ConsCiênCia E
LiBERDaDE 2010
O extremismo religioso e a liberdade religiosa
ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL PARA A DEFESA DA LIBERDADE RELIGIOSA Dotada de estatuto consultivo junto das Nações Unidas e do Conselho da Europa Schosshaldenstrasse 17, CH 3006 Berne, Tel. +41 (0)31 359 1527 E-mail info@aidlr.org - Fax +41(0)31 359 1566 Secretário-Geral: Karel Nowak Comité de honra Presidente: Mary ROBINSON, antigo alto-comissário para os direitos humanos das Nações Unidas e antigo presidente da República Irlandesa, Estados Unidos Membros: Abdelfattah AMOR, antigo presidente do Comité dos Direitos do Homem nas Nações Unidas, Tunísia Jean BAUBÉROT, presidente de honra da Escola Prática de Altos Estudos na Sorbonne, titular da cadeira de História e Sociologia da Laicidade na EPHE, Paris, França Bert B. BEACH, antigo Secretário Geral Emérito da International Religious Liberty Association, Estados Unidos. François BELLANGER, professor universitário, Suiça Alberto DE LA HERA, professor universitário, Director Geral dos Assuntos Religiosos, do Ministério da Justiça, Espanha. Silvio FERRARI, professor universitário, Itália Alain GARAY, advogado do Supremo Tribunal de Paris e investigador, França Humberto LAGOS, Professor universitário, escritor. Chile Adam LOPATKA, antigo presidente do Supremo Tribunal, Polónia Francesco MARGIOTTA BROGLIO, departamento de Estudos sobre o Estado, professor universitário, presidente da Comissão italiana para a liberdade religiosa, representante da Itália na UNESCO Rosa Maria MARTINEZ DE CODES, professora universitária, Espanha Jorge MIRANDA, professor universitário, Portugal Raghunandan Swarup PATHAK, antigo presidente do Supremo Tribunal, Índia e antigo juiz do Tribunal Internacional de Justiça Émile POULAT, professor universitário, director de investigação no CNRS, França Jacques ROBERT, professor universitário, membro do Conselho Constitucional, França Jean ROCHE, do Instituto, França Joaquin RUIZ-GIMENEZ, professor universitário, antigo ministro, presidente da UNICEF Espanha Antoinette SPAAK, ministra de Estado, Bélgica Mohamed TALBI, professor universitário, Tunísia Rik TORFS, professor Universitário, Bélgica Gheorghe VLADUTESCU, professor universitário, vice-presidente da Academia romena, antigo Secretário de Estado para os assuntos religiosos, Roménia ANTIGOS PRESIDENTES DO COMITÉ Srª de Franklin ROOSEVELT, 1946 a 1962 Dr. Albert SCHEWEITZER, 1962 a 1965 Paul Henri SPAAK, 1966 a 1972 René CASSIN, 1972 a 1976 Edgar FAURE, 1976 a 1988 Léopold Sédar SENGHOR, 1988 a 2001
Consciência e Liberdade Nº 22 – Ano 2010
Órgão Oficial da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa Nº de Contribuinte: 500 847 088 Proprietário e Editor: Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa Sede da Redacção: R. Joaquim Bonifácio, 17 – 1169-150 Lisboa – Portugal Tel. 21 351 09 10 – Fax: 21 315 09 19
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© Dezembro/2010 – Consciência e Liberdade Política editorial: As opiniões emitidas nos ensaios, os artigos, os comentários, os Tiragem: 700 exemplares documentos, as críticas aos livros e as informações são apenas da responsabilidade dos Inscrição na E.R.C. nº 106 816 autores. Não representam neces-sariamente a opinião da Associação Internacional para a Depósito Legal: Defesa da Liberdade Religiosa de que esta Revista é o órgão oficial. Os artigos recebidos pelo secretariado da Revista são submetidos à apreciação do Conselho redactorial. ISSN 0874-2405 Execução Gráfica: R olo & Filhos II, S. A. Mafra
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Número 22 – 2010 Editorial O Extremismo religioso e a liberdade religiosa . . . . . . . 4 Estudos E. Tawil A Liberdade de Consciência na doutrina católica das relações Igreja-Estado antes do Concílio Vaticano II . . . 7 J. Rossell O regime de Franco. Do nacional-catolicismo à liberdade religiosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16 E. Poulat O que é a verdade? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24 Dossier O extremismo religioso e a liberdade religiosa . . . . . 27 M. Verfaillie Os riscos da confusão e das amálgamas . . . . . . . . . . . . 27 H. Theisen O relativismo cultural: um perigo político . . . . . . . . . . 36 T. Domanyi Calvino, precursor da liberdade relligiosa? . . . . . . . . . . 46 N. Lerner Proteger os grupos religiosoos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58 G. Nissim Coesão social, pluralismo, liberdade de consciência . . 69 J. Baubérot O ultrapassar de um “ódio democrático”: do combate . . anticlerical à lei da separação de 1905 . . . . . . . . . . . 78 J. Robert As Igrejas e as Autoridades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84 A. von Schlachta Os anabaptistas no Sacro-Império: longe da tolerância e da liberdade de consciência? . . . . . . . . 95 M. Juergensmeyer Direitos do Homem e regimes religiosos . . . . . . . . . . 106 Documentos Nações Unidas - A Relatora Especial da ONU sobre a liberdade de religião ou de convicção defende o seu relatório . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121 Conselho da Europa – Celebração do seu 60º aniversário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124 Livros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 126 Outros artigos no nosso sítio Internet Temos o prazer de informar os nossos leitores de que o sítio da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa de que Consciência e Liberdade é o órgão oficial, está à vossa disposição em francês, em alemão e em inglês. Na secção “Conscience et Liberté” encontrarão em complemento um artigo do professor Hans Küng intitulado “Lávenir de la jurisprudence islamique: une législation moderne qui constitui un défi”. Não nos foi possível incluí-lo neste número, por problemas de prazos. Convidamo-vos a visitar o nosso site: www.aidlr.org/français/Conscience et Liberté
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Editorial O extremismo religioso e a liberdade religiosa Para este número da Consciência e Liberdade escolhemos como tema “O Extremismo religioso e a liberdade religiosa”. Antes de abordar o assunto, questionámos o que significava “extremismo”, “fanatismo” e “fundamentalismo” religioso e que relação tinham com a liberdade religiosa. Aparentemente, o fanatismo religioso e a liberdade religiosa são dois fenómenos que criam tensões e que, em certa medida, são antinómicas. O extremismo, e mais particularmente o extremismo religioso, tem tendência a ser um entrave para a liberdade religiosa. Com muita frequência cria restrições legais e, em certos casos, fornece às autoridades um pretexto para limitar a liberdade religiosa. Ao abordarmos o nosso assunto, viemos a compreender que o vocabulário usado em volta deste problema era, na maior parte das vezes, vazio. Logo, a primeira dificuldade é, portanto, semântica. O que é que entendemos por “extremismo religioso”? Os termos “fanatismo” e “fundamentalismo” são aparentados? Numerosos autores e oradores utilizam com frequência estas palavras como sinónimos inter-cambiáveis. Falta a todos uma definição clara e admissível. Além disso, o sentido de certas palavras tem evoluído com o passar do tempo. Por exemplo, o fundamentalismo, que era muito mais positivo na sua origem, tem, actualmente, uma conotação pejorativa. Uma vez que estes termos não são claramente definidos, suscitam sentimentos negativos, o que torna a sua compreensão ainda mais subjectiva. O que é um extremista? O que é um fanático? O que é um fundamentalista? Quando consultamos as enciclopédias, corremos o risco de nos sentirmos frustrados pela imprecisão e a subjectividade das definições que aí encontramos. Eis o género de definição que lá se encontra: “Fanatismo designa uma adesão apaixonada e incondicional a uma causa, um entusiasmo duradouro e quase monomaníaco por um determinado assunto, ou uma ligação opinativa, cega e por vezes violenta” (Wikipedia). Uma outra fonte propõe: “O fanatismo religioso pode ser definido como o fanatismo ligado à devoção de uma pessoa ou de um grupo a uma religião. Contudo, o fanatismo religioso é uma avaliação subjectiva definida pelo contexto cultural de quem faz a avaliação. O que pode ser considerado como fanatismo no comportamento ou a crença de outrem é determinado pelas hipóteses de base daquele que avalia. Eis porque não existe, na hora actual, nenhum modelo teórico constante daquilo que define o fanatismo religioso.” O “extremismo” e o “fanatismo” são, em geral, definidos como um desvio em relação a uma norma comportamental aceite por todos, que varia segun4
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do a época, o lugar ou a cultura. “O comportamento de um fanático ou de um extremista será considerado como uma violação das normas sociais em vigor. O objecto da obsessão do fanático pode ser normal, como um interesse pela religião ou a política, o que não é senão a ampliação do seu envolvimento, do seu devoção ou ainda da sua obsessão por certa actividade onde esta actividade ou esta causa é anormal ou desproporcionada.” (Wikipedia em inglês). Será uma questão de intensidade ou de nível de implicação? Pensamos que muito mais do que isso. Ainda podemos encontrar outras definições. O filósofo George Santayana, por exemplo, dizia que “ser fanático é prosseguir nos esforços quando se esqueceu o fim em vista”. Para Winston Churchill, “um fanático é alguém que não pode mudar de opinião e que não quer mudar de assunto”. Qualquer que seja a definição, resulta que o fanático fixa normas muito estritas e demonstra pouca tolerância para com as ideias e opiniões contrárias às suas. Mesmo se não propomos uma nova definição destes termos que seja mais clara e aceitável para todos, damo-nos conta que o fenómeno que eles descrevem, habitualmente, amplifica-se. Instituições internacionais, tais como as Nações Unidas afirmam que o extremismo religioso e a intolerância religiosa estão num claro crescendo em todo o mundo. Abdelfattah Amor, o Relator Especial das Nações Unidas, declarou no seu relatório na Assembleia Geral de 1999 que “nenhuma religião está isenta de extremismo”. O seu relatório mencionava, por outro lado, que era importante fazer a diferença entre os extremistas que se servem da religião para objectivos políticos – e são de facto uma minoria – e aqueles que praticam a sua religião de acordo com os princípios da tolerância e da não-descriminação, e que pertencem à maioria. A história tem provado que o extremismo religioso e o fanatismo de qualquer espécie são hostis à liberdade religiosa e prejudicam-na. Os grupos religiosos que têm tendências extremistas demonstram, geralmente, pouca tolerância para com as outras religiões ou as outras formas de piedade. Em certas regiões do mundo, observamos tendências para a “limpeza religiosa”, logo que as minorias religiosas são sistematicamente expulsas de um determinado território. Por outro lado, há governos que, ao tentarem lutar contra o extremismo religioso, limitam a liberdade religiosa de todos. Para ilustrarmos o nosso ponto de vista, citaremos um comentário pessoal de Nariman Gasimoglu, um erudito natural do Azerbaijão, tradutor do Corão, director do Centre para a Religião e a Democracia em Bacu e antigo investigador associado da Universidade de Georgetown (Estados Unidos): “Os grupos islamitas extremistas, como o partido interdito Hizb-ut-Tahrir, que ainda não beneficiam de um grande apoio, foram reforçados pela repressão, assim como os muçulmanos moderados, os protestantes e as Testemunhas de Jeová sofreram por causa disso. O melhor – talvez o único – meio de contrariar o extremismo religioso, é abrir a sociedade à liberdade religiosa para todos, à 5
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democracia e ao debate livre – incluindo mesmo os grupos islamitas. A única forma de privar o extremismo religioso de apoio é deixando ver a realidade daquilo que o extremismo no poder significaria. A liberdade religiosa favorecerá a democracia, e a democracia favorecerá a liberdade religiosa. Quanto mais deixarmos as pessoas livres para praticarem a sua religião, mais se libertará a sociedade dos problemas de extremismo religioso. A liberdade é uma espécie de remédio contra os problemas sociais, tais como o extremismo”. Publicado por Forum 18 News Service. Uma maior liberdade religiosa – uma maior liberdade de manifestar e de ensinar diversas convicções religiosas – constituiu um poderoso antídoto contra o extremismo religioso. A promoção do direito à liberdade de religião ou de convicção é, não apenas um imperativo moral, mas igualmente uma obrigação pragmática. É o melhor remédio contra o extremismo e o fanatismo e um meio essencial para garantir a segurança do mundo. Karel Nowak
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Estudos A Liberdade de Consciência na doutrina católica das relações Igreja-Estado antes do Concílio Vaticano II Emmanuel Tawil* Desde o século XVIII até ao meio do século XX, a Igreja Católica viu na liberdade de consciência e na tolerância instrumentos brandidos pelos seus inimigos. É verdade que as aparências podem parecer ir nesse sentido: são os filósofos anti-clericais do século XVIII (Voltaire, Diderot, etc.) que insistiram mais sobre esses princípios; a Revolução Francesa, que proclamou a liberdade de opinião no artigo 10º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, rapidamente resvalou para a opressão religiosa após a Constituição civil do clero; o próprio Império, instituindo uma forma de pluralismo confessional controlado (o regime dos cultos reconhecidos), aprisionou o Papa. Mesmo quando a “liberdade religiosa” era invocada pelos ultramontanos fiéis ao Papa – como Lamennais – que viam nela um instrumento útil para defender a Igreja, Roma condenava-a1. Naquilo que se chamou “a guerra das duas Franças” (fórmula de Émile Poulat2) tais noções não relevavam da “França cristã” (Émile Poulat3). Na verdade tem-se tentado utilizar esta expressão dando-lhe um sentido aceitável para a Igreja. O Papa Leão XIII distinguiu, na Encíclica Libertas Praestantissimum de 1888, dois significados possíveis da liberdade de consciência4. Segundo a primeira, compreende-se “que é permitido a cada um, de acordo com a sua vontade, prestar culto a Deus ou não o fazer”. Nesse sentido, a liberdade de consciência não é admissível. Em contrapartida. Leão XIII via uma outra acepção possível da fórmula, que tornava esta perfeitamente admissível: “Podemos compreendê-la no sentido em que é permitido ao homem, no Estado, seguir a vontade de Deus segundo a consciência que ele tem do seu dever; e de cumprir os seus preceitos sem que nada o impeça”. Nesta segunda definição, a liberdade de consciência é, de facto, a liberdade de agir como católico… Trata-se portanto, finalmente, de jogar com as definições das palavras, como se fará mais tarde para a laicidade – que a Igreja Católica acabou por admitir mas dando à palavra um significado bem diferente do sentido 7
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comum anterior5. Apesar de tudo, o simples facto de Leão XIII empregar a fórmula liberdade de consciência – mesmo sendo para torcer o sentido numa direcção favorável à Igreja – é em si revelador da força evocativa desta no fim do século XIX. Apesar desta tentativa de dar à liberdade de consciência um sentido admissível, a Igreja Católica permanece muito desconfiada (parte I). Não é senão a partir do Concílio Vaticano II que se opera uma alteração de perspectiva (parte II). I – A desconfiança para com a liberdade de consciência No Século XIX, a Igreja Católica considerava que não podia admitir, sob o ponto de vista doutrinário, uma liberdade de consciência. Mas esta recusa era temperada por diversos elementos de doutrina que minoravam fortemente a aplicação prática. A. Uma impossibilidade teórica de admitir a liberdade de consciência A questão da liberdade de consciência e da tolerância não é dissociável da doutrina das relações Igreja-Estado, que repousa sobre os princípios de Direito Público Eclesiástico, o jus publicum ecclesiasticum6. Desde logo suspeito, este tornou-se a doutrina dominante em Roma a partir dos anos 1830, em seguida a da Igreja romana a partir do Silabus (Pio IX, encíclica Quanta cura, 18647, que condena as propostas mais directamente contrárias à doutrina da jus publicum ecclesiasticum) e da encíclica Immortatale Dei de Leão XIII (1885)8. Trata-se de uma eclesiologia marcada por uma abordagem jurídico-estatisante da Igreja. O Estado e a Igreja são, ambas, qualificados “Societas perfecta”, isto é sociedades completas que possuem, em si mesmas, todos os meios para a realização dos seus fins próprios. Portanto, se bem que as duas sejam sociedades perfeitas, a Igreja não é menos superior para os fins que ela persegue, os de ordem espiritual, antes mesmo dos fins puramente temporais do Estado. Este carácter de sociedade perfeita e a superioridade dos fins da Igreja implica que o Estado reconheça o conjunto de prerrogativas que lhe permitem assegurar as suas missões, especialmente a independência mais absoluta, as prerrogativas internacionais – direito de legação, Treaty making power, etc. – assim como a soberania temporal sobre o território, mesmo que reduzido. O Estado deve colaborar com a Igreja, as duas sociedades devem manter entre si união e concórdia. Isso exclui toda a separação entre a Igreja e o Estado (Gregório XVI, encíclica Mirari Vos, 18329; Leão XIII, encíclica Immortale Dei10) Nessa época, os pontífices romanos insistiam no facto de que o homem não é livre de honrar Deus ou de não O honrar, de reconhecer a sua dependência 8
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d’Ele ou de se emancipar. Gregório XIII na encíclica Mirari Vos que condenava Lamennais, não tinha escrito outra coisa, qualificando a ideia da liberdade de consciência “de uma máxima falsa e absurda, ou mais do que isso, um delírio11”. E Pio IX reprovou, no Sylabus, a proposta, segundo a qual “não convém que a religião católica seja considerada Procissão dos Padres conciliares por ocasião da abertura Concílio Vaticano II. Foto Peter Geymaier / Wikimedia como a única religião do do Commons. Estado, com exclusão de O Concílio Vaticano II reuniu-se durante quatro sessões, todos os outros cultos12”. de 11 de Outubro de 1962 a 8 de Dezembro de 1965, sob o impulso do papa João XXIII. Depois da morte deste, em Desde logo, compreen- 1963, ele prosseguiu sob o pontificado de Paulo VI. Este de-se que, para a Igreja Concílio era em favor da introdução da liberdade religiosa Católica, o Estado deve nas leis dos Estados e tinha como objectivo reforçar o diálogo com os não crentes e aqueles que não pertenciam “não somente […] profes- à Igreja Católica. sar positivamente e favorecer o catolicismo, mas ainda impedir o livre desenvolvimento e da difusão dos outros cultos13”. Segundo Leão XIII, na Immortale Dei, “a Igreja julga que não é permitido que os diferentes géneros do culto de Deus, tenham direitos iguais aos da verdadeira religião14”. Apenas a Igreja deve poder beneficiar da liberdade de culto e da liberdade de consciência. B. Um conjunto de características que minoram a prática da rejeição da liberdade de consciência Contudo, aos princípios postos desta forma pelos textos estão ligadas tomadas de posição moderadas que minoram seriamente o significado prático. Desde logo, a doutrina da Igreja Católica insistia na recusa em deixar o poder civil exercer uma qualquer pressão sobre as consciências tendo em vista obter a conversão de alguém. Na Immortale Dei, Leão XIII escreveu: “É costume da Igreja vigiar com o maior cuidado para que ninguém seja obrigado a abraçar a fé católica contra a sua vontade, porque, como sabiamente observa Santo Agostinho, o homem não pode crer se não quer15”. 9
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Além disso, essa mesma doutrina admitia a tolerância dos cultos não católicos quando for necessário. São Tomás de Aquino, de quem Leão XIII promoveu o estudo16, podia ser invocado neste sentido: ele considerava que o governo civil, à imagem do governo divino, deveria tolerar o mal no universo – mesmo que o pudesse impedir – fosse por causa dos grandes bens cuja supressão do mal levaria ao desaparecimento, seja porque a supressão desse mal levaria a males maiores. Aplicado à matéria religiosa, isso levaria a considerar que a Igreja deve tolerar os judeus e os seus ritos, porque “do facto dos judeus observarem os seus ritos, que prefiguravam outrora a realidade da fé que nós professamos, resulta esse bem que recebemos dos nossos inimigos, um testemunho em favor da nossa fé, e que eles nos representam como em figura aquilo em que acreditamos. Eis porque os judeus são tolerados com os seus ritos17”. A tolerância para com os judeus está portanto justificada pelo bem que a sua presença traz aos cristãos. Em contrapartida, no que concerne aos outros cultos, a sua supressão não representa a perda de um grande bem, e não devem ser tolerados, salvo para evitar um mal maior: “Quanto aos ritos dos outros infiéis, como não comportam nenhum elemento de verdade ou de utilidade, não há razão para esses ritos serem tolerados. O que há que evitar, é o escândalo ou o desacordo que poderia advir dessa intolerância, ou ainda impedir a salvação para aqueles que, assim tolerados, se voltem, pouco a pouco para a fé18”. Os princípios colocados por São Tomás de Aquino inspiram directamente a doutrina de Leão XIII. Em 1885, na sua encíclica Immortale Dei, este sublinhava: “A Igreja julga que não é permitido colocar os diversos cultos em plano de igualdade com a verdadeira religião, também não condena os chefes de Estado que, tendo em vista um bem, ou impedir um mal, toleram, perante os costumes e os usos, que cada um tenha o seu lugar na Cidade19.” Na encíclica Libertas praestantissimum de 1888, apesar de recordar que não é possível conceder uma liberdade religiosa a todos os cultos, Leão XIII admite que o Estado o possa fazer “se existem causas justas, mas segundo limites definidos, para que isso não degenere em licença e em exuberância20”. Estes princípios foram ainda lembrados por Pio XII na sua alocução de 6 de Dezembro de 1953: “O que não corresponde à verdade e à lei moral não tem, objectivamente, nenhum direito de existência, nem à propaganda, nem à acção. […] O facto de não o impedir através das leis do Estado e de disposições coercivas pode, contudo, justificar-se pelo interesse de um bem superior e mais vasto21”. Podemos ver que a tolerância e a liberdade religiosas não eram apreendidas como valores positivos. Numa obra de Direito Público Eclesiástico 10
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de 1948 podemos ler ainda: “A tolerância frequentemente chamada liberdade de consciência, diz respeito ao culto privado de uma comunidade religiosa, apenas de alguns ou de todos aqueles que existem num território, sejam os Direitos civis dos indivíduos ou das sociedades religiosas. O seu conceito, que implica uma permissão negativa do mal, é, portanto, variável de acordo com os tempos e os locais. Perante os deveres do Estado perante a Igreja Católica e a obrigação que lhe incumbe de afastar todo o mal sobre esses assuntos, o que inclui o de recusar a liberdade aos cultos dissidentes, a tolerância não deveria, jamais, em princípio, ser concedida22”. Felizmente, a Igreja Católica admite explicitamente que o Estado tolera os outros cultos quando isso é necessário. Nunca devemos perder de vista a flexibilidade da doutrina católica das relações Igreja-Estado, mesmo no século XIX, quando aparecia contudo como a mais fechada. Com efeito, distinguia-se entre a tese (a saber a situação ideal, isto é o reconhecimento pelo Estado do conjunto de reivindicações da Igreja – o que ela jamais obteve) e a hipótese (a saber, a realidade das relações Igreja-Estado, que ela tolerava mesmo nos Estados católicos)23. Finalmente, derivando desta distinção, a doutrina da Igreja admitia, ela mesma, que os princípios que ela colocava podiam não se concretizar em determinada situação. II. A mudança de perspectiva operada pelo Concílio Vaticano II O concílio Vaticano II operou uma verdadeira reviravolta de perspectiva. A Igreja Católica alterou a sua visão das outras religiões, adoptando, pelo seu lado, uma abordagem positiva e deixando de ver nelas apenas um mal ou um erro. Desde logo, desde que adoptou uma tal abordagem, mais aberta, a Igreja não podia permanecer na doutrina anterior. Não podia senão dar o passo da aceitação da liberdade religiosa. A abertura às outras religiões, em particular às outras confissões cristãs, e a liberdade religiosa estão ligadas. Especialmente, porque não pode haver um verdadeiro diálogo com as outras religiões sem que seja admitida a liberdade religiosa. Esta é, de qualquer modo, a condição do diálogo. A. A abordagem positiva doutras religiões Desde o Concílio Vaticano II, a Igreja Católica deixou de opor a verdade que ela reclama ao erro em que estariam todas as outras religiões. Na Declaração sobre as relações da Igreja com as religiões não cristãs (Nostra Aetate), os Padres do Concílio decidiram conservar uma abordagem positiva das religiões não cristãs: “A Igreja Católica não rejeita nada do que é verdadeiro e santo nestas religiões. Ela considera com um respeito sincero essas formas de agir e de viver, essas regras e essas dou11
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trinas que, embora difiram em muitos pontos dos que ela própria tem e propõe, trazem, muitas vezes, no entanto, um raio de verdade que ilumina todos os homens25”. Já não é a questão de opor a verdade ao erro, mas de reconhecer os aspectos positivos. E Igreja insiste particularmente sobre o que a aproxima dos muçulmanos e dos judeus. Sobre os primeiros, os Padres conciliares escreveram: “A Igreja vê com estima os muçulmanos que adoram o Deus uno, vivendo e subsistindo, misericordioso e todo-poderoso, criador do céu e da Terra, que falou aos homens26”. Sobre os judeus, insistem sobre “o laço Leão XIII, de nome Vincenzo que liga espiritualmente o povo do Novo Gioacchino Pecci (1810-1903) foi Papa de 1878 a 1903. Ele deseTestamento com a linhagem de Abraão27”. java que a Igreja Católica saísse Sobre as outras confissões cristãs, o do isolamento em que se enconConcílio Vaticano II é ainda mais positivo. trava em matéria de desenvolviQualificando no Decreto sobre o ecume- mentos político e social. Estava nismo, a divisão dos cristãos de “causa de igualmente convencido de que o poder temporal do Papa era escândalo criando obstáculo à mais santa necessário. Devido ao seu intedas causas: a pregação do Evangelho a resse pelas questões sociais, foi toda a criatura28”, os Padres conciliares chamado o “o Papa dos trabalhaafirmam que “todos os que crêem em Cristo dores”. Foto Historical Publishing Pittsburg, PA / Wikimedia e que receberam validamente o baptismo Co., Commons. encontram-se numa certa comunhão, se bem que imperfeita, com a Igreja Católica. […] Justificados pela fé recebida no baptismo, incorporados em Cristo, recebem, com todo o direito, o nome de cristãos e os filhos da Igreja Católica reconhecem-nos com justiça como irmãos no Senhor29”. E acrescentam que essas Igrejas e comunidades separadas podem “certamente produzir efectivamente a vida da graça, e deve-se-lhes reconhecer que dão acesso à comunhão da salvação30”. Elas “não são, de forma alguma, desprovidas de significado e de valor no mistério da salvação31”. A Igreja Católica não renuncia, evidentemente, a considerar que nela “subsiste a única religião verdadeira”. Os Padres conciliares acrescentam que “todos os homens têm a obrigação de procurar a verdade sobretudo no que concerne Deus e a Sua Igreja; e quando a conhecerem, de a abraçarem e de lhe serem fiéis32”. Mas é claro que os outros cultos já não são vistos como um mal, como um erro. A doutrina ante-conciliar que as via dessa forma colocava nesta base o princípio da impossibilidade de lhes reconhecer direitos e recusa de um tratamento igual em Direito Civil. A 12
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partir do momento em que esta doutrina foi abandonada, as suas consequências já não podem ser mantidas. B. A consagração da liberdade religiosa Os Padres conciliares adoptam a única abordagem que esteja em coerência com a abordagem positiva das outras religiões. Desde logo, a Igreja Católica deixa de reivindicar um tratamento privilegiado: “a Igreja não põe a sua esperança nos privilégios oferecidos pelo poder civil34”. Depois, os Padres conciliares insistem no facto de que é pela consciência que o homem descobre Deus que lhe fala: “No fundo da sua consciência, o homem descobre a presença de uma lei com a qual não se dotou a si mesmo, mas à qual deve obedecer. Esta voz, que não cessa de o pressionar a amar e de realizar o bem e de evitar o mal, no momento oportuno, trabalha na intimidade do seu coração. […] A consciência é o centro mais íntimo e o mais secreto do homem, o santuário onde ele está a sós com Deus e onde a Sua voz se faz ouvir35”. O homem deve agir segundo a sua consciência. Não se deve nem obrigar a agir contra a sua consciência, nem impedir de agir de acordo com ela36. É particularmente o caso em matéria de religião: “O concílio do Vaticano declara que a pessoa humana tem o direito à liberdade religiosa. Esta liberdade consiste em que os homens devem ser subtraídos a toda a compulsão por parte quer de indivíduos, quer de grupos sociais ou de qualquer poder humano, de tal maneira que em matéria religiosa ninguém seja forçado a agir contra a sua consciência, nem impedido de agir, dentro dos justos limites, segundo a sua consciência, em privado como em público, só, ou associado a outros37”. Desta liberdade religiosa individual, deriva que a liberdade religiosa deve ser também assegurada às colectividades. Os Padres conciliares escrevem que “grupos religiosos, com efeito, são requeridos pela natureza social tanto do homem, como da própria religião. Desde logo, portanto, que as justas exigências da ordem pública não sejam violadas, esses grupos têm o direito de gozar desta imunidade a fim de se poderem reger segundo as suas próprias normas, honrar com um culto público a Divindade suprema, ajudar os seus membros na prática da sua vida religiosa e sustentá-los através do ensino, promover, enfim, as instituições no seio das quais os seus membros cooperem para orientar a sua vida própria segundo os seus princípios religiosos38”. Conclusão A evolução que ocorreu na doutrina católica com a Declaração sobre a liberdade religiosa, a Declaração sobre as relações da Igreja com as religiões não cristãs e o Decreto sobre o ecumenismo, é fundamental. 13
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A Igreja Católica adopta uma abordagem positiva do diálogo com as outras religiões e as outras confissões cristãs, e, simultaneamente, retém uma doutrina das relações Igreja-Estado baseada na liberdade religiosa. O laço entre as duas, que é evidente, a defesa da liberdade religiosa, em particular da liberdade individual, não é lógico se não se pressupõe uma abordagem positiva para com as outras religiões. E esta não é compatível com as doutrinas do Direito Público Eclesiástico e da recusa da liberdade de consciência, doutrinas que repousam sobre a identificação das outras religiões e confissões cristãs com o mal e o erro. Liberdade religiosa e abordagem positiva dos outros cultos são portanto indissociáveis. Paradoxalmente, os autores fiéis ao Concílio não insistem muito sobre este laço, ao passo que os opositores ao Concílio Vaticano II, o têm feito claramente39. * Professor conferencista da Universidade Panthéon-Assas (Paris II), Doutor em Direito e Doutor em Direito Canónico, diplomado pós-doutoramento pela EPHE (Ciências religiosas)
Notas 1. Gregório XIII. Encíclica Mirari Vos, 1832, Denz. Nº 2730-2732. 2. Émile Poulat, Liberté, Laïcité, Cerf-Cujas, Paris, 1988 3. Émile Poulat, France chrétienne, France laïque, Entretiens avec Danielle Maason, DDB, Paris, 2008. 4. Denz. nº 3250 5. Pio XII, Alocução na colónia dos Marches em Roma, 23 de Março de 1958, La documentation Catholique, 1958, col. 453-457. 6. Roland Mennerath, Le droit de lÉglise à la Liberté, Beauchesne, Paris, 1982; Marie Zimmermann, Structure sociale et Église, Cerdic publications, Estrasburgo, 1981. 7. Denz. nº 2890-2980 8. Denz. nº 3165-3179. 9. Denz. nº 2730-2732 10. Denz. nº 3165-3179. 11. Denz. nº 2730 12. Proposition nº 77, Denz. nº 2977. 13. Roland Minnerath, Le Droit de lÉglise è la liberté, op. cit. p. 112. 14. Denz. nº 3176 15. Denz. nº 3177 16. Encíclica Aeterni Patris, 1879, Denz. nº 3135-3140 17. II-II, Q. 10, a. 11, rép. 18. Idem 19. Denz. nº 3176 20. Denz. nº 3252. 21. Pio XII Alocução de 6 de Dezembro de 1953 aos juristas católicos, Ci Riesce, La documentation catholique, 1953, col. 1605. 22. Nicolas Iung, Le Droit public de lÉglise, Procuradoria Geral do Clero, Paris. 1948, p. 136.
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Emmanuel Tawil 23. Régis-Claude Gerest, “La liberte religieuse dans la conscience de lÉglise. Des mefiances extremes d’hier à la franche acceptation de demain”, in Lumière et Vie, tomo XIII, nº 69, Julho-Outubro de 1964, p. 30-35. 24. Posição defendida por Msr. Willebrands, “La liberte religieuse e l’œcuménisme” in J. Hamer e Y. Congar (sob a direcção de), Vatican II, La Liberté Religieuse, Cerf, Paris, coll. «Unam Sanctam», n~60, 1967, p. 240,241. 25. Concílio Vaticano II, Declaração Nostra Aetate, nº 2 26. Idem, nº 3 27. Idem, nº4 28. Concílio Vaticano II, Decreto Unitatis Redintegratio, nº 1 29. Idem, nº 3 30. Idem 31. Idem 32. Concílio Vaticano II, Declaração Dignitatis Humanae, nº 1 33. Idem 34. Concílio Vaticano II, Constituição, Gaudium et Spes, nº 76. 35. Idem, nº 16 36. Concílio Vaticano II, Dignitatis Humanae, nº3 37. Idem, nº 2 38. Idem, nº 4 39. Mons. Marcel Lefebver, J’accuse le Concile, Edições Saint-Gabriel, Martiny, 1976, em particular p. 95-98.
