-se-ia igualmente aos novos movimentos religiosos ou seitas. Em Espanha, não existem disposições especiais aplicáveis a estas organizações. No caso em que elas exerçam actividades ilegais, serão perseguidas no quadro das leis gerais do código penal. 21
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Podemos, portanto concluir que em menos de vinte anos, o sistema legislativo espanhol evoluiu de um Estado católico para um sistema baseado na liberdade religiosa. Armados de um novo significado, os acordos servem para desenvolver a dimensão institucional da liberdade religiosa: promover a liberdade religiosa e respeitar a identidade religiosa dos grupos. Em resumo, do meu ponto de vista pessoal, poderá descrever-se o modelo espanhol de Direito Eclesiástico, como um modelo que protege a liberdade religiosa, apoiando as práticas religiosas institucionalizadas e tendo comparativamente em menor estima aqueles que não têm religião ou que se voltaram para um tipo de religião menos convencional.
II. As relações Igreja-Estado em Portugal Em Portugal, a revolução republicana de 1910 também fez figura de revolução religiosa. Princípios, como a separação da Igreja e do Estado foram confirmados pela Constituição de 1911. Por causa de certos impulsos jacobinos e, provavelmente, do conservadorismo da Igreja Católica, o princípio da separação não foi interpretado como instaurando a neutralidade das instituições do Estado para com a Igreja. Em vez de se mostrar neutro, o Estado adoptou frequentemente uma atitude negativa perante a religião e a existência de Deus. A despeito desta falta de moderação, esta época marcou o início de um longo processo conduzindo aos direitos civis. A liberdade de religião e de consciência começou a ser reconhecida como um dos aspectos fundamentais da dignidade humana. Em 1933, Salazar, um ditador como Franco, impôs uma nova Constituição. Os laços que mantinha com a Igreja Católica eram evidentes, mas a Constituição permaneceu prudente em matéria de religião, e os progressos obtidos pela revolução republicana não foram completamente esquecidos. O artigo 46 declarava que o Estado permanece separado da Igreja Católica e de qualquer outra religião. O artigo 45, por seu lado, sublinhava a importância de princípios, tais como a igualdade entre os diferentes cultos, a liberdade de organização e de culto, e a neutralidade do ensino nas escolas públicas. Apesar disso, este equilíbrio constitucional não tardaria a ser perturbado. Através de emendas sucessivas à Constituição, entre 1935 e 1971, a Igreja Católica Romana reencontrou a sua posição de “religião da nação portuguesa” (emenda de 1951, Lei 2048) ou de “religião tradicional da nação portuguesa” (emenda de 1971, Lei 3/71). As relações entre o Estado e a Igreja Católica foram definidas numa Concordata assinada por Portugal e a Santa Sé em 194028. Esta Concordata, ainda hoje parcialmente em vigor, descreve, incontestavelmente, um sistema de privilégios29. Declara que o Direito português reconhece a Igreja Católica como uma pessoa moral, sem outras precisões nem condições. O seu estatuto contém vários privilégios tais como: a jurisdição para os assuntos que dizem respeito à fé católica; o direito de organizar e de instituir pessoas morais de acordo com as regras canónicas; a isenção de impostos quer locais, quer nacionais incluindo o imposto sobre as rendas e as taxas sobre o consumo; com a excepção de certos deveres cívicos (como ser jurado em certos tribunais); e isenção, para os membros do clero, de certos deveres militares, substituídos pelo trabalho de capelão do exército; a obrigação do Estado de 22
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permitir que a religião e moral católicas seja ensinada em algumas aulas das escolas públicas; a possibilidade, para a Igreja, de celebrar, de acordo com o Direito Canónico, casamentos, que o Direito Civil reconhece totalmente, juridicamente, etc.. Em 1971, durante a fase liberal do regime, uma lei sobre a liberdade religiosa tentou relativizar este sistema de privilégios: reconhecia, de uma forma geral, que certos direitos institucionais se aplicavam igualmente a outros cultos, e certos direitos civis aos seus membros, mas que uns e outros não eram, no entanto, iguais em direitos com a Igreja católica. Em 1976, o regime democrático estabeleceu uma nova Constituição instaurando, pelo artigo 4130, um sistema de igualdade e de separação entre o Estado e os diferentes cultos. Assim, ao contrário de outras Constituições, como a Constituição espanhola, a Constituição portuguesa não menciona especificamente nenhuma religião. No entanto, o estatuto da Igreja Católica permanece praticamente idêntico ao que lhe conferia a Concordata de 1940 (confirmada e emendada em 1975), mesmo se uma grande parte das suas disposições é considerada como parcial ou completamente inconstitucionais pela maior parte dos autores. A Igreja Católica goza ainda de privilégios não concedidos aos outros cultos, e o Estado português concede ainda o seu apoio às acções fundamentais do culto dominante. É por isso que certos autores afirmam que esses privilégios e artigos são contrários à Constituição, uma vez que o Estado deve adoptar um comportamento passivo para com o respeito dos direitos dos cultos e Igrejas, e deve fornecer activamente os meios de exercer concretamente a liberdade religiosa. Segundo esses autores, o único problema é a recusa por parte do legislador de estender esses privilégios aos outros cultos. Em consequência, a inconstitucionalidade resulta de uma omissão do legislador, mais do que da Concordata. Inicialmente, os cultos eram regidos pela Lei sobre a liberdade religiosa de 1971. Esta tinha sido promulgada antes da Constituição e necessita de um complemento a fim de conceder direitos e privilégios similares aos que a Igreja Católica goza actualmente. Partindo do princípio de que isso é impossível, quer nos planos político ou prático, reduzir os direitos e privilégios históricos da Igreja Católica, a estratégia para atingir a igualdade seria estender a maior parte desses direitos e privilégios aos outros cultos. Esta tarefa está em decurso. A Lei sobre a liberdade religiosa de 6 de Junho de 2001 criou um novo sistema de Direito Eclesiástico conforme a Constituição, uma vez que, o legislador português sublinha no preâmbulo, “a reforma do Direito das religiões em Portugal, em conformidade com a Constituição, representa uma etapa fundamental na construção legislativa do Estado de Direito” porque “a reforma é necessária pelo facto de que os dois documentos jurídicos fundamentais na matéria, de nível infraconstitucional, a Concordata de 7 de Maio de 1940 e a Lei nº 4/71 de 21 de Agosto de 1971, por vezes designada sob o nome de Lei sobre a liberdade religiosa, concebidos no quadro constitucional de um governo antidemocrático, articulam uma compreensão da liberdade religiosa e da separação entre o Estado e as religiões inconciliável, seja com a Constituição, seja com a doutrina católica estabelecida pelo Concílio Vaticano II, as quais coincidem entre si na matéria”. 23
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Esta lei, largamente influenciada pela Lei orgânica espanhola sobre a liberdade religiosa, reconhece um certo número de direitos derivados de direito à liberdade religiosa. Composta de 69 artigos, ela não se contenta em enumerar os direitos do crente (como é o caso da lei espanhola) mas explica igualmente, o seu conteúdo31. Ele criou uma Comissão Consultiva sobre a liberdade religiosa, como em Espanha, com competências similares às da Comissão espanhola32. A Lei institui, igualmente, um registo das entidades religiosas33. A inscrição neste registo especial, submetida a diver sas condições, confere aos grupos religiosos uma situação ou uma posição específica a fim de lhes dar direitos e privilégios. Não respeita apenas os cultos, mas, igualmente, os seus membros e os seus fiéis no exercício do seu direito individual à liberdade religiosa. Por consequência, a maior parte dos direitos individuais definidos como pertencendo à liberdade religiosa não serão reconheciParte da frente do monumento aos exploradores (Padrão dos senão aos membros de dos Descobrimentos) em Lisboa. Foi construído em um culto religioso inscrito 1960, na margem do Tejo, para comemorar o 500º ani- no registo. No que concerversário da morte do Infante D. Henrique o Explorador. ne aos direitos colectivos à liberdade religiosa, apenas Este está representado de pé, à proa de um navio pronto “as Igrejas e outras comua aparelhar, acompanhado por aqueles que participaram nidades religiosas inscritas nas descobertas dos séculos XV e XVI, especialmente podem, de forma autónoma, Vasco da Gama. Foto Gettyimages fundar ou reconhecer Igrejas ou comunidades religiosas com vocação regional ou local, institutos de vida consagrada e outras instituições quer na qualidade de associações quer de fundações para o exercício ou para a manutenção das suas funções religiosas”35. O acesso aos media ser-lhe ‑á concedido a fim de emitir programas religiosos36, assim como uma série de isenções de encargos fiscais, segundo o artigo 32. A lei regulamenta vários domínios tais como a cultura, o apoio financeiro dos cultos, a assistência religiosa nas forças armadas, nas prisões e nos hospitais, o casamento e a possibilidade de os cultos e o Estado assinarem acordos sobre assuntos não incluídos no projecto, ou insuficientemente regulamentados. Esta possibilidade é estipulada nos artigos 45 a 51 e requerem duas condições. Segundo a primeira, o culto deve estar inscrito no registo das entidades religiosas e justificar a sua implantação no país. A segunda, contrariamente à cláusula espanhola de “notória implantação” no país, não é obscura. O artigo 24
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37, com efeito, estipula: “1. São considerados como residentes no país, as Igrejas e as comunidades religiosas inscritas com uma garantia de duração, sendo esta qualificação atestada pelo Ministro da Justiça, tendo em vista o número de fiéis e a história da sua existência em Portugal (…) “2. A certificação não poderá ser pedida antes de trinta anos de presença social organizada no país, salvo se se trata de uma Igreja ou de uma comunidade religiosa fundada no estrangeiro há mais de sessenta anos (…)”. A escolha dos termos obedece ao facto de o legislador português desejar ter em consideração a situação que prevalecia no tempo de Salazar37. Portanto, todas as Igrejas e comunidades religiosas existentes nessa época podem então ser identificadas como Igrejas reconhecidas. A despeito do número de anos passados desde o decreto desta lei, nenhum culto chegou a assinar um acordo. Apesar disso, penso que devemos permanecer optimistas. A experiência de Espanha e da Itália ensinam-nos que este tipo de acordos entre o Estado e as confissões não católicas, tem lugar, geralmente, depois da Igreja Católica e o Estado terem regulado os seus diferendos. Esperamos que este período de espera não durará treze anos, como em Espanha, e que, em nenhum caso, mais de trinta anos, como na Itália. Resumindo as disposições da Constituição portuguesa no que se refere à religião, podemos dizer que o campo de acção do Estado, neste domínio, é limitado. Os princípios de separação Igreja-Estado, a neutralidade e a igualdade entre os cultos estão correctamente definidos e adoptados. No entanto, o peso da religião católica romana, como factor social, basta ainda, para garantir à Igreja Católica um estatuto particular, baseado em instrumentos e regras situados num nível diferente do da Constituição. O efeito combinado destes instrumentos e destas regras, leva a uma situação de desigualdade de facto. Assim, a combinação de factores sociológicos, históricos e legislativos, levam-nos a duas constatações: o princípio da igualdade entre os cultos não é aplicado completamente e o princípio da separação permanece ainda tímido. * Professor na Universidade da Estremadura em Espanha. Notas 1. A lei mais importante era a “Fuero des Españoles”, promulgada em Julho de 1945. O artigo 6 proclama que “a profissão e o exercício da religião católica, que é a do Estado espanhol, gozará da protecção oficial. Ninguém será inquietado pelas suas convicções religiosas ou no exercício privado do seu culto. As outras cerimónias ou manifestações exteriores, não católicas, não serão autorizadas”. 2. A “Lei de princípios do Movimento Nacional”, promulgada em Maio de 1958, proclama que “a nação espanhola considera uma honra o obedecer à Lei de Deus, segundo a doutrina da santa Igreja Católica, Apostólica e Romana, a única fé verdadeira, inseparável da consciência nacional, que inspira a sua legislação. 3. O regime de Franco concluiu durante os primeiros anos, numerosas Concordatas com a Santa Sé. A primeira, de 1941, regulamenta o privilégio de apresentação. Em 1946 foram assinados o “Acordo sobre a nomeação aos benefícios não consistoriais” e o “Acordo sobre as universidades e os seminários de teologia”. Em 1947, o “Motu proprio pontifical sobre o restabelecimento do Tribunal da Rota Espanhola” e, em 1953, o “Acordo sobre a jurisdição militar e a assistência religiosa nas Forças Armadas”. 25
As relações Igreja-Estado em Espanha e Portugal 4. Artigo primeiro: “A religião Católica, Apostólica e Romana continua a ser a única religião da nação espanhola e gozará dos direitos e prerrogativas que lhe pertencem, de acordo com a Lei divina e o Direito Canónico.” 5. Ver nota 2. 6. O artigo 6.2 do “Fuero des Españoles” foi modificado em 1967: “O Estado assumirá a protecção da liberdade religiosa, que será garantida por uma tutela jurídica eficaz, assegurando, ao mesmo tempo, a moral e a ordem públicas.” 7. Artigo 16.1: “A liberdade ideológica, religiosa e dos cultos dos indivíduos e das comunidades é garantida; não terá por limitação nas suas manifestações, senão, a que for necessária para a manutenção da ordem pública protegida pela lei. 2. Ninguém poderá ser obrigado a declarar a sua ideologia, a sua religião ou as suas convicções. 3. Nenhuma confissão terá o carácter de religião do Estado. Os poderes públicos terão em conta as crenças religiosas da sociedade espanhola e manterão, dessa forma, relações de cooperação com a Igreja católica e as outras confissões.” 8. O artigo 9.2 declara: “Incumbe aos poderes públicos criar as condições para que a liberdade e a igualdade da pessoa e dos grupos nos quais ela se integra sejam reais e efectivos, suprimir os obstáculos que impeçam ou entravem a sua plena expansão e a facilitar a participação de todos os cidadãos na vida política, económica, cultural e social.” 9. O artigo 14 estabelece que: “Os espanhóis são iguais perante a lei e não podem ser objecto de nenhuma discriminação por razões de nascimento, de raça, de sexo, de religião, de opinião ou por qualquer outra condição ou circunstância pessoal ou social.” 10. O artigo 10.2: “As normas relativas aos direitos fundamentais e às liberdades que a Constituição reconhece serão interpretados de acordo com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e os Tratados e acordos internacionais que apoiam essas mesmas matérias ratificadas pela Espanha.” 11. O artigo 27 (sobre o direito à educação) menciona, no parágrafo 3: “Os poderes públicos garantem aos pais, o direito de dar aos seus filhos a formação religiosa e moral de acordo com as suas próprias convicções.” 12. O artigo 20.1 c) reconhece “O direito à liberdade de ensino de cátedra”. 13. O artigo 27.6 assegura que: “A liberdade de criar centros de ensino, no respeito pelos princípios constitucionais, é reconhecida a pessoas físicas e jurídicas.” 14. O artigo 30.2 declara o seguinte: “A lei determinará as obrigações militares dos espanhóis e regerá, com as garantias pertinentes, a objecção de consciência assim como os outros casos de isenção do serviço militar obrigatório.” 15. O artigo 3.1 estipula: “O exercício dos direitos que decorrem da liberdade de religião e de culto apenas está limitada pelo respeito do direito de outrem ao exercício das suas liberdades públicas e dos seus direitos fundamentais, como a salvaguarda da segurança, da saúde e da moral públicas, elementos constitutivos da ordem pública protegida pela lei no quadro de uma sociedade democrática.” 16. O artigo 2 declara: “1. A liberdade de religião e de culto garantido pela Constituição reconhece a toda a pessoa, além da garantia de não sofrer incómodo, o direito de: a) Professar as crenças religiosas da sua escolha ou de não professar nenhuma, mudar de confissão ou abandonar aquela que professava, exprimir livremente as suas convicções religiosas ou a ausência de convicções religiosas, ou abster-se de se pronunciar sobre esse assunto; b) Observar as práticas do culto e gozar da assistência religiosa da sua confissão, celebrar as suas festas, os seus ritos matrimoniais, receber uma sepultura condigna, sem nenhuma discriminação por motivos religiosos, de não ser obrigado a praticar um culto ou a receber assistência religiosa oposta às suas convicções pessoais; c) Receber e dispensar todo o ensino e informação de natureza religiosa, quer oralmente, quer por escrito, escolher para si e para os seus menores não emancipados e para aqueles que estão privados da capacidade jurídica, a seu cargo e no quadro escolar e extra26
As relações Igreja-Estado em Espanha e Portugal escolar, a educação religiosa e moral conformes com as suas próprias convicções; d) Reunir-se e exprimir-se publicamente com fins religiosos, associar-se para realizar em comum actividades religiosas de acordo com a ordem jurídica em vigor e as disposições da presente lei orgânica. 2. Igualmente, as Igrejas e as comunidades religiosas têm o direito de abrir locais de culto ou de reunião reservadas a actividades religiosas, de nomear e de formar os seus ministros, de tornar público o seu próprio credo, de manter relações com as suas organizações ou com outras confissões religiosas, tanto no território, como no estrangeiro.”
17. Artigo 5.2: “A inscrição faz-se sob pedido acompanhado de um documento digno de fé, atestando a sua fundação ou o seu estabelecimento em Espanha, os seus fins religiosos, a sua denominação e outras informações sobre a sua identidade, o seu funcionamento e os seus órgãos representativos, com menção dos seus poderes e dos elementos requeridos para validar a sua designação.” 18. Artigo 6. 19. Artigo 8.
20. “Tendo em consideração as crenças religiosas existentes na sociedade espanhola, o Estado conclui, em tal circunstância, acordos ou convenções de cooperação com as Igrejas, confissões ou comunidades religiosas inscritas no registo público e que, pela sua influência e o número dos seus fiéis, podem testemunhar de uma implantação notória em Espanha. Em todos os casos, estes acordos são submetidos à aprovação, por uma lei das “Cortes Generales”. 21. Ver artigo 16.3 da Constituição espanhola.
22. Os acordos foram assinados com a Federação de Entidades Religiosas Evangélicas de Espanha, a Federação das Comunidades Judaicas de Espanha e a Comissão Islâmica de Espanha.
23. As comunidades autónomas adoptaram, nestes últimos anos, um papel determinante nas suas relações com os cultos religiosos, em consequência da transferência do poder legislativo do Estado para as comunidades autónomas, para domínios como a educação, a saúde, a alimentação, etc.. Os diferentes governos autónomos começaram a procurar nas Igrejas estabelecidas no seu território, membros com quem negociar, para criar as condições que tornassem possível o exercício da liberdade religiosa. A Catalunha, por exemplo, criou, pelo decreto 68/2004 de 20 de Janeiro, a Direcção Geral dos Assuntos Religiosos, ligada ao Secretariado-Geral da Presidência da Generalitat da Catalunha. 24. 18 de Outubro de 1995.
25. 25 de Novembro de 1997.
26. Membro da Comissão Islâmica de Espanha. Os seus representantes assinaram o acordo a 3 de Março de 1998. 27. 21 de Maio de 1998.
28. Modificado o Protocolo adicional de 15 de Fevereiro de 1975.
29. Desde 14 de Maio de 2004, foi assinada uma nova Concordata entre a Santa Sé e o governo português. Se bem que ela deva ser ratificada para ser promulgada, o seu conteúdo não significa uma mudança radical em relação à de 1940.
30. “1. A liberdade de consciência, de religião e de culto é inviolável. 2. Ninguém pode ser perseguido, privado de direitos, ou privado de obrigações ou de deveres cívicos por causa das suas convicções ou das suas práticas religiosas. 3. Ninguém pode ser interrogado pela autoridade, seja ela qual for, sobre as suas convicções religiosas ou as suas práticas religiosas, salvo para a recolha de dados estatísticos, não identificáveis individualmente, nem ser inquirido por se ter recusado a responder. 4. As Igrejas e outras comunidades religiosas são separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas cerimónias e do culto. 5. É garantida a 27
As relações Igreja-Estado em Espanha e Portugal liberdade de ensino de toda a religião logo que ela seja praticada no quadro da confissão em questão, assim como a utilização dos meios de comunicação social. 6. O direito à objecção de consciência é garantido, dentro dos limites da lei.” 31. Artigos 8 e seguintes. 32. O artigo 53 estipula: “A Comissão tem funções de estudo, de informação, de aviso e de proposta em todas as matérias que se reportam à Lei sobre a liberdade religiosa, no desenvolvimento, no melhoramento e na eventual revisão deste mesma lei e, em geral, ao direito das religiões em Portugal. 2. A Comissão tem igualmente funções de investigação científica sobre as Igrejas, as comunidades e os movimentos religiosos em Portugal.” 33. Artigos 33 e seguintes. 34. Artigo 22.3. 35. Ver artigo 24. 36. Ver artigo 25. 37. Como explicado anteriormente, o Decreto-lei sobre a liberdade religiosa de 1971 dava aos cultos a possibilidade de beneficiar das suas vantagens, inscrevendo-se no registo correspondente. No entanto, em função das condições a preencher, era praticamente impossível a um culto poder aproveitar-se dela. Os cultos continuaram, portanto, a ser regidos pela Lei sobre as Associações de Direito Privado. Consciente desta situação, o legislador português quis escolher, como ponto de partida, o 25 de Abril de 1974, isto é, o fim do regime de Salazar.
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Síntese Histórica dos Direitos Humanos António José Carvalho* Os direitos humanos estão na ordem do dia. Fazem parte dos currículos escolares no ensino secundário e superior e aqui em áreas tão diversificadas como, por exemplo, o Direito, as Ciências Políticas ou o Serviço Social e afins. Também as notícias que vão sendo veiculadas pelos órgãos de comunicação social fazem eco da actualidade desta temática e informando-nos acerca das diversas concepções do que são os direitos humanos e das tensões que resultam do facto de se encarar esta matéria de pontos de vista por vezes muito divergentes. Isto resulta numa prática que frequentemente não se coaduna com o preceituado nos documentos internacionais, originando as denúncias de organizações internacionais que se dedicam ao estudo e à defesa dos direitos humanos, assim como ao acompanhamento atento desta problemática em todo o mundo. Para percebermos o que são os direitos humanos e qual o seu significado e valor para a humanidade, é importante que saibamos como se iniciou e evoluiu o processo que conduziu à definição do actual conjunto desses direitos e compreendamos quais foram as razões, os métodos seguidos e as dificuldades encontradas ao longo da sua progressão histórica. Afigura-se-nos igualmente importante compreender qual é a situação presente e quais poderão ser as tendências do futuro em relação a esta matéria. Para o observador atento é evidente que não existe consenso no reconhecimento desses direitos, nem tampouco gozam todos eles da mesma importância junto daqueles que os proclamam e defendem como um todo. Porque têm naturezas distintas e porque não surgiram todos ao mesmo tempo, os direitos humanos são, por norma, divididos em três grupos (gerações), reflectindo dessa forma as diferentes etapas históricas em que foram concebidos e proclamados. São eles: a) Direitos civis e políticos; b) Direitos económicos, sociais e culturais e c) Direitos de solidariedade.
A primeira geração dos direitos fundamentais – direitos civis e políticos1 Uma boa parte dos direitos humanos fundamentais têm carácter civil ou político e foi com eles que se iniciou aquilo a que poderemos chamar de história dos direitos humanos. Em termos históricos aponta-se geralmente a Magna Carta inglesa (15 de Junho de 1215) como o documento que de alguma forma iniciou a evolução dos direitos humanos. Os barões ingleses, descontentes com aquilo que consideravam ser uma situação atentatória dos seus direitos, regalias e garantias individuais impuseram ao rei João sem Terra um documento composto por um preâmbulo e 47 artigos onde defendiam os seus interesses. 29
Síntese Histórica dos Direitos Humanos
O segundo documento considerado importante em termos de história dos direitos humanos é a Habeas Corpus Acta (1679) que conferia a qualquer pessoa que estivesse detida o direito de se apresentar a um juiz a quem deveria ser apresentada a prova que justificasse a sua detenção. Na ausência de prova o juiz deveria ordenar a sua imediata libertação. Este documento já apresentava, em relação ao anterior, algumas diferenças fundamentais. Enquanto o primeiro era fruto dos interesses de um grupo específico de pessoas que queriam assegurar os seus interesses (os barões ingleses), e por isso podemos dizer que defendia um direito de classe, o segundo revestia-se de um carácter mais universal. Aplicava-se a toda e qualquer pessoa que fosse detida, garantindo-lhe, de alguma forma, o direito à defesa e a um julgamento. Ao se assegurar o direito universal de defesa dava-se um passo importante no domínio daquilo que mais tarde se viria a chamar de direitos humanos. No longo e penoso processo evolutivo dos direitos fundamentais vários eventos ocorridos ao longo do século XVIII acabariam por fazer dele um marco de referência na história dos direitos humanos, com diversos acontecimentos que tiverem lugar na América do Norte e que depressa tiveram repercussões na Europa, mas particularmente em França. Entre os acontecimentos ocorridos na América do Norte, pela sua importância e significado, destacamos o Bill of Rights do Estado da Virgínia (12 de Junho de 1776) e a Declaração de Independência das Colónias Americanas – Declaração de Filadélfia (4 de Julho de 1776). Ambos os documentos inovavam por proclamarem que todos os homens são, por natureza, livres e iguais em direitos. Baseando-se numa filosofia e teologia protestantes, rompiam com a hegemonia da filosofia política e social dominante na velha Europa monárquica e predominantemente adepta de uma religião com vocação totalitarista e elitista. Eram proclamações inovadoras que abriam novos caminhos para a evolução da implementação dos direitos humanos. Ainda a marcar o século XVIII surgiria o chamado constitucionalismo que, iniciando-se nos Estados Unidos, em 1787, viria a influenciar fortemente a Europa, tendo repercussões a nível do reconhecimento dos direitos humanos na medida em que reconhecia direitos e liberdades universais. E influenciou fortemente as constituições que, ainda nesse século e nos dois que se lhe seguiram, foram sendo promulgadas na Europa e no continente americano. Foi nesse contexto de génese e desenvolvimento do constitucionalismo que começaram a surgir documentos a que poderemos intitular de Declarações dos Direitos do Homem. Tratava-se de textos autónomos às Constituições que foram aparecendo um pouco por todo o ocidente e que previam diversos direitos cívicos e políticos. Aí se encontram já definidos, entre outros, o direito à vida, à liberdade, à propriedade e à resistência à opressão. É muito interessante constatar que cada documento elaborado acrescentava alguma característica inovadora, levando mais longe a defesa dos direitos humanos, reconhecendo novos direitos ou tornando-os mais abrangentes. 30
Síntese Histórica dos Direitos Humanos
Entre esses diversos documentos, o mais famoso é a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, votada durante a Revolução Francesa e aprovada pela Assembleia Constituinte de França (26 de Agosto de 1789). Ela proclamava que o homem tem direitos inalienáveis, inerentes à sua natureza, e que devem ser reconhecidos pelo Estado, entre eles o direito a votar leis e a igualdade no acesso aos empregos públicos. Esta declaração emanada do espírito revolucionário francês do séc. XVIII teria uma profunda influência nas diversas constituições europeias e latino ‑americanas, que seriam redigidas durante todo o século XIX e inícios do século XX.2 Ainda no âmbito dos direitos humanos no contexto da revolução francesa, citaremos como passos significativos a proclamação dos direitos da mulher, defendidos em 1790 por Condorcet, num artigo intitulado «Sobre a admissão das mulheres ao direito de cidade» e por Olympe de Gouges na sua Declaração dos direitos da mulher e da cidadã (1791).3 Estava-se, contudo, ainda num plano meramente nacional. O reconhecimento dos direitos humanos era assunto interno de cada país e na maioria dos casos estava-se ainda muito longe de um verdadeiro reconhecimento da existência de direitos humanos, pese embora o facto de os quadros jurídicos nacionais preverem a defesa ou garantia de um ou outro direito. Dois exemplos bastam para ilustrar esta realidade. A Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776) proclamava a igualdade entre os homens mas continuava a manter-se a escravatura.4 E mesmo após a sua abolição continuaram as desigualdades raciais que só terminariam oficialmente na década de 60, já em pleno século XX, como resultado das lutas sociais protagonizadas pelos negros americanos.5 Na França revolucionária grita-se a liberdade e a igualdade entre todos os homens, mas a escravatura, abolida nas colónias francesas em 1794, foi restabelecida por Napoleão em 1801! E acentue-se bem a palavra homens, porque no Código Civil francês, cuja vigência se manterá até meados do século XX, as mulheres continuariam privadas de certos direitos, nomeadamente o de voto.6 Os passos mais decididos para um reconhecimento universal da existência de direitos humanos começaram a ser dados nos finais da primeira metade do séc. XX, mais precisamente aquando da redacção da Carta das Nações Unidas elaborada em resultado da realização da Conferência de S. Francisco (E.U.A.), onde participaram 51 Estados (25 de Abril e 26 de Junho de 1945). A Carta proclamava os «direitos fundamentais do homem», atribuindo dignidade e valor à pessoa humana e defendendo a igualdade de direitos entre homens e mulheres. O artigo 62.º da Carta previa a possibilidade do Conselho Económico e Social emitir recomendações por forma a assegurar o respeito dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, o que levou a que nos anos seguintes diversos organismos fossem criados no seio das Nações Unidas com vista a promoverem os direitos humanos e fiscalizarem as práticas dos Estados ‑membros.7 31
Síntese Histórica dos Direitos Humanos
Não passaria muito tempo antes que um novo e importante passo fosse dado, a definição de uma segunda geração de direitos fundamentais. A segunda geração dos direitos fundamentais – os direitos sociais, económicos e culturais8 Após a segunda guerra mundial e perante as atrocidades cometidas, sentiu-se a necessidade urgente de dotar o ser humano de um conjunto de direitos que lhe reconhecessem, e, de alguma forma, lhe assegurassem a dignidade, contribuindo igualmente para a segurança da vida, para a paz e o desenvolvimento. Foi assim que, decorridos cerca de três anos desde a realização da Conferência de S. Francisco, um francês, de nome René Cassin, redigiria um documento que viria a ser conhecido pela designação de Declaração Universal dos Direitos do Homem e que viria a ser aprovado pelas Nações Unidas em Paris, a 10 de Dezembro de 1948, depois de demorada discussão e revisão do texto inicial. Esta Declaração é considerada o primeiro instrumento internacional com vocação universal sobre os direitos humanos. Nela se consagra a igualdade de todas as pessoas perante o Direito e se condena toda e qualquer forma de discriminação. A Declaração era abrangente na medida em que incluía direitos civis e políticos (artigos 3.º a 21.º) e direitos sociais e culturais (artigos 22.º a 27.º), incluindo já direitos de carácter económico-social (por exemplo o direito ao trabalho, ao descanso, ao ensino, etc.). Mas padecia de uma fragilidade importante. Tratando-se de uma declaração, e mesmo provindo das Nações Unidas, não vinculava os Estados ‑membros à obrigatoriedade de implementarem as disposições contidas no documento. A realidade demonstrou ser necessário pressionar os Estados a implementarem o respeito pelos direitos humanos. Iniciava-se uma fase de elaboração de diversos documentos específicos visando proteger as pessoas contra os atentados aos seus direitos reconhecidos na Declaração. Com este intuito foi ainda instituído o Alto Comissariado para os Direitos Humanos (1953) que coordena as várias estruturas que a ONU foi criando com vista à defesa dos direitos humanos.9 Prosseguindo os mesmos objectivos surgiriam, dezoito anos depois, os principais instrumentos internacionais das Nações Unidas em matéria de direitos humanos, mais precisamente a 16 de Dezembro de 1966. O primeiro reafirmava os direitos de primeira geração e intitulava-se Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e o segundo introduzia os direitos da segunda geração e intitulava-se Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais. Pretendia-se com estes dois documentos explicar o modo como deveriam ser aplicados e como é que a ONU fiscalizaria os Estados-membros signatários no cumprimento das disposições adoptadas. A eles seguir-se-iam a Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984) e a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989). 32
Síntese Histórica dos Direitos Humanos
Assim, após uma primeira fase predominantemente nacional, em que alguns Estados proclamavam diversos direitos humanos, assistia-se agora a uma afirmação com carácter universal sob a égide das Nações Unidas. Mas esta organização não dispunha dos meios para impor a sua vontade de ver respeitados os direitos humanos em todo o mundo e isso levou a que se sentisse a necessidade de ir mais longe e proclamar com mais ênfase a defesa desses direitos. Sentia-se igualmente a urgência de garantir a paz e as condições básicas para a prosperidade. Isto era particularmente sentido na Europa, cenário de dois conflitos que, num único século, tinham alastrado ao resto do mundo e posto em causa o estatuto do ser humano, levantado sérias interrogações quanto ao futuro. Seria, pois, a Europa que desempenharia o papel de grande impulsionadora dos direitos humanos fundamentais. Promoveria numerosos encontros internacionais e propiciaria a elaboração de diversos documentos versando sobre a temática dos direitos humanos. Esta fase predominantemente regional da história dos direitos humanos iniciou-se em 1949 com a criação do Conselho da Europa, uma instituição política europeia que visava, entre outros objectivos, salvaguardar e promover o desenvolvimento dos direitos humanos e as liberdades fundamentais. No ano seguinte surgiria a Convenção Europeia para a Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, mais conhecida por Convenção Europeia dos Direitos do Homem, assinada em Roma pelos ministros de quinze países europeus a 4 de Novembro de 1950. Ela foi considerada o mais avançado instrumento em matéria de direitos humanos e de liberdades fundamentais. Este documento estabelecia uma relação estreita entre o respeito das liberdades fundamentais e a prática da justiça e consolidação da paz no mundo, ao mesmo tempo que defendia a democracia como sendo o regime político que pode assegurar um efectivo respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. Mas como a Europa estava dividida em diversos regimes políticos10 e era evidente que a implementação do respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais não seria tarefa fácil, criaram-se a Comissão Europeia dos Direitos do Homem e o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, ambos sediados em Estrasburgo (França). Os direitos humanos tinham agora uma maior projecção internacional, mas havia ainda muito a fazer. Isto tornou-se especialmente evidente a partir dos anos 60 do século XX. Era necessário assegurar as condições fundamentais para que a humanidade se desenvolvesse, mas ao mesmo tempo realçar e promover os cuidados a ter para que essas condições fossem efectivadas. Uma forma de o fazer, pelo menos a nível internacional, era criar instrumentos de sensibilização que de alguma forma induzissem os diversos governos a olharem com mais cuidado para certos fenómenos económicos e sociais e procurassem tomar medidas concretas para que o ser humano tivesse condições efectivas de desenvolvi33
Síntese Histórica dos Direitos Humanos
mento e pudesse desfrutar da existência num clima de paz, mas também de prosperidade e de qualidade de vida. Isto faz-se nomeadamente através da criação de organismos visando estes objectivos e através de proclamações oficiais. Este processo iniciar-se-ia na década de 60 com a proclamação de todo um conjunto de direitos que viriam a constituir a terceira geração dos direitos humanos. A terceira geração dos direitos humanos – os direitos de solidariedade11 Os direitos da terceira geração surgiram, como vimos, em resultado da evolução do pensamento humanista no âmbito dos direitos humanos nas instâncias internacionais, fruto de uma clarificação da compreensão das necessidades prementes que se fizeram sentir a partir dos anos 60, no contexto da emergência de uma profunda crise social, mas também política, económica, cultural e ambiental, que evidenciava uma procura de novos referentes ideológicos (de que são expressão o ecumenismo, a ecologia, a contestação juvenil e a afirmação dos direitos da mulher), que marcou de forma intensa as artes e letras do pós-guerra, e que afectou particularmente todo o mundo ocidental. Opera-se uma revolução sociocultural que se estende nas suas implicações a todas as áreas de intervenção humana. Realçam-se os valores da individualidade, mas também do colectivo, da cidadania e da paz universal. Abre-se desse modo o caminho para a emergência de novos direitos, alargando a noção de direitos fundamentais e, de alguma forma, dando um novo sentido aos que já eram reconhecidos, ampliando a sua abrangência. Surgem assim os direitos de solidariedade, que também são direitos culturais (a paz, a igualdade na diferença, quer seja na raça, no sexo, na ideologia, na crença, etc.), mas também o reconhecimento do direito de desfrutar do património e da Natureza através do ambiente. Esta nova etapa da história dos direitos humanos caracteriza-se, a nível geográfico e organizacional, por uma clara predominância do âmbito regional. Nos continentes americano e africano surgiram organizações centradas na problemática dos direitos humanos,12 mas caberia mais uma vez à Europa desempenhar o papel mais relevante nesta nova etapa da história dos direitos humanos. A Convenção Europeia dos Direitos do Homem só abrangia os direitos civis e políticos, e sentia-se a necessidade de assumir todo o conteúdo e abrangência da Declaração Universal dos Direitos do Homem, visto que ela proclamava igualmente outro tipo de direitos que agora se afiguravam particularmente importantes para a sociedade europeia. Tinha, portanto, de se ir mais além e esse passo foi dado com a proclamação da Carta Social Europeia (1961), documento onde os direitos sociais e culturais também eram abrangidos. Catorze anos mais tarde, seria redigida a Acta Final de Helsínquia (1 de Agosto de 1975) onde os Estados participantes proclamaram o seu respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais, entre as quais se 34
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incluíam já, o que é significativo, a liberdade de pensamento, de consciência, de religião e de crença. Decorreriam mais alguns anos e apareceria a Carta de Paris para uma Nova Europa (21 de Novembro de 1990) em que se reconhece a protecção de minorias e onde os Estados outorgantes se comprometem a combater toda e qualquer forma de discriminação racial, social, cultural, linguística e religiosa. Mas nesta nova etapa da definição dos direitos humanos, a segunda metade dos anos 90 do século passado, revelar-se-ia particularmente significativa, devido ao alargamento desta temática à bioética. Dois importantes documentos internacionais seriam então publicados. Um de vocação universal, a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos da Pessoa Humana (1997), proposto pelo Comité Internacional de Bioética (organismo pertencente à UNESCO), e outro documento de carácter regional, a Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano Relativa às Aplicações da Biologia e da Medicina preparada pelo Conselho da Europa.13 A Europa evidenciava mais uma vez o seu empenho no domínio dos direitos humanos ao elaborar um texto que relaciona os direitos humanos à biomedicina, alargando a abrangência desses direitos às novas bio-tecnologias14 e inovando no domínio do que já se apelidou de bio-direito.15 E este empenho seria novamente notório já no novo milénio com a elaboração da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, proclamada pelo Parlamento Europeu, pelo Conselho da União Europeia e pela Comissão Europeia a 7 de Dezembro de 2000 com respectiva publicação no Jornal Oficial das Comunidades Europeias a 18 de Dezembro do mesmo ano.16 Mais recentemente a Constituição da Europa (30 de Setembro de 2003) transcreve o texto da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e consequentemente reconhece direitos17 e liberdades18 a todo o ser humano e proíbe a tortura e os maus tratos ou penas, desumanos ou degradantes, assim como a escravidão e o trabalho forçado (art.os II-64.º e II-65.º) e infantil (art.º II-93.º).
