Revista Redemoinho ano 09 nr 14

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REVISTA DO CURSO DE JORNALISMO DO IESB

Brasília Junho 2018 www.iesb.br

REDEMOINHO IESB – Instituto de Educação Superior de Brasília

ANO 09 . NÚMERO 14

EDUCAÇÃO VOLUNTÁRIA TRANSFORMA ESPAÇOS CÊNICOS NA PERIFERIA

SEGUNDO RECOMEÇO

redemoinho . ano 09 . número 14

Famílias constroem um terceiro lar para crianças devolvidas após adoção

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redemoinho . ano 08 . nĂşmero 13


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Índice

capa

REJEIÇÃO SUPERADA

Novos pais precisam criar vínculos e lidar com dificuldades emocionais das crianças devolvidas após primeira adoção

18 34 08 14 22 26 31 38 43 46

Universidade com voluntários Pré-vestibulares gratuitos ampliam o acesso à universidade

Teatro na periferia Mobilização da comunidade visa garantir produção cultural no entorno de Brasília

ducação que avança Projetos E buscam alternativas para entender e combater índices negativos Ensino do amanhã Desafio e pioneirismo brasileiro com a primeira comunidade de aprendizagem baseado em novo paradigmas Arte inclusiva Produtores culturais legitimam a luta do negro como forma de enfrentamento social Estranhos no ninho Minoria entre os ricos e os que ocupam postos de poder, os negros avançam mesmo com o racismo Sete décadas de avanço Declaração dos Direitos Humanos ajudou a regular questões básicas e foi marco para o mundo Elas são nerds Mulheres rompem interesse romântico nos heróis e encaram protagonismo Preparação para as Olimpíadas Jovens atletas brasilienses treinam pesado para garantirem medalhas nas próximas competições Escotismo oferece lição ambiental Amor à natureza reúne mais de cem crianças e adolescentes no Brasil

50 54 58 62 66 69 72 76 80

thos por toda parte Centenário do A artista mais popular de Brasília mostra encanto de azulejos e painéis Faces da pobreza Para além do Plano Piloto, miséria é encontrada em vários pontos da Capital Federal Depois da prisão Recomeço de mulheres que saem das penitenciárias ainda é cercado de preconceitos Compulsão pelo sexo Marcado por aplicativos e praticado em locais públicos, o chamado fast-foda é cada vez mais comum em Brasília Depressão superada A vida de quem consegue conviver com a doença que atinge milhões de pessoas no mundo Agressão em casa Vítimas de abuso dentro de casa buscam superar traumas que podem ficar por toda a vida Violência no parto A cada quatro mulheres, uma é vítima de maus-tratos na hora de dar à luz Meu remédio, meu veneno Os perigos da automedicação que intoxica e mata Possíveis retrocessos Eleições 2018 podem garantir ascensão de grupos religiosos na política e colocar em xeque Estado Laico


REDEMOINHO REVISTA DO CURSO DE JORNALISMO DO IESB

EDITORIAL

redemoinho . ano 09 . número 14

Expediente Edição: Cândida Mariz, José Marcelo Santos, Leila Herédia, Luísa Guimarães e Márcio Peixoto. Projeto gráfico: Iara Rabelo. Direção de arte: Mariana Pagotto. Monitoria em diagramação: Hygor Lino. Conselho editorial: Cândida Mariz, Carlos Siqueira, Daniel Gonçalves, Daniella Goulart, Guilherme Lobão, José Marcelo Santos, Leila Herédia, Lourenço Flores, Luísa Guimarães, Márcio Peixoto e Mariana Pagotto. Coordenação do curso de jornalismo: Daniella Goulart. Direção geral do Iesb: Eda Coutinho Machado. Tiragem: 1.000 exemplares. Redação: (61) 3445-4577. Repórteres e fotógrafos do 5º semestre de jornalismo: Adelair Almeira, Afonso Ferreira, Aline Aguiar, Bruno Trezena, Caroline Fogaça, Darcianne Diogo, Dávini Ribeiro, Felipe Dourado, Fernanda Barros, Guilherme Mota, Larissa Sarmento, Lucas Faria, Marisla Mendes, Mateus Rosa, Mônica Siqueira, Nadine Oliveira, Natália Ribeiro, Thamara Abreu e Thays de Oliveira.