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O regime de Franco. Do nacional-catolicismo à liberdade religiosa* Jaime Rossell** Ainda há pouco tempo, as identidades nacionais e religiosas de Espanha se confundiam no seio de um sistema, o nacional-catolicismo. Foi finalmente este sistema que transformou as bases do Estado totalitário espanhol. Se bem que tenha sido fundada na defesa do catolicismo, a Espanha reconhece hoje o direito à liberdade de religião e à existência de outras crenças no interior das suas fronteiras1. Para explicar o aparecimento da liberdade religiosa na história de Espanha, é preferível dividir o movimento em três fases: o pré-guerra e a construção do Estado franquista, a crise do nacional-catolicismo e a implantação da democracia. Primeira fase: o pré-guerra e a construção do Estado franquista (1939-1965) Esta fase caracteriza-se por um poderoso monopólio ideológico imposto pelas instituições políticas e sociais em presença na Espanha dessa época. Nos primeiros anos desta fase, a influência dos movimentos fascista e nacional-socialista sobre o país era imensa. O novo Estado espanhol saído da guerra civil não tinha então nenhuma base constitucional. Franco aboliu a maior parte da legislação mantida pela Segunda República e começou a construir um fundamento jurídico/ legal destinado a apoiar e legitimar a sua ditadura. Nesta legitimação, a Igreja e a religião católica desempenharam um papel importante. Imediatamente após o início da Segunda Guerra Mundial, diversos documentos, imanando do episcopado espanhol, lançaram as bases da confessionalidade do novo Estado. O catolicismo como elemento de definição da Espanha e valor fundamental da coesão civil é um assunto que os bispos desenvolveram para impor a doutrina de Leão XIII relativa ao Estado católico2. É evidente que esta apoio dado pela Igreja Católica não será esquecido: Franco utilizou os seus consideráveis poderes para abolir todas as leis da Segunda República que iam contra as suas convicções religiosas. O catolicismo romano tornou-se assim, a única religião a possuir um estatuto legal. Depois da derrota das potências do Eixo, Franco permitiu que os políticos católicos participassem activamente nos assuntos do governo e que ocupassem funções administrativas. Um exemplo desta participação é 16
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vista na presença de prelados no Parlamento (les Cortès), no Conselho do reino (Consejo del Reino) assim como no Conselho de Estado. Os laços entre o regime e a Igreja Católica romana, assim como a evolução dos acontecimentos internacionais, contribuíram para atenuar o elemento fascista deste regime. Em 1945, Franco, consciente do seu isolamento internacional, elaborou um modelo de Estado, definido como nacional-catolicismo mas diferente dos outros movimentos totalitários. Ao nível político, as Leis fundamentais promulgadas entre 1945 e 1965 tentaram dar ao regime uma estrutura jurídica. Mas, como nem todas foram proclamas ao mesmo tempo, o espírito da lei evoluiu ao longo deste período. Em contrapartida, a cabeça do Estado – na ocorrência, Franco – conservou sempre a autoridade suprema. Em Julho de 1945, foi publicado a Fuero de los Españoles (a Carta dos Espanhóis). O seu artigo 6º estabelece o catolicismo como religião oficial do Estado e interdita a prática pública de qualquer outra religião3. A fusão da Igreja e do Estado favorecida pelo franquismo atingiu o seu ponto culminante com a Concordata assinada em 1953 entre a Santa Sé e o Estado espanhol. Por este acto, este último consentia em garantir a exclusividade da religião católica em Espanha e nos privilégios reivindicados pelo Código do Direito Canónico4. Foi também durante este período que o nacional-catolicismo atingiu o seu apogeu. Foi reafirmada a doutrina da Igreja como sociedade jurídica perfeita. A Igreja e as suas instituições foram reconhecidas, assim como as sua autonomia no exercício das suas funções. Houve, igualmente, o reconhecimento do facto do Estado edificar a sua ordem política sobre a lei divina tal como ela era interpretada, apenas, pela Igreja Católica. Em 1958, com a Lei de Princípios do Movimento Nacional, o Estado adopta a doutrina da Igreja Católica como fundamento das suas leis e como limite à legitimidade da soberania do Estado. Durante este período, as relações entre a hierarquia católica nacional e os chefes políticos espanhóis foram harmoniosas. Segunda fase: a crise do nacional-catolicismo (1965-1975) É difícil determinar de forma precisa o que provocou a transformação das relações entre a Igreja Católica e o regime de Franco. No entanto, se analisamos mais de perto, os documentos do Concílio Vaticano II fazem alusão a esta mudança, em particular na Constituição pastoral Gaudium et Spes e a declaração Dignitatis Humanae. Em substância, a Santa Sé sacrificou os privilégios que lhe tinham sido concedidos pelo Estado espanhol para salvaguardar os princípios da autonomia da Igreja e para defender a liberdade religiosa como manifestação da dignidade humana. Com esta alteração de prioridades, é evidente que a Igreja Católica espanhola e o 17
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regime de Franco foram confrontados com um sério problema. Os bispos espanhóis, que até um pouco antes raramente tinham adoptado posições originais ao nível doutrinário, assumiram, sem reservas o conteúdo doutrinal dos novos documentos do Vaticano II. A defesa dos direitos do Homem entrou, então, em conflito com o autoritarismo de regime que se tinha declarado, a si mesmo, católico e que tinha submetido a legitimidade da sua autoridade à doutrina da Igreja. Esta não queria continuar a desempenhar o papel de consciência ideológica Francisco Franco (1892-1975), General do Estado, e é necessário que, quer e ditador espanhol. dirigiu a Espanha de os bispos condenem o regime de 1939 atè à sua morte. Em 1946, introFranco – que os tinha protegido duziu a monarquia sem contudo nomear o rei. Em 1969, designou Joâo Carlos durante todos esses anos – quer o de Bourbon para lhe suceder depois da regime de Franco se coloque de sua morte. João Carlos subiu ao trono a acordo com a Igreja e que garantisse 22 de Novembro de 1975. os direitos do Homem através dos Pintura de Paco Ibeza representando meios legais. o General Francisco Franco. Wikipedia Franco tinha consciência do problema e sabia bem que o mundo ocidental estava extremamente sensível no que dizia respeito à protecção dos direitos do Homem, em particular da liberdade religiosa. Efectivamente, no seu discurso de Natal de 1964, deu a conhecer a sua preocupação em garantir o exercício da liberdade religiosa no país. Mas como o Estado tinha adoptado, como referência moral, a doutrina da Igreja Católica e lhe tinha dado uma importância legal, novos regulamentos e a promulgação de novas leis tornou-se indispensável. Mesmo se essas leis constituíram um passo importante no caminho para a liberdade religiosa para as denominações não católicas, na realidade a sua eficácia foi mínima. Eles estavam cheias das limitações e das restrições habituais do direito de associação, tão típicas do carácter autocrático de regime. Em 1973, a Conferência Episcopal exigiu a separação da Igreja e do Estado e reclamou a revisão da Concordata de 1953. Mas as negociações com vista a esses reajustamentos foram rompidas porque Franco recusou abandonar a possibilidade de apor o seu veto à nomeação do membros do clero pelo Vaticano. Durante todo o restante do seu reinado, o general Franco nunca enten18
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deu esta oposição da Igreja – nenhum outro chefe do Estado espanhol tinha, alguma vez decretado medidas assim tão favoráveis à Igreja! – e queixava-se amargamente daquilo que ele considerava como uma ingratidão por parte desta. Uma vez que a Igreja Católica tinha começado a transformar-se numa instituição moderna uma dezena de anos antes do surgimento da democracia em Espanha, pôde exercer a sua influência durante o período de transição que se seguiu à morte de Franco. Era a primeira vez na história da Espanha que ela desempenhava um papel pró-activo e positivo nos processos de democratização. Terceira fase: o aparecimento da democracia (1976-1980) Com o advento da democracia e a promulgação da Constituição espanhola de 1978, estavam reunidas as condições para a instauração de uma verdadeira liberdade religiosa. A nova Constituição estabeleceu as bases dos direitos democráticos e sociais e instaurou um novo sistema de relações Igreja-Estado. O seu artigo 16 garantiu a liberdade de opinião, de religião e de culto para os indivíduos assim como para as comunidades, apenas com as restrições necessárias à manutenção da ordem pública5. Esta Constituição procura também estabelecer um justo equilíbrio entre o separatismo proclamado pela Segunda República espanhola e o Estado católico do regime franquista. Para isso, o texto englobava implicitamente os quatro princípios orientando as relações jurídicas entre a Igreja e o Estado. O primeiro princípio é a liberdade religiosa. Ela dá coerência aos outros três. A ideia de base é considerada não apenas como uma liberdade fundamental, mas também como uma atitude essencial de Estado perante a religião: ele não deve favorecer um grupo religioso em particular. O segundo princípio é o princípio da laicidade. O Estado é imparcial perante as diversas crenças individuais. O terceiro princípio é o princípio da igualdade e da não-discriminação. Segundo o artigo 14, a não-discriminação é um direito fundamental do Homem. Ela deve aplicar-se inteiramente aos indivíduos e numa certa medida aos grupos religiosos. O último princípio é o princípio da cooperação, que dá o sentido ao sistema espanhol das relações entre a Igreja e o Estado. A Constituição reconhece que o Estado e as denominações religiosas são entidades diferentes com objectivos diferentes e que não são subordinadas uns aos outros. A Igreja e a Estado funcionam na mesma sociedade e não são isoladas uns dos outros, o que exclui, por consequência, um sistema de separação estrita como em França. O Estado e os grupos religiosos têm domínios de interesse comuns porque o primeiro favorece a liberdade religiosa e as outras são canais institucionais ou organizados da liberdade religiosa. 19
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Uma das primeiras tarefas, depois da morte do general Franco, foi dar os últimos retoques num certo número de tratados destinados a substituir a Concordata de 1953. Os que foram assinados em 1979 referiam-se aos quatro pontos principais. O primeiro trata de assuntos de ordem jurídica, como o casamento e o respeito pelos dias religiosos. O segundo prende-se com questões económicas, como a isenções fiscais e as dotações governamentais. A terceira diz respeito à religião e as questões culturais, especialmente o ensino religioso nas escolas públicas, os estabelecimentos escolares controlados pela Igreja e os bens eclesiásticos com valor cultural e histórico. Por fim, a quarta parte trata da assistência religiosa às forças armadas e o serviço militar dos eclesiásticos e dos membros das ordens religiosas. A Lei orgânica sobre a liberdade religiosa, promulgada em Julho de 1980, forneceu um precedente jurídico para todas as disposições contidas na Constituição. Os únicos limites à liberdade religiosa estabelecidos por esta lei dizem respeito a eventuais atentados às liberdades públicas, cujo exercício está expressamente garantido pela aludida lei, e asseguram a salvaguarda da saúde, da moral e da ordem públicas, elementos protegidos pela lei em todas as sociedades democráticas6. A Lei orgânica contém diferentes instrumentos para conseguir a cooperação entre o Estado e as entidades religiosas. O primeiro é o Registo das entidades religiosas. A inscrição neste livro especial – depois de terem cumprido um certo número de condições – confere ao grupo religioso em estatuto legal particular no sistema jurídico espanhol. Este controlo indirecto do carácter religioso foi fortemente criticado, porque encoraja insidiosamente um sistema de Igrejas de Estado a três níveis: as confissões religiosas com acordo, as confissões religiosas sem acordo e os grupos religiosos sem registo. O segundo instrumento da Lei orgânica sobre a liberdade religiosa é o Conselho Consultivo sobre a liberdade de culto. As funções desta última consiste em passar em revista, a reunir e apresentar propostas relativas às questões sobre a aplicação desta Lei e toda a intervenção necessária à elaboração de recomendações para os acordos ou as convenções de cooperação evocadas no artigo 7. A Lei orgânica introduziu um desenvolvimento na verdade novo no sistema do Direito Eclesiástico espanhol: a possibilidade de concluir acordos com as denominações diferentes da Igreja Católica7. É o terceiro instrumento. Para poder assinar estes acordos, são requeridas duas condições: a inscrição dessas denominações no registo das entidades religiosas e a sua notória influência na sociedade espanhola. Em Novembro de 1992, a Espanha assinou acordos com os três seguintes grupos religiosos: as entidades evangélicas, as comunidades israelitas e a comissão islâmica. 20
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Estes tratados, que constituem uma etapa decisiva no sistema espanhol, têm sido, e continuam a ser, muito importantes para essas denominações, uma vez que, pela primeira vez, foi estabelecido um sistema de cooperação entre minorias não católicas e o Estado espanhol. No entanto, uma análiO monumento nacional da Santa Cruz, no vale vul- se destes textos levanta garmente chamado “O Vale dos Caídos”, perto de novas questões. Cuelgamuros, na serra de Guadarrama. É, segundo Estes acordos funcioparece, o maior dos mausoleus da época moderna. nam num sistema jurídiContém as sepulturas de Francisco Franco e do co com leis ordinárias e fundador do movimento fascista da Falange espacomportam disposições nhola, José António Primo de Rivera. Perto de 30 000 similares às que figuram combatentes mortos durante a Guerra civil espanhola repousam na cripta, não longe da nave central. Este nos tratados assinados complexo, que mede 263 metros de comprimento, com a Igreja Católica. contém, também, uma basílica e um mosteiro benedi- Mas ainda que estes últimos tenham servido tino. Foto Sebastian Dubiel/Criative Commons de modelo, os acordos estabelecidos com os não-católicos contêm disposições declaratórias sem conteúdo normativo, mesmo se as denominações não católicas fazem face às mesmas questões que figuram nos tratados com a Santa Sé. Tem-se a impressão de que, na realidade, estes tratados não são resultado de negociações, mas mais documentos criados pelos administradores do Estado, e de que os grupos religiosos devem aceitá-los sem terem participado na sua elaboração. O texto oferece algumas prerrogativas de que as outras denominações não beneficiam. Neste sentido, quanto aos tratados, verifica-se serem um meio de obter vantagens fiscais, de poderem prestar uma assistência pastoral nas forças armadas e nas prisões, de permitir a algumas religiões terem professores nas escolas, de obter a validade do direito civil para os casamentos e de incluírem normas específicas sobre as regras alimentares religiosas e os locais de sepultamento. O sistema de acordos entre o Estado espanhol e os grupos religiosos actua a diferentes níveis. A organização espanhola em “Estado de comunidades autónomas”, nas quais as unidades territoriais políticas podem votar textos com o estatuto de leis, evoca a possibilidade de uma legislação religiosa autónoma ou regional nas zonas que relevam da competência dessas unidades territoriais8. Por exemplo, a unidades territoriais 21
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chamadas “comunidades autónomas” podem assinar acordos. Contudo, é necessário não esquecer que a Constituição não impõe o mecanismo técnico pelo qual esta cooperação deve ser aplicada. Os tratados com as denominações podem ser um meio de pôr em prática esta cooperação, mas é claro que não são o único meio possível, e o facto de existirem não é suficiente para garantir a cooperação. A Lei geral sobre as associações também é aplicada a outros grupos religiosos que não estão protegidos pela Lei orgânica sobre a liberdade de religião, porque não estão registadas como “confissões”. Em resumo, foi necessário um pouco menos de vinte anos para que o sistema jurídico espanhol evoluísse de um Estado católico para um sistema baseado na liberdade religiosa. A procura dos acordos serve para desenvolver a dimensão institucional da liberdade religiosa, favorecendo a liberdade religiosa e respeito pela identidade religiosa dos diferentes grupos. À medida que a Espanha avança no século XXI e que é defrontada com uma maior diversificação cultural da sua população, a liberdade religiosa torna-se, cada vez mais importante. Apesar da história movimentada e a falta de diversidade religiosa em Espanha, o seu governo tem feito, nestes últimos anos, progressos significativos para ter em conta o pluralismo religioso. Ao incorporar os princípios da liberdade religiosa na sua Constituição e nos seus estatutos, a Espanha reconhece a necessidade de uma maior tolerância. Se ela deseja prosseguir e progredir, deve esforçar-se, continuamente, para favorecer a tolerância e o pluralismo reconhecendo as denominações não católicas e cooperando com elas, mesmo quando as suas práticas e as suas crenças religiosas diferem dos valores nos quais ela está historicamente enraizada. * Este artigo é uma versão resumida do original. O texto integral em inglês pode ser consultado no site www.aidlr.org. ** Professor na Universidade da Estremadura, em Espanha Notas 1. Durante muitos séculos, com excepção de curtos intervalos em que as Constituições republicanas de 1873 e 1931 estavam em vigor, a Espanha foi um Estado católico reconhecido. Com efeito, o maior erro da Constituição de 1931 foi a sua hostilidade para com a Igreja católica. A Constituição republicana proclamava o princípio geral da liberdade de religião e de consciência, mas tentando diminuir a influência considerável da Igreja Católica sobre a vida política e cultural do país, impunha severas restrições à verdadeira liberdade das instituições eclesiásticas (artigo 27). Essas disposições restritivas assim como o desenvolvimento pela lei estatutária e a atitude fortemente anticlerical de certos governos republicanos foram largamente responsáveis pelas convulsões sociais e políticas que provocaram a guerra civil em Espanha e que levou à ditadura do general Franco. Ver Lombardia, “Actitud de la Iglesia…” cit,. p. 90 2. Após a vitória dos aliados em 1945, Franco procurou impressionar os poderes democráticos do mundo com credenciais “liberais” da Espanha editando uma lei fundamental que era, digamos, uma declaração
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Jaime Rossell de direitos: a Carta dos Direitos. Os direitos concedidos por esta carta eram mais simbólicos do que democráticos, uma vez que o governo concedia-os e podia suspendê-los sem justificação; por outro lado, a Carta insistia muito mais nos deveres de todos os espanhóis de servirem o seu país e de obedecerem às leis, do que nos seus direitos fundamentais como cidadãos. 3. A título de exemplo dos privilégios, podemos citar o casamento canónico obrigatório para todos os católicos; a exoneração dos impostos governamentais; as subvenções para a construção de novos edifícios; a censura de todo o documento considerado chocante pela Igreja; o direito de criar universidades; de fazer funcionar estações de rádio e de publicar jornais e revistas; a protecção contra a intrusão da polícia nas propriedades eclesiásticas e a isenção do serviço militar para o clero. 4. “1. A liberdade ideológica e de culto dos indivíduos e das comunidades é garantida, sem outras limitações, quanto às suas manifestações, a não ser as que são necessárias para a manutenção da ordem pública protegida pela lei. 2. Ninguém pode ser obrigado a declarar a sua ideologia, a sua religião ou as suas crenças. 3. Nenhuma confissão terá o carácter de religião do Estado. Os poderes públicos terão em conta as crenças religiosas da sociedade espanhola e manterão relações de cooperação com a Igreja Católica e as outras confissões.” www.persee.fr/.../article/pole_1262_1676_2003_num_18_1_1307 de C Proesch - 2003. 5. O artigo 3.1 declara: “O exercício dos direitos decorrentes da liberdade de religião e de culto tem como único limite a protecção do direito de outrem ao exercício das suas liberdades públicas e direitos fundamentais, assim como a salvaguarda da segurança, da saúde e da moralidade públicas, elementos constitutivos da ordem pública protegida pela lei no quadro de uma sociedade democrática.” 6. O artigo 7.1 declara: “o Estado tendo em conta crenças religiosas existentes na sociedade espanhola, estabelecerá, se for o caso, acordos e convenções de cooperação com as Igrejas, confissões e comunidades religiosas inscritas no registo que, em função da sua importância e o número dos seus crentes, terão atingido um enraizamento notório em Espanha. 7. Nestes últimos anos, as comunidades autónomas têm adoptado um papel de líderes nas suas relações com as denominações religiosas em razão da transferência por parte do Estado, do poder legislativo sobre questões como a educação, a saúde, a nutrição, etc. Os diferentes governos autónomos começaram a procurar interlocutores entre as Igrejas estabelecidas nos seus territórios, a fim de tornar possível o exercício efectivo do direito à liberdade religiosa. A Catalunha, por exemplo, pelo decreto 68/2004, criou a Direcção Geral dos Assuntos Religiosos, que depende do Secretário Geral do Presidente da Generalitat da Catalunha.
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O que é a verdade? Émile Poulat*
“Eu sou o caminho, a verdade e a vida”, afirmou Jesus. Palavra do Evangelho. A Igreja cristã tirou uma conclusão fundamental: Fora d’Ele, é o impasse, o erro e a morte, quer para os indivíduos, quer para a sociedade. O Reino de Deus – a Cidade de Deus – começa aqui em baixo com a Igreja e na Igreja. “O que é a verdade?” É a pergunta de Pilatos, dos filósofos e dos modernos. Ela era um absoluto sobre a qual não se transige. Ela cai no relativo, perante questão de opinião, de apreciação, de julgamento pessoal. Cada um tem a sua ideia, de acordo com as suas opiniões. A sociedade deve adaptar-se-lhe para aceitar esta diversidade. O primeiro dos direitos do Homem e a sua pedra angular em nome da liberdade de consciência. Problema terrível: como conciliá-la com o princípio da realidade na vida e com o princípio da ordem na sociedade? A resposta vem do Direito e da ciência. Os juristas dizem-no em latim: “Dura lex, sed lex”. A Lei é a lei. Não se pode senão submeter-se a ela, transgredi-la ou contentar-se com ela. Ela já não é a expressão de uma vontade superior, mas a da vontade geral, pelo menos a da maioria. Cada um permanece livre de pensar o que quiser, mas deve conformar a sua conduta exterior com ela. Neste ponto, permanecemos os fiéis herdeiros do Antigo Regime, apesar da grande mudança que se operou: a “liberdade religiosa” foi adquirida e já não é a religião que está no coração dos litígios… Quanto à ciência, ela restabeleceu os direitos da objectividade e fez tábua rasa de tudo o que não respondia aos seus critérios ou não entrava nas suas categorias. Ela não pode constatar o milagre senão nas condições do laboratório. A alma não se encontra na ponta do bisturi, nem Deus na ponta do telescópio ou, como dizia Gagarine, na órbita do Sputnik. Dessa forma nasceu o conflito entre a Ciência e a Fé. A verdade da Ciência pregou a partida à verdade da Fé. Alguns autores apelaram a uma teoria de “dupla verdade”. Outros esperaram a falência ou a bancarrota da Ciência, ou, ao contrário, o fim da Religião. Uma literatura abundante, polémica ou apologética, ocupa as prateleiras das bibliotecas. Uma equipa inter-disciplinar da Universidade suíça de Zurique esforçou-se para agrupar as posições tomadas pelos cientistas perante a Fé e pelos 24
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teólogos perante a Ciência**; convergência (em três versões), conflito, complementaridade (em três níveis). Esta problemática – a Fé obstáculo à Ciência, a Ciência destruidora da Fé – cujos efeitos culturais e sociais foram consideráveis, remonta ao caso Galileu, desembocou na crise modernista há um século e perdura largamente nos espíritos apesar do seu arcaísmo. É tempo de reconhecer que já não corresponde à situação actual. A Ciência avança, sem se preocupar com a Fé e as suas objecções; a Fé não resiste às descobertas da Ciência, sabendo que para ela isso não é essencial. Já Galileo Galilei, chamado Galileu (1464no tempo de Galileu se dizia: 1642), matemático, físico, astrónomo e “O importante é ir para o céu, filósofo italiano, fez descobertas revolunão o saber como o céu é feito”. cionárias. Retrato de Justus Sustermans, Já não é o tempo em que Bíblia 1636. Foto Wikipeida. era a nossa única enciclopédia, a nossa única imagem do mundo e dos seus habitantes. E eis que, por seu lado, é a Ciência que depois da Fé, se encontra em análise pelas ciências humanas e a reflexão filosófica. A Ciência permanece um poderoso factor de descrença, não porque ela ataque a Fé, mas porque a ultrapassa. Ela naturalizou o conhecimento – não há nisso verdade construída e validade pelo espírito humano – mas, por isso, ela regionalizou-a. Ela não ensina o relativismo de toda a verdade: ela não se ocupa senão de si mesma e das suas aplicações, num universo fechado donde são banidos todos os enunciados que não respondam aos seus critérios e se podem constituir em universos paralelos. Cada um é livre de circular entre elas: é o que se chama a cultura. Se há algo que nestes trinta últimos anos foi adquirido como “científico”, foi, certamente, a ideia de uma interpretação infinita da Bíblia. Nenhuma forma de leitura detém a chave do seu sentido verdadeiro e exclusivo, por fim descoberto e fixo. Houve uma época em que a exegese histórica partilhou esta ilusão, como a Ciência perante a Fé. Ela não tem invalidado e desqualificado senão as leituras infantilmente historicistas. Esta verdadeira revolução cultural tem maltratado a verdade segundo a tradição cristã e confundido o seu estatuto público, sem contudo a afastar e até mesmo deixando-lhe largos espaços. A menos que surja uma impro25
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vável contra-revolução, a questão é doravante medir exactamente o que aconteceu e trabalhar com conhecimento de causa.
* Professor Universitário, director da investigação no CHRS, França ** Pierre Bühler et Charlotte Karakash, ed. Science et foi font sistème¸ Labor ef Fides, Genebra, 1992, 216 p.
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DOSSIER O extremismo religioso e a liberdade religiosa Introdução Os riscos da confusão e das amálgamas Maurice Verfaillie* Muitos, sobretudo entre os cristãos, ficaram chocados com a recente excomunhão pronunciada pelo arcebispo católico do Recife, no Brasil, sobre a equipa médica que realizou um aborto a uma menina de 9 anos, vítima de violação, e contra a mãe da criança que aprovou este aborto. Para lá da reprovação geral, esta condenação deu vigor às interrogações que já tinham sido suscitadas pelo levantamento bem recente por Bento XVI da excomunhão pronunciada por João Paulo II contra a Fraternidade São Pio X. Num outro registo, os media faziam, ao mesmo tempo, eco aos debates sobre as questões do evolucionismo e do criacionismo. Também tem sido frequentemente lido ou ouvido os epítetos usados indiferentemente, de “conservadores”, “integristas”, “fundamentalistas”, sem precisar o seu exacto significado. Os clichés que daí resultam obrigam a clarificá-los, se queremos evitar absurdos ou incompreensões censuráveis. Nesta introdução, abordaremos esta questão apenas no campo das três grandes religiões monoteístas: o Cristianismo, o Judaísmo e o Islão, tendo a consciência de deixar espaço a numerosas questões sem resposta1. A nossa abordagem situar-se-á num plano histórico. A opinião comum associa, geralmente, o fundamentalismo e o integrismo às imagens de identidades religiosas construídas sobre a oposição à modernidade e à secularização2 ou ainda marcadas pelas culturas religiosas fechadas sobre si mesmas; em resumo, a “atitude(s) de crentes que recusam toda a evolução” (dicionário Le Petit Robert, 1996). Fundamentalismo, integrismo. Podemos ficar admirados ao constatar que mesmo Le Petit Robert amalgama estes dois termos. Com efeito, os seus sentidos tornam-se tão flutuantes que podemos ler “fundamentalismo laico”, “integrismo da laicidade”…! Finalmente, é difícil saber do que se trata. Tratando da complexidade de que a palavra “fundamentalismo” se reveste na linguagem actual, dos paradoxos que os seus múltiplos sentidos se revestem e dos caminhos contraditórios que podem seguir, Richard 27
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Autoun, antropólogo americano especializado no estudo das sociedades citadinas jordanas, resume a sua análise escrevendo: “o fundamentalismo pode ser político ou apolítico, pode querer a confrontação ou evitá-la, desejar separar-se ou integrar-se, preocupar-se com o mundo ou preocupar-se com o destino final de uma pessoa no além, temer um inimigo do exterior ou do interior3” Richard Autoun pensa que o termo se tornou ambíguo nos media, depois da revolução iraniana de 1979. Quanto ao impacto destas confusões nos espíritos, Mark Juergensmeyer descreve-o como “um receio irracional anti-fundamentalista4” por vezes legítimo, acrescenta ele, mas que origina frequentemente comportamentos contrários ao respeito pelas pessoas, incitando à violação da liberdade de expressão religiosa. Noutro plano, e como observador avisado, Jean-François Mayer suspeita fortemente da existência, por detrás da amálgama de grupos religiosos de tipos diferentes e a sua qualificação precoce de “fundamentalistas” ou de “integristas”, por vezes de “extremistas”, uma vontade de simplificar ao extremo: “Por detrás da aplicação de etiquetas como “seita” ou “fundamentalismo”, as questões ideológicas nem sempre estão ausentes: como “a seita”, “o fundamentalismo” é sempre o outro, aquele a quem, por isso, se quer apontar o dedo e excluir5.” Outros antes dele tinham reagido da mesma forma6, como Jay Harris, que concluiu que aquilo que a maior parte das vezes cria dificuldades, não são tanto as perturbações que elas podem provocar na sociedade, como o facto não conformar os seus pontos de vista, com os do pensamento dominante. Para explicar o regresso a estas questões, na actualidade, pode ser necessário, como fazem certos autores7, situar esses julgamentos na atmosfera da ressurgência religiosa, após os desencantos do passado e as crises que marcaram a História do Ocidente desde o fim do século XVIII. Como quer que seja, podemos pensar que em França, na Bélgica, na Alemanha e na Suíça, a actualidade movimenta-se em volta dos “assuntos das seitas” e os problemas levantados por um certo islão que têm feito surgir algumas visões de religioso para os quais a opinião pública não estava preparada. Face a estas “singularidades” as imagens negativas prepararam o caminho para julgamentos redutores, como se se tratasse de uma realidade única a despeito de tudo o que separa a sua inspiração. “Mas será que todos estes movimentos participam da mesma lógica ou pertencem a registos diferentes?”, pergunta com razão, Gilles Kepel8. Para terminar estas considerações gerais, resumamos dizendo que no espírito de muitos, hoje, a evocação das palavras “fundamentalismo” e “integrismo” retêm sobretudo a ideia de comportamentos que diabolisam a pesquisa intelectual, a liberdade de consciência e de religião, a separação das Igrejas e dos Estados, a laicidade e os valores do envolvimento social. Parece-nos, portanto, justificado nesta introdução abordar os seus respectivos sentidos. 28
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1. Integrismo Daniel Béresniak defende que “os integristas e os fundamentalistas se assemelham de tal forma que é legítimo confundi-los9”. Mas o historiador das religiões, Ysé Tardan-Masquelier, pelo contrário, precisa que os dois termos “nasceram no cristianismo ocidental no seio de correntes que a si mesmo de designaram como tal. Aplicá-las a outros não se faz sem pôr problemas (sublinhamos nós)10”. “Integrismo” é simultaneamente um termo e um conceito que pertence particularmente ao meio católico. Foi em França que nasceu e que se enraizou o tradicionalismo católico. Se não se conhece a história da “guerra das o festival Bele Chere em duas Franças” (Émile Poulat), é difícil Durante Ashville, na Carolina do Norte, nos decifrar este movimento que se tornou Estados Unidos, um manifestante “tempestuoso, vingativo, radical” (Henri convida os passantes a voltaremTincq) no catolicismo francês e que é -se para Jesus, a estudar a Bíblia classificado de “integrista” pelos católi- e a condenar a homosexualidade. Foto Michael Tracey/Creative cos moderados, desejosos de conciliação Commons com a República. Para muitos, noutros países que não conheceram o conflito que se estabeleceu no seio dessa mesma Igreja, parece quase incompreensível. Como escreveu Henri Tincq evocando o assunto dos bispos da Fraternidade São Pio X: “As brasas que acabam de se reacender a propósito do Vaticano II são bem anteriores ao concílio dos anos 196011”. A “guerra das duas Franças” com, por um lado, a “França das Luzes”, a Revolução e os direitos do Homem, a República, a separação entre a Igreja e o Estado, a laicidade, a democracia e, por outro, a França sagrada, a que “nasceu com o baptismo de Clovis e que vai até Joana d’Arc”, de quem o nacionalista católico Jean-Marie Le Pen fez a sua musa. Dito de outra forma, a França da “Contra-Reforma”, da “Contra-Revolução”, da recusa em aceitar a República de Charles Maurras, que queria fazer do catolicismo um programa político, depois a do marechal Petain, anti-judeu e, finalmente a dos opositores ao Vaticano II. Mesmo sem fazer uma amálgama de todos os católicos nostálgicos da missa em latim (pela sua solenidade e o seu decoro), pode dizer-se que os partidários da “França sagrada” têm em comum fortes tradições familiares católicas, referências a um passado glorioso da sua “Igreja” e mágoas misturadas com uma aversão à sociedade e à Igreja Católica modernizada12. A sua heran29
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ça religiosa permanece fixa no Concílio de Trento (1545-1563) e o seu catecismo aprendido de cor, a leitura da Bíblia unicamente no latim da versão dita “Vulgata”, o velho breviário assim como a missa do Santo Pio V dita em latim e qualificada como “missa de sempre”. Esta IgreManifestação silenciosa diante do edifício da ONU em ja apenas tem um Genebra, em 2009. Cristãos reclamam a liberdade pilar: Roma. Repousa religiosa para os seus correlegionários do Paquistão. na figura sagrada do Estes últimos foram alvo de ataques violentos na padre e da separação província de Punjab: um grande número dentre eles entre a Igreja – como foram mortos ou gravemente feridos. Foto WWW.CSI- hierarquia eclesial scweiz.ch produzindo a doutrina e dispensando a salvação e os sacramentos – e os fiéis. Sabe-se que este ramo marginal do catolicismo não aceitará jamais o Concílio Vaticano II nem a sua declaração sobre a liberdade religiosa e libertação da Palavra do Evangelho em proveito do povo dos crentes. Pio VI apoiava esta corrente. Ele não admitia a queda do Antigo Regime, com a sua ordem: “uma fé, uma lei, um rei”. Também foi com a Revolução Francesa que se instalou uma grande fractura no interior do próprio catolicismo. A crítica do novo regime político francês pelos papas atravessou o século XIX até Leão XIII (1878-1903) que, em 1892, finalmente convidou os católicos à união com a III República. Contudo, os traços desta ruptura ainda hoje permanecem acentuados de novo com a crise integrista desde o momento em que o Concílio Vaticano II fez ver ao mundo católico a face de um catolicismo que admite que a Declaração dos Direitos do Homem não se afasta do espírito do Evangelho, de uma Igreja que publica a declaração Dignitatis humanae. Foi em 1910 que o termo “integrista” fez a sua aparição no vocabulário católico. É usado por aqueles que se colocam na linha recomendada por Leão XIII, denunciando os defensores deste ramo delator – que visava todo o padre, todo o bispo e todo o leigo suspeito de “modernismo”. Estes últimos designavam-se a si mesmos como sendo católicos “integrais”. Seria, portanto, mais correcto falar de “integralismo” do que de “integrismo”, mas foi este último termo que prevaleceu. Hoje, predomina a ambiguidade, depois da iniciativa de aproxima30
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ção de Bento XVI com os sucessores de M. Lefebvre e os bispos da Fraternidade de São Pio X. Esta comunidade está actualmente dividida entre os moderados que queriam aproveitar os esforços do Papa – julgando que é uma oportunidade histórica para voltar a discutir as aquisições do Concílio Vaticano II – e os radicais que desejam conservar as distâncias. Os seus membros consideram o Papa Bento XVI como o “seu papa”, conservador na doutrina, próximo na liturgia e pensam que ele porá fim ao parêntesis dos papas do concílio de João XXIII a João Paulo II. Do lado de Roma, parece que interpreta mal, acreditando que multiplicando as concessões acabará por conseguir essa união e o regresso das “ovelhas transviadas”, tem as vistas mais largas. 2. Integrismo e fundamentalismo, a diferença É falando de posições tão radicais que os media utilizam estes termos “integrismo” e “fundamentalismo”, que aplicam tanto aos meios católicos como protestantes. Seremos sem dúvida, tentados a pensar que a emergência do integrismo católico, que resulta do conflito de que acabámos de falar, se parece muito a uma forma da contestação protestante observada no século XIX nos Estados Unidos. A diferença é, no entanto, importante. “É confundir uma defesa da infalibilidade de uma Tradição (integrativa) e de uma instituição eclesiástica, por um lado, e a doutrina da inerrância de um texto, na ocorrência a Bíblia, por outro”, escreveu Jean Baubérot13. Com efeito, por um lado, o Magistério romano apega-se a defender uma tradição eclesial considerada como uma continuidade apostólica e o critério soberano da interpretação das Escrituras (ver Encíclica Pascendi, de Pio X, 1907) e, por outro, os protestantes chamados “fundamentalistas”, que procuram preservar as suas doutrinas contra alguns excessos de uma hermenêutica liberal da Bíblia. 3. Os fundamentalismos a. Entre os judeus e os muçulmanos Seria interessante, mas muito vasto, demorarmo-nos sobre a questão da aplicação da noção de fundamentalismo nos meios religiosos judaicos e muçulmanos. Diremos apenas, em resumo, que nos meios religiosos judaicos, segundo Émile Moatti, delegado geral da Fraternidade de Abraão e membro do comité director da amizade judeo-cristã de França, em Paris, “o método pedagógico da Tora consiste em descrever todos os desvios possíveis, todos os defeitos do género humano arrastado pelas suas paixões a agir erradamente”. O objectivo é “[…] que possamos permanecer vigilantes, a fim de evitar cair nos mesmos erros exercendo a nossa vontade em fazer o bem14”. Segundo este autor, há duas grandes causas das derivas fundamentalistas no seio do judaismo: “considerar que a Tora é a uma revelação sagrada pelo que é preciso adoptar as 31
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directivas na sua integralidade e no sentido literal absoluto; renunciar a todo o espírito crítico e a todo o julgamento”. E disso resulta, escreve ele: “o fechar-se sobre si mesmo, como fazem algumas comunidades judaicas”. Será esta, talvez, a recordação dolorosa de perseguições no seio de sociedades dominantes? Mas ele acrescenta que, se esse fundamentalismo judeu pode levar a um integrismo judeu no qual as regras de comportamento fixadas pela Tora (o Talmude) são intangíveis, o conjunto dessas regras chama-se a Halakha (do verbo “ir”, “avançar”), isto é, que podem evoluir15. No que respeita aos meios muçulmanos, referimo-nos à análise de Massimo Introvigne, historiador e sociólogo das religiões. Ele examina o Islão a partir da teoria dos “nichos16 ”, termo emprestado do vocabulário da economia de mercado. Ele situa as organizações religiosas muçulmanas e o seu ensino segundo uma graduação composta de cinco “nichos”: os ultra-progressistas, os progressistas, os conservadores, os fundamentalistas estritos, os fundamentalistas ultra-estritos (extremistas). À medida que se progride de um “nicho” para outro, a tensão no interior do grupo religioso torna-se mais forte. Segundo ele, o problema provém do facto daqueles que se voltam para os “nichos” progressistas. Eles introduzem na ouma (a comunidade muçulmana mundial) elementos de distorção. O sociólogo italiano cita os exemplos da Palestina, da Turquia, da Argélia, do Irão, do Iraque, do Afeganistão e das franjas da emigração muçulmana na Europa. Aparece então na cena internacional a opção ultra-fundamentalista com “as suas acções subterrâneas” e as suas violências. b) No seio do protestantismo Segundo o Dictionnaire étymologique Larousse, a palavra “fundamental” deriva do latim, e está em uso no francês desde 1640. “Fundamentalismo” é um vocábulo que hoje se desviou do seu sentido histórico. Ele provém do vocabulário religioso dos Estados Unidos no início do século XX. Mais precisamente, nasceu no meio baptista. Com efeito, depois da criação da “World’s Christian Fundamentals Association”, em 1919, o editor do jornal baptista The Watchman Examiner, Curtis Lee Laws, empregou, em 1920, o termo inglês “fundamentalists” para designar aqueles que defendiam as suas posições doutrinárias expostas nos fascículos de teologia que apareceram de 1910 a 1915 sob o título The Fundamentals, A Testemonies to the Truth17. Estes escritos eram assinados por cerca de quarenta teólogos e homens da Igreja americanos e europeus. A obra representa uma reacção quer ao liberalismo protestante quer ao movimento “Social Gospel” do século XX. Eles tratam dos pontos de doutrina que eles consideravam como “fundamentais” para a fé cristã e coloca a ênfase da inerrância das Escrituras, como base da sua teologia18. Designavam-se a si mesmos como “fundamentalistas”, 32