O presente e o futuro Iniciámos este artigo referindo a divisão clássica dos direitos humanos em três gerações. Esta divisão, para além da sua organização histórica, implica ainda uma diferenciação segundo a sua natureza, reflectindo assim a evolução da noção de direitos humanos. No plano histórico, essa evolução está intimamente relacionada com períodos de crise social e política e com as tensões geradas pelo choque de interesses e necessidades, que se manifestam ao longo dos diferentes períodos históricos e que se deparam sempre com a resistência dos que detêm o poder e dos que defendem interesses (pessoais ou colectivos) e filosofias (políticas ou religiosas), que se colocam acima da pessoa humana. Isto tem sido uma constante desde a luta dos barões ingleses no séc. XIII, passando pelas crises sociais do capitalismo liberal dos finais do séc. XIX e do pós-guerra do século XX, até aos nossos dias. 35
Síntese Histórica dos Direitos Humanos
E tudo isto contribui para que o reconhecimento dos direitos humanos seja um processo complexo, difícil e moroso, realizado a custo de muito labor e, quantas vezes, com o sacrifício de vidas. Num artigo publicado em 1996, o Prof. Viriato Soromenho Marques19 referiu três aspectos fundamentais dos direitos humanos, que sintetizam o seu percurso histórico até ao presente e perspectivam o seu futuro: não são lineares nem irreversíveis, nunca estão garantidos e estendem-se para o futuro e para a natureza. Na verdade, até ao presente, nenhum passo dado no domínio dos direitos humanos se traduziu num reconhecimento definitivo e muito menos universal destes direitos. Esta dificuldade na implementação dos direitos humanos em cada país explica-se, em parte, pelo facto de que documentos como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, não têm carácter vinculativo, mas sim apenas uma força moral, o que permite aos Estados comprometerem-se em relação a princípios e não a obrigações.20 E isto explica, em parte, a razão por que neste início do séc. XXI os direitos humanos continuam a não ser integralmente reconhecidos, inclusivamente por aqueles que dizem defendê-los. Actualmente a evolução da concepção destes direitos demonstra que de um punhado de direitos e liberdades gerais se foi progressivamente definindo um corpo de direitos mais específicos e abrangentes. Esta abrangência estende-se para a Natureza, porque compreendemos que dela necessitamos e temos de a preservar, se queremos salvaguardar a própria sobrevivência da vida em geral e da humanidade em particular. Actualmente reconhece-se uma terceira geração de direitos humanos, mas o seu aparecimento não significa que os das gerações anteriores já estejam consolidados. Longe disso, a realidade mundial demonstra que nem sequer ainda os da primeira geração estão já plena e universalmente reconhecidos. Têm-se realizado vários encontros internacionais21 e criado diversos organismos um pouco por todo o mundo ocidental,22 tendo sido elaborados documentos internacionais para promoverem e defenderem os direitos de determinados grupos sociais23 ou mesmo direitos específicos.24 Contudo, ainda estamos muito longe de um reconhecimento universal de todos esses direitos e consequente implementação a nível mundial. Nem sequer eventos como as comemorações do quinquagésimo aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem,25 que mereceu a atenção de alguns países,26 de várias organizações ligadas à defesa e promoção dos direitos humanos27 e de diversas outras instituições que lhes acordam relevância,28 atingiu plenamente os seus objectivos porque a efeméride passou despercebida ao grande público, sobretudo nas partes do mundo onde ela mais carecia de realce e de implementação. O problema de fundo que ditou a ocorrência das contradições ocorridas nos Estados Unidos e na França revolucionária, já anteriormente referidos, subsiste entre os países oficialmente defensores dos direitos humanos. Vários direitos fundamentais continuam a carecer de implementação prática mesmo em muitos dos países que se definem a si mesmos como seus 36
Síntese Histórica dos Direitos Humanos
defensores, e isto porque o corpo jurídico e a prática quotidiana negam por vezes aquilo que em teoria se diz aceitar e que, quantas vezes, até está consignado nas Constituições nacionais, mas que é negado pelas lacunas existentes na legislação ordinária, pela falta de fiscalização, ou pela prática política, social, educativa ou laboral. Oficialmente avança-se, mas na prática estagnase ou recua-se. Enquanto existir pena de morte, tortura, discriminação, desigualdade de tratamento e de oportunidades no acesso ao ensino, dificuldades no acesso e na garantia de trabalho digno, dificuldades no acesso aos cuidados de saúde e tratamento desigual no acesso aos meios de comunicação social, violações à liberdade de expressão e de convicção, entre outros, podemos afirmar que ainda estamos longe de um verdadeiro reconhecimento dos direitos humanos e isto não é só um problema dos países mais atrasados. A instauração plena dos direitos humanos é, por isso, adiada para um futuro que, sendo incerto, será também o reflexo das decisões e acções do passado e do presente. Por isso, cumpre-nos a todos participar activamente na defesa dos direitos humanos para que as batalhas de hoje nos conduzam às vitórias de amanhã. O caminho a percorrer ainda é longo, mas a conquista destes direitos tem de prosseguir com o esforço de todos os que se interessam pela defesa da dignidade humana. *Licenciado em Teologia
Referências
Entre outros, consideram-se direitos civis e políticos o direito à vida, à liberdade e segurança, a uma administração equitativa da justiça, ao respeito pela vida privada e familiar, pelo domicílio, pela correspondência, às liberdades de pensamento, consciência, religião, expressão, opinião e informação, de casar e constituir família, de reunião e associação, de circulação, de escolha de residência, de propriedade, de votar e de acesso a cargos públicos. 1
Mirkine-Guetzevitch (1951) - Les Constitutions Européennes, Tomo I, Paris, Presses Universitaires de France, p. 128, citado in Ferreira (2000) - «Liberdade Religiosa – um Direito Fundamental do Homem», Sinais dos Tempos, Ano XX, n.º 73, pp. 12-13.
2
3 Citados in Vaneigem (2003) - Declaração Universal dos Direitos do Ser Humano, Lisboa, Antígona, pág. 17. 4
Esta só seria abolida nos Estados Unidos em 1863.
Ver Bessis, S. (1998) - «Os direitos do Homem, uma história, várias ideias» in Combesque, M. A. (Dir.) - Introdução aos Direitos do Homem, Lisboa, Terramar, p. 12; Combesque (1998) - «A epopeia dos direitos cívicos» in Combesque, M. A. (Dir.) - Introdução aos Direitos do Homem, Lisboa, Terramar, p. 134.
5
6
Idem.
Podemos mencionar o Centro para os Direitos Humanos, a Comissão dos Direitos do Homem (1946), a Comissão sobre o Estatuto das Mulheres (1946), o Comité contra a Tortura, o Comité dos Direitos da Criança (1991), o Comité dos Direitos do Homem (1977), o Comité para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres, o Comité para 37
7
Síntese Histórica dos Direitos Humanos a Eliminação da Discriminação Racial (1970), o Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (1987) e a Sub-Comissão da Luta contra as Medidas Discriminatórias e Protecção das Minorias (1947).
Entre eles contam-se o direito à segurança social, à saúde, à habitação, à família, à paternidade e maternidade, ao trabalho, à qualidade dos bens e serviços consumidos, à informação, à formação, à segurança, à propriedade privada, à educação, à cultura, à ciência e ao ensino.
8
9
Ver nota 4.
Portugal era disto um exemplo, visto que o país era regido por um regime fascista e só ratificou a Convenção pela Lei n.º 65/78 de 13 de Outubro, tendo lugar a adesão a 9 de Novembro de 1978 (Diário da República de 2-1-79), ou seja, após a instauração de um regime democrático.
10
11 Entre outros, o direito à paz, ao desenvolvimento, ao ambiente, aos recursos naturais, à qualidade de vida, ao espaço aéreo e ao fundo dos mares.
12 Podemos mencionar, a título de exemplo, no continente americano a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e o Tribunal Interamericano de Direitos Humanos e em África a Comissão Africana dos Direitos do Homem e dos Povos. Nestes dois continentes também se elaboraram importantes documentos sobre os direitos humanos dos quais salientamos na América a Carta da Organização dos Estados Americanos – Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948), a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (1969) e em África a Carta da Organização de Unidade Africana e a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos (1991).
Esta convenção, também conhecida por Convenção dos Direitos do Homem e da Biomedicina, foi adoptada pelo Comité de Ministros (19 de Novembro de 1996) e assinada em Oviedo a 4 de Abril de 1997 [Serrão (1997) - «Um percurso difícil» in Silva (1997) - Convenção dos Direitos do Homem e da Biomedicina, Anotada, Lisboa: Edições Cosmos, p. 17].
13
Este passo seria igualmente admirável pelo facto de existir um tal consenso em torno do texto que os delegados dos 40 países participantes não necessitaram de recorrer a votações para o aprovar [Archer, (1997). «Três comentários breves à nova Convenção» in Silva (1997) - Convenção dos Direitos do Homem e da Biomedicina, anotada, Lisboa, Edições Cosmos, pp. 13-15].
14
Archer, (1997) - «Três comentários breves à nova Convenção» in Silva (1997) - Convenção dos Direitos do Homem e da Biomedicina, Anotada, Lisboa, Edições Cosmos, p. 13.
15
Ver Vitorino (2002) - Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, Lisboa, Principia.
16
Direito à vida (art.º II-62.º), à integridade (art.º II-63.º), à liberdade e segurança (art.º II-66.º), ao respeito pela vida privada e à segurança (art.º II-67.º), à protecção de dados pessoais (art.º II-68.º), a contrair casamento e a constituir família (art.º II-68.º), à educação (art.º II-74.º), ao trabalho (art.º II-75.º), à propriedade (art.º II-77.º), de asilo (art.º II-78.º), à protecção em caso de afastamento, expulsão ou extradição (art.º II-79.º), à igualdade perante a lei (art.º II-80.º), à não discriminação (art.º II-81.º), à diversidade cultural religiosa e linguística (art.º II-82.º), à igualdade entre sexos (art.º II-83.º), à informação e à consulta dos trabalhadores na empresa (art.º II-87.º), à negociação e à acção colectiva (art.º II-88.º), ao acesso aos serviços de emprego (art.º II-89.º), à protecção em caso de despedimento sem justa causa (art.º II-90.º), a condições de trabalho justas e equitativas (art.º II-91.º), à protecção dos jovens no trabalho (art.º II-92.º), à vida familiar e profissional (art.º II-93.º), à segurança social e assistência social (art.º II-94.º), à protecção da saúde (art.º II-95.º), ao acesso a serviços de interesse económico 17
38
Síntese Histórica dos Direitos Humanos geral (art.º II-96.º), à protecção do ambiente (art.º II-97.º), à defesa na qualidade de consumidor (art.º II-98.º), a eleger e a ser eleito nas eleições para o Parlamento Europeu (art.º II-99.º) e nas eleições municipais (art.º II-100.º), a uma boa administração (art.º II-101.º), ao acesso a documentos (art.º II-102.º), a apresentar petições ao Provedor de Justiça Europeu (art.º II103.º), de petição ao Parlamento Europeu (art.º II-104.º), à protecção diplomática e consular (art.º II-106.º), à acção e a um tribunal imparcial (art.º II-107.º), à presunção de inocência e à defesa (art.º II-108.º) e a não ser julgado ou punido penalmente mais do que uma vez pelo mesmo delito (art.º II-110.º). De pensamento, de consciência e de religião (art.º II-70.º), de expressão e de informação (art.º II-71.º), de reunião e de associação (art.º II-72.º), das artes e das ciências (art.º II-73.º), profissional (art.º II-75.º), de empresa (art.º II-76.º) e de circulação e de permanência (art.º II-105.º).
18
MARQUES, V. S. (1996) - «Direitos Humanos: três questões para uma batalha pelo futuro», Intervenção Social, vol. n.º 13/14, pp. 13-17.
19
20 Convém ainda salientar que as Nações Unidas eram constituídas por 56 Estados e que 8 deles se abstiveram. (Ver Forst, (1998) - «Os textos fundamentais (declarações de 1789 e 1948)» in COMBESQUE, M. A. (Dir.) - Introdução aos Direitos do Homem, Lisboa, Terramar, p. 25.
Por exemplo a Campanha Nacional dos Direitos do Homem (1977), a Conferência sobre a Dimensão Humana (Copenhaga, 1990) ou ainda os diversos Congressos Mundiais da Liberdade Religiosa.
21
A Amnistia Internacional, a Association Internationale pour la Défense de la Liberté Religieuse, a Federação Internacional dos Direitos do Homem, a Federação Helsínquia para os Direitos do Homem, o Human Rights Watch, a International Religious Liberty Association, a Liga para os Direitos do Homem, a Liga Portuguesa para os Direitos do Homem, o Movimento contra o Racismo e pela Amizade entre os Povos, o Office of International Religious Freedom (órgão do Dep. de Estado dos E.U.A.), Tribunal Interamericano de Direitos Humanos e a U. S. Commission on International Religious Freedom. 22
23 Para as crianças: Declaração dos Direitos da Criança (1923), Declaração sobre a Protecção de Mulheres e Crianças em Situação de Emergência ou de Conflito Armado (1974), Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças (1980), Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) e a Convenção sobre a Protecção de Crianças e Cooperação em Matéria de Adopção Internacional (1993); Para as mulheres: Declaração sobre a Protecção de Mulheres e Crianças em Situação de Emergência ou de Conflito Armado (1974) e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (1979); Para os trabalhadores migrantes e respectivas famílias: Convenção Internacional sobre a Protecção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros das Suas Famílias (1990); Para as pessoas com deficiência: Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes Mentais (1971), a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes (1975) e os Princípios para a Protecção de Pessoas com Doenças Mentais e para o Aperfeiçoamento dos Cuidados de Saúde Mental (1991); Para as pessoas idosas: Declaração dos Direitos das Pessoas Idosas (1965), a Recomendação sobre os Trabalhadores Idosos (1980), o Plano Internacional de Acção da Assembleia Mundial sobre Envelhecimento (Viena, 1982), o Código Europeu de Segurança Social (1964) e o Relatório Final do Ano Europeu das Pessoas Idosas e da Solidariedade entre Gerações (1993).
A Declaração sobre a Liberdade Religiosa (1961), a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965), a Convenção para a
24
39
Síntese Histórica dos Direitos Humanos Protecção das Pessoas relativamente ao Tratamento Automatizado de Dados de Carácter Pessoal (1981), a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância Religiosa (1981), a Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984), a Declaração Europeia sobre os Objectivos Culturais (1984), a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento (1986), o Documento da Reunião de Copenhaga da Conferência sobre a Dimensão Humana (1990) e o Protocolo Facultativo do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos. 25
Ocorrido em 1998.
Em Portugal foi criada a Comissão Nacional para as Comemorações do 50.º Aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
26
Entre elas as Nações Unidas, nomeadamente com a publicação de um importantíssimo instrumento pedagógico intitulado Direitos Humanos e Serviço Social: Manual para Escolas e Profissionais de Serviço Social, mas também organizações privadas como a Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa, que públicou um número da sua revista Consciência e Liberdade dedicado à efeméride (n.º 56, 1999).
27
É o caso da Igreja Adventista do Sétimo Dia que através do seu Departamento de Relações Públicas da Conferência Geral (órgão administrativo máximo daquela instituição religiosa) públicou a 17 de Novembro de 1998 uma declaração oficial intitulada «Direitos Humanos».
28
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DOSSIER O Pós-modernismo e a liberdade religiosa Preocupações em matéria de liberdade religiosa no mundo pós-moderno Reinder Bruisma* Ao abordar um tema tão vasto, corremos o risco, abstraindo-nos da barreira das palavras, de fazer poucos avanços concretos. Tenho consciência disso, mas espero mesmo assim, que o leitor encontre utilidade no presente artigo. Começaria por expor, brevemente, algumas características principais do pós ‑modernismo que podem influenciar a prática da liberdade de consciência e de religião no mundo pós-moderno ou pós-pós-moderno de amanhã. Em seguida, um recordar dos últimos acontecimentos em matéria de religião e dos direitos do Homem, levar-nos-á a levantar um certo número de questões e de problemas ligados à liberdade religiosa na nossa época pós-moderna, um assunto que deve continuar a ser explorado para além da leitura deste artigo. O pensamento pós-moderno A maior parte das pessoas que se têm debruçado sobre o assunto, concordam em dizer que vivemos num mundo em transição. Há muitos séculos, a Idade Média cedeu o seu lugar à Idade Moderna de que o Século das Luzes faz parte1. A mentalidade pré-científica foi, pouco a pouco, substituída por uma abordagem científica da vida em geral. Actualmente, e há já alguns decénios, está em curso uma alteração capital, a saber, a transição da Idade Moderna para a Idade Pós-moderna, deixando, para trás, o projecto das Luzes. Igualmente, a importância da passagem de uma visão medieval do mundo, para o modernismo, não apareceu, realmente, senão às gerações, que tenham vivido bem mais tarde, nós, e os nossos contemporâneos, não conseguimos aperceber-nos completamente da natureza exacta das mudanças em curso. Mas, todavia, não há nenhuma dúvida de que se está a dar uma transição. A maior parte das pessoas – pelo menos no Ocidente – erram no caminho que leva ao pós-modernismo, tenham ou não consciência disso. É verdade que este termo é muitas vezes maltratado. Geralmente, é sinónimo do consumismo superficial que, infelizmente, causa estragos numa boa parte do rico mundo ocidental dos nossos dias. De uma forma mais séria, esta palavra 42
Preocupações em matéria de liberdade religiosa no mundo pós-moderno
refere-se, de facto, a uma nova forma de observar o mundo, uma nova visão do mundo, uma nova Weltanschauung. Esta acepção retoma, na cultura ocidental, novas tendências radicais no domínio das artes, da arquitectura, dos media, da moda, da literatura, do Direito, do teatro e da música. O pós-modernismo exerce uma influência considerável sobre o mundo religioso assim como no mundo filosófico, e mesmo nas esferas económicas e políticas 2. Se bem que o fenómeno pós-modernista não se tenha realmente tornado evidente senão durante as décadas de 1970 e 1980, as suas raízes filosóficas são anteriores3. Numerosas ideias pós‑modernistas encontram a sua origem Na arquitectura pós-moderna, o importante não é em Friederich Nietzsche construir apenas sob o ponto de vista funcional. (1844-1900), que rejeitou Procura-se mais misturar os estilos e as épocas. O firmemente o conceito de Messeturn em Francfort-sur-le-Main, cuja construção Deus do Século das Luzes. terminou em 1990 é disso um belo exemplo. Conce- Entre outras influências bido num estilo art-déco dos anos 1960, mede 257 que tiverem um papel metros de altura, comporta 70 andares, e recebe, maior no desenvolvimencada dia, 4000 empregados de escritório: símbolo de to do pós-modernismo, riqueza, de inovação e de criatividade. Foto Raimond encontram-se filósofos Spekking/Wikipedia que trabalharam sobre as teorias da hermenêutica (Friederich Schleiermacher, 1768-1834, por exemplo), a qual mudou radicalmente a nossa maneira de apreender os textos religiosos e históricos, assim como uma corrente filosófica chamada geralmente filosofia da linguagem, da qual Ludwig Wittgenstein, 1889-1951, é um representante. Quatro filósofos modernos são geralmente identificados como os precursores do pós-modernismo. Michel Foulcault (1926-1984) que pôs em evidência, particularmente, a correlação entre o conhecimento e o poder. JeanFrançois Lyotard (1924-1998), um outro francês, não se limitou a rejeitar a obra literária de Marx – que ele tinha anteriormente admirado durante anos 43
Preocupações em matéria de liberdade religiosa no mundo pós-moderno
– mas também estava persuadido de que todas as metanarrações deviam ser abandonadas. Jacques Derrida (1930-2004), um pensador judeu nascido na Argélia, defendia a tese de que a linguagem não tem um significado fixo, dependendo sempre do contexto. Em vez de procurar a unidade, ele colocou a ênfase na realidade do pluralismo e da diferença. Por fim, Richard Rorty (nascido em 1931) é o único membro deste quarteto de arquitectos pós-modernistas não europeu. Como americano, seguiu os passos do pragmatismo, ainda que mais radicalmente do que os seus compatriotas que o tinham precedido, rejeitando, pelo seu lado, todos os grandes esquemas e sublinhando a futilidade de toda a busca de uma verdade absoluta. Bem entendido, são numerosos os autores que poderiam – ou deveriam – ser citados por terem contribuído para o corpo dos escritos pós-modernos. Contudo, este artigo não tem, como objectivo, apresentar uma descrição completa da filosofia pós-moderna, apresentando uma lista exaustiva dos seus principais iniciadores. Bastam alguns parágrafos sobre as linhas mestras que subentendem o pós-modernismo.
revelavam a sua ambição de colocar em destaque os mecanismos internos que regessem este mundo. De forma autónoma, ia, sem recorrer a revelações nem a intervenções divinas, chegar a uma visão do mundo que explicaria, de maneira satisfatória, o universo que nos rodeia e o papel chave desempenhado pela humanidade na gestão do planeta. O homem pós-moderno afastou-se desta abordagem optimista e acima de tudo arrogante do mundo e do papel da humanidade. Uma epistemologia completamente diferente está na origem desta mudança 4. Os pós-modernos têm uma visão muito mais restrita dos conhecimentos humanos do que os modernos. Segundo eles, o conhecimento está longe de ser um objectivo, e a perseguição do saber está por vezes associada a muitos fins inconfessados. Eles negam a existência de um organizador omnisciente autónomo e imparcial. Pretendem, igualmente, que considerar a razão como o único caminho que conduz ao conhecimento, revela uma atitude insensata, e insistem no facto de que os sentidos, tal como as emoções, e as intuições, também fornecem elementos de conhecimento. No entanto, é preciso ter em conta que os pós-modernos acrescentam: a pesquisa realizada para chegar a uma verdade, seja ela qual for, não é, principalmente, tarefa de um indivíduo, mas mais um acontecimento que se produz no seio de uma comunidade. A visão pessoal da verdade sofre profundamente a influência da comunidade à qual pertence. Por outro lado, cada um utiliza inevitavelmente a língua falada pela sua comunidade, língua carregada de significados marcados por um acordo comum para esta. Mas os pós-modernos partilham a
O pós-modernismo substitui o modernismo A Idade Média, época pré-científica com as crenças da magia e todas as espécies de poderes e fenómenos sobrenaturais, foi substituída por uma era moderna voltada para o racionalismo. O método científico devia levar o homem para um mundo melhor através do progresso constante. O homem moderno, optimista, sonhava com os seus grandes projectos e desenvolvia as suas metanarrações: os grandes esquemas que 44
Preocupações em matéria de liberdade religiosa no mundo pós-moderno
opinião de que o conhecimento, seja ele qual for, não é essencialmente bom. É necessário ter sempre alguma desconfiança com a forma de o utilizar, uma vez que em geral ele representa uma entrada para o poder. O reconhecimento, não conduz, automaticamente, ao progresso constante. Na realidade, a geração pós-moderna é fundamentalmente pessimista acerca do futuro. Os jovens de hoje não pensam que viverão necessariamente melhor do que os seus pais, enquanto que estes tinham grandes possibilidades de viver melhor do que a geração precedente. Acima de tudo, preocupam-se, muito mais, com a sobrevivência do nosso planeta, com os seus frágeis ecossistemas e os recursos naturais que se desgastam. Segundo penso, as seguintes cinco características do pós-modernismo aplicam-se muito bem ao nosso assunto. Em primeiro lugar, a convicção de que não existe o absoluto. Tudo é relativo. Não existe nenhuma base sólida e indubitável sobre a qual podermos apoiar a estrutura da verdade. Devemos contentar-nos com crenças e opiniões que possam ser partilhadas pelos membros de uma dada comunidade. Os textos – religiosos ou não – não nos ensinam o que é que se deu exactamente e não nos fornece fundamento para a verdade. Eles constituem a interpretação da realidade de alguém, e essa interpretação passa por um ciclo hermenêutico5, quando os leitores do século XXI os analisam e interpretam, por sua vez. Em segundo lugar, uma vez que tudo é relativo, a ideia de uma visão do mundo imenso e englobando cada indivíduo não é credível, e os ideais que cativam a imaginação das multidões não passam de quimeras.
Em terceiro lugar – e este aspecto está ligado ao precedente – os pósmodernos têm uma atitude extremamente desconfiada em relação às organizações, às estruturas e às coligações que pretendem promover ideais sublimes, mas que na verdade têm o propósito de obter o poder e de o usar. Este princípio vale para todas as organizações, religiosas ou não, e para estruturas tão diversas, como o Vaticano e o Conselho Ecuménico das Igrejas, a Organização Mundial do Comércio e a Organização das Nações Unidas. Em quarto lugar, convém notar que é a comunidade que é colocada no centro da atenção, e já não o indivíduo. Seria simplista dizer que a comunidade se tornou mais importante do que o indivíduo, ou que os indivíduos já não contam. No entanto, a tendência actual insiste ainda mais sobre o bem-estar de uma comunidade e salienta a pertença a uma comunidade como característica decisiva da identidade pessoal. O quinto factor, se bem que de natureza ligeiramente diferente, poderá demonstrar ser o mais importante no contexto do tema deste artigo. Trata-se da influência de uma filosofia utilitarista, ou puramente pragmática. A abordagem pós-moderna da vida pode, em grande parte, ser resumida da seguinte forma: quando se vos apresenta uma escolha, escolhereis o que “funciona” para vós ou, por extensão, para a vossa comunidade. Como já atrás mencionámos, o filósofo americano Richard Rorty defende este tipo de abordagem pragmática da vida. O facto de que esta opinião particular nos vem dos Estados Unidos, na verdade, não nos deveria surpreender, pois que o pragmatismo tem uma longa tradição na corrente do 45
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detalhe no que respeita a doutrina; também está menos pronto a adoptar todas as posições doutrinárias de um culto particular. O crente pós-moderno selecciona e escolhe no conjunto de todas as doutrinas as que lhe agradam. Esta selecção será depois incorporada na sua versão particular da verdade. O crentre pós-moderno não se contenta em definir as suas opiniões buscando nas suas próprias tradições ou seleccionando o que lhe convém na herança da sua própria comunidade espiritual. Ele vai bem mais longe e absorve elementos de crença de outras comunidades espirituais. De facto, muitas pessoas que ainda se consideram “cristãs” têm também adoptado ideias e práticas vindas daquilo que se chama, a torto e a direito, o movimento New Age, assim como do budismo e de outras religiões não cristãs. Esta permeabilidade das fronteiras é um fenómeno pós-moderno. Não se exprime apenas na vontade de seleccionar e de combinar as ideias e os conceitos de um vasto leque de fontes religiosas, mas, igualmente, de outros domínios da vida. É determinante notar que o assunto da espiritualidade fez a sua entrada no mundo da economia e do comércio, mas muito mais ainda que, em certos países, a religião obteve o direito de se tornar actor no domínio social. Com efeito, os governos procuram reduzir os orçamentos mirabolantes das despesas para os cuidados com as pessoas idosas e para os projectos sociais. Isto porque as instituições religiosas podem retomar as tarefas que tinham sido obrigadas a transferir para as autoridades públicas, apenas numa geração. A fronteira entre “Igreja” e “Estado” torna-se mais delicada? Deve remos admitir que na hora actual a
pensamento americano. Se bem que este país não tenha permanecido indiferente aos movimentos filosóficos que têm atravessado o Ocidente, a escola do realismo moderno (escocês) exerceu uma enorme influência sobre os americanos do século XIX, e nenhuma corrente de pensamento ocupou uma posição tão central nos Estados Unidos, como o utilitarismo e as outras formas de pragmatismo6. O pensamento pós-moderno e a religião O pensamento pós-moderno raramente tem tido tanto impacto num dos domínios da vida, como sobre o da religião, em particular da religião cristã. Quando a espiritualidade se torna objecto de um interesse crescente, tem-se notado na maior parte dos países ocidentais, no decurso destes dez últimos anos, aproximadamente, uma diminuição do número de pessoas que se unem à Igreja e um aumento, considerável, do sentimento de desconfiança para com as estruturas hierárquicas e da instituição da Igreja. Paralelamente, o movimento ecuménico parece perder o fôlego. Em certos países, têmse visto progressos tangíveis visando uma organização mais unida, mas, no conjunto, este objectivo foi substituído por uma aspiração menos ambiciosa, melhorar a compreensão mútua entre as comunidades religiosas e as diferentes tradições. Daí até dizer que o ecumenismo permanece um ideal que cativa a imaginação da multidão dos cristãos, não exageramos nada. Um outro elemento igualmente importante é ilustrado pela nova mentalidade do crente que, de qualquer maneira, “faz o seu caminho”. Hoje, aquele que crê interessa-se cada vez menos, pelas questões de
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imagem do papel da religião na sociedade está longe de ser clara. A Europa tem sido sempre um continente tradicionalmente cristão, e são numerosos aqueles que pretendem que a cultura europeia vai buscar, sempre, a sua inspiração à sua herança judeo-cristã. Todavia, quando em 2005 a União Europeia quis introduzir uma Constituição “Europeia”, teve lugar um agitado debate: seria preciso mencionar o Deus Judeo-cristão em qualquer parte desse novo documento? Por fim, o documento submetido à aprovação Que contraste entre do frenesi dos consumidores dos países do dos Estados membros não Oeste e a pobreza que reina no Terceiro Mundo! Foto churchfazia referência a Deus. photo/Ulrike Mueller Encontrou-se um compromisso evocando apenas, as tradições culturais, religiosas e humanistas da Europa. Será que se poderá dizer que um aumento de tolerância constitui um efeito secundário positivo: – da diminuição importante do número de vozes a reclamar um estatuto único para o cristianismo, superior e acima de todas as outras religiões – da divulgada vitória das verdades sobre a Verdade? É difícil inventar os Foto churchphoto/Gerhard Grau meios para medir, exactamente, os graus de tolerância perante antes que as animosidades, profunas ideias e as práticas religiosas. damente enraizadas entre os diversos Parece que numerosos países ainda grupos religiosos se dissipem. Na têm um longo caminho a percorrer, realidade, a intolerância aumenta, 47
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sobretudo entre os muçulmanos e os não muçulmanos. E mesmo onde parece que se vai mais na direcção da tolerância, muitas questões permanecem sem resposta. Parece que o nível de tolerância para com os outros aspectos da vida religiosa cai, desde que uma corrente religiosa se aplica com zelo a persuadir os indivíduos a mudar de religião para adoptarem outras crenças reputadas como superiores ou tidas como representantes da Verdade. Os pós-modernos respeitam as crenças dos outros, sejam elas quais forem; em contrapartida, por princípio, não querem, de forma alguma, ser obrigados a converter-se a uma outra religião. Se isso acontece, a sua atitude de benevolência e de tolerância, para com as outras opiniões, não tarda a desaparecer. Há ainda uma outra questão que merece ser colocada. Apesar de observarmos uma maior abertura de espírito sobre as opiniões e práticas religiosas de outrem, trata-se, na realidade, de uma forma de tolerância, autêntica, ou deveríamos, antes, considerar esta atitude, como uma profunda falta de interesse, ou até mesmo, uma prova de insensibilidade para com as crenças e as práticas dos outros? Por fim, se o segundo caso é observado, deveremos preocupar-nos?
Association (que tem a sua sede nos Estados Unidos)7, o professor David Little, da Harvard Divinity School, citou, muito a propósito, o autor Richard Wolin, segundo o qual a filosofia pós-moderna qualifica a linguagem dos direitos do Homem como um “discurso de pseudo-emancipação” que camufla, invariavelmente, formas inquietantes de poder e domínio8. A maior parte das nações sobre a Terra, concordam em dizer que todos os homens, mulheres e crianças têm direitos fundamentais e inalienáveis, seja qual for o lugar onde vivem e sem distinção de sexo, de orientação sexual, de etnia, de religião, ou de opinião política. Isso foi afirmado na Declaração Universal dos Direitos do Homem, da Organização das Nações Unidas, em 1948. Esta Declaração Universal, constitui, com o Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional Relativo aos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (adoptados pela ONU, respectivamente em 1966 e 1976), a “International Bill of Rights” (Declaração Internacional dos Direitos). Desde a Segunda Guerra Mundial, foram também adoptados, outros textos legislativos internacionais aprofundando certos direitos individuais específicos. Esses documentos sobre os direitos do Homem, cobrem um vasto leque de domínios. Há os direitos à segurança, que insistem no carácter sagrado do corpo humano e protegem os seres humanos contra os crimes, tais como a morte, o massacre, o genocídio, a tortura e a violação. Os direitos políticos garantem, a cada um, a liberdade de participar, livremente, em actividades políticas, de se exprimir livremente e de se mani-
O pensamento pós-moderno e os direitos do Homem Iremos agora deter-nos sobre um outro capítulo do debate e concentrarmo-nos sobre o domínio dos direitos do Homem. Devemos analisar a forma como o pensamento pós-moderno influencia a interpretação dos direitos do Homem. Em Novembro de 2005, por ocasião de um encontro, em Espanha, da International Religious Liberty 48
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festar. Outros direitos asseguram a cada um a possibilidade de recorrer às vias legais apropriadas e zelar para que ninguém possa ser preso sem ser julgado, nem ser vítima de abuso por parte do sistema judicial. Por outro lado, os direitos sociais (ou direitos económicos) estipulam que toda a pessoa deve ter acesso à educação e o direito de estar ao abrigo da pobreza extrema e da fome. Os textos garantem uma cidadania igual para todos, insistindo sobre a igualdade completa perante a lei e interditando toda a forma de discriminação, ocupam desde logo e perante o cenário, desde há alguns anos, sobretudo nos países ocidentais que receberam um fluxo importante de imigrados. No contexto do nosso debate, devemos concentrar-nos sobre os direitos que reconhecem a cada indivíduo a liberdade de consciência, de convicção religiosa, de associação, de reunião e de movimento. Eles são enunciados no artigo 18 da Declaração Universal: “Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público, como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos.” 9 Ao nos debruçarmos um pouco sobre o assunto, notamos que apesar do direito à liberdade religiosa ter sido incorporado na maior parte das Constituições nacionais como um direito para todos os cidadãos, o pôr completamente em prática o artigo 18 ainda deixa muito a desejar em certas partes do mundo. Mas enquanto se discute muito sobre estas faltas e estas violações dos direitos
do Homem e as estratégias que visam melhorar a situação nas diferentes regiões do mundo, um outro debate, pelo menos tão grave – e até mesmo mais, segundo alguns – requer toda a nossa atenção. Trata-se da hierarquia dos direitos do Homem. Os especialistas em Direito In ternacional debatem ainda o problema de uma hierarquia em Direito Internacional10. O facto de algumas leis internacionais terem mais peso do que outras, torna-se objecto de um largo consenso. São classificadas, regularmente de jus conges – obrigação de agir, de extraditar, de perseguir com a justiça, etc.. Elas dizem respeito a crimes de guerra, o genocídio, a escravatura, a tortura e os crimes de amplitude similar. Face a este tipo de delito, um país não tem outra escolha senão agir. Trata-se de uma obrigação erga omnes, isto é, uma tarefa que se aplica a todos. O único facto que este tipo de crimes criou tende a provar que existem crimes de menor gravidade e, portanto, existe realmente uma hierarquia em Direito Internacional. A maior parte dos tratados internacionais reconhecem, também, um princípio hierárquico análogo. Alguns elementos sobre os quais as partes se puseram de acordo devem ser sempre respeitados, mas, em geral, esses tratados contêm também, disposições que deixam entrever a possibilidade de derrogar. Alguns artigos do acordo podem, temporariamente, ser postos de lado em caso de circunstâncias excepcionais. Por outras palavras, estes tratados comportam cláusulas que prevêem ser momentaneamente suspensos e outros, mais fundamentais, que não o podem ser em caso algum. É muito frequentemente admitido que um princípio comparável, se 49
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aplica aos direitos do Homem. Os instrumentos dos direitos do Homem estabelecem uma distinção entre os direitos que se podem derrogar e os que não o podem ser, como está
minação fundada unicamente sobre a raça, a cor, o sexo, a língua, a religião ou a origem social11.” O protocolo estipula aquilo que um Estado deve fazer quando decide recorrer a esta disposição. Por outro lado, estabelece que um certo número de direitos não podem ser suspensos. Alguns são claramente identificados no mesmo documento, se bem que outros documentos pertinentes das Nações Unidas não se demorem mi-nimamente sobre a lista dos direitos que não podem ser suspensos, pode dizer ‑se que se tem por essencial os direitos O glaciar Perito Moreno na Argentina. É o maior glaciar do mundo situado ligados ao carác3 fora das regiões polares. A sua capacidade é de 22 000 Km . A juventude actual interroga-se sobre o que acontecerá ao nosso planeta, com todos ter sagrado da vida os graves problemas com os quais se vê confrontada: a deterioração do humana individual e ambiente, a fragilização do sistema económico, a poluição, a fonte dos à dignidade humana. O bom senso impõe glaciares, etc. Foto churchphoto/Gerhard Grau que o direito a ser protegido contra a claramente estipulado no artigo 4 “privação arbitrária da vida” pertence, do Pacto Internacional das Nações com efeito, a uma categoria diferente Unidas relativo aos direitos civis e do “direito de aderir a um sindicato”, políticos: e que a “proibição da escravatura” “Em tempo de uma emergência releva de uma categoria diferente da pública que ameaça a existência “livre circulação e a livre escolha da da nação e cuja existência seja sua residência” – apesar de todos estes proclamada por um acto oficial, os direitos serem muito importantes. Estados, partes no presente Pacto, Um dos direitos habitualmente podem tomar, na estrita medida em classificado entre os direitos os quais que a situação o exigir, medidas que não se podem suspender, está a liberderroguem as obrigações previstas dade de pensamento, de consciência no presente Pacto, sob reserva de e de religião. O facto de ser entendique essas medidas não sejam incom- do como um dos mais fundamentais patíveis com outras obrigações que entre os direitos do Homem não siglhes impõe o direito internacional e nifica por isso, que todos os actores que elas não envolvam uma discri- principais dos meios civis e religio50
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sos concordem com uma definição de liberdade religiosa, nem que sigam as que são dadas pelas Nações Unidas. Segundo os instrumentos dos direitos do Homem, a liberdade religiosa compreende, sem qualquer dúvida, a liberdade de se desvincular de uma determinada comunidade religiosa, de mudar de religião e de viver activamente as suas crenças. O conceito de liberdade religiosa nem sempre foi entendido desta forma. Ainda hoje, nem todos aceitam a definição acima. Antes do Concílio Vaticano II, a Igreja Católica Romana aderiu à opinião de que a liberdade religiosa devia estar ligada à verdade e sugeriu que o erro não devia ter direitos intrínsecos! O facto da Igreja Católica ter adoptado um conceito mais completo de liberdade religiosa constituiu um grande progresso12. Um outro poder religioso à escala mundial, o mundo islâmico, tem ainda um caminho a percorrer antes de alinhar completamente com o conceito de liberdade religiosa, tal como é definido pela ONU. O Islão é a religião maioritária em quarenta e quatro países. Em vinte e dois países é a religião oficial, e dez países são, segundo a sua Constituição, Estados islâmicos. Na maior parte dos países islâmicos, é impossível, ou pelo menos extremamente difícil, renunciar à fé muçulmana. Enquanto que os imigrados muçulmanos vindos para o Ocidente reclamam vivamente que lhes sejam concedidos todos os direitos no seu país de acolhimento, é impossível, em muitos dos seus países de origem, pregar, abertamente, uma outra religião que não seja o Islão, ou até mesmo construir uma igreja. A liberdade religiosa não tem o mesmo significado em todo o mundo e a sua posição na hierarquia dos
direitos varia. É até mesmo inútil imaginar que esta liberdade é sempre considerada como um direito que não se pode anular. No entanto, a questão da hierarquia dos direitos põe-se a um outro nível. Não é necessário decretar o estado de emergência para que o conflito de direitos expluda e para se ser confrontado com a questão de saber qual é o direito que prevalece sobre todos os outros direitos. O termo “religioso” é, ele mesmo muito impreciso e pode levantar interrogações. O facto de alguém classificar algo como “religioso” não o torna religioso por causa disso. É legítimo determinar quais os critérios que permitam considerar uma opinião ou uma comunidade como religiosa. De igual forma, dificilmente se pode negar que a religião faz parte dos direitos absolutos, no sentido em que ela não anula todos os outros direitos. Em situações concretas, é, por vezes, necessário ter atenção para estabelecer um equilíbrio entre os direitos, passando, por vezes, por compromissos. Bem entendido, a posição deste ou daquele direito na hierarquia dos direitos segundo um indivíduo, um grupo, ou um governo influencia grandemente a decisão a tomar face a uma situação particular. Os exemplos em que dois direitos do Homem, por vezes até mais, entram em conflito são imensos. Tomemos a combinação entre liberdade religiosa e não-discriminação religiosa no caso de uma contratação. Ninguém se escandalizará se uma comunidade religiosa contrata unicamente um pastor, ou um padre, que é um dos seus membros praticantes e que partilha das suas convicções teológicas fundamentais. Mas que se passa quando os membros influentes dessa comunidade julgam que a candidatura de um ou de uma secretária 51
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houve um debate nos quatro cantos do mundo a fim de saber se a publicação dessas caricaturas podia ser justificada pelo direito à liberdade de expressão, ou se os seus editores deveriam ter impedido a sua publicação para não ofender os leitores. Os muçulmanos, que protestaram, teriam razão para dizer que o seu direito de não serem ofendidos nas suas convicções religiosas tinha sido seriamente injuriado? Que direito deveria ter prevalecido: o direito à livre expressão ou o seu direito de praticar a sua religião sem nenhuma ingerência? Por fim, um último exemplo: o das Testemunhas de Jeová, que acreditam que o consumo de sangue é proibido pela Bíblia. Pensam, também, que uma transfusão de sangue se assemelha a comer sangue. São numerosos os que recusam uma transfusão, mesmo se a sua vida depende disso. O problema põe-se, bem entendido, quando um membro desse movimento religioso quer impedir o seu filho menor de receber uma transfusão. Deve esta vontade ser respeitada, como uma legítima expressão da liberdade de consciência do pai, ou, por outro lado, o facto de fazer a transfusão viola o direito da criança a ter a sua própria vida protegida? Qual destes dois direitos deve prevalecer? Que direito é mais elevado na escala hierárquica e quem determina a posição de um direito?