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A R evista R edemoinho, produzida pelo 5º semestre de Jor nalismo do Iesb, é um r itual de passagem. As infor mações e os tex tos ficaram mais densos e rompeu-se a bar reira entre o querer e o fazer. O desafio foi seguir sem alguém pe gar em nossas mãos e fazer-nos enxergar a notícia. Foi nos tor nar mos capazes de caminhar sozinhos. Foi compreender as cobranças do mercado. D urante os anos de curso, muitos ficaram para trás, deixando ainda mais claro que o trabalho exercido pelo jornalista não é para todo mundo. S aímos das salas de aula para as ruas, exercendo a profissão que escolhemos, dando voz a aqueles que não têm a opor tunidade de se expressar, contando histór ias que infor mam e ao mesmo tempo emocionam. É assim que os devolvidos após a adoção, os intoxicados pelo uso de medicamentos, a s que sofreram violência no par to, os negros que ascenderam socialmente e os que cursam pré -vestibulares gratuitos sã o retratados, assim como a tendência de avanço do conser vador ismo nas próximas eleições e os 70 anos da D eclaração Universal dos Direitos Humanos estão entre as 84 páginas desta edição. redemoinho . ano 09 . número 14

S e no início lidávamos com a inexpe r iência, agora esperamos que, após esses longos meses de aprendizado e trabalho, essa décima quar ta edição da R edemoinho, possa expressar o que realmente desejamos ser : jor nalistas!

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VÍNCULOS RECONSTRUÍDOS Adoção de crianças devolvidas é desafio também para novos pais, que precisam construir vínculos, resgatar a confiança e estabelecer filiação

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adoção é uma oportunidade de recomeçar. Encontrar uma nova família e estabelecer vínculos fazem parte do processo de ressignificar a própria história. Um dos problemas enfrentados, no entanto, é quando, após ser rejeitada pelos pais biológicos, a criança é devolvida novamente, nesta segunda vez pela família que a adotou. A sensação que

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MARISLA MENDES fica é do eterno abandono. O trauma, segundo especialistas, permanece por toda a vida. “É uma dor profunda que leva muitos anos, às vezes só na fase adulta e com terapia é que essa criança, esse indivíduo, vai se resolver. O abandono não tem cura emocional imediata”, explica a psicóloga e terapeuta de família Vera Lemos. Foi assim com Nicolas, hoje com 10 anos. Apenas aos 7 anos ele encontrou uma nova casa. Ficou por lá por menos de dois anos, quando foi

entregue após a alegação dos pais adotantes de “dificuldade em estabelecer vínculos”. Com menos de uma década de vida, conquistou a terceira família. Na nova casa, a readaptação foi difícil e, por cerca de três meses, o choro era diário. O processo de ruptura foi tão forte que ele pediu para trocar de nome. De Michel, passou a Nicolas. “Ele tem um ressentimento grande com essa história. Não falava nada, mas a gente imaginava o que era. Lá na frente ele vai processar tudo


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isso, mas hoje percebo que está sempre em sofrimento”, relata a mãe, a professora Aira Pereira. O desafio nesse processo é para ambos os lados, tanto para as crianças, quanto para os pais dispostos a adotar. “Algumas crianças acrescentam alguns comportamentos e sentimentos muito contundentes, muito difíceis para os novos pais adotantes”, relata Vera. Violência, desrespeito, medo e sofrimento estão entre eles. “Para as crianças, a negligência é a expressão de amor”, afirma a psicopedagoga Cibele Vogel, mãe de Rafaela, hoje com 7 anos, que deixou o segundo lar aos 5. Se os filhos têm dificuldades em estabelecer vínculos, os pais enfrentam obstáculos para construir a filiação. É preciso uma espécie de “pré-natal emocional”, com a preparação para a chegada da criança e para lidar com os problemas que podem vir juntos. “Eles já chegam acreditando que não