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opunham-se ao darwinismo e ao seu ensino nas escolas públicas americanas. Em 1920, William Jennings Bryan (1860-1925) lançou nos Estados Unidos uma campanha anti-evolucionista que dará lugar ao processo de Dayton (Tennessee, Estados Unidos) e à sua derrota. Os anos 1980 e seguintes marcaram um reaparecimento do fundamentalismo protestante americano, com a tentativa de introduzir a oração nas escolas públicas. Esta acção já tinha sido amplificada pelo movimento da “Maioria Moral”, fundado em 1979 pelo pastor Jerry Falwell. Com os seus partidários, este pretendia defender os valores tradicionais dos Estados Unidos, julgados comprometidos pela evolução da sociedade e da cultura. Em 1980, além do apoio à presidência de Ronald Regan, essas correntes envolveram-se em “cruzadas” contra o aborto e a homossexualidade, com o apoio dos “téle-evangelistas”. Em 1992, quando Bill Clinton chegou à Casa Branca, a corrente fundamentalista surgiu de novo na cena política. A “Aliança Cristã” de Pat Robertson e de Ralph Reed arrolou cerca de 1,5 milhões de adeptos e exerceu uma forte influência sobre o eleitorado republicano. Jean-Paul Willaime nota que “a orientação e a sensibilidade fundamentalistas não são o apanágio do protestantismo norte-americano”. Encontramo-lo na América latina, no sul do continente africano e em diversos protestantismos da Europa – na Alemanha dos anos 1970, por exemplo, com o movimento “Kein anderes Evangelium”. “De uma forma geral, escreveu ele, pode dizer-se que o fundamentalismo protestante se manifesta como um movimento de resseguro doutrinário e ético nos períodos de grandes mudanças sociais e culturais, um movimento que põe em jogo um certo tipo de relação com o texto bíblico19”. Com efeito, é significativo observar que as afirmações e as implicações doutrinárias da crença na inerrância do texto bíblico foram reafirmadas nos detalhes ou através de Declarações de 1978 a 1989, no meio das agitações sociais e culturais que surgiram na Europa durante estes decénios. Ao terminar esta introdução, faremos duas observações. A primeira liga-se à reflexão de Jean-Paul Willaime: “É necessário não unir o fundamentalismo ao protestantismo evangélico. Este último, que apresenta várias faces, não é forçosamente fundamentalista no sentido histórico do termo: há protestantes evangélicos que com efeito, integram certas abordagens de exegese histórico-crítica e não têm relação com o literalismo do texto bíblico. […] Por outro lado, se o fundamentalismo representa uma sensibilidade particular no protestantismo, também se pode dizer, compreendendo o termo “fundamentalismo” num sentido largo e não histórico, que o protestantismo, com a sua afirmação de sola scriptura é um fundamentalismo no sentido em que quer reafirmar o fundamento escriturístico da fé cristã e apegar-se a esse fundamento contra toda a interpretação que aparece divergente. Mas é necessário então acrescentar, na mesma ordem de ideias, que o protestantismo é igualmente um liberalismo (livre exame e relativização dos magistérios eclesiásticos 33
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teológicos e morais). É desde logo a tensão entre um certo “fundamentalismo” e um liberalismo que é constitutivo do protestantismo20.” A segunda observação relembra aquilo que já sublinhámos: a confusão no uso dos termos “fundamentalismo”, “integrismo” e “extremismo” criando muitas vezes amálgamas e ideias-força, como se se estivesse a falar de uma realidade única, a despeito de tudo o que separa a inspiração dos grupos religiosos referidos. Voluntária ou involuntariamente, corre-se o risco de lançar os germes de reacções de intolerância, dando indiferentemente a todos os mesmos comportamentos anti-sociais, a mesma diabolização de pesquisa intelectual, a mesma recusa do direito à liberdade de consciência e de religião, a oposição à separação das Igrejas e dos Estados. À laicidade do Estado e aos valores de envolvimento social. * Antigo Secretário Geral da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa e antigo redactor chefe da revista Conscience et Liberté. Notas 1. Ver, entre outros: Jean-François Mayer, Les fondamentalismes, Edições Georg, Chêne-Bourg, 2002; Jean-Paul Willaime, «Fondamentalisme», in Pierre Gisel, Encyclopédie de protestantisme, Edições Labor et Fides, Genebra, 2006, p. 523,524; Richard T. Autoun., Understanding Fundamentalism: Christian, Islamic and Jewish Movements, Rowman and Littlefield, Lanham, MD, (EUA), 2001; Faculdade de Teologia Adventista, Chretiens, juifs et musulmans à l’épreuve de l’intégrisme, Actas do Colóquio de 23 a 25 de Abril de 2004, Collonges-sous-Salève, França. 2. “[…] neste fim do segundo milénio da era cristã espalhou-se um sentimento de inquietude, face às gigantescas alterações que se deram nestes últimos anos na organização do mundo e ao caos que se nos apresenta – depois da desagregação do império soviético, por exemplo. Nesta clima de incerteza, perda de marcos, bons e maus, que estruturavam as relações internacionais e a ordem mundial desde 1945, de numerosos movimentos de reafirmação do religioso sobre a cena política que surgiram no decurso destes últimos quinze anos. Sejam judeus, cristãos ou muçulmanos, consideram que os males da humanidade vêm da razão humana se ter crido emancipar da fé, da observância das injunções contidas nos textos sagrados. Para eles, o processo de secularização, da perda de controlo da religião sobre a organização social e política, inaugurada com o Século das Luzes, produziu directamente os piores males do século XX: o nazismo, o estalinismo, que esqueceram que o homem é, desde logo, a criatura de Deus; mas também estas forças de deslocamento social que são a toxicomania, a “guetização” dos arredores das cidades, o considerável desenvolvimento da xenofobia, do racismo e dos processos de exploração. Para sair destes impasses do nosso tempo, alguns novos movimentos, cristãos, judeus, muçulmanos, advogam o regresso à estrita observância dos mandamentos da religião, quer na vida privada, quer na existência pública. É a aplicação da Chari’a no mundo muçulmano, da halakha no mundo judeu, o combate para interditar o aborto, por exemplo, no mundo cristão. […] Mas será que todos esses movimentos participam da mesma lógica ou pertencem a registos diferentes?” Gilles Kepel, “Mobilisations religieuses et désarrois politiques à l’aube de l’an 2000”, in Frédéric Lenoir, Ysé Tardan-Masquelier, Encyclopedie des religions, edições Bayard, Paris, 1997, vol. 2, p. 2411. 3. Richard T. Autoun, Understanding Fundamentalism: Christian, Islamic and Jewish Movements, Rowman and Littlefield, Lanham, MD, (Estados Unidos), 2001, p. 160. 4. Mark Juergensmeyer, “Antifundamentalism” in Martin Marty, Scott Appleby, ed. Fundamentalism comprehended, Imprensa da Universidade de Chicago, Chicago-Londres, 1995, p. 353. Citado por JeanLuc Rolland, “Adventism et fondamentalisme: évaluation d’une distance”, in Chétiens, juifs et musulmans à l’épreuve de l’intégrisme, Actas do colóquio da Faculdade de Teologia, de 23 a 25 de Abril de 2004, Collonges-sous-Salève, 2006, p. 26. M. Juergensmeyer está ligado ao departamento de Sociologia da Universidade da Califórnia, Santa Bárbara. 5. Jean-François Mater, ob. cit.,p. 8. Ver Jay Harris, “Fundamentalism: objections from a modern Jewish
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Maurice Verfaillie Historian”, in John Harvey Stratton, ed., Fundamentalism and gender, Imprensa da Universidade de Oxford, Nova Iorque-Oxford, 1994, p. 137-173. John H. Dtratton é professor de História Comparativa das Religiões na Harvard Divinity School. 6. Ver Massimo Introvigne. Gorden J. Melton, e outros, Pour en finir avec les sectes, O debate sobre o relatório da comissão parlamentar, Edições CESNUR – Di Giovanni, Paris, 1996. 7. Assim, Kathy Rousselet: “A religião renasce hoje simultaneamente sobre os escombros da ideologia e os de uma certa “modernidade”. Perante a ausência de consenso social, faz-se apelo aos “valores morais universais”, que deverão servir como o cimento da sociedade. Perante o fracasso da utopia da promessa de uma conquista científica e técnica do mundo, o homem procura novas crenças. A crise moral, económica e ecológica deixa antever uma iminência do apocalipse. Síntese destes diversos fracassos, a catástrofe de Chernobil mostrou a urgência da procura de valores eternos.” Katht Rousselet, “Les ambiguïtés du renouveau religieux en Russie”, in Gilles Kepel e outros, Les politiques de Dieu, Le Seuil, Paris, p. 1201,1202. 8. Ver Nota 2. 9. Daniel Beresniak, Les Intégrismes: idéologie du désir paranoïaque, Edições Grancher, Paris, 1998, p. 18. Citado por Jean-Luc Rolland, “Adventism et fondamentalisme: évaluation d’une distance”, in Actas do colóquio da Faculdade de Teologia, de 23 a 25 de Abril de 2004, Collonges-sous-Salève, 2006, p. 28. 10. Ysé Tardan-Masquelier, “Mises au point” in Le Monde des Religions, Setembro-Outubro de 2003, p.29. 11. Henri Tincq. “La guerre des deux France”, in Le Monde des Religions, 25, Maio-Junho de 2009, p, 6 12. Idem 13. Jean Bauberót, “Integrisme”, in Pierre Gisel, ed. Encyclopédie du protestantisme, Edições Quadrige/ PUF/Labor et Fides, Paris-Genebra, 2006, p. 633. 14. Émile Moatti. “La propagation de l’idéal biblique universel de justice et de solidarité” in Actas do colóquio da Faculdade de Teologia, de 23 a 25 de Abril de 2004, Collonges-sous-Salève, 2006, p. 127,128. 15. Idem p. 127-130 16. Ver Massimo Introvigni, Fondamentalismi, I diversi volti dell’intransigenzia religiosa, Piemme, Edição Casale, Monferrato (Alessandria), 2004. Ver tambm, idem, “Les extremismes religieux”, Definições e abordagem sociológica, in Chétiens, juifs et musulmans à l’épreuve de l’intégrisme, Actas do colóquio da Faculdade de Teologia, de 23 a 25 de Abril de 2004, Collonges-sous-Salève, 2006, p. 7-23. 17. The Fundamentals, A Testemonies to the Truth foi reeditado em 1998, 12 tomos, em 4 volumes. Edições Garland. Nova Iorque, 1988. 18. Entre outros, o nascimento virginal de Jesus, a Sua ressurreição corporal, a Sua divindade, o sacrifício expiatório e, sobretudo, a inerrância do texto bíblico original. “Este último ponto é particularmente importante: todos os fundamentalistas estão de acordo em dizer que a Bíblia está isenta de erros, mesmo se não interpretamos esta doutrina de igual maneira. Contra as interpretações liberais ou espiritualistas dos textos bíblicos e contra a exegese Histórico-crítica, os fundamentalistas querem salvaguardar a objectividade das crenças cristãs, a sua factualidade. Eles pensam que a Palavra de Deus é a Bíblia (e não que está na Bíblia). Mesmo se a doutrina da inerrância bíblica admite que são os textos na linguagem original que são divinamente inspirados, esta doutrina incita numerosos fundamentalistas a sacralizar tal ou tal tradução da Bíblia, especialmente a sua tradução inglesa, a famosa King James Version¸de 1611. Quando apareceu a Revised Standard Version (Novo Testamento), em 1946, e a Bíblia completa em 1952, alguns ultra-fundamentalistas consideraram que ela resultava de um complot liberalo-comunista e viram nela “a Bíblia do Anticristo”. Jean-Paul Willaime, “Fundamentalisme”, in Pierre Gisel, e outros, Encyclopédie du protestantisme, Edições Quadrigue/PUF/Labor et Fides, Paris-Genebra, 2006, p. 523,524. 19. Jean-Pal Willaime, Idem, p. 524
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O Relativismo cultural: um perigo político Heinz Theisen*
A cultura dos contrários na Europa. A Europa é uma cultura de contrários, os quais se mantêm em equilíbrio através do jogo da reciprocidade estrutural. Em domínios de tensão como Religião e Política, Cristianismo e Luzes ou Estado e Mercado, a palavra “e” desempenha um papel determinante. Na Alemanha, por exemplo, a separação e a complementaridade da Igreja e do Estado coexistem desde o Jardim de Infância e a Escola. Este “e” europeu encontra raízes espirituais no Cristianismo. A expressão beneditina “Ora et Labora” (orar e trabalhar), com a sua reciprocidade entre o mundo interior e o exterior, espiritual e material, poderia ser considerada como a origem do Ocidente. A dialéctica cristã entre Deus e os homens, entre o amor a si próprio e o amor ao seu próximo, com o “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” lançou os fundamentos da diferenciação actual dos sistemas fundamentais da Religião, da Política, da Ciência, do Estado e da economia de mercado. Cada um deles segue a sua lógica própria mas deve igualmente completar os outros sistemas. 36
A liberdade de acção de que gozam estes diferentes sistemas apenas tornou possível a dinâmica das sociedades ocidentais. No ideal, a complementaridade destes contrários deveria conduzir a uma reciprocidade de motivações espirituais e materiais, entre moral e interesse e entre o bem pessoal e o bem comum. Mas as tensões e reciprocidades produtivas entre estes diferentes domínios estão sempre ameaçadas pela parcialidade totalitarista ou a dissolução relativista. Se se renuncia à tensão entre religião e valores esclarecidos, a cultura europeia falha. Onde as relações de força entre a religião e mundo são negadas, como no caso do relativismo, ou combatidas, como no totalitarismo, está em risco de se perder esse “e” e, com ele, a identidade da Europa. O relativismo e o totalitarismo têm em comum, como todos os extremismos, a rejeição da reciprocidade. A dissolução crescente das reciprocidades na Europa fez nascer o homem bem pensante que nega o pecado e a culpabilidade, e também, a responsabilidade do ser humano. Como ele considera quase todos os homens como vítimas da “descriminação”, renuncia à reciprocidade: isso explica a ausência
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de tolerância mútua e de reciprocidade dos direitos e deveres entre os imigrantes. Em virtude deste relativismo cultural, os valores culturais são equivalentes. A partir daí, mesmo culturas que recusam o princípio da igualdade dos valores e que representam uma ordem de valores contrários aos da cultura ocidental – como, por exemplo, a prioridade da colectividade sobre o indivíduo ou a união da religião e da política – são consideradas como sendo de valor igual. Os diálogos, muitas vezes travados num espírito relativista, baseiam-se, desde logo, sobre teorias absurdas. Falta a estas discussões, que não são obrigadas à verdade, um critério comum; trata-se apenas de uma troca de opiniões. O “Diálogo de Culturas” ameaça, assim, tornar-se a incarnação de um credo relativista, no qual a sua verdade não tem mais valor do que a dos outros. A hipótese segundo a qual tudo é relativo deve começar pela sua própria excepção. É o que acontece constantemente quando o relativismo se proclama como verdade. Interditar estabelecer diferenças, mesmo que seja politicamente correcto, acaba no fim de contas com a liberdade de pensar. Para uma cultura como “a ordem de valores” esta multidão de valores é uma ameaça. Toda a cultura tem por princípio julgar o seu próprio valor, porque ela determina o que é a cultura. A multiplicidade de valores propostos impede a aquisição do discernimento ético, a
capacidade de distinguir o bem do mal e de praticar as virtudes correspondentes – a tolerância, o amor à paz e a responsabilidade. Estas atitudes e estas virtudes que tornam possível o exercício da democracia não se obtêm através de apelos ou de injunções. Devem ser vividas e praticadas repetidamente1. O desafio islâmico Nada há a dizer sobre o fundamentalismo como reflexão sobre os seus próprios fundamentos, desde que estes últimos não pretendam deter uma verdade de carácter totalitário. O fundamentalismo evangélico, por exemplo, que pugna por uma separação estrita da Igreja e do Estado, não coloca nenhum problema político. Mas, se, como no islamismo, o fundamento repousa na unidade afirmada da religião e da política, é incompatível com a cultura europeia. O islão é mais do que uma religião. Ele constitui uma visão global do mundo, segundo a qual a vida quotidiana, a política e a fé formam uma unidade indivisível. Todos os movimentos totalitários repousam sobre a aspiração a uma solução definitiva dos problemas, e, portanto, a uma redenção (“O islão é a solução”). Esta concepção está em contradição com a imagem que a sociedade tem de si mesma, a que deixa Deus decidir a solução absoluta2. A dinâmica totalitária não se detém nem diante das fronteiras dos sistemas funcionais e parciais 37
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modernos, nem diante das fronteiras das outras culturas. O imperialismo islâmico, sob a forma da Djihad, incarna o novo inimigo declarado da sociedade aberta. Este terceiro totalitarismo é, ele também, desconhecido e subestimado ainda hoje pelos mediadores, os pacifistas e os partidários do diálogo das culturas3. Como, segundo eles, “temos o direito de proteger a nossa liberdade até à morte”, eles privam a democracia dos métodos da “democracia defensiva” desenvolvidos contra os nazis e os comunistas, a saber: “nenhuma liberdade total para os inimigos da liberdade”. Na medida em que eles concedem “a liberdade religiosa” mesmo para os djihadistas e consideram--nos, sem razão, “combatentes da liberdade oprimidos”, passam ao lado do seu carácter fundamentalmente totalitário. No estudo sobre a Djiahd, Walid Phares descreveu como, em 2001, os utopistas, os pacifistas americanos tinham por isso sido responsáveis pela cegueira perante a – não tão nova – ameaça islamita. Os atentados praticados durante os anos 1990 contra as instituições americanas, tendo como resultado a morte de centenas de pessoas, foram considerados como obra de criminosos isolados ou como a expressão de conflitos ou movimentos de libertação locais. Foi necessária a tragédia do 11 de Setembro para que a maioria dos americanos compreendesse a quem ele se dirigia. A resposta atabalhoada dos serviços secretos america-
nos foi a consequência tardia da má avaliação de um desafio mortífero. Ainda hoje se encontram, regularmente, intérpretes do Corão que reduzem a Djihad a uma espécie de ioga espiritual, uma forma de lutar contra os seus próprios vícios. Esta interpretação particular existe efectivamente, mas não tem nada que ver com a política. Refere-se-lhe, unicamente, para negar toda a interpretação política – contudo, pertinente – releva já da traição intelectual relativa às nossas legítimas necessidades de segurança. Em contrapartida, na interpretação política, a Djihad serve para preparar a guerra contra os infiéis. A lógica totalitária do “califado” – na qual os assuntos seculares e religiosos se confundem – compreende-se como um todo onde se faz um esforço para ser “autêntico” sem se perder na contradição. A traição para com a sua “cultura da morte” fornece aos islamitas munições para os seus ataques. Basta-lhes recopiar as frases – se necessário tiradas do seu contexto – de críticas da cultura ocidental. Bibliotecas inteiras foram escritas contra Huntington, como se ele tivesse inventado a guerra das culturas, que apenas se contenta em descrever. Quanto a nós, uma tal negação da ameaça acaba por trair os muçulmanos que lutam por uma renovação democrática do mundo muçulmano. A jurista de origem somali, Ayaan Hirsi Ali, saudou os liberais europeus que se opuseram ao facto 38
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As consequências desta interdição de marcar as diferenças revelam-se fatais se nem mesmo é permitido distinguir entre os amigos e os adversários, ou os inimigos da nossa cultura. O islamita não tem opinião. Toda a sua existência é consagrada a assumir a sua identidade. Ora, para ele, um “melhor argumento” não A mesquita Mevlâna, centro espiritual da comunidade islâmica turca em Constança, na Alemanha. Foto Eli é um argumento mas exactamente uma ameDiez-Prida/church-photo.de. aça para a sua identidade se forçarem as pessoas a crer e de. O islamismo repousa, portanto, a seguir os costumes e que, dessa essencialmente na recusa do discurforma, despertaram o pensamento so liberal. crítico nela e noutros muçulmanos liberais. Reprovou, no entanto, Relativismo e universalismo uma tendência singular a acharem O relativismo cultural apega-se que são os únicos responsáveis por resolutamente a uma justaposição todos os males e a considerarem o resto do mundo como vítimas. de culturas, o que é sempre mais Eles criticam os Estados Unidos e realista do que a mistura “transnão o mundo islâmico, assim como cultural” de que se ouve, frequenno passado também não criticaram temente, falar. Esta forma de relaos golagues. Não se aperceberam tivismo, não toma a sério, nem os de que, evitando escrupulosamen- seus próprios valores nem os das te submeter à sua crítica todas as outras culturas. Para os relativisculturas não ocidentais, encerram- tas, estes valores parecem relativos, -nas no seu “mundo atrasado”. opcionais, mutáveis, manipuláveis Ele interpreta este comportamento e adaptáveis. As réplicas americanas condesta forma: com efeito, os liberais sentem-se superiores e não consi- tra o islamismo depois do 11 de deram os muçulmanos como inter- Setembro foram muito precipitadas locutores de nível equivalente, mas e pouco empenhadas, porque elas mais como pessoas diferentes, com nos arrastaram para muito longe os quais se deve ter cuidado pois num território desconhecido. O podem, face à crítica, encolerizar- intervencionismo liberal das potências ocidentais não se contenta em -se e recorrer à violência4. 39
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querer dar uma ajuda humanitária, como no caso de uma intervenção ética, mas quer também impor novas estruturas políticas. Nada menos de 70 000 soldados provenientes apenas dos países membros da União Europeia, estão estacionados ao redor deste território. Este paradoxo do mundo ocidental, onde o relativismo cultural e o universalismo político coexistem, explica-se pela origem comum destes dois conceitos. Um e outro renegam a particularidade da cultura ocidental, as suas tradições e os seus pressupostos. A tentativa de integrar os islamitas, assim como a universalização da democracia nos países islâmicos, são ambas a expressão do relativismo. Os direitos do Homem e a democracia repousam em valores especificamente ocidentais. Nas culturas dos clãs pré-modernos, as eleições livres conduzem, quase inevitavelmente, a guerras civis ou a sistemas híbridos terríveis a “democraturas”, oligarquias e “mafiocracias”. Sem o pensamento esclarecido de cidadãos maiores e de indivíduos responsáveis, os compromissos são impossíveis. Sem os princípios morais da solidariedade anónima, as “economias de mercado” chegam ao darwinismo social. Os perdedores desiludidos voltam-se então contra aqueles que vieram para os ajudar e que eles consideram, desde logo, como ocupantes: sem o querer, estes últimos violam ainda e sempre a lógica pró-
pria das culturas estrangeiras. Não é um esquecimento involuntário se no projecto da Constituição europeia não é feita nenhuma referência à origem desta e às suas relações com os valores das Luzes, assim como aos laços entre filosofia, direito e religião, entre Atenas, Roma e Jerusalém. Apenas o silêncio sobre estas raízes ocidentais permita a hipótese do seu universalismo. A evocação da origem e das relações entre os valores teriam mostrado, claramente, que a nossa cultura tem um início e um fim e teria significado que há uma fronteira entre nós e aqueles que estão apegados a outros valores5. Colocar entre parêntesis sistematicamente o cristianismo nos processos de comunicação intra-europeus, sem dúvida, não era a melhor táctica. Uma tolerância universal que não exclua ninguém também não inclui aqueles que se sentem particularmente implicados na cultura europeia. Acreditou-se poder acabar com o apoio às Igrejas cristãs, às quais, contudo, dois terços dos europeus estão ainda ligados. Eis o comentário horrorizado de Papa Bento XVI sobre a Declaração de Berlim. “Como podem os governos da União excluir um elemento tão essencial da identidade europeia como é o cristianismo, com o qual a maioria dos cidadãos continua a identificar-se? […] Esta forma única de se negar a si mesmo antes de renegar Deus, não levará a Europa a duvi40
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dar da sua própria identidade?6” Novas reciprocidades entre a Europa e o Islão? Os países ocidentais da Europa agem como íman para os migrantes e os candidatos à adesão, mas é menos em razão dos seus valores do que pelas bases materiais da civilização. A integração cultural começaria se se estudasse a relação entre valores e os seus resultados sobre a civilização. Enquanto nós não transmitimos estas relações aos imigrantes, eles integram-se unicamente na civilização mas não na nossa cultura. As estratégias ilusórias, no sentido de um simples encorajamento e de uma “transformação por aproximação” devem ser substituídas por uma estratégia de reciprocidade verdadeiramente pragmática – isto é, orientada para aquilo que é possível e necessário – entre encorajamento, exigência e “aproximação por transformação”. Necla Kelek aplicou esta estratégia no quadro da construção de uma mesquita. Uma vez que uma mesquita é mais do que um centro espiritual, colocam--se questões políticas a esse respeito: Será que estamos a respeitar a lei? Será que estamos a prevenir a discriminação das mulheres? Será que favorecemos a integração, ou será que ela serve apenas como célula de uma sociedade?7 No que concerne as últimas questões sobre a verdade em matéria de religiões, apenas nos podemos colocar de acordo sobre o facto de que não estamos de acordo. No
diálogo inter-religioso, trata-se de instaurar virtudes secundárias como a tolerância e o respeito mútuos. Os diálogos entre a religião e o mundo secular deveriam ter mais importância do que diálogos sobre o conteúdo das crenças. Eles são realizados na Europa desde há pelo menos 500 anos e o mundo muçulmano também não lhes escapou. A laicidade, tal como é praticada em França, com uma estrita separação entre a esfera religiosa privada e a política, é também uma excepção na Europa. É por isso que não seria apropriado. Quando os critérios de apreciação religiosa são excluídos da vida pública, isso leva, por um lado, à decadência moral e por outro ao fundamentalismo. Nisso é necessário dar razão a Hans Küng: devemos encontrar uma medida justa entre a ideologia islamita e a ideologia secular; é necessário não confundir a secularização com secularismo. Nas sociedades islamitas também, a política, o direito, a economia e a ciência devem tornar-se domínios autónomos, livres e secularizados, emancipados de todo o controlo religioso. Por seu lado, no Ocidente, os sistemas funcionais não podem permanecer sem base religiosa e moral nem deixar de crer num sentido último das coisas. Tal como a fé absoluta, a razão absoluta liberta, também ela, energias destrutivas, que poderiam ter consequências devastadoras traduzindo-se pela imergência de ideologias pseudo-religiosas8. Todas as tentativas visando ins41
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taurar um poder secular ou religioso único na cultura ocidental fracassaram; isso não é fruto do acaso. Depois de muitos conflitos, o cristianismo poderá mostrar-se disposto a reconhecer a autonomia da esfera política. Isso seria impensável se o cristianismo não estivesse já interiormente disposto a limitar-se a si mesmo, tendência instaurada por Jesus, cujo reino não deveria ser deste mundo. No coração do cristianismo encontra-se o mandamento do amor e não um conjunto de leis para pôr em acção sobre o plano político. A liberdade religiosa já não é um valor absoluto: ela deve ser colocada em equilíbrio com outros direitos fundamentais como a liberdade de opinião. De igual forma, a liberdade religiosa garantida pelo Estado constitucional não o é verdadeiramente senão na medida em que a religião que a reivindica respeite os direitos fundamentais de cada um. O respeito pelos direitos do Homem está no coração do cristianismo9. O cristianismo não pode, por sua vez, reconhecer um Estado que se volta contra ele, Peter Graf Kielmansegg qualifica este reconhecimento mútuo de “consonância normativa”. Esta aparece hoje no primeiro artigo da Lei fundamental alemã: “A dignidade do ser humano é intangível. Todos os poderes públicos têm a obrigação de a respeitar e de a proteger”. Sem esta consonância normativa, seria difícil imaginar estas duas instâncias tentando coexistir impondo-se mutuamente limites. A abor-
dagem europeia não é, portanto, neutra religiosamente mas muito mais ligada a tradições e a religiões específicas. Será a consonância normativa responsável na sociedade islâmica? Esta questão poderia ser decisiva para o futuro da Europa. Hoje, podemos considerar que a laicidade turca fracassou. Ela contribuiu, por um lado, para um relativismo dos valores chegando até à corrupção do antigo sistema político e, por outro lado, ao islamismo. A Turquia é hoje um país dilacerado. Os poucos cristãos praticantes (numa antiga região cristã eles não representam senão 0,2% da população) estão em perigo. O governo islâmico moderado não lhes presta nenhum auxílio. As minorias em perigo não dependem da neutralidade, mas antes do apoio do Estado. A laicidade turca também não contribui para o desenvolvimento do Islão. Ela serve frequentemente como argumento em favor da reaproximação da Turquia e da Europa. Mas observando isto de mais perto, apercebemo-nos de uma diferença fundamental nas suas respectivas formas de aplicar este princípio. A laicidade europeia consiste numa oposição entre o cristianismo latente e a aplicação dos valores cristãos. A complexidade do Corão constitui um perigo, porque mesmo o terror pode encontrar nele uma justificação, mas é igualmente uma oportunidade porque o texto permite também as interpretações mais 42
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substância e procura influenciar servindo-se dos meios postos à sua disposição pela Constituição. A expressão “cultura dominante” suscita desconfiança, porque arrisca-se a dar ao Estado o poder de oficializar uma imagem definida de Estado, o que é inadmissível. A cultura não é imposta de cima; ela constrói-se a partir de baixo. Enquanto que os direitos fundamentais bastam, o Estado não está habilitado a distinguir a boa da má cultura, a cultura tradicional da cultura moderna. Ele é culturalmente neutro, mas não é cego. Trata-se sempre de um Estado cultural. Isso deriva, primeiramente, de sua missão educativa, paralela à educação fundamental garantida pelos pais, que a completa e, em certos casos, a equilibra. A escola renova as bases da formação da sociedade e assegura, ao mesmo tempo, a coesão da comunidade de solidariedade democrática. O pluralismo considera as discussões tensas como um dado adquirido. Numa sociedade diferente, organizada em guetos, não há discussão, de forma alguma. Mas porque a obrigação escolar se aplica em todo o tempo aos filhos de todos os cidadãos, qualquer que seja a sua religião, ela dá-lhe uma oportunidade de se integrar. A aula incarna o exercício da autoridade escolar alemã, ligada aos direitos fundamentais. Não se trata de um objecto de desenvolvimento pessoal privado, ligado à religião, ou à última tendência11.
moderadas. Nas escolas corânicas, as crianças não aprendem apenas o que seu imã julga com justiça. Numa escola alemã o curso de religião islâmica deve ser supervisionado pelo Estado, que deve assegurar que as religiões encorajem e reivindiquem os direitos fundamentais como a liberdade científica assim como a liberdade de expressão e de religião. O curso de religião na Alemanha pode servir de modelo no que respeita a necessidade de uma coexistência da separação e da cooperação entre a religião e a política. É uma matéria à parte que é ministrada “de acordo com os princípios das comunidades religiosas”. O Estado alemão é neutro no que respeita às confissões e, ao mesmo tempo, trabalha com elas. Ele não está alheado, mas espera que as religiões, com as quais coopera, sejam leais à Constituição. Como para ensinar os professores das outras matérias, o Estado cuida que os professores de religião sejam formados nas faculdades de teologia. Estes não são eclesiásticos, mas sim funcionários como os outros professores. Eles comprometem-se, portanto, a respeitar a Constituição. As aulas de religião enquadradas pelo Estado contribuem para uma “civilização das religiões pela formação” e, ao mesmo tempo, mantêm a civilização, uma vez que vai contra uma educação bárbara “desprovida de valores”10. Segundo Josef Isensee, cada Estado mantém relações mutáveis com a cultura; ele alimenta-se da 43
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Desviar-se do universalismo não deve fazer cair no excesso inverso, a saber, o relativismo cultural. Um diálogo com o Islão no decurso do qual não se aborde nem a falta de liberdade religiosa nem as perseguições contra os cristãos no mundo islâmico não passa de um logro. Uma tal forma de aprendizagem intercultural, implicando uma renúncia à tolerância recíproca e à liberdade mútua, constitui uma forma de traição de si mesmo.
nológico. Sybille Tönnies dá-nos um exemplo concreto quando descreve as relações entre os direitos individuais do homem e os deveres colectivos. Nas colectividades, os direitos individuais do homem têm, muitas vezes, efeitos explosivos, que destroem a lealdade e a segurança tradicionais. Mas podemos completar esta série de oposições prevendo a próxima. “Onde os indivíduos já não fazem parte de associações tradicionais, onde vivem de forma anónima uns ao lado dos outros e têm contratos de trabalho que não estão protegidos pelos bons velhos hábitos, onde a família alargada se decompôs e onde a pessoa sozinha se encontra isolada – em resumo, onde a sociedade moderna se impôs – são necessárias as disposições dos direitos do Homem. Devem tomar o lugar da solidariedade que desapareceu das comunidades. Mas onde este não é o caso – onde a “vida em comum” tem ainda realmente um significado tradicional e autêntico, podem eles retirar-se!”12 Não existe a longo termo alternativa à democracia e aos direitos do Homem comuns a todos. Mas a universalização dos valores ocidentais não se pode fazer senão por etapas e de forma indirecta. As culturas aproximam-se mais facilmente pela via de temas e de grupos do que pela transposição directa das estruturas e das leis. Assim como a ingerência do Estado aparece, antes de mais, como uma falta de soberania e suscita resistências, das Igrejas, das organizações não
Conflitos e reciprocidades Podem-se atenuar as delimitações entre as culturas, na medida em que as reciprocidades foram instauradas no passado. As culturas chocam-se frequentemente por causa da seguinte contradição: todos reconhecem a “regra de ouro” do equilíbrio entre o dar e o receber, entre participar e associar-se (uma regra que pode demonstrar-se indispensável nos processos de alargamento e de integração), mas a necessidade de uma reciprocidade entre participar e associar-se com fins de integração está em conflito com a obrigação de renunciar a uma universalização da sua própria cultura. Não pretendemos resolver os conflitos antediluvianos que opuseram as Luzes aos Românticos, a tradição ao progresso, a comunidade ao indivíduo; podemos explicá-los em função de acontecimentos históricos. No conflito entre culturas, põem-se questões éticas, também elas no seio de um contexto cro44
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governamentais e dos cientistas a quem cabe a missão de lutar em favor dos direitos do Homem. As fronteiras de uma sociedade aberta situam-se, precisamente, na sua própria abertura, cuja manutenção depende de uma tolerância recíproca. Nos processos de integração visando imitar o modelo da cultu-
ra europeia, poderíamos, no ideal, lutar ao mesmo tempo contra o relativismo e contra o islamismo. O islamismo deve relativizar interpretando e adaptando-se; o relativista nesses debates com o islamismo será reenviado aos fundamentos e aos limites indispensáveis da sociedade aberta.
* Professor de ciências políticas na Escola superior de Westfália do Norte em Colónia, na Alemanha. Notas 1. Armin G. Wildfeuer, “Begriffsbestimmung: Wert/Werte” in W. Becker (Ed.) Lexikon der christlichen Demokratie in Deustschland, Pederborn, 2002, p.648 e seg. 2. Deixemos ao escritor israelita Chaim Noll, originário da RDA, o cuidado de chamar a atenção particular para os totalitarismos comparáveis do comunismo e do islamismo. Ver “Die Aura der Angst. Kommunismus, Islam und ihre Wirkung auf Europa”, in Mut. Forum für Kultur, Politik und Geschichet, Asendorf, Novembro 2007. 3. Ver sobre este assunto Efraim Karsh, Imperialismus in Namen Allahs. Von Muhammad bis Osama Bin Laden, Munique, 2007, e Walid Phares, Future Jihad. Terrorist Strategies against America, Nova Iorque, 2005. 4. Ayaan Hirsi Sli, Ich klage an. Plädoyer für die Befreiung der muslimischen Frauen, Munique, 2006, p. 13f. 5. Heinz Theisen, Die Grezen Europas. Die Europäische Union zwischen Erweiterung und Überdehnung, Opladen, 2006. 6. Ver Frankfurter Allgemeine Zeitung de 26.03.2007. 7. Nekla Kelek, “Das Minarett ist ein Herrschaftssymbol. Islam in Stein gehauen: Im Streit um den Bau dert Moschee in Köln geht um die Zukund unserer Städte”. In Frankfurter Allgemeine Zeitung de 05.06.2007. 8. Hans Küng, Der Islam. Geschicht, Gegenwart, Zunkunft, Munique, Zurique, 2006, p. 770f 9. Peter Graf Kielmansegg, “Vorbild Europa”, in Frankfurter Allgemeine Zeitung de 15.05.2007. 10. Ver Rolf Schieder, “Der Zivilisierung der Religionen als Ziel staatlicher Religionpolitik?”, in Aus Politik und Zeitgeschichte, 6/2007, p. 23. 11. Josef Isensee, “Leitkuktur als Idee und Politischer Begriff”, in Leitkultur. Vom Schlagwort zur Sache, editado pela Stiftung des Geschichte der Bundesrepublik Deutschland, Bona, 2006, p. 20 e seg. 12. Sybille Tönnies, “Wir sind nicht alle gleich. Darf man die Menschenrechte anderen Kulturen aufzwingen, gar mit Gewalt? Seit Aufklärung und Romantik beschäftigt uns diese Frage” [“Nós não somos todos iguais. Podem-se impor os direitos do Homem a outras culturas mesmo com a violência? Esta questão preocupa, desde as Luzes e o romantismo”], in Frankfurter Allgemeine Sonntagszeitung de 2.11.2008.
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Calvino, precursor da liberdade religiosa? Thomas Domanyi*
O mundo protestante festejou no ano passado o 500º aniversário do nascimento de um dos seus fundadores e mentores: João Calvino. Cerca de 80 milhões de crentes comemoraram a vida e a obra de uma personalidade que, pelo seu brilho, transformou a Igreja ocidental assim como a ordem política europeia. Para citar Karl Barth: “João Calvino deu um futuro ao protestantismo”. Waldemar Besson, especialista em Calvino, não é menos elogioso ao afirmar que “sem o calvinismo e o liberalismo, os inícios do Estado de direito teriam sido inconcebíveis”1. No entanto, quando se conhece a História e se lhe associa o nome de João Calvino aos conceitos de “tolerância” e de “liberdade religiosa”, somos inevitavelmente reenviados ao “assunto Michel Servet” que, mais do que qualquer outro episódio, lança uma sombra sobre a obra do reformador genebrino2. Se nos apegamos ao julgamento do historiador Jacob Burckhard, natural de Basileia, é certo que o papel desempenhado por Calvino neste assunto ainda não está bem investigado, mesmo fazendo alusão à execução de um não conformista accionada por Calvino – “A tirania de um só homem jamais foi tão forte como em Calvino, que elevou
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a sua subjectividade ao papel da lei geral e não se contenta em reprimir ou a expulsar […] todas as outras crenças mas diariamente ofende a todos em questões de gosto, os mais inocentes3”. Por outras palavras, a confissão obrigatória e a observação rigorosa dos ritos, que o pregador Calvino impôs e aplicou com o apoio do Estado, não só na comunidade religiosa mas também no conjunto da sociedade civil, incarnava uma situação de conflito sistemático em que, ao menor delito, o cidadão se coloca sempre sob a alçada do Conselho da Igreja e das autoridades civis. Assim, a relação de Calvino com a liberdade religiosa e a liberdade de consciência afecta diferentes domínios do seu pensamento e da sua actividade: teologia, Direito Constitucional e Político, sociedade. Para poder esclarecer e fazer um julgamento válido, é necessário utilizar diversos pontos de vista. Mas é necessário ter em conta tudo aquilo que, mais tarde, foi atribuído a Calvino, de acordo como a sua teologia, ou certos pontos particulares da sua teologia, eram entendidos. Nesta exposição a nossa atenção fixar-se-á sobre os acontecimentos e os argumentos sobre o caso Servet, assim como sobre as consequências históricas
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do debate sobre a tolerância suscitado e intensificado por Calvino4. A execução de Michel Servet “A 27 de Outubro de 1553, Michel Servet, médico, jurista e teólogo espanhol foi queimado vivo por causa da heresia no campo de Champel às portas de Genebra. A acusação tinha declarado ser ele anabaptista e antitrinitário, a execução foi realizada à maneira da Inquisição5”. Servet representava a corrente antitrinitária que acompanhou a Reforma no século XVI. Em 1531, já tinha atraído os raios da Igreja Católica e dos protestantes ao publicar De Trinitatis erroribus (Os erros da Trindade). Como o monarquismo do antigo cristianismo, ele reduzia a trindade a três manifestações de Deus6. A partir de 1546, Servet e Calvino trocaram cartas violentas. Em 1553, Servet escreveu uma nova obra “herética” cujo título Restitutio Christianismo (Restauração do Cristianismo) bastou para provocar uma grande cólera em Calvino. Nesse livro, Servet afirma que a Igreja de Roma e a Reforma tinham alterado o cristianismo. Esta crítica levará à sua prisão em França, em Vienne, no Delfinado. Mas rapidamente foi liberto. Entretanto, Calvino entregou ao tribunal de Vienne outros elementos de acusação contra ele, que levaram a uma segunda detenção. Servet devia ser presente à Inquisição, mas desta vez consegue escapar ao perigo através
Michel Servet (ou Miguel Serveto y Reves, em espanhol), médico, cientista, humanista, teólogo e livre pensador espanhol, nasceu a 29 de Setembro de 1511 em Villanueva de Sigena, na província de Huesca (Aragão), e morreu a 27 de Outubro de 1553 em Genebra. Ele pôs em causa o dogma da trindade. Foto John P. McGovern Historical Collections and Research Center.
de uma fuga. De Vienne, ele quis atingir a Itália. Ora, curiosamente, tomou o caminho de Genebra, onde foi reconhecido. Calvino fez, imediatamente com que fosse preso. Em primeiro lugar, Calvino apresentou-se como queixoso, para depois deixar a acusação com a municipalidade e foi citado como conselheiro em teologia. Por outro lado, solicitou a inquisição de Vienne para apresentar outros elementos de acusação, mas em vão. A intransigência do pregador foi reforçada pelo conflito encarniçado que o opunha ao partido anticalvi47
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nista dos antigos genebrinos que apoiavam Servet. Mas ele pensava que podia rapidamente conseguir o fim desta querela desembaraçando--se de Servet. Enquanto este definha na cadeia em condições terríveis, pediam-lhe várias vezes que negasse a sua posição herética. Na manhã de 27 de Outubro, Calvino e Farel foram visitá-lo para lhe anunciar a sua condenação à morte. Nessa ocasião eles assediaram-no a fim de o persuadir a abandonar o seu erro para a salvação da sua alma. Mas ai!, Servet estava pronto a reconhecer Cristo como Salvador e Filho de Deus, mas não como Deus Ele mesmo. Este comportamento levou o Pequeno Conselho a condená-lo à fogueira a 26 de Outubro de 1553.