deve ser rejeitada – se bem que essa pessoa seja a mais competente entre os candidatos – porque ele, ou ela, não é membro da comunidade religiosa? Deve esta comunidade ter a possibilidade de insistir no facto que a liberdade religiosa entre em linha de conta quando se trata de contratar pessoal administrativo? Deve realmente tomar em consideração o receio de que a contratação dessa pessoa prejudique o trabalho que esse cargo lhe dará? Ou o princípio da não discriminação religiosa no domínio do emprego está mais acima na hierarquia dos direitos? Os muçulmanos insistem em que o uso do lenço na cabeça constitui uma prática religiosa que não lhes deveria ser proibida. No entanto, há países em que a separação da Igreja e do Estado levou a uma lei, interditando o uso de vestuário que possa ser assimilado a um sinal religioso, pelas pessoas que trabalhem para o serviço público ou num estabelecimento público do Estado. Por vezes defendem que o conceito de uma total igualdade entre homens e mulheres se opõe à ideia de que as mulheres sejam classificadas como seguindo um hábito do qual os homens estão isentos. Por outro lado, alguns dizem que, em inúmeros casos, os homens obrigam as suas mulheres a usar o lenço, o que constitui uma forma de opressão que vai contra o princípio da não-coerção nas questões religiosas. Então que noção prevalece sobre a outra? Existe uma hierarquia, segundo a qual, um direito domina sobre os outros? Todos nos lembramos ainda da perturbação suscitada em todo o mundo, por causa das caricaturas do profeta Maomé publicadas no jornal holandês, Jullands Posten, em Setembro de 2005. Durante semanas
A hierarquia dos valores num clima pós-moderno após os atentados de 11 de Setembro Partindo do facto de que, por um lado, existe uma hierarquia dos direitos, tal como existe uma distinção entre os direitos que podem ser suspensos e os que o não podem, e de que, em certas situações concre52
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tas, os direitos podem entrar num real conflito uns com os outros, pode ser-se levado a julgar qual o direito prevalecente. Desde logo, parece legítimo que haja preocupação de que este julgamento seja, em todo o caso consciente ou inconscientemente, parcialmente impregnado do clima cultural e político reinante numa dada sociedade. Depois do 11 de Setembro de 2001, muitos países ocidentais adoptaram leis visando proteger os seus cidadãos dos ataques terroristas. Ao fazer isso, em particular, quando as autoridades se servem das suas novas disposições para identificar mais facilmente as pessoas susceptíveis de recorrer ao terrorismo, atenta-se, muitas vezes, contra os direitos do Homem. Certos grupos, com efeito, correm maiores riscos de ver os seus direitos cerceados: as pessoas de origens étnicas ou religiosas específicas, os imigrantes, os refugiados e os que solicitam asilo, assim como as pessoas com opiniões políticas impopulares – se bem que, em geral, nada prove que essas opiniões possam conduzir a actos violentos ou desonestos. Num mundo marcado por esse terrível atentado, parece que os muçulmanos devem esperar que a sua liberdade religiosa se veja colocada, na hierarquia dos direitos, numa posição inferior à do direito à segurança física da população no seu conjunto. Contudo, de acordo com a classificação nas Nações Unidas, não se podem anular estes dois direitos; são, portanto, intocáveis, sejam quais forem as circunstâncias. A 6 de Março de 2003, Kofi Annan, Secretário-Geral da ONU, declarou na reunião especial reunindo o comité instituído pelo Conselho de Segurança para lutar contra o terro-
rismo (Comité contra o terrorismo) e as organizações internacionais, regionais e sub-regionais: “A nossa resposta face ao terrorismo e a acção que praticarmos para frustrar e prevenir esta ameaça deve estar baseada no respeito dos direitos fundamentais que os terroristas desejam reduzir a nada. O respeito pelos direitos do Homem e pelas liberdades fundamentais e o primado do direito são ferramentas indispensáveis à luta contra o terrorismo, e não privilégios que não se podem sacrificar em períodos de tensão”14. Mas as circunstâncias políticas e sociais não são as únicas a poder influenciar a definição da importância relativa dos diferentes direitos. Os factores culturais também entram em jogo, se bem que sejam mais difíceis de assinalar e se possam manifestar de diversas maneiras. Por outro lado, certas tendências não são hoje detectadas, senão pelo observador atento, mas podem, pouco a pouco, adquirir um impacto mais importante. Os pós-modernos têm um enorme interesse no que toca ao bem-estar do nosso planeta. A justiça, em todos os domínios, o desenvolvimento consistente, a gestão dos recursos naturais, a ecologia e a problemática da qualidade fazem parte das suas grandes preocupações. Têm consciência da fragilidade do nosso planeta e estão convencidos de que a gestão responsável deveria tomar o lugar da exploração dos recursos, e que a nossa abordagem à predominância económica deveria ser trocada por esforços mais globais. Paralelamente, o conceito do absoluto é estranho ao pensamento pós-moderno. Não existe “Verdade” absoluta, nem valores morais absolutos, nem direitos absolutos. A “Verdade”, os valores morais são direitos criados no interior de 53
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elas, foram julgadas pela maioria como antidemocráticas, ou contrárias à sua identidade histórica? Não se correrá o risco de que seja dada a prioridade aos sentimentos, valores e tradições da maioria, mesmo se isso impede a liberdade de uma minoria que deseja conservar certas opiniões e práticas religiosas “particulares”? Não será que a concepção pós-moderna da vida sugere que o bem-estar de uma comunidade ultrapassa o direito de cada indivíduo a expressar livremente a sua opinião, sobretudo se isto é assunto de controvérsia ou vá contra o que se chama o espírito nacional? A transição entre o modernismo e o pós-modernismo está hoje em curso no mundo ocidental. Por outro lado, outros factores (políticos e económicos) continuam a ter impacto. Todavia, parece que é preciso ter atenção a que se se aceita a ideia de uma certa hierarquia dos direitos do Homem, a liberdade religiosa adquire uma posição relativamente baixa nessa hierarquia. Aqueles que continuam a considerar a liberdade de consciência e de religião como um direito vital o qual não pode ser anulado, deverão permanecer vigilantes.
determinadas comunidades e não são válidas para o mundo inteiro. Esta forma de pensar veio influenciar cada vez mais a forma como o mundo ocidental pós-moderno tratará os direitos do homem. Parecerá que a liberdade de consciência e a liberdade de religião não se situam no topo da hierarquia dos direitos, os quais não se podem anular. De facto, teremos de fazer uma abordagem muito mais pragmática logo que outros valores, mencionados nos parágrafos precedentes, prevalecem sobre a protecção da religião, em particular nas suas formas institucionais tradicionais. A tendência para o pragmatismo poderá constituir a maior fonte de perturbação. Será que os direitos religiosos das minorias serão salvaguardados se uma comunidade receia que algumas pessoas com convicções “estranhas” venham a causar instabilidade, ou outros problemas, para a maioria? Isso revela a paranóia de pensar que certas Igrejas, ou outras instituições religiosas, poderiam ver reduzir a sua liberdade de dar a conhecer as suas opiniões, se algumas, dentre
* Presidente da Federação das Igrejas Adventistas dos Países-Baixos. Autor de numerosas obras de teologia ética e prática. 54
Preocupações em matéria de liberdade religiosa no mundo pós-moderno Notas 1. N.D.T. Habitualmente considera-se que o fim da Idade Média (tradicionalmente fixada em 1543, com a queda de Constantinopla) coincide com o início da Renascença. A Idade Moderna (do século XV ao século XVIII) que se segue à Idade Média, compreende o Século das Luzes. 2. Ver Steven Connor, ed., The Cambridge Companion to Postmodernism, The Cambridge University Press, Cambridge, 2004. 3. Numerosos excelentes livros fornecem uma boa visão de conjunto das raízes filosóficas do pós-modernismo. Um dentre eles, o de Glenn Ward, acessível e completo, tem como título Teach Yourself Postmodernism, Hodder Headline Ltd, Londres, 1997. 4. Para aqueles que procuram uma boa introdução ao domínio da epistemologia, recomendo a obra de Jonathan Dancy, Introduction to Contemporary Epistemology, Blackwell Publishing, Oxford, Inglaterra, 1985. 5. Paul Ricoeur é um maiores pensadores do século XX que se concentrou sobre o papel importante da hermenêutica. Ver Karl Simms, Paul Ricoeur, Routlege, Londres/Nova Iorque, 2003. 6. Para uma visão de conjunto recente, completa e muito acessível, ver Brude Kuklick, A History os Philosophy in América 1720-2000, Clerendon Press, Oxford, 2001. 7. A International Religious Liberty Association publica um relatório anual sobre o estatuto da prática da liberdade religiosa, como um dos direitos do Homem. 8. Ver Richard Wolin, The Seduction of Unreason: The Intellectual Romance with Fascism from Nietzsche to Postmodernism, University Press, Princeton, 2004, p. xii. 9. Ver: http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/cidhdudh.htm (texto integral) 10. Ver um artigo rico em ensinamentos de John D. Montgomery, “Is There a Hierarchy of Human Rights?” in Journal of Human Rights, Setembro 2002. 11. Ver: http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/ cidh-dudh-direitos-civis.html (texto integral) 12. B. B. Beach, Vatican II – Brinding the Abyss, Review and Herald Publishing Association, Washington DC, 1968; ver o capítulo “Religious Liberty and the Catholic Church”, p. 172-218. 13. John Graz, “Religious Freedom in the Third Millennium”, in Liberty Magazine, Setembro-Outubro de 2006. 14. Ver www.un.org/News/Press/docs/2003/SC7679.doc.htm
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Cultura, religião e identidade nacional na sociedade pós-moderna *
David Little **
Introdução
entre o pós‑modernismo e o fascismo, sobretudo no que concerne a Jacques Derrida e Michel Foucault, são, sem qualquer dúvida, controversas e sujeitas a prova. Contudo, Richard Wolin apresenta uma série de elementos indicando que personalidades eminentes como Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer estavam bem ligados e conclui que mesmo indivíduos como Jacques Derrida e Michel Foucault partilham, a tal ponto que é perturbador, o a priori profundamente anti-liberal que caracteriza o pensamento nazi. O livro de Richard Wolin criou um considerável mal-estar no seio do movimento pós-moderno. Em contrapartida, há um ponto para o qual a corrente pós-modernista tem, implicitamente, trazido a sua luminosa contribuição, um ponto que, salvaguardadas todas as pro por ções, tem uma relação construtiva com o tema. É o que diz respeito à maneira de examinar as três outras noções evocadas no título deste artigo: cultura, religião e identidade nacional3. O pós-modernismo, como já se disse anteriormente, desconfia, particularmente, das teorias unificadas e dos “esquemas narrativos”, assim como das ideias gerais. A sua primeira reacção será a de “decompô
Evocar o termo “pós‑moderno”, como fiz no título desta apresentação, levanta, forçosamente, questões. Uma vez que ser pós-moderno significa adoptar uma atitude céptica para com a coerência de todas as ideologias, teorias e conceitos gerais – isto é, passar o seu tempo a “problematizar” e “não exprimir o essencial” de nada, como se diz – o melhor que possamos fazer, aparentemente, é procurar compreender o que não é um “mundo pós-moderno”. Se queremos reconstruir, mas também desmontar, reanimar, mas também dissecar, não vemos muito bem onde é que o pós‑modernismo nos levará1. No entanto, existe um problema mais sério. Richard Wolin. Autor de The Seduction of Unreason: The Intellectual Romance with Fascism from Nietzsche to Postmodernism, choca com a seguinte constatação: “Nos meios universitários, o pósmodernismo alimenta-se das doutrinas de Friedrich Nietzsche, Martin Heidegger, Maurice Blanchot e Paul de Man – prefigurando, todos, um certo fascínio pelo fascismo onde todos sucumbiram2. A tese deste autor e as provas sobre os laços 56
Cultura, religião e identidade nacional na sociedade pós-moderna
‑las” em várias sub-partes que, segundo ele, se contradizem entre si. Segundo os pós-modernistas, o problema das teorias unificadas, das ideologias e das ideias gerais, é que elas escondem uma multidão de tensões e de contradições que se encontram camufladas quando são apresentadas como elementos bem unidos num todo harmonioso. Com efeito, segundo Nietzsche, toda a pretensa “ordem”, toda a “harmonia” ou “unidade” é, na realidade, o produto do poder e do domínio, e não o reflexo de uma coerência intrínseca racional ou moral. Como ele declarou, resumindo assim o pensamento pós-moderno – se é que isso é possível! – a língua dominante de cada nação não passa de um dialecto defendido por um exército. O pós-modernismo apresenta, portanto, duas importantes formas de pensar em matéria de cultura e de religião, explicando, especialmente, como é que estas noções interagem num contexto nacional. Segundo os pós-modernistas, devemos, em primeiro lugar, considerar cada um dos conceitos não como qualquer coisa ordenada, unitária e estável, mas muito mais como um aglomerado de perspectivas e de atitudes divergentes e muitas vezes em conflito, continuamente contestadas e postas em causa. Como alguém sublinhou, a cultura não é uma coisa, mas um processo. Este último não é fixado e decidido de uma vez por todas. Está sempre em movimento. Isso é igualmente verdadeiro para a religião e o seu impacto na formação da cultura e da identidade nacional. Por outro lado, devemos notar do papel do poder e do domínio na “cultura dominante” de cada nação, incluindo no papel da religião.
Contudo, como mostrarei mais adiante, os pós-modernistas exageram a importância da influência que os governos e os seus partidários exercem sobre o processo que favorece e impõe um sistema de cultura nacional e de valores religiosos ao ponto de suprimir ou limitar os outros. Não há dúvida que todas as nações têm recorrido, mais ou menos, aos governos e aos seus partidários para apoiarem perante as outras um conjunto de convicções culturais e religiosas. Dessa forma, muito frequentemente, decidem através de métodos arbitrários e injuriosos, o que faz, ou não faz parte da cultura – e da religião – oficial em determinado momento e lugar, numa sociedade particular. Mas, seja qual for a pertinência do seu raciocínio, os pós‑modernistas têm a tendência para se descartarem da análise generalizando ao máximo. Não chegam, sequer, a admitir que há mais ou menos boas formas de estudar as tendências dos governos e dos seus partidários para determinar o que é aceitável e o que o não é. Por exemplo, os pós‑modernistas são inclinados, como sublinhei anteriormente, a duvidar que o “discurso liberal” incluindo o dos direitos do Homem, possa constituir um meio eficaz de limitar o poder arbitrário de um governo. Segundo Wolin, a filosofia pós‑moderna qualifica a linguagem dos direitos do Homem de “discurso de pseudo emancipação” que camufla invariavelmente formas inquietantes de poder e domínio4. Penso acima de tudo, que estes são justamente dois argumentos (bem fundados) dos pós-modernistas sobre a forma como a cultura e a religião e a identidade nacional são modeladas – 1. um pluralismo irredutível e uma controvérsia permanente; 2. uma tendência para ser dominada pelos 57
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jogo, particular mente para aquilo que é a “liberdade religiosa” que se poderia acima de tudo chamar “os direitos de convicção”5. Uma vez que o que diferencia a minha tese do pós-modernismo corrente e o conceito de que o sistema dos direitos do Homem pode fazer face às Marcha de protesto dos imigrantes mexicanos no 1º de Maio de 2006 realidades da culem Denves, Estados Unidos. Foto Echando/Raices/Taking Root, 2002 tura, da religião e American Friends Service Committee (www.afsc.org). da identidade nacional para a defender, dedicar-me-ei a degovernos e os seus apoiantes – que monstrar que estes são, sobretupõem em evidência a necessidade de do, os mecanismos dos direitos do um sistema de protecção dos direitos Homem que protegem “a religião do Homem, em particular, a liber- ou as convicções”, incluindo os que dade “de consciência, de religião e põem em causa e procuram fazer de convicção”, como indicado nos evoluir os conceitos dominantes, documentos relativos aos direitos do em matéria de cultura, de reliHomem. gião e de identidade nacional, que Em resumo, a minha posição é têm uma importância primordial. a seguinte: Se a religião, a cultura Concluirei que estas protecções que e a identidade nacional também colocam constrangimentos e limites modeláveis, variáveis e contestadas exteriores a todas as culturas naciocomo dizem os pós-modernistas, e se nais, não podem ser desacreditadas também, as convicções em matéria ou suprimidas, como parece ser o de culto, de religião e de identidade pensamento dos pós-modernistas. nacionais também são tributárias do domínio arbitrário como eles suge- Uma defesa dos direitos rem, então é crucial encontrar uma de convicção protecção contra a discriminação e Todas as nações que aderiram a repressão que podem exercer sobre aos instrumentos internacionais dos opiniões muito diversas e muitas direitos do Homem, como o Pacto vezes contraditórias, sobre esses Internacional Relativo aos Direitos assuntos, em todos os países, seja Civis e Políticos, por exemplo, e que, nos Estados Unidos, em França, na por conseguinte, estão obrigados a Turquia, no Japão ou em qualquer promover os direitos do Homem atraoutro lugar. E é precisamente aí que vés do mundo, têm três razões imperioos direitos do Homem entram em sas para se sentirem abrangidas pelas 58
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violações dos direitos de convic-ção, totalmente ligados aos exces-sos daquilo a que chamamos o “nacionalismo pato-lógico”. Desde já, todo o edifício das nor-mas dos direitos do Homem repousa sobre a neces-sidade de proteger os indivíduos contra o domínio colectivo e os even- O Mayflower II. A intolerância religiosa da Igreja do Estado inglês da época -tuais excessos e obrigou os Pais Peregrinos - dos quais a maior parte de entre eles estava abusos de autori- refugiada na Holanda - embarcou a bordo do Mayflower, em 1620, para emi-dade arbitrárias grar para as colónias inglesas da América do Norte. Foto Hans Martin decorrentes. Esta é a lição fundamental que o mundo inteiro, depois uma ameaça directa, completa e sisda Segunda Guerra Mundial, tirou temática para as quatro categorias das bases da ideologia fascista, que se do direito de convicção que depois enraizava na submissão absoluta do foram garantidas nos documentos e indivíduo à vontade da nação. Como que foram explicitamente formuladisse Hitler, “O nacional-socialismo dos após os rigores fascistas10. tem, como ponto de partida, […] não 1. O direito ao livre exercício em o indivíduo nem a humanidade [… matéria de pensamento, de conscimas] o povo (das Volk) […e] dese- ência, de religião ou de convicção, ja salvaguardá-lo, mesmo às custas o que corresponde ao direito à liberdo indivíduo7.” A repulsa que este dade. Este direito inclui uma garantia género de opinião inspira, desen- visando que ninguém fosse submeticadeou a revolução dos direitos do do “a coacção que possa atentar Homem e contribuiu para aquilo a contra a sua liberdade de ter ou de que Mary Glendon chamou “A World adoptar uma religião ou uma convicMade New” (Um Mundo Novo) de ção da sua escolha11” e “não permita acordo com o título da obra que ela nenhuma restrição da liberdade de consagrou à redacção da Declaração pensamento e de consciência, nem da Universal dos Direitos do Homem8. liberdade de ter ou adoptar uma reliA anulação do direito de ter a gião ou uma convicção de sua escosua própria opinião em matéria “de lha12”. É também garantida “a liberconsciência, de religião e de con- dade de manifestar a sua religião ou -vicção9” constitui uma característica a sua convicção, individualmente ou evidente do domínio nacionalista. O em comum, tanto em público, como fascismo, em particular, constituiu em privado, através do culto e o 59
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cumprimento dos ritos, das práticas e do ensino13”. “O cumprimento dos ritos e práticas da religião ou convicção podem incluir não apenas actos cerimoniais, mas também costumes como o respeito das regras die-téticas, o uso de vestuário distintivo, o facto de cobrir a cabeça, etc.14” As únicas restrições possíveis, são as que os governos podem impor sobre a “liberdade de manifestar a sua religião ou as suas convicções” (por oposição a ter ou a escolher uma religião ou uma convicção), com o fim de proteger “a segurança, a ordem e a saúde públicas, a moral ou as liberdades e direitos fundamentais de outrem15”. Paralelamente, é ao governo que incumbe, com toda a evidência, trazer esclarecimentos neste domínio. Deve provar que qualquer restrição ao direito de manifestar as suas convicções é, simultaneamente “necessária” e “proporcional”; o que significa que a restrição deve ser estabelecida e gerada de forma a ser a mais limitada possível, tendo como objectivo salvaguardar, de maneira urgente, um interesse de Estado16. Convém notar que as restrições à liberdade de religião ou de convicção não são permitidas por motivos imprecisos, tais como, a segurança nacional17. Uma vez que os fascistas mutilaram pouco a pouco todos os direitos apelando para a segurança nacional, esta exclusão tem a sua importância. 2. O direito de não ser objecto de discriminação baseada na religião ou na convicção, isto é, o direito à igualdade. Segundo este princípio, “entende-se pelos termos ‘intolerância e discriminação baseadas na religião ou na convicção’18 toda a distinção, exclusão, restrição ou preferência baseadas na religião ou
a convicção e tendo como objecto ou como efeito suprimir ou limitar o reconhecimento, o gozo ou o exercício dos direitos do Homem e das liberdade fundamentais sobre a base da igualdade19.” Isso significa que mesmo que o princípio da religião do Estado, ou religião oficial não seja interdito, a sua existência não pode dar origem a discriminações contra os aderentes de outras religiões ou de não crentes. Por exemplo, “todas as medidas que limitem a ilegibilidade para fazer parte dos serviços do governo, aplicadas aos membros da religião dominante ou que lhes dariam privilégios económicos ou imporiam restrições especiais à prática de outros cultos20” são interditas. 3. O direito à protecção das minorias, sejam elas “étnicas, religiosas ou linguísticas21”. A interpretação – que tem autoridade – deste direito feita pelo Comité dos Direitos do Homem constitui um passo na boa direcção tendo em vista satisfazer a fragilidade desta disposição por ocasião da redacção da Declaração Universal dos Direitos do Homem22, principalmente feita pelos representantes dos Estados Unidos, do Canadá e da Austrália. Com efeito, estes Estados desejavam reduzir o entendimento da autonomia cultural das minorias de forma a favorecer uma política de assimilação. As recentes declarações do Comité, sugerindo que para “corrigir condições que limitem ou impeçam os direitos das minorias, medidas positivas tomadas pelos Estados […] poderiam ser necessárias a fim de proteger a identidade de uma minoria e os direitos dos membros para aproveitarem da sua cultura e da sua língua e, dessa forma, desenvolverem, assim como, praticarem a sua religião […]23”, 60
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à autodetermina-ção26”. Por outro lado, é particularmente difícil, por razões jurídicas, definir o “ódio religioso” e a “hostilidade”, mencionados no artigo citado. Sabe-se que o ódio e a hostilidade, que dependem, antes de mais, da atitude e da emoção, são particularmente difíceis A Plymouth Plantation, no estado de Massachussets. Foi aí que os Pais de contro-lar e, Peregrinos se estabeleceram depois de terem pisado solo americano. por isso, entram Mais de metade deles que tinha viajado no Mayflower foram levados pelas em conflito com a doenças, durante a travessia. Foto Hans Marti. liberdade de opinião e de expreslembrando formulações mais deter- são, o que já se revelou exacto no minadas do direito à protecção das decurso dos debates que têm tido minorias que foram rejeitadas no lugar, por ocasião da redacção deste momento da redacção24. parágrafo27. É de prever que este 4. O direito a ser protegido contra direito, se bem que indispensável, todo o “apelo ao ódio […] religio- continuará a gerar consideráveis conso que constitui um incitamento à trovérsias sobre estes aspectos. discriminação, à hostilidade ou à A negação total dos direitos ao violência25”. Este direito ultrapassa livre exercício, à não-discriminanumerosas questões. Tendo em vista ção, ao respeito pelas minorias e a experiência fascista parece sensato à protecção contra os abusos por “interditar legalmente” os actos que motivos religiosos ou por outras tenham como objectivo, ou eventual- formas de ódio, como era praticamente como efeito, despoletar a dis- do pelos governos fascistas ilustra criminação, a hostilidade e a violência perfeitamente os dois aspectos da para com outros indivíduos e grupos. análise pós-moderna da cultura e Não nos faltam exemplos significa- da religião. Um sistema nacional tivos de comportamentos inadmis- repressivo impõe, arbitrariamente a síveis datando do período nazi. Por partir de cima, e acaba por dominar outro lado, provocar a discriminação uma sociedade ou desvia-se de divercomo é definida acima, constitui sas culturas e religiões. Para mim, a indubitavelmente uma violação dos solução lógica e prática encontra-se direitos do Homem, tal como o inci- nas recomendações dos direitos do tamento à violência – salvo enquanto Homem – a saber, aplicar e promoexpressão do “di-reito soberano à ver a liberdade de convicção, assim autodefesa ou odireito dos povos como as outras prescrições. Estes 61
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vários elementos dão a entender que eles se propagam até certo ponto e com consequências muito positivas30. A terceira razão que nos preocupa, pela violação da liberdade de convicção e a necessidade de a proteger, está no crescimento do terrorismo e a sua ligação com o “nacionalismo patológico”, descrito por Robert Pape no seu recente estudo Dying to Win: The Strategic Logic of Suicide Terrorism31. Segundo a tese principal deste autor, “a raiz do terrorismo por atentados suicidas é o nacionalismo – a crença entre os membros de uma comunidade de que eles partilham um conjunto de características étnicas, linguísticas e históricas e que têm o direito de governar a sua pátria sem a interferência de estrangeiros32”. Para ele, se bem que a religião não seja a primeira causa do terrorismo através de atentados suicidas, contribui, de maneira crítica para a consolidação de uma identidade de grupo e intensifica as divisões entre os membros do grupo e os que estão no exterior deste, particularmente se se trata de ocupantes como os Israelitas na Palestina e os Americanos no Iraque ou em qualquer outro lado do mundo árabe. Por causa do “mecanismo de exclusividade” e da tendência para “diabolizar o inimigo” particularmente associados à religião, acontece que “sob a ocupação estrangeira” […] diferentes religiões inflamam “os sentimentos nacionalistas de modo que o mártir e os atentados suicidas recebem um apoio massivo33”, e que esses sentimentos encorajam “a vontade de morrer e de matar inocentes34”. É evidente que os métodos terroristas, incluindo os atentados suicidas, violam, sistematicamente
direitos têm como objectivo proteger o pluralismo como algo de pessoal, frustrando, ou limitando o domínio nacional arbitrário. Esta solução aplica-se também à segunda razão que faz com que nos sintamos preocupados com a violação da liberdade de convicção: o “nacionalismo patológico”, associado ao fascismo, não desapareceu depois da Segunda Guerra Mundial. Pelo contrário, transformou-se em diversas formas de autoritarismo e de ultra-nacionalismo, que apareceram à luz do dia após o desmembramento da União Soviética, e que representam as novas versões da mesma ameaça que o fascismo constituiu. É aquilo que se chamará o “nacionalismo etno-religioso”, e que nos preocupa particularmente na hora actual e apresenta-se da seguinte forma: um grupo, uma entidade religiosa e étnica específica, tenta ganhar o poder político e jurídico sobre os habitantes de determinado território, e impor e conservar o seu domínio cultural e religioso em detrimento das minorias presentes nesse território. Como ilustram a Bósnia, o Kosovo, o Sudão, o Sri Lanka, a Irlanda do Norte, a Índia. Israel/Palestina e muitas outras tentativas semelhantes geram, segundo os casos, intolerância, discriminação, perseguição, expulsão ou mesmo extermínio, em particular das minorias, muitas vezes pelos governos nacionais. Como dissemos, um sistema nacional repressivo imposto arbitrariamente a partir de cima acabam por dominar – sob regras diversas – sociedades ou marginalizam-se diversas culturas e religiões. De novo, o único antídoto razoável, parece ser encorajar a propagação da liberdade de convicção e dos outros direitos do Homem29. Felizmente, 62
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conflito, continuamente contestada e posta em causa”, e que os governos e os seus partidários não tentem impor uma ordem arbitrária, que a necessidade de uma liberdade de convicção é tão imperiosa em todo o mundo. Por fim, todo o meu sistema de defesa da liberdade de convicção repousa na seguinte certeza: face aos acontecimentos a partir de meados do século XX, parece moralmente inevitável que todo o ser humano considere aquilo a que o Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem chama “actos de barbárie que revoltam a consciência da humanidade” com a mesma “revolta partilhada” que uniu os redactores da Declaração Universal e animou a sua obra. É isso que explica a razão pela qual a Declaração foi tão encorajada por todos. Empregando a frase “revoltam a consciência da humanidade”, os redactores alargaram os seus próprios sentimentos ao resto da humanidade. Apanhando Hitler em contra-pé, acreditam que todo o ser humano, moralmente são, se teria revoltado se tivesse estado em circunstâncias similares36. Por outro lado, parece também moralmente inevitável envolver-se em adoptar e manter as normas de restrição fundamentais criadas pelos redactores, para impedir que actos de barbárie se voltem a produzir, e, de acordo com a Declaração, para fazer respeitar, por todos, estas normas, incluindo as pessoas religiosas. É esta crença de que existe um fundamento moral comum irredutível para a liberdade de convicção – e os outros direitos do Homem – que distingue a posição defendida aqui, da da corrente pós-modernista. Mesmo se um grande número de pós-modernistas esclarece a nossa compreensão da religião e da cultura nacionais, o
as normas dos direitos do Homem. Na medida em que o terrorismo está ligado à libertação nacional, este seria para pôr de pé uma organização política em que a vida religiosa e cultural seria objecto de domínio mais arbitrário possível. Por exemplo, ao encorajar a expulsão de tropas estrangeiras dos Estados árabes, como o Kuwait, a Arábia Saudita e o Iraque, e a criação, nesses Estados e noutros, daquilo que ele considera como um governo nacional islâmico autêntico, Oussama Bin Laden deu a entender os seus objectivos e ideias específicos, mantendo e filiando‑se na Frente Nacional Islâmica do Sudão e apoiando o governo taliban no Afeganistão. Estes dois regimes contam-se, efectivamente, na sua história recente, entre os que mais violam os direitos do Homem, incluindo as quatro categorias das liberdades de convicção35. Ao citar estes três exemplos particulares de “nacionalismo patológico”, procuramos mostrar, ao mesmo tempo, as lamentáveis consequências da negação sistemática da liberdade de convicção – e de outros direitos do Homem – e a inspirar e/ou a reforçar um envolvimento com estes direitos. Deveríamos sublinhar que a tendência para reprimir a diversidade religiosa e cultural através do domínio arbitrário, não se limita em caso algum, aos três exemplos citados. Com efeito, todas as nações modernas estão, em graus diversos, expostas a conflitos entre maiorias e minorias por causa de questões de identidade religiosa ou cultural. É por não existir nenhum lugar no mundo onde a identidade cultural e religiosa seja “algo de ordenado, unitário e de estável”, e não é constituída “por um aglomerado de perspectivas e de atitudes divergentes e por vezes em 63
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chama “a identida-de nacional anglo-protestante” é um modelo cultural unificado e relativamente estável no decurso da história americana. Segundo ele, trata-se de uma combinação original de influências britânicas dominantes (sobretu do a língua e as instituições político-legais) e a Assinatura da Declaração da Independência pelos membros do Congresso, religião (uma fora 4 de Julho de 1776, permitindo a treze colónias americanas, separar-se da ma especificamencoroa britânica. Esta Declaração garantia aos cidadãos direitos fundamentais, te americana de tais como o direito à vida, o direito à liberdade e o direito de aspirar à felicidade. cristianismo proA Constituição dos Estados Unidos foi assinada em Filadélfia, na Pensilvânia, testante). a 17 de Setembro de 1787, mas não foi senão em 1791, nos Bills of Rights Huntington in(complemento de dez artigos que não figuravam na Constituição) que foi siste na ideia de garantido, especialmente, o direito à liberdade religiosa. Foto Sigrid Büsch. que para a América a religião é seu cepticismo doutrinário leva-os, um valor fundamental. E classifica no fim de contas, segundo penso, à o século XX, como o “século da sua perda. Deixa-os sem fundamento religião” e declara que nos Estados que lhes permita alcançar os meios Unidos, “o cristianismo evangélico indispensáveis para proteger o plu- tornou-se numa força importante e ralismo cultural e religioso e opor-se que os Americanos poderiam, muito ao domínio arbitrário num contexto bem, estar a ponto de regressar à nacional. imagem do que eles representavam há três séculos: a de um povo cris38 A Cultura, a religião e a identidade tão ”. Ele nota que um bom número de Americanos consideram os ateus nacional americana de forma desfavorável e “parece, de Iremos agora aplicar brevemen- acordo com os fundadores, poder te, aquilo que desenvolvemos até dizer que o governo da sua república agora, a um caso particular: as recen- necessita de um fundamento religiotes controvérsias sobre a identidade so[…]39”, e afirma, pessoalmente, nacional americana. Estas dissensões que a “religião civil” – como ele lhe referem-se a um recente livro de chama – deste país “não é compatíSamuel P. Huntington, Who are We? vel […] com o facto de ser ateu40”. Challenges to America’s National Segundo ele, mesmo se aquilo que Identity37, que tem sido muito debati- se designa como “o credo americado. O autor defende que aquilo a que no” – um conjunto de ideais civis 64
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e políticos asseguram as liberdades de imprensa, de reunião, de expressão, de religião, etc. à igualdade para todos os cidadãos – tem a sua importância, é, antes de tudo “a única criação de uma cultura protestante dissidente”. Em resumo: nada de protestantismo, nada de credo41. Para Huntington, dois elementos colocam hoje em perigo a identidade anglo-protestante, quaisquer que tenham sido historicamente, a sua unidade e a sua coerência42. À partida, a importante, e crescente presença de Latinos, em particular de Mexicanos. Estes últimos apresentam um conjunto de características que se opõem à identidade nacional americana de forma única na história da imigração americana. De forma diferente das outras imigrações, há poucas probabilidades de que os Mexicanos se adaptem à cultura americana. Há várias razões para isso: o número extremamente importante, o facto de que eles estão próximos da sua pátria, a sua tendência para se isolarem, uma vez nos Estados Unidos, e a sua atitude frequentemente “desdenhosa” para com a cultura americana. Teriam muito mais a tendência para tentar abalar a identidade americana43. O segundo desafio é representado por uma séria de “almas mortas” como lhes chama Huntington, que formam as “elites desnacionalizadas”. Esses Americanos fazem parte de uma “super-classe emergente” que rompeu com o vasto “público patriótico” por causa de um conjunto “de ideias transnacionais” partilhadas pelos seus membros, segundo os quais o nacionalismo é considerado como “mau, a identidade nacional suspeita e o patriotismo ultrapassado44”. Huntington evoca e aprova a seguinte descrição dos universitários
e intelectuais, dirigentes políticos – sobretudo sob a administração Clinton – personalidades do mundo dos negócios, funcionários de organizações internacionais não governamentais, etc., que, segundo ele, pertencem a este grupo. Os cosmocratas estão cada vez mais à parte da sociedade. Estudam cada vez mais em universidades estrangeiras, partem para trabalhar algum tempo no estrangeiro e trabalham para organizações que têm uma dimensão global. Constituem um mundo, no mundo, ligados uns aos outros por uma miríade de redes locais, mas isolados dos membros das suas próprias sociedades cujas visões são mais estreitas… Terão mais possibilidade de comunicar com os seus pares pelo mundo – pelo telefone e e-mail – do que falar com os seus vizinhos de projectos próximos deles45. Existem três categorias de Americanos desenraizados. Os “universalistas” crêem no “triunfo da América como a única superpotência global”, cujos valores e a cultura são largamente adoptados pelas outras sociedades e, dessa forma, fazem dela a “nação universal46”. Os adeptos da “abordagem económica” concentram-se na mundialização económica como força transcendente que quebra as fronteiras nacionais e mistura as economias nacionais de modo a formar uma só economia global, que, assim, erodirá rapidamente a autoridade e a função dos governos nacionais47. Por fim, os adeptos da “abordagem moralista, que desacredita o patriotismo e o nacionalismo como forças do mal, e argumentam que o Direito, as instituições, os regimes e as normas, ao nível internacional, são moralmente superiores às suas equivalentes nacionais48”. 65
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Duas questões merecem ser salientadas a propósito destes pretensos desafios à identidade nacional americana. Uma diz respeito às consideradas ameaças representadas pelos imigrantes mexicanos e os membros das elites desnacionalizadas. Um certo número de críticos têm atacado a descrição que Huntington faz dos imigrantes mexicanos, apresentando provas de que estes últimos têm uma atitude mais favorável para com a cultura americana, e que estão, desde logo, prontos a aprender o inglês e a participar na sociedade, do que este autor admite49. A mesma objecção foi apresentada em relação à sua descrição das opiniões das elites desnacionalizadas. Segundo um dos seus detractores, “a erosão da identidade nacional causada pelos multiculturalistas e as elites culturais constituem um assunto de preocupação há cinco ou dez anos”, mas “esta convicção perdeu sentido após os ataques do 11 de Setembro”. Este acontecimento despoletou simultaneamente um forte sentimento de patriotismo e de unidade nacional, assim como uma convicção partilhada de que “o pluralismo cultural que nos tinha parecido ameaçador no passado, tornou-se, de hoje em diante, um atributo que não tinha nada de evidente da identidade nacional50”. Mas suponhamos que as descrições de Huntington sejam – mesmo parcialmente – findadas e que pelo menos alguns Mexicanos‑Americanos e algumas elites desnacionalizadas possam gerar o tipo de problema que ele descreveu. A segunda questão permanece: o que deveremos fazer? Como devemos proceder exactamente a fim de decidir se devemos acolher ou resistir ao desafio – se é que realmente o é – representado pelos Mexicanos-Americanos e as
elites desnacionalizadas, ou por alguém? A forma como o próprio Huntington aborda esta segunda questão é pouco clara. Por um lado, parece agir como um especialista em ciências humanas independente e desinteressado que se limita a listar as diversas opções de que os Americanos dispõem sobre a sua identidade. Estas opções são descritas no seu último capítulo, naquele em que ele nomeia as alternativas “cosmopolita”, “imperialista” e “nacional”. Pode ver-se como de simples generalizações descritivas, baseadas em factos históricos e sociológicos, que representam as escolhas maiores às quais os Americanos fazem face hoje, em termos de identidade51. De igual forma. O facto de Huntington consagrar a maior parte do seu livro à alternativa nacional e às suas características anglo-protestantes poderia simplesmente ser considerado como um argumento empírico sem mais nada. Por outro lado, Who Are We? parece não relevar, simplesmente, de um puro exercício descritivo. É impossível não chegar à conclusão de que o próprio Huntington passa em revista as diferentes opções e julga, mais favoravelmente, a alternativa nacional. Com efeito, escreveu: “A alternativa ao cosmopolitismo e ao imperialismo é um nacionalismo consagrado à manutenção e ao reforço destas características que definem os Estados Unidos desde a sua fundação52.” “A América cultural está em estado de sítio.” O povo americano poderia “retardar o seu próprio fim e impedir a sua desintegração revivendo o seu sentido de identidade nacional, o seu objectivo nacional e os valores culturais comuns53”. 66
Cultura, religião e identidade nacional na sociedade pós-moderna
o de uma acção intentada na justiça, em 2002, por Michael Newdow, um ateu declarado, visando retirar as palavras under God (sob a protecção de Deus) do juramento de fidelidade. Um primeiro tribunal da Califórnia deu-lhe razão, depois esse julgamento foi anulado por um tribunal superior baseado no facto de Michael Ground Zero, Nova Iorque: Em memória da catástrofe mais horrível e mais indefensável que tocou a nação americana, a 11 de Setembro de 2001. Newdow não ter Foto churchphoto/Rolph J. Poehler o estatuto legal adequado. O se-gundo caso diz Os elementos que suportam a respeito a um certo Brian Cronin que, tese favorita de Huntington – infe- em 1999, procurou fazer com que lizmente sem nunca o desenvolver fosse retirada de um terreno municinem apoiar – são, parece, de duas pal uma cruz com 18 metros de altura naturezas: maioritário e funcional. levantada em Boise, no Idaho, há 43 O argumento maioritário retoma a anos. ideia de que aquilo que aos olhos da Relativamente ao primeiro caso, “maior parte das pessoas”, segundo em que Newdow pretendia que as os factos sociológicos históricos e palavras under God do juramento de contemporâneos, constitui a identida- fidelidade lhe davam o sentimento de de nacional de um país, o é realmen- ser “um outsider” ponto sobre o qual te; em resumo, a maioria decide. o primeiro tribunal estava de acordo Segundo o argumento funcional, se – Huntington escreveu o seguinte a identidade nacional – determinada comentário: pela “maioria” – não é preservada e “Michael Newdow e o tribunal valorizada, a nação desintegra-se. têm razão: os ateus são outsiders Huntington toma estes argumen- na comunidade americana. Como tos a sério. Tira estas lições de dois não crentes não devem prestar o recentes casos legais que ilustram a juramento nem participar de uma profundidade do seu envolvimento cerimónia que tenha carácter relicom a lei da maioria, tanto como o seu gioso. Eles também não têm o direito grau de apreensão face às tendências de impor o seu ateísmo a todos os que ameaçam as convicções maiori- Americanos cujas convicções, na tárias54. O primeiro desses casos foi hora actual e no passado, definiram 67
Cultura, religião e identidade nacional na sociedade pós-moderna
No caso Cronin, o próprio Huntington parece inquietar-se, indirectamente com a discriminação. Ele indica, de passagem, que nessa ocasião ocorreram outros casos semelhantes noutras cidades: as pessoas que desejam a presença de uma cruz num terreno público “têm tentado conservá-la transferindo a propriedade do terreno para grupos privados, reconhecendo, portanto, implicitamente, que a exposição flagrante, pelo governo, do símbolo de uma única religião não estava isenta de problemas57.” Poderia então deduzir-se que Huntington é sensível ao facto de que o “governo secular”, ao qual ele faz referência, deve tratar todas as religiões de igual maneira, mais do que favorecer injustamente a maioria. Perante estas faltas de sensibilidade de Huntington, é ainda mais perturbador ver como ele destrói com um gesto determinado, as inquietações de Cronin e Newdow que se sentem como “outsiders” ou “estrangeiros”. Deveremos considerar como derivando da sua própria natureza que pelo facto de eles serem membros de uma “religião ou convicção” minoritária não têm o estatuto cultural ou religioso, permitindo pôr em questão aquilo que eles consideram como o domínio arbitrário da maioria, seja qual for a decisão dos tribunais? Não se deve então, com razão, temer que aceitar julgar este tipo de assuntos seguindo o princípio da maioria soberana volta a exercer uma real discriminação política e jurídica? Será realmente necessário que tais defensores das posições minoritárias saibam que, não sendo membros da “maioria anglo-saxónica” não são cidadãos americanos por inteiro e que, portanto, devem aceitar para sempre o seu estatuto de “outsiders” e de “estrangeiros”?