vai dar certo”, vá todos os Apenas este ano, a Vara relata Cibele. O dias ao abrida Infância já registra três go, quanto desafio é resgatar a confiança vezes devoluções de crianças no DF mais da menina ou melhor”, diz menino, que Karina. Em muitas vezes enxerga deslealdade geral essa etapa é marcada pelo naqueles que têm a função de cuidar encantamento. O sinal de que algo deles. “O relacionamento é o maior não vai bem ocorre quando, já com desafio”, concorda Vera. a criança em casa, os pais passam a O número de devoluções tem não frequentar as chamadas vivênaumentado no Distrito Federal. Ao cias. Quando decidem pedir ajuda, longo do ano passado, foram quatro. costuma já ser tarde demais. Apenas nos dois primeiros meses de Um dos abrigos de Brasília, a 2018, a Vara da Infância e da Juventu- Casa Ismael, já soma duas devolude já registra três. Segundo o Cadas- ções apenas este ano. Uma delas, de tro Nacional da Adoção (CNA), foram uma adoção tardia, com um menino 18 adoções no DF até abril. O total de de 13 anos. A assistente social e cocrianças adotadas tem crescido ano ordenadora de acolhimento Vivian a ano. Em 2017, foram 82, contra 54 Pereira Queiroz reforça o que os daregistradas em 2015. dos divulgados pelo CNA mostram: a Até chegar a um novo lar, no preferência é por crianças pequenas, entanto, o processo pode ser longo. geralmente entre zero e dois anos, Após a Vara da Infância e da Juven- meninas e sem deficiência. Tanto que tude ser notificada, a criança passa o país registra 40 mil pessoas cadasa ser acompanhada, desde o abrigo tradas como adotantes e menos de provisório até pelo menos um ano 10 mil crianças para serem adotadas. depois de estar com os novos pais. Um dos casos marcantes para Psicólogos, assistentes sociais e ad- a assistente social ocorreu em 2016. vogados atuam nesta fase para pre- Uma menina de 3 anos foi devolvida servar os direitos das crianças. São sob a alegação de que não sabia refeitas várias reuniões e socializações. ceber amor. “Como assim uma criança “Explicamos o quão traumática será uma nova ruptura”, explica a psicóloga da entidade, Karina Machado. Na maioria dos casos de devolução, segundo ela, os pais adotantes culpabilizam as crianças, argumentando que “ela é difícil”. “Muitas vezes percebemos que essas devoluções ocorrem do romantismo que eles têm, acham que quando encontrarem aquela criança vai ser mágico e, às vezes, ela pode nem abraçar. Cada caso é um caso”, afirma Karina. A psicóloga observa que durante todo o tempo é trabalhada a responsabilidade do adulto em fazer dar certo. “Mas muitos adotantes se perguntam: e se elas não gostarem de mim?”, relata. O trabalho começa no chamado estágio de convivência, o período em que os pretendentes à adoção e as crianças se conhecem e começam a criar vínculos. Esta etapa pode variar. No caso dos bebês, dura duas semanas e, com crianças maiores, pode chegar a três meses ou até mais. “Recomendamos que a família


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nessa idade não sabe receber amor, os pais são os adultos da situação”, afirma Vivian. Segundo ela, meninos e meninas que passam por negligência, maus tratos e até abuso conseguem refazer a história com tratamento. “Já as crianças que são abandonadas não. É um buraco que fica. Não conseguem ressignificar o abandono”, declara. A ong Aconchego também trabalha com crianças a serem adotadas. Atende pais em estágio de convivência e em outras etapas da adoção. Presidente da entidade, a psicóloga Soraya Pereira observa que depois que os adotantes são habilitados pela Vara da Infância, passam pelo projeto Laços, com a preparação para a chegada da criança. “Dentro do grupo do projeto damos apoio com psicanalista, psicólogos, educadores e assistentes sociais para que possam superar esse estágio de convivência e não ocorram devoluções”, ressalta Soraya.