-nos o contrário. Em 1546, Calvino já tinha a intenção de se desembaraçar de Servet, quando compreendeu com quem estava a lidar. “Recentemente, recebi de Servet um correio a que ele juntou um grosso volume das suas ideias absurdas. Nelas dá parte, com a pretensão que o afecta habitualmente, das suas descobertas sensacionais e até então desconhecidas. Ele quer vir aqui, isso é conveniente para mim. Mas não quero, por nada deste mundo, responder-lhe. Se ele vem aqui, o que me agrada, não o deixarei voltar a partir vivo”7. Dankbaar constata: “Em todo o caso, Calvino […] não considerou Servet como um correligionário mas mais como um herético dos mais perigosos, que não merece continuar a viver”8. Servet foi detido pelas autoridades de Genebra a 13 de Agosto de 1553. Uma semana mais tarde, Calvino escrevia a Farel: “Espero que ele seja condenado à morte: mas desejo que atenuem a crueza da execução”9. A polémica em volta do levar os heréticos à morte começou pouco depois da prisão de Servet em Genebra (contrariamente ao que escreveu Teodoro de Beza) e continuou durante toda a duração do processo. Antes que as opiniões pedidas por Calvino chegassem de Zurique, Berna, Schafausen e Basileia, antes de serem traduzidas em Genebra – antes mesmo que o conjunto das Igrejas reformadas suíças tenham tomado partido
A questão da responsabilidade de Calvino A questão permanece em suspenso: Estaria Calvino plenamente consciente da sua atitude para com Servet? O seu combate para eliminar o herético seria irreflectido – uma espécie de acidente involuntário no seu percurso de reformador? Ou, pelo contrário, devemos supor que o desaparecimento de Servet, o anticonformista, estava inscrito no modo de pensar e no conceito de renovação de Calvino? Numerosos amigos seus contestaram a sua implicação na prisão de Servet. Isso parece-lhes incrível. No entanto, algumas fontes, assim como cartas de Calvino, indicam48
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dos religiosos, os humanistas e os impressores. Muitos dos refugiados sentiram-se pessoalmente muito atingidos, porque criticavam a doutrina trinitária, mesmo que não a condenassem totalmente. Eles sentiam toda a simpatia pelo individualismo religioso e pelas minorias. Alguns deles inclinavam--se para a doutrina dos anabaptistas. Eles foram para Basileia para fugirem das perseguições religiosas e encontrarem liberdade religiosa. A sua cólera era compreensível. Ninguém podia, com efeito, garantir que os acontecimentos de Genebra não se reproduzissem noutras cidades suíças11. A 28 de Setembro, Sulzer conta ao seu colega de Zurique, Heinrich Bullinger, que muitas pessoas em Basileia criticam violentamente o comportamento de Calvino e do Conselho de Genebra no assunto Servet. David Joris foi o primeiro a levantar a voz. No início de Outubro escreveu aos cantões protestantes da Confederação Helvética uma carta na qual dava parte das reflexões que a perseguição de Servet lhe despertava. Não defendia as teorias do espanhol mas declarava-se contra o princípio da sua condenação à morte ou de qualquer outro representante de uma opinião herética. Segundo ele, isso não podia senão levar a outros casos de perseguições e condenações. Neste género de casos, era necessário não recorrer à violência. Se Servet era realmente um herético ou um homem teimoso, não se lhe devia fazer mal mas
João Calvino, reformador francês e fundador do calvinismo, nasceu a 10 de Julho de 1509 em Noyon, na Picardia, e morreu a 27 de Maio de 1564, em Genebra. Foto Reformierter Bund e V.
por Calvino ou contra Servet – houve vozes que se levantaram na Confederação Helvética para criticar a forma de proceder do pregador de Genebra. Os protestos mais vivos vieram de Basileia. A 9 de Setembro, numa carta para Simon Sulzer, deão da catedral de Basileia, Calvino reconhece que fez com que Servet fosse preso e informa o seu correspondente que reprova a heresia do espanhol, que se envolveu contra ele e que ainda tem a intenção de continuar10. Os detalhes contidos nesta carta provocaram a indignação e o pavor em Basileia, não só nas altas esferas políticas e eclesiásticas, mas igualmente entre os refugia49
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muito mais chamá-lo gentilmente à ordem. Poderia ir até bani-lo se a sua doutrina provocasse agitação. A Condenação à morte de Servet, e a sua execução nada mais fariam do que intensificar as perseguições religiosas e a repressão violenta contra as minorias. Ignoramos se esta carta foi traduzida e difundida. No entanto, esta carta mostra os inícios do movimento da tolerância em Basileia antes mesmo da execução de Servet. Este movimento rapidamente se espalhou. Paralelamente, as críticas a Calvino amplificaram-se. Em Zurique, nos Grisons e em Neuchatel, começaram a inquietar-se com os acontecimentos de Basileia. Pierre Toussin, o reformador do condado de Montbéliard, escreveu a Farel dizendo que tenha recebido más notícias de Basileia sobre os incidentes de Genebra. Pensava que ninguém devia sofrer a pena de morte por questões religiosas, se nenhum levantamento geral, ou outras circunstâncias excepcionais o justificassem. Esta declaração chegou aos ouvidos de Pierre Viret em Lausana e também aos de Calvino. Calvino deve ter reconhecido, no início de Outubro, ou mais tarde, que estas dúvidas se propagavam mesmo entre os seus amigos13. Contudo, isso não o impediu de levar até ao fim a execução de Servet. Quando em Novembro, a notícia da execução de Servet chegou a Basileia, a opinião pública inflamou-se de novo. Aqueles que 50
criticavam Calvino faziam valer, antes de mais, que as autoridades seculares de um Estado cristão não tinham o direito de infligir uma pena como a que Servet tinha sofrido14. E não é tudo! Pelo fim de 1553, em círculos bem informados apareceu uma História de morte Serveti que resumia os acontecimentos de Genebra reportando-se ao herético espanhol. Isso demonstra que em pouco tempo já se sabia tudo em Basileia15. Mas do que isto é claramente revelador, para além da parte principal e descritiva do pequeno opúsculo, é o parágrafo da conclusão. Ele expõe as razões pelas quais a perseguição e a execução de Servet foram sentidas por “numerosas pessoas piedosas” como um “scandalum scandalorum”. Esta indignação é justificada como segue: Um homem tinha sido morto por causa de sua religião, o que, se nos referirmos à parábola do trigo e do joio, ia contra a vontade de Deus. Se Calvino invocava a aprovação das outras Igrejas reformadas suíças, os “piedosos” respondiam-lhe como argumento que eles eram igualmente parte do processo, pois que Servet também os tinha acusado. Por outro lado, o próprio Calvino tinha abertamente desaprovado Zwínglio e Œcolampade sobre a questão da Santa Ceia. Não só ele tinha autorizado a execução de Servet, mas tinha-a consciente e voluntariamente provocado: a acusação
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decidiu fazer face aos seus opositores renanos. Foi assim que ele fez aparecer Defensio orthodoxae fidei de sacra trinitate contra prodigiosos errores Michaelis Serveti Hispani. Esta obra, impressa em Fevereiro de 1554, é uma espécie de defesa onde Calvino revela as suas próprias convicções numa argumentação teórica desprovida de toda a autocrítica e de qualquer dúvida sobre a condenação do herético18. Calvino aí argumenta sem compromisso. Trata-se, para ele, de defender a sua forma de agir, mas também de refutar uma vez por todas a doutrina do herético, ainda partilhada por alguns. Segundo ele, Servet – possuído por Satanás – tinha, não só pronunciado heresias monstruosas, mais também encontrado discípulos que, depois da sua morte, iriam continuar a espalhar as suas “fantasias absurdas”19. À questão de saber se as autoridades cristãs tinham o direito de punir os heréticos, Calvino responde particularmente: “Seria um erro pensar que a Igreja se torne uma tirania porque não tem o direito de exprimir a sua opinião particular em público. Isso significaria que seria melhor arrancar a fé do coração dos crentes do que punir aqueles que a fazem vacilar”20. Os papistas perseguiam bem os “ortodoxos”. Não se pode, portanto, contestar a uma “autoridade ortodoxa” o direito de punir pela espada os apóstatas se estes levavam a renegar a verdadeira fé, a
tinha sido apresentada por um dos seus domésticos (“alguém muito próximo”) que não sabia nada de Servet ou das questões relacionadas. A crueldade da execução deixava supor que os “Genebrinos desejavam, de novo, cair nas graças do Papa”. A condenação à morte de Servet fazia o efeito de uma conspiração entre protestantes e papistas. O facto de Servet ter sido queimado com os seus escritos tinha igualmente esse sentido. Recordava-se, com razão: se a doutrina de Calvino – a predestinação e a eleição da graça16 – era verdadeira, ele jamais deveria crer que Servet pudesse desviar da fé autêntica alguém predestinado17. Mais notáveis ainda, são as reprovações deixando entender que a Igreja e as autoridades de Genebra teriam utilizado os métodos da Inquisição na forma de agir contra Servet, o herético. Com toda a evidência, havia já, nos círculos protestantes humanistas da época, o forte sentimento de que a coerção física não tinha a ver com o domínio da fé e da consciência. Ora, o reformador de Genebra não era, também ele, protestante e humanista? Como Calvino justifica a condenação à morte do herético Calvino apercebeu-se muito cedo de que a morte de Servet na fogueira tinha provocado uma imensa indignação em Basileia. É possível que estas notícias o tenham impressionado porque ele 51
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morte cada erro de doutrina. Não seria necessário recorrer a tal extremo senão nos casos mais graves. Havia representantes da heresia que se poderiam suportar com paciência e, nesse caso, punir com moderação. Mas quando a religião era abalada até aos seus fundamentos, quando Deus era odiosamente ultrajado, quando as almas eram corrompidas por teorias ímpias e perniciosas e, quando, por fim, há o risco de ver Deus e a Sua doutrina renegados, era necessário apelar a este remédio extremo a fim de evitar que o veneno fatal se espalhasse cada vez mais26. Por fim, Calvino defende-se por ter apoiado as autoridades católicas francesas e italianas. Ele tinha, é verdade, feito acusar o espanhol em Genebra. Mas tinha tentado chamar Servet à razão: “Se este pudesse ser curado do seu erro, não teria, certamente, sido ameaçado por uma sanção tão severa”27. Em conclusão, Calvino reitera a sua tese principal: é necessário agir com o maior rigor contra os instigadores de falsas doutrinas quando não deixam de se obstinar e quando o seu ateísmo e a sua heresia já não são suportáveis. Estes dois argumentos aplicavam-se a Servet28. A difusão do livro de Calvino foi rápida. Logo no mês do seu aparecimento chegou a Zurique, Tübingen e Basileia. Na época, as opiniões foram partilhadas entre os seus leitores. Mesmo os reconhecidos partidários do autor emitiram as suas reservas: teria sido melhor, segundo eles, não abordar a questão
destruir a paz da Igreja e a quebrar a unidade da piedade (“pietatis consensus”)21. Sem dúvida, o reino de Cristo não existe por ser protegido pelas armas mas graças à pregação do Evangelho. Contudo, é necessário salvaguardar a perenidade da Igreja, mesmo se, em princípio, não se possa forçar ninguém a crer22. É aí que Calvino vê a responsabilidade essencial do Estado cristão: “Assim, a autoridade piedosa velará sobre a doutrina da fé, não forçando os mais recalcitrantes em crer, mas para que Cristo não […] seja excluído do Seu domínio de soberania”. Para que os fracos, que ele deve proteger em virtude do mandamento divino, não sejam corrompidos e que não se escarneça da doutrina de Cristo23. Depois, Calvino aborda as passagens da Bíblia citadas por aqueles que se opunham à execução dos heréticos, em particular a parábola do trigo e do joio assim como o julgamento de Gamaliel a propósito dos apóstolos. Ele rejeita os argumentos de tolerância tirados desses textos e opõe-lhes a sua opinião: mesmo quando actua como defensor das Suas obras, Deus serve-se dos homens24. Era absurdo pensar em repousar no facto de que Deus protegeria a Sua vinha. A missão da comunidade cristã era garantir a ordem legal entre os homens. Isto está ameaçado cada vez que a “ordo pietatis” é negligenciada25. Sem dúvida, as autoridades seculares não devem punir com a 52
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do castigo do herético, de forma escrita29.
recurso à Bíblia servia para justificar o seu comportamento em vez de o inspirar. Avaliando os argumentos de Calvino, já citados, apercebemo-nos de que é o conceito “ordo pietatis-consensus pietati” que domina. Assim, o debate não se baseia numa ideia teológica mas mais sobre a obra pessoal de Calvino na reforma da Igreja da república de Genebra. Por outras palavras, se a heresia de Servet apenas tivesse que ver com um conceito teológico, não se teria dado seguimento ou, poderia ter-se contentado em excomungar o anti-conformista. Apenas, é essa a questão, a verdade de Calvino já existia sob diferentes formas: uma Igreja institucional e organizada, locais onde se ensinava um dogma que se tornou a identidade colectiva, uma comunidade bem real e largamente dotada em capital social – resumindo, bens que era necessário preservar e administrar. Neste caso preciso, estando em jogo a comunidade que apoiava o Estado – como pretextava Calvino – Servet e as suas “opiniões heréticas” incarnavam um elemento subversivo que não podia ser tolerado, em nome da ordem e da salvação. Por outro lado, a biografia de Calvino, incarnação do espírito do génio, articulava-se já com uma época bem diferente da de Servet. Contrariamente ao espanhol, ele não era um pedinte ou o representante de uma opinião, ele tinha uma situação: era – contrariamente há vinte anos atrás – um funcionário e um diri-
O âmago do problema “CalvinoServet” Ao se defender por escrito, Calvino não pôde impedir que fossem publicadas as críticas daqueles que, em Basileia, reagiram contra a intolerância para com Servet30. Em Março de 1554, o humanista Sébastien Castellion, um dos seus antigos colaboradores, publicou um livro que se tornaria numa etapa decisiva na história da tolerância e da liberdade religiosa: De haereticis na sint persequendi (Tratado dos heréticos, a saber se devem ser perseguidos, e como se deve agir com eles). Além disso, quando se estuda Calvino, permanece em suspenso outra questão preocupante: porque é que ele se mostrou tão intransigente e impiedoso na sua vontade de eliminar fisicamente um anti-conformista sem defesa? Porque razão varreu, tão categoricamente, as reticências dos seus amigos e os argumentos, sensatos, dos seus adversários, contra a execução de Servet? Não é mencionando a sua interpretação literal de Bíblia ou a sua fidelidade à teocracia do Velho Testamento que se responde a estas perguntas. Calvino era suficientemente teólogo para saber que as declarações e as ideias que se encontram na Bíblia não se aplicam sistematicamente às circunstâncias da vida presente. Temos mais a impressão de que o seu 53
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gente. Portanto, tinha muito mais a perder do que o seu adversário. Uma coisa pleiteia particularmente em favor desta diferença biográfica entre Calvino e Servet: é que, na sua juventude, Calvino, como anti-conformista na sua pátria, membro de uma minoria perseguida e refugiada em Basileia por causa da sua fé, empenhou-se, tão apaixonadamente como o faziam os defensores de Servet, contra a perseguição dos heréticos. Não é, portanto, obra do acaso se Castellion, na sua obra já mencionada, o cita como opondo-se à condenação à morte dos heréticos. Ele extrai este ensino do Institutio Christianae religionis (Instituto da Religião Cristã), impresso, pela primeira vez em 1536 em Basileia e na qual o jovem refugiado religioso reclamava clemência para com os excomungados, os turcos e os sarracenos31. Mas pode ver-se que Calvino rapidamente mudou as suas ideias, porque as frases correspondentes já não aparecem nas edições seguintes do Institutio32. Se considerarmos que Calvino se dedicou à segunda edição do Institutio pouco depois da sua chegada a Estrasburgo, em 1538, pode supor-se que a sua opinião original sobre a forma de tratar os heréticos se modificou após a sua nomeação em Genebra e das suas experiências com os anti-conformistas anabaptistas. Sem dúvida as tendências para a tolerância da sua juventude foram vítimas desta mudança de paradigma biográfico.
Trata-se, antes de mais, de uma situação existencial fundamental pela qual o homem (o indivíduo como o grupo) passa no decurso do seu desenvolvimento e da evolução inelutável do seu papel no seio da comunidade. “A função transforma” – sejam quais forem os termos de responsabilidade ou de poder. Na verdade, o risco não está ligado à função em si mesma, mas mais à visão parcial que se tem do presente quando o caminho se afasta da experiência do passado. Se Calvino tivesse feito a sua autocrítica sobre a sua evolução pessoal como reformador, teria provavelmente evitado levar Servet à fogueira. Os julgamentos sobre a sua acção permanecem ainda hoje divididos, como a formulou H. R. Guggisberg: “Pela primeira vez no debate sobre Servet, a oposição fundamental entre Calvino e Casttelion aparece aqui claramente: oposição entre o reformador, que se bate pela renovação da Igreja como bastião de uma nova unidade espiritual, e a crítica humanista, que contesta a opressão da liberdade de espírito individual e da liberdade religiosa”33. Calvino e a liberdade religiosa do ponto de vista histórico Este resumo é tão mais importante, como Calvino estava provavelmente consciente do carácter problemático da união total entre a Igreja e a comunidade citadina. Como o jovem Lutero, tinha uma simpatia particular pelo conceito 54
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de comunidade religiosa livre pregada pelos anabaptistas. Durante decénios, bateu-se pela Libertas Ecclesiae face aos abusos do poder das autoridades genebrinas34. É verdade que se podia mostrar tolerante para com as outras Igrejas, quando elas estavam situadas fora da sua esfera de influência. Mas não permitia que na sua circunscrição o direito à liberdade individual de religião e de culto, fosse aplicada, nem na teoria nem na prática. Para ele a Ordo Pietatis tinha valor de razão de Estado. Convém, no entanto, recordar que a reforma da Igreja conduzida por Calvino, ultrapassou largamente as fronteiras geográficas mas igualmente temporais da sua esfera de influência. Se queremos ter uma visão de conjunto do nosso assunto – Calvino: precursor da liberdade religiosa? – é necessário igualmente que nos interessemos pelas consequências mais tardias do herança da obra de Calvino, isto é, pelo facto dos discípulos do reformador por vezes terem interpretado e aplicado os seus ensinos de forma diferente da dele. É o caso, por exemplo, da concepção que Calvino tinha da acção inalienável do Espírito Santo. Noção de que se serviu para ilustrar a sua doutrina da predestinação, mas que se tornou para os seus discípulos um bastião contra a compulsão moral e religiosa. Calvino raciocinava desta forma: a soberania ilimitada faz parte integrante da natureza de
Deus. Caracteriza igualmente a Sua acção na salvação. Deduz-se que Deus decide livremente da salvação dos homens. Pela Sua acção, seja pelo Verbo, seja pelo Espírito, une-se ao homem de forma exclusiva e liberta-o, ao mesmo tempo, de qualquer outra autoridade. “Ora uma vez que Ele é assim a consciência dos fiéis, pelo privilégio da sua liberdade que têm em Jesus Cristo, são libertos dos laços e necessárias observações das coisas as quais o Senhor os quis tornar indiferentes, concluímos que eles estão livres e isentos do poder de todos os homens”33. Se seguirmos a lógica deste princípio até ao fim devemos exigir a liberdade de religião e de consciência. Contudo, já sob a influência do absolutismo moderno que começava, Calvino não estava pronto a aplicar aos domínios social e político o corolário radical da sua teologia. O mérito de uma tal abertura histórica acaba por pertencer ao seu discípulo independentista Roger Williams, que foi o primeiro, na História Moderna, isto é em 1663, a obter a validade legal da liberdade de religião e de consciência na Constituição de Rhode Island36. Williams baseou o seu acto memorável no facto de que a acção do Espírito Santo na eleição e no novo nascimento exige uma total liberdade de convicção. Recordase a que ponto, um século mais tarde, os Pais da Constituição americana se preocuparam com a ancoragem constitucional da liberdade 55
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em proveito das liberdades de convicção e de consciência individuais. Ele representava uma posição então largamente aceite – mesmo no contexto da Reforma – em que se fechavam os olhos para os direitos dos anti-conformistas. Contudo, a sua obra teve uma influência positiva sobre a evolução da liberdade religiosa. Com efeito, os seus adeptos mais tarde extraíram conclusões da sua teologia que iam no sentido do ideal de liberdade de convicção e de consciência. Assim, ele contribuiu para progressos importantes – um pouco como os pais que se tornam avós quando os seus filhos formam uma família.
de culto e da liberdade de consciência. Assim é fácil dar razão a Waldemor Besson, já citado, que constata que “sob o calvinismo e o liberalismo, os começos do Estado de direito liberal teriam sido irreconciliáveis”. Conclusão João Calvino não foi um precursor directo da liberdade religiosa individual. Graças ao seu combate vitorioso pela reforma da Igreja, tornou-se um funcionário oficial de uma comunidade religiosa e política de que ele não estava pronto a sacrificar a posição e a integridade
* O autor que vive em Vernes, na Suíça, é professor de ética e de teologia social na Faculdade de Teologia de Friedensau, na Alemanha. Notas 1. Waldemar Besson, “Die Christlichen Kirchen und die moderne Demokratie”, in Walther Peter Fuchs, 1.c., 204. 2. Ver Willem F. Dankbaar, Calvin, Hamburgo (2ª edição) 1966. 105, 119. 3. Segundo W. Kaegi, Jacob Burckhardt, Bd. 5, 1973, 90 4. Como as pesquisas de H.H.Guggisberg e outros o demonstraram, a questão da tolerância religiosa em relação aos não-conformistas já se punha aos representantes da primeira geração de reformadores: Ver Hans R. Guggisberg, Sebastian Castellio 1515-1563 – Humanist uns Verteidiger der religiösen Toleranz im konfessionellen Zeitalter, Göttingen, 1997. 5. H.H.Guggisberg 6. A divindade não é constituída por três pessoas, mas trata-se de três forças ou manifestações de Deus: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Servet não era, portanto, unitarista estrito (que nega completamente a Santíssima Trindade). As suas ideias aproximavam-se mais das de Sabellius que, no seu tempo, tinha sido rejeitado e qualificado de herético pela antiga Igreja. Dankbaar, Lc. 106. 7. Corpus Reformatorum (CR) XII, ep. 767 /13 de Fevereiro de 1576), in Dankbaar, i.c., 107 8. Dankbaar, Lc., 107, 108. 9. Dankbaar, Lc., 113. 10. CR XIV 614 e seg. Ver Guggisberg, 1.c., 80f 11. Ver Guggisberg, 1.c., 81 12. Ver Guggisberg, 1.c., 82
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Thomas Domanyi 13. Ver Guggisberg, 1.c., 82 14. Ver Guggisberg, 1.c., 83 15. Ver Guggisberg, 1.c., 83 16. Michal Paluch. Jean-Pierre Torrell, La profunder de l’amour divin, Biblioteca filosófica J. Vrin, 2004, p.44 books.google.fr/books?isbn=2711616967… 17. Ver Plath Calvin und Basel, 92f assim como Guggisberg, 1.c., 84. 18. Ver Guggisberg, 1.c., 85 19. Ver CR VIII 461 e Guggisberg, 1.c., 85 20. Ver CR VIII 464 e Guggisberg, 1.c., 86 21. CR VIII, 464f. 22. CR VIII 467f, ver Guggisberg, 1.c., 86 23. CR VIII, 477, ver Guggisberg, 1.c., 86f 24. CR VIII, 427f, ver Guggisberg, 1.c., 87 25. CR VIII, 474, ver Guggisberg, 1.c., 87 26. CR VIII, 477, ver Guggisberg, 1.c., 87 27. CR VIII, 480, ver Guggisberg, 1.c., 88 28. CR VIII, 480f, ver Guggisberg, 1.c., 88 29. A crítica mais acerba veio do magistrado de Berna, Nikolaus Zurkinden, que disse que não se podia das mais prazer aos papistas do que seguir o seu exemplo. Ver CR XV, 21 (10 de Fevereiro de 1554), CR VIII, 427f, Guggisberg, 1.c., 88 30. Ver Guggisberg, 1.c., 88. 31. Sébastien Castellion, De Haereticis an sint persequendi, 107, CR VIV, 239f, ver Guggisberg, 1.c., 90f 32. Ver Guggisberg, 1.c., 90, nota 38. 33. Guggisberg, 1.c., 86 34. Ver sobre este assunto, Thomas Domanyi, Zum Einfluss reformatorischen Denkes auf das moderne Staatzwesen, in Religion als Gesellschaftliche Kraft – interdiszplinäre Beiträge zu Religion und Gesellschaft, Bernhard Östreich, (Verlag Peter Lang) Francoforte-sur-le-Main, 2004, 89-92, sobretudo, 92. 35. Calvino Institutio, tomo III, cap. 19, al, 14: ver também, tomo I, cap. 7 al. 4 e tomo III, cap. 2, al. 33. Ver Joachim Staedtke, “Calvins Genf und die Entsyehung politischer Freiheit”, in Staat und Kirche im Wandel der Jahrhunderte, Geschichte und Gegenwart.
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Proteger os grupos religiosos Natan Lerner*
O objectivo do presente artigo é resumir as medidas tomadas pela comunidade internacional a fim de proteger os grupos religiosos da perseguição, do ódio e da intolerância. A expressão “grupos religiosos” é aqui usada no sentido lato para incluir a maior variedade de crenças e de convicções, assim como grupos étnicos entre os quais a atitude para com a religião constitui um elemento essencial. Para começar. é necessário reconhecer que as medidas não contribuíram muito para prevenir ou para suprimir os atentados à dignidade humana que existem por todo o lado, com várias intensidades e com resultados diversos. As lições da Segunda Guerra mundial e as suas consequências catastróficas sobre certos grupos conduziram a comunidade internacional a trabalhar para estabelecer um sistema completo destinado a proteger os direitos fundamentais do Homem e as comunidades ameaçadas. Esse esforço foi concretizado a 9 de Dezembro de 1948 com a Convenção para a repressão do crime de genocídio, na véspera da proclamação da Declaração Universal dos Direitos do Homem pela Assembleia Geral das Nações Unidas.
Sessenta anos mais tarde, a humanidade não pode cantar vitória com os resultados desse esforço, mas este prossegue apesar de tudo. Nos seus relatórios às Nações Unidas, a Relatora especial sobre a liberdade de religião ou de convicção, Asma Jahangir, descreve a situação geral da liberdade religiosa no mundo. Põe também em evidência as situações preocupantes, tais como os assassínios, a detenção arbitrária por motivos religiosos ou de convicção, a restrição dos direitos dos membros minoritários, que não podem praticar o seu culto e realizar actividades religiosas, as restrições que impedem a liberdade de religião ou de convicção, a limitação dos direitos à conversão e ao proselitismo, a alienação dos direitos das pessoas particularmente vulneráveis como as mulheres, as crianças, os prisioneiros, os refugiados, as minorias e trabalhadores imigrantes, assim como o fracasso na prevenção da descriminação, da intolerância e dos conflitos. Os direitos individuais e comunitários levantam outras dificuldades no que diz respeito aos símbolos exteriores, o facto de usar roupas diferentes ou de cobrir a 58
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cabeça, o respeito pelos dias feriados, os dias de repouso ou as cerimónias de acordo com os preceitos de uma religião ou de uma convicção, a nomeação do clero, o ensino e difusão de informações, a educação das crianças e o contacto com os membros de outras religiões. Em alguns países, é-se obrigado à declaração da sua religião, o que limita os direitos ligados à religião ou à convicção, e isso é motivo para que os agentes do Estado, ou não, demonstrem descriminação e se intrometam com os direitos individuais. A protecção internacional As primeiras medidas para garantir a liberdade de religião e de convicção datam de 1948, com a Convenção Contra o Genocídio e a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Abordarei mais tarde a Convenção Contra a Genocídio, um instrumento ambicioso mas até hoje ineficaz por questões de aplicação. A Declaração Universal, um dos documentos mais importantes do século XX, constitui o ponto de partida para a legislação internacional em matéria de Direitos religiosos. Bem entendido, não se trata senão de uma declaração e não de um tratado de aplicação obrigatória. Mas no decurso dos seis decénios que se seguiram à sua adopção, as suas disposições tornaram-se Direito Internacional em uso, e mesmo jus cogens, uma norma imperativa que não pode ser modificada senão por decisão do conjunto da comunidade interna-
cional. Tem tido, igualmente, uma poderosa influência sobre as legislações nacionais de muitos países. O artigo mais importante da Declaração sobre a religião ou a convicção é o artigo 18 que estipula: “Toda a pessoa tem o direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; esse direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, as práticas, o culto e a realização de ritos”. Este artigo tem influenciado, consideravelmente, os tratados sobre liberdade religiosa ulteriores. Ele enuncia os três direitos fundamentais ligados à religião ou à convicção – a liberdade de pensamento, a liberdade de consciência e a liberdade religiosa – e cita os direitos específicos protegidos. O termo “convicção” deve ser aqui interpretado no seu sentido estritamente religioso. Não se reporta às outras convicções sejam elas políticas, culturais, económicas ou outras. Foi incluída no documento para proteger, igualmente, as convicções não religiosas, como o agnosticismo ou o ateísmo. Entre a lista dos direitos específicos, convém sublinhar o direito a mudar de religião, um direito que não é aceite por algumas religiões ou certos países e que tem sido fonte de problemas para os documentos que se seguem. 59
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Antes de estudar outros textos criados pelo comunidade internacional é necessário referir o Estudo das medidas discriminatórias no domínio da liberdade de religião e das práticas religiosas, um documento redigido em 1950 por Arcot Krishnaswami, Relator especial da Sub-Comissão da luta contra as medidas discriminatórias e da protecção das minorias. Este estudo compreendia uma lista detalhada dos elementos que compõem a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, assim como uma série de projectos de princípios sobre a liberdade e a não-discriminação em matéria de práticas e de direitos religiosos. Influenciou, grandemente, os Pactos relativos aos direitos do Homem, de 1966, e a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e de Discriminação baseadas na Religião ou na Convicção de 1981. Em 1966, a Assembleia Geral das Nações Unidas adoptou dois Pactos relativos aos direitos do Homem. Aquele que trata do nosso assunto é o Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos, que segue a orientação geral da Declaração de 1948 e faz referência à liberdade religiosa nos artigos 18, 20 e 27, O artigo 18 contém quatro parágrafos, o primeiro dos quais segue, com algumas modificações menores, a formulação da Declaração Universal. Na alínea dois do artigo 18, o Pacto utiliza expressões menos categóricas no que concerne
o direito de mudar de religião, mesmo se não admite qualquer dúvida em reconhecer esse direito. Como veremos ao comentar a Declaração de 1981, a questão da conversão foi uma das maiores pedras de tropeço no processo legislativo, e sem dúvida a principal razão que impediu a adopção de um tratado vinculativo sobre a religião ou a convicção. O artigo 18 (2) estipula: “Ninguém sofrerá coacção que atente contra a sua liberdade de ter ou de adoptar uma religião ou uma convicção da sua escolha”. O artigo 18 (3) diz respeito às restrições; deve ser lido com o artigo 4 do Pacto, que concerne as derrogações e comparado ao artigo 29 da Declaração Universal. Este parágrafo não permite que se faça oposição à manifestação de uma religião ou de uma convicção senão as restrições previstas pela lei e que são necessárias para a protecção da segurança, da ordem e da saúde pública, ou da moral, ou das liberdades fundamentais de outrem. Deve ficar claro que apenas a manifestação ou as práticas religiosas podem ser objecto de restrições e, nesse sentido, há lugar para a diversidade entre os diferentes países e as numerosas culturas. Ritos, costumes, comportamentos e vestes podem estar em contradição com a ordem pública em certos países ou culturas. Por exemplo, a questão do véu e aqueles que usam barbas ou turbante têm causado problemas estes últimos anos. 60
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O último parágrafo do artigo 18 diz respeito à educação e protege os direitos dos pais e dos tutores legais à liberdade de educar os seus filhos de acordo com as suas próprias convicções. Este parágrafo está estreitamente ligado com a Convenção da UNESCO sobre a luta contra a discriminação no domínio do ensino, com a Declaração de 1981 e a Convenção A sede da Missão da Administração Provisória das Unidas no Kosovo, em Pristina. Foto Dan/ Internacional dos Direitos Nações Hipi Zhdripi/Wikimedia Commons. da Criança. Em 1999, depois da guerra do Kosovo, o Conselho O artigo 20 diz respei- de Segurança das ONU autorizou o Secretário Geral to, também ele, à liberda- a criar uma administração civil provisória para protede religiosa. O parágrafo ger, entre outras, as minorias desta região. 2 interdita todo o apelo ao O Comité dos Direitos do ódio religioso que constitui um Homem favoreceu uma interpretaincitamento à discriminação, à ção lata do artigo 18, que protege hostilidade ou à violência. Na sua observação geral sobre o artigo 20, igualmente as religiões recém-criao Comité dos Direitos do Homem das. Ele declarou que “as liberdadas Nações Unidas precisou que des de pensamento e de conscios Estados são obrigados a adoptar ência são protegidas de maneira as medidas legislativas necessárias incondicional, sem nenhuma forma para interditar as acções que aí são de ingerência”. Não é o caso da mencionadas. Mas esta obrigação liberdade de manifestar a sua relipodendo entrar em conflito com gião ou a sua convicção, que pode outros direitos, certos Estados têm ser submetida a restrições. Esta sentido a necessidade de emitir liberdade engloba um vasto leque reservas sobre o artigo 20 a fim de práticas e de cerimónias, os de preserva a liberdade de expres- locais de culto, os dias de repouso, são. Como no caso do artigo 4 de os símbolos e os dias feriados, as Convenção Internacional sobre a regras dietéticas, o direito à educaEliminação de Todas as Formas ção, o direito de publicar e o de se de Discriminação Racial, penso converter. De acordo com o artigo que não se deveria invocar a liber- 20, os Estados são obrigados a dade de expressão para dissuadir abolir a apologia do ódio, da hostios Estados de interditarem o ódio lidade ou da violência. religioso e racial. 61
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ser adoptado num futuro próximo são muito pequenas. A própria Declaração de 1981 foi ratificada após dois decénios de tergiversações. As organizações não governamentais e alguns poucos governos, tiveram de insistir e negociar incansavelmente antes de obterem, por fim, a aprovação do texto. Em 1972, a Assembleia Geral decidiu colocar a Declaração entre as suas prioridades, o que representou uma etapa significativa do trabalho preparatório e evitou que a análise do projecto fosse indefinidamente adiada. As controvérsias que criaram problema foram causadas pelo significado da palavra religião, no lugar das convicções não religiosas – chamadas neste contexto “convicções” – e sobretudo a questão da conversão e do proselitismo, a que os Estados muçulmanos se opuseram fortemente. As referências à discriminação e à convicção foram reajustadas no título original da Declaração em 1973, mas dizem respeito, unicamente, à intolerância religiosa. O uso dos termos discriminação e intolerância levantaram um problema. A discriminação exprime, com efeito, uma noção legal clara assim como a intolerância é menos precisa e pode levar a atitudes psicológicas, filosóficas e emocionais que se arriscam a criar violações de interdição de fazer discriminação. Contudo, na Declaração, as duas palavras são usadas de forma inter-cambiável, o que criou a confusão em várias passagens.
O facto de uma religião ser reconhecida como religião oficial do Estado ou de ser a religião da maioria da população não deveria impedir os direitos dos não crentes ou dos adeptos de outras religiões. Os privilégios concedidos aos membros da religião predominante são uma forma de discriminação. Os Estados têm a obrigação de apresentar relatórios periódicos sobre a forma como aplicam o Pacto. Por outro lado, um protocolo opcional permite aos indivíduos apresentarem comunicações ou reclamações sobre violações do Pacto. Cada ano, o relatório do Comité do Direitos do Homem apresentam uma informação detalhada sobre os direitos religiosos e o comportamento dos Estados membros. Estes diferentes relatórios, assim como os do Relator Especial sobre a declaração de 1981, representam uma soma importante de ensinamentos sobre a situação dos direitos religiosos no mundo. A Declaração de 1981 Até hoje, o instrumento internacional mais importante no que concerne os direitos religiosos é a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e de Discriminação Baseadas sobre a Religião ou a Convicção proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas através da Resolução 36/55 de 25 de Novembro de 1981. Um projecto de Convenção sobre este tema foi apresentado às Nações Unidas, mas as possibilidades de 62
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O Tribunal Internacional de Justiça em Haia. Foto AP Associated Press
Os artigos 1 e 6 apresentam uma lista de direitos que estabelecem a norma mínima universal em matéria de direitos religiosos. O artigo primeiro segue as grandes linhas do modelo do artigo 18 da Declaração e do Pacto, com uma ligeira diferença na formulação sobre a mudança de religião. As liberdades de pensamento, de consciência e de religião, seja qual for a convicção escolhida, são protegidas. A coerção é interdita. As restrições são autorizadas com a condição de que estejam previstas na lei e necessárias à protecção da segurança pública, da ordem pública, da saúde, da moral ou das liberdades fundamentais de outras pessoas no sentido que é entendido em países livres. O artigo 6 enuncia a lista dos direitos, tais como a liberdade de
praticar um culto e de ter reuniões sobre uma religião ou uma convicção e de estabelecer laços para esses fins, assim como manter instituições apropriadas, a liberdade de confeccionar, de adquirir e de utilizar os objectos e o material requeridos pelos ritos ou os usos desta religião ou desta convicção, a liberdade de escrever e de difundir publicações sobre esses assuntos, de ensinar uma religião ou uma convicção nos locais convenientes para esse fim, a liberdade de receber contribuições financeiras, a liberdade de formar, de nomear e de eleger os dirigentes apropriados, a liberdade de observar os dias de repouso e celebrar as festas e cerimónias assim como a liberdade de comunicar com indivíduos e comunidades em matéria de religião ou de convicção ao nível nacional e 63
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mas este objectivo parece difícil de atingir a curto prazo. Em contrapartida, o aspecto seguramente positivo da Declaração é que ela criou um sistema de acção.
internacional. Como mencionado atrás, estas liberdades estão sujeitas a restrições legítimas. Alguns direitos sugeridos na fase de projecto, mas omitidos na versão definitiva incluíam o direito de fazer peregrinações, o direito de se casar e o direito de ser sepultado de acordo com as suas convicções. Os artigos 2 e 3 prendem-se com as noções de intolerância e de discriminação, utilizando os dois termos para significar toda a distinção, exclusão, restrição ou preferência fundada na religião ou na convicção e tendo por objecto ou por efeito suprimir ou limitar o reconhecimento, a fruição ou o exercício dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais numa base de igualdade. O texto foi objecto de críticas e pode entrar em conflito com as leis existentes em certos Estados. Em certas sociedades, há também o risco de haver desacordo entre o Direito nacional e a língua usada na Declaração. O artigo 5 sobre os direitos da criança também provocou vivas polémicas. No conjunto, a Declaração constitui uma abertura significativa nos esforços visando conceder uma protecção internacional à liberdade religiosa. Não se trata de um tratado obrigatório mas de uma declaração solene da Assembleia Geral. Esta declaração tem muita importância e espera-se que seja respeitada. A lista dos direitos e liberdades não é exaustiva mas revela-se bem útil. Muitos são aqueles que insistem na necessidade de uma convenção,
A aplicação Com efeito, a Declaração estabeleceu um sistema para aplicar as disposições, o que compensa, em certa medida, a ausência de um tratado obrigatório. Os relatórios redigidos pelos diferentes Relatores Especiais e os Estados constituem um crescente volume de informações sobre os direitos religiosos, que indicam, igualmente, em que medida estes últimos são protegidos. Por outro lado, a Pacto criou um procedimento facultativo para os indivíduos que desejam comunicar ou apresentar uma reclamação. No que concerne a Declaração, a Comissão dos direitos do Homem já nomeou, sucessivamente, três Relatores: Ângelo Vidal de Almeida Ribeiro (1986-1993), Abdelfattah Amor (1992-2004) e Asma Jahangir (de 2004 até hoje). Em 1983, a Sub-Comissão da luta contra as medidas discriminatórias e de protecção das minorias designou um Relator especial, Elizabeth Odio Benito, cuja tarefa era preparar um estudo geral e aprofundado sobre as actuais dimensões dos problemas da intolerância e da discriminação fundadas sobre a religião ou a convicção, para actualizar as conclusões do estudo realizado anteriormente por Arcot Krishnaswami. 64
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Todos estes elementos dão uma perspectiva global da situação dos direitos religiosos. Os Relatores redigiram os seus relatórios partindo das respostas aos questionários que tinham sido distribuídos. Foi baseando-se nas suas conclusões que depois formularam recomendações. As violações da Declaração e das liberdades religiosas em geral, foram expostas e analisadas, e os governos sentiam que tinham de responder a estas acusações. Os Relatores denunciaram a perseguição, a detenção, a tortura ou os maus-tratos, o assassínio, a profanação de locais religiosos, as restrições praticadas contra certos grupos classificados de seitas e muitas outras formas de discriminação, de perseguição e de violência. Estudaram minuciosamente os relatórios de diferentes países e deram parte dos seus comentários.
dade religiosa no contexto da luta contra o terrorismo. Além disso, a revista do Comité Internacional da Cruz Vermelha consagrou um número especial ao aumento da violência associada à política e à religião. Alguns Estados têm tomado, igualmente, pelo seu lado, medidas para fazer face aos perigos da perseguição e da discriminação fundadas na religião e na convicção. O Departamento de Estado americano, por exemplo, publica cada ano um relatório preparado pelo Bureau da Democracia dos direitos do Homem e do trabalho. O seu objectivo é “dar a conhecer as actividades dos governos: tanto aqueles que reprimem a expressão religiosa, perseguem os crentes inocentes e toleram a violência contra as minorias religiosas, como aqueles que respeitam, protegem e encorajam a liberdade religiosa”. Dá a conhecer os abusos de que são vítimas os membros de todas as tradições e convicções religiosas. Sublinha que essas ausências de liberdade religiosa podem tomar diversas formas, algumas flagrantes, outras mais subtis, e que há frequentemente sobreposição entre a questão étnica, a classe social, o grupo linguístico ou a filiação política. Os abusos exprimem, frequentemente, a hostilidade do Estado para com uma minoria religiosa ou traduzem-se através de políticas ou legislações discriminatórias.