os Estados Unidos como uma nação religiosa. “Os Estados Unidos são uma nação cristã? Sim, de acordo com as estatísticas: 80 a 85% dos Americanos declaram-se regularmente cristãos55”. A propósito do caso Brian Cronin e a sua tentativa de fazer retirar a cruz de 18 metros de altura de um terreno municipal em Boise, Idaho, Huntington permanece nas suas posições. Em resposta à afirmação de Cronin onde este último pretendia que a cruz dava a entender aos budistas, aos judeus, aos muçulmanos e a outros não cristãos, que eram estrangeiros num país estrangeiro, Huntington escreveu: “Como Michael Newdow, Brian Cronin viu de forma correcta. Os Estados Unidos são uma nação de predominância cristã provida de um governo secular. É legítimo que os não cristãos se considerem como estrangeiros porque eles – ou os seus antepassados – se instalaram num ‘país estrangeiro’ fundado e povoado por cristãos, tal como os cristãos se tornam estrangeiros quando se mudam para Israel, para a Índia, para a Tailândia ou para Marrocos56.” As respostas de Huntington a estes casos, mostra bem que a sua posição contém vários erros. No caso Newdow, por exemplo, é incorrecto dizer que o facto de retirar do juramento as palavras under God equivale a impor o seu ateísmo. Isso seria verdade se elas fossem substituídas por outras palavras na frase actual, por exemplo “not under God” (pois que Deus não existe). Simplesmente suprimir a referência a Deus, ou deixa aberto o envolvimento ou o não envolvimento religioso.
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irredutível e continuamente sujeitos a controvérsia; 2. têm a tendência de ser dominados arbitrariamente – como é evidente, pela maioria –; 3. eles necessitam, urgentemente – perante os dois pontos precedentes – de um sistema de normas cujo melhor modelo seria os direitos do Homem, e mais particularmente a liberdade de convicção, que assegura um máximo de abertura e de justiça, logo que se trata de debater e de contestar o carácter cultural e religioso da identidade nacional.
Por outro lado, deve esperar-se que eles se submetam, se forem informados de que as alterações que desejavam se arriscam a levar “ao fim” e “à desintegração” de certos aspectos da identidade nacional dominante? Não se deveria, muito mais, esperar que eles adiram a uma perspectiva de uma ruptura e de uma transformação dos modelos religiosos e culturais dominantes, como tantas outras minorias têm feito no decurso da História neste país, ou noutros? Não é esse – não sem razão – o objectivo dos seus protestos? Desde que eles se conservem nos limites do debate livre e justo, não têm eles o direito de continuar a bater-se como membros da comunidade nacional em regra e iguais aos outros? Por outro lado, Huntington pretende que os membros das minorias em Israel, na Índia, na Tailândia ou em Marrocos deixem de ter razões para se preocuparem por serem qualificados de “outsiders” ou de “estrangeiros” como não têm os não cristãos nos Estados Unidos. Este ponto não joga a seu favor. Com efeito, em cada um destes países, tal como nos Estados Unidos, o estatuto jurídico e cultural das minorias religiosas e outras constitui um problema espinhoso e persistente. Resta-nos esperar que este problema seja debatido e discutido de maneira aberta e justa, em vez de pôr rapidamente fim ao debate em nome do domínio pela maioria, com o pretexto que uma mudança conduziria a um fim iminente. Em resumo, os argumentos principais de Huntington não colhem, porque não têm em conta os três pontos fundamentais sobre a cultura, a religião e a identidade nacional, que vamos agora demonstrar: 1. estes temas estão sujeitos a um pluralismo
Conclusão Se bem que não tenha tido o tempo de reflectir sobre isto ou de o formular de forma conveniente, proponho a seguir um esboço de uma visão alternativa da identidade nacional americana como resumo do esquema de pensamento apresentado neste ensaio. Admito, bem entendido, que isto constitui apenas uma proposta entre outras e que deve ser apresentada e argumentada de acordo com as normas nacionais e internacionais de debate livre e justo, essenciais, segundo penso, para a identidade nacional americana. Os Americanos formam um povo que discute e contesta de forma livre e justa a questão da sua identidade cultural e religiosa e estão de acordo em aceitar respostas provisórias conformes com um conjunto de princípios garantidos pela Constituição – aquilo a que se chama o “credo americano”. Estes princípios (assim como as instituições e costumes que os incarnam) têm sido fixados com cuidado e precisão, ao longo da História – o que é, sem qualquer dúvida de uma importância capital para a identidade nacional americana. Contudo, por causa dos compromissos internacio69
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nais assumidos pelos Estados Unidos (para com a carta das Nações Unidas e para com os direitos do Homem e outros acordos) e à luz das normas dos direitos do Homem, em geral e especialmente religiosos, têm de ser modificados.
* Discurso pronunciado por ocasião de uma conferência do Comité de especialistas da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa em Siguenza, em Espanha, de 12 a 16 de Novembro de 2005. ** Professor em Harvard Divinity School, nos Estados Unidos. 1. Não nos esqueçamos que os textos pós-modernos têm a reputação de serem irrepreensíveis, como está resumido nesta adivinha satírica: O que é que se passa se um membro da Máfia, de conivência com o pós-modernismo se vos dirige? Resposta: oferece-vos algo, que não podem compreender. 2. University Press, Princeton, 2004, p. xii. 3. Seguindo sempre os pós-modernistas, pelo menos até certo ponto, estes tentam ligar‑se ao laço entre “cultura”, “religião” e “identidade nacional”. Como disse Wolin, a corrente pósmodernista é profundamente influenciada pelo pensamento de F.G.Herder que sublinhou a importância de contexto nacional da vida cultural e religiosa (o papel crítico da das Volk), ideia varrida pelo cosmopolitismo da Luzes (idem p. 113-118). Não é necessário estar completamente de acordo com esta interpretação (eu não estou) para aceitar como uma evidência hoje, que a ideia do contexto de nação serve de ponto de partida para a análise da cultura e da religião. Paralelamente, "cultura" significa aqui "o conjunto de concepções e de ideais partilhados, escolhidos para descrever uma dada nação e o que ele deveria ser". (Não temos necessidade de fornecer uma definição da palavra "religião" uma vez que, segundo a prática dos direitos do Homem, deveríamos interessar-nos por todas as crenças conscientes, sejam elas religiosas ou não, e na sua contribuição para a formação da cultura nacional. (Ver nota nº 5) 4. Idem, p. 22. Ver Talal Assad, Formations of the Secular; Christianity, Islam and Modernity. University Press, Stanford, 2003, sobretudo o capítulo 4, para mais detalhes sobre esta atitude céptica dos pós-modernistas para com a linguagem dos direitos do Homem. Assad conclui que os direitos internacionais do Homem não passam de instrumentos usados como estratagema ao serviço do sistema de Estados-nações. São, segundo ele, "marcadores flutuantes que podem ligar-se, ou desligar-se de diversos assuntos e classes constituídos segundo o princípio do mercado e pelos Estados-nação mais poderosos" (p. 158). Estabeleci 70
Cultura, religião e identidade nacional na sociedade pós-moderna a crítica completa às opiniões de Assad no meu ensaio a publicar, "Human Rights and the Three Faiths" in Humanity Before God: Contemporary Faces of Jewish, Christian and Islamic Ethics, editado por Win Schweiker, Michael Johnson e Kevin Jung, Fortress Press, Filadélfia, Maio 2006. 5. Criei este termo para exprimir da forma mais satisfatória a interpretação mais vasta da noção de "liberdade religiosa" fornecida pelo Comité dos Direitos do Homem na sua Observação Geral sobre a aplicação do artigo 18 do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos (ICCPR). Nesta interpretação, todas as convicções conscientes, sejam elas quais forem, "teístas, não teístas (ou) ateias" estão incluídas sob a protecção do artigo 18 que estipula: "Toda a pessoa tem o direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de ter ou adoptar uma religião ou uma convicção da sua escolha." Ver Tad Stahnke e J. Paul Martin, editores, Religion and Human Rights: Basic Documents, Center for the Study of Human Rights, Columbia University, 1998, par.2, p. 92. O termo “direitos religiosos” frequentemente utilizado, parece-me muito restritivo e inapropriado, porque parece favorecer a religião. Penso que “liberdade de convicção” incluiria todas as convicções conscientes, religiosas ou não, colocando-as em plano de igualdade. Ver Little, "Studying ‘Religious Human Rights’: Methodological Foundations”, in Johan D. van der Vyver e John Witte, Jr., editores, Religious Human Rights in Global Prespective: Legal Perspectives, Martinus Nijhoff Publishers, Haia, 1996, p. 45-77, e sobretudo a nota de rodapé nº 12, p. 50. 6. Nesta secção. Retomo as ideias do meu ensaio "Rethinking Religious Tolerance: A Human Rights Approach”, in David Little e David Chidester, Religion and Human Rights: Toward an Understanding of Tolerance and Reconciliation, Emory University Humanities Lectures, nº 3, 2001, p. 3-30. 7. Citado in Alan Bullock, Hitler, Harper & Row, Nova Iorque, 1962, p. 401. 8. Mary Ann Glendon, A World Made New: Eleanor Roosevelt and the Universal Declaration os Human Rights, Random House, Nova Iorque, 2001. 9. “É necessário portanto recordar que: apesar de facto da Constituição alemã de 11 de Outubro de 1919 garantir a todos os cidadãos uma plena liberdade de crença e de consciência, e permitir a cada comunidade religiosa organizar e administrar livremente os seus assuntos, o regime nacional-socialista inverteu, completamente, a atitude do Estado perante as religiões e as convicções. […] Gradualmente restringiram as actividades da Igreja Católica, no domínio das boas obras, da educação, dos desportos e do enquadramento dos jovens. Paralelamente, esforçaram-se com determinação, em assimilar a Igreja Protestante à sua organização, e chegaram, a pouco e pouco, a controlá-la completamente recorrendo a métodos terroristas." Arcot Krishaswami, "Study of Discrimination in ter Matter os Religious Rights and Practices", Sthnke and Martin, in Religion and Human Rights: Basic Documents, p. 10. 10. Johannes Morsink, no seu livro, excelente no geral, The Universal Declaration of Human Rights: Origins, Drafting and Intent (University of Pennsylvania Press, 1999) é excepcionalmente pouco atento ao envolvimento fascista dos artigos relativos à liberdade de convicção, exceptuando as proibições de discursos incitando ao ódio; ver p. 69-72. Como já disse na nota 9, Krishaswami é bem preciso a este respeito. 11. Artigo 18, par. 2, ICCPR; cf. artigo primeiro par. 2 da Declaração Sobre a Eliminação de todas as Formas de Intolerância e de Discriminação Baseadas na Religião ou na Convicção. 12. O Comité dos Direitos do Homem das Nações Unidas, no seu Observatório Geral sobre a aplicação do artigo 18 do ICCPR, Stahnke and Martin, Religion and Human Rights: Basic Documents, p. 92, par. 2 13. Artigo 18, par. primeiro, ICCPR; cf. artigo primeiro, par. primeiro da Declaração Sobre a Eliminação de todas as Formas de Intolerância e de Discriminação Baseadas na Religião ou na Convicção. 71
Cultura, religião e identidade nacional na sociedade pós-moderna 14. Stahnke and Martin, Religion and Human Rights: Basic Documents, par. 4 p. 92. 15. Artigo 18, par. 3. ICCPR; cf. artigo primeiro, par. 3 da Declaração Sobre a Eliminação de todas as Formas de Intolerância e de Discriminação Baseadas na Religião ou na Convicção. 16. Stahnke and Martin, Religion and Human Rights: Basic Documents, par. 8, p.93 17. Idem par. 8, p. 93. 18. Enquanto que "intolerância" e "discriminação" pareçam ser equivalentes aqui, não o são na Declaração Sobre a Eliminação de todas as Formas de Intolerância e de Discriminação Baseadas na Religião ou na Convicção, art. 4, par. 2, que requer que os governos "se esforçam por adoptar medidas legislativas ou repor as que estão em vigor, segundo o caso, com o objectivo de impedir toda a discriminação deste género" e de "tomar todas as medidas apropriadas para combater a intolerância". Isso implica, portanto, que a intolerância e a discriminação (assim com a tolerância e a não-discriminação) não sejam uma só e a mesma coisa. Ver o meu raciocínio in Little, "Rethinking Religious Tolerance", op. cit., p. 4-17. 19. Artigo 2, par. 2 da Declaração Sobre a Eliminação de todas as Formas de Intolerância e de Discriminação Baseadas na Religião ou na Convicção. Cf. artigos 2 e 27 do ICCPR, e artigos 2 e 7 da Declaração Universal dos Direitos do Homem (UDHR). 20. Stahnke and Martin, Religion and Human Rights: Basic Documents, par. 9, p.94 21. Artigo 27, ICCPR; cf. artigo 27, par. Primeiro, UDHR. O artigo 27 da UDHR eliminou completamente qualquer referência à protecção das minorias, facto que foi recuperado, até certo ponto, no artigo 27 do ICCPR. No entanto, o Observatório Geral do Comité vai bem mais longe do que as prescrições do artigo 27 do ICCPR. 22. Ver Morsink, The Universal Declaration of Human Rights, p. 269-280. 23. Stahnke and Martin, Religion and Human Rights: Basic Documents, par. 6.2, p.99 24. Ver Morsink, The Universal Declaration of Human Rights, p. 272-274. 25. Artigo 20, par. 2 da ICCPR. Cf. artigo 7 da UDHR. 26. Stahnke and Martin, Religion and Human Rights: Basic Documents, par. 2, p. 96. Bem entendido introduzir as noções de autodefesa e de autodeterminação é fonte de perplexidade, uma vez que é necessário estabelecer a distinção entre o uso da força legítima ou ilegítima. 27. Morsink, The Universal Declaration of Human Rights, p. 69-72. 28. Este assunto é muito bem exposto, mesmo se, por vezes, faltam as conclusões, segundo penso, por Natan Lerner in Religions Beliefs, and International Human Rights, cap. 3. Ver o meu raciocínio in Little "Rethinking Religious Tolerance”, ob. cit. 29. Por exemplo, o Comité dos Direitos do Homem, que está autorizado a interpretar e a aplicar o ICCPR, pediu em 1993 que os governos da Bósnia Herzgovina, da Croácia assim como da Sérvia e de Montenegro tomem medidas para lutar contra todo o apelo ao ódio nacional, étnico e religioso, visando incitar à discriminação, à deslocação, pela força, de populações e outras formas de "violência étnica e religiosa" características do conflito que se desencadeou na ex-Jugoslávia de 1992 a 1995 (ver Natan Lerner, Religion, Beliefs and International Human Rights, Nova Iorque, Orbis Books. Marynoll, 2000, p. 78). Logo que este pedido, em pouco tempo, se manifestou "ineficaz", a sua pertinência e a sua validade são indiscutíveis perante as trágicas consequências que o desrespeito por elas demonstrou. 30. Ler particularmente a obra de Ted Ribert Gurr, sobretudo o seu livro Peoples versus States: Minorities at Risk in the New Century (U.S. Institute of Peace Press, Washington, DC, 2000) Nesta obra, Gurr relata que "as perspectives [sobre a frequência da violência etnonacional no mundo] são, acima de tudo, positivas" (p. xv), e que "o número de grupos que recorrem à violência armada tem diminuído após decénios de crescimento" (p. 275). De uma forma significativa, segundo Gurr, estas evoluções encorajadoras são, num grau não negligenciável, o resultado do reconhecimento e da protecção activa dos direitos dos povos minoritários: a liberdade face à discriminação baseada na raça, na origem nacional, na língua, ou na religião, 72
Cultura, religião e identidade nacional na sociedade pós-moderna completada pelos meios institucionais de proteger e promover os interesses colectivos (p. 278). A obra de Gurr sublinha a correlação entre a aplicação dos direitos do Homem e a paz justa. 31. Random House, Nova Iorque, 2005 32. Idem, p. 79. 33. Idem, p. 88 34. Idem, p. 90 35. Permitam-me que sublinhe que ao citar aqui o terrorismo islâmico, não procuro isentar as forças de ocupação, como Israel e os Estados Unidos, de responsabilidades associadas aos "nacionalismos patológicos" na medida em que eles têm violado normas legais internacionais, incluindo os direitos do Homem e o Direito humanitário. 36. Morsink, Universal Declaration of Human Rights, p. 91. Supõe-se aqui – com razão, segundo penso – que exprimir a sua revolta moral em resposta aos actos de Hitler constitui, em si mesmo, uma característica importante – se bem que mínima – daquilo que é "um ser humano moralmente são". Em caso de dúvida sobre este assunto, "recomenda-se ao cepticismo que passe algumas horas no Holocaust Memorial Museum de Washington, D.C.", como já escrevi, (Little, "Tolerating Intolerance: Some Reflections on the Freedom of Religion as a Human Right", in Reflections, vol. 90, nº 2, Verão/Outono, 1995, p. 23) 37. Simon & Schuster, Nova Iorque, 2004 (Qui sommes-nous? Identité nationale et choc des cultures, Odile Jacob, Paris, 2004). 38. Idem, p. 15 39. Idem, p. 88 40. Idem, p. 103 41. Idem, p. 68 42. Huntington parece ter aplicado a sua teoria anterior do conflito mundial das civilizações, exposta no seu livro Clash of Civilizations: The Remaking of World Order (Simon & Schuster. Nova Iorque, 1996), àquilo que ele pensa serem as fissuras profundas da América. Pelas razões enumeradas no texto, ele considera desde logo, que os imigrantes mexicanos criam um "choque cultural" entre os seus valores e a identidade americana estabelecida (p. 299, 300). A segunda fissura, vindo, como veremos, das "elites desnacionalizadas", que renunciam à identidade tradicional americana em favor das diversas formas de cosmopolitismo, da internacionalização e do transnacionalismo, representam, para Huntington, uma ameaça bastante profunda para a cultura e a civilização da América tradicional. 43. Who Are We?, p. 254,255. 44. Idem, p. 273. Ver p. 263-274 para uma exposição sobre as "almas mortas". 45. Extraído de John Micklethwait e Adrian Wooldridge, A Future Perfect, p. 241,242 citado em Idem, p. 269. 46. Idem. p. 266 47. Idem. 48. Idem, p. 270. 49. Ver Louis Menand, “Patriot Games: The New Nativism of Samuel P. Huntington”. In New Yorker, 17 de Maio de 2004, p. 96,97 e David Brooks, “The Americano Dream”, New York Times, 24 de Fevereiro de 2002, p. 27. Esta reacção foi confirmada pelo meu colega de Harvard, o professor David Carrasco, por ocasião de uma discussão pública de Who Are We? Com o professor Huntington que teve lugar na Harvard Divinity School, no Outono de 2004. Devemos, também, acrescentar que os elementos fornecidos pelo próprio Huntington para apoiar a tese explosiva (ver p. 254-256) segundo a qual os Mexicanos-Americanos "adoptam frequentemente uma atitude desconfiada para com a cultura americana" são espantosamente frágeis. 73
Cultura, religião e identidade nacional na sociedade pós-moderna 50. Louis Menand, "Patriot Games", op. cit., p. 92. 51. Huntington, Who Are We?, p. 362-366. 52. Idem, p. 365. 53. Idem, p. 12. 54 IdemI, p. 81-83. 55. Idem, p. 82. 56. Idem, p. 83 57. Idem, p. 83; sublinhado nosso.
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O alvorecer do diálogo inter-religioso na tradição europeia * Maurice Vefaillie **
Permitam-me que comece por uma nota pessoal: qualquer que seja a sinceridade do nosso olhar, cada um de nós interpreta o mundo e os seus movimentos em função da sua formação e da sua experiência. Penso que é importante dizer-vos que ao avaliar a evolução do diálogo inter-religioso na tradição europeia, tento fazê-lo do ponto de vista cristão. O historiador que fala dum facto concreto – por exemplo, o desembarque dos aliados em Junho de 1944 – aborda o assunto com uma certa vantagem. Com efeito, se a escolha dos momentos e a extensão das consequências deste acontecimento podem ser objecto de interpretações diferentes, o acordo geral faz-se sobre a sua existência, sobre os lugares, a data e o papel que ele desempenhou na derrota do regime nazi. Podemos imaginar que o mesmo acontece quando se trata do alvorecer do diálogo inter-religioso na tradição europeia, na medida em que se torna possível distinguir o carácter de certos debates, de localizar na História as maneiras de conceber as relações inter-religiosas e de considerar as suas discussões como suficientemente significativas para serem olhadas como preparação para verdadeiros
diálogos. “Diálogo Inter-Religioso”. Nos nossos dias a expressão tornou-se tão corrente a propósito de tantos encontros inter‑religiosos que o sentido do que é um “diálogo” se esvaziou, ao ponto de parecer vazio de conteúdo. Após este preâmbulo, proponho ‑vos que tratemos o nosso assunto em três partes. 1) Definir a noção moderna do diálogo e a sua filosofia; 2) Lembrar na história da Europa os antecedentes das relações das religiões entre si e 3) Abordar rapidamente alguns factores que desempenham um papel no desenvolvimento das relações inter-confessionais e inter ‑religiosas.
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I. A noção moderna de diálogo e a sua filosofia na Europa Antes de abordar este novo conceito que esta palavra e esta filosofia abrangem, é necessário lembrar que a palavra “diálogo”, no seu sentido actual, não aparece no vocabulário religioso, na Europa, senão após a Segunda Guerra Mundial, portanto muito recentemente. Deste modo, por exemplo, encontra-se numa declaração feita em 1947 por uma igreja reformada na Holanda. Trata ‑se da relação teológica que esta igreja mantém com Israel, no sentido religioso do povo judeu.
O alvorecer do diálogo inter-religioso na tradição europeia
de substituir o antagonismo por uma explicação, um diálogo1” Um outro protestante, J. Spencer Trimingham, escrevia em 1955: “Utilizamos este termo “diálogo” na sua acepção continental moderna de encontro construtivo entre cristãos e muçulmanos […]; um encontro no respeito recíproco e na compreensão mútua da fé dos outros, com a preocupação de encontrar uma base comum e um compromisso em favor do bem-estar da sociedade no seu conjunto2.” Duas expressões devem ser sublinhadas nesta última citação: “diálogo na sua acepção continental moderna” e “encontro construtivo […] no respeito recíproco”. A questão é saber quando nasceu este conceito no Ocidente. Jean-Claude Basset situa esse “nascimento” após a primeira guerra mundial, com o desenvolvimento, nos meios da teologia protestante alemã, duma verdadeira filosofia do diálogo. O conceito moderno do diálogo desenvolveuse em seguida no século XX, até penetrar nos meios católicos com o Concílio do Vaticano II (1962-1965). Mas foi principalmente com Martin Buber (1878-1965) que a filosofia do diálogo mergulhou as suas raízes na herança do pensamento judaico. Ele funde-a como uma antropologia de dupla relação com o outro e com o mundo: a relação “Eu-tu” e a relação “Eu-Aquilo” 3. Em 1923, Buber, sublinhara que nem o “Eu” nem o “Tu” podem viver separadamente. Eles não existem senão no contexto do “eu-tu”, que precede a esfera do “Eu” e a esfera do “Tu”. Da mesma maneira, nem o “Eu” nem o “isso” podem existir separadamente. Eles existem unicamente na esfera do “Eu-isso”. A relação do “Eu-Tu” não é absoluta senão em relação a Deus o “Tu” eter-
Participantes do Congresso Mundial sobre a Liberdade Religiosa “Religião, diálogo, solidariedade e desenvolvimento”, organizado em Santiago de Compostela, Espanha, de 25-27 de Maio de 2005. Da esquerda para a direita, John Graz, secretário geral da IRLA, Silver Spring. Estados Unidos; Rosa Maria Martinez de Codes, professora de História da Universidade Complutense, Madrid, Espanha; Maurice Verfaillie, antigo secretário-geral da AIDLR e redactor-chefe da revista Conscience et Liberté, acompanhado pela sua esposa Irene. Foto publicada com a amável autorização da Drª Rosa Maria Martinez de Codes
A. A Filosofia do diálogo no conceito moderno Tratando-se do espírito de diálogo tal como o pastor Henri Nusstlé o entende no seu livro Diálogo com o Islão, aparecido em 1949, JeanClaude Basset cita-o: “[…] estabelecer uma confrontação desprovida de toda a animosidade recíproca, 76
O alvorecer do diálogo inter-religioso na tradição europeia
Do ponto de vista que nos interessa neste congresso, os traços característicos que Jean-Claude Basset revela, parecem mais próximos do assunto da nossa reflexão: “O diálogo é um encontro de pessoas […] É próprio do diálogo tomar em conta os indivíduos, a sua história e o seu futuro; mais, é no diálogo que os interlocutores se podem reconhecer como pessoas com a sua individualidade e a sua liberdade 6”. É evidente que esta abordagem pressupõe uma noção elaborada da pessoa humana. Esta existe no pensamento cristão. Podemos recuar pelo menos até ao Novo Testamento para encontrar a sua manifestação. O “noûs” (em grego) utilizado pelo apóstolo Paulo nas suas epístolas, é a expressão duma personalidade estruturada e tomada na sua totalidade: “[…] O “eu” que “sabe”, que “compreende”e que “conhece” é sempre ao mesmo tempo um “eu” que se orienta, que “quer” e que toma posição. O elemento vontade está sempre incluído na inteligência do sujeito pensante (I Cor. 1:10; Rom. 12:2; 14:5; 7:23) 7”, Escreve Jean Zurcher. Na Idade Média, o filósofo Boéce definia-a “como a substância individual duma natureza razoável” (Boéce, in De duabis naturis et una persona Christi).
no. Esta relação não pode ser plenamente realizada nos outros domínios da existência inclusive nas relações humanas. Elas obscurecem-se muitas vezes na esfera do “Eu-isso”4. Por seu lado, Kalman Yaron, director do Instituto Martin-Buber na Universidade Hebraica de Jerusalém, escreve: “Buber afirma que a Bíblia testemunha de um diálogo permanente entre o Criador e as Suas criaturas – um encontro no qual o homem é um parceiro autêntico capaz de se fazer ouvir […] No coração do diálogo figura o encontro entre dois seres soberanos dos quais nenhum procura impressionar o outro nem usá-lo. Segundo Buber, o homem pode viver sem diálogo, mas quem não encontrou um “Tu” não é verdadeiramente um ser humano. Contudo, aquele que penetra no universo do diálogo corre um risco considerável porque a relação “Eu-Tu” exige uma abertura total do “Eu”, que se expõe a uma recusa e a uma rejeição total 5”. Pode-se portanto compreender como este pensamento tenha sido qualificado de “revolução copérnica” por Gabriel Marcel e Gaston Bachelard, por causa do lugar central que Buber concede ao encontro do “outro”. E é justamente porque ela se enraíza no ensinamento bíblico – onde o homem aí aparece à imagem de Deus como um ser cuja personalidade se estrutura no conjunto de relações – que este pensamento pode ter impacto na reflexão cristã. B. Definição O que é que podemos compreender por “diálogo inter-religioso?” O Dicionário Francês Le Petit Robert (1996) define o diálogo, qualquer que ele seja, como o “contacto e discussão entre duas partes à procura de um acordo, dum compromisso”.
C. Implicações, ao nível religioso, desta concepção do diálogo Compreendido como comunicação ao nível religioso, e no sentido moderno ocidental, o “diálogo” situa-se num plano completamente diferente dos outros modos de relacionamento. “Diálogos” no sentido duma mesma confissão religiosa ou “diálogos” por ocasião de encontros inter-religiosos: para serem verdadeiros, eles necessitam de várias 77
O alvorecer do diálogo inter-religioso na tradição europeia
5. É uma aposta e um desafio. Qual é o grau de compromisso de cada uma das partes? No diálogo religioso, existe uma verdadeira aposta. Ele ultrapassa o sentido das palavras. Com efeito ele pode dizer respeito ao modo de vida e às convicções religiosas de cada uma das partes. Dialogar, é sempre em qualquer momento, correr o risco de se ver a si próprio posto em causa; é um desafio talvez a mudar a sua maneira de crer e de viver. Portanto a conversão do outro não poderá acontecer sem um verdadeiro diálogo. A aposta não é nada menos do que a sinceridade e o discernimento nas suas próprias convicções. O respeito pela liberdade de consciência reveste-se então de toda a sua importância.
condições das quais mencionaremos apenas algumas:
1. É um encontro de pessoas. No sentido da noção actual de “diálogo”, não se devia falar de “diálogo de religiões”, mas de “diálogo entre crentes”. De facto, aquilo a que se chama correntemente “diálogo interreligioso” limita-se antes a uma justaposição ou a uma comparação de sistemas de pensamento religioso. 2. Ele supõe um intercâmbio respeitoso e confiante. O recurso ao diálogo implica o reconhecimento da pessoa e da dignidade do outro, com um grau de confiança mútua no discurso entre ambos.
3. Deve comportar a reciprocidade. O diálogo exclui uma relação fundada exclusivamente sobre o estatuto de relação “professor-aluno” – tal como se pratica, por exemplo no budismo. Que o diálogo seja inter-confessional ou inter-religioso, as suas dimensões colocam problemas aos espíritos ancorados na sua certeza absoluta de serem os únicos detentores de todas as verdades. A reciprocidade coloca os parceiros à escuta um do outro com uma abertura de espírito à luz que podem receber um do outro.
II. Os antecedentes do diálogo inter-religioso na Europa A. O carácter das relações inter ‑religiosas antes da época moderna Será que podemos falar do despontar dum diálogo inter-religioso antes da época moderna? Será que isso corresponde a uma realidade histórica? Como foram consideradas as relações entre confissões cristãs e entre as religiões ao longo da história da cristandade ocidental? Gabriel Marcel e Gaston Bachelard qualificaram a concepção buberiana de diálogo de “revolução copérnica do pensamento”. Quer isto dizer que antes do século XX nunca houve “nenhum encontro construtivo” no domínio religioso? Todos os historiadores do cristianismo notaram que a maior parte dos encontros deste tipo foram alimentados por um espírito de rivalidade, mais do que por um espírito de reconciliação. O primeiro objectivo “das discussões” ou dos
4. Reconhece a individualidade de cada uma das partes. Martin Buber recusava “ao mesmo tempo uma abordagem totalmente individualista em que um sujeito percebe o outro unicamente em relação a si próprio”, e “a perspectiva colectiva”, que oculta o indivíduo “e não vê senão a sociedade 8. A experiência mostra que a individualidade prejudica porque a diferença prejudica. Ora, o diálogo pressupõe o reconhecimento da realidade da individualidade de cada pessoa.
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“após tantos séculos a despeito de tantos anos passados, este problema (da coabitação) parece não ter sido resolvido”. Sublinhando que a realidade histórica, no fim da Idade Média espanhola, é a sobrevivência das nações confessionais que procuravam na religião aspectos promotores da unidade ou apoio às forças da oposição, ele acrescentava, a propósito do caso de Espanha: “a tendência de falar de respeito recíproco, ou mesmo de tolerância religiosa numa tal situação, seria demasiado simples. Da mesma maneira, seria anacrónico querer transpor conceitos e princípios modernos – como o da tolerância – num período e em sistemas que não os consideravam como valores “transmissíveis” 9. Sem dúvida que a adesão a uma fé religiosa criou, muitas vezes, incompreensões e lutas no solo espanhol. É igualmente verdade para as outras nações europeias. Contudo, também existiram longos períodos em que a coabitação tomou o lugar da confrontação. E o professor Tedeschi continua: “[…] isto autoriza-nos a olhar para a Idade Média espanhola sob um ângulo mais moderno porque, no seu solo, a coabitação pacífica entre as três religiões foi possível durante certos períodos enquanto que por razões políticas, a intolerância religiosa e ideológica não usurparam a consideração ou o respeito que uma das confissões podia ter sobre as outras 10.” Consequentemente, a cristandade na Europa conheceu precursores da tolerância e do diálogo. Não se tratava de instituições confessionais mas de indivíduos. Esquecemo-nos facilmente hoje dos grandes visionários da paz religiosa na Europa, como por exemplo, o Catalão Raymond Lulle (1233-1316), no século XIV.
“colóquios” religiosos era preservar a unidade confessional da cristandade na Europa. Cada uma das partes tentava afirmar a sua superioridade sobre as outras. O estilo do discurso salientava sobretudo a polémica, a refutação ou a reprovação. É verdade que por vezes, existiram “diálogos” amigáveis entre cristãos e muçulmanos em Espanha antes do reino de Castela. Não obstante, em geral, o ambiente era de hostilidade podendo conduzir ao processo inquisitorial. Ainda no século XVI, a opinião dominante que animava estes encontros – fossem eles católicos, luteranos, calvinistas ou anabaptistas – não admitiam a pluralidade de confissões no interior do estado. A história de Espanha oferece um exemplo interessante, ao qual faremos breve referência. Facto interessante – mesmo se é um aspecto particular e típico, diferente da história das outras nações da Europa na mesma época – a Espanha é o único país que viu no seu território, durante um grande período de tempo, um face a face permanente de três grandes religiões em presença: o catolicismo, o judaísmo e o islamismo. No fim da Idade Média, com estas três religiões, a Espanha herdava três forças políticas ou culturais tendo cada uma, em diferentes graus, exercido uma influência na formação da identidade espanhola. O professor Mário Tedeschi, da Universidade de Nápoles, analisou esta coabitação. Será então isto o triunfo da tolerância e do diálogo inter-religioso? Ele responde com um “não” pouco enfático. Na sua exposição, no decurso do “Encontro entre três confissões religiosas, o cristianismo o judaísmo e o islamismo” que teve lugar em Toledo em Novembro de 1998, concluiu com um balanço mitigado: 79
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zir as divergências religiosas por um esforço leal de conciliação. Por isso, é necessário mencionar um facto que poderia ser considerado, em razão das dimensões da personagem, como um pequeno passo no processo que chegará muito mais tarde ao reconhecimento da liberdade religiosa: Erasmo, o primeiro, propôs, pelo menos como solução provisória, a ideia duma tolerância civil do culto protestante. É necessário sublinhá-lo, porque é um caso quase único 12.
Devemos também lembrar que os primeiros humanistas, nos séculos XV e XVI, foram católicos fervorosos que optaram pelo respeito nas diferenças, pela concórdia e pelo diálogo em nome do Evangelho. Mesmo se a influência do humanismo cristão diminuiu após a Reforma Protestante e a vigorosa reacção da Contra‑Reforma Católica, faltaríamos ao dever se passássemos por alto o papel desempenhado nos séculos XV e XVI por teóricos tais como Nicolas de Cues (1401-1464), Thomas More (1478-1535), do diálogo e no alvorecer da Reforma Luterana, Erasmo (1469-1536) que será o apóstolo mais activo e mais influente na reforma dessa prática. As suas preocupações e a sua busca do diálogo parecem muito singulares na sua época. “(Estes humanistas) são consagrados a um ideal de unidade espiritual entre os homens, mas não o querem todos da mesma maneira como os doutores da Idade Média”, escreve Joseph Lecler na sua História da tolerância: “estes (os doutores da Idade Média) não hesitavam em adoptar em relação às diversidades religiosas uma posição de combate: luta violenta contra os heréticos, cruzadas contra os Infiéis. Tal não era a posição dos humanistas. Para unir os homens sobre o plano religioso, à partida eles pensavam menos naquilo que os dividia do que naquilo que os aproximava. No meio das divergências que os opunham, estavam à procura dum terreno comum. No meio das forças, desejavam criar processos pacíficos. Estes eram os “irenistas”11.” Contudo o seu ideal ainda não é o da tolerância no sentido moderno. Preocupam-se, sobretudo, em redu-
B. A Europa em transição Com o tempo estas correntes de pensamento foram relegadas ao segundo plano através de compromissos, políticos e económicos considerados como superiores numa Europa ainda medieval, mas já em transição para uma modernidade nascente. A Europa dos séculos XVI, XVII e XVIII é a Europa da Reforma e da Contra-Reforma, contudo ainda permanecendo fortemente debaixo do jogo de interesses e de forças políticas dominantes. É também a Europa da inflação devastadora das estruturas sociais tradicionais, depois a dum século que favoreceu os conservadorismos. É a Europa da rivalidade entre a Espanha e a França, a Europa das guerras da Itália, as guerras da religião em França, da emancipação dos Países Baixos, a guerra dos Trinta Anos e da Revolução em Inglaterra. É sobretudo a Europa do fim da monarquia absoluta em França e da Revolução Francesa. Enfim, a Europa torna-se, durante estes séculos, um vasto campo acidentado onde não é fácil dar apoio ao encaminhamento de uma ideia: a liberdade de consciência que se difundirá, depois transformará as 80
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mentalidades colectivas e o curso das relações inter-religiosas. III. Factores sociais do desenvolvimento actual das relações inter ‑confessionais e inter-religiosas. O passado testemunhou que as comunidades religiosas podem conviver lado a lado durante séculos, no mesmo espaço geográfico e cultural, sem se empenharem em verdadeiros diálogos. Não deveríamos ver aí uma indicação de que os principais factores que favorecem os encontros inter ‑religiosos devem ser procurados nas evoluções sociais, nas estratégias políticas ou nas mudanças culturais, pelo menos na primeira fase, em vez de nas primeiras preocupações das instituições religiosas? Não estarão aí os primeiros factores responsáveis destes encontros? A realidade histórica é complexa. Vários factores se combinam e entram em jogo, incluindo factores propriamente religiosos. Referir-nos-emos aqui apenas a quatro. 1. O pluralismo. A Grande Enciclopédia Larousse (Éditions Prestige, 1970) propõe uma definição dinâmica de Pluralismo: “estado do que é não único, mas apresenta diferenças, em matéria de filosofia, de religião, de política […] Doutrina que preconiza a coexistência construtiva de diversas tendências”. Na Europa ocidental, a fissura da unidade da cristandade, com a Reforma do Século XVI, deu forma à pluralidade religiosa. Não se podia ignorar outras abordagens da mesma revelação em Jesus Cristo, que davam como consequência outras confissões de fé e outras organizações religiosas cristãs. Um primeiro pluralismo inscreveu-se então na história com o 81
princípio “cujus régio ejus religio”, formulado por ocasião da paz de Augsbourg em 1555, depois com a ultrapassagem dos tratados Vestefália em 1648 13. Cento e trinta e cinco anos mais tarde, no momento da independência dos EUA, em 1783, depois com a Revolução Francesa, apareceu uma nova dimensão do pluralismo com a ruptura do elo que unia entre si as instituições religiosas e os poderes políticos. Por outro lado, na Europa, as afirmações e as práticas religiosas já não desempenham, como no passado, o papel de fundamento da existência colectiva. O compromisso religioso repousa sobre a escolha pessoal e não mais sobre a autoridade da tradição ou da instituição religiosa. A primazia do indivíduo sobre o grupo, escolha em vez da herança da tradição, estes factores desempenham um papel na procura de encontros interreligiosos (ver experiência de Taizé). No domínio espiritual, é necessário fazer-se a distinção entre um pluralismo neutro e um pluralismo positivo. O primeiro tem as suas raízes no desencanto face a uma unidade perdida e inacessível. As oposições e as diferenças estão coladas e as convicções reduzidas a um dominador comum. Este pluralismo está marcado por uma vontade de indiferenciação. Trata-se com efeito dum enfraquecimento da diversidade, quando se fala duma consequência inelutável. O segundo, o pluralismo positivo contemporâneo, pelo contrário, tende a dar a cada um a valorização que lhe é devida, e é este último que favorece o diálogo. 2. A secularização e a liberdade religiosa Duas outras evoluções da sociedade europeia desempenham também um papel favorável no espírito
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destes encontros: a secularização e a afirmação dos direitos do homem, mais particularmente com o reconhecimento do direito inalienável e individual à liberdade de consciência e de religião. a) A secularização Não nos compete traçar aqui a história da secularização depois do século XVI. Os significados que este termo tomou depois do século XVIII não faltam. É necessário fazer diferença entre “secularizar” e “laicizar”, compreendendo-se este último termo mais como o resultado da vontade política de “tornar (o Estado) independente das autoridades religiosas” (Grand Larousse Encyclopédique”, Édições Prestige, 1970). “Secularizar” por outro lado refere-se à dinâmica da própria sociedade no seu todo 14. Na Europa a secularização continua a ser um factor na separação das Igrejas e dos Estados. A diferença é que no passado a secularização não era conhecida na escala actual, e ela ofereceu e continua a oferecer um “terreno” em que os encontros entre as confissões e as religiões se sentem libertas da pressão da sociedade globalizante de outrora. A sua única referência, portanto, é a religião como tal. b) O aparecimento da liberdade de consciência e de religião Já sublinhámos que, o conceito moderno do diálogo inter-religioso necessita do reconhecimento dos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente a liberdade de consciência e de religião. Contudo, para permitir que esta questão se coloque abertamente na Europa, foi necessário esperar que a corrente das ideias que a subentende se afirmasse e que ela fornecesse aos homens de poder uma fonte intelectual de reflexão. Não é fácil seguir 82
com exactidão o caminho traçado por esta ideia através dos séculos XVI, XVII e XVIII. Na teologia de Lutero, de Calvino, ou na do seu adversário Castellion, este tema adquiriu uma dimensão política no conceito dos reformados franceses, depois no conceito dos porta-vozes independentes, como John Milton, por ocasião da Revolução inglesa. Este conceito (da liberdade de consciência e religião) tornou-se filosófico com John Locke, Leibnitz e Pierre Bayle. O progresso deste movimento de ideias teve numerosas repercussões políticas, sociais e religiosas. A sua realização não foi possível senão com a derrocada do edifício imponente da igreja dominante. A sacudidura provocada pela ruptura da unidade da cristandade, com a Reforma, repercutiu-se através do Velho Continente à semelhança das réplicas dum tremor de terra. A subida do sentimento nacional no Noroeste Europeu, depois os choques da descrença no século XVII, contribuíram para o recuo do tenaz conformismo doutrinal tradicional induzido pelas autoridades eclesiásticas. De facto, foi necessário obter a adesão da organização política da sociedade para que a liberdade de consciência se traduzisse em factos sociais. Fazendo da liberdade religiosa um princípio constitucional, certas instituições, como os Estados das Ilhas de Rhodes, em 1636, e da Pennsylvanie em 1681, abriram, de maneira precoce, o caminho da sua futura constitucionalização no século vinte. O fenómeno marginal que ela representava ainda no século XVII no contexto da resistência encarniçada das nações europeias modernas, com todo o reconhecimento desta liberdade, esta grande ideia impôs ‑se passo a passo, passando primeiro pelo caminho de diversos éditos de
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4. O ecumenismo Desde início do século XX, e mais ainda nos meios cristãos após a Segunda Guerra Mundial, o ecumenismo tomou a forma de resposta ao aparecimento do pluralismo religioso. É necessário mencionar aqui o papel do Conselho Ecuménico das Igrejas e o da World Church Communion. É verdade que existem “ecumenismos” fora do cristianismo. Contudo devemos sublinhar que foi o ecumenismo cristão que mobilizou quantitativamente o maior número de pessoas, leigos e clérigos. Na realidade seria mais exacto falar de ecumenismos no plural, porque existem ecumenismos protestantes, ecumenismos católicos ou ecumenismos ortodoxos. Existem também ecumenismos de base (ver Larzillier, em Lausanne), ecumenismos oficiosos e ecumenismos eclesiásticos, oficiais15. O ecumenismo cristão quer inscrever ‑se no contexto do diálogo tal como o temos descrito. O facto é que ele é mais frequentemente o fruto de iniciativas ocidentais, directamente confrontado com o pluralismo sob todas as suas formas.
tolerância. Seriam necessários três séculos para que ela fosse plenamente aceite. No modelo pluralista da sociedade europeia actual, em que a diversidade religiosa se tornou uma constatação, o verdadeiro diálogo inter-religioso poderia tornar-se um factor possível na promoção da paz, na medida em que ele estabelece a legitimidade do direito enunciado no artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos do Homem: “toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, só ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pelas práticas e pelos ritos.” 3. O Ressurgimento religioso Contudo somos forçados a constatar que o tempo em que muitos queriam ver na secularização um processo inevitável está ultrapassado. Não só ela não se notou no mundo, mas, no Ocidente, parece marcar passo. É um facto que longe de se extinguir como muitos imaginavam, as tradições religiosas reapareceram sob formas mais ou menos renovadas. Os efeitos deste ressurgimento fazem-se sentir na Europa com o desenvolvimento de novos movimentos religiosos (n.m.r.), a atracção pelas religiões orientais, mas também com os integristas e os conservadores católicos ou protestantes e com os extremistas muçulmanos. Todas estas correntes concorrem para uma “ocidentalização” da diversidade religiosa. Elas tornam necessários os diálogos para favorecer a aplicação dos direitos do homem, contrabalançando os elitismos e os exclusivismos, fontes de radicalização e de conflitos.
Conclusão 1. Pode falar-se do alvorecer de um diálogo inter-religioso na Europa. Ele corresponde bem a uma realidade histórica. Os seus traços de carácter apareceram às apalpadelas através dos séculos, com uma aceleração desde o início do século XX. Não obstante ainda hoje procura os seus caminhos: – As manifestações dos diálogos são múltiplas. É necessário falar de diversidade de diálogos, em função das pessoas em presença e dos desafios do encontro. – Os diálogos inter-confessionais ou inter-religiosos não são, propria83
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mente falando, os resultados duma progressão uniforme nas tradições religiosas. São frequentemente o resultado de pressões exteriores que se impuseram. – Evitarão eles o perigo de permanecer à superfície da vida religiosa e de passar ao lado das perspectivas espirituais das partes em presença? – Será o diálogo inter-religioso tentado a fazer o impasse sobre a conversão em nome duma certa ideia dum pluralismo enfraquecido e duma desconfiança, por vezes justificada, em relação a proselitismos abusivos? 2. Que acontecerá amanhã? O recuo de cinquenta anos depois da eclosão duma noção moderna do diálogo não permite ainda tirar conclusões. Tudo dependerá das concep-
ções que a sociedade terá do papel da religião no espaço público. Devem ser evitadas algumas armadilhas: a) Seria um erro pensar que a religião fosse um dos principais factores dos conflitos a que assistimos hoje. b) Pela sua filosofia da sociedade ou pela sua teologia, as religiões podem alimentar as fontes de tensão com elevados riscos; por exemplo exacerbando as reivindicações da etnicidade ou o nacionalismo criando comunitarismos, estimulando um conservadorismo abusivo, o fanatismo, o elitismo ou o exclusivismo. c) Último perigo, mas não o menos importante: os geopolíticos de religião que aceitam uma influência do Estado para servir de instrumento a fim de realizar os seus projectos políticos.
*Exposição apresentada por ocasião do Congresso Internacional “Religião, diálogo, solidariedade e desenvolvimento”, que teve lugar em S. Tiago de Compostela de 25 a 27 de Maio de 2005. ** M. Verfaillie era então secretário-geral da Associação internacional para a defesa da liberdade religiosa e redactor-chefe de Revista Consciência e Liberdade. Notas
1. Jean-Claude Basset, Le dialogue interreligeux, Histoire et avenir, Editions du Cerf, Paris, 1996, p.67 2. J. Spencer Trimingham, The Christian Church and Islam in West Africa, Londres, 1995, p. 45.
3. Cf. Jean-Claude Basset, op. cit., p. 21: “Em França, o personalismo de Emanuel Mounier (1905-1950) constitui um importante prolongamento da corrente do diálogo que também marcou o existencialismo dito cristão; assim a noção de comunicação de Karl Jaspers (188384
O alvorecer do diálogo inter-religioso na tradição europeia 1969) e o que Gabriel Marcel chama de o ‘milagre do encontro do Tu’. Ao contrário, para o existencialismo dum Jean-Paul Sartre, o ‘outro’ é sinónimo de solidão. Finalmente, o pensamento de M. Buber tem profundas repercussões na teologia, menos judaica que cristã, – ele foi sempre considerado como um marginal pelo facto de certas tomadas de posição concernente a Jesus ou aos Árabes […].” 4. Ver Martin Buber, Je et Tu, Éditions Aubier-Montanhe, Paris, 1969.
5. Kalman Yaron, Martin Buber, in Perspectives, revista trimensal da UNESCO, vol.XXIII, nº 1-2 Paris, 1993, p. 135-147, UNESCO, Escritório Internacional de Educação, Paris, 2000). cf. www.ibe.unesco.org/publications/ThinkersPdf/buberf.pdf
6. Jean-Claude Basset, op. cit., p.23. ver Kalman Yaron, “Na ordem do monólogo, o outro, mesmo sendo abstracto, é entendido como percebido e utilizado, enquanto que na ordem do diálogo, ele é encontrado, reconhecido e nomeado como ser singular”. (Op. Cit.) 7. Jean Zurcher, L’homme. Sa nature et sa destinée, Edições Delachaux et Niestlé, Biblioteca teológica, Genebra, 1953, p.183,184 8. Kalman Jaron, op. cit., p. 138
9. Mário Tedeschi, “The Three Riligions in the Late Spanish Middle Ages”, i Encuentro de las tres confesiones religiosas. Christianismo, Judaísmo, Islam, Ministério da Justiça, Madrid, 1999, p.156 10. Mário Tedeschi, op. cit., p. 157
11. Joseph Lecler, Histoire de la tolérance au siècle de la Réforme, Edições Aubier, Paris, 1955, tomo 1, p. 125.
12. Cf. Léon Haskin, Érasme parmi nous, Edições Fayard, Paris, 1987: “Erasmo é pacifista e internacionalista por razões diferentes das razões morais ou de ciência política. Ele admite estas motivações, mas ultrapassa-as. O cristão para ele, porque ele é cristão, não pode senão seguir as vias da paz a despeito das barreiras nacionais. A filosofia de Cristo dá ao seu pacifismo um fundamento evangélico. […], o ecumenismo de Erasmo procede legitimamente da sua fidelidade […] O espírito ecuménico modifica profundamente as relações dos cristãos entre si. Foi porque ao concílio de Trento faltou este espírito que preferindo o anátema ao diálogo, ele não seguiu a linha erasmiana de concórdia. Por receio do indiferentismo e do contágio, ele alargou o fosso que separa os católicos dos dissidentes”. P. 422,423.
13. Em 1648-1649, as cláusulas religiosas inscritas nos tratados de Vestefália puseram fim à guerra dos trinta anos. Elas consagravam o fim da Contra-Reforma católica na Alemanha e confirmavam a paz de Augsburgo de 1555, excepção feita às que constrangiam em toda a parte as pessoas a adoptar a religião do seu príncipe, “[…] está aqui a vitória da liberdade de consciência – o cujus régio ejus religio foi abolido”, escreve a este propósito Emílio Léonard. A tolerância, que não desempenhava verdadeiramente o papel de virtude desde o Século XVI, engendrava agora o reconhecimento da quebra da sociedade religiosa na Europa. A conservação dos Estados parecia sempre desejável, quaisquer que fossem as divisões confessionais. A associação dum príncipe religioso da união e duma organização estatal tinha conduzido, em 1555, ao princípio cujus régio, ejus religio. Este princípio já não se aplicava senão em unidades territoriais restritas, enquanto que em unidades mais alargadas onde as duas teologias, católicas e protestante, eram rivais, era necessário abandoná-la para colocar no seu lugar um princípio de coexistência. 85
O alvorecer do diálogo inter-religioso na tradição europeia 14. Ver Jean Baubérot, “Sécularisation e laïcisation. Modo de emprego ‘à francesa’”, comunicação apresentada em 4 de Novembro de 2004 no Centro de Altos Estudos em Ciências Religiosas: “[…] a secularização diria respeito antes de mais ao papel da dinâmica social e implicaria uma parte relativa de pertinência social, cultural (e como consequência, individual) do universo religioso em relação à cultura comum (o que não é aliás, sem impacto sobre as instituições). Estes são menos (ou já não são) quadros normativos orientando os comportamentos sociais em numerosos sectores. A laicização por outro lado, concerne antes de tudo ao lugar do papel social da religião no campo institucional, a diversificação e as mutações sociais deste campo em relação com o Estado e a política (e também a sociedade civil)”. 15. Ver Jean Séguy, “Thèses e hypothèses en œcuménologie”, in Social Compass 15, 1968, p. 433-442
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Thomas Damanyi*
I. Introdução A 10 de Dezembro de 1948, as Nações Unidas reunidas em Paris em assembleia plenária adoptaram a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Este documento beneficiava, pelo menos em princípio, da aprovação da comunidade internacional. O preâmbulo da Declaração informa o que significa, realmente, os Direitos do Homem: “Considerando que o reconhecimento da dignidade humana e os seus direitos iguais e inalteráveis constituem o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo, Considerando que o desconhecimento e o desprezo pelos Direitos do Homem conduziram a actos de barbárie que revoltam a consciência humana (…) a Assembleia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Direitos do Homem como o ideal comum a esperar por todos os povos e todas as nações (…)” Estas observações do preâmbulo, aplicam-se a todos os Estados e a todos os povos, baseadas nos valores inerentes a todo o ser humano, em razão da sua humanidade, isto é, intrinsecamente. Como diz o artigo primeiro da Declaração, “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e de consciência e devem agir uns perante os outros, num espírito de fraternidade.” A lei fundamental de Bona, reconhecida como a Constituição alemã em vigor, tem, desde o início da sua vigência, integrado os direitos do Homem, a partir do momento em que se tratou de colocar em vigor uma nova base jurídica depois da ditadura nazi e da Segunda Guerra Mundial. A Constituição de Weimar, de 1919, limitava-se aos direitos do cidadão. A lei fundamental de Bona de 23 de Maio de 1949, é a primeira a associar, no seu parágrafo sobre os direitos fundamentais (artigos 1-19), os direitos do cidadão e os direitos do Homem, como se vê pelos artigos Primeiro e Segundo: “A dignidade do ser humano é intangível. Todos os poderes públicos têm a obrigação de a respeitar e de a proteger. Em consequência, o povo alemão reconhece ao ser humano direitos invioláveis e inalienáveis como fundamento de toda a comunidade humana, da paz, e da justiça no mundo. Cada um tem o direito à vida e à integridade física. A liberdade da pessoa é inviolável” (artigo primeiro, § 1, 2; artigo segundo, § 2)1. 87
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II. Primeiras reacções da Igreja Católica Romana aos direitos do Homem É necessário, desde já, assinalar que os direitos do Homem, proclamados pelas Nações Unidas em 1948, puderam contar com a colaboração da Igreja, desde a sua fase de preparação. O Conselho Ecuménico das Igrejas, ainda em construção nessa época, contribuiu para a Declaração dos Direitos do Homem, através das discussões da Comissão das Igrejas para os assuntos internacionais. Do lado católico, um grupo de trabalho americano apresentou um projecto. Mas a ajuda mais preciosa veio do Núncio Apostólico então colocado em Paris, Giuseppe Roncalli – que se tornou, mais tarde, no Papa João XXIII. Ele colocou à disposição das diversas delegações nacionais das Nações Unidas, a sua experiência em matéria de Direito e de Diplomacia. Roncalli, estava persuadido de que o respeito pelos Direitos do Homem poderia colocar a humanidade ao abrigo de uma nova guerra mundial. Esta esperança tornou-se, mais tarde, o tema principal da sua encíclica Pacem in terris que apareceu em 1963, graças à qual a doutrina dos Direitos do Homem criou uma abertura determinante no seio da Igreja Católica Romana. Ninguém poderá dizer até que ponto esta tomada de posição de João XXIII colocou um marco importante e o que significou, em termos de política para a História da Igreja. Convém lembrar aqui que os primeiros textos constitucionais, que exprimiam os direitos do Homem desde o fim do século XVIII, eram dirigidos contra a Igreja Católica Romana e contra as pretensões clericais ao poder. Penso no Virgínia Bill of Rights, de 1776, apresentado pelo Congresso Americano em 1789, e nos Droits de l’homme et du citoyen proclamados alguns meses mais tarde pela Revolução Francesa. Estes textos levantaram-se contra a interdependência devastadora entre os poderes da Igreja e do Estado que prevalecia até aí. Ferida pela hostilidade anticlerical assim como pelos protestos contra as pretensões da Igreja Católica, ao poder, que transparecia na Declaração francesa dos direitos do Homem, o papa Pio VI condenou, não apenas o facto da Igreja ser descartada do poder político, mas também os direitos do Homem, saídos da Revolução Francesa. Os seus princípios eram considerados como indo contra a doutrina católica no que respeita à origem do poder do Estado, a liberdade religiosa e as desigualdades sociais. Pio IX repetiu o seu julgamento sobre os direitos do Homem, em 1864, no seu Syllabus errorum, um catálogo das grandes heresias e erros grosseiros. Leão XIII considerava ainda, na passagem para o século XX, as noções dos direitos do Homem, como uma doutrina liberal, excessivamente inspirada na Reforma, tão incompatível com a lei natural, como com a força da instrução da função eclesiástica. As catástrofes do século XX, ou dito de outra forma, as duas guerras mundiais, e a erradicação de regimes de terror fascista do solo europeu, levou a uma evolução das mentalidades na Igreja Católica no que se refere à questão dos direitos do Homem. Vários dignitários da corte papal deram-se conta de que a comunidade dos povos tinha necessidade de uma legislação fundamentalmente nova, para que a humanidade não seja levada a seguir um infinito abuso do poder. Após a ONU ter incluído os direitos do Homem nos direitos dos povos, depois do alargamento dos direitos do Homem à vida, à liberdade, à propriedade, assim como, graças ao direito ao trabalho, à segurança social 88
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e à educação, a Igreja Católica reviu a sua posição para com os direitos do Homem e envolveu-se, cada vez mais, em favor da sua aceitação no mundo. Na sua encíclica Pacem in terris, o papa João XXIII apresentou uma completa concepção dogmática dos direitos do Homem. O Concílio Vaticano II (1962-1965) assimilou o conceito e a concretização pela sua declaração sobre a liberdade religiosa. Esta declaração, chamada Dignitatis humanae (da dignidade humana) faz parte dos mais significativos documentos deste Concílio, com Nostra aetate, a declaração sobre as relações da Igreja Católica com as religiões não cristãs e, em particular, o judaísmo. O debate sobre a Igreja e a liberdade religiosa não deixou de suscitar a desaprovação de uma ruidosa minoria de padres conciliares. Apesar disso, a grande maioria da assembleia compreendeu os sinais dos tempos e votou a favor do texto sobre os direitos do Homem, a 19 de Novembro de 1965. Hoje, a administração e a teologia da Igreja Católica Romana deixou de pôr em causa os direitos do Homem, incluindo a liberdade religiosa. III. A base bíblica dos direitos do Homem Para os Europeus adaptados à sua época, não há qualquer dúvida de que existem direitos do Homem inalienáveis e recuperáveis por uma acção na justiça, que tem a sua origem na dignidade humana e que pertence a todos os seres humanos, independentemente da sua raça, da sua nacionalidade, do seu sexo, da sua idade ou da sua religião. Para os cristãos declarados, será também importante saber que os direitos do Homem encontram o seu principal apoio exactamente na Bíblia. As seguintes passagens referem-se a este tema: • A imagem bíblica do Homem na sua relação com os direitos do Homem (Gén. 1:1,2; Actos 17:24-32). • O Deus do Êxodo e dos dez mandamentos em relação com os direitos do Homem (Êxodo 20). • As leis de Moisés nos cinco primeiros livros da Bíblia em relação aos direitos do Homem. Com efeito, lendo atentamente algumas passagens da Bíblia, ninguém precisa de profundos conhecimentos teológicos para notar que o Deus da Bíblia aparece como um Deus do Direito e da Justiça, quer nos dez mandamentos, quer nos cinco livro de Moisés – o Pentateuco. O Deus do Êxodo tem, da mesma forma, feito aceitar o direito humano à vida, a interdição da tortura e da escravatura, o direito à livre circulação, à liberdade de associação e à liberdade religiosa, contra o despotismo faraónico e do capitalismo do Estado e em proveito dos escravos e prisioneiros de guerra hebreus. Desta forma mostrou a Israel que é um Deus que se envolve no desenvolvimento dos direitos do Homem. IV. A prática da liberdade religiosa na Igreja Católica Romana Pode-se colocar actualmente a seguinte questão: que faz a Igreja Católica Romana para pôr em prática, na prática religiosa, isto é na vida dos cren89
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O Mosteiro de Santa Catarina, junto ao Monte Sinai, sobre o qual – segundo os textos bíblicos – Moisés recebeu os Dez Mandamentos escritos em duas tábuas de pedra. Destinados a regulemantar as relações entre o homem e Deus e entre os homens entre si, testemunham da dignidade que Deus reconhece aos seres humanos. Foto churchphoto/Gerhard Grau.
tes, no culto, nas estruturas da Igreja e nas relações com as outras Igrejas, a liberdade religiosa aprovada e reconhecida pelo Concílio? Tais medidas são indiscutíveis uma vez que as decisões do Concílio sobre a liberdade religiosa não devem permanecer apenas no papel. As medidas abaixo mostram até que ponto a Igreja Católica chegou em aplicar o conceito de liberdade religiosa sobre o qual o Concílio se pôs de acordo: 1. As decisões do Concílio foram imediatamente inscritas no Catecismo Romano, isto é, no livro de ensino mais fundamental e completo da fé católica. Na edição de 1993, são consagrados quatro parágrafos aos direitos do Homem, a saber, os parágrafos 2106-2109. Os parágrafos 2106 e 2107 ensinam-nos até que ponto a liberdade religiosa é fundamental e compreendido pelo magistério católico actual: 2106 A liberdade religiosa significa “Que em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a sua consciência, nem impedido de agir, nos seus justos limites, seguindo a sua consciência, tanto em privado como em públi90
A situação da liberdade religiosa no catolicismo moderno
co, sozinho ou associado com outros” (DH2). Este direito está baseado na própria natureza da pessoa humana. Cuja dignidade o fez aderir livremente à verdade divina que transcende a ordem temporal. Por isso, este direito “continua a existir ainda para aqueles que não satisfazem à obrigação de procurar a verdade e de aderir a ela”(DH2). 2107 “Se, em razão de circunstâncias particulares dos povos, for conferida a uma única comunidade religiosa o especial reconhecimento civil na organização jurídica da sociedade, será necessário que ao mesmo tempo se reconheça e se observe em favor de todos os cidadãos e das comunidades religiosas o direito à liberdade em matéria religiosa.” (DH 6)2. 2. A aceitação da liberdade religiosa pelo Concílio reflectiu-se, igualmente, no culto católico. Tomemos como exemplo, a mudança da oração por aqueles que governam (pró res publica moderantibus) na missa anual de Sexta-feira Santa. Antes do Concílio Vaticano II, orava-se ainda para manter a religião intacta. Em contrapartida. No missal publicado em 1975, no local correspondente, encontra-se “A oração pela liberdade de culto”. Em continuação dos esforços para incluir verdadeiramente a liberdade religiosa em todos os aspectos da vida, as disposições católicas romanas sobre o casamento misto evoluíram. Sob o pontificado de Paulo VI, o documento correspondente no Direito Canónico motu proprio matrimonia mixta foi revisto, de acordo com o esquema fundamental do Concílio Dignitatis Humanae. 3. No entanto, numerosos católicos são hoje mais exigentes. Pedem uma liberdade religiosa na própria Igreja, isto é, uma liberdade religiosa interna na Igreja. É lógico, porque a compreensão cristã acrescida da liberdade tem consequências sobre o exercício da autoridade da Igreja e sobre as suas estruturas legislativas. Contudo, os teólogos católicos chamam a atenção para o facto de que seria difícil de aplicar a “liberdade dos filhos de Deus” mencionada na Bíblia, nas estruturas da Igreja, que têm crescido ao longo dos tempos. Porque as evoluções institucionais não podem favorecer o desenvolvimento da liberdade na Igreja senão na medida em que elas são a expressão do amor sincero. É difícil falar de liberdade religiosa no interior da Igreja sem construir uma “teologia da comunidade” que definiria, igualmente, a vida interna da Igreja. Esta liberdade religiosa desenvolve-se, apesar disso, estando continuamente a oscilar entre a realidade da Igreja visível como comunidade estabelecida graças a um consenso e as exigências da liberdade cristã. A própria comunidade da Igreja, não deve ser posta em perigo. Portanto, é necessário evitar dois extremos: de um lado, os exageros da autoridade e, por outro, um envolvimento, de um só sentido, nos direitos à liberdade do indivíduo. 4. Por fim, o tema da liberdade religiosa é, à evidência, muito frequentemente retomado nas alocuções papais, e com insistência. Por exemplo, desde o início recente do seu pontificado, o papa Bento XVI tem insistido, muitas vezes, recomendado aos seus auditores, nos discursos públicos, o respeito pela liberdade religiosa. Na sua primeira Encíclica, publicada a 25 de Dezembro de 2005, Deus caritas est, pode ler-se: “A distinção o que é de César e o que é de Deus (ver Mat. 22:21), a saber, a distinção entre o Estado e a Igreja onde, como disse o Concílio Vaticano II, a autonomia das realidades terrestres [19]3, pertence à estrutura fundamental do cristianismo. O Estado não pode impor a religião, mas deve garantir 91
A situação da liberdade religiosa no catolicismo moderno
a liberdade, assim como a paz entre os fiéis das diferentes religiões. Por sua vez a Igreja, como expressão social da fé cristã, tem a sua independência e, baseando-se na fé, vive a sua forma comunitária, que o Estado deve respeitar. As duas esferas são distintas, mas sempre numa relação de reciprocidade.” (N.28) Apenas duas semanas mais tarde, isto é, em 9 de Janeiro de 2006, por ocasião do tradicional discurso de Ano Novo, em Roma, o corpo diplomático ouviu da boca do soberano pontífice esta insistente recomendação: “Nos desenvolvimentos actuais do Direito Internacional percebe-se, com uma sensibilidade crescente, que nenhum governo se pode dispensar do dever de garantir aos seus cidadãos as condições apropriadas de liberdade, sem comprometer, mesmo para isso, a sua credibilidade como interlocutor nas questões internacionais. E isso é justo, porque na salvaguarda dos direitos inerentes à pessoa, como tal, garantidos internacionalmente, não se pode deixar de avaliar de forma prioritária, o espaço dado aos direitos à liberdade no interior de cada Estado, assim como na vida pública e privada, tanto nas relações económicas, como políticas, tanto nas relações culturais como religiosas4.” Envolvendo-se desta forma com a liberdade religiosa, Bento XVI aproxima-se do seu antecessor, o papa João Paulo II, para quem a defesa da liberdade religiosa se tornou numa das prioridades do seu longo pontificado. Recordamo-nos do discurso pronunciado a 3 de Novembro de 1994, por ocasião da VI Assembleia Geral da Conferência Mundial das Religiões para a Paz, onde ele formulou a posição da Igreja, nos seguintes termos: “Assim, deveremos encorajar a liberdade religiosa para todos. A liberdade religiosa constitui a pedra angular de toda a liberdade. Impedir outrem de praticar a sua religião livremente conduziria, por fim, a colocar em perigo a nossa própria liberdade.” V. Conclusões Do que foi dito podemos deduzir as seguintes conclusões: o Concílio Vaticano II representa uma manifesta censura na história da Igreja Católica Romana; uma viragem que se deu, no decurso dos últimos quarenta anos, constitui o ponto de partida de um processo de renovação fundamental do catolicismo. Para o observador exterior, a mudança manifesta-se na abertura ao mundo e a abertura de espírito que a Igreja Católica Romana demonstra nos seus contactos com as outras Igrejas, a sociedade, assim como as grandes questões em suspenso na sociedade. O constante envolvimento da Igreja Católica em favor da liberdade religiosa, constitui um dos sinais mais notáveis da sua abertura. Diversos factores deram origem à dinâmica que conduziu a esta mudança perceptível, comparando com o comportamento anterior ao Concílio: no decurso dos séculos passados, a Igreja Católica Romana beneficiava de uma posição favorecida pelo Estado – pelo menos nos países ditos católicos da Europa. Hoje, em contrapartida, o catolicismo, ao nível mundial, encontra-se confrontado, na maior parte dos países com um regime constitucional moderno, mais ou menos neutro no plano confessional, após a separação da Igreja 92
A situação da liberdade religiosa no catolicismo moderno
e do Estado. Em numerosos países, a Igreja Católica encontra-se enquadrada numa situação de diáspora à qual espera pôr fim, rapidamente. No quadro de um conflito, acontece que Roma exorta um Estado a respeitar a liberdade religiosa, para proteger os seus próprios fiéis. Por outro lado, o magistério romano reconheceu a legitimidade da liberdade religiosa no contexto dos direitos do Homem. Por fim, o papado tomou consciência de que tornando-se defensor da liberdade de culto e de consciência para todas as Igrejas e todas as religiões coloca em evidência a sua posição dominante em toda a cristandade. A tomada de posição da Igreja Católica Romana em favor de liberdade religiosa mostra, igualmente, que é capaz de se renovar, permanecendo firme nas suas convicções, indispensáveis segundo ela, e que, tradicionalmente, sempre manteve. Por detrás da profissão de fé do catolicismo moderno em favor dos direitos do Homem, e mais particularmente da liberdade religiosa, escondem-se interesses e convicções de primeira ordem, que deveriam preservar Roma de regressar a formas de pensamento e de acção que podem ser prejudiciais à concretização da sua missão formulada no decurso do Concílio Vaticano II.