Além das Nações Unidas Para além das Nações Unidas, outras organizações internacionais, mundiais e regionais, adoptaram instrumentos que fazem referência aos direitos ligados à religião. O Conselho da Europa, por exemplo, redigiu um certo número de instrumentos regendo as normas a utilizar para combater o terrorismo respeitando os valores essenciais e os direitos fundamentais. Por seu lado, a Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa (OSCE) elaborou, em 2002, um plano de acção global para combater o terrorismo e debateu, em 2005, a liber-
O Direito Penal Internacional Um exame das medidas tomadas 65
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a fim de proteger os grupos religiosos da perseguição assim como da discriminação e da intolerância não pode ignorar a importância do Direito Penal Internacional nesse domínio. O Direito Internacional do pós-guerra teve de encontrar respostas para as lições do conflito mais custoso da história em termos de vidas humanas. A construção de uma ordem internacional visando preservar a paz e prevenir outros crimes atrozes, requer certas medidas para impedir que se produzam actos criminais para com grupos religiosos. Em consequência, um dos primeiros tratados debruçando-se sobre os direitos do Homem adoptados pelas Nações Unidas foi a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, um crime que implica, segundo o Tribunal Internacional de Justiça, (TIJ) a negação do direito a existir de grupos humanos inteiros. Por detrás do genocídio há obrigatoriamente a intenção de destruir, por inteiro, ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. O genocídio é hoje considerado como uma violação do jus cogens e, como declarou a Tribunal Internacional em Fevereiro de 2007, na sua decisão tão importante como controversa, a propósito de problema Bósnia c. Sérvia, todos os Estados têm a obrigação legal de aplicar e de apoiar a aplicação da Convenção. Apenas esta decisão do Tribunal induziu uma mudança
radical no texto da Declaração para incluir medidas de aplicação. O genocídio é o primeiro dos crimes enunciados no Estatuto do Tribunal Penal Internacional (TPI) criado pelo Tratado de Roma. Por outro lado, segundo esta instituição, o genocídio e a limpeza étnica estão na origem do surgimento dos tribunais penais internacionais ad hoc para o Ruanda e a ex-Jugoslávia. O facto de esses tribunais serem necessários reflecte a triste situação do nosso mundo. Desde os anos 1990, muitos outros tribunais desse tipo foram criados (para a Serra Leoa e o Cambodja). Em Dezembro de 2008, o mundo civilizado celebrou o 60º aniversário da adopção da Convenção contra o genocídio. Este é tão essencial hoje, como em Dezembro de 1948. As comunidades religiosas ou pertencendo a uma convicção estão ainda expostas a numerosos abusos e à perseguição, coisas que devem ser prevenidas e reprimidas. No entanto, a ameaça mais terrível à qual esses grupos devem fazer face é a que põe em perigo a vida dos seus membros. Infelizmente, não é fácil reprimir o genocídio. O procurador de TPI, Luis Moreno Ocampo, foi apelidado de “Don Quixote do Darfur” por uma revista popular americana. Se bem que já tenha acusado nove pessoas originárias de três países diferentes, ele parece ter declarado que apenas os resultados farão o TPI evoluir para “outra coisa diferente de um monumento de boas intenções”. 66
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Comissão Africana dos Direitos do Homem e dos Povos. No conjunto, os Tribunais europeus prestaram um trabalho útil e construtivo no domínio da protecção dos direitos do Homem, compreendendo os direitos ligados à religião e à convicção. Em certos casos, no entanto, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem deu demasiada importância à margem de apreciação que é deixada a cada um dos Estados. Ele achou, com efeito, que para certos assuntos, as autoridades e tribunais locais estão em melhores condições do que uma autoridade judicial internacional para tomar decisões que podem afectar a ordem pública ou certos interesses fundamentais do Estado. Por exemplo, no assunto do lenço turco, acho que o Tribunal deu muito peso à margem de apreciação do Estado e subestimou o direito do indivíduo a manifestar uma convicção religiosa sincera. A liberdade de manifestar a sua religião, lembremo-nos, não pode ser objecto das restrições previstas pela lei e que são necessárias à protecção da segurança, da ordem e da saúde públicas, ou da moral ou das liberdade e direitos fundamentais de outrem. No que se refere ao Islão, os Estados muçulmanos parecem encontrar dificuldades em encontrar analogias entre as leis religiosas e os direitos do Homem reconhecidos internacionalmente. A propósito de questões como os direitos da
A protecção judicial internacional O Tribunal Penal Internacional e o tribunal especial estabelecido pelo Conselho de Segurança são, por natureza, competentes para julgar os actos criminosos dos indivíduos. Contudo, os Tribunais Internacionais têm igualmente, como tarefa estender a protecção judicial geral aos direitos do Homem ligados à religião ou à convicção. O Tribunal Internacional de Justiça tem tido poucas ocasiões de assegurar uma tal protecção. As circunstâncias em que os tribunais regionais têm tido que se ocupar especificamente dos direitos do Homem têm sido muito numerosos. O Tribunal americano teve, por exemplo, de proteger os direitos fundamentais do Homem ligados à religião, à vida, à segurança pessoal e às liberdades processuais. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, por sua vez, tem muitas vezes chamado a intervir sobre o assunto da protecção dos direitos ligados à religião ou à convicção. Não é de surpreender quando se conhecem as diferenças entre as situações políticas dos dois continentes. Enquanto na América Latina as ditaduras e os regimes militares negam as liberdades fundamentais, na Europa os direitos ligados à cultura e à consciência são muitas vezes citados perante os tribunais. Quanto à África, ela não dispõe de protecção judicial ao nível do continente, excepto os modestos esforços de vigilância da 67
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mentais e perseguir os indivíduos ou as comunidades por causa da sua religião ou convicção. É o que se tem procurado fazer, tanto ao nível nacional como internacional. Alguns Estados consideram mesmo que é seu dever reagir contra todo o atentado às liberdades religiosas noutros países, em particular porque as liberdades religiosas estão estreitamente ligadas ao respeito por outros direitos fundamentais. A esse respeito, a comunidade internacional tem um importante papel a desempenhar.
mulher, a conversão, a apostasia, a liberdade de culto e outros direitos fundamentais ligados à religião e às convicções, certas violações têm assim sido postas em evidência, e isso, mesmo adoptando uma abordagem de pluralismo cultural muito vasta. Conclusão É necessário proteger os direitos do Homem relativos à religião ou à convicção contra aqueles que querem violar as liberdades funda-
* Professor de Direito Internacional do Centro Interdisciplinar da Herziliya e na Faculdade de Direito da Universidade de Tel Aviv, Israel.
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Coesão social, pluralismo, liberdade de consciência Gabriel Nissim* reflexo, não de acolhimento, mas de reafirmação da identidade sob as suas formas primárias, a fim de recriar as protecções para essa identidade, que parece desde logo ameaçada na sua existência e na sua durabilidade. A afirmação das identidades tanto individuais como colectivas é de facto necessária, porque fazem parte do património da humanidade. É totalmente legítima porque cada um tem o direito de ser ele mesmo. Mas, por um lado, neste contexto de mundialização, as identidades afirmam-se, de forma geral, de forma simplista, como se a identidade fosse unívoca e fixada uma vez por todas, enquanto que, precisamente porque é humana, é sempre plural, complexa e evolutiva com o tempo e em função do ambiente, por outro lado, a afirmação identitária deve-se, frequentemente, à recusa da presença do “outro”. E, em particular, do migrante. Assiste-se a um forte crescimento de discriminações, de actos de racismo ou de xenofobia em geral, especialmente para com o imigrados, por vezes até à segunda, quando não, à terceira geração. É por isso que os dois principais modelos de coesão social aplicados hoje na Europa para dar lugar aos imigrantes, a saber a assimilação/integração, por um lado, e o
A mundialização coloca de forma completamente nova o problema da coesão nas nossas sociedades. O modelo europeu de coesão, construído essencialmente nestes últimos séculos, na base do Estado/Nação, deve, hoje, ser repensado em função de dois factores ligados um ao outro: Desde logo o quase desaparecimento das fronteiras económicas e financeiras – a globalização digital tem vindo a reforçar a globalização através de uma ferramenta tecnológica oportuna – e em menor medida, a das fronteiras políticas, donde migrações e uma mistura de diversas populações no mesmo território como jamais conhecemos. Os nossos Estados são daqui para a frente plurais, do ponto de vista cultural e religioso. Em segundo lugar, e em consequência dos reflexos da individualização e de afirmação das identidades, a abertura resultante do desaparecimento das fronteiras tem como resultado, não como se poderia pensar, um sentimento mais forte do universal, mas bem ao contrário a afirmação do particular, quer seja de ordem local, regional, nacional, religiosa, ou que tenha que ver com a forma de viver, etc. Com efeito, a ausência de fronteiras tangíveis provoca um 69
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dos Países Baixos. Mas, nestes dois países, constata-se o fracasso do modelo comunitarista, uma vez que as “comunidades” em questão têm as suas raízes culturais e religiosas noutro lugar, e permanecem fortemente ligados às suas terras de origem e não através dos media1. Coesão religiosa e coesão social: o “Cujos regio, ejus religio” No modelo europeu de coesão política e social, a religião tem desempenhado, ao longo do tempo, um papel central. Isso também não é uma característica própria da Europa. Com efeito, esta relação entre uma religião e o Estado não tem nada de “natural” – é mais o regime de separação que é a excepção nas sociedades humanas. Estas têm, com efeito, tendência natural para procurarem um fundamento transcendente do tipo religioso, e até mesmo os regimes ateus não se têm privado dele (por exemplo as “liturgias” nazis e os “dogmas” marxistas). Em muitos locais – em África, por exemplo – o chefe político é ao mesmo tempo, o chefe religioso. Houve mesmo, no tempo dos reinos bárbaros europeus (de Clovis, Alarico e outros Godos e Vândalos), em que o soberano deveria ser capaz de obter dos deuses a vitória na guerra e boas colheitas, na falta do que procuravam outro rei, que se fizesse ouvir melhor pelas divindades2. O modelo europeu do “cujus regio, ejus religio” (dito de outra forma, as pessoas devem adoptar
Cabeça de bronze do imperador Constantino I (IV século depois de J.C.). Museu do Capitólio em Roma. Foto Jastrow/Wikipedia. Os cristãos que recusavam oferecer sacrifícios aos imperadores eram perseguidos, em particular sob Décio e Diocleciano. Depois da morte deste último, em 313, Constantino I trouxe mudanças políticas em matéria de religião. Com efeito, ele previlegiou consideravelmente a jovem Igreja cristã em relação aos outros cultos que existiam na época.
comunitarismo, por outro, não são adaptados. A assimilação, porque trata por omissão as diferentes identidades, como se, vindos da Europa, os migrantes devessem ver as suas ligações ao país de origem desaparecer rapidamente. O comunitarismo, porque se torna muitas vezes em gueto, fechando as comunidades e separando uns dos outros. Este segundo modelo supõe, com efeito, um mínimo de consenso entre as diferentes comunidades assim como uma base linguística e cultural comum, pelo menos de um lado. Era o caso, até ao presente, de lugares como o Reino Unido (cujo próprio nome exprime esta filosofia política) ou
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a religião do seu chefe político) está, portanto, muito espalhado nas sociedades humanas. Na Europa, está profundamente enraizado nas nossas memórias colectivas, uma vez que vem do Império Romano, em que a religião era religião do Estado, desde logo, a religião romana pagã, depois com Constantino, o cristianismo “romano”. Os locais de culto da religião romana pagã foram, então, pura e simplesmente transferidos para a nova religião do Império, tal como o clero pagão foi substituído pelos sacerdotes cristãos. Todas as outras religiões eram “ilícitas”3. Foi o modelo “romano” que se manteve até hoje, sem dúvida com algumas pequenas alterações, através das diferentes formas de “religiões do Estado”, sempre presentes pelo menos na mente quando não nas instituições: desde o Leste com os encontros regulares entre o patriarca de Moscovo e o presidente da Federação Russa, até ao Ocidente com o “Established Church of England” de que a rainha de Inglaterra é o chefe (à maneira do que se passava na Idade Média) e depois a Norte com as Igrejas do Estado dos países escandinavos, até ao Sul com as concordatas italiana, maltesa, espanhola e portuguesa. É bom não esquecer que o princípio “cujus regio ejus religio” foi, portanto, a regra na Europa durante dois milénios. Eis porque, mesmo se hoje o regime institucional na Europa é geralmente a separação da religião e do Estado, o modelo da religião do Estado não pode deixar de permanecer nas
mentalidades colectivas, consciente (ver: o desejo de um regresso ao “cristianismo” entre os tradicionalistas) ou inconscientemente. Ele tem conhecido diversos aspectos nos nossos países europeus, mas permanece inscrito nas nossas paisagens como nos nossos calendários e mais ainda, nas mentalidades: é, por exemplo, a principal “razão” do lado da cá de todos os argumentos racionais, para a reticência em acolher a Turquia, país muçulmano com uma Constituição laica, na União Europeia. Esta ligação entre nação e religião tem sido, de facto, criador de coesão social e de uma coesão de que muitos têm a nostalgia nestes tempos de mundialização e de mistura de culturas, convicções e religiões. Mas esta sacralização religiosa da “nação” comporta riscos em si mesma. Enquanto que a ligação entre religião e cultura tem sido muitas vezes uma fonte de enriquecimento considerável para o património da humanidade, é bastante diferente desde que se misturou com a política. Toda a sociedade humana tem necessidade de manter a sua coesão, mas esta é na essência, frágil; para assegurar a sua sobrevivência, a sociedade deve ultrapassar as tensões inevitáveis que a atravessam, exorcizar a violência nativa que a qualquer momento pode fragmentar o grupo, portanto criar regras, dotar-se de uma autoridade e de um sistema de poder. Para evitar que este conjunto de mecanismos seja posto em causa, procura-se, 71
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na Europa a custo da então, uma referência e exclusão de “outros”, uma garantia da ordem, por vezes tolerados transcendente. A relicom um estatuto disgião é assim o cimento criminatório, mas mais que assegura a coesão frequentemente vítido grupo sacralizando a mas de violências e de vida política em nome perseguições, levando dos deuses. Os actos à escravatura ou à conlitúrgicos tornam-se versão forçada. Para actos políticos (mesmo não apresentar mais do até por vezes na Europa que um exemplo, uma laicisada do século das suas expressões XXI, com as exéquias mais desastrosas foi religiosas dos Chefes Jupiter Otimus Maximus era a revogação do Édito de Estado, por exemo maior dos deuses romade Nantes em França. plo) e os laços sociais, nos. chamavam-lhe “o pai Dito de outra forma, laços sagrados. E como dos deuses e dos homens”. esta coesão tem-se a violência está sempre Foto Jastrow/Wikipedia feito à custa da persepronta a surgir no seio guição das minorias e, sobretudo, da sociedade por causa dos conflitos da negação da liberdade de consde interesse, ou outros, a religião ciência. lança a violência sobre um culpado escolhido – seja no interior, mas se possível no exterior do grupo – que Religiões e liberdade preenche a função de “bode emis- de consciência sário”. É assim que ao longo dos Com efeito, uma das vítimas – e séculos se têm sacrificado tantos não das menores – desta religião e tantos uns aos outros: desde as instrumentalizada pela política é a crianças que eram postas nas funda- liberdade de consciência. ções das muralhas da cidade, até aos Eis porque a separação da Igreja migrantes de hoje, passando pelas e do Estado tal como de hoje em “bruxas”, os Negros ou os Judeus. diante mais ou menos adquirida em Perversão da sociedade, perversão todos os países da Europa, longe daqueles que se lançam numa vinde ser um refúgio da Igreja ou das gança cega designando vítimas inoreligiões, permite, pelo contrário, centes como causa das suas infelicique estas reencontrem um dos fundades, perversão da religião quando damentos da fé: não fé no sentido sacrificamos aos deuses que se nos bíblico do termo sem uma relação apresentam como estando ávidos de pessoal de amor com Deus, portansangue humano. to, sem liberdade como fundamento Assim, a coesão sacralizada do desta relação. Assim, a liberdade “cujus regio…” foi paga muito cara de consciência é a expressão civil por todos aqueles que sofreram e política da liberdade que é e deve as consequências: ela tem-se feito ser sempre a base da fé. 72
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maioria das pessoas pertencentes a tal cultura e a tal religião tem difículdade em ver como podem partilhar da sua identidade cultural, sem pertencer também à sua religião. Quanto aos responsáveis religiosos, esta ligação é, conscientemente o não, um dos meios de assegurarem a perenidade dessa religião. Também o aceitar a presença de “outros” como a liberdade de consciência, é ameaçar a identidade religiosa assim como a cultural. “Católicos e Franceses sempre!” cantava-se nas igrejas em França, não há ainda muito tempo. Era uma forma de subentender que não se pode ser verdadeiramente francês se não se é católico. Tal era também uma das razões pela qual muitos queriam afirmar no projecto do Tratado Constitucional europeu as “raízes cristãs” da Europa. Mas não querer citar essas raízes, assim como muitas outras, era dar a entender – volens nolens, a apesar de todas as denegações – que não se pode ser verdadeiramente europeu se não se é cristão. Uma segunda razão para em certas religiões recusar a liberdade de consciência é o clericalismo. A palavra “clérigo” diz, ela mesma, que há uma diferença entre os que sabem e os que não sabem, aqueles que são competentes e aqueles que apenas têm de seguir docilmente o que lhes é dito. Aceitar a liberdade de consciência é, então, reconhecer uma liberdade e uma responsabilidade àqueles que, afirma-se, não são verdadeiramente capazes. Não será melhor tratá-los como menores? Os “cléri-
Uma liberdade de consciência que a Igreja Católica, por exemplo, não reconheceu senão após o Concílio Vaticano II e não sem dificuldade. Para isso, foi necessário que em certos países, na época moderna, cristãos fossem privados da liberdade. É necessário dizer que do lado das religiões há muitas vezes consentimento ao “cujos regio…” e consequentemente a que o poder político (“o braço secular”) obrigue as pessoas a seguirem a religião do Estado. Há muitas razões para uma tal atitude por parte das religiões. Mencionaremos três que são essenciais. A primeira é a relação entre cultura e religião. De facto, uma religião inscreve-se necessariamente numa cultura. Ela exprime-se e cria formas artísticas, filosóficas ou morais que se contam entre os mais belos tesouros da humanidade. Reciprocamente, as formas religiosas são elas mesmas diversas segundo as culturas em que se inserem. Não há apenas a dimensão religiosa da diversidade cultural, mas também a dimensão cultural da diversidade religiosa, incluindo o interior da própria religião. Uma tal diferenciação cultural levou muitas vezes a oposições internas às religiões, ou até mesmo a cismas, cujas causas tenham muito menos a ver com divergências de ordem doutrinária do que com incompreensões de ordem cultural. Assim, esta ligação entre cultura e religião pode ser de tal maneira proveitosa que se torne, de qualquer forma, obrigatória. A 73
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gos” seja no domínio religioso, ou, por extensão, no domínio escolar, universitário, bem como na da informação, etc., não gostam que o “vulgum pecus” se permitam ter opinião e pôr em questão a sua competência. Por outro lado, no meio religioso, os clérigos têm exercido muito frequentemente um verdadeiro domínio das consciências em vez de estimular cada um a assumir a sua própria responsabilidade. A prática católica da confissão tem sido muitas vezes desviada no sentido de uma vontade perversa de poder e de controlo sobre as consciências – tornou-se actualmente, e muito felizmente, insuportável para muitos. Portanto, não nos devemos admirar se as coisas mudaram, e se esta prática seja hoje de escolha livre. Por fim sublinhamos que o controlo se tem exercido muitas vezes prioritariamente sobre as mulheres que, diferentemente dos homens, não têm os mesmos meios para se revoltarem, especialmente no domínio da sexualidade conjugal, o que lhes tem feito carregar fardos bem pesados e culpabilizantes. Aí, também, a liberdade de consciência tem sido fortemente posta em causa. A terceira razão, ainda mais grave, e mais perigosa para a liberdade de consciência, é a pretensão, que as religiões, por vezes têm, de deterem uma verdade absoluta e universal que querem impor a todos. Porque a verdade que as religiões procuram tem a ver com aquilo a que se pode chamar o Último. Por um lado, com efeito, procuram formular o que consideram como
a verdade sobre o Último. Por outro lado – e sobretudo – desde que comportam uma “revelação” divina, pensam deter uma verdade vinda de Deus, a propósito do Homem e do mundo. Muitos chefes religiosos tiram, então, a conclusão de que estão investidos de uma autoridade divina para dizer a verdade e que, consequentemente, devem ser escutados e obedecidos em todos os domínios da existência humana. Mas a verdade, sobretudo relativamente ao Último, nunca é uma coisa que nenhum indivíduo, nenhuma instituição possa “possuir”, governar ou dominar. Desde que alguém pensa possuir a verdade, esta torna-se fonte potencial de violência. Isso é válido para a verdade religiosa, bem como para as verdades seculares. Toda a relação com a verdade deve ser da ordem da busca, uma busca jamais atingida, e, portanto, deve ser modesta. Ninguém pode possuir a verdade: apenas posso dirigir-me para a verdade, a fortiori se essa verdade tem que ver com o Último. No ano 2000, por ocasião do “Ano Santo”, o Papa João Paulo II tinha decidido que a Igreja Católica Romana devia pedir, publicamente, perdão pelos seus pecados. Entre esses pedidos de perdão, havia um específico relativo aos pecados cometidos “em nome da verdade contra a caridade”. Aquele que foi encarregado disso foi o Cardeal Ratzinger (hoje Bento XVI), responsável pelas questões da verdade no seio da Igreja. Gesto corajoso e significativo, destinado a mostrar que, se o gozo da verdade é essencial para cada ser humano, para 74
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mesmo recebe a unção com o óleo sagrado e, portanto, o seu poder vem de Deus. Porque sem ele permanece um homem comum. Mas também porque, para o pensamento bíblico, a relação com Deus é uma relação de aliança. Quem diz aliança diz livre aceitação, quase uma relação de igual para igual, escolha deliberada de responder positivamente à proposta que Deus faz, de entrar em relação com ele nessa base. Esta aliança, de ordem sobretudo colectiva no início – Deus a estabelece com o povo no Sinai – será concebida cada vez mais, uma aliança de pessoa a pessoa, uma aliança baseada no amor entre Deus e cada crente: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração”.
a humanidade e para cada religião, não se trata de uma verdade abstracta que se impõe de forma absoluta: a verdade inscreve-se em algo que a ultrapassa e que é o mandamento do amor, incluindo, portanto, o respeito por cada um. Porque para o crente, apenas Deus “é” a verdade – não palavras humanas nem conceitos acerca de Deus. Aquilo que eu posso dizer sobre Deus pode ser “verdade”, no sentido de que aquilo que é dito é correcto, mas não exaustivo, como nota S. Tomás de Aquino. Isso não é nunca “exacto”, porque Deus ultrapassa infinitamente as palavras que podemos pronunciar, os pensamentos que podemos formular sobre esse assunto. E especialmente para os cristãos, apenas Jesus “é” a verdade. Como poderia eu, portanto, deter esta verdade, seja de que forma for, e ainda menos impô-la a quem quer que seja? É na relação pessoal que tem com Cristo, sob uma forma, ou outra, portanto, de forma inteiramente livre, que cada um é convidado a aproximar-se da verdade. Logo, a liberdade de consciência deveria ir sempre para além de si própria, numa Europa herdeira da tradição cristã. Desde logo, porque ao longo da Bíblia vê-se elaborar, progressivamente, uma clara separação entre o poder religioso e o poder político, que chegará à afirmação: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. E justamente uma das originalidades da Bíblia, em relação ao antigo Médio Oriente é como “dedivinisar” o rei. Este
As religiões e os outros É por isso que hoje, no contexto da mundialização e da mistura das culturas e das religiões que conhecemos na Europa, recai sobre as religiões não só a responsabilidade de aceitar (o que por vezes fazem com a boca…) mas de quererem realmente promover a liberdade de consciência como parte da sua mensagem e em nome da sua própria tradição. Em primeiro lugar, evitando todo o “abuso da posição dominante”, o que é de evitar no domínio económico tanto como parte integrante do domínio ideológico e religioso! Com efeito, a experiência mostra que todo o grupo maioritário está sujeito à tentação de marginalizar, de excluir, até 75
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mesmo de perseguir ou de procurar eliminar os grupos minoritários. Por conseguinte, e em segundo lugar, aceitando, sem reservas, uma verdadeira separação entre Estado e religiões (o que não quer dizer generalizar o modelo da laicidade francesa, que tem raízes históricas bem particulares – os outros modelos de separação praticados noutros países europeus são também viáveis). É preciso, portanto, vigiar para que nenhuma corrente de pensamento ou grupo ideológico monopolize o aparelho do Estado. Esta responsabilidade releva do Estado, mas também dos próprios responsáveis religiosos: há ainda hoje na Europa, apesar da separação afirmada, muitos conluios e alianças doentias entre o poder político e o poder religioso, nenhum deles insatisfeito por poderem beneficiar de apoio um do outro. Como cidadãos, tal como crentes, temos de recusar categoricamente, toda a instrumentalização recíproca do Estado e da religião. Em terceiro lugar, uma vez que para certos responsáveis religiosos a liberdade de consciência e as suas consequências são, por vezes, difíceis de compreender e de aceitar, são, sem dúvida, outros responsáveis religiosos que estarão melhor colocados para a discutirem com eles. Tratar-se-á de se interrogar sobre o significado e o benefício, para as próprias religiões, desta liberdade de consciência assim como de uma separação pacífica entre a religião e o Estado. Este deveria ser um dos objectivos do diálogo entre as religiões: abordar e discutir estas questões. Isto é vital para as religiões, 76
porque numa sociedade como a nossa, que tende a recusar toda a forma de magistério, a religião, a prazo, não se manterá senão através da fé pessoal dos crentes. Isso é igualmente vital para a credibilidade das religiões aos olhos da sociedade no seu conjunto: esta credibilidade será ainda mais forte porque as religiões deixarão de aparecer nos média como um factor de afrontamento, mas como um elemento de coesão social e de paz. No seio de sociedades pluriculturais e pluri-religiosas, como as nossas, elas serão julgadas à vista do respeito da sua própria mensagem: a sua contribuição para o respeito mútuo e a fraternidade universal. Isso significa que, numa sociedade futuramente múltipla, as religiões devem – e é talvez o maior desafio que enfrentam na hora actual – ser levadas a recomeçar a “pensar” no lugar dos “outros” na sua própria visão do mundo. Não se trata apenas do diálogo inter-religioso nem de tolerância. Também não se trata de “fazer das tripas coração” resignando-se ao facto de que há pessoas que não partilham as nossas convicções. Trata-se, por um lado, de procurar qual é o lugar legítimo e a contribuição benéfica das outras convicções no nosso próprio sistema de crenças e, por outro lado – e mais ainda – de se questionar como é que esses “outros” devem ser considerados no seio do nosso próprio sistema religioso: dito de outra forma, de que maneira os incluímos no
Gabriel Nissim
consiste em confrontar múltiplas crenças – uma multiplicidade de discursos coerentes – para procurar um discurso coerente que os englobe a todos, e que é precisamente de ordem universal. Um discurso coerente já está aberto sobre o universal logo que aquele que o tem e que permanecia até então fechado na sua particularidade – o seu discurso era coerente – sem receio da coerência interna de outros discursos diferentes do seu – para ultrapassar a sua própria particularidade. […] A verdade de cada um pode chegar ao seu verdadeiro estatuto de verdade universal, em vez de empalidecer diante do seu esplendor.” (E. Lévinas)
modo como pensamos Deus e sobre as suas relações connosco. Todos temos feito a experiência de ter sido enriquecidos, esclarecidos, alimentados, pelos outros, aqueles que não estão do nosso lado, que não pertencem à nossa cultura, à nossa língua ou à nossa convicção. O encontro com o outro diferente é uma experiência agradável que me permite sair do orgulho de pensar que sou o único a ter razão. Bem longe de me levar a renegar-me a mim próprio, é um caminho que me humaniza. Bem longe de levar as religiões a renegar o que quer que seja da sua mensagem, será para elas um caminho de humanização e de universalização: “Qual é, com efeito, o caminho para a universalidade de uma ordem política? Ele
* Presidente da Comissão dos Direitos do Homem na Conferência das OING do Conselho da Europa, em Estrasburgo. Notas 1. Ver o Livre Blanc sur le dialogue interculturel, “Viver ensemble dans l’égal dignité”, Conselho da Europa, Junho 2008, §3.3, p. 19. 2. Ver, por exemplo. Bruno Dumézil, Les racines chrétiennes de l’Europe, conversion et liberte dans les royaumes barbares des Ve-VIIIe siècles, Fayard, Paris, 2005 3. Com a única excepção do judaísmo que tinha o estatuto de “religio licita”.
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O ultrapassar de um “ódio democrático”: do combate anticlerical à lei da separação de 1905 Jean Baubérot*
calismo não se ficam atrás e fabricam uma “colecção de feras republicanas” onde macacos, porcos e cães se tornam vedetas (Jaqueline Lalouette, 1997). Na diferença do anti-semitismo e do anti-protestantismo, não se trata de uma rejeição de uma minoria, mas do conflito entre duas Franças, em que dois movimentos sociais alternam na supremacia (Jean BaubérotValentine Zuber, 2000) Depois do caso Dreyfus, os partidários de uma laicidade dita “integral” querem pôr fim a esse longo afrontamento com uma vitória definitiva do seu campo. Criados logo após esse caso, os Annales de la Jeunesse Laïque constituem o ferro da lança ideológica deste combate. Ernest Lavisse dá-lhe um ideal nobre; não é necessário “odiar” as Igrejas mas “combater o espírito de ódio que sopra das religiões e se tornou a causa de tantas violências, de mortes e de ruínas”. Esta injunção não é bem entendida: a recusa do ódio arrisca-se a ser desmobilizador. O director dos Annales, Georges Béret, clama: “Eu odeio a religião, porque ela é a codificação do Absoluto […] porque ela adormece as aspirações
O anticlericalismo francês do início do século XX pode ser designado como de “ódio democrático”. É a resposta ao anti-semitismo virulento de algumas congregações religiosas por ocasião do caso Dreyfus mas transformou-se em anti-religião. A separação da Igreja e do Estado foi, desde logo, encarado numa perspectiva idêntica. Mas isso não vai acontecer. O Parlamento que tinha votado medidas anti-congregacionistas adopta uma lei liberal que vai permitir diminuir, progressivamente, a intensidade daquilo que se chama “o conflito das duas Franças”. É este ultrapassar de uma situação portadora de ódios que gostaria de analisar. 1. O anticlericalismo perante a procura da “laicidade integral” Na segunda metade do século XIX, houve entre o anticlericalismo e o clericanismo uma relação que comportava discursos de ódio em que cada um desqualificava o adversário. O ódio anticlerical insiste na obrigação “antinatural” da castidade do clero – levando a amores venais, servis, adúlteros e pedófilos – e fala de brutalidade, da captação de heranças, de vida de opulência. Os defensores do cleri78
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outros, ela autorida parte mais viva za o legislador a da Humanidade por lutar contra aquimais Justiça, mais lo que é entendido Felicidade, mais como um sinal de Beleza”. Aos que o alienação perigoaconselham a triunso para os indivífar sobre o clericaduos e a sociedalismo apenas pela de”. (Jacqueline liberdade, Etber Lalouette – Jean(anagrama de Béret) Pierre Machelon, responde: “Á liber2002). dade de ensinar, é necessário opor o Instala-se então ensino da liberdauma engrenagem de”. O contrário é Aristid Briand (1862-1932). De cuja lógica interna a 1932 ocupou diversas funsignificativo: uma 1909 ções no governo francês - com se desfaz progresliberdade “eman- períodos de intervalo: Primeiro sivamente. Cada cipação” opõe-se a Ministro, Ministro do Interior, dos medida é justificaliberdade “pluralis- Cultos, da Instrução Pública, da por um discurmo”. Isso implica da Justiça e dos Negócios so sobre a nocividesde logo, crer que Estrangeiros. Em 1926, depois dade das congredos acordos de Locarno, recejá se chegou à sua beu (com Gustav Stresemann) o gações. E como plena liberdade e Prémio Nobel da Paz pela sua isso se mostra depois que só existe acção em favor da reconciliação insuficiente, é preuma via de emanci- entre a França e a Alemanha. Foto ciso adoptar uma Wikimedia Commons pação: a sua. outra mais radical. No fim de contas, Em 1903 foi fundado o diário L’Action, órgão do é a própria liberdade de ensino livre-pensamento. Para Henry que está posta em causa. Para o Béranger, seu director, a luta actual líder do Partido Radical, Eugène é “um episódio do drama eterno Lintilhac: “O Estado democrátique se desenrola na consciência da co será ensinador, ou não existihumanidade, desde que há padres rá”. Deve ensinar “um credo, o e, perante eles, homens livres1”. da Declaração dos Direitos do É necessário, portanto, fundar o Homem e do Cidadão”. É necessário, portanto, a instauração de Estado livre-pensador. A política praticada contra as um monopólio do Estado sobre congregações vai no mesmo sen- o ensino. E alguns inquietamtido. Trata-se ainda, de liberda- -se logo de que, se se estabelece de: “Dos dois lados recomenda-se esse monopólio, um “clericalisa liberdade de consciência […] mo latente” poderia ganhar os Para uns (ela) envolve o direi- concursos! to de escolher um modo de vida baseado nos votos contraídos mas II. A lei da separação e a ultralivremente pronunciados. Para os passagem do ódio democrático 79
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Outono de 1904, apresentou o projecto de lei sobre a separação das Igrejas e do Estado, este parece uma nova etapa na direcção da “laicidade integral”. Com efeito, tratou-se de um reforço da vigilância do Estado. Muitos projectos anteriores iam no mesmo sentido (Baubérot, 1990). Contudo, Aristide Briand (relator da Comissão parlamentar sobre a separação) já tinha começado um trabalho de “acalmia”. Chegou a pôr a trabalhar em conjunto, deputados com opiniões divergentes. Estes últimos elaboraram uma proposta de lei que manifestava “um equilíbrio de funâmbulo” (Christophe Bellon, 2005), foi neste contexto que teve lugar a campanha do diário republicano Le Siècle, em que o filósofo Raoul Allier, membro de uma Igreja protestante já separada do Estado, militava por uma separação liberal. Por que razão a mesma maioria pôde apoiar sucessivamente Émile Combes e Aristide Briand, votando medidas muito duras contra as congregações, após a lei de 1905? É habitual falar desta lei como resultado de um combate anticlerical; em 2005, por ocasião do centenário dessa lei, usou-se e abusou-se do termo “compromisso”. Com efeito, a reviravolta operada é a passagem de um conflito frontal para uma pluralidade de conflitos. Não houve uma ruptura mas três.