*Professor de ética e de teologia na Faculdade de Teologia de Friedensau, na República Federal da Alemanha.
Notas:
1. Ver www.bundesregierung.de/fr/pureHtml-.9192.560476/Loi-fondamentale-pour-la-Rpub.htm. 2. Catecismo da Igreja Católica. Terceira Parte: A vida em Cristo, Segunda secção: Os Dez Mandamentos, capítulo primeiro: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todas as tuas forças”; artigo primeiro: O Primeiro Mandamento, II. “Apenas a Ele prestarás culto”. Subtítulo: “O dever social de religião e do direito à liberdade religiosa”. Actualmente, no sítio do Vaticano: www-vatican.va/archive/fra0013/_index.htm
3. Nota 19: Ver Const. Past. Sobre a Igreja no mundo deste tempo Gaudium et spes, n. 36. Extracto do discurso de Bento XVI: www.vatican.va/...benedict_xvi/encyclicals/hf_ben-xvi_ enc_20051225_deus-caritas-est_fr.html. 4. Discurso de Bento XVI na continuação de Eucaristia misericordiosa http//eucharistiemisericor.free.fr/index.php.page=0901062_diplomates
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A identidade religiosa na Europa pós-moderna – Tendências actuais*
Rick Torfs**
Introdução O lugar da religião evolui no Ocidente, se bem que não se saiba exactamente em que sentido. Por um lado, o papel público da religião não pára de aumentar, como reacção ao terrorismo, e, de uma maneira mais positiva, devido à emergência de uma sociedade multicultural. Por outro lado, pelo menos na Europa Ocidental, não parece que as pessoas se tornem mais religiosas do que antes. Esta ideia poderia ser resumida através desta frase assaz caricatural: a religião torna-se mais importante para o Estado e menos importante para as pessoas. Contudo, será que este slogan, que soa bem, reflecte a realidade? Ou deveremos ir para além das aparências e tentar descobrir o que é que na verdade está em jogo? Gostaria, se mo permitirem, de fazer algumas observações metodológicas, tentando seguir esta linha de raciocínio. Esta tentativa levar-nos-á, sem dúvida, a raciocínios que nem sempre serão totalmente claros ou
isentos de contradições, mas, suponho, que toda a abordagem credível leva a este género de conclusões, pela simples razão de que a época na qual vivemos está em constante mutação. O início deste artigo será constituído por reflexões sobre a ausência de Deus. Elas servirão de catalizador para uma análise de cinco temas específicos, determinantes nas discussões actuais sobre a religião na Europa Ocidental. Na medida do possível, não me contentarei em expor os cinco temas; analisarei, igualmente, as consequências legais que eles podem arrastar. A ausência de Deus Não se enganem: Deus está, ainda, relativamente ausente na Europa Ocidental. A secularização ainda não acabou. São muitos aqueles que duvidam da existência de Deus. De facto, há cada vez uma maior tendência para não crer n’Ele. No decurso destes últimos anos, esta situação não mudou radicalmente. Numerosos crentes esperam que 94
A identidade religiosa da Europa pós-moderna – tendências actuais
ou ainda não está lá. Poderá voltar e, de certa forma, temos pena de que Ele não esteja connosco. A ausência de Deus permanece, evidentemente, uma ausência, o que podemos lamentar, mas estamos menos seguros do que nunca antes, de que essa ausência seja eterna. Esta mudança subtil do paradigma, progressiva e, por vezes, apenas visível, pode ser ilustrado e concretizado através do seguinte exemplo. No passado, a ausência de Deus constituía uma vitória, uma forma de emancipação. Hoje, o contrário é que é verdade. Os não cristãos experimentam, muito frequentemente, uma ligeira tristeza. E chegam a dizer: “Vocês têm a sorte de serem crentes. Infelizmente, eu não recebi esse dom, ou essa graça.” Ao reagir desta forma, o não crente abandona incontestavelmente toda a superioridade intelectual. E a ausência de Deus torna-se então menos ontológica. Deus está ausente, é verdade, mas Ele poderá regressar mais cedo do que se pensa. Esta nova visão de ausência poderia – mas não necessariamente deveria – ser examinada à luz do pós ‑modernismo, transformando mesmo, a ausência numa noção menos radical do que antes. No entanto, poderia, também, tratar-se de outra coisa diferente de um sinal suplementar de pós‑modernismo. Esta nova ausência poderia ser definida como um laço reaproximando a tese da presença da antítese da ausência radical. As consequências jurídicas desta nova ausência meio oculta poderiam ser observadas no quadro de uma abordagem contratual apropriada aplicando-se aos grupos religiosos em geral. Por outras palavras, o Estado deveria manter, com os grupos
a secularização chegue ao seu fim, mas não é correcto, de um ponto de vista científico, dar a impressão de que assim é. No entanto, mesmo se Deus permanece ausente, está presente de uma outra maneira. A Sua ausência é mais doce, menos radical; envolve numa atmosfera de boa vontade e de compaixão. Há vários séculos, até mesmo vários decénios, a ausência de Deus era considerada como uma vitória. Os cientistas tentavam demonstrar que Ele não tinha podido existir, ao passo que os filósofos negavam a Sua existência. Por vezes, era na sequência de um longo conflito que a teoria da ausência de Deus era admitida. Era por isso que esta noção tinha a tendência de ser extremamente radical. Declarava-se que Deus estava ausente como se nunca tivesse existido. A Sua ausência e a Sua inexistência eram só uma e a mesma coisa. O raciocínio de então era mais ou menos este: antigamente as pessoas acreditavam na existência de Deus, mas nós encontrámos argumentos válidos que nos levam a pensar o contrário; logo, podemos daí deduzir que Deus não existe. Por outras palavras, a ausência de Deus não sucede à Sua presença; ela não é senão a rejeição da Sua existência. Hoje, no entanto, teria mais a tendência de pensar que esta teoria tradicional, e radical, da ausência de Deus perde terreno progressivamente. A “ausência” tem-se tornado, pouco a pouco, uma noção mais neutra; ela já não é racional, mas mais narrativa. Actualmente poder-se-á explicar a ausência de Deus da seguinte forma: Deus está ausente, Ele já lá não está, 95
A identidade religiosa da Europa pós-moderna – tendências actuais
Europeia, frequentemente atendida como um projecto católico ou simultaneamente católica e protestante. Em segundo lugar, numerosos cidadãos da Europa Oriental ou Central vivem em países menos prestigiosos – a Rússia, por exemplo – ou menos populosos do que no passado – a Ucrânia é um exemplo marcante. O Império soviético não era, talvez, o melhor sítio para viver, mas, apesar de tudo, sempre era um Jornada mundial da juventude católica em Colónia, Alemanha, em império. Agosto de 2005. Foto churchphoto/Matthias Mueller É necessário não excluir um sentimento religiosos, uma relação, um diálogo, de frustração se combinarmos os dois como é mencionado no projecto da aspectos aqui mencionados, a saber, Constituição Europeia. De qualquer a posição minoritária dos ortodoxos modo, os grupos religiosos não deve- na Europa e a perda geral de prestíriam, necessariamente, gozar de um gio sofrida por vários países, muitos estatuto fixo e imutável. deles ortodoxos. Partindo, implicitamente, da Podemos ainda questionar se este noção de ausência meio oculta, sentimento de pertencer a uma tentarei descrever cinco característi- minoria que reforçaria os laços cas de identidade cultural e religiosa entre identidades cultural e religiona sociedade pós‑moderna actual da sa, não desempenharia, igualmente, Europa Ocidental. um papel na Europa Ocidental. Em todo o caso, a situação nesta parte Primeira tese: a religião como do mundo, difere da que se vive nos antigos Estados soviéticos, ou nos arma dos fracos Estados dominados, ou influenciaEsta ideia parece mais divulgada dos, pelos soviéticos. Todavia, as na Europa de Leste, ou central, do minorias agarram-se mais ainda do que na Europa Ocidental. Muitos que antes, à sua identidade religiosa. factores explicam este fenómeno. Dois exemplos ilustram este ponto. Em primeiro lugar, as Igrejas a) Os muçulmanos de hoje afirOrtodoxas pensam, talvez, ser objec- mam mais claramente a sua identidato de uma certa discriminação, após de do que no passado. As mulheres os escritos de Samuel Huntington, usam o lenço com mais frequência. mas igualmente por causa da União Podemos perguntar se é uma reno96
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bém ajudar os cristãos a criar uma identidade não directamente ligada aos seus êxitos económicos. A propósito da liberdade religiosa, a religião como arma dos fracos necessita de uma estratégia cuidadosa por parte das autoridades seculares. Enquanto a religião apenas servir de fachada para actividades tais como o terrorismo, o pôr em perigo a ordem pública, são necessárias restrições à liberdade religiosa. No entanto, as manifestações imprevistas ou não habituais da liberdade religiosa deveriam ser aceites. O uso do véu pelas alunas nos estabelecimentos escolares foi entendido em França como incompatível com o papel da escola como “santuário republicano”, como o Presidente da República, Jacques Chirac declarou em Dezembro de 2003, alguns meses antes da promulgação de uma lei interditando o uso nas escolas de sinais religiosos ostensivos. O discurso de Jacques Chirac foi provavelmente demasiado ideológico e demasiado emocional. Por outro lado, a aplicação de normas proibitivas priva as autoridades de informações. Com efeito, interditando, às jovens o uso de véu, as autoridades não têm meio de saber quem são as que o usariam se fossem autorizadas. No entanto, a liberdade religiosa tem os seus limites, mesmo no que concerne ao uso de sinais e de roupa religiosa. As mulheres que na rua usem a burca não podem ser identificadas. Esta situação põe em perigo a segurança pública e leva, justificadamente, a tomar medidas restritivas.
vação religiosa que está na base desta mudança de atitude. Será que não podemos argumentar que uma integração na sociedade ocidental não será, parcialmente responsável por um sentimento de humilhação que não pode ser contradita senão afirmando ostensivamente a sua pertença a uma religião? O raciocínio subjacente poderia ser: quanto mais as pessoas têm a impressão de estar em posição minoritária, mais a adesão a um grupo religioso será expresso em público. Os fracos não são mais religiosos do que os fortes, mas necessitam mais da religião para reavivar a esperança. b) Os europeus de origem, que se sentem marginalizados pelas exigências imperiosas da sociedade, procuram – e encontram – um conforto na religião. Os êxitos e os resultados têm uma importância capital na moderna sociedade neoliberal. Contudo, as Igrejas que cuidam dos pobres oferecem uma alternativa a estes imperativos tirânicos. Um grande número de Igrejas concorda em dizer que a personalidade de alguém não depende, unicamente, dos resultados obtidos. Esta atitude clemente atrai, porque põe em causa a aparentemente inevitável corrida ao dinheiro e à glória. Por outro lado, as Igrejas conseguem acolher duas categorias de pessoas, que são, por vezes, distintas, a saber, as que procuram o sentido profundo da vida e os que desejam sair do turbilhão da sua vida quotidiana. Em resumo, a religião como arma dos fracos não é, certamente, um fenómeno unicamente presente na Europa Ocidental. Manifesta‑se abertamente noutras regiões do mundo. E assim, a religião como arma dos fracos não é sem importância. Pode ajudar os muçulmanos do Ocidente a afirmar a sua dignidade. Pode tam-
Segunda tese: a religião torna-se, cada vez mais, emocional Os sociólogos interrogam-se, frequentemente, sobre a razão pela 97
A identidade religiosa da Europa pós-moderna – tendências actuais
segue, portanto, com um certo atraso, a tendência americana que vai na direcção de uma abordagem mais emocional da fé e da religião. Por vezes, esta evolução progressiva e implícita, aparece claramente e de forma inesperada. Por exemplo, pode argumentar-se que o novo sumo pontífice, o papa Joseph Ratzinger, suscita indirectamente e, certamente contra a sua vontade, uma abordagem emocional da religião. Esta opinião pode parecer estranha, uma vez que o papa é geralmente considerado como um intelectual afirmado. Como peritus, durante o Concílio Vaticano II, foi conselheiro do cardeal Frings. Foi professor universitário de grande renome, em Münster, Tübingen e Ratisbona. Podemos, por conseguinte, perguntar, e com razão, como é que a sua abordagem da religião poderia ser emocional. Esta vez ainda, se as intenções do novo papa não dependem da emoção, o que emana da sua abordagem, no entanto, vai nesse sentido. A homilia que pronunciou em Agosto de 2005 em Colónia, por ocasião de missa de encerramento da Jornada Mundial da Juventude, ilustra perfeitamente esta tese. O Papa analisou em detalhe o sacramento da eucaristia, o que se passa exactamente ao nível do pão e do vinho, incluindo explicações etimológicas de certas noções fundamentais. Aos olhos do papa, a sua exposição não pretendia ser, simultaneamente, racional e teológica. Porém, como é que esta audiência constituída por jovens interpretou a alocução papal? A maior parte dos jovens participantes tinha conhecimentos teológicos muito limitados. Paradoxalmente, doze anos de ensino
qual a religiosidade da Europa difere tanto da dos Estados Unidos. Estas diferenças não podem ser sempre analisadas de forma adequada. Seria simplista afirmar que a Europa está profundamente secularizada enquanto os Estados Unidos, por qualquer razão desconhecida, não estão. A situação é bem mais complexa. Para aqueles que vivem na Europa Ocidental, a religião tem um sentido tradicional diferente da dos americanos. A religião na Europa tinha grandes ambições. Procurava explicar a vida e o mundo no seu conjunto. Em contrapartida, para numerosos americanos, a religião preocupava-se com a vida, certamente, mas ainda mais com o estilo de vida e as emoções. As actividades religiosas representavam e representam sempre uma parte da vida, relativamente bem separada dos outros aspectos da existência humana. Os europeus são, talvez, mais secularizados porque encaram a religião muito a sério. Porque praticamente todos a vêem com um motor e uma explicação da vida no seu conjunto. Se isso é verdade e se as expectativas perante a religião também são elevadas, a decepção poderá ser muito cruel. No entanto, temos observado, estes últimos anos, uma mudança do paradigma quanto à vida religiosa na Europa Ocidental. Os jovens seriam cada vez mais ou não crentes, ou crentes emotivos, isto é, praticam uma forma de fé que vai “direito ao coração”. A fé torna-se, então, mais “carismática” no sentido amplo do termo. O fenómeno não deveria surpreender ninguém. Os Estados Unidos incarnam o poder dominante nos planos político, económico e militar. Este tipo de situação arrasta sempre consequências culturais. A Europa 98
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religioso na escola não levam, geralmente, a uma forma de conhecimento aprofundado. Os jovens presentes em Colónia não eram entusiastas, que se alegram em partilhar a sua fé e a sua alegria com os outros. De facto, a maioria dentre eles não tinham compreendido correctamente a análise teológica apresentada pelo papa. Simplesmente gostaram dela. Gostaram também do “amor do momento”, como escreveu a autora britânica Evelyn Waugh.
regras jurídicas gerais – e não tendo por objecto específico a religião – já existentes. Terceira tese: a religião tende a tornar-se um conceito. A religião “conceptual” acompanha a arte conceptual. A terceira tendência encontrada na sociedade europeia difere da anterior e, por vezes, opõe-se-lhe. Esta tendência assaz presente nos círculos políticos e intelectuais de primeiro plano, caracteriza-se por uma visão muito conceptual da religião. A religião torna-se então um conceito, uma ideia, cuja forma não depende de factores exteriores ao domínio religioso. Admitindo este ponto de vista, a ideia de Revelação não tem nenhum sentido. Nada pode ser revelado às pessoas, se isso não faz já parte delas, intrinsecamente, e da sua imaginação. A religião não resulta daquilo que Deus revelou, mas muito mais daquilo que as pessoas definem como religião. A religião acompanha a arte. Com efeito, também no domínio das artes os pontos de referência exteriores – tais como o conceito de beleza, ou as teorias e normas tradicionais que suportam a estética – tornaram-se, pelo menos suspeitos. No momento actual, a arte é aquilo que nós decidimos que o seja. A arte tornase convencional ou formal. Resulta de um acordo e de um processo de decisão humano. Ele existe por si mesmo e já não depende de critérios exteriores. Este fenómeno pode ou poderá ser encarado como uma vitória do poder humano – que, sob certo aspecto, é claramente desprovido de emoção. Contudo, empobrece a experiência humana. O controlo absoluto apa-
Em resumo, enquanto o papa procurava transmitir a sua análise de forma racional, numerosos membros da audiência gostaram muito do que sentiram emocionalmente como uma forma de linguagem religiosa codificada. Não compreenderam o sentido real do seu discurso, mas gostaram dele e apreciaram-no. Noutros termos, o papa queria apresentar a sua homilia de uma forma racional, enquanto que o público a entendeu de uma forma emocional. Será que esta nova tendência para com a religião na Europa Ocidental deveria ter consequências jurídicas? Parece claro que a liberdade religiosa permite a coexistência de uma versão racional e de uma versão emocional da religião. Apesar disso, devemos preocupar-nos com um ponto importante: uma abordagem mais emocional da religião pode, facilmente, conduzir a certas “características sectárias”. Prefiro usar a noção de “características sectárias” à noção dura e brutal de “seita”. As características sectárias não são inaceitáveis como tal, enquanto não estiverem ligadas a actividades ilegais como o recurso à força ou o atentado à liberdade física. Elas não necessitam da criação de novas leis, mas, acima de tudo, a aplicação de 99
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renta-se com uma forma de pobreza, com uma diminuição das capacidades humanas. Associa-se uma falta de abertura para o inesperado e talvez mesmo um ligeiro espírito pequeno burguês. Em primeiro lugar, os termos de arte conceptual e de religião conceptual soam bem. Contudo, é possível que escondam uma forma de decadência. Imaginemos um instante, que a noção de amor conceptual faça a sua aparição. Isso poderia ser tudo, menos amor, e esta ideia não apresenta nada de sedutor. Entretanto, encontram-se traços de religião conceptual um pouco por todo o lado. Acontece que as pessoas finas, muito qualificadas, ocupando postos importantes, praticam a feitiçaria ou participam nos rituais druídicos em Stonehenge ou em qualquer outro lugar. Alguns cultos religiosos têm uma abordagem geral conceptual: a cientologia, é disto um perfeito exemplo. Somos aqui confrontados com um estranho paradoxo: quanto mais a religião é humana e conceptual, mais ela desperta a desconfiança. A religião como realização conceptual ultrapassa as suspeições. A cientologia é confrontada com numerosos problemas jurídicos, em diversos países europeus. Poder-se-á perguntar se a religião conceptual está protegida pela lei da liberdade religiosa. A resposta é, sim. Colocando como condição para a fruição de uma liberdade religiosa colectiva, uma forma de revelação divina ou a existência de um Deus, infringe-se já a liberdade religiosa. As definições podem constituir um meio subtil de restringir a liberdade. Reconhece-se que alguns receiam ‑nas porque são pós‑modernos. Outros rejeitam-nas por melhores razões: porque as definições geram a discriminação.
Quarta tese: o regresso do cristianismo frágil Permitam-me que explique desde já a noção de cristianismo frágil ilustrando-a com um exemplo concreto. Em 2005, a realizadora francesa Coline Serreau rodou um filme intitulado “Saint-Jacques… La Mecque”. Nesse filme, nove personagens diferentes, representando, mais ou menos, a sociedade francesa no seu conjunto, empreendem uma peregrinação até Santiago de Compostela, em Espanha. O motivo da sua peregrinação não era, na verdade, religiosa. Fizeram-na com o objectivo de herdarem a fortuna da sua mãe. Esta exigência estava estipulada no seu testamento. Contudo, no decurso da peregrinação, as nove personagens, põem-se, pouco a pouco, em certos factos e conceitos da vida. Acabaram por concluir que todas as religiões são intermutáveis. Na realidade, nenhuma diferença real as separa. A ideia parece sedutora. Contudo, quando se olha para ela um pouco mais de perto, a aparente mensagem de tolerância não é tão neutra como parece. A noção de “tolerância” é utilizada por oposição aos valores muçulmanos patriarcais e discriminatórios. Por conseguinte, o filme luta por valores cristãos leves, sem um sentimento religioso real, sem uma fé concreta e, sem dúvida, sem nenhuma Igreja institucional. As instituições não são muito populares na maior parte dos países europeus. Esta abordagem é, provavelmente, emblemática de uma nova tendência em certos países da Europa Ocidental. É possível que as Igrejas tenham perdido muito da sua credibilidade, e que as pessoas tenham, também elas, perdido, em grande parte, a sua fé pessoal, mas uma forma de
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deduzir-se que o cristianismo pode servir de placebo para as pessoas fracas e pouco seguras de si mesmo. No plano jurídico, o cristianismo frágil, como forma de identidade cultural e religiosa, não deveria conduzir a um alargamento do conceito de ordem pública que se arrisca a limitar a liberdade religiosa. A mesquita Yavuz-Sultan, em Mannheime, é a maior mesquita construída Arriscar-se-ia, então, na Alemanha. Foto Immanuel Giel a que as actividades que se afastam do cristianismo frágil permanece, apesar cristianismo frágil sejam considede tudo, na base do sistema de valo- radas como incompatíveis com os res dominante. valores fundamentais da sociedade, Por momentos, este sistema de e, consequentemente, como ilegais. valores não está senão implícito, não Outra questão legítima: será que o passa de um elemento escondido da cristianismo frágil ameaça sempre, identidade europeia. Porém, logo que a liberdade religiosa dos outros, mais elementos de identidade escondidos do que o cristianismo forte? Por são confrontados com outros, incluin- exemplo, na Polónia, ou na Itália, do, bem entendido, o Islão, se tornam a Igreja Católica Romana procura, presentes e visíveis na Europa actual, o melhor que pode, influenciar o esses elementos concretizam-se. Por debate político. E que dizer da parvezes, esses “valores cristãos” sinais ticipação activa de grupos religioda identidade religiosa europeia, con- sos na discussão sobre o casamento duzem a paradoxos. Esse poderá ser homossexual civil (e portanto, não o caso do cristianismo frágil, evoca- religioso)? Não tenhamos dúvidas de do por Coline Serreau no seu filme: que este assunto será de novo objecto ela serve-se do conceito de “tolerân- de discussão nos próximos anos. cia” como de um instrumento para demonstrar uma certa tolerância para Quinta tese: a religião rompe os com a minoria muçulmana. O cristianismo frágil nem sem- laços com a ciência e abandona a pre está consciente dos seus propósi- discussão racional. Durante muito tempo, a eterna tos profundos e também não se inspira na sua própria tradição; e é aí que (mas por vezes implícita) discusestá o perigo. Muitas vezes reduz- são entre a religião e a ciência tem -se o cristianismo a um conjunto servido de impulso ao pensamento de valores petrificados. Baseando- filosófico assim como de motor para nos na primeira teoria exposta, pode o progresso social na Europa. Não 101
A identidade religiosa da Europa pós-moderna – tendências actuais
é este o caso dos nossos dias. Nos últimos anos, o debate entre ciência e religião tem sido um pouco negligenciado. Pode considerar-se este fenómeno de duas formas diferentes, uma positiva, outra negativa. Comecemos pela análise positiva: pode argumentar-se que hoje uma discussão viva entre a religião e a ciência já não é necessária. A ciência e a religião já não são rivais, uma vez que não se preocupam com as mesmas questões. Como a questão científica seria a primeira, ainda que porque a questão religiosa seria fundamental. As duas questões cobrem os mesmos domínios da existência humana; não há uma linha de demarcação entre a ciência e a religião sob esse ponto de vista. Contudo, mesmo se elas se atacam num terreno idêntico, as questões diferem: como, por oposição ao porquê. Eis a explicação positiva do enfraquecimento do diálogo entre a religião e a ciência. Não esqueçamos que uma análise mais negativa é igualmente possível. O declínio do diálogo assinala, talvez, uma degradação da religião. Para um bom número de europeus sérios, implícita ou implicitamente guiados por uma ideologia neoliberal, a religião não é tão importante que constitua um verdadeiro assunto de discussão na sociedade. Podemos exprimir este problema de uma maneira mais positiva: a religião é por de mais sagrada para ser incluída nas discussões científicas, políticas e concretas vulgares. Mas nos dois casos, o resultado é o mesmo, a saber, por um lado, a ausência de um diálogo real entre a ciência e a religião e, por outro lado, a supremacia da vida prática. O carácter sagrado dá origem a muitas manifestações de respeito e o respeito leva à exclusão.
O diálogo entre a religião e a ciência é muitas vezes substituído por aquilo a que se chama o diálogo inter-religioso. Muitos governos encorajam o diálogo inter-religioso, uma vez que ele desempenha um papel importante seja para a segurança quer para a elaboração de uma verdadeira sociedade multicultural. Contudo, apenas este conceito basta para ilustrar até que ponto a religião perdeu o seu estatuto. Ela não é senão um factor que se pode revelar determinante para a política governamental. Contudo, não desempenha o papel principal na descoberta da verdade. O inverso também é verdade: a noção de verdade pode constituir um obstáculo incómodo na busca de um diálogo inter-religioso construtivo. De certa forma, o diálogo inter ‑religioso permanece necessário. Contudo, alguns erram criando um falso dilema: por um lado, o diálogo entre a ciência e a religião; por outro, o diálogo inter-religioso. Uma falta de diálogo com a ciência poderá conduzir a Europa a interrogar-se, também ela, sobre o verdadeiro fundamento do ensino do darwinismo e do criacionismo, na escola, um problema que não se punha antes. Neste domínio, a Europa poderia, mais uma vez seguir os Estados Unidos. Nos Países Baixos, levantam-se já as primeiras questões sobre o criacionismo na escola. Isso poderá marcar o início de uma … evolução, uma vez que as ideias americanas chegam frequentemente à Europa através do Reino Unido, da Escandinávia ou dos Países Baixos. Conclusão Será que a religião está em crise, na Europa? Sem dúvida que sim. Ela tem estado sempre. Todavia, as
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novas tendências e formas de religião são igualmente um sinal de vigor e de vitalidade. A liberdade religiosa na Europa estará ameaçada? A liberdade está continuamente ameaçada. A liberdade religiosa representa uma forma de liberdade suprema. Como consequência, ela corre mais riscos que
outros direitos e liberdades. Contudo, ao descrever correctamente os riscos, contribui-se, desde logo, para procurar soluções. Importa estar vigilante. Vigilante na medida certa. Um excesso de pessimismo torna a vida triste. Um excesso de optimismo ameaça a liberdade.
*Exposição apresentada em Novembro de 2006, por ocasião de em encontro de especialistas em Sigüenza, Espanha. ** Professor na Universidade Católica e deão da Faculdade de Direito Canónico em Lovaina, Bélgica.