Na engrenagem que se instalou entre 1899 e 1904, os caminhos da “laicidade integral” afastam-se, portanto, dos da “democracia liberal”. Isso provoca um discurso de Georges Clemanceau no Senado: “Eu rejeito a omnipotência do Estado laico porque vejo nisso uma tirania […] Para evitar a congregação, fizemos da França uma imensa congregação. […] Os nossos pais acreditaram que faziam a Revolução Francesa para se libertarem; não foi, de forma alguma, para mudarem de mestre. […] Hoje onde destronámos os reis e os papas, querem que tornemos o Estado rei e papa”. Clemenceau calcula que recusar a liberdade aos seus inimigos levaria a aprisionar a própria liberdade em nome da liberdade. Ferdinand Buisson, por seu lado, opôs-se – sem sucesso – ao envolvimento do Partido Radical, a favor do monopólio do ensino público. Ele refuta esta posição: “Para fazer um republicano, é necessário tomar o ser humano […] e dar-lhe a ideia que ele deve pensar por si mesmo, que não deve nem fé nem obediência a ninguém, que ele é que deve procurar a verdade e não recebê-la de um mestre […] quer ele seja temporal ou espiritual”. Para Boisson, a emancipação pela liberdade de pensamento obriga a dar lugar à liberdade pluralista, incluindo a dos inimigos da liberdade. Todo o monopólio da liberdade de pensamento constitui, de facto, a abolição da liberdade de pensar. Mas quando o Presidente do Conselho, Émile Combes, no
Primeira ruptura: o fim da França “nação católica” A lei da separação rompe com a Concordata, com os laços oficiais 80
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e seculares que faziam da França a “filha primogénita da Igreja” (artigo 2). Do início ao fim dos debates parlamentares, tanto adversários como partidários da separação sublinharam este aspecto. Mas é preciso situar claramente a ruptura: o Estado francês do século XIX já se tinha liberto da Igreja Católica; já está largamente “laicisado”2. No entanto, a França é sempre considerada como uma “nação católica”. Ruptura mais importante que a perda, pelos cultos, dos apoios do Estado esta laicisação da identidade nacional é ainda considerada, por muitos católicos, com um ateísmo nacional. No entanto, se a lei da separação constrói um novo edifício, contrariamente à Revolução, tem o cuidado de não a desenraizar do antigo (Baubérot, 2006).
alguns republicanos. Terceira ruptura: a marcação da distância com o universalismo abstracto republicano Última ruptura, a do artigo 4: ele é necessário, para que os edifícios religiosos sejam devolvidos às “associações culturais”, que estas se constituam legalmente, “conformando-se com a regras de organização geral do culto de que elas se propõem assegurar o exercício”. Esta formulação, por detrás da qual está a questão do “respeito” (o termo volta, por vezes ao debate) da organização hierárquica da Igreja Católica, visa os católicos que se desejam libertar dela. Isso provocou um conflito na maioria da Câmara, porque estava em contradição com “o universalismo republicano”, que queria que “os cidadãos católicos” – mas não a Igreja Católica – sejam considerados como corpo intermediário entre o cidadão e o Estado. Este discurso republicano é inaceitável por Roma, que ainda receia mais o “cisma”, o desenvolvimento de um “catolicismo republicano”, do que a perda dos apoios do Estado. Ora Briand martela que a lei deve ser “aceitável” pela Igreja Católica. O artigo 4 é o retomar da legislação de alguns Estados americanos e de uma lei sobre uma Igreja livre na Escócia. Nestes dois modelos, o poder político. Em coerência com a concepção anglo-saxónica da democracia, tinha respeitado a constituição de Igrejas dele separadas. No seio desta cultura política, com efei-
Segunda ruptura: o fim do galicanismo e do anticlericalismo do Estado A segunda ruptura é constituída pela passagem da vigilância a priori que o Estado exercia para uma liberdade que se exerce no limite da “ordem pública” democrática. A República encarrega-se de “assegurar” e de “garantir” esta liberdade, segundo as expressões fortes do artigo primeiro. Este aspecto foi sublinhado em 2005, mas o seu carácter de ruptura foi minimizado. Trata-se, contudo, de uma dupla ruptura: ruptura com o galicanismo da realeza, sobre os longos tempos da continuidade histórica; ruptura com os tempos curtos das tentativas republicanas de anticlericalismo de Estado. E isso deixou descontentes 81
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“A Liberdade guiando o povo”, óleo sobre tela de Eugéne Delacroix (1830). Este célebre quadro comemora a Revolução de Julho de 1830. Louvre, Paris. Foto Wikipedia Commons.
anticlerical mas limitando já um pouco o seu sucesso. As outras duas permitiram, a prazo, fazer a paz. Tal era desde logo o objectivo de Briand: “Querem fazer uma lei […] susceptível de assegurar a pacificação dos espíritos? Se é isso, façam com que esta lei seja franca, leal e honesta. Façam-na de tal forma que as próprias Igrejas […] sintam que têm a possibilidade de viver ao abrigo deste regime”. Aqui temos um discurso de pacto, completa reviravolta do discurso da “laicidade integral”, que é um discurso de combate.
to, a liberdade colectiva não é o simples prolongamento, mas uma dimensão da liberdade individual. Esta forma de raciocínio é estranha à tradição republicana francesa. A lei da separação comporta, portanto, um elemento da cultura política anglo-saxónica transplantada para a cultura política do republicanismo francês. Foram, portanto, três rupturas que permitiram a ultrapassagem do conflito odioso entre clericalismo e anticlericalismo. A primeira ia no sentido da vitória do campo
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Estudos citados Baubérot, J., Vers un nouveau pacto laïque, Paris, Le Seuil, 1990 Baubérot, J., Laïcité 1905-2005, entre passion et raison, Paris, Le Seuil, 2004 Baubérot, J., L’intégrisme républicain contra la laïcité, La Tour d’Aigle, L’Aube, 2006 Baubérot, J. – Zuber V., Une haine oubliée, l’anti-protestantisme avant le “pacte laïque”, 1870-1905, Paris, Albin Michel, 2000. Bellon C., “Les parlementaires socialistes et la loi de 1905”, in Parlement(s), Histoite Politique, 2005, nº3, 116-136. Lalouette, J., La libre-pensée em France 1848-1940, Paris, Albin Michel, 1997 Lalouette, J. – Machelon J., 1901, Les congrégations hors la loi?, Paris, Letouzey &Ané, 2002. * Presidente de honra da Escola Prática dos Altos Estudos na Sorbonne, titular da cadeira da História e Sociologia da laicidade na “PHE, Paris, França
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As Igrejas e as Autoridades Jacques Robert*
dependem para a sua sobrevivência senão da generosidade – presumida – dos seus fiéis. Então, cuspir, sem vergonha, na sopa? Ou sentir-se bem com pouca despesa? Os lampiões do espectáculo estão hoje apagados. Mas o problema de fundo ainda permanece. Ele percorre toda a História nacional. Melhor, ele acompanha sempre o progresso. Os novos avanços da ciência, o desenvolvimento das tecnologias modernas, a influência de uma nova ética, criaram interrogações angustiantes que não se colocam senão agora. Paralelamente, a paisagem religiosa mundial modificou-se consideravelmente. Algumas nações vêem florir, no seu interior, religiões até há pouco desconhecidas, e seria bom que lhes prestassem atenção! Sem voltar aqui às numerosas fórmulas que têm sido tentadas um pouco por todo o lado, para definir as relações necessárias, obrigatórias mesmo, entre as Igrejas e as autoridades, retendo sempre que não pode haver coincidência automática entre tal regime político e uma maior ou menor liberdade religiosa, apenas constatamos que
Há já longos anos, a Federação Protestante de França publicou – o que não estava, contudo, nos seus hábitos! – um verdadeiro panfleto de mais de uma centena de páginas – como o presente artigo, que lhe toma emprestado o título – As Igrejas e as Autoridades. Tratava-se de uma espécie de “licença”, no sentido próprio do termo, dada pelas Igrejas às autoridades, fossem elas quais fossem. Fim dos compromissos com as autoridades; terminada a aliança – retrógrada – do trono e do altar; às ortigas, a longa ligação com o dinheiro… Este documento levantou, na época, um coro de protestos tanto mais compreensível quanto, se os protestantes tinham, sem dúvida, no decurso da História, exprimido sempre publicamente o seu apego visceral a uma plena liberdade em relação ao poder, a própria composição do grupo de redacção deste texto perturbador não pode senão surpreender: compreende, com efeito, altos representantes da inteligência do Estado e eminentes dirigentes de grandes bancos… Ora, ninguém ignora que, desde 1905, as paróquias protestantes não 84
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a “laicidade” parece ser hoje a fórmula mais geralmente reconhecida. Talvez porque ela veicula mais naturalmente a tolerância. Ela convida-nos pelo menos a reflectir, neste momento, em três problemas que nos interpelam directamente: 1. Será que a religião faz parte do espaço público? 2. Serão os poderes públicos gestores de uma igualdade rigorosa, estabelecida entre todas as confissões? 3. Será necessário, e como, combater as religiões “extremistas”?
humana num mundo que ainda não tinha uma clara consciência disso. O homem, criatura formada à imagem de Deus, está desde esse momento nimbado com este véu sagrado. E, por isso mesmo, deveria ser protegido. Além disso, todo o homem, sem nenhuma distinção, estava revestido dessa dignidade. Igualdade e respeito reuniam-se. Em nenhuma época o cristianismo pregou a revolta contra os poderes estabelecidos, desde que estes últimos não saíssem das suas competências. Pelo contrário, a resistência era pregada contra o opressor quando precisamente este pretendia reger, ao mesmo tempo, os corpos e as mentes, isto é, as almas… O tirano era aquele que, violando deliberadamente a repartição entre os dois domínios, entendia reinar sobre as consciências de cada um. Na época da perseguição, os protestantes levantaram-se contra o poder monárquico, não por ele ser autoridade ou católico, mas porque, revogando o Édito de Nantes, entendia não continuar a tolerar no seu solo “a heresia da Reforma” e não permitia escolha aos protestantes, senão a abjuração ou o exílio. Assim, a revogação do Édito de Nantes era inaceitável e ilegítimo, porque entendia confundir os dois domínios, o de César e o de Deus. Ele foi, ao mesmo tempo, um erro político maior e uma falta contra o espírito.
***** A célebre e antiga censura, “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, deve ser correctamente explicitada, se queremos pôr fim às interpretações erradas e contraditórias que lhe têm feito ao longo da História. Este mandamento não implica uma separação – a fortiori hostil – entre o domínio temporal e o domínio espiritual. Ele implica simplesmente – mas firmemente – que nenhum dos dois se deve intrometer com o outro. O poder político não serve para reger as consciências. Da mesma forma, a contrario, a religião não tem que dominar o Estado, até mesmo orientá-lo – ou, pior ainda, ditar-lhe – as decisões. O cristianismo foi considerado revolucionário simplesmente porque exaltava a dignidade da pessoa 85
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Os dois mundos deviam estar separados. A prova disso é hoje reportada por todo o lado, por uma prudência extrema na apreciação, por cada um, do direito do outro. Quando se põe, por exemplo, no seio da Igreja nacional, um problema de apropriação de edifícios ou um problema de detenção do direito de ocupação, os tribunais franceses têm sempre em linha de conta reenviar a interpretação das regras canónicas ao Ministério dos Negócios Estrangeiros que, tratando-se da Igreja Católica, pede directamente ao Vaticano qual é a sua apreciação. É apenas quando a ordem pública está ameaçada no seu território, pelas acções dos fiéis ou dos ministros de culto, que o Estado retoma os seus direitos. Mas esta reserva – muito naturalmente – não pode levar, de qualquer forma, a uma espécie de imunidade jurisdicional das Igrejas e dos seus ministros. Nenhuma religião está acima das leis comuns do país de acolhimento. E não poderá evitar nem as perseguições, nem as sanções, se os propósitos a partir do púlpito se revelarem constituírem delitos previstos pelas leis do país. Salvo para a sua disciplina estritamente interna, as religiões não estão submetidas a um direito especial, derrogatório ao Direito Civil e Penal do Estado. Se, por outro lado, uma prescrição ou um rito da religião vem a infringir a lei penal francesa, será julgado e punido segundo as dispo86
sições dessa lei. Neste sentido, a distinção dos dois domínios (o de César e o de Deus) não implica, de forma alguma, que haja no Estado dois “espaços” diferentes, com fronteiras rigorosamente estanques. Não seria de conceber a existência de um “espaço privado” próprio das religiões e de um “espaço público” do qual elas seriam excluídas. As religiões fazem parte integrante do espaço público; e, pela mesma razão, os Estados não podem desinteressar-se da actividade e finalidade das Igrejas ou permanecerem indiferentes perante elas. Por seu lado, as religiões também não podem ignorar a existência dos poderes públicos, dos quais têm necessidade. Importa, portanto, que se nutra entre uns e outros um diálogo permanente, não para se vigiarem mutuamente, mas muito mais para coordenarem as suas acções respectivas ao serviço das comunidades que estão a seu cargo. Como tal – e constata-se isso correntemente em numerosos países e especialmente em França – é necessário, para conduzir este diálogo constante e confiante, que existam, de parte a parte, estruturas representativas e aptas para travar as discussões necessárias e levá-las a acordos úteis. Estas estruturas representativas oficiais existem, desde há longo tempo, entre as antigas religiões instaladas solidamente no seio de nações estáveis. Porém, outras religiões, mais
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recentes, ou cuja importância numérica cresceu bruscamente, estão sem defesa. Convém, portanto, que os poderes públicos das pessoas interessadas ajudem esses novos movimentos a dotarem-se de instituições que se tornarão interlocutoras legítimas do Estado. Mas será verdadeiramente aos poderes públicos que cabe dar o seu concurso para se porem de pé esses fundamentos indispensáveis, correndo o risco de se ver acusado de pisar o princípio da laicidade que, para muitos, constitui o pilar da sua relação com as confissões? A França sempre conheceu este problema. Nesse país, o Ministério do Interior – apesar da lei da separação da Igreja e do Estado de 1905 – tenta, com resultados diversos, criar estruturas representativas do culto muçulmano, e essa lei é regularmente criticada, prejudicando assim o princípio da laicidade que postula a interdição de toda a ingerência do Estado na vida eclesiástica. Mas não é esta a única forma de criar as condições de um diálogo frutuoso entre as Igrejas e os poderes? Esse diálogo é imperativo e deve ser construído e mantido custe o que custar. Se não, a “separação” corre o risco de se tornar em “ruptura”, o que seria catastrófico para a homogeneidade da sociedade civil, assim como para a solidez do Estado. ****** Porque as religiões fazem parte
“Mihrab” ou nicho de oração indicando a direcção de Meca numa mesquita. Foto Ulrike Mueller / churchphoto.de.
do espaço público (de onde seria insensato excluí-las) é que elas devem contribuir para o debate político, dando, inclusivamente, a sua opinião – publicamente – sobre os grandes problemas da nossa sociedade. Ainda é necessário que o façam com discernimento e moderação, e não sob a forma de editais dirigidos aos seus fiéis… Não tivesse ela como única vantagem o informar o poder político do que pensam os seus dirigentes, a livre expressão do pensamento concedido às religiões seria infinitamente valiosa para o conjunto da opinião pública… E, depois, em nome do quê interditar as Igrejas de defenderem o seu ponto de vista em todas as discussões sobre as questões essen87
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lei, não é, com efeito, a expressão da vontade geral, senão no respeito pela Constituição. Ninguém saberá, neste caso – por causa das suas concepções religiosas pessoais – opor-se à aplicação desta lei. O entrave à aplicação de uma lei é um delito punível. Que se seja hostil ao aborto, quem o poderá contestar? Mas desde o instante que, segundo certas condições bem precisas, a lei autorizou a interrupção voluntária da gravidez, ninguém se pode opor – organizando comandos que utilizam a violência – a que as mulheres recorram a esta lei. Acrescente-se que se professores de medicina, ou chefes de serviços hospitalares, têm perfeitamente o direito, por razões religiosas e em nome da “cláusula de consciência”, de se recusarem a praticar um aborto, não podem opor-se à organização no seu serviço de um sector onde esta intervenção poderá ser praticada. Vamos pôr fim ao eterno debate – totalmente vão – entre a lei positiva e a lei natural! Há muito tempo que a doutrina dita do “Direito natural” não tem defensores sérios… e, contudo, num discurso pronunciado por ocasião do jubileu, em Novembro de 2000, o Papa João Paulo II não hesitou em dizer: “A lei positiva não pode contradizer a lei natural […]. Isto porque uma lei que não respeita o direito à vida – da concepção ao nascimento – do ser humano, qualquer que seja a con-
As duas torres, a da igreja protestante (em primeiro plano) e a da igreja Católica, simbolizam a paz religiosa na cidade de Augsburgo. Foto Simon Brixe/ Wikipedia Commons.
ciais da nossa época? Mesmo se algumas hierarquias parecem, na verdade, terem feito em contratempo a evolução da nossa sociedade, que não tomam bem consciência de que já não são seguidas pelos seus fiéis, não é, apesar de tudo, útil que outros preguem no deserto e façam ouvir, mesmo com a desaprovação da maioria, uma voz que se sente só, mas que permanece digna? Com uma condição, no entanto: é que, em democracia, se o povo estatuiu, seja directamente (por referendo), seja por intermédio de uma lei votada pelos seus representantes, todos se inclinem, desde logo que o texto em questão esteja conforme a Constituição – a 88
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dição na qual ele se encontre – no estado embrionário, idoso, ou em fase terminal – não é uma lei de acordo com o desígnio divino. […] Um legislador cristão não contribuirá para a formular ou aprovar.” Sem dúvida que o ideal seria que a lei “moral” (e não a lei natural) coincidisse com a lei “política”. Mas quem definiria a moral? As Igrejas? Isso não se põe num contexto de laicidade! Um colégio de sábios? Mas designados por quem? E na base de que critérios? Não confundamos o Direito, a política, a moral e a religião. Pelo menos enquanto não formos um povo de deuses. Mas da mesma forma que nenhuma religião, fosse ela maioritária, deveria ser autorizada a fazer prevalecer o seu ponto de vista sobre os outros, igualmente faria bem, sem qualquer a priori filosófico, tratar todas as religiões no mesmo plano.
Nem sempre este é o caso, mesmo no quadro das democracias. Não por um desejo intencional e público de fazer uma escolha deliberada em favor de tal ou tal religião – o que implicaria, de facto, um prejuízo causado às outras, pelo jogo da História e o peso das tradições – mas por necessidade lógica e incontornável. Se, por exemplo, o Islão não vê aplicado a si, em França, o mesmo regime que o catolicismo ou o protestantismo, não é isso o resultado de um preconceito apresentado do Estado contra si, mas o fruto de uma longa evolução social e política. Com efeito, assim que foi votada, em 1905, a lei da separação da Igreja e do Estado, que definia, nas suas diversas modalidades, a relação entre as religiões e os poderes públicos, o Islão praticamente não existia em França. Não se conhecia senão o catolicismo, as duas religiões protestantes (reformada e luterana) e o judaísmo… Quando foi decidido que as igrejas, catedrais, templos e sinagogas, já construídos na época, seriam propriedade quer das colectividades locais, quer do Estado – que devia, portanto, prover a sua manutenção – não havia, no nosso território, um número significativo de mesquitas. A quase totalidade dos locais de culto muçulmanos foi construída depois disso. Assim, o resultado foi que o ónus da manutenção –
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A neutralidade – e não a tolerância, que é um termo ambíguo – que postula a laicidade não significa apenas que o Estado não deve pregar nenhuma doutrina nem fazer propaganda de nenhuma fé. Ela também não implica indiferença para com as religiões – a fortiori um grande cuidado para não entrevar o seu exercício. Esta não é uma noção puramente negativa. Também não deve ser positiva tratando igualmente todas as religiões, isto é, não privilegiando nenhuma. 89
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ou inicialmente, a construção desses locais – recaiu inelutavelmente sobre os fiéis desse novo culto. Não que, evidentemente, o Islão fosse em si uma religião nova nessa época, mas porque a importância numérica da população muçulmana em França era ainda irrisória. Se a esta situação – da qual ninguém, obviamente, é responsável – juntarmos a pobreza desta população, não é muito de admirar que as religiões muçulmanas tenham apelado ao estrangeiro para financiar a construção dos seus edifícios. E o mesmo para a formação dos imãs: a falta de escolas apropriadas para formar estes ministros de culto em solo francês levou a apelar a imãs formados fora do país. Foi isso uma boa coisa? Seguramente que não. Esta é a razão pela qual – como vimos acima – os poderes públicos franceses decidiram ajudar esta nova comunidade religiosa, cujo número aumentava com a chegada – imposta pela História – de populações expulsas das terras árabes ou forçadas ao êxodo por causa da fome. Mas pode uma República laica, para combater uma situação que ninguém tinha seriamente previsto, quebrar o pacto social da laicidade acordado com as outras religiões? Foi então que nasceu o conceito de “descriminação positiva”, expressão claramente pobre, mas que dá conta deste novo desequilíbrio, que desfaz a igualdade, e para o qual era necessário, com urgência, criar uma solução. Na falta de vontade de modificar
uma lei mítica que tinha assegurado à França uma paz religiosa durante um século, baralhou-se todo o sistema. A interdição das subvenções às Igrejas, postulada pela laicidade, desapareceu insensivelmente por detrás da bruma de vantagens diversas, concedidas às novas confissões… Estabeleceu-se de facto uma desigualdade de jure! Iremos fazer o mesmo com as seitas? O problema põe-se de forma diferente, porque, se havia a pretensão de identificar as religiões com as seitas, estamos perante uma situação inédita… E, depois, sobretudo, a sorte reservada às seitas variava de acordo com os Estados. Se, à evidência, as relações destes últimos com as religiões já apresentava uma complexidade variada, a posição de cada um face às seitas traía uma divergência fundamental nas suas sucessivas abordagens. Em alguns países – e não nos menores – acolheram-se abertamente as seitas em nome de uma liberdade religiosa entendida de uma forma ampla. Noutros, pairava sobre elas uma suspeição difusa. Dividem-nas em categorias: as boas e as más; as aceitáveis e as nocivas; as verdadeiras e as falsas; as desinteressantes e as gananciosas; as inofensivas e as perigosas… Acusam-nas frequentemente – em bloco – de métodos perniciosos e ilegais. Mas porque não as perseguir? Nenhuma religião está acima 90
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das leis. As condenações eram raras e os reconhecimentos oficiais mais frequentes. Poder-se-á, globalmente, aplicar-lhes o regime das Igrejas? Muitos eram os que lhes negavam a qualificação de Igrejas. Por outro lado, sabemos o que em Direito era uma religião? Chegamos então – especialmente em França – a definir a seita pela qualificação de um novo delito que ela poderia eventualmente cometer! Flutuávamos no absurdo. Seria necessário que um dia saíssemos desta situação. Mas primeiramente era necessário que nos defendêssemos contra o integrismo.
minorias esse qualificativo – infamante – de “integristas”. É verdade que os “integristas religiosos” recorrem muitas vezes a métodos que não têm uma relação muito distante com os “mandamentos” da sua confissão. Pode mesmo dizer-se, sem risco de estar muito enganado, que se afastam da sua religião, não recusando toda a evolução da sua doutrina, mas pisando os fundamentos mais sagrados. Porque – nunca nos esqueçamos – toda a religião é, antes de mais, paz e amor. Procurar-se-á em vão através do mundo uma religião que oficialmente pregue outra coisa. É verdade que, no passado de uma História sombria, as grandes confissões monoteístas nem sempre demonstraram uma tolerância caridosa e cheia de compaixão. As guerras de religião estiveram entre as mais atrozes e as mais mortíferas. Mas cada religião – mesmo levada pelo seu fanatismo – estava persuadida da sua razão. E algumas épocas aceitaram voluntários que foram autorizados a fazer o bem aos outros, se necessário, contra a sua expressa vontade. Se se consente em examinar as “doutrinas” e “finalidades” de cada religião, forçoso é contudo reconhecer que elas se ligam, antes de mais, a enquadrar o homem e a ditar-lhe sãs (e não santas!) acções. Que religião ousaria negar todo o direito ao homem e condená-lo à guerra, ao crime e ao ódio? É verdade que pequenos grupos
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Segundo o Petit Robert, “o integrismo é a atitude que consiste em recusar toda a evolução de uma doutrina (especialmente de uma religião)”, citando como único exemplo o integrismo muçulmano. Hoje temos uma concepção mais vasta do integrismo. Se, em rigor, uma tal definição pode aplicar-se à Igreja Católica Apostólica e Romana, cujos “integristas” (que ela reintegra, aliás, sem perturbações de consciência aparente depois de os ter excomungado) são precisamente aqueles que fazem questão de escamotear os avanços de um Concílio recente voltando às práticas antigas, outras religiões são mais exigentes antes de aplicarem a algumas das suas 91
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fanáticos pregam a violência, mas ninguém pretendeu que eles fossem representativos da sua comunidade, nem simplesmente aceites ou desculpados por ela. Suportam-nos por medo. Quem adere voluntariamente a uma tal loucura? Além disso, é necessário colocá-los em posição de não prejudicar, quando, pelos seus comportamentos e ideologias, não hesitam em atentar contra a existência da própria democracia. Que meios usar para os combater ou diminuir a sua influência? Cada religião deve esforçar-se – desde logo – por combater a minoria integrista existente no seu próprio seio. Isso supõe que ela seja excluída da Igreja, para mostrar claramente que não representa, de forma alguma, a maioria da comunidade. Mas isso implica, por outro lado, que as autoridades, falando em nome dessa maioria, adoptem posições e uma linguagem que não a choque quando se defendem, num combate de antemão perdido, opiniões que assentam seja em mentiras, seja em inverdades evidentes. Sim, para as tomadas de posição éticas ou políticas que podem ter a sua própria lógica perfeitamente aceitável! Não, para as denegações dogmáticas de verdades científicas verificadas! Por outras palavras, sim, para combater o princípio da gestação para outrem, e, não, para contestar a utilidade do preservativo no combate contra a sida. Podemos, com efeito, admitir,
perfeitamente, que seja condenável a gravidez por outrem, porque o corpo humano não deve ser objecto de um qualquer comércio, remunerado ou não. Mas também se pode ver esta questão com outra abordagem e considerar, pelo contrário, que para uma mulher que tem a possibilidade de tomar a seu cargo o embrião de outrem – que não pode acolhê-lo até ao fim – representa um acto do maior altruísmo que se possa conceber, porque após o nascimento deverá entregar a criança à sua mãe biológica. Em contrapartida, interditar a utilização do preservativo para combater a sida sob o pretexto falacioso de que ele não pode descartar a 100% o risco de uma eventual doença infecciosa, é um pecado contra o espírito, porque não é apoiado pelas fontes científicas mais seguras que o preservativo permanece, actualmente, como o meio mais eficaz para evitar a propagação da epidemia. Mas é necessário ir mais longe. Uma religião – seja ela qual for – não deverá demonstrar arrogância e desprezo ao querer impor aos outros o seu próprio credo. Da mesma forma, não deverá – sob pena de abalar os fundamentos da sua própria filosofia – utilizar, para combater o integrismo, as armas que este utiliza contra si. As bombas humanas são inaceitáveis. Mas Guantanamo também o é… O problema não é realizar, no julgamento que cada um é leva92
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pacífico nestes asilos da fé, tão diferentes das nossas igrejas decorativas, agitadas, quando estão cheias, pelo ruído dos oficiantes, o movimento dos assistentes, a pompa das cerimónias, os cânticos sagrados e, quando estão vazias, tornam-se tão tristes, tão dolorosas que fecham o coração, que têm o ar de uma câmara mortuária, de uma fria câmara de pedra onde o Crucificado ainda agoniza… “Sem cessar, os Árabes entram, os humildes, os ricos, o carregador do porto e o ancião-chefe, o nobre na sua brilhante estamenha de seda branca. Todos, pés nus, fazem os mesmos gestos, oram ao mesmo Deus com a mesma fé exaltada e simples, sem poses e sem distracção. “[…] São cativos sob a vontade do Mestre! As mulheres, certamente, podem entrar como os homens. Mas quase nunca vêm. Deus está muito longe, muito alto, muito imponente para irem a Ele. É necessário um intermediário mais humilde entre Ele – tão grande – e elas – tão pequenas. Este intermediário é o morabito. Na religião católica não temos os santos e a Virgem Maria, advogados naturais dos tímidos, junto de Deus?**” Os homens têm necessidade de sonho – como também de pão: o sonho de uma vida mais fácil e de um futuro melhor. Para atingir este fim, autoridades e Igrejas devem colaborar em plena confiança. E não oporem-se.
do a fazer relativamente a uma outra religião, amálgamas fáceis, rejeitando misturar no domínio do “mal” as diversas correntes que, em todos os tempos, penetraram nas Igrejas. É necessário separar – em todas as religiões – os fiéis que são “moderados” daqueles que se reclamam serem nebulosos “extremistas”. A este respeito não podemos senão felicitar as tentativas feitas em França para distinguir e organizar um “Islão moderado” que tomaria legitimamente o seu lugar no concerto das outras religiões. Porque, como se diz, o Islão – para continuar com este exemplo – é uma religião que, nas suas bases profundas, é perfeitamente pacífica e calorosa. Guy de Maupassant sentiu-o instintivamente por ocasião das suas primeiras viagens pela Argélia, apenas alguns anos depois da chegada dos franceses. Entrando numa mesquita depois de se ter descalçado, avançou sobre os tapetes “no meio de colunas claras, cujas linhas irregulares enchem este templo silencioso, vasto e sob uma enorme quantidade de pilares. Porque estes últimos são muito largos, tendo um dos lados orientado para Meca, para que cada crente possa, colocando-se diante dele, não ver nada, não ser distraído por nada e, voltado para a cidade santa, envolver-se profundamente na oração”. “Tudo é simples, todo está nu, tudo é branco, tudo é doce, tudo é 93
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Há um integrismo da religião, como um integrismo da laicidade. Os dois são condenáveis. O Estado tem, sem dúvida, as suas obrigações de segurança. Mas, mesmo assim, deve ouvir a mensagem das Igrejas, mesmo se, por vezes – e com razão – esta última lhe possa parecer obsoleta. Por seu lado, as Igrejas deveriam evitar chocar o Estado com as suas con-
denações e os seus exageros. Que elas se acautelem de se opor a toda a inovação. Mas quando elas constituem um aguilhão, que o Estado as escute em vez de as sufocar! Se, algum dia, se devesse constituir – sob novos céus – uma nova aliança entre o trono e o altar, que não fosse para governarem juntos, mas para olharem juntos na mesma direcção.
* Presidente honorário da Université Panthéon-Assas (Paris II), antigo membro do Conselho Constitucional. Ver Jacques Robert, Droits de l’homme et libertés fondamentals (com Jean Duffar), Montchrestien, Paris. 8ª edição, 2009; Libertés fondamentals et droits de l’homme (com Henri Oberdorff), Montchrestien, Paris. 8ª edição, 2009; Jacques Robert, La liberté religieuse et le regime des cultes, Colecção SVP, Presses universitaires de France, Paris, 1977, La fin de la laicité?, edições Odile Jacob, Paris, 2004. ** Ver Guy de Maupassant, La vie errante, Paris, 1890.
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Os anabaptistas no Sacro Império: longe da tolerância e da liberdade de consciência?
Astrid von Schlachta * “Em boa verdade, a tolerância não deveria ser senão uma atitude temporária: ela deve conduzir ao respeito. Tolerar é ofender.”1 Esta citação de Johann Wolfgang von Goethe reflecte o nível qualitativo ligado à tolerância de membros de outras confissões no decurso dos últimos séculos. “Tolerar” e “ser tolerado” têm sido objecto de negociações, em vez de se tornarem num direito fundamental com a declaração da liberdade de consciência. As autoridades políticas tinham o poder de tolerar aqueles que não aderiam à confissão maioritária, de transformar essa tolerância em privilégio e de retirar, eventualmente, esse privilégio. A tolerância não tem passado senão de uma concessão, não se tratando de uma igualdade de direitos. Foi apenas depois da instauração do Direito Natural que se deu a separação entre o trono e o altar. A religião passou então progressivamente para a esfera privada e, dessa forma, escapou, em grande parte, ao controlo do Estado. A Constituição do século XIX inscreveu, enfim, a igualdade de direitos de todos os cidadãos, independentemente das suas convicções religiosas. Examinemos precisamente o que era entendido por tolerância no início dos Tempos Modernos. 95
Os parágrafos seguintes concentram-se num grupo de indivíduos do Império, os quais fizeram a sua aparição na cena pública social e política na esteira da Reforma e que, até ao século XIX, e, em todos os domínios, nunca foram reconhecidos pelo Direito Imperial: os anabaptistas.2 Em 1525, a nova confissão tinha-se tornado visível por um acto ritual – o primeiro baptismo de um adulto em Zurique – opondo-se, dessa forma, abertamente às normas sociais e políticas da época. Nos anos seguintes, o Imperador, e também os príncipes, emitiram nos seus territórios ordens que condenavam os anabaptistas, quer à pena capital, quer ao banimento. No século XVI, os anabaptistas estão representados por vários movimentos, desde os Irmãos suíços, aos menonitas e aos huteritas, passando por uma comunidade que se estendia de Estrasburgo até à Morávia e que remontava ao antigo juiz das minas Pilgram Marpeck, originário de Rattenberg. As características comuns a todos os anabaptistas eram o baptismo daqueles que consentiam na fé – isto é, de adultos – a separação do “mundo”, a não-violência, a recusa em se defenderem, assim como de prestar
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guidos, quando uma missão jesuíta introduziu o catolicismo tanto na Transilvânia, como na Alta Hungria. Desde o século XVI, os métodos para reconduzir à Igreja aqueles que se tinham “desviado” têm evoluído ao longo das gerações. Na Eslováquia, os mais velhos tinham sido encerrados em conventos católicos, onde deviam seguir o catolicismo – uma estratégia que se revelou rendosa. Nos meados dos anos 1760, os huteritas da Eslováquia estavam integrados na Igreja Católica. Apenas uma comunidade resistia no sul da Rússia, antes de emigrar para os Estados Unidos, em 1874. O número de menonitas ultrapassa largamente o de huteritas. Assim como comunidades tradicionais e conservadoras se mantêm na Suíça, numerosos menonitas (Doopsgezinden em holandês) se inseriram no meio da sociedade holandesa do século XVII, por causa do seu sucesso económico. Em certas regiões da Prússia Real, em Danzig, por exemplo, ou na cidade imperial livre de Hamburgo, os menonitas também se tornaram prósperos empreendedores. No entanto, ainda havia espalhadas diversas comunidades que respeitavam as antigas tradições e tentavam perpetuar todos os critérios da fé herdada dos primeiros anabaptistas. A existência dos anabaptistas era marcada pelo conflito permanente entre as suas convicções e a sua vida quotidiana. Assim como, por um lado, os escritos religiosos anabaptistas fixavam normas de comportamento internas da comu-
juramento e, consequentemente, a dissociação entre os domínios religioso e laico. Os huteritas distinguiam-se, por outro lado, pela comunidade dos bens. Entre as comunidades anabaptistas que se mantiveram até aos nossos dias, contam-se os huteritas, que vivem no Canadá e nos Estados Unidos, assim como os menonitas e os amish, cujas principais colónias se situam, igualmente, na América do Norte3. A comunidade amish nasceu em 1633, destacando-se dos menonitas da Suíça. Enquanto que os huteritas que vieram do Tirol se tinham instalado na Morávia, os Irmãos suíços e os menonitas encontravam-se, especialmente na Suíça, nos Países Baixos, na Frígia Oriental, assim como na Prússia Real e no Ducado da Prússia, chamadas mais tarde províncias da Prússia Ocidental e Prússia Oriental. No entanto, os huteritas tiveram mais tarde de abandonar a Morávia, em 1621-1622, depois da batalha da Montanha Branca4. Como todos os protestantes, foram vítimas da política de recatolização levada a efeito pelos príncipes de Habsburgo. Porém encontraram refúgio na Alta Hungria (a actual Eslováquia), onde senhores calvinistas os acolheram. O Príncipe imperial dos sete condados da Transilvânia, Gabriel Bethlen, também convidou os huteritas e concedeu-lhes privilégios com o fim de aproveitar as suas inovadoras técnicas artesanais. Não foi senão no século XVIII que os huteritas foram novamente perse96
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nidade, por outro lado, os conflitos locais exigiam soluções que se desviavam das doutrinas, para fazer face aos problemas diários decorrentes dos contactos sociais e da prática da autoridade política5. Se se apegavam às doutrinas antigas, era o isolamento forçado; se adaptavam as suas prescrições confessionais, era a assimilação. Com todas estas variáveis, o espectro anabaptista formará, até ao século XVIII, uma paisagem rendilhada composta por várias tradições e confissões no contexto de sociedades em constante mutação. A perseguição aos anabaptistas Se examinarmos os marcos principais do Direito imperial que levam à sociedade moderna e tolerante, passamos da Paz de Augsburgo (1555) aos tratados de Westfália (1648), até aos Éditos de tolerância do fim do século XVIII – como, por exemplo, os do Imperador José II para os lander de Habsburgo e o Édito da religião de 1788, redigido por von Wöllner para a Prússia. Se considerarmos apenas as três “grandes” confissões – luterana, reformada e católica – então estas etapas decisivas constituem verdadeiramente para elas um fundamento seguro. No entanto, é necessário não esquecer que também para elas, até ao início do século XIX, a tolerância não significava igualdade completa entre os cidadãos. Por exemplo, o Édito de tolerância de José II estabelecia que os sinos das igrejas luteranas, ou reformadas, não deviam ser maiores do que os das igrejas católicas. A questão da 97
tolerância não era, portanto, senão um dos lados da medalha; o outro era a visibilidade da confissão e o exercício público do culto. A imagem deste caminho – na aparência bem pavimentado – para conduzir à tolerância tornava-se igualmente diferente quando se tratava das confissões mais pequenas. Todos os anabaptistas, mas também os quakers, os schwenckfelders (discípulos de Caspar Schwenckfeld) e outros grupos ainda mais modestos eram, com efeito, excluídos destas regulamentações. O que era determinante para o seu destino futuro era o artigo VII, § 2 do Tratado de Paz de Osnabrück, que estipulava que, “com excepção das religiões acima mencionadas [luterana, reformada e católica], não será recebida nem tolerada nenhuma outra no santo império romano”6. Assim, a tolerância de todas as outras confissões estava sujeita à negociação e dependia do conjunto de condições económicas ou políticas. Até ao século XVIII, a perseguição e a expulsão iriam permanecer espadas de Damocles para os outros mais pequenos grupos confessionais desviantes, igualmente excluídos dos éditos de tolerância do fim do século XVIII. No final do século XVII e início do século XVIII, os anabaptistas da Suíça foram particularmente tocados quando as cidades reformadas de Berna e Zurique publicaram as ordenanças, exigindo a conversão ou a expulsão dos anabaptistas. Em algumas regiões do Sacro Império, ocorreram mesmo perseguições locais, como as do Palatinado, de Jülich-
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Berg (em Rhydt e Gladbach) ou as da Prússia Real. Sobre que base jurídica repousava a existência dos anabaptistas no início dos Tempos Modernos? No Sacro Império, como nos países limítrofes, toleravam-se os anabaptistas na base de uma regulamentação que diferia ao nível jurídico: tratava-se quer de privilégios, quer de salvo-condutos. Estes tinham, no entanto, uma data Anabaptistas são queimados na fogueira em limite de validade, se bem Salzburgo, em 1528. Gravura em cobre intitulada “Märtyrer-Spiegel der Taufgesinnten” que, mais tarde, a próxima (Exemplo do martírio dos anabaptistas), datanalteração do senhor vinha do de 1685. a representar um facto de os conflitos entre os anabaptistas insegurança. Isso implicava novas negociações, cujo êxito era e as autoridades, choca-nos ver incerto. Apenas os Países Baixos que é menos o ponto teológico do eram uma excepção, uma vez que baptismo dos adultos – do que a os menonitas já eram aí tolerados recusa de prestar juramento, ou do desde a União de Utreque (1579) – uso de armas, ou ainda a sua visão mesmo que isso não tenha evitado das autoridades – que estava em alguns conflitos7. Contudo, obtive- causa. A ordenança geral de 27 de Outubro de 1527, publicada por ram privilégios que os isentavam Cyriak von Polheim, governador do serviço militar e os autoriza- da província da Alta Áustria, ilusvam a fazer um voto, em vez de tra isso de forma exemplar. Lê-se prestar juramento. Devido à sua que, segundo o seu autor, os anaintegração na sociedade e às suas baptistas iriam perturbar o “’bom boas relações com as autoridades, funcionamento’: os seus ensinano século XVII, os Doopsgezinden mentos e as suas reuniões causapuderam utilizar as suas relações, riam perturbações, dissensões e para interceder regularmente em alteração da unidade cristã e do favor de anabaptistas persegui- amor fraternal”. Assim como “a dos noutras regiões da Europa, agitação e a queda das autoridajunto dos Estados Gerais ou dos des e o desaparecimento do homem Conselhos das cidades holandesas. simples8”. Com isto, a linha de base O que é que tornava os anabap- foi definida. tistas tão suspeitos aos olhos das Se recuperarmos as diferentes autoridades para estas agirem con- declarações das autoridades contra tra eles? Examinando com aten- as confissões de fé anabaptistas, o ção os documentos que descrevem resultado é surpreendente: a perse98
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do e um magistrado não será cristão”. A maior parte dos grupos anabaptistas subscrevia este princípio. Se a identidade cristã das autoridades, como tal, era já aqui posta em questão, então a recusa de prestar juramento constituía um acto suplementar de desobediência. No início dos Tempos Mo-dernos, o juramento era um instrumento importante A vida comunitária, para estas mulheres hute- da relação entre o senhor e ritas, consiste em, por vezes, partilharem a aquele que lhe estava sujeito mesma actividade. Foto Stefan Kuhn/Wikipedia. – por exemplo, no decurso da cerimónia da homenagem em guição aos anabaptistas baseavacada sucessão ou, periodicamente, -se na ambivalência significativa por ocasião dos “dias de juramenentre as declarações, os seus actos to”, em que o senhor feudal se e a forma como eram entendidos. assegurava da fidelidade dos seus Se bem que, por seu lado, eles subordinados. Na comunidade jurítivessem, continuamente, afirmado dica e política pré-moderna, o juraaceitar as autoridades, não planear revoltas e, dada a sua doutrina pre- mento significava o envolvimento gar a não-violência, nem mesmo moral da consciência ao sujeito de pensar em agir contra as autorida- um acto – não apenas nos assuntos des pela violência, a sua separação jurídicos, mas também no Direito fundamental entre o mundo secular Civil e nas relações entre os sujeie o mundo espiritual constituía tos. Os princípios anabaptistas desempre o argumento de que as autoridades se serviam para apre- -sempenharam um papel central na sentar os anabaptistas como um comunicação política até ao século XVIII. Eles levaram as autoridades perigo. Deixemos falar os anabaptistas a pensar que os anabaptistas eram e estudemos as declarações com a pessoas que, em caso de urgência, ajuda da Doutrina e vida dos ana- não combateriam pelo seu país e, baptistas huteritas. Exposição da portanto, não se podiam assegurar nossa doutrina e da nossa fé, obra da sua lealdade. Além disso, o facto doutrinária fundamental dos hute- de serem vistos como um grupo ritas, escrita por Peter Riedemann de sujeitos que dizia uma coisa e em 1545. Segundo o autor, “A fazia outra, deu origem a confliautoridade tem a sua razão de tos. Por exemplo, os redactores do ser fora de Cristo mas não em édito lançado em 1659 contra os Cristo9”. Deduz-se que “um cris- anabaptistas de Berna escreveram tão não será, portanto, magistra- que estes últimos pagavam certos 99
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impostos e o dízimo, mas pregavam, ao mesmo tempo, que, segundo o ensino cristão isso não era, de facto, correcto10. As colónias que viviam em comunidade de bens, como a dos huteritas, representavam também um perigo potencial aos olhos das autoridades: e se os sujeitos se reunissem em grupos e crescessem em segredo de uma forma demasiado rápida para escaparem, de um dia para o outro, ao seu controlo? Nos espíritos, a associação “comunidade de bens” e “reunião em grupos” recordava a guerra dos camponeses alemães de 1525, que os anabaptistas continuamente faziam lembrar e que se tornou, até ao século XVIII, o ponto de referência para as sevícias contra eles. Uma alusão a esta guerra legitimou, por exemplo, a perseguição de 1656, quando o Duque Frederico III de Schleswig-Holstein-Gottorp, no seu “Decreto sobre os menonitas e os anabaptistas”, advertia que os anabaptistas tolerados em Gut Fresenburg, “desde que tenham suficiente liberdade e encontrem ocasião, levantar-se-ão contra a autoridade que serve Deus, revoltar-se-ão e levarão regiões inteiras à agitação e ao caos, como os exemplos dos séculos precedentes o provaram11”. No entanto, se bem que a guerra dos camponeses tenha sido usada com o argumento contra os anabaptistas, as investigações não têm demonstrado senão ínfimas semelhanças de pessoas entre os diferentes levantamentos do início dos Tempos Modernos ou as guerras dos camponeses, como a de 100
1653, na Suíça, por exemplo. Depois dos conflitos militares com os anabaptistas, em Münster, em 1534, os argumentos usados oficialmente pelas autoridades, para se justificarem, ganharam ainda em qualidade. O “Spiritus Munsterianus”12, que dizia respeito ao levantamento contra as suas autoridades legais, determina, igualmente, a comunicação política até ao século XVIII. Além disso, os anabaptistas de Münster tinham criado um reino que, com as suas insígnias e cerimónias, punham em causa imperadores e reis, não só de forma simbólica mas também de alguma forma real. Contudo, mesmo que os anabaptistas separassem claramente os domínios profano e espiritual, no fim de contas reconheciam o fundamento das autoridades. Por outro lado, a sua recusa ao porte de armas, e da violência em geral, tornava pouco provável uma revolta sob a bandeira anabaptista. Como escreveu Peter Riedemann na sua Exposé, “Ele (Deus) estabeleceu sobre eles uma autoridade para ser o bordão da sua cólera para castigar e punir o povo mau e malvado”. Ele prossegue e relembra, baseando-se nas palavras do apóstolo Paulo, que toda a organização humana deve estar sujeita à vontade de Deus13. No entanto – e aqui a sua opinião é muito similar à de Lutero – as autoridades não devem atentar contra a consciência dos homens, nem procurar dominar a sua fé14. Existia uma tensão entre, por um lado, o reconhecimento das autoridades, e, por outro, a fron-
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teira nítida entre a política e a religião a fim de evitar influenciar a consciência. Isto é o que, aos olhos dos outros – e também a recusa em prestar juramento – mantinha os anabaptistas numa situação de crise, sempre no limite da revolta e das perturbações. As calúnias fizeram o resto. O caminho da tolerância – a luta dos anabaptistas (pela comunicação) Muito se tem escrito sobre a contribuição dos anabaptistas para a separação entre a Igreja e o Estado, e o desenvolvimento da liberdade de consciência como direito para todos os indivíduos. Geralmente estima-se que esta contribuição foi muito importante. Por exemplo, Harold S. Bender escreveu, em The Anabaptist Vision: “Não se pode duvidar de que os grandes princípios da liberdade de consciência, da separação entre a Igreja e o Estado, do voluntarismo na religião, tão fundamentais no protestantismo americano e tão essenciais à democracia, nos vêm dos anabaptistas da Reforma, que foram os primeiros a enunciá-los claramente e que desafiaram o mundo cristão a aplicá-los”15. Walter Klaassen constata também, em 1981, que os anabaptistas fazem parte dos pioneiros que exigiram do Estado que este garantisse a liberdade de confissão16. Uma das obras pré-anabaptistas mais significativas sobre a tolerância, Von ketzern und iren verbrennern (Dos heréticos e da sua condenação à fogueira), data de 1524 e 101
pertence a Balthasar Hubmaier. Ele ainda não era anabaptista mas fez-se baptizar depois. Segundo ele, “heréticos” são aqueles que combatem voluntariamente as Santas Escrituras e que as revestem de uma interpretação diferente da que é exigida pelo Espírito Santo17. Mas este desvio ainda não justifica a condenação à morte dos “heréticos”, uma vez que Deus permanece como único juiz. Balthasar Hubmaier usa como prova a parábola da boa semente e do joio (Mateus 13:30). Jesus pede aos servos que trabalhem nos campos, à espera do tempo da ceifa, para recolher o joio e atá-lo em molhos para poder ser queimado. Os “mestres-heréticos” são, portanto, de facto, os “maiores heréticos”, uma vez que arrastam o trigo com o joio antes da época da ceifa18. Balthasar Hubmaier refere-se ali a uma parábola do Novo Testamento em relação com a tolerância muitas vezes citada na Idade Média. Ele foi mesmo vítima de intolerância: foi condenado à morte no cadafalso, em Viena, em 1528. Numerosos outros escritos anabaptistas contribuíram, também, para aplanar o caminho que levará à tolerância. Os anabaptistas holandeses do século XVII deram o seu contributo, fornecendo dados escritos muito práticos. Eles lançaram-se no esforço intenso da comunicação escrita, para obterem a liberdade de confissão para os seus correligionários perseguidos. Já evocámos o facto de que, por causa dos êxitos dos seus empreendimentos económicos e da sua assimilação na sociedade, os ana-
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baptistas dos Países Baixos ocupavam posições que lhes permitiam pedir às autoridades para intercederem em favor dos seus correligionários perseguidos. A Suíça, entre outras, tornou-se uma região pela qual, durante a segunda metade do século XVII, todos iriam interceder19. Os Estados Gerais, mas igualmente o Conselho da cidade de Amesterdão e de Roterdão, enviaram numerosos pedidos de intervenção para Zurique, Berna e Basileia, a fim de implorar a tolerância para com os anabaptistas da Suíça. Tratava-se, para eles, em primeiro lugar, de demonstrar a semelhança entre os anabaptistas suíços e os anabaptistas holandeses, a fim de dissipar toda a suspeição de revolta por parte dos anabaptistas suíços – um argumento que devia ser igualmente invocado contra eles na Suíça – e insistir no seu pacifismo. Assim, por exemplo, a cidade de Roterdão explica, numa carta dirigida, em 1660, ao Conselho Municipal da cidade de Berna, que nunca até então os Doopsgezinden dos Países Baixos tinham conspirado contra a república a coberto da religião – o que teria sido destruidor para qualquer república20. Tenta também refutar a ideia, recorrente na Suíça, de que o facto de se tolerar os menonitas concorria no risco de enfraquecer o Estado; a atitude dos menonitas, que recusavam ser magistrados ou prestar juramento, não era incómoda para uma república, porque, apesar dessas recusas, os anabaptistas encontravam-se moralmente
envolvidos com as autoridades. Da Suíça veio uma história bem diferente. As cidades helvéticas tentaram deliberadamente colocar em evidência as diferenças entre os anabaptistas holandeses e os seus correligionários suíços. Interpretados de forma diferente, o comportamento e as tradições religiosas dos anabaptistas suíços podiam, com efeito, servir. Assim, era possível, jogando-se com as palavras, sublinhar o carácter rebelde dos anabaptistas suíços, e, utilizando-se o método discursivo para fazer uma descrição deformada do seu comportamento e dos diversos elementos da sua fé, distingui-los dos seus homólogos holandeses, para não serem obrigados a agir. Assim, não se falava do mesmo grupo e esquivavam-se aos pedidos holandeses. No decurso do Verão de 1660, o Conselho da cidade de Zurique escreveu, por exemplo, às comunidades holandesas que não se pode tolerar sem risco as comunidades da Suíça, porque estas não deixam de tratar os servidores e os dirigentes da Igreja Reformada como “serpentes/escorpiões/lobos ferozes/e gafanhotos […] vindos dos abismos” e “falavam vergonhosamente da Igreja Reformada”21. E não deixavam de invocar a sua recusa ao porte de armas e prestar juramento. A experiência é, sob este ponto de vista, um argumento, uma vez que o Conselho assinala ter “tido já de tratar com os insurgentes rebeldes, não ajuramentados”, o que resultou em grandes prejuízos – uma alusão à guerra de 1653. No fim de contas, esta intercessão não serviu
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de nada. Numerosos anabaptistas foram obrigados a deixar a sua pátria e a encontrar refúgio, entre outros lugares, no Palatinado. E, contudo, apesar de algumas crises e conflitos – igualmente bem importantes – a perseguição dos anabaptistas diminuiu progressivamente até ao século XVIII. Para além das tentativas de intercessão descritas acima, que colocaram os anabaptistas na frente da cena europeia, no início dos Tempos Modernos, foram, acima de tudo, as mudanças nas teorias do Estado que promoveram para uma aproximação. Anabaptistas e autoridades foram ao encontro uns dos outros, o que diminuiu, em muito, o risco de conflito. O problema do juramento é um exemplo particularmente representativo, porque, por volta de 1700, ou mais tarde, os protagonistas das duas partes estavam prontos a assumir um compromisso neste domínio. Entre os anabaptistas, a diferença entre a teoria e a prática, como entre a sua confissão e a evolução do seu papel no espaço político, tornou-se manifesto. Alguns de entre eles já prestavam o juramento de cidadão no século XVII, outros ocupavam mesmo funções oficiais – em Friedrichstadt, por exemplo. Em contrapartida, as autoridades estavam igualmente prontas a fazer concessões. As reclamações para exigir tolerância e neutralidade nas questões confessionais levaram, na base dos Direitos Naturais, a uma atenuação da responsabilidade de consciência perante a prestação de juramento, perdendo este, assim,
pouco a pouco, o seu conteúdo social e jurídico22. Para julgar a lealdade dos indivíduos, alguns magistrados já não se limitavam só à prestação do juramento ou à repetição exacta da sua fórmula – a história anabaptista reflecte esta evolução. Criaram-se formulações especialmente adaptadas aos anabaptistas. No seu envolvimento transcendente e na sua implicação para com Deus, eles foram julgados de forma tão fiável como pelo juramento tradicional. Por exemplo, os diversos “juramentos menonitas”, ou “protestos”, tomaram o lugar do juramento tradicional por um ”sim” ou um “não”. Encontraram-se igualmente compromissos relativos à questão do porte de armas ou de fazer a guerra: era permitido aos anabaptistas dar, em compensação, um soma definida de dinheiro, o que representava um apoio, não negligenciável, para os cofres dos principados. O aparecimento das “pessoas tranquilas do país” As diferentes tendências dos conflitos sociopolíticos, que se inflamaram a propósito da questão dos anabaptistas, no início dos Tempos Modernos mostram que não devemos interpretar o movimento anabaptista como um movimento puramente religioso, mas que os anabaptistas se envolveram na história política. Sem dúvida, a sua declaração teológica, vista do interior e no propósito da sua intenção, pode ser, em certa medida, apolítica – a sua teologia política visando o seu isolamento e a 103
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separação relativamente às estruturas políticas. Mas, cada ritual de culto que singularizava os anabaptistas, equivalia precisamente a uma mensagem para o exterior. É o que se tornou evidente por ocasião do primeiro “baptismo de adultos sobre profissão de fé” ou (“baptismo de fé”), em 1525. Mesmo se os motivos mais íntimos, puramente espirituais, prevaleceram, sem dúvida, quando os proto-anabaptistas de Zurique decidiram proceder aos baptismos, considerando o acontecimento como uma repetição do Pentecostes23, não
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se pode considerar o acto do baptismo, como tal, sem ter em conta as suas implicações sociopolíticas. Finalmente, as acções dos anabaptistas, e todos os debates para saber se eles deveriam ser tolerados ou não, foram marcos essenciais no caminho da imposição da diversidade confessional e da preparação da redacção constitucional dos direitos fundamentais que, por volta de 1800, deram, por fim, lugar ao nascimento de novas normas, entre as quais a liberdade de consciência.
Conselheira científica no Instituto de História e de Etnologia da Universidade de Insbruque, na Áustria.
Notas 1. Harald Schultz, Lessing Toleranzbegriff. Eine theologische Studie, Vandenhouck & Ruprecht, Göttingen, 1969, p. 11; acerca da discussão sobre “tolerância e tolerar”, ver também Rainer Forst, Toleranz im Konflikt, Suhrkamp, Francoforte/Maine, 2003. 2. Para uma visão geral, Hans-Jürgen Goertz, Die Täufer. Geschichte und Deutung, 2ª edição, Beck, Munique, 1988; John D. Roth/James M. Stayer, A Companion to Anabaptistm and Spiritualism, 15211700 (Brill’s Companions to the Christian Tradition, 6), Brill, Leiden/Boston, 2007. 3. Ver John A. Lapp/C. Arnold Snyder, Testing Faith and Tradition, Pandora Press, Kitchener, Ont., 2006; Hans-Jürgen Goertz, Das Schwierige Erbe des Mannoniten, Evangelische Verlagsanstalt, Leipzig, 2002. 4. Sobre os huteritas em geral, ver Astrid von Schlachta, Die Hutterer zwischen Tirol and Amerika. Eine Reise durch die Jarhunderte, Wagner, Insbruque, 2006; sobre os huteritas no Tirol e as suas relações com os outros anabaptistas na Morávia, ver Werner O. Packull. Hutterite Beginnings. Communitarian Experiments During the Reformation, Johns Hopkins Univ. Press, Baltimore e Londres, 1995. 5. Sobre as Escrituras anabaptistas, ver Karl Kopp, Anabaptist-Mennonite Confessions of Faith. The Development of a Tradition, Pandora Press, Kitchener, Ont,. 2004. 6. Citação original tirada de Arno Buschmann, Kaiser und Reich. Klassische Texte zur Verfassungsgeschichte des Heiligen Römischen Reiches Deutscher Nation vom Beginn des 12. Jahrhunderts bis zum Jaher 1806, Teil II. Vom Westfälischen Frieden 1648 bis zum Ende des Reiches im Jahre 1806, 2ª ed., Baden-Baden mip.univ-perp.fr/traits/1648osnabruck.htm. 7. Sobre este assunto, ver Samme Zijlstra, Om de waare gemeente en de oude gronfen. Geschiedenis van de dopersen in de Nederlanden 1531-1875, Hilversun et Leeuwarden, 2000; Piet Visser, “Mennonites and Doopsgezinde in the Netherlands, 1535-1700”, in John D. Roth/James M. Stayer. A Companion to Annabaptism and Spiritualism, 1521-1700 (Brill’s Companions to the Christian Tradition, 6), Brill, Leiden/Boston, 2007, pp. 299-345. 8. Grete Mecenseffy (Ed.), Österreich, I. Tell (Quellen zur Geschichte der Täufer, 11), Heidelbregue, 1964, p. 27.
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Astrid von Schlachta 9. Peter Riedemann, Rechenschaft unsrer Religion, Lehere und Glaubens. Von der Brüdern, die man die Huterischen nennt, Falher, Alb., p. 103. 10. Ver Ernst Müller, Geschichte der Bernischen Täufer, Huber, Frauenfeld, 1895, p. 155; Hermann Rennefahrt (Ed.), Die Rechtsquellen des Kantons Bern. Erster Teil. Stadtrechte. Das Stadtrecht von Bern, 6. Bd., 2e Hälfte (Sammlung Schweizerischer Rechtsquellen, 2. Abteilung), Saurerländer, Aarau, 1961, p. 447. 11. Citação tirada de Robert Dollinger, Geschichte der Mennoniten in Schleswig-Holstein, Hamburg ubd Lübeck (Quellen und Forschungen zur Geschichte Schleswig-Holsteins, vol. 17), Neumünster, 1930, pp. 131 e seguintes. 12. De “Vorwürfe 1607 in Eiderstedt”, in Robert Dollinger, ob. cit., p. 78. 13. Riedemann, Exposé de notre religion, de notre doctrine et de notre foi (ver nota 9), p. 100. 14. Idem, p. 101. 15. Harold S. Bender, The Anabaptist Vision, Herald Press, Scottdale, Pa., 1944, p. 4. 16. Walter Klaassen, Anabaptism in Outline (Classics of the Radical Reformation), Herald Press, Scottdale, PA., 1981, p. 290. 17. “Von Ketzern”, citado por Gunnar Westin/Torsten Bergsten (Ed.), Balthasar Hubmaier. Schriften (Quellen zur Geschichte der Täufer, 9), Heidelberg 1962, p. 96. 18. “Von Ketzern”, citado por Gunnar Westin/Torsten Bergsten (Ed.), ob. cit.., p. 98. 19. Para generalidades, ver: Urs B. Leu/Christian Scheidegger (Ed.), Die Zürcher Täufer 1525.1700. TVZ, Zurique, 2007, pp. 203-245. 20. Jeremy Dupertius Bangs, Letters on Toleration. Dutch Aid to Persecuted Swiss and Palatine Mennonites 1615-1699, Picton Press. Rockport, ME, 2004, CD, p. 597. 21. James W. Lowry, Documents of Brotherly Love. Dutch Mennonite Aid to Swiss Anabaptists, vol. I, 1635-1709, Millersburg, OH, 2007, pp. 242, 244. 22. Meinrad Schaab, “Eide und andere Treugelöbnisse in Südwestdeutschland zwischen Spätmittelalter und Dreißigjährigem Krieg”, in Paolo Prodi (Ed.), Glaube und Eid. Treueformeln, Glaubenskenntnisse und Sozialdisziplinierung zwischen Mittelalter und Neuzeit (Schriften des Historischen Kollegs, 28), Oldenbourg, Munique, 1993, pp. 11-30; ver também, Paolo Prodi, Das Sakrament der Herrschaft. Der politische Eid in der Verfassungsgeschichte des Okzidents (Schriften des Italienisch-Deutschen Historischen Instituts in Trient), bd. 11, Duncker und Humbolt, Berlim, 1997, pp. 373 e seg. 23. Segundo a nova argumentação de Andrea Strübind, que interpreta o movimento dos anabaptistas essencialmente como “uma renovação religiosa (ou um movimento religioso) entusiasta”. Ver, sobre este assunto, Eifriger als Zwingli, Der frühe Täuferbewgung in der Schweiz, Duncker & Humbolt, Berlim, 2003, p. 576.
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Direitos do Homem e regimes religiosos Mark Juergensmeyer*
Em numerosas regiões do mundo, a extensão da política religiosa é, frequentemente, acompanhada pelo receio – por vezes até pânico – por parte dos liberais laicos e das comunidades minoritárias, que temem que a predominância de um governo baseado em ideologias religiosas seja o dobre de finados dos direitos do homem1. Em certos casos têm razão. Quando se trata de se ocupar de questões morais, é verdade que os regimes religiosos são a maior parte das vezes rígidos e inflexíveis. Geralmente, defendem os seus argumentos afirmando que os seus princípios se baseiam num mandato divino não negociável. Eis como, em Argel, um líder muçulmano apoiou a ideia segundo a qual o lugar das mulheres é em casa: “Não sou eu que o exige, mas Deus”2. Muito frequentemente aqueles que têm opiniões religiosas bem marcadas, unem-se em volta de uma só pessoa incarnando a autoridade para todo o movimento. Na Índia, por exemplo, um membro do movimento nacionalista hindu (o RSS) pretendeu que dadas as “suas competências e a sua eficácia, como dirigente”, era necessário não só obedecer-lhe, mas igualmente venerá-lo da mesma forma que se glorifica ou que se adora um guru 106
do hinduísmo tradicional3. No Irão, alguns acreditaram que Khomeiny conduzia o seu país com a ajuda da divina providência. Mesmo aqueles que não estavam de acordo com ele em questões ideológicas e religiosas reconheciam os seus talentos como dirigente. Considerando que a revolução iraniana estava a fracassar, o responsável do Hamas palestiniano, o Xeque Ahmed Yacine, confessou “admirar Khomeiny”4. No outro campo, em Israel, o chefe do agrupamento judeu anti-árabe, o rabino Meir Kahane, também tem expresso a sua admiração pelo líder iraquiano. Por outro lado ele tem conduzido o seu movimento da mesma forma, isto é de forma autocrática e praticamente sem rival5. Um militante cristão americano citou Khomeiny como o modelo de dirigente que ele desejava para os cristãos conservadores nos Estados Unidos. Do Egipto à Indonésia, os activistas religiosos admiram o estilo de Khomeiny – a sua convicção e o seu sentido de comando, a par de uma visão clara da religião e uma autoridade incontestada. Se é verdade que os movimentos religiosos são muitas vezes dogmáticos e autoritários, acontece que esse é também o caso dos regimes laicos. O autoritaris-
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mo de certos regimes laicos tem por vezes derivado em ditaduras tão brutais como as criadas pelos políticos religiosos: por exemplo, sob Estaline na União soviética ou sob Hitler na Alemanha. Poderá dizer-se que em certos momentos, o comunismo e o nazismo também adoptaram um carácter religioso. Não é menos verdade que se constataram tendências fascistas em numerosos Estados laicos. Na maior parte da sociedades laicas, no entanto, a autoridade central forte foi confiada a um sistema de poderes compreendendo um Parlamento composto por deputados eleitos e um poder judicial independente. É a este tipo de sistema que a maioria dos nacionalistas laicos se refere quando falam de democracia. A questão é portanto saber se o nacionalismo religioso poderá um dia seguir o mesmo caminho e chegar a adoptar valores democráticos. Será que os regimes religiosos são rígidos? A diversidade das posições políticas no seio da República Islâmica do Irão indica que mesmo um regime religioso assaz rígido é capaz, por si mesmo, de dar prova de uma certa flexibilidade e talvez de reais mudanças. Nalguns lugares no mundo, certos militantes muçulmanos – como o xeque Ahmed Yacine na Palestina e Qazi Turadqhonqodz no Tajiquistão – estavam em desacordo com o Aiatola Khomeiny, e rejeitaram muitas das suas ideias. Depois da revolução, outros chefes iranianos, como por exemplo Mohammed Khatami e
Akbar Hacheni Rafsandjani, têm sido muito mais moderados do que os extremistas. Estes adversários da linha dura do partido, tal como o presidente Mahmoud Ahmadinejad, eram os clérigos que não rejeitavam os princípios da revolução islâmica iraniana, mas apenas os dirigentes da época. A despeito da repressão brutal exercida contra a dissidência política depois das eleições de 2009, o regime iraniano despendeu imensos esforços para provar a sua abertura aos candidatos de oposição e à dissidência pública – pelo menos durante um período de tempo limitado. Quando, na Índia, Bharatiya Janata Party (BJP: Partido do povo indiano de tendência hinduísta) começou a subir em direcção ao poder, muitos observadores políticos laicos convenceram-se que isso teria como consequência lógica o afrontamento político no país. Alguns pretendiam que a própria reputação da Índia como nação moderna era posta em questão. Um comentador afirmou que “a separação entre o Estado e todas as confissões religiosas” era uma característica fundamental da modernidade e que era “por todo o lado o sinal de uma visão moderna”6. De facto, quando tomou verdadeiramente as rédeas do poder, de 1997 a 2004, o BJP comportou-se como qualquer outro partido político na sua organização, decepcionando e frustrando alguns dos seus partidários mais religiosos. Se bem que tenha provocado a cólera de
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muitos intelectuais ao reescrever a História a fim de magnificar o passado hindu da Índia e minimizar o papel dos muçulmanos e mesmo se as minorias muçulmanas, cristãs e siques, tenham considerado que havia um preconceito desfavorável a seu respeito, o BJP não apareceu como um talibã hindu. Será o radicalismo religioso compatível com a democracia? A retórica de muitos nacionalistas religiosos faz pensar que eles são particularmente entusiastas pela democracia. Mesmo esses opositores mais hostis ao Estado laico realçam a importância política do espírito democrático. Para o xeque Yacine, por exemplo, “o Islão crê na democracia”7. Um dos seus homólogos budistas no Sri Lanka, declarou que o budismo também “é democrata por natureza”8. Um membro dos Irmãos Muçulmanos, no Egipto, afirmou-me, igualmente, que a democracia era “a única via” para um Estado islâmico9. Por fim, um dos dirigentes do partido israelita Gush Emunim disse: “Temos necessidade da democracia, mesmo numa sociedade religiosa”10. Este entusiasmo pela democracia é, em parte, interessante: se a democracia significa simplesmente que é a maioria que decide, é preciso dar ao povo o que ele deseja; se o povo prefere uma sociedade religiosa mais do que uma sociedade laica, então ele deve ser satisfeito. Como me explicou um activista muçulmano, “uma vez que 80% dos egípcios são muçulmanos, o Egipto deveria ser muçulmano”11. Este 108
mesmo tipo de raciocínio foi utilizado no Sri Lanka e no Pendjab, onde os activistas cingaleses e siques pensam, respectivamente, que a democracia torna legítimo o acesso ao poder do campo – qualquer que ele seja – que tem a grande parte da população do seu lado. Neste caso, a democracia significa simplesmente a vontade da maioria. Mas mesmo os activistas religiosos que interpretam a democracia unicamente como “o poder da maioria” insistem para que este poder não deva imposto por decreto. Segundo o xeque Yacine, “a decisão de pôr no poder um Estado islâmico deve ser votado democraticamente”12. Contudo, num quadro em que as referências são religiosas, no fim de contas não é a vontade do povo que imposta mais, mas a vontade de Deus. Eis porque os nacionalistas religiosos afirmam frequentemente que para governar bem, é preciso ser capaz, em determinada situação, de discernir o que é que está conforme com a vontade de Deus e a verdade. Ora como declarou o rabi Kahane: “A verdade não pode ser objecto de um voto”13. A maior parte dos activistas religiosos estão de acordo com ele: consideram que em definitivo é o discernimento da verdade que importa no processo democrático. Em consequência, a forma habitual de fazer política nos Estados democráticos (o voto, a discussão política, as lutas entre grupos de interesse rivais) parecem fora de propósito e talvez mesmo contrária a uma moralidade superior. Tive, sobre este assunto, um encontro
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particularmente interessante com um bhikshu (aquele que, para obter a salvação, renuncia ao mundo, não possui nada mais do que um bordão para caminhar e uma tigela para mendigar) budista do Sri Lanka. A dado momento, para dar um exemplo da imoralidade dos governos laicos, falou-me da sua tendência para se submeterem aos interesses particulares dos partidos antagonistas. Ora é isso, precisamente, o que se espera da política democrática, nos Estados Unidos, bem como por todo o Ocidente: satisfazer interesses divergentes. A política é suposto repartir o mais largamente possível a liberalidades do Estado e oferecer o máximo de felicidade ao maior número de pessoas. Mas aos olhos de um bhikshu, é uma forma de governo que não é suficientemente moral. Para o meu interlocutor, um governo deve alargar a sua noção da moral e fazer respeitar o dhamma (a virtude)14. Numerosos activistas religiosos através do mundo têm a mesma opinião deste bhikshu. Eles têm para com o processo democrático uma atitude ambivalente. Com efeito, se bem que desejosos de abraçarem o espírito da democracia – pelo menos no sentido em que os governos devem expressar a vontade do povo – não crêem, como os racionalistas, que basta apenas a razão para encontrar a verdade e também não pensam que o interesse pessoal a qualquer custo constitui um fundamento moral válido para um regime político. Encontra-se um debate semelhante a propósito dos exces-
sos potenciais da democracia – o receio de que um envolvimento excessivo do governo na democracia acabe por derivar para o reino da populaça – na República, de Platão, e nas discussões entre os pais fundadores das repúblicas francesa e americana15. Será o Direito religioso flexível? Os nacionalismos religiosos têm, contudo, uma vantagem sobre Platão: sabem melhor do que ele onde encontrar a verdade. A maior parte dentre eles têm na sua tradição um Direito religioso que é considerado como uma norma enquadrando a actividade humana. O seu raciocínio é o seguinte: uma vez que o Direito religioso é o único detentor fiável da verdade ética e social, ele deveria servir de base à política. Mesmo segundo alguns, a instauração do Direito religioso é o primeiro – até mesmo o único – objectivo dos movimentos políticos religiosos. No Egipto, por exemplo, chefes religiosos têm explicado que o principal problema dos governos Sadate e de Moubarak era não terem tido em conta a Chari’a e não a terem instituído como Direito egípcio. Estes activistas estavam indignados pelo facto do seu governo ter preferido o Direito ocidental: “Porque deveremos nós obedecer a leis ocidentais uma vez que as leis muçulmanas as ultrapassam?”16, perguntou-me um deles. Este sentimento é igualmente partilhado em Israel; os nacionalistas judeus têm a impressão de que o Knesset dá mais peso às leis 109
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Mohammad Khatami, antigo presidente moderado iraniano. O seu objectivo era reforçar o diálogo entre o Ocidente e o Oriente. Foto Remy Steinegger/ Commons Creative.
dos Gentios do que às leis judaicas, ainda que, como declarou um deles, “o Direito judeu foi formulado há muito tempo, quando os Gentios ainda viviam no fundo do bosque”17. O mesmo interlocutor disse-me, numa outra ocasião, que Israel devia lutar pela “teocracia” mais do que pela democracia18. Ele redigiu para o Estado de Israel uma Constituição inteira fundada sobre as leis da Halakha, mas que, facto significativo, assemelhavam-se fortemente a uma Constituição moderna estabelecida sobre o Direito laico ocidental – com excepção da língua utilizada, ligeiramente arcaica. Esta Constituição da Tora concedia, por 110
exemplo, aos indivíduos a liberdade de expressão. O ponto que a distingue essencialmente de uma Constituição ocidental é o recurso a uma arbitragem última, que decide o que é bom para a sociedade: o Sinédrio, ou Conselho dos juízes. A Constituição da República Islâmica do Irão, também ela, se parece, de forma notável, com as Constituições da maior parte dos actuais países ocidentais. Garante direitos civis e direitos para as minorias, e prevê três órgãos dirigentes – o executivo, o judicial e o legislativo – assim como o equilíbrio dos poderes entre eles. O Presidente e os membros do corpo legislativo devem ser eleitos pelo povo por períodos determinados. Características apenas não habituais de um ponto de vista ocidental e laico: por um lado, a insistência sobre o Direito islâmico como base de todos os princípios do Direito e, por outro lado, o papel do clero islâmico, encarregado de indicar aos legisladores quais as leis que são apropriadas. A Constituição institui igualmente um “guia” cujo papel é pouco habitual – no início tinha sido desenvolvido especialmente pelo Aiatolah Komeiny e, depois da sua morte, por Ali Khamenei. Este guia supremo nomeia os membros do clero que farão parte do Conselho que julga as leis e escolhe os juízes do Supremo Tribunal. Designa os comandantes das forças armadas assim como os membros do Conselho Supremo da Segurança Nacional e tem como responsabilidade proclamar a guerra ou a paz. Ponto interessante, não tem
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o poder de nomear o presidente do país – que é um funcionário eleito por sufrágio universal (como Khatami e Ahmadinejad) – mas pode, se o desejar, recusar-se a assinar o decreto que ratifica a sua eleição. E pode, igualmente, demitir o presidente das suas funções, mas unicamente se o Supremo Tribunal julgou este último “responsável pela violação dos seus deveres constitucionais”, ou se a Assembleia Nacional Consultiva (o Parlamento) testemunha da “sua incompetência política”19. De igual modo, o guia supremo tem o poder de agraciar os condenados ou de reduzir a sua pena, mas apenas sob recomendação do Supremo Tribunal. Em resumo, a Constituição iraniana dotou o país de uma versão islâmica do filósofo-rei, Platão, mas colocou este monarca religioso no coração de um sistema parlamentar. Noutros movimentos de revolução de inspiração religiosa, o papel do clero tem sido igualmente limitado – os principais homens da Al-Qaida eram um homem de negócios, Oussama Ben Laden e um médico, Ayman Al-Zawahiri, sem dúvida que têm contado entre os seus dirigentes rabinos, xeques e outros personagens religiosos que no entanto não eram os únicos guardiães do movimento. O xeque Yacine, por exemplo, declarou que a direcção de uma organização política islâmica deveria estar aberta a todos o que não deveria forçar os membros do clero a uma actividade política, se não estiverem interessados21. Nos movimentos budistas e cristãos, os monges e os
padres têm-se unido aos rebeldes como parceiros activos sem serem os principais dirigentes. O bhiksu do Sri Lanka disse-me que não é necessário ter monges no poder tanto tempo que os funcionários do governo não se esqueçam de consultar os chefes religiosos: “Eles devem pedir-lhes conselho”22. No Egipto e na Índia, os movimentos políticos baseados na religião geralmente não são dirigidos por membros do clero. No Egipto, um activista muçulmano declarou que estes deviam ensinar os princípios religiosos, mais do que fazer política23. Na Índia, o partido nacionalista hindu BJP beneficiou de vozes recrutadas, por numerosos sadhus (ascetas religiosos), mas os seus dirigentes asseguraram, publicamente, que estes últimos não exerceram nenhuma influência importante na sua política. Mesmo se o BJP permitiu a alguns sadhus apresentarem-se às eleições sob a sua bandeira, eles não formam um grupo significativo na direcção do partido. Assim, em quase todos os movimentos de nacionalismo religioso a ideia da teocracia (poder exercido pelo clero) foi rejeitada. De facto, enquanto o Direito religioso constitui a base da acção política, o método para interpretar este Direito e o procedimento para designar os dirigentes encarregados de o aplicar pode ser democrático: o sistema pode apoiar-se em escrutínios e eleições. “Actualmente esperamos que os governos sejam eleitos democraticamente”, explicou-me o bhiksu do Sri Lanka, precisando que a democracia é compatível com 111
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os princípios budistas enquanto os dirigentes se lembrarem de que são o garante do dhamma (ordem divina)24. No Egipto, alguns activistas religiosos pensam que os partidos religiosos legítimos não se conseguem impor senão pelo processo democrático25. A maior parte dos movimentos de activismo religioso seguem igualmente as regras democráticas no seio das suas próprias organizações. Mesmo se o rabino Kahane se tenha declarado a favor de um regime autocrático para Israel, aprova os métodos democráticos para compor a comissão usada para estabelecer o Estado independente da Judeia26. Do Sri Lanka à Argélia e da Palestina ao Montana, tais comissões religiosas radicais foram escolhidas internamente através de uma larga consulta ou ainda pelo voto. Podemos portanto deduzir que o processo eleitoral se tem imposto através do mundo como meio que permita escolher os dirigentes e de tomar decisões, e isso mesmo nas regiões em que os movimentos rebeldes em favor de uma política baseada na religião estão a crescer. Se este processo é característico da democracia, então os activistas religiosos também são tão democratas como qualquer homem ou mulher político laico. O que interessa aos nacionalistas e aos trans-nacionalistas religiosos, não é o processo de eleição em si mesmo, mas o seu resultado: do seu ponto de vista, o sistema político não existe, em suma, senão com fins divinos, a fim de assegurar que a actividade humana está em harmonia com a
ordem moral fundamental que a subentende. Os activistas religiosos demarcam-se das teorias democráticas, principalmente na questão de saber se o sistema democrático se pode legitimar a si mesmo. Eles rejeitam essa possibilidade e dizem que um gang de ladrões democráticos é, mesmo assim, um gang de ladrões. Para que o processo tenha um valor moral, deve servir objectivos nobres, e é por isso o Direito religioso deve constituir a base de todo o Estado moral. Pode o radicalismo religioso tolerar o direito das minorias? Em numerosas regiões do mundo, as comunidades minoritárias têm observado com muita apreensão a onda de activismo religioso. Os seus receios, muitas vezes exacerbados pelas advertências dos laicos, giram em volta de uma ideia de que uma sociedade dirigida pelos partidários declarados de uma religião particular favorecerá a comunidade religiosa maioritária em detrimento das minorias. Esta apreensão tem fundamento, porque os nacionalismos religiosos querem, no mínimo, que os símbolos e a cultura da sua comunidade sejam honrados como fazendo parte da herança da Nação. A maior parte dos membros das comunidades minoritárias pode viver rodeada de sinais que, lembrando-lhe que residem numa Nação dominada por uma outra religião, se se trata de se acomodar ao leão cingalês ou à formula “Allah Akbar” (“Deus é grande”) inscrito na bandeira do Sri
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Lanka ou na República Islâmica do Irão, ou ainda de respeitar uma enfiada de dias feriados que celebram a fé de um outro grupo, como fazem os judeus e os muçulmanos nos Estados Unidos. Em contrapartida, as minorias inquietam-se com duas outras problemáticas potenciais: primeiro, o risco de ver os membros da comunidade maioritária favorecer, ao nível dos empregos administrativos ou da política governamental; em segundo lugar, o risco de se verem constrangidos a obedecer a leis religiosas que eles não respeitam. Além disso, existe ainda um terceiro receio – ese apocalíptico – o de serem expulsos do seu país, de serem perseguidos ou mortos se decidirem permanecer. Contudo, o problema dos direitos das minorias e da afirmação das identidades minoritárias não se limita aos regimes religiosos. Nas sociedades laicas, estas questões são igualmente fundamentais. Na realidade, o nacionalismo laico é incapaz de lidar com qualquer tipo de identidade colectiva, a menos que seja definido por factores geográficos. Por exemplo, os Afro-Americanos representam mais de 10% da população americana, mas não têm no Congresso americano o número de representantes à altura dos 10% porque não residem todos na mesma região. Um sistema concebido para que as pessoas sejam representadas em função do seu lugar de residência quase nunca consegue uma representação equilibrada dos grupos com que as
O Cilindro de Ciro, descoberto em 1879, perto de Babilónia (ao sul do Iraque), contém uma proclamação feita pelo rei persa, Ciro II em 538 A.C.. Este documento feito em argila traça os acontecimentos que marcaram a queda de Babilónia e apresenta os decretos editados por Ciro II. Este restabeleceu as tradições religiosas e culturais locais, esperando assim, ganhar a lealdade dos povos que tinha conquistado e que lhe ficaram, por isso, sujeitos. Ele permitiu aos judeus exilados em Babilónia que voltassem para a sua pátria e que reconstruíssem o templo de Jerusalém, O original deste cilindro encontra-se no Museu Britânico de Londres. Foto Marco Prins e Jona Lendering/Wikipedia.