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A Laicidade, princípio valorizado da Convenção Europeia dos Direitos do Homem
Alain Garay*
O texto da Convenção da salvaguarda dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais, assinado em Roma a 4 de Novembro de 1950 e actualmente ratificado por quarenta e seis Estados, não faz nenhuma referência ao termo “laicidade 1”. O artigo dito “religioso” da aludida Convenção, o célebre artigo 9 referese unicamente: 1. ao “direito à liberdade de pensamento, de consciência e religião”; 2. à “liberdade de mudar de religião ou de convicção” e 3. à liberdade “de manifestar a sua religião e as suas convicções”. Numa relativa discrição e no plano internacional, a afirmação do princípio da laicidade como valor da sociedade democrática europeia foi, no entanto, posta pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (daqui por diante designado TEDH) no caso da dissolução do Rafah Partisi (Partido da Prosperidade), “partido político e religioso” turco, que se saldou por duas decisões pronunciadas a 31 de Julho de 2001 (IIIª Secção) e 13 de Fevereiro de 2003 (Plenário). Recordando a sua jurisprudência sobre o lugar que a religião ocupa
numa sociedade no seio de um Estado democrático, o Tribunal afirmou que “aplicando estes princípios no caso da Turquia, os órgãos da Convenção consideraram que a laicidade era seguramente um dos princípios fundadores do Estado que se ajusta com a preeminência do Direito e do respeito pelos direitos do Homem e da democracia. Qualquer atitude que não respeite este princípio não será necessariamente aceite como fazendo parte da liberdade de manifestar a sua religião e não beneficiará da protecção que o artigo 9 (§ 93) da Convenção assegura […]” (o sublinhado é nosso). Desta forma o Tribunal admitiu a posição das autoridades turcas quando, em 1988, tinham declarado dissolvido o Refah Partisi cujo dirigente, Necmettin Erbakan, se tinha tornado, em 1996, Primeiro Ministro 2. O TEDH considerou que a dissolução do Partido da Prosperidade, partido político do qual alguns dirigentes pronunciavam discursos políticos com conteúdo religioso e com tonalidade teocrática 3, se inscrevia na defesa da democracia. Esta medida
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O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
era justificada desde logo, porque “as possibilidades desse partido poder realizar o seu projecto político são reais e, portanto, constituem um perigo tangível e imediato para a ordem pública 4”. Logo, o TEDH não apresentou um libelo de respeitabilidade nem de honorabilidade à República turca, contentando-se em revelar a conformidade da dissolução e as suas modalidades com as exigências da Convenção Europeia 5. Desde a decisão fundadora Kokkinakis c/ Grécia de 25 de Maio de 1993 6, o contencioso da liberdade religiosa, na jurisprudência do TEDH, tornou-se cada vez mais importante 7. Por isso alguns pensam que “[…] o processo Refah Partisi marca, ostensivamente, um resultado para a laicidade como valor de uma sociedade democrática 8”. O Tribunal Europeu, ao dar-se conta da “importância do princípio da laicidade no sistema democrático turco”, assegurou-lhe, desse forma, uma consagração jurisprudencial que ultrapassa o contexto constitucional
turco 9 em referência: 1. à preeminência do Direito; 2. ao respeito pelos direitos do Homem e de democracia 10. Para além dos contextos nacionais e da polissemia-polimorfia desta noção histórica, a laicidade, sob a acção 11 insistente do TEDH , adquiriu o estatuto contencioso do valor europeu, protector do Estado de Direito (I), situação que se tornou possível por causa da dimensão identitária previsível (II). I. o estatuto contencioso da laicidade, valor protector do Estado de Direito. 1. A laicidade, entendida pelo juiz europeu, referência protectora. a) Regresso sob a invocação de laicidade constitucional pelas autoridades turcas. Ao dedicar-se a verificar se as modalidades da dissolução do partido político eram “previstas pela lei” turca “orientadas na direcção ou fins legítimos” e “necessárias numa sociedade democrática”, o TEDH respondeu, expressamente, à invocação in abstracto do princípio da laicidade pelas autoridades turcas. De imediato, o governo turco tinha feito observar in abstracto ao Tribunal que “o princípio da laicidade é uma condição preliminar de uma democracia pluralista e liberal. Um Estado que adere ao princípio da laicidade é uma comunidade política que recusa organizar a sociedade segundo os princípios religiosos […] O governo fez, igualmente, valer que certas condições tornam o princípio da laicidade particularmente importante para a Turquia relativamente às
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outras democracias. Convém notar que a República da Turquia está fundada sobre um processo revolucionário que transformou um Estado teocrático num Estado laico e que as tendências reaccionárias islâmicas ainda nos nossos dias constituem um perigo actual” (§ 58, decisão de 31 de Julho de 2001) 21. Agarrando-se à invocação do princípio da laicidade 13 e ao facto de que as duas partes concordaram com a “salvaguarda da laicidade […] necessária à protecção do sistema democrático na Turquia”, o Tribunal Europeu precisava, no entanto, que “não concordavam no conteúdo, na interpretação e na aplicação do princípio da laicidade que não foi necessariamente objecto de acordo entre as partes” (§ 64, decisão de 31 de Julho de 2001). Dessa forma, esta ausência de acordo sobre “a laicidade” arrastou o exercício das diligências judiciais para o Procurador Geral do Supremo Tribunal turco. A invocação do princípio da laicidade encaminhou-se para o contencioso como medida de dissolução 14. O TEDH examinando assim os meios de dissolução provando que o Rafah Partisi “infringia o princípio da laicidade” classificouos em três grupos: 1. A instauração de um sistema multi-jurídico instituindo uma discriminação baseada nas crenças: 2. a aplicação desejada da Charia pela comunidade muçulmana; 3. as referências feitas pelos membros da Rafah Partisi à djihad, a guerra santa, como método político. No fim do seu exame jurisdicional, a IIIª secção do Tribunal Europeu estimou aquilo que o Plenário confirmava em 2003, que “[…] a sanção aplicada aos requerentes poder ser, razoavelmente, considerada como respondendo a uma ‘necessidade
social imperiosa’, na medida em que os responsáveis do Refah Partisi, sob o pretexto de que dariam um conteúdo diferente ao princípio da laicidade, tinham declarado ter a intenção de estabelecer um regime multi-jurídico e de instaurar a lei islâmica (a Charia) […]” (§ 80, decisão de 31 de Julho de 2001). b) A laicidade, um princípio de ordem pública europeia. Foi de forma completamente excepcional que os órgãos judiciais do Conselho da Europa fizeram referência ao princípio da laicidade para justificar as restrições a certas formas de manifestações religiosas 15 . Historicamente, a jurisprudência estrasburguiana, perante factos religiosos, encheu-se de prudência e de moderação no estrito exame dos factos e do Direito, evitando recorrer ao princípio da laicidade. O professor François Flauss também observou: “Se a liberdade de religião constitui um dos fundamentos de uma sociedade democrática no sentido da Convenção, o Tribunal não pode, por conseguinte, cair numa política jurisprudencial baseada numa concepção hipertrofiada da liberdade de religião […] Optando por um controlo europeu de baixo perfil, o Tribunal entende, à evidência, não se envolver numa política jurisprudencial que se arrisque a maltratar as opções constitucionais ou/e legislativas mantidas pelos Estados, em matéria do exercício da liberdade religiosa 16”. As duas decisões Refah Partisi do Plenário decidiram assim que o “princípio da laicidade” constitui um valor da sociedade democrática enquanto: 1. parâmetro de emancipação da tutela religiosa sobre o Estado e a Nação, mas igualmente, 2. factor de libertação dos regimes teológicos,
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do fundamentalismo ou do integrismo religioso. Para o Tribunal, é um valor e um princípio relevante da Convenção europeia, e, de facto, parte integrante da ordem pública europeia dos direitos do Homem. Com toda a evidência, a política jurisprudencial do TEDH, em meias tintas, reflecte, incontestavelmente, a procura de um equilíbrio cada vez mais difícil de conseguir diante de aspirações contraditórias, de tensões conflituosas exacerbadas no seio dos próprios grupos religiosos, de crises sobre os valores comuns, de um défice de práticas democráticas no seio de grupos religiosos que projectam os seus comportamentos e os apresentam sob a forma de “teocracias anunciadas”. Confrontado com as sobrecargas “culturalistas”, o TEDH continua a construir a sua jurisprudência neutralizando questões de uma grande complexidade (por exemplo, evitando definir um estatuto religioso europeu uniforme), tentando encontrar soluções jurisprudenciais equilibradas perante graves violações dos direitos fundamentais. A decisão Refah Partisi de 31 de Julho de 2001 expõe ao fogo da crítica universitária (Gilles Lebreton 17, Jean-Pierre Marguénaud 18 e Jacques Raynard , Christian Moe e Élizabeth Mayer 19) deu uma contribuição tanto mais importante quanto “o “integrismo religioso” e os discursos e representações sobre esse assunto inquietam e exasperam aqueles que cuidam para que não se dê a instrumentalização das democracias submetidas à “ditadura do medo” pelas ideologias da morte e do pensamento 20. Invocando in abstracto o princípio da laicidade, o TEDH apela para um marcado sobressalto democrático, e das suas formas contemporâneas: procedimentos do Estado
de Direito, respeito pelas formas do Direito, neutralidade dos Estados e dos responsáveis políticos do ponto de vista da convicção, homenagem à história laica de alguns Estados (aqui a Turquia) quanto ao modo de diferenciação das esferas do Estado e da religião. Em pleno contencioso da dissolução de certos partidos políticos turcos, o TEDH optou, voluntariamente, por uma política jurisprudencial e acantonamento das derivas religiosas sejam elas quais forem. Nesta ocasião, o Plenário consagrou a extensão da noção de ordem pública europeia compreendendo os valores e princípios da Convenção europeia, oponível à dos julgamentos de valor baseados nas normas religiosas discriminantes. Para o TEDH, o estatuto pessoal dos indivíduos mesmo “religiosos” termina onde começa a ordem pública europeia dos princípios e valores consagrados, sob o seu controlo, pela Convenção. Esta vontade jurisdicional incarna de uma certa forma a supremacia do “político” sobre o “religioso” a partir do momento em que o “religioso”, ferramenta de uma “política”, se torna num cavalo de Tróia ameaçando os valores e princípios comuns da “Casa Europa” e da visão europeia. O direito à diferença e o estatuto pessoal religioso não podem desde logo ser invocados utilmente para satisfazer, segundo a expressão de François Flauss, “o conforto pessoal” de certos requerentes em Estrasburgo. 2. A “laicidade contenciosa”, garante da liberdade no Estado de Direito: o caso do enquadramento limitativo e controlo de expressão do fundamentalismo religioso. Para uma boa compreensão do estatuto contencioso da laicidade, é necessário aqui ter em atenção
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a abordagem feita pelo Tribunal Europeu nos dois outros casos. Com efeito, com duas decisões – Zaoui contra a Suíça, de 18 de Janeiro de 2001 e Müslüm Gündüz contra a Turquia, de 4 de Dezembro de 2003 – o TEDH exerceu o seu controlo sobre a validade das sanções nacionais que atentavam contra a liberdade de expressão dos crentes. Na decisão de inadmissibilidade apresentada contra Ahmed Zaoui, respeitante ao pedido de asilo político deste argelino na Suíça, o Tribunal rejeitou as pretensões deste antigo membro do Conselho Consultivo Nacional da Frente Islâmica da Salvação (FIS) que tinha publicado três comunicados de propaganda do Conselho de Coordenação no Estrangeiro do FIS (CCFIL). Anteriormente, o interessado tinha sido condenado na Bélgica a uma pena de prisão com pena suspensa, por associação de malfeitores. Na Suíça, o Conselho Federal tinha decidido a 27 de Abril de 1998, interditar a criação de organizações que, pela sua propaganda, apoiassem a acção violenta na Argélia. Tinha ordenado também a apreensão pela polícia dos telecopiadores e o bloqueio dos seus registos electrónicos do acesso à Internete. A. Zaoui queixou-se perante o TEDH da decisão de apreensão policial alegando ser um entrave à liberdade de religião e uma violação do seu direito à liberdade de expressão. Em vão. De imediato, o Tribunal observou que “as actividades do requerente visavam principalmente difundir mensagens de propaganda a favor da FIS e não constituíam a expressão de uma convicção religiosa no sentido do artigo 9 da Convenção […] Tendo em conta o contexto no qual o requerente deixou a Argélia, onde tinha sido condenado à morte por contumácia, na sua
actividade ligada à oposição islâmica, da sua condenação na Bélgica […] das razões da sua permanência e das suas acções na Suíça, a apreensão dos meios de comunicação com o fim de impedir a sua propaganda para o CCFIS pode ser justificada como necessária, numa sociedade democrática, para a segurança nacional e a segurança pública”. Na sua decisão no caso Gündüz, o TEDH interessou-se após uma série de declarações públicas – no quadro de uma emissão televisiva com carácter polémico – feitas pelo interessado, dirigente de uma comunidade muçulmana designada Tarikat Aczmendi, grupo que se qualifica de “seita islâmica”. Gündüz tinha classificado as instituições contemporâneas e laicas de “ímpias” criticando violentamente as noções de democracia e de laicidade e militando abertamente pela Charia. Estas propostas foram sancionadas pelo Tribunal de segurança do Estado turco, desde logo porque elas constituíam um incitamento ao ódio e à hostilidade sobre a base de uma distinção baseada na pertença a uma religião. O interessado queixou-se perante o TEDH de uma ingerência injustificada na sua liberdade de expressão. Para o Tribunal, no quadro de uma emissão com formato polémico, baseada em declarações orais em directo, as propostas de Gündüz, em questão “denotam uma atitude intransigente e um descontentamento profundo face às instituições contemporâneas da Turquia, tais como o princípio da laicidade e da democracia. Examinadas no seu contexto, não podem, no entanto, passar por um apelo à violência nem por um discurso de ódio baseado na intolerância religiosa […] (§ 48,49). O Tribunal recorda que nas
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suas decisões Refah Partisi contra a Turquia, sublinhou especificamente que era difícil declarar-se, ao mesmo tempo, respeitador da democracia e dos direitos do Homem e manter um regime baseado na Charia. Todavia recordou que o caso Refah Partisi e outros já citados sobre a dissolução de um partido político com uma acção semelhante visando a instauração da Charia num Estado pertencente à Convenção e que dispunha, na data da sua dissolução, de um real potencial de se apoderar do poder político. Uma tal situação é dificilmente comparável àquela em espécie. Sem dúvida, não há qualquer dúvida tanto como a outra proposta dirigida contra os valores que sustentam a Convenção, expressões visando propagar, incitar ou justificar o ódio baseado na intolerância, incluindo a intolerância religiosa, não beneficia da protecção do artigo 10 da Convenção. No entanto, no parecer do Tribunal, o simples facto de defender a Charia sem apelar à violência para a estabelecer, não passaria por um “discurso de ódio”. De resto, o caso de M. Gündüz situa ‑se num contexto muito particular: à partida, a emissão televisiva tinha como objectivo apresentar a seita de que o requerente era dirigente; depois, as ideias extremistas deste último já eram conhecidas e tinham sido debatidas em público e, inclusivamente contrabalançadas pela intervenção de outros participantes no decurso da emissão em questão; por fim, elas foram expressas no quadro de um debate pluralista no qual o interessado participou activamente. Desde logo, o Tribunal considera que no caso, a necessidade da restrição litigiosa, não se encontra estabelecida de forma convincente” (§51). Por fim, o Tribunal conside-
rou que o atentado contra o direito à liberdade de expressão apresentado pelo requerente não se baseava em motivos suficientes, perante o artigo 10, que protege e garante o direito à liberdade de expressão (não há dúvida de que neste caso as seis vozes contra uma que decidiram que houve violação, pela Turquia do artigo 10 – ver a opinião dissidente do juiz Türmen – concederam ao contexto mediático televisivo um carácter determinante). A rapidez da tomada de decisão, o seu carácter exclusivamente oral, o formato polémico da emissão televisiva, a ausência de explicação sobre a forma de concretizar as suas intenções verbais puderam constituir factos justificativos para as propostas excessivas do dirigente muçulmano. (Esta lógica exoneratória de responsabilidade está, de certa forma, conforme com as modalidades processuais do direito da imprensa, fortemente marcado por questões de forma). II. A “laicidade cultural” valor identitário do Estado de Direito na Europa.
1. A laicidade cultural, valor europeu comum. a) A expressão de um fundo comum democrático europeu.
Embora o debate político e público pareça, no início dos anos 2000, focalizar-se na Europa sobre a referência das raízes ou patrimónios religiosos, espirituais, cristãos, etc., no texto do tratado que estabelece uma Constituição para a Europa, o TEDH não hesita em consagrar com insistência e solenidade a laicidade como um valor europeu 21. A uma certa mobilização do Vaticano sobre a referência religiosa no texto “constitucional” em preparação em
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Bruxelas 22, a insistência laica do TEDH em Estrasburgo, não tem encontrado um eco semelhante. Esta diferença é reveladora das convergências em torno de uma laicidade dita “cultural” europeia, expressão de um “terreno comum europeu não apenas de valores (éticos) mas também de princípios” 23. Jean-Paul Willaime foi um dos primeiros a ter descrito, em termos, antes de mais, sociológicos, esta dinâmica continental de fim do religioso como poder e autoridade absoluta que torna possível o novo arranjo do seu papel pluralista liberto da tutela dos clérigos 24. Este especialista explica que na Europa ocidental, em todo o caso “[…] uma certa laicidade tornou-se num bem comum. Não uma laicidade na forma como se tem traduzido no plano institucional em França, mas uma laicidade cultural, que faz com que Émile Poulat, muito justamente, diga: ‘Todos nós somos laicos’, no sentido em que vivemos hoje ‘numa sociedade, sob um governo que renunciou a encontrar o seu fundamento e o seu garante em Deus, numa transcendência religiosa, e que se remete a um contrato entre os seus membros: a afirmação dos direitos fundamentais para todos e uma Constituição escrita’” (2004, p. 46). Se os modelos de relação entre as Igrejas e os Estados, os quadros constitucionais, os regimes legais e administrativos permanecem distintos nos planos nacionais, a garantia formal dos direitos fundamentais que os tornam praticáveis foi objecto, na Europa, de uma certa convergência. Na Europa, estes direitos fundamentais resultam de uma dinâmica comum, política e cultural, qualificada de “laica”, baseada na separação entre o sagrado e o profano, o espiritual e o temporal, o religioso e o político, conjunto que traduz e profunda desclericalização
contemporânea. Assim descrita, a dinâmica laica não é apenas a situação francesa 25. A Comissão nacional consultiva dos direitos do Homem sublinha assim que “[…] a imagem de uma França ilhota de laicidade num oceano clerical, deriva da caricatura criada pela ignorância do estrangeiro 26”. Jean-Paul Willaime descreve assim as características laicas susceptíveis de incarnar em diversos regimes nacionais dos cultos religiosos: “neutralidade confessional do Estado e do poder público, reconhecimento da liberdade religiosa (incluindo a liberdade da não religião), reconhecimento da autonomia da consciência individual (liberdade pessoal do homem e da mulher em relação a todos os poderes religiosos e filosóficos), reflexão crítica aplicada a todos os domínios (religião, política, ciência […] 27. Por seu lado, tratando-se da “laicidade cultural”, a Comissão nacional consultiva dos direitos do Homem emana uma série de princípios e de garantias comuns a todos os Estados membros da União Europeia: 1. as garantias da liberdade de consciência; 2. as da livre expressão religiosa incluindo no espaço público (e particularmente, da liberdade dos cultos); 3. a igualdade entre crentes e não crentes; 4. a igualdade entre crentes de diferentes cultos, a igualdade (numa medida forte mas nem sempre integral) entre cultos; 5. a neutralidade (com a mesma nuance) do Estado em relação ao financiamento dos cultos […] 28”. A abordagem em termos de laicidade cultural apresenta o escolho recorrente da polissemia e da polimorfia da noção de laicidade. Acolhem-se bem características que não se recortam e se completam segundo grelhas de leituras variá-
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veis. A sua dimensão volátil é de ordem simbólica e identitária. Se ela parece representar actualmente o denominador comum de processo de europeização das identidades religiosas no espaço público, a sua vocação a tornar-se uma “alma para a Europa” não é adquirida nem definitiva tanto que continuam a predominar, actualmente, as soluções nacionais muitas vezes desligadas do etos europeu, fundado sobre o respeito do Estado de direito e da democracia. Ora o ultrapassar dos quadros e dos regimes nacionais das relações entre as Igrejas e os Estados é uma condição de emergência da laicidade cultural. b) A ultrapassagem dos quadros nacionais das relações Igreja ‑Estado condição da laicidade cultural europeia. A referência, in abstracto, do TEDH ao princípio da laicidade convida a transcender modelos jurídicos nacionais que revelem um profundo fosso cultural a despeito da sua aparente vizinhança. As diferentes análises relativas ao lugar das religiões na Europa 29 têm como principal defeito o interessar-se, quase exclusivamente, pelas relações Igreja-Estado, separando, de facto, por um lado, a dinâmica da integração da jurisprudência do TEDH e, por outro, minimizando os efeitos jurídicos dos comportamentos e das práticas religiosas no seio da sociedade civil, objecto de eventuais controlos judiciais nacionais sujeitos à Convenção Europeia. Esta escolha de apresentação concede assim o primado à análise comparada entre situações nacionais e/ou estática 30. Ela retira a dimensão individual e interpessoal dos comportamentos e das práticas religiosas, que é, contudo a fonte das tensões, por baixo, que podem exprimir, por cima, as instituições
religiosas. Estas representações, em termos de Direito Comparado e o tropismo franco-francês sobre a laicidade, concebido à priori como um valor de exportação, expõe-se aos rigores contenciosos. A 11ª declaração anexa ao Tratado de Amesterdão enuncia que “a União Europeia respeita e não julga o estatuto de que as Igrejas e as associações ou comunidades religiosas nos Estados membros beneficiam, em virtude do Direito Nacional. A União Europeia respeita igualmente, o estatuto das organizações filosóficas e não confessionais 32”. Será que esta posição atenta e conservadora, constitui um travão à emancipação de uma verdadeira laicidade europeia, baseada hoje, unicamente sobre os valores e não sobre um quadro jurídico determinado? O diálogo dos juízes nacionais e europeus fará evoluir esta situação condensada de um ponto de vista constitucional e institucional? Assim, em França, o procedimento do controlo da conformidade do tratado estabelecendo uma Constituição para a Europa levou, a 19 de Novembro de 2004, o Conselho Constitucional a examinar a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia vigorando no dito tratado 33. O juiz constitucional verificou se o artigo II-70 do tratado era contrário ao princípio constitucional da laicidade. Este artigo prevê o direito de cada um, individualmente, se manifestar, através de práticas, a sua convicção religiosa em público. Para o Conselho constitucional, “Em vez de ser limitado, este direito seria contrário ao princípio constitucional da laicidade”. Mas tendo especialmente em conta a jurisprudência do TEDH que “atribuiu valor ao princípio da laicidade” e das restrições impostas e respeitadas pelas legisla-
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ções nacionais, o Conselho deduziu que o artigo II-70 não é contrário ao princípio da laicidade. 2. A invocação da laicidade cultural, “sob vigilância”. a) A referência à “laicidade”, condição suficiente da preservação dos valores europeus? A Comissão Nacional Consultiva dos Direitos do Homem concedeu à “laicidade cultural europeia” um suficiente, não hesitando em afirmar: “por outras palavras, os atentados à liberdade de consciência e de culto são raríssimos na União Europeia e as discriminações religiosas, excepcionais 34”. Esta maneira de descrever a realidade sob a forma triunfalista, despida de toda a referência documentada e objectiva, não deve fazer a economia de uma diligência em termos de medida da efectividade do princípio da laicidade 35. Assim, “a laicidade à francesa” vista de Estrasburgo, e sob o olhar do Relator Especial das Nações Unidas sobre a liberdade de convicção mas também do OSCE (Bureau das Instituições Democráticas e dos Direitos do Homem), não está de forma alguma, ao abrigo das sanções internacionais ou banco de ensaio da sua conformidade com a Convenção Europeia. Lembremos aqui apenas uma situação. O caso, dito da União dos Ateus, que a 6 de Julho de 1994 deu lugar à adopção de um relatório da Comissão Europeia, saldou-se por uma constatação da violação da liberdade de associação e de tratamento discriminatório 37. O requerimento inicial visava a interdição notificada à associação União dos Ateus, que tinha como objectivo estatutário “o agrupamento de todos aqueles que consideram Deus como um mito”, beneficiar da autorização da Prefeitura de receber um legado 112
de 2000 francos, quando duas outras associações (União Racionalista e Círculo Ernest Renan) pudessem, beneficiar de uma tal autorização. Depois de ter realçado com pertinência que “uma das principais distinções operadas pelo Direito francês relativa às associações reside na possibilidade, concedida a uns e recusada a outros, de receber a título gratuito”, a Comissão Europeia não encontrou “nenhuma justificação objectiva e razoável para manter um sistema que desfavorecia a um tal grau as associações não cultuais”. Notou ainda que “a requerente tinha como objectivo reagrupar todos os que consideram Deus como um mito. Admite que tal atitude não parece, numa primeira abordagem, de natureza a qualificá-la como associação cultual. A requerente não faz, todavia, senão exprimir uma certa concepção metafísica do homem, que condiciona a sua percepção do mundo e justifica a sua acção. Assim, para a Comissão, o teor filosófico, por certo fundamentalmente diferente num e noutro caso, não parece um argumento suficiente para distinguir o ateísmo de um culto religioso no sentido clássico e servir de fundamento a um estatuto jurídico também diferente.” O epílogo deste caso colocou em evidência as insuficiências do regime jurídico e fiscal das associações assim como “as ambiguidades do princípio da separação das Igrejas e do Estado 38 39 40”. Os defensores da “laicidade à francesa” consideram que “é no Estado laico que as religiões como os espiritualistas sem deus estão mais livres de se exprimir, sem que nenhum privilégio concedido a um deles, não venha comprometer a sua igualdade de princípio […] Com a laicidade, evita-se a guerra dos deuses, erradica-se toda a discrimi-
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nação entre as opções espirituais 41”. Perante esta percepção ideológica do regime político, da separação das Igrejas e do Estado, as medidas administrativas, especialmente as fiscais, tocam o rebate de uma prática desigual da laicidade 42. O caso União dos Ateus ilustra como o discurso sobre a laicidade igualitária é invocatória, na falta de uma renovação da prática administrativa em matéria de liberdade de consciência e da liberdade de culto. Aqui, a ideologia pára, onde os factos jurídicos se impõem. b) A judiscialização do princípio da laicidade, condição de protecção do Estado de Direito e da democracia. A referência aos direitos e garantias mas igualmente aos limites fixados pela ordem pública europeia permanecem sob o controlo jurisdicional e a interpretação jurisprudencial do TEDH 43. “A ordem pública europeia 44” incarna, deste ponto de vista, não apenas o quadro jurídico do exercício das liberdades e das obrigações às quais os crentes se apegam, mas igualmente os valores comuns fundamentais que figuram no preâmbulo da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, donde o fortalecimento da democracia e do Estado de Direito 45. É necessário estudar estes desenvolvimentos 46 para compreender melhor a dinâmica europeia dos direitos do Homem que não se resume senão a simples declarações de intenção, apesar de numerosas decisões tomadas pelo TEDH nos contenciosos relativos ao exercício das actividades religiosas (principalmente “turcas, búlgaras e gregas”), formando assim, uma verdadeira jurisprudência europeia 47. Logo à partida é necessário precisar que os direitos e garantias nas
diferentes declarações e textos internacionais de protecção dos direitos do Homem não têm o sentido teórico senão no seu exercício individual e individualista 48. Mas a liberdade de manifestar a sua religião, nos termos do artigo 9 do TEDH é também a do grupo, desde que ela dependa de exercícios que podem ser organizados seja a sós ou em comum, seja individual ou colectivamente 49. (Os juristas interessam-se, desta maneira, com o exercício dos “direitos do grupo”, desde que, mesmo de essência individualista, os direitos das pessoas, condição dos direitos do Homem, actuem sobre colectivos ou grupos de indivíduos 50.) A garantia europeia da liberdade de religião, tal como está fixada explicitamente no artigo 9 do TEDH, repousa sobre esta dialéctica de protecção do “grupo” religioso no que respeita à expressão das convicções e das práticas individuais exercidas “colectivamente, em público ou privado”. De sorte que para Geneviève Koubi, “os direitos colectivos são direitos individuais exercidos em comum com outros, direitos individuais exercidos colectivamente […] esta distinção obriga a travar as derivas culturalistas, diferencialistas, essencialistas de numerosos discursos actuais 51”. A recusa da hegemonia do direito dos grupos, em nome da universalidade dos direitos do Homem, sejam quais forem as suas origens e a sua pertença, explica a rejeição inicial pelas instâncias judiciais europeias, dos requerimentos apresentados pelos grupos. Mas, progressivamente, era inevitável que o Tribunal tomasse em consideração a religião como um facto colectivo e social. Na prática, o recurso ao processo judicial europeu obriga os crentes e os seus grupos a que pertencem, a
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fazer a escolha das regras de organização e de funcionamentodemocrático suficientemente transparentes e legíveis para que o controlo jurisdicional seja efectivo. Com efeito, o TEDH, como qualquer outra jurisdição, não se satisfaz, nem ao recurso encantatório aos grandes princípios nem com discursos suaves mas inoperantes em termos de victimologia ou de jeremiadas! A abordagem pragmática do TEDH traduz uma exigência de racionalidade que arquiva milhares de requerimentos depositados em Estrasburgo não apresentando nenhuma prova, nenhum meio de facto ou de direito. Assim, o poder de atracção do TEDH pode preencher uma função a montante da “estruturação” e coloca em ordem reivindicações conforme as garantias democráticas que elas próprias devem respeitar, condição sine qua non da receptividade aos seus requerimentos (qualidade e interesse em agir, etc.) A técnica do recurso aos instrumentos da Convenção Europeia explica parcialmente o défice de conhecimento e de reconhecimento da jurisprudência do TEDH 52. Ora, a dinâmica da integração europeia, portadora da jurisprudência do TEDH, insufla valores comuns que têm também uma função pedagógica. Esta dinâmica deve ser explicada e ensinada. Ela forma o espírito crítico e a racionalização, podem travar todo o integrismo. A aprendizagem destes valores comuns pelo prisma da jurisprudência europeia, e não apenas pela da “ideologia da secularização 53”, é susceptível de limitar as visões de todos os crentes baseados no exclusivismo religioso. A pedagogia dos direitos do Homem permite, também, colocar em perspectiva o discurso baseado sobre a antinomia de princípio entre grupo religioso
e Estado de Direito, democrático, direitos do Homem 54. Em contrapartida, parece adquirido o enriquecimento democrático, mesmo frágil, baseado na “sedimentação jurisprudencial” constituído pelo desenvolvimento recente do contencioso dos “direitos do Homem religioso”, dos quais se assinala a importante contribuição dos “assuntos muçulmanos”. O apelo ao juiz europeu pelos muçulmanos contribui, dessa forma, para a edificação e a consolidação do espaço democrático continental – a Europa do Conselho da Europa e da União Europeia – mas igualmente para a promoção e o apoio dos valores contemporâneos no que eles têm de sui generis um modelo de desenvolvimento político universal baseado no equilíbrio das nações, a paz e a tolerância. Esta contribuição dos muçulmanos está à altura do seu nível de integração social, reflecte a confiança no Estado de Direito, para com o seu grau de aceitabilidade das regras da vida em sociedade europeia. Conclusão A europeização da laicidade que não passava da “faca e do queijo” francesa 55, surgiu, neste início do século XXI onde não se esperava, ao apelo dos princípios europeus. Tornando-se europeia, a laicidade traduz uma reformulação constante metamorfoseando-se aqui em França, depois na Turquia, sob o controlo do Tribunal Europeu. Nunca tão convocado como quando se pôs a questão identitária na sociedade democrática em construção – em 1946 com a Constituição da IV República, e em 2000 no seio do Conselho da Europa – ela virou as costas aos intermináveis debates sobre o seu passado e a sua
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polémica definição 56. Futurista, está na vanguarda dos debates sobre a construção democrática, sinal da sua modernidade simbólica e mítica. A sua consagração inesperada na jurisprudência europeia, é reveladora desta modernidade e da sua eficácia. A europeização da laicidade convida a uma “nova gestão jurídica” da religião na Europa 57? O “direito europeu da laicidade” por essência evolutivo, permanece irrigado por numerosas fontes e confrontado com numerosos desafios 58. Tratando-se de factos religiosos, a concepção evolutiva da Convenção Europeia dos Direitos do Homem continua a ter o cunho do Tribunal Europeu, de que a primeira decisão tomada em matéria de liberdade de religião em 25 de Maio de 1993, no caso Minos Kokkinakis contra a Grécia precisa que “a liberdade de pensamento, de consciência e de religião representa um dos fundamentos de uma sociedade democrática no sentido da Convenção. Ela figura, na sua dimensão religiosa, entre os elementos mais essenciais da identidade dos crentes e da sua concepção de vida, mas é também um bem precioso para os ateus, os agnósticos, os cépticos ou os indiferentes. Isso resulta do pluralismo – custosamente adquirido no decur-
so dos séculos – consubstancial à mesma sociedade 59”.
Hoje, no momento em que milhões de crentes e de não crentes residem conjuntamente na Europa, que o debate político sobre a abertura de negociações sobre a adesão da Turquia está em curso “numa Europa” de vinte e cinco estados membros “mais católica”, que o espectro do fundamentalismo, do integrismo, do fanatismo, do comunitarismo islâmicos é mantido, que o termo “islamofobia” suscita uma disputa sobre o seu conteúdo 60, surgem numerosas interrogações. E no momento em que a identidade religiosa permanece um dos dados fundamentais europeus 61, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem prossegue incansavelmente a sua tarefa de melhorar procedimentos de consolidação e de protecção dos direitos do Homem 62.
A internacionalização 63 e o apelo à resolução judicial das tensões suscitadas pelo exercício das convicções religiosas colocam a Europa, “espaço mental do cosmopolitismo 64”, “numa encruzilhada 66”. Uma oportunidade para a modernidade democrática? Mais do que nunca, é necessário saber continuar o diálogo dos juízes nacionais e europeus, submetidos às tensões da sociedade europeia em busca de identidade.
* Advogado em Paris Notas 1. A 1 de Julho de 2005, uma consulta electrónica da expressão “Laïcité et Europe” num motor de busca da sociedade Google, apresentou 271 000 páginas em língua francesa. A consulta apoiada em “Laicïté et Cour européenne des droits de l’homme” apresentou 18 400 páginas em língua francesa… No mesmo dia, um funcionário da National Library do Congresso americano em Washington, surpreendeu o autor destas linhas ao realizar pesquisas sobre o assunto, exclamou espantado, com demonstrações de sinceridade: “But, do you have religious freedom in France?” (Mas vocês têm liberdade religiosa em França?) … 115
A laicidade, princípio valorizado da Convenção Europeia dos Direitos do Homem 2. Ler: “La Cour européenne des droits de l’homme et les organisations antidémocratiques», Observações de Stefan Sottiaux e Dajo de Prins sobre a decisão do TEDH de 31 de Julho de 2001, RTDH, 2002, p. 983-1034; Gilles Lebreton, «L’Islam devant la Cour européenne des droits de l’homme «, in Ver. Dr. Publ., nº 5-2002, p. 1493-1510; Alain Garay «L’Islam et l’ordre public européen vus par la Cour européenne des droits de l’homme « in Revue de droit international et le droit compare, Bruxelas, 2005, p. 117-155. 3. De acordo com o Tribunal Europeu, o Partido da Prosperidade queria instaurar um verdadeiro sistema «multi-jurídico» (com a promoção de estatuto pessoal muçulmano) aplicar a Charai à comunidade nacional e recorrer à violência, à guerra santa, para assegurar o domínio total da religião muçulmana sobre a sociedade. 4. Observações sobre a decisão de Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 31 de Julgo de 2001, Stefan Sottaux e Dajo de Prins, op. cit., p. 1034. Assinalamos a crítica severa desta decisão pelo deão Lebreton: “A decisão Refah Partisi deixa portanto uma curiosa impressão, misturando uma viva admiração por uma atitude politicamente corajosa que dará sólidos argumentos aos Estados confrontados com a ameaça do fundamentalismo islâmico e uma certa irritação pela ambiguidade ou a imprecisão dos argumentos jurídicos citados.” 5. S. Akdag, La Turquie devant la Cour européenne des droits de l’homme, tese de doutoramento Univ. Aix-Marseille III, Dez. 2002; Sophie Bessis e Elin Wrzoncki, La Turquie à la croisée des chemins, FIDH, Paris, 2005. 6. TEDH 25 de Maio de 1993, Kokkinakis c/ Grécia, RFDA 1995, p. 573, nota de Hélène Surrel. Ver igualmente François Rigaux, L’incrimination du prosélitysme face à la liberte d’expression, RTDH, 1994, p. 141-160; Alain Garay, Liberté religieuse et prosélitysme: l’expérience européenne, RTDH, 1994, p. 7-29. 7. Ver os trabalhos de Gérad Gonzalez na sua obra La Convention européenne des droits de l’homme et la liberté de religion. Économica, 1997, 309 páginas. Onde se reporta utilmente às Actas dos colóquios organizados pelo Consórcio Europeu para a relações Igreja-Estado (Giuffré Editore, Milão Itália), mas também aos trabalhos publicados na Collection Droit et Religion, sob a direcção de Blandine Chelini-Pont nas Presses universitaires d’Aix-Marsseille (“Religions, droit et sociétés dans l’Europe communautaire”, 2000; “Etats, religions et liberté religieuse en Méditerranée”, 2001; “Quelle ‘polítique réligieuse’ en Europe e Méditerranée?”, 2004). Ver igualmente as Actas do seminário organizado de 12 a 14 de Novembro de 1992 um Leiden pelo Conselho da Europa sobre o tema “Liberté de Conscience”, Edições do Conselho da Europa, Estrasburgo, 1993. 8. Jean-François Flauss, “Actualité de la convention européenne des droits de l’homme (oct. 2002 – févr. 2003)», AJDA 2003, p. 160. Michel Levinet, «L’incompatibilité entre l’État théocratique et la convention européenne des droits de l’homme», RFD constitucional, 57, 2004, p. 205-221. 9. O artigo 2 da Constituição turca dispõe que «A República da Turquia é um Estado de Direito democrático, laico e social […]”. O Tribunal precisa: “Tendo em conta o princípio da laicidade para o regime democrático da Turquia, considera que a dissolução do Refah Partisi perseguia diversos fins legítimos enumerados no artigo 11 de Convenção Europeia: a manutenção da segurança nacional e da segurança pública, a defesa da ordem e/ou a prevenção do crime, assim como a protecção dos direitos e liberdades de outrem” (§ 67). 10. Jean-François Flauss, AJDA 2003, p. 610. O autor estima que « a decisão do Tribunal (…) retoma por sua conta as ideias força formuladas pelo Tribunal, solenizando-as e até amplificando-as na ocasião”. 11. O princípio da laicidade é retomada diversas vezes pelo Tribunal (§ 67, 105, 124,125, decisão de 13 de Fevereiro de 2003). 12. “Para o Governo, o facto de que a Turquia é o único país muçulmano aderente a uma democracia liberal no sentido dos países ocidentais, explica-se pela aplicação estrita do princípio da laicidade no país. Acrescenta que a protecção do Estado laico na Turquia é uma 116
A laicidade, princípio valorizado da Convenção Europeia dos Direitos do Homem condição sine qua non da aplicação da Convenção Europeia” (§ 60, decisão de 31 de Julho de 2001). 13. “Quanto à decisão de uma ‘necessidade social imperiosa’ o Tribunal Europeu constata logo à primeira vista que o Tribunal Constitucional turco consagrou uma parte da sua decisão a sublinhar o lugar indispensável do princípio da laicidade na manutenção e protecção da democracia na Turquia” (§ 64, decisão de 31 de Julho de 2001). 14. Émile Polat explicou que em França, “é verdade, historicamente, que a laicidade foi conflituosa e permanece contenciosa” (“L’esprit d’une réflexion sur notre laïcité publique” in La laïcité, un valeur d’aujourd’hui? Contestations et renégociations du modèle français, sob a direcção de Jean Baudouin e Philippe Portier, Presses universitaires de Rennes, 2001, p. 105). 15. Com. TEDH 3 de Maio de 1993, Karaduman c/ Turquia, req. Nº 16278/90, “Actualité de la Convention européenne des droits de l’homme», AJDA 1994, p. 33; TEDH 15 de Fevereiro de 2001, Srª Dahlab c/ Suíça, req. nº 42393/98, AJDA 2001, p. 482. No seu relatório de 2 de Dezembro de 1997, sobre o caso Buscarini c/ São Marino, req. 24645/94, a Comissão Europeia dos Direitos do Homem tinha utilizado a expressão «sociedade democrática laica». 16. Jean-François Flauss, “Actualité de la Convention européenne des droits de l’homme», AJDA 2000, p. 1015, 1016. 17. Já citado 18. RTD civ, (4), Out-Dez 2001, p. 979-984. 19. Christian Moe, “Refah Revisited: Strasbourg’s Construction of Islam”; Élizabeth Mayer, “The Refah Case: Did Islam and Islamism Distract the ECHR from Appraising the Merits of the Case?”, Emerging Legal Issues for Islam in Europe, Central European University, Budapeste, 3/4 de Junho 2005. 20. Ver em paralelo duas contribuições, em deslocamento, sobre o tema das ameaças islâmicas e das políticas postas em prática, avaliadas e provadas pelo prisma dos direitos do Homem: Chérif Ferjani, Islamismo, Laicidade e direitos do Homem, Hartmann Paris, 1991; Sílvio Ferrari, “Individual Religious Freedom and National Security in Europe After September 11”, in Brigham Young University Law Review, 357, 2004, p. 357-383. 21. Rostane Mehdi, “A União Europeia e o facto religioso”, RFD const. Nº 54, 2003, p. 228-248. 22. Ver, por exemplo, entre os numerosos trabalhos, a intervenção de Msr.Renato Martino, “La Convention éuropeenne: les racines chrétiennes de l’Éurope, de l’est à l’ouest”, Conselho Pontifical Justiça e Paz e Universidade Pontifícia Regina Apostolorum, 27 de Janeiro de 2003 (www.vatican.va). O interessado sublinha que “a cultura europeia […] tem sido marcada principalmente pelo selo do cristianismo durante dois milénios, um selo que representa a especificidade da Europa. Uma tal herança não pode ser negada. Reconhecê-la não significa contradizer o princípio da laicidade, mas interpretá-la de forma correcta. Certamente, os deveres da Igreja são diferentes das do Estado, mas a Igreja não pode estar separada da sociedade […]”. 23. Ver o capítulo “Convergences autour d’une ‘laïcité culturelle’ européenne” do Relatório da etapa “La laïcité aujourd’hui” publicada pela Comissão Nacional Consultiva dois Direitos do Homem (www.commission-droits-homme.fr). 24. “La laïcité culturelle. Un patrimoine commun à l’Europe?». Projet, nº 240, 19941995, p. 15. Do mesmo autor, ler as análises sobre a noção de “laicidade cultural” na sua obra “Europe et religions – Les enjeux du XXIe siècle, (Biblioteca de cultura religiosa, Les dieux dans la Cité, Fayard, Paris, 2004, p. 44-52) e as suas contribuições, «Églises, laïcités et intégration européenne» (in Alain DierKen ed.); «Pluralisme religieux et laïcités dans l’Union européenne» (Ed. da Universidade de Bruxelas, Bruxelas, 1994, p. 153-165); «Unification européenne et religions» (sob a direcção de Jean Baudoin e Philippe Portier, «La laïcité – une valeur d’aujourd’hui? Contestations et renégociations du modèle français «, Rennes, Imprensa universitária de Rennes, 2001, p. 133-144). 117
A laicidade, princípio valorizado da Convenção Europeia dos Direitos do Homem 25. Por outro lado, a situação francesa, apresentada como um «modelo-tipo», combina de facto um «entrançado» de estatutos e de regimes em matéria de «laicidade» de uma verdadeira complexidade barroca (ler Guy Bedouelle e Jean-Paul Costa, Les Laïcités à la française, PUF, Política actual, Paris, 1998, 265 pag.); Xavier Delsol, Alain Garay, Emmanuel Tawil, Droit français des culte, Ed. Jurisservices-Dalloz, Paris, 2005. 26. Já citado. Ver também Philippe Portier, Les laïcités dans l’Union Européenne : vers une convergence des modèles?; G. Saupin, M. Launay e R. Fabre, La tolérance, Imprensa universitária de Rennes, Rennes 1999, p. 303-319; Jean Baubérot (ed.), Religions et laïcité dans l’Europe des Douze, Paris, Syros, 1994 ; Martine Cohen (ed.), Religions et laïcité en Europe, Sociétés contemporaines, nº 37, 2000. 27. Já citado, 2004, p. 46 28. Já citado. 29. Gilbert Vincent e Jean-Paul Willaime, Religion et transformation de l’Europe, Imprensas universitárias de Estrasburgo, Estrasburgo, 1993, 456 pág.; A. Dierkens, Pluralieme religieux et laïcités dans l’Union européenne, Edições da Universidade de Bruxelas, Bruxelas, 1994, 432 pág.; Jean Baubérot (sob a direcção de), Religions et laïcité dans l’Europe des Douze, Eyros, Paris, 1994, 421 p.. Ver também os trabalhos do Consórcio Europeu para o estudo das relações Igreja-Estado, publicados pelas edições Giuffré em Milão (www.churchstate-europe.org). 30. Alguns autores que analisaram as relações Igreja-Estado na Europa concluíram pela existência de uma tendência para a convergência entre sistemas organizacionais de relações Igreja-Estado na Europa (Marie-Dominique Charlier-Dagras, La laïcité française à l’épreuve de l’intégration européenne, L’Hartmattan, Paris, 2003, p. 261. 31.Ver o texto introdutório sobre a Declaração sobe a laicidade que convida a “desligarse da situação francesa ou mesmo europeia ou ocidental […] aquilo que pode ter valor de evidência em França ou no Ocidente não é forçosamente algo adquirido para o conjunto do planeta” Jean Baubérot, Roberto Blancarte, Micheline Milot (declarationlaicite@hotmail.fr). 32. Louis-Léon Christians, “Droit et religion dans le Traité d’Amsterdam : une étape décisive ? «, in Le Tarité d’Amstedam – espoirs et decéptions, Bruylard, col, « Inst. Études européennes «, Bruxelas, 1998, p. 234-256; Ver as Actas do colóquio de 21, 22 de Novembro de 1996 do Consórcio Europeu para o Estudo das Relações Igreja-Estado sobre o tema «Les religions dans le droit communautaire», Giuffré, Ed. Milão, 1998, 192 pág. 33. Decisão nº 2004-505 DC, Cahiers du Conseil constitutionnel, nº 18. O parágrafo 3 do artigo II-112 do tratado dispõe que “Na medida em que a Carta contém direitos correspondentes aos direitos garantidos pela Convenção Europeia da Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, o seu sentido e o seu alcance são os mesmos que os que são conferidos pela aludida convenção”. 34. Já citado. 35. Ver, por exemplo, sob a direcção de Émile Poulat e de Dominique Kounkou, Les discriminations religieuses en France, L’Harmattan, Théologie et vie politique de la terre, Paris, 2004, 190 pág. 36. Expressão tirada do «Livre du centenaire officiel» de la Loi de 1905 : Histoire de la laïcité à la française, Academia das ciências morais e políticas, Paris, 2005, 191 pág. 37. Requerimento nº 14635/89. Poder-se-á lamentar que nem a Comissão Europeia nem o Conselho de Ministros do Conselho da Europa, sob a autoridade do anterior procedimento convencional, não tenha levado este processo perante o Tribunal Europeu. Para uma análise da decisão do Conselho de Estado de 17 de Junho de 1988, na origem do requerimento perante o Tribunal, ver D. 1988, I, p. 197; AJDA 1988, p. 612, cron. M. Azibert, M de Boisdeffre. 38. Ver Danielle Lochak, «Les ambiguïtés du principe de séparation», in Les Religions en face du droit, Actas, Abril 1992, nº 79/80. 39. Ler, a este propósito, Joël-Benoît d’Onorio, «La crise de la laïcité française», in Laïcité au défi de la modernité, Tequi, 1990, p. 23-71 ; Alain Boyer, Le droit des religions en France, 118
A laicidade, princípio valorizado da Convenção Europeia dos Direitos do Homem PUF, Paris, 1993, 260 pág. ; Guy Bedouelle e Jean-Paul Costa, Les laïcités à la française, PUF, Paris 1998, 266 pág. 40. Ver as Actas do colóquio «Faut-il modifier la Loi du 9 decémbre 1905?», Assembleia Nacional, LPA nº 53, 1 de Maio de 1996 ; Ler as análises de Jean Baubérot, Vers un nouveau pacte laïque, Seuil, Paris, 1990. 41. Ver Henri Pena-Ruiz, La laïcité pour l’Égalité, Mil e uma noites, Fundação de 2 de Março, Paris, 2001, que, no entanto, toma consciência de “entorses” ou de “deferência”: para o autor “a separação do Estado e de todas as Igrejas” é uma “garantia de imparcialidade. Que ela não impeça os fenómenos de corrupção é um outro problema: não se pode invalidar uma condição necessária sob o pretexto de que é insuficiente”. 42. Ver Olivier Schrameck e Xavier Delcros, La fin de la laïcité fiscale, AJDA 1988, p. 267-269. 43. Patrice Roland, «Ordre public et pratiques religieuses», in La protection internationale de la liberté religieuse (sob a direcção de Jean-François Flauss), Bruxelas, Bruylant, 2002, p. 273-300. 44. Frédéric Sudre, «Existe-t-il un ordre public européen?» in Quelle Europe pour les droits de l’homme (sob a direcção de Paul Tavernier), Bruylant, Bruxelas, 1996, p. 39-80. Jean-Paul Costa. « La Cour européenne des droits de l’homme», in Mélanges Pettiti, Bruylant, Bruxelas, 1998, p. 235-262. 45. Patrice Roland, «Ordre public et pratiques religieuses», op. cit. 46. Ver Marie-Noëlle Redor (sob a direcção de), L’ordre public: Ordre public ou ordres publics? Ordre public et droits fondamentaux, op. cit. 47. Raymond Goy, «La garantie européenne de la liberté de religion», in Droit et religion, Archives de Philosophie du droit, Sirey, 1993, tomo 38, p. 209 (artigo já publicado na Revue du droit public en 1991, p. 5-60). 48. Jean Rivero, «Les droits de l’homme : droits individuels ou droits collectifs?», in Les droits de l’homme : droits individuels ou droits collectifs, Anais da Faculdade de Direito de Estrasburgo, 1980, tomo 32, p.17. 49. Geneviève Koubi, «Réflexion sur les distinctions entre droits individuels, droits collectifs et ‘droits de groupe’», Mélanges Raymond Goy, op. cit. 1998, p. 105-117. 50. Hubert Moutouh, Recherches sur un «droit des groupes» en droit public français, Th. Droit, Bordeaux, 1984, 566 pág. Sobre este assunto teórico com consequências práticas evidentes, ler A. Fernet, G. Koubi e I. Schultte-Tenckkoff (sob a direcção de), Le droit et les minorités, Bruxelas, Bruyland, 2000, 344 pág.; A. Fenet e G. Soulier, Les minorités et leurs droits depuis 1789, l’Harmattan, Paris, 1989, 455 pág. 51. Ob. cit., p. 116. 52. Assinalar-se-á que com excepção da obra de base de Gérard Gonzalez (La Convention européenne des droits de l’homme et la liberte dês religions ob. cit.) publicada em Abril de 1997, não existe actualmente nenhum outro estudo em língua francesa. 53. A tentação de explicar a nossa modernidade em referência à tese da secularização na sociedade europeia é grande. Ver René Rémond, Religion et société en Europe – Essai sur la sécularisation des sociétés européennes aux XIXe et XXe siècles, Seuil, Paris, 465 pág. 54. Ver a lista não exaustiva das publicações sobre o assunto recenseados pelo Centro de pesquisas e de estudo sobre os direitos do Homem e do Direito humanitário (CREDHO) da Universidade de Paris Sul. Este recenseamento figura na entrada Bibliografia depois Islão e Direitos do Homem (www.credho.org). 55. Claude Nicolet descreve com humor a laicidade que “seria uma originalidade francesa, estritamente hexagonal, um perfume antiquado, que nos perdoem talvez em benefício dos nossos vinhos e dos nossos queijos”, in La Republique en France – États des lieux, Sueil, Paris, 1992, p. 101. 119
A laicidade, princípio valorizado da Convenção Europeia dos Direitos do Homem 56. Ver sobre este assunto as numerosas obras editoriais do ano 2005, em França, sobre a laicidade, cada uma avançando concepções, noções, definições… 57. Marco Ventura, «Protectionnisme et libré-échangisme – La nouvelle gestion juridique de la religion en Europe», in Consciência e Liberdade (Edição portuguesa) nº 16, 2004, p. 25-35. 58. Mireille Delmas-Marty, Pour un droit commum, col. «Librairie du XXe siècle», Seuil, Paris, 1994, 256 pág. 59. Hélène Surrel, «La liebrté religieuse devant la Court européenne des droits de l’homme», RFDA 1995, p. 573 e seg. ; Alain Garay, «La liberté religieuse et prosélytisme : l’expérience européenne», RTDH, 1994, p. 9-29. 60. Um intelectual como Pascal Bruckner denunciou, desta forma, nas páginas do diário Le Fígaro, “uma chantagem à islamofobia” quando em França a Comissão Nacional Consultiva dos Direitos do Homem, no relatório que apareceu em Novembro de 2003, recusando este termo ao qual prefere a expressão “intolerância para com o Islão” (ver o artigo “En France, le terme ‘islamophobie’ suscite un débat”, Le Monde, 15-16 de Fevereiro de 2004, p. 5). 61. Ler a recente obra de Jean-Paul Willaime, Europe et religion – Les enjeux do XXIe siècle, Fayard, Paris, Col. Les Dieux dans la cité, 2004, 377 pág. Ver também Croyances religieuses, morales et éthiques dans le processus de construction européenne, Comissariado Geral do Plano, Instituto Europeu de Florença, Cadeira Jean Monet de Estudos Europeus, La Documentation française, Paris, Junho de 2002. Ler Alain Garay, «La Liberté religieuse en Europe – restrictions et protection» in Consciência e Liberdade, (Edição Portuguesa) 2º Semestre de 2000, p. 77-83. 62. A obra de base em língua francesa é a de Gérard Gonzalez, La Convention européenne des droits de l’homme et la liberté des religions, ob. cit. Ver os recentes artigos de Michele de Salvia, «Liberté de religion, esprit de tolérance e laïcité dans la jurisprudence da la Cour européenne des droits de l’homme», in Mélanges Gérard Cohen-Jonathan, Bruylant, Bruxelas, 2004, p. 591-606 (o interessado é jurisconsulto no TEDH) e de Jean-Pierre Schouppe, «La dimension collective et institutionnelle de la liberté religieuse à la lumière de quelques arrêtes récents de la Cour Européenne des droits de l’homme», in Rev. Trim. Dr. h. 63/2005, p. 611633. Ver Jean-François Flauss, «Les sources internationales du droit français des religions», LPA, Paris nº 95, 1992 : Jean Duffar, «La liberté religieuse dans les textes internationaux», Revue de Droit canonique, 1996, 0. 317-344. 63. Para uma apresentação completa da bibliografia sobre este assunto, ver a bibliografia «selectiva» (em 32 páginas!) contida na obra dirigida por Jean-François Flauss intitulada “La protection de la liberte religieuse”, Bruylant, Bruxelas, 2002, 335 pág. 64. A expressão é de Blandine Chlini-Pont. Do autor, ler o recente Dieu en France et aux États-Unis, quand les mythes font la foi, Berg International Éditeurs, Paris, 95 pág. (com Jeremy Gunn). 65. Yves Lambert Religion : L’Europe à un tournant, Futuribles, Paris, Julho-Agosto de 2002, O autor explica os inquéritos recentes sobre a religião no seio da sociedade europeia.