pessoas se identificam, a menos que o local de residência desses grupos coincida com as fronteiras geográficas de uma cidade ou de um Estado. Na índia, os britânicos identificaram esse vício no sistema ocidental de representação democrática e tentaram corrigi-lo utilizando os “lugares reservados” – um sistema que permitia apenas aos membros de uma certa minoria (por exemplo os membros das castas outrora “intocáveis”) de se apresentarem às eleições de uma certa circunscrição eleitoral. Mas a maior parte do tempo, os governos laicos fecha113
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ram os olhos ao problema e não se preocuparam com a representação política das minorias: de facto, agarraram-se à ilusão – apresentada pelo teoria democrática – de que todos os homens são iguais e que, por isso, não é necessário exercer discriminação entre os grupos. Esta ilusão é mantida pelo Direito, uma vez que são punidos os que são surpreendidos a fazer discriminações em relação a certas origens comunitárias. O mito da igualdade é assim reforçado. Alguns activistas religiosos têm defendido que é necessário denunciar este mito e que os governos deveriam igualmente ocupar-se com mais equidade das identidades comunitárias, especialmente nas suas relações com os grupos minoritários. Na Índia, por exemplo, o BJP assegura que as tensões entre o governo e as minorias muçulmanas e siques insatisfeitas foram dissipadas durante o período em que esteve no poder, porque os dirigentes em exercício eram sensíveis às identidades comunitárias, da mesma forma, em Israel, o rabino Kahane afirmou-me que quando o seu grupo se bateu pelos seus próprios direitos religiosos, tornou-se mais sensível, do que antes, para com a causa dos grupos muçulmanos que se batiam pelos seus (mas acrescentou que os Árabes deviam, contudo, deixar o que ele considera como uma terra sagrada judaica)27. No Irão, um dos primeiros chefes da revolução, A. H. Bani Sadr, declarou que cada grupo deveria ter direitos – os grupos minoritários, tal como os 114
grupos maioritários. “Considerar a sua identidade e os seus direitos como os dos outros e os dos outros como seus é uma ideia islâmica. Eis porque não temos nada contra aqueles que dizem: temos os nossos direitos”28. Podemos, no entanto, perguntar como é que os regimes baseados na religião tratam a questão dos direitos das minorias se – e quando – um Estado religioso se instaura. Em geral, apresentam-se duas soluções. Uma consiste em prever um estatuto à parte (ou mesmo um Estado separado) para as comunidades minoritárias – o que lembra a solução britânica dos “lugares reservados” para as minorias na Índia. A outra solução é assegurar que as minorias se adaptem à ideologia predominante, principalmente considerando-a como um fenómeno cultural geral herdada por uma variedade de outras comunidades religiosas. Foi a abordagem adoptada na Índia pelo BJP, que pretendeu que todos as tradições indianas – incluindo o siquismo, e budismo e o jainismo – fossem hindus e que permitiu às religiões vindas de fora, ligarem-se ao hinduísmo como ramos sincréticos – como para o cristianismo e o islamismo que se tornaram ramos hindu-cristãos ou hindu-muçulmanos. No Sri Lanka, esforçaram-se por criar uma “religião civil” budista que integraria todas as diferentes correntes das tradições religiosas do país29. A primeira solução – um estatuto à parte – é problemática no sentido em que obriga a encontrar um estatuto ou um local apropriado para
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os grupos minoritários. Embora os britânicos tenham podido atribuir funções eleitorais separadas ao Parlamento, a maior parte dos nacionalistas religiosos tiveram, eles próprios, de procurar uma promessa de reconciliação muito mais substancial para as minorias: a da terra. A questão das terras tem, com efeito, muita importância, para o nacionalismo religioso poder lançar as suas raízes no local preciso. O judaísmo, por exemplo, está intimamente ligado aos locais mencionados na Bíblia e situados na grande maioria na margem direita do Jordão, na Palestina. No Sri Lanka, os nacionalistas religiosos insistem na integridade política da ilha inteira. Quanto ao nacionalismo hindu do BJP, ele glorifica a Índia no seu conjunto. Estas opiniões não deixam espaço às comunidades minoritárias, a uma eventual atribuição de territórios separados. Eis porque os nacionalismo religioso que querem resolver a questão das minorias recorrendo ao separatismo, bem poderiam, no fim de tudo, ser obrigados a adoptar a solução britânica da representação política separada. A segunda solução – a acomodação das diferenças culturais – apresenta igualmente dificuldades. Mas apresenta, à partida, opções. Uma das ideias mais promissoras é a de que ouvi falar pela primeira vez entre os activistas muçulmanos no Egipto, depois novamente – mas num contexto completamente diferente – entre os chefes muçulmanos de Gaza30. Todos insistiam para que o nacionalismo egípcio e palestiniano subscreves-
sem a Chari’a islâmica, precisando que existem dois tipos, ou melhor, dois níveis de Chari’a, No primeiro nível, cultural e geral, existem costumes sociais que incumbem a todos os residentes do país, seja qual for a sua pertença religiosa. Este nível generalista da Chari’a assemelha-se ao que se considera, em todo o mundo, como comportamento civilizado e respeitador das leis. Há também um outro nível mais particular, o que diz respeito aos códigos e condutas pessoais e familiares que apenas aos muçulmanos se deve aplicar. Esta distinção inspira-se, segundo estes chefes e estes activistas muçulmanos, naquilo que eles têm vivido no decurso das suas viagens ao estrangeiro. Quando eles se encontravam na Inglaterra ou na América do Norte, pedia-se-lhes, com efeito, que respeitassem as leis e as normas da civilização ocidental em público, mas, em privado, seguiam os costumes muçulmanos, mais do que os ocidentais31. Espera-se portanto que os cristãos façam a mesma coisa quando visitam países muçulmanos ou ali residam. Quanto à segunda abordagem, poderá ela funcionar com as minorias laicas? No seio das culturas tradicionalmente religiosas também se encontram pessoas que cresceram em famílias praticantes mas, ao viajarem, ao estudarem, ou em contacto com a moderna cultura urbana, acabaram por se desinteressar pela religião. Não se poderia criar, para eles, uma enseada de paz cultural no coração das sociedades religiosas, como no Egipto, onde as culturas dos
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Coptas ou outras minorias se mantêm como ilhotas num oceano de religiosidade? A maior parte dos nacionalistas religiosos, a quem coloquei a questão, responderam com um “não” categórico. Podiam aceitar a ideia que outras tradições religiosas sirvam de alternativas válidas para o seu próprio direito religioso, mas não a cultura laica – aos seus olhos ela não está ligada a nenhuma verdade superior e a laicidade é simplesmente uma anti-religião. Alguns nacionalismos religiosos têm dificuldade em aceitar a laicidade na Europa e nos Estados Unidos, onde, pensam eles, os cristãos não conseguiram garantir que os reincidentes não voltem aos seus delitos. Contudo, parece-me que a lógica da Chari’a a dois níveis deixa, pelo menos, a possibilidade de ilhotas de cultura diferentes no meio de um Estado religioso. O radicalismo religioso protegerá os direitos individuais? Por detrás da questão dos direitos das minorias esconde-se um problema bem mais fundamental: a protecção dos indivíduos. No fim de contas, termos como estatuto à parte e acomodar-se às diferenças apenas têm importância na medida em que definam a forma como as pessoas são tratadas. Que o estatuto à parte das minorias signifique a criação de novos postos políticos, ou de uma semi-autonomia que permita aos indivíduos exprimirem as suas necessidades e as suas inquietações, é uma coisa. Que leve à opressão e ao ostracismo, é outra. No Ocidente, a resistência à 116
opressão e o respeito pelos outros traduz-se na consagrada expressão “direitos do Homem”. A definição mínima dos direitos do Homem – a noção segundo a qual as pessoas têm o direito de viver em paz uns ao lado dos outros, na dignidade e segurança pessoais – é aceite por quase todas as religiões, sejam quais forem os termos escolhidos. Por exemplo, pode encontrar-se, como o faz um especialista ocidental, “paralelos profundos e surpreendentes” entre a nossa noção da tolerância e a dos islâmicos32. O problema do Islão, e de muitas outras tradições religiosas, concerne, de facto, a noção de direitos individuais, isto é, a ideia de alguém poder possuir em si mesmo características que não provêm nem da comunidade, nem de Deus. Uma vez que os direitos sejam concebidos como pertencendo a indivíduos mais do que a grupos, para alguns activistas religiosos isso parece implicar a ideia – inaceitável para eles – de que uma sociedade se compõe de pessoas a quem se concede autoridade e independência (os seus direitos) em detrimento da integridade do conjunto da comunidade. Em vez de utilizar o termo “direitos”, a maior parte dentre eles preferem falar de “responsabilidade moral” para descrever a relação entre o indivíduo e a sociedade. Como disse um deles, “nós não temos direitos, apenas deveres e obrigações”33. Em certo sentido, a controvérsia sobre os direitos importa tanto quanto as sociedades respeitem a segurança e a dignidade pessoais,
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que estão, simultaneamente, no coração dos direitos do Homem e no centro dos valores morais de todas as tradições religiosas. No Egipto, por exemplo, os nacionalistas muçulmanos falam com paixão da “reedificação dos oprimidos”34. No Sri Lanka, os nacionalistas religiosos salientam que um dos principais objectivos de uma nação é fazer respeitar a liberdade de expressão e a dignidade pessoal – o género de “direitos” citados na Declaração Universal dos Direitos do Homem das Nações Unidas – mas apresentam-nos como valores budistas e não como ideais humanistas laicos. A Constituição da República Islâmica do Irão afirma, por seu lado, que um dos objectivos de uma república islâmica é proteger “a dignidade e o valor eminentes do ser humano, a sua liberdade sendo associada à sua responsabilidade perante Deus”35. Ela descreve a protecção dessa dignidade em termos comparáveis aos de todas as Constituições do mundo: a língua dos direitos do Homem. Mas para ela, trata-se mais dos direitos do “povo” do que direitos dos indivíduos. A Constituição compreende um capítulo inteiro – vinte e um artigos – consagrado aos “direitos da Nação”, incluindo a igualdade dos indivíduos perante a lei, a igualdade homens/mulheres, a liberdade de exprimir a sua opinião, o direito de não ser torturado nem humilhado na prisão, e o direito “de se reunir e de se manifestar em público”, com a condição de “não usar armas” nem de “causar prejuízo aos princípios fundamen-
tais do Islão”. Esta Constituição vai mesmo além da lista habitual dos direitos do Homem uma vez que compreende o direito para todos de acesso às necessidades básicas: alojamento, alimentação, vestuário, cuidados médicos, instrução e educação, emprego36. No enunciado desta lista, a única coisa que poderia fazer hesitar um ardente defensor dos direitos do Homem ocidental é a utilização ocasional da fórmula “submetidos aos princípios fundamentais do Islão”. Esta expressão é, por exemplo, mencionada no artigo 24 sobre a liberdade de imprensa. Encontra-se também no artigo 175, o último da Constituição, que trata sobre os média e garante que estes últimos – em particular a rádio e a televisão – se consagrarão à “livre difusão de informações e de opiniões” mas “em conformidade com os critérios islâmicos”37. Esta observação sobre os princípios islâmicos constituirá uma falha pela qual violações massivas dos direitos do Homem, poderiam introduzir-se na sociedade iraniana? A resposta a esta questão depende da confiança que se tem na palavra dos dirigentes iranianos e do grau de compatibilidade com os direitos do Homem que se pratique com os princípios fundamentais do Islão. Um bom número de muçulmanos vivendo fora do Irão pensa que o Aiatola Khomeiny e os seus partidários têm tomado muitas liberdades na interpretação dos princípios islâmicos e que têm dado do Islão uma visão estreita e intolerante. Mesmo o xeque 117
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Yacine, o líder palestiniano muçulmano, tem desaprovado a tomada de reféns americanos e declarou que Khomeiny “tinha ido longe demais” reprimindo a liberdade de expressão38. Para ele, e outros chefes muçulmanos, Khomeiny tem estado, com os seus actos, em total contradição com a sua própria Constituição, que, à primeira vista, parece trabalhar pelos direitos do Homem, da mesma forma que a Constituição de qualquer outro Estado laico. Podemos contestar a hipótese laica segundo a qual os regimes religiosos são, pela sua natureza, ilícitos e o oposto dos direitos do Homem. Com efeito, mesmo se os regimes tendem a ser autocráticos, não são necessariamente dogmáticos; podem ser flexíveis e capazes de mudanças; a lei divina pode ser compatível com o Direito laico; eles estão ansiosos para obter uma validação democrática e são sen-
síveis às questões de direitos das minorias e dos indivíduos, isso não significa que as ideologias religiosas são fundamentalmente idênticas às ideologias laicas. Existe uma diferença essencial entre o papel do indivíduo nos países ocidentais “individualistas” e o seu papel nas sociedades não ocidentais “comunitários”. Esta diferença está na origem de muitas controvérsias sobre os direitos do Homem. Contudo, a tolerância deveria funcionar nos dois sentidos. Porque, mesmo se os defensores laicos dos direitos do Homem devem insistir para que a tolerância esteja na base dos movimentos e dos regimes políticos religiosos, também devem tolerar a existência de uma política religiosa que tenha em conta as liberdades fundamentais e a dignidade a que todos os seres humanos têm direito, sejam quais forem as suas crenças ou as suas sensibilidades políticas.
* Professor de sociologia e de estudos religiosos na Universidade da Califórnia. Director do Centro Global e Estudos Internacionais em Santa Bárbara, Estados Unidos.
Notas 1. Para uma maior precisão sobre este assunto no contexto do crescimento dos desafios religiosos para o Estado laico, ver a minha obra, Global Rebellion: Religious Challenges to the Secular State, University of California Press, Berkeley, 2009, donde são os extractos que constituem uma parte do presente texto. 2. Citado por Kim Murphy, “Algerian Election to Test Strenght of Radical Islam”, in Los Angeles Times, 26 de Dezembro de 1991, p. 244. 3. Dina Nath Mishra, RSS. Myth and Reality, Vikas, Nova Deli, 1980, p. 73; ver também Ainslie T. Embree, “The Function of the Rashtriya Swayamsevak Sangh: To define the Hindou”, in Accounting for Fundamentalisms, The Fundamentalism Projects, p. 9-17. 4. Entrevista com o xeque Ahmed Yacine, fundador e chefe espiritual do Hamas, em Gaza, na Faixa de Gaza, a 14 de Janeiro de 1989. 5. Citado em Mergui et Simonnot, Israel’s Ayatollahs: Meir Kahane and The Far Right in Israel, Saqibooks Ed., pp. 40, 41. 6. Sarvepalli Gopal, “Introduction”, in Anatomy of a Confrontation: the rise of Communal politics in India, Zed Books, p. 13.
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Mark Juergensmeyer 7. Entrevista com Ahmen Tacine. 8. Entrevista com Uduwawala Chandananda Thero, a 2 de Fevereiro de 1988. 9. Entrevista com Issam El-Arian. 10. Entrevista com o Rabi Levinger. 11. Entrevista com I. D. Shitta, a 10 de Janeiro de 1989 12. Entrevista com A. Yacine. 13. Kahame declarou: “O objectivo da democracia é deixar que as pessoas façam o que querem. O judaísmo quer torná-los melhores.” Citado por Mergui e Simonnot, ob. cit., p.36. 14. Entrevista com Uduwawala Chandananda Thero, a 2 de Fevereiro de 1988. 15. Platão, The Republic, tradução inglesa de B. Jowett, Modern Library, Nova Iorque, s.d. p.312. 16. Entrevista com M. I. El-Geyoushi. 17. Discurso de Yoel Lerner na cerimónia de independência do Estado da Judeia, em Jerusalém, a 18 de Janeiro de 1989. Nesta ocasião, beneficiei da tradução simultânea do seu discurso por Ehud Sprinzak e pelos seus alunos. 18. Janeiro de 1989. Nesta ocasião beneficiei da tradução simultânea do seu discurso por Ehud Spinzak e pelos seus alunos. 18. Entrevista com Yol Lerner. 19. Hamid Algar, transc., Constitution of the Islamic Republic of Iran, Mizan Press, Berkeley, Calif., 1980, p. 68. 20. O guia supremo é, sem dúvida, nomeado vitaliciamente. Por sua morte, a Constituição precisa que “especialistas eleitos pelo povo” escolhem um novo guia. Se não o encontram, podem nomear três ou cinco membros de um conselho de direcção que assegurarão as funções de guia. Algar, Constitution, 66. Ver também, H. E. Chehabi, “Religion and Politics in Iran: How Theocratic is the Islamic Republic?” in Daedalus (Verão 1991), p. 69-92. Sobre a atitude ambivalente do clero para com a política durante o período que precedeu a revolução, ver Shahrough Akhavi, Religions and Politics in Contemporary Iran: Clergy-State Relations in the Pahlavi Period, State University of New York Press, Albany, 1980. 21. Entrevista com A. Yacine. 22. Entrevista com Uduwawala Chandanandra Thero, a 2 de Fevereiro de 1988. 23. Entrevista com I. El-Arian. 24. Entrevista com Uduwawala Chandanandra Thero, a 2 de Fevereiro de 1988. 25. Entrevista com I. D. Shitta, a 10 de Janeiro de 1989. 26. Entrevista com M. Khane. Michael ben Horin, um dos organizadores de evento proclamando a independência do Estado da Judeia, explicou que todos os delegados escolhidos vinham da Judeia e de Samaria, dois de cada colónia. Os dirigentes do congresso fundador foram eleitos por voto secreto. A lista de pessoas nomeadas para fazer parte do Conselho Executivo foi lida em voz alta (outros nomes podiam ser acrescentados); cada candidato fez um breve discurso de nomeação. Entrevista com Michael ben Horin, a 15 de Janeiro de 1989. 27. Entrevista com M. Khane. 28. A. H. Bani-sadr, Fundamental Principles and Precepts of the Islamic Government, p. 40. 29. O International Centre for Ethnic Studies de Colombo produziu uma série de emissões televisivas mostrando a “unidade pela diversidade” da sociedade do Sri Lanka. Aí vê-se claramente que o deus hindu Vishnu é muitas vezes adorado nos templos budistas, enquanto que o deus Kataragama, que é contudo mais particularmente do Sri Lanka, também é venerado pelos budistas tanto quanto pelos hindus. 30. Entrevista com I. D. Shitta, a 10 de Janeiro de 1989; El-Arian, M.I. El-Geyoushi e M. Yacine. Os comentários de cada um deles sobre uma Chari’a a dois níveis foram recolhidos sem que soubessem que ideias similares tinham sido enunciadas pelos outros. 31. Entrevista com M. i. El-Geyoushi.
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Mark Juergensmeyer 32. David Little, “The Developement in the West os the Right of Freedom os Religion and Conscience: A Basis for Comparison with Islam”, in David Little, John Keslay e Abdulaziz A. Sachedina, Human Rights and the Conflict of Cultures: Western and Islamic Perspectives on Religious Liberty, University of South Carolina Press, Columbia, 1988, p.30. Para outras discussões sobre os direitos do Homem na perspectiva comparativa, ver Max L. Stackhouse, Creeds, Society, and Human Rights: A Study in Three Cultures, W. B. Eerdmans, Grand Rapids, Mich. 1984; Arlene Swidler, ed. Human Rights in Religious Traditions, Pilgrim Press, Nova Iorque, 1982; Leroy S. Rouner, ed., Human Rights and the World’s Religions, University of Notre Dame Press, Notre Dame, Ind., 1988; Kenneth W. Thompson, ed., Moral Imperative of Human Rights, University Press of America, Washington, D.C., 1980; Irene Bloome, Paul Martin e Wayne Proudfoot, ed., Religion and Human Rights, Colombia University Press, Nova Iorque, 1995. Para conhecer mais sobre a interessante tese segundo a qual os direitos do Homem são, elas mesmas, uma tradição religiosa. Ver Robert Traer, Faith in Human Rights: Support in Religious Traditions for a Global Struggle, Georgetown University Press, Washington, D.C., 1991. 33. Discurso do rabino Meir Kahane em Jerusalém a 18 de Janeiro de 1989 (na ocasião, beneficiei da tradução simultânea do seu discurso por Ehud Sprinzak e dos seus alunos). Ler igualmente a transcrição de uma entrevista de Kahane in Mergui e Sumonnot, Israel’s Ayatollahs, ob.cit., p. 33,34. 34. Entrevista com I. El-Arian. 35. H. Algar, Constitution, 27. (há uma versão francesa de Michel Potocki, Constitution de la République islamique d’Iran, 1979-1989, L’Harmattan, 2004 36. Idem, 38 e 43. 37. Idem, 91. 38. Entrevista com A. Yacine.
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Documentos Nações Unidas Asma Jilani Jahangir1, a Relatora especial da ONU sobre a liberdade de religião ou de convicção, defende o seu relatório Genebra/Suíça, 17/03/2009 (Protestinfo2) – A 12 de Março, Asma Jahangir, a Relatora especial sobre a liberdade de religião ou de convicção, apresentou o seu relatório na Sala do Conselho dos Direitos do Homem na ONU, em Genebra. Esta advogada paquistanesa, militante de longa data dos direitos das mulheres, defendeu o desenvolvimento do diálogo inter-religioso e a não discriminação económica das minorias religiosas. No mundo francófono, o Conselho dos Drª Asma Jahangir Direitos do Homem foi acusado de enterrar os direitos do Homem, especialmente o artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos do Homem sobre a liberdade de religião. Como reage a uma tal crítica? É uma crítica muito geral da qual não tinha conhecimento. Se me derem exemplos precisos, poderia reagir a essas críticas. Em caso algum desejo enterrar os direitos do Homem nem o artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Como bem sabe, esta função de relator tem levantado oposições, principalmente em relação à liberdade de expressão e de religião. Para mim, a liberdade de expressão deve ser plenamente respeitada. Portanto, não se põe de forma alguma, a questão de enterrar os direitos do Homem. Ao ler o seu relatório anual, não se vê nada sobre o Tibete, nada sobre o encerramento de igrejas cristãs na Argélia durante o ano de 2008, nada sobre as dificuldades dos muçulmanos que mudaram de religião… Porque não fala sobre o Tibete? Não basta considerar, unicamente, o meu relatório anual, que é temático. Há também um outro relatório, este por país. Se o analisar, verá que nele 121
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se faz menção do Tibete assim como de todos os incidentes ligados ao Tibete. Quando é que teve ocasião, pela última vez, de publicar um relatório sobre a China e, consequentemente, de evocar o Tibete? O conselho dos Direitos do Homem impõe-nos algumas regras de procedimento. Devemos pedir autorização a um país para o visitar. Depois da obtenção dessa autorização, podemos lá ir e fazer um relatório sobre ele. Há vários anos que pedi autorização para visitar a China. Não posso lá ir se o governo chinês não me convidar. Mas cada ano, no relatório que apresento, menciono a China. No relatório que apresentou na quinta-feira passada, não encontramos nenhuma menção das dificuldades enfrentadas pelos cristãos em países muçulmanos. Por exemplo, porque é que não disse nada sobre as violações da liberdade religiosa dos cristãos na Argélia em 2008? No relatório que apresentei este ano era sobre os direitos sociais e económicos das minorias religiosas. Também publiquei relatórios sobre seis países, em particular. A declaração que fiz antes do Conselho dos Direitos do Homem é limitada a 15 minutos e deve reflectir o que eu digo nesses relatórios. Se eu começasse a discutir cada situação particular, seriam precisos muito mais do que 15 minutos. No seu relatório deste ano, incentiva os países a desenvolverem o diálogo inter-religioso e o ensino da tolerância nas escolas. Em que é que estas duas abordagens permitem lutar contra as violações da liberdade de religião? No meu relatório, não falei da forma habitual do diálogo inter-religioso. Apelo para um diálogo inter-religioso que permita que os participantes se confrontem uns aos outros e para abordarem as situações que não são compatíveis com os direitos do Homem. O diálogo não deve apenas falar sobre questões que não constituem problema. No meu entendimento, não deve reunir apenas os responsáveis de grupos religiosos. É preciso envolver as pessoas sem convicções religiosas, bem como as mulheres. Defende igualmente a criação em cada país de um grupo de reflexão inter--religioso permanente. Este grupo terá como objectivo estudar as leis, o seu desenvolvimento, a política e a questão das minorias religiosas do ponto de vista da liberdade de religião. Isto para que os governos prossigam uma política que promova a tolerância e que se oponha aos actos de intolerância. 122
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Acha que desde 2001, a situação da liberdade de religião e convicção, se deteriorou no mundo? A situação da liberdade de religião não era particularmente boa em 2001 e agravou-se desde então. As linhas de factura são mais acentuadas e a polarização aumentou. O 11 de Setembro não trouxe nada de positivo para consolidar a harmonia entre as religiões, mas é hora de avançar. É tempo de olharmos para dentro de nós mesmos. Actualmente temos a tendência de nos acusarmos uns aos outros em vez de olharmos para a nossa própria sociedade e observar o que se está a passar aí. Sinto, que é a primeira coisa a fazer: olhar para o que está a acontecer na nossa sociedade, e depois olhar para além. Esta é uma abordagem que me parece sã. No futuro, como deve a ONU evoluir para melhor defender a liberdade de religião e convicção? Primeiro, todos os governos devem resolutamente colocar-se acima das linhas de demarcação religiosa. Também devem ser muito mais pró-activos na protecção dos direitos humanos. Em termos de liberdade de religião e crença, o que é importante não é saber a que religião se pertence ou a que convicção se está ligado; o que importa é que é um direito do homem! E não é separado de outras normas e padrões sobre direitos do Homem. Em segundo lugar, os Estados devem reconhecer o facto de que as populações na base, querem gozar de mais direito do que o seu governo está disposto a conceder-lhes. Quando visito um país, para uma missão da ONU, sinto que os governos avançam a quatro patas, enquanto as pessoas correm. Este fosso é um grande problema e arrisca-se a criar dificuldades para os próximos governos.
Notas 1. Nascida em 1952 em Lahore, a advogada paquistanesa Asma Jilani Jahangir tornou-se notada pela sua enérgica defesa dos direitos do Homem e da liberdade religiosa no seu país. Desde 2004, é Relatora Especial sobre a liberdade de religião ou de convicção no quadro do Conselho dos Direitos do Homem das Nações Unidas. 2. Texto reproduzido com a amável autorização de Protestinfo, www.protestinfo.ch.
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O 60º aniversário do Conselho da Europa Comunicado de imprensa emitido a 5 de Maio de 2009 pelo Movimento Europeu Internacional e reproduzido aqui com a sua amável autorização. 2009 foi o ano da celebração do 60º aniversário do Conselho da Europa. Após seis décadas, o Conselho da Europa pretende criar uma maior unidade entre os seus membros e poder preservar e promover os direitos do Homem, a democracia e o Estado de direito. As origens do Conselho da Europa remontam a uma época em que a causa de uma Europa unida, era então defendida por personalidades como Winston Churchill. No seu célebre discurso pronunciado em Zurique, a 19 de Setembro de 1946, Churchill apelava ao voto pela instituição dos Estados Unidos da Europa e a criação do Conselho da Europa. A estrutura do Conselho da Europa tem sido debatida no Congresso da Europa, realizada em Haia, de 7 a 11 de Maio de 1948. Organizado pelo Comité Internacional de Movimentos para a Unidade Europeia (formalmente rebaptizado de “Movimento Europeu” a 25 de Outubro de 1948) e presidido por Winston Churchill, o Congresso reuniu 800 representantes de todo o leque político europeu e da sociedade civil. Os participantes do Congresso da Europa, defendiam duas escolas de pensamento: uma favorável a uma organização internacional clássica, com representantes do governo e outro mais inclinado para um fórum político dos parlamentares. As duas abordagens acabaram por se unir para conduzir à criação do Comité de Ministros e da Assembleia Parlamentar ao abrigo do Estatuto do Conselho da Europa. O Congresso da Europa, organizado pelo Movimento Europeu, foi assim o trampolim que levou à fundação do Conselho da Europa, a 5 de Maio de 1949, pelo Tratado de Londres. Este foi o primeiro resultado importante do Movimento Europeu. Hoje, o Conselho da Europa reúne 47 estados, representando 800 milhões de europeus, e um país candidato, Bielo Rússia – cujo estatuto de convidado especial foi suspenso porque não respeitou os direitos do Homem e os princípios democráticos. Tem também cinco Estados observadores (a Santa Sé, os Estados Unidos, o Canadá, o Japão e o México). O Conselho da Europa aprovou, em 1950, a Convenção Europeia dos direitos do Homem e criou o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a fim de fazer cumprir este acordo. Nos últimos 60 anos, o Conselho da Europa adoptou mais de 200 convenções tais como a Carta Europeia de Autonomia Local, a Carta Europeia das Línguas Regionais ou Minoritárias, a Carta Social Europeia (aprovada em 1961) ou a Convenção Cultural Europeia (1954). Estas convenções adoptadas pela Assembleia Parlamentar do 124
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Conselho da Europa, não tem carácter vinculativo para todos os países membros, mas são sujeitos à ratificação voluntária dos membros. O Conselho da Europa, que tem a sua sede em Estrasburgo, também realiza campanhas de alto nível sobre temas relacionados com os direitos do Homem, a fim educar o público e os media. Foi, por exemplo, o caso da campanha “Todos diferentes, todos iguais”, em 2007. Também defendeu uma série de causas como o diálogo intercultural e da luta pela abolição universal da pena de morte.
ERRATA Foi cometido um erro na legenda da foto do Palácio Bourbon na página no nosso número anterior. A última frase deveria ser como segue: Hoje o Palácio Bourbon é a sede da Assembleia Nacional, que, com o Senado, constitui o Parlamento francês. Pelo erro cometido, pedimos aos nossos leitores que nos perdoem.
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Livros Mark Juergensmeyer, Global Rebellion: Religious Challenges to the Secular State, from Christian Militias to Al Qaeda. Estudo comparativo sobre a religião e a sociedade, University of California Press, 2008. O autor é professor de sociologia e director do departamento Global and International Studies da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara. Recebeu o Grawemeyer Award pelo seu livro Terror in the Mind of God (University of California Press, 2003), apareceu em francês sob o título Au nom de Dieu, ils tuent! Chrétiens, juifs et musulmans, ils revendiquent la violence (Autrement, 2003). Editou Global Religion: An Introduction (2003), e escreveu também The New Cold War? Religious Nationalism Confronts the Secular State (1993) assim como Gandhi’s Way: A Handbook of Conflict Resolution (2002), publicados igualmente pela University California Press. Foram feitas dez perguntas a Mark Juergensmeyer sobre o livro Global Rebellion. Religion Dispatches: O que é que lhe deu a ideia para escrever Global Rebellion? O que é que suscitou o seu interesse? Mark Juergensmeyer: Tudo começou com os Sikhs. Eu vivi na Índia entre eles e tenho uma grande admiração por eles. Assim foi com horror que assisti, há uns vinte anos, à terrível espiral de violência que eclodiu entre os Sikhs e o Estado laico, ceifando a vida de milhares de pessoas e levou ao assassinato do Primeiro-Ministro Indira Gandhi. Estive então na Índia e no Médio Oriente e em muitas outras zonas de conflito em todo o mundo, para entender como se chega a tal ponto. As perguntas que eu me colocava naquela época são as mesmas que eu me coloco, sempre que ocorre um conflito religioso: Porquê agora? E o que é que a religião tem a ver com isso? Que mensagem quer que os seus leitores retenham? A revolta religiosa contra o Estado laico encontra-se em todas as tradições religiosas – não só no Sikhismo ou no Islão. Aqueles que participam desses ataques não são nem maus, nem loucos: aqueles com quem falei acreditavam apaixonadamente que eram soldados defendendo a sua cultura e a sua honra, e que contribuíam para o aparecimento de uma política mais justa. 126
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Há coisas que deixou de lado? No livro, há entrevistas com activistas de todo o mundo, dos cristãos aos muçulmanos dos Estados Unidos ao Iraque. Mas na maioria dos casos não conto até quanto foi difícil entrar em contacto com eles. Aconteceu-me ter que esperar dias ou mesmo semanas, antes de descobrir a sua posição, obter o seu acordo para manter uma conversa e organizar os encontros. Por vezes, o simples facto de os localizar era um pesadelo – como quando o meu táxi se perdeu em Gaza, enquanto eu estava a caminho para entrevistar líderes do Hamas: tive que ir à Universidade Islâmica para encontrar simpatizantes do movimento que me pudessem ajudar a localizar o endereço de que estava à procura. Mas isso é outra história – um outro livro, talvez? Qual é o mal-entendido mais difundido sobre o assunto do seu livro? O equívoco mais comum sobre a ascensão do activismo religioso? Que há algo errado com a religião. A ascensão da rebelião religiosa global não tem nada a ver com religião – pelo menos não no sentido estrito da luta pelas questões teológicas ou crenças religiosas. É mais uma questão de ordem social e modo de vida que se sente ameaçada. A maioria das pessoas que entrevistei não eram tão praticantes como isso: tinham o sentimento de que o seu povo foi atacado e queriam participar no combate. Quando fomos a uma prisão para entrevistar um dos militantes da Jihad Islâmica implicado no atentado do World Trade Center em 1993, fiquei surpreso ao encontrar-me na frente de alguém perfeitamente normal: ele usou uma linguagem um pouco profana e falou do seu gosto por mulheres loiras. Em contrapartida, defendeu apaixonadamente aquilo que entendia como uma injustiça contra o mundo muçulmano. Destina este livro a um público particular? Espero que todos os que estão interessados no crescimento da rebelião religiosa no mundo possam ler o meu livro, ser fascinados pelos estudos de casos e entenderem um pouco da minha análise. Se eu puder influenciar as pessoas no seu comportamento e o nosso governo para ele poder rever a sua maneira de reagir ao activismo religioso, seria ainda melhor. Espera simplesmente informar os leitores? Agradar-lhes? Provocá-los? Espero que os leitores tenham a mesma reacção que eu tive depois de ter falado com os activistas e religiosos ao realizar os estudos do caso: uma sensação de compreensibilidade em perceber que o embate entre religião e Estado laico é uma resposta compreensível para crises sociais no mundo actual. Espero que os leitores fiquem com raiva quando percebem que, muitas vezes, quando o governo responde com a opressão, torna as coisas piores. 127
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Que outro título poderia dar a este livro? Talvez pudesse intitulá-lo de Inside the Mind of an Angry Religious World (Por detrás da mente de um mundo religioso em fúria). Mas eu não podia usar esse título porque parece muito o do meu livro anterior, Terror in the Mind of God (Literalmente: Terror na mente de Deus). Além disso, isso dá a impressão de que eu acho que o problema é a religião. O objectivo deste livro é muito mais amplo. Trata de todos os movimentos de activismo religioso dos últimos três anos e da tensão que pesa na política laica no mundo global que a criou. Isso fez com que muitas pessoas já não tenham fé no nacionalismo laico e rejeitem o que, numa época, caracterizou o mundo ocidental moderno: a distinção entre religioso e laico. Qual é a sua opinião sobre a capa do livro? Eu gosto desta capa: mostra os seres humanos, e este livro diz respeito a homens e ideias. A foto de militantes zangados brandindo armas ilustra a paixão que muitas vezes acompanha a rebelião religiosa. Acho que as pessoas que estão nesta foto são de certa forma anónimas – não se pode identificar claramente os muçulmanos ou judeus ou árabes, e eles podem vir de qualquer lugar do mundo – o que é óptimo uma vez que a rebelião religiosa é um fenómeno global que aparece em todas as tradições religiosas. Há algum livro de que gostaria de ser o autor? Eu gosto imenso das entrevistas com activistas religiosos no Médio Oriente e noutros lugares por jornalistas, e estou muito interessado na análise intelectual da crise que tomou conta do secularismo moderno. Aprecio, também, a análise política da mudança social no nosso mundo globalizado. O meu livro situa-se um pouco na intersecção desses três tipos de escrita: é baseado em entrevistas e no estudo de casos contemporâneos, mas coloca estes últimos no contexto mais amplo das forças políticas e sociais da época actual da história mundial. No fim de contas tenho a impressão de que esta fase de história da rebelião religiosa será temporária e que será suplantada por uma noção da ordem mundial e da responsabilidade mútua que nos fazem sentir mais segurança e mais confiantes sobre o mundo e o nosso lugar neste mundo. Enfim, é isso que o meu lado optimista espera para o futuro. E sobre o seu próximo livro? A guerra. Quero entender a estranha afinidade que há para nós entre Deus e a guerra – porque é que nós, humanos, gostamos da guerra, porque são as nossas imagens cultural e religiosa (seja filmes, jogos de vídeo, etc.) repletas de representações guerreiras e porque é que a guerra tem sempre Deus ao seu lado. Este livro será baseado nos cursos que ministrei na 128
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Universidade de Princeton no ano passado. Procuro entender porque é que a violência e a religião se atraem de forma tão maléfica. Ao fazer isso, espero aprender mais sobre estes dois temas e também o que nós, como seres humanos, pensamos de nós mesmos e do mundo, neste mundo de Deus e da guerra. Este artigo foi publicado pela primeira vez em Religion Dispatchs – www. religiondispatches.org. Jean-François Mayer, Les fondamentalismes, editora Georg, Genebra, Novembro de 2001. Crítica publicada na Primavera de 2002 na revista trimestral Catholica e reproduzido aqui com amável permissão. A investigação semântica exigida pela confusão, é preciso dizer, não só pela linguagem experimental que permeia a redacção, mas também por muitos autores de renome científico. J.-F. Mayer cita como exemplo o livro escrito por um cientista político alemão Hans Gerd Jaschke, que mistura, literalmente, tudo e mais alguma coisa (nazis, cientologistas, islamitas, adeptos da New Age), sob a etiqueta – leve e angustiante para os liberais – do fundamentalismo. Por outro lado, talvez também fosse interessante definir este a partir deste medo vago, revelador de uma falta de segurança mais do que a necessidade de criar inimigos, que existe entre os apoiantes da ultra-modernidade. “Não podemos projectar o modelo ocidental secularizado como o critério pelo qual todo o poder deve ser medido. Sem ignorar as tensões e os perigos representados por certos movimentos, seria pouco construtivo agitar continuamente a etiqueta fundamentalista como um badalo: se queremos usá-la numa discussão séria, é necessário que seja de forma serena e não um alvo polémico.” Ao colocar esta palavra no plural, o pesquisador suíço esforça-se para trazer um pouco de sanidade a tudo isso. Ele propõe que se mantenha o significado original (o fundamentalismo como regresso às fontes religiosas simples) e usar outros termos para descrever as coisas tais como o nacionalismo com conotação religiosa ou os movimentos violentos utilizando conceitos religiosos para construir uma ideologia.
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Declaração de Princípios Acreditamos que o direito à liberdade religiosa foi dado por Deus e afirmamos que ela se pode exercer nas melhores condições, quando há separação entre as organizações religiosas e o Estado. Acreditamos que toda a legislação, ou qualquer outro acto gover namental, que una as organizações religiosas e o Estado, se opõem aos interesses dessas duas instituições e podem causar prejuízo aos direitos do homem. Acreditamos que os governos foram instituídos por Deus para manter e proteger os homens no gozo dos seus direitos naturais e para regula mentar os assuntos civis; e que neste domínio tem o direito a obediência respeitosa e voluntária de cada indivíduo. Acreditamos no Direito natural inalienável do indivíduo à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de ter ou de adoptar uma religião ou uma convicção da sua escolha e de mudar segundo a sua consciência; assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, individualmente ou em comum, tanto em público como em privado, através do culto e da realização dos ritos, das práticas e dos ensinos, devendo, cada um, no exercício desse direito, respeitar os mesmos direitos nos outros. Acreditamos que a liberdade religiosa comporta, igualmente, a liberdade de fundar e de manter instituições de caridade e educativas, de solicitar e de receber contribuições financeiras voluntárias, de observar os dias de repouso e de celebrar as festas de acordo com os preceitos da sua religião, e de manter relações com crentes e comunidades religiosas tanto ao nível nacional, como internacional. Acreditamos que a liberdade religiosa e a eliminação da intolerância e da discriminação fundadas sobre a religião ou a convicção, são essenciais para promover a compreensão, a paz e a amizade entre os povos. Acreditamos que os cidadãos deveriam utilizar todos os meios legais e honestos, para impedir toda a acção contrária a estes princípios, para que todos possam gozar das inestimáveis bênçãos da liberdade religiosa. Acreditamos que o espírito desta verdadeira liberdade religiosa está resumido na regra áurea: Tudo o que quiserem que os homens vos façam, façam-no a eles. 130