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DOCUMENTOS Nações Unidas Declaração e relatório de Asma Jahangir, relatora especial sobre a liberdade de religião ou de convicção, apresentada ao Conselho dos Direitos do Homem, a 21 de Setembro de 2006* Asma Jahangir sublinhou que perante o clima actual de desconfiança perante a universalidade dos Direitos do Homem, os esforços que visam aumentar a sensibilização para com os Direitos do Homem, assim como o respeito para com esses direitos é mais importante do que nunca. Insistindo sobre o carácter intrinsecamente sensível do seu mandato, fez notar que, desde os ataques do 11 de Setembro de 2001, as tensões e as sensibilidades sobre estas questões relativas à religião e à crença se exacerbaram. Asma Jahangir indicou que como resultado das suas visitas a diferentes países, e baseada nas alegações que lhe foram apresentadas, está habilitada para poder afirmar que, perante todas as evidências, o direito à liberdade de religião ou de crença é frequentemente violado; parece que se mostra pouca vontade de proteger este direito. A Relatora especial sublinhou que no seu relatório ao Conselho, se concentrou sobre o debate que envolve os símbolos religiosos. Em diferentes partes do mundo, os indivíduos são impedidos de se identificar, através do uso de símbolos religiosos, enquanto que, noutros países, pelo contrário, é pedido aos indivíduos para se identificarem exibindo símbolos religiosos, especialmente nas vestes religiosas, em público. Exibir ou usar símbolos religiosos faz parte da manifestação da liberdade de religião ou de crença, como a Sr.ª Jahangir afirmou. Ela afirmou, também, que qualquer limitação do direito de um indivíduo exibir ou usar símbolos religiosos não pode estar baseada senão em motivos de segurança, de ordem, de saúde, ou de moral públicas, ou nos direitos fundamentais de outrem. Além disso, continuou a Relatora especial, as leis que limitem o direito de exibir, ou de usar símbolos religiosos deveriam ser proporcionais aos objectivos específicos que elas procuram atingir. Perante isto, a Sr.ª Jahangir acrescentou, que é importante sublinhar que as atitudes morais públicas deveriam reflectir um ponto de vista pluralista da sociedade e não apenas uma cultura ou religião. Continuam a ser cometidas atrocidades contra as comunidades religiosas ou de crentes, incluindo as que são cometidas em nome da religião, prosseguiu a Sr.ª Jahangir. Os dirigentes políticos devem permanecer neutros e 121
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envolver-se colectiva e abertamente no combate contra a intolerância religiosa, sublinhou ela. Existem exemplos notáveis, onde diálogos e intensas negociações permitiram contribuir para a prevenção da violência e o fim das hostilidades, salientou a Relatora Especial. Ela colocou a tónica na necessidade da educação para conter a intolerância religiosa, fazendo notar que a falta de educação é, frequentemente, identificada como sendo uma das causas profundas da intolerância religiosa. É importante sublinhar que é mais especificamente a educação na área dos direitos do Homem – e não, simplesmente, a educação como tal – que pode desempenhar um papel crucial, para favorecer a harmonia religiosa. A Sr.ª Jahangir fez notar que, em alguns países que visitou, notou a vontade de muitos dos seus interlocutores em ligar a intolerância religiosa ao analfabetismo, até mesmo, à pobreza. Indicou ter efectuado, durante o período coberto pelo seu relatório, visitas à Nigéria, ao Sri Lanka e à França. Indicou, também, ter efectuado, durante o decorrer deste ano, visitas ao Azerbeijão (26 de Fevereiro a 5 de Março de 2006) e às Maldivas (6 a 9 de Agosto). Duas visitas sobre as quais entende apresentar relatórios a uma futura sessão do Conselho. Enquanto se espera a publicação destes relatórios, a Sr.ª Jahangir deu conhecimento do acesso das Maldivas ao Pacto Internacional relativo aos Direitos Civis e Políticos e ao Pacto Internacional relativo aos Direitos Económicos, sociais e culturais. Felicitou o governo das Maldivas por terem tomado esta medida importante, mas lamentou que o país tenha achado necessário emitir uma reserva, para com o artigo 18 do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos, no que respeita à Liberdade de religião ou de crença; dessa forma, exprimiu a esperança de que o governo tome medidas para revogar esta reserva logo que possível. Tratando da visita que efectuou à Nigéria, a Sr.ª Jahangir indicou, especialmente, ter recebido um certo número de queixas sobre motins violentos e outros ataques em diversos locais do país. Estas violências têm diversas causas, especialmente factores políticos, económicos e étnicos; todavia, na maior parte dos casos, a violência tem contornos religiosos, segundo a Relatora especial indicou. As crenças religiosas não são apenas uma questão muito sensível na Nigéria; elas proporcionam, igualmente, um meio relativamente fácil e simples de identificar um opositor a perseguir. Ela afirmou que o aspecto mais impressionante da violência reside no facto de que a violência reside na resposta que as autoridades lhe conferem. Com efeito, a Sr.ª Jahangir precisou que, de acordo com a maioria das informações recebidas, não é feito nenhum inquérito, nem nenhum esforço, no sentido de perseguir os delinquentes. A introdução da lei islâmica nos assuntos penais em doze dos Estados da Nigéria, polarizou a população que segue linhas religiosas, continuou a Relatora Especial. Uma característica comum a essas leis religiosas – argumento, muitas vezes utilizado para as apoiar – é que elas são aplicadas apenas aos muçulmanos, sublinhou. Um acontecimento particularmente alarmante sobre a aplicação dessas leis, foi a institucionalização de órgãos de aplicação conhecidos sob o nome de Hisbah, compostos por jovens civis, não formados e cujo papel é aplicar a lei da Charia tal como eles a entendem. As suas actividades têm-se saldado por um certo número de actos violentos, arbitrários e ilegais, em particular contra as mulheres não muçulmanas, equivalendo, 122
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em numerosos casos, a violações dos Direitos do Homem. A Sr.ª Jahangir manifestou-se particularmente perturbada com as informações, segundo as quais, os membros das comunidades cristãs e muçulmanas estão a ponto de se armarem, seja para fins defensivos, seja com o objectivo de uma agressão futura. A respeito da visita que efectuou ao Sri Lanka em Maio de 2005, Sr.ª Jahangir recordou, particularmente, que essa missão, visava avaliar as informações que indicavam haver ataques contra certos grupos religiosos assim como conversões abusivas. Estas alegações levaram à introdução de projectos de lei penalizando certos actos visando a conversão de um indivíduo a outra religião, como indicou a Relatora Especial. O Sri Lanka é um país com um elevado grau de tolerância e uma história de harmonia religiosa, recordou. Por outro lado, acrescentou ela, o governo geralmente respeita a liberdade de religião e de crença e tem permanecido, até agora, neutro perante as diferentes comunidades religiosas presentes no seu território. Se bem que já tenha havido no Sri Lanka preocupações concernentes a conversões abusivas antes do maremoto de Dezembro de 2004, estas preocupações têm-se acentuado em consequência de alegações, segundo as quais, alguns grupos utilizaram as provisões da ajuda humanitária para forçar a população a converter-se, indicou a Sr.ª Jahangir. Tratando-se da sua visita a França, efectuada de 19 a 29 de Setembro de 2005, a Sr.ª Jahangir indicou ter concluído que, se a França, geralmente, respeita o direito à liberdade de religião ou de convicção, subsiste um certo número de temas de preocupação. A Relatora Especial mostrou-se particularmente preocupada com a Lei 2004-228 sobre o uso de sinais religiosos ostentatórios, nas escolas francesas. Esta lei que tem sido largamente apoiada pelo aparelho político, assim como grande parte da população, tinha por vocação aplicar-se, de forma igual, a todas as pessoas; no entanto, na prática, ela afecta, essencialmente, as pessoas que pertencem à fé muçulmana. Por outro lado, acrescentou a Sr.ª Jahangir, o vasto apoio político a favor desta lei, passou uma mensagem desmoralizadora às minorias religiosas em França. A Sr.ª Jahangir indicou, por outro lado, ter recebido um certo número de informações sobre os actos de violência e de intolerância religiosa contra os membros de comunidades religiosas, em particular, judeus e muçulmanos. Ela congratulou-se pelo facto do governo francês ter levado esses actos a sério e por, raramente, subestimar a sua importância. A Relatora Especial, por outro lado, indicou que no início de 2007, efectuará uma missão no Tadjiquistão. No seu relatório sobre a liberdade de religião ou de convicção (E/CN.4/ 2006/5 e Ad. 1 a 4), a Relatora Especial nota com preocupação que para muitas pessoas no mundo, a liberdade de religião, ou de convicção, não é uma realidade. O aumento do número de países que não dirigem convites para as suas visitas in situ suscita reais inquietações, sublinha o relatório. Esta tendência é particularmente preocupante na medida em que os aludidos países são aqueles sobre os quais a Relatora Especial recebeu alegações substanciais sobre violações do direito à liberdade de religião ou de convicção. Perante isto, a Relatora Especial reitera o seu apoio a um mecanismo que permita 123
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gerir, de forma adequada, a situação dos países que deixam regularmente de cooperar no quadro de procedimentos especiais. Ela encoraja os Estados e os outros actores a examinarem esta questão no contexto dos esforços relativos à reforma da ONU. Pediu, especialmente, que encarassem o fazer obstrução aos países que não cooperem com os titulares de mandato com o título de procedimentos especiais, quando se examinar a sua candidatura para pertencer ao novo Conselho. A Relatora Especial definiu um conjunto de critérios gerais sobre os símbolos religiosos, especialmente os “indicadores neutros” e os “indicadores preocupantes” a fim de dar linhas orientadoras no que concerne às normas relativas aos direitos do Homem aplicáveis e ao seu uso. Ela queria sublinhar que não podem ser impostas restrições com fins discriminatórios nem de forma discriminatória, as restrições devem estar em directa relação com o objectivo específico que as inspira e proporcionais a estes. É sobre o Estado que repousa a tarefa de justificar uma restrição à liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção. A medida escolhida deve promover a tolerância religiosa e evitar estigmatizar uma comunidade religiosa em particular. Por fim, os princípios do fundamento e da justa proporção da medida devem ser perfeitamente respeitados pela administração e durante o controlo jurisdicional se for caso disso. Durante o período considerado, a Relatora Especial continuou a receber informações sobre casos, ou situações, de pessoas que deliberadamente ofendem a religião de outras pessoas. Ela reconhece que, em muitos casos, as declarações de outras formas de expressão, podem ter tido a manifestação do exercício do direito à liberdade de expressão. No entanto, inquieta-se com o facto de que essas formas de expressão podem, por vezes, revelar uma falta de tolerância para com a religião de outrem, que pode constituir uma ameaça para a paz confessional da sociedade na medida em que esta, muitas vezes, repousa sobre estereótipos e pode favorecer uma maior polarização. Ela prevê, durante o seu mandato, desenvolver, cada vez mais, este aspecto, nas suas actividades futuras. O resumo das comunicações enviadas pela Relatora Especial desde 12 de Novembro de 2004 a 30 de Novembro de 2005 e as respostas recebidas dos governos antes de 30 de Janeiro de 2006, figuram no anexo do primeiro relatório. Os anexos 2 a 4 são os relatórios sobre as visitas aos países, respectivamente, à Nigéria, ao Sri Lanka e à França. No que se refere à Nigéria (Anexo 2) onde esteve de 27 de Fevereiro a 7 de Março de 2005, a Relatora Especial notou que as tensões e a incompreensão entre as comunidades muçulmana e cristã, que, até aí, tinham sido contidas e limitadas a algumas regiões, se tinham agravado nestes últimos anos. Em particular a adopção de uma legislação penal baseada na Charia por um certo número de Estados do Norte, desde 1999, provocou reacções negativas entre os membros das comunidades não muçulmanas, mesmo que sejam apenas os muçulmanos a serem submetidos a essas disposições legais. Por outro lado, mesmo que essas tensões se expliquem, também, por factores económicos políticos e outros, elas têm-se muitas vezes polarizado nas questões religiosas. Por estas razões, a Relatora Especial é de opinião que a fruição do direito à liberdade de religião ou de convicção não está suficientemente assegurada. 124
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Receia, além disso, que o agravamento das tensões religiosas, entrave, ainda mais, o gozo deste direito no seio da população nigeriana. No que diz respeito ao Sri Lanka (Anexo 3) onde esteve de 2 a 12 de Maio de 2005, a Relatora Especial indica que procurou avaliar a situação no que respeita à liberdade de religião ou de convicção, tendo em conta especialmente, informações recentes dando nota de ataques contra certos grupos religiosos, alegações de conversões abusivas e da apresentação de projectos de lei criminalizando certos actos que visam converter alguém a uma outra religião. Ela condena os ataques perpetrados contra os membros de minorias cristãs e critica a atitude passiva do governo; exorta, ainda, este último a tomar medidas sistemáticas, especialmente através do aparelho judicial, para pôr fim a esses ataques. Além disso, salienta que certos grupos religiosos recorreram a métodos impróprios para persuadir pessoas a mudar de religião, a Relatora Especial pede a esses grupos que respeitem a religião do outro e que não recorram a formas agressivas de proselitismo, que poderiam perturbar a harmonia religiosa e exacerbar as tensões. Procura, no entanto, chamar a atenção para a adopção de projectos de lei que criminalizariam certos actos visando a conversão de outrem a uma religião, porque a sua aplicação conduziria a violações dos direitos do Homem e porque não constituem uma resposta adaptada às actuais tensões religiosas. Ao tratar da França, (Anexo 4), onde efectuou uma missão de 18 a 29 de Setembro de 2005, a Relatora Especial sublinha que o governo francês, de uma forma geral, respeita o direito à liberdade de religião ou de convicção, tal como está protegida pelos instrumentos internacionais pertinentes, mas que, apesar disso, existem certas zonas de sombra. Reconhecendo que a organização de uma sociedade, segundo o princípio da separação das Igrejas e do Estado, garante o direito fundamental à liberdade de religião ou de convicção, a Relatora Especial deplora que, em certas circunstâncias, uma interpretação selectiva e uma aplicação rígida deste princípio tenha levado a sacrificar o direito acima mencionado. Apesar disso, felicita-se pelo debate que se trava, actualmente, no seio da sociedade francesa sobre a Lei de 1905 que diz respeito à separação das Igrejas e do Estado e estima que uma avaliação aprofundada da sua aplicação, no contexto actual, marcada por uma diversificação crescente de religiões, é um processo necessário numa sociedade democrática baseada num Estado de Direito. No que refere à questão das seitas, termo que designa grupos organizados em redor de um culto, mas também novos movimentos religiosos ou novas comunidades de convicção, a Relatora Especial é de opinião que a política do governo provavelmente contribuiu para o clima de suspeição geral para com comunidades que fazem parte de uma lista que depois foi estabelecida por um relatório parlamentar, e que atentou contra o direito à liberdade de religião ou de convicção de certos membros dessas comunidades, ou grupos. No entanto, ela observou que desde há alguns anos, as autoridades francesas abordam de forma mais equilibrada este fenómeno e têm ajustado a sua política, transformando a Missão Interministerial da Luta Contra as Seitas (MILS) numa Missão Interministerial de Vigilância e de Luta Contra as Derivas Sectárias (MIVILUDES). A Relatora Especial estima que a Lei de 2004 sobre o uso de sinais religiosos ostensivos nas escolas públicas se justifica na medida 125
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em que ela está vocacionada, de acordo com o princípio do superior interesse da criança, a proteger a autonomia dos menores que correm o risco de serem pressionados a usar um véu, ou um outro sinal religioso, ou de serem forçados a isso. No entanto, esta lei priva dos seus direitos os menores que escolherem, com toda a liberdade, usar, na escola, um sinal religioso por convicção religiosa. Além disso, a aplicação desta lei pelos estabelecimentos de ensino levou, em muitos casos, a abusos que provocaram humilhações, particularmente entre os jovens muçulmanos. Além disso, a estigmatização do véu provocou actos de intolerância religiosa para com as mulheres que o usam fora da escola, na universidade ou no local de trabalho. *http://www.droitshumains.org/ONU/conseilddh/rapp13.htm
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Carta dirigida por Gianfranco Rossi, representante da International Religious Liberty Association, a Asma Jahangir, relatora especial sobre a liberdade religiosa ou de convicção, para o Conselho dos Direitos do Homem Exª Senhora
Na qualidade de principal representante da IRLA (International Religious Liberty Association) junto das Nações Unidas em Genebra, tenho a honra de exprimir a V. Exª o meu apreço e os meus agradecimentos relativamente ao que declarou no seu relatório sobre a Nigéria relativamente à pena de morte por apostasia do Islão. V. Exª reconheceu que até mesmo a possibilidade de aplicar a regra da Charia constitui uma clara violação do direito à liberdade de religião e de convicção. Todo aquele que quer mudar de religião está no pleno direito de o fazer. Mudar de religião é exercer um direito fundamental claramente reconhecido pela Comunidade Internacional. De forma alguma se pode aceitar que seres humanos sejam condenados à morte pela única razão de exercerem um direito fundamental. Infligir a inocentes a pena máxima é um absurdo. A pena de morte por apostasia viola não apenas o direito à liberdade de religião; viola também o direito à vida e, por consequência, todas as liberdades e os direitos do homem. Este ano será marcado pela celebração do 25º aniversário da proclamação da Declaração para a eliminação de todas as formas de intolerância e de discriminação baseadas na religião ou na convicção. Por esta ocasião, a Comissão dos Direitos do Homem não poderá deixar de tomar posição pela eliminação da pena de morte por apostasia, a forma mais extrema de intolerância religiosa. V. Exª não ignora que esta regra, a Charia, não é senão o fruto da tradição humana e não é, de forma alguma, uma ordem sancionada pela revelação divina. Nem o Corão, nem a prática do profeta Maomé, podem ser invocados para justificar este castigo absurdo. Há muitos muçulmanos que o afirmam e que lutam tendo em vista eliminar da teologia islâmica esta invenção arcaica dos ulemas. Moamé Charfi, antigo Ministro da Educação e das Ciências, da Tunísia, por exemplo, no seu livro O Islão e a liberdade: o mal-entendido histórico (Edições Albin Michel, 1998, Paris, p. 78-80 declara: “A ideia mais desastrosa que os ulemas tiveram, a sua invenção mais horrível e que permanece hoje como o maior defeito da charia é o ter eleito a apostasia do Islão como uma infracção punida com a pena máxima, a pena de morte. Tão chocante como possa parecer, os ulemas criaram esta infracção atentatória da liberdade de consciência sem nenhuma base corâmica. (…) Não só nenhum verso prevê esta infracção e esta pena, a sugere de perto ou de 127
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longe, mas além disso, o texto corâmico diz exactamente o contrário. Já mencionámos o versículo que diz: ‘Nada de obrigação em matéria de religião’ (Corão II, 256). Podemos juntar o verso 29 da surata XVIII, ‘A Caverna’ no qual Deus se dirige ao Seu profeta nestes termos: ‘A verdade é a que emana do vosso Senhor. E nela acreditará quem quiser e a negará quem quiser’. Ou ainda o verso 99 da surata X ‘Jonas’: ‘Se Deus o tivesse querido, todo o Universo abraçaria a verdadeira fé. Quererias tu obrigar os homens a converter-se? “(…) Portanto, não encontrando base corâmica para a regra que estabeleceram, os ulemas ligaram esta última a um hadith atribuído ao profeta que diz: “Àquele que mudar de religião, matai-o”. Argumento frágil porque este hadith é da categoria ahad, isto é, referido por uma só pessoa, portanto, de autenticidade duvidosa; e a dúvida torna-se maior quando se sabe que este companheiro que mencionou este hadith foi Ibn Abbas que, por altura da morte do profeta, não passava de um adolescente de treze anos…! Este fundamento jurídico é, tanto mais fraco, quando é contraditado pela conduta do profeta, porque, enquanto viveu, houve apostasias declaradas, especialmente as dos Kindi. Quando soube disso, o profeta censurou os quatro reis (Gamad, Mihwas, Misrah e Adbaa). Esta censura era, assim mesmo, uma reacção legítima da sua parte. Mas não foi assunto nem de guerra, nem de castigo.” É necessário denunciar e condenar esta regra da Charia não apenas para garantir a liberdade religiosa aos muçulmanos, mas também para lutar contra o extremismo islamita que utiliza esta regra como arma do terrorismo internacional. É para aplicar a pena de morte por apostasia que os islamitas massacram os muçulmanos e os consideram como “infiéis” e “apóstatas” porque não aceitam a sua visão totalitária do Islão. O anterior Secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, por ocasião do Seminário “Confronting Islamophobia”, que se realizou em Nova Iorque a 7 de Dezembro de 2004, afirmou, claramente, a necessidade de combater a islamofobia, mas também declarou: “Os esforços para combater a islamofobia devem também enfrentar a questão do terrorismo e da violência levados a cabo em nome do Islão (...) Todos nós devemos condenar aqueles que praticam esses actos moralmente repreensíveis, que nenhuma causa pode justificar. Os próprios muçulmanos, em especial, devem pronunciar-se, como muitos fizeram após os ataques de 11 de Setembro aos EUA, e mostrar um compromisso para isolar os que pregam ou praticam a violência, deixando claro que estas são distorções inaceitáveis do Islão”. Portanto, até mesmo o Secretário-Geral das Nações Unidas afirma que é necessário tornar claras as distorções do Islão que são inaceitáveis e que conduzem à violência e ao terrorismo. O preâmbulo do Acto constitutivo da UNESCO proclama: “As guerras nascem no espírito dos homens, é no espírito dos homens que se devem erguer as defesas da paz.” É contra a ideologia dos islamitas terroristas que é necessário lutar. A Comunidade Internacional deve ter a coragem de tomar uma posição clara contra as distorções do Islão que violam os direitos do homem. Deve pedir aos países islâmicos que se oponham às interpretações 128
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extremistas do Islão e que redescubram o verdadeiro Islão, que é uma religião de misericórdia, de liberdade e de paz. É o que o Rei da Jordânia, Abdullah defendeu por ocasião da Cimeira Mundial das Nações Unidas, em 16 de Setembro de 2005. Ele declarou: “O nosso país, a nossa religião e o mundo, todos estão interessados nas perspectivas de paz. Uma acção crítica para com os promotores do extremismo, é assegurar uma tolerância zero. A Jordânia tem trabalhado com a comunidade muçulmana internacional tendo em vista opor-se às interpretações extremistas do Islão. A Jordânia quer substituir o fundamentalismo, o Islão militante e radical, pelo verdadeiro Islão, moderado e tradicional, e isto por todo o mundo e para cada muçulmano.” Exmª Srª. Baseado nas considerações que acabo de vos apresentar, tenho a convicção de que fará tudo quanto estiver ao seu alcance para que a Comissão dos Direitos do Homem, através da sua resolução intitulada “Eliminação de todas as formas de intolerância religiosa”, decida condenar, de uma forma clara, a forma extrema da intolerância religiosa, a pena de morte por mudança de religião. Não se trata de tomar posição contra os muçulmanos mas, bem pelo contrário, de lutar contra os islamistas terroristas e de ajudar os muçulmanos a libertarem-se de uma distorção do Islão. Do qual estão ainda dolorosamente prisioneiros, e de os colocar em condições de respeitar, efectivamente, e plenamente, no direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião, em harmonia com os ensinos do Corão. Agradecendo a sua amável atenção e por tudo o que fará neste sentido, peço-vos que aceite a expressão da minha mais alta consideração. Gianfranco Rossi Viganello-Lugano, 28 de Fevereiro de 2006
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Discurso de Bento XVI dirigido, a 25 de Setembro de 2006, em Castelgandolfo, aos embaixadores dos países muçulmanos, junto da Santa Sé, e a alguns representantes das comunidades muçulmanos na Itália (citação 150) O diálogo inter-religioso inter-cultural é uma necessidade para, em conjunto, construirmos um mundo de paz e de fraternidade ardentemente desejada por todos os homens de boa vontade. Neste domínio, os nossos contemporâneos esperam de nós um testemunho eloquente para mostrar a todos o valor da dimensão religiosa da existência. Também, fiéis aos ensinos das suas próprias tradições religiosas, cristãos e muçulmanos devem aprender a trabalhar em conjunto, como já acontece em diversas experiências comuns, para evitarem toda a forma de intolerância e opor-se a toda a manifestação de violência; e nós, Autoridades religiosas e Responsáveis políticos, devemos guiá-los e encorajá-los nesse sentido. Com efeito “mesmo se, no decurso dos séculos, surgiram entre cristãos e muçulmanos numerosas dissensões e inimizades, o santo Concílio exorta-os, a todos, a esquecer o passado e a praticar, sinceramente, a compreensão mútua, assim como a proteger e a promover, em conjunto, para todos os homens, a justiça social, a paz e a liberdade” (Declaração Nostra aetate, n. 3). As lições do passado devem, portanto, ajudar-nos a procurar as vias de reconciliação, a fim de viver no respeito pela identidade e da liberdade de cada um, tendo em vista uma colaboração frutuosa ao serviço de toda a humanidade. Como o Papa João Paulo II declarou no seu memorável discurso aos jovens, em Casablanca, Marrocos, “o respeito e o diálogo requerem a reciprocidade em todos os domínios, sobretudo no que concerne às liberdades fundamentais e, mais particularmente, à liberdade religiosa. Eles favorecem a paz e o entendimento entre os povos” (n. 5).
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Declaração de Princípios Acreditamos que o direito à liberdade religiosa foi dado por Deus e afirmamos que ela se pode exercer nas melhores condições, quando há separação entre as organizações religiosas e o Estado. Acreditamos que toda a legislação, ou qualquer outro acto gover namental, que una as organizações religiosas e o Estado, se opõem aos interesses dessas duas instituições e podem causar prejuízo aos direitos do homem. Acreditamos que os governos foram instituídos por Deus para manter e proteger os homens no gozo dos seus direitos naturais e para regula mentar os assuntos civis; e que neste domínio tem o direito a obediência respeitosa e voluntária de cada indivíduo. Acreditamos no Direito natural inalienável do indivíduo à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de ter ou de adoptar uma religião ou uma convicção da sua escolha e de mudar segundo a sua consciência; assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, individualmente ou em comum, tanto em público como em privado, através do culto e da realização dos ritos, das práticas e dos ensinos, devendo, cada um, no exercício desse direito, respeitar os mesmos direitos nos outros. Acreditamos que a liberdade religiosa comporta, igualmente, a liberdade de fundar e de manter instituições de caridade e educativas, de solicitar e de receber contribuições financeiras voluntárias, de observar os dias de repouso e de celebrar as festas de acordo com os preceitos da sua religião, e de manter relações com crentes e comunidades religiosas tanto ao nível nacional, como internacional. Acreditamos que a liberdade religiosa e a eliminação da intolerância e da discriminação fundadas sobre a religião ou a convicção, são essenciais para promover a compreensão, a paz e a amizade entre os povos. Acreditamos que os cidadãos deveriam utilizar todos os meios legais e honestos, para impedir toda a acção contrária a estes princípios, para que todos possam gozar das inestimáveis bênçãos da liberdade religiosa. Acreditamos que o espírito desta verdadeira liberdade religiosa está resumido na regra áurea: Tudo o que quiserem que os homens vos façam, façam-no a eles.
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