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A construção da filiação é um dos pontos centrais. Quando esse processo não acontece, alguém vira o vilão da história. A maioria das pessoas se diz mais preparada quando se trata de adoção de bebês, ficam menos amedrontadas por uma história que está se iniciando. Crianças maiores têm consciência de todo sofrimento que um adulto pode gerar, têm lealdade aos genitores e às histórias deles. Segundo Cibele, quando a criança é inserida em ambiente onde terá regras, é natural o estranhamento. A magia que os pais tanto esperam não acontece, assim como na maternidade pode não ocorrer. Para ela, o nascimento de um filho tem três formas: parto normal, cesáreo e adoção. “Talvez algumas adoções não se efetivem, porque as pessoas precisam trabalhar muito bem o seu filho idealizado ao se deparar com seu filho real”, declara. A história de Rafaela inclui a separação não só dos pais por duas vezes, mas também do irmão. O menino, dentro do perfil buscado pelos adotantes, estava em um abrigo. Ela, então com 4 anos, foi retirada posteriormente de uma situação de negligência com a mãe biológica e não chegou a passar pelo abrigo. Os adotantes decidiram ficar com os dois. Após oito meses, no entanto, optaram por não ficar com Rafaela sob a alegação de falta de vínculos, de reconhecimento da filiação. “Ela não queria ficar com a outra família, mas queria que o irmão viesse conosco. Chegou a verbalizar que nós não queríamos o irmão e explicamos que ele era feliz com a família dele, que toda criança encontra sua mãe. Para ela elaborar isso foi bem doloroso”, lembra Cibele. A mãe diz que o caminho foi garantir que a presença do irmão nunca seria problema. “Outro dia ela falou: mãe, aposto que quando a gente crescer vamos nos achar no Facebook”. Nicolas também foi separado da irmã quando seguiu para

NICOLAS, QUE conquistou o terceiro lar aos 8 anos, teve readaptação difícil e chorou diariamente por três meses

a segunda família adotiva. Aira, a nova mãe, fazia parte de um grupo que estava no estágio de convivência porque tinha acabado de adotar dois irmãos biológicos: Rodrigo e Cauã. Os primeiros pais de Nicolas, no entanto, alegaram na reunião que não queriam mais ficar com o menino, afirmaram que não conseguiam se relacionar com ele. “Um dia a mãe dele me ligou e perguntou se eu queria ficar com o Michel, que era como ele se chamava. Eu disse que sim”. Quem devolve A bancária Débora Alves e o marido já tinham dois filhos quando resolveram adotar outro pela segunda vez. Optaram por um casal: Michel, 7 anos, e Geovana, 3 anos. A vinculação com a menina foi rápida, com o menino não. Segundo ela, não havia problema de incompatibilidade, mas a maternidade não fluiu naturalmente. O menino ficou na casa da família por um ano e oito meses. “Fizemos terapia, frequentamos o grupo de apoio à adoção. Recorremos a tudo, mas a gente não nutria por ele um vínculo afetivo de filiação. Foi um ano até o momento que falei: já deu”, conta. Ela afirma que todo o processo foi muito difícil e até hoje se sente julgada. “Ninguém adota uma criança para não ficar com ela”, declara a bancária. O estágio de convivência, na opinião de Débora, não faz com que os pais tenham certeza da adoção. Ela


O PASSO A PASSO DA ADOÇÃO 1º passo: A família demonstra interesse para a Vara da Infância e da Juventude. É feito o Cadastro Nacional de Adoção. Os interessados entram na fila e informam o perfil desejado. 2º passo: É feito um curso preparatório psicossocial e jurídico para adoção. Com várias etapas do curso, dura cerca de dois meses.

tinha a decisão do juiz ao seu favor, a adoção já havia sido aprovada, e todo o processo estava na fase final. Débora pediu para anular a sentença e suspender a adoção. “Quando as pessoas vêm me falar algo, digo: foi a melhor coisa que eu fiz. A minha relação com ele não seria boa como mãe e filho. Eu permiti a ele ter uma família”. As leis e direitos Segundo o advogado e especialista em direito da família Antônio Roger, a taxa de devolução de crianças no Brasil é pequena. Mas, se o processo de adoção estiver integralmente concluído e os pais decidirem por não ficar com a criança, podem ser responsabilizados por abandono afetivo. “O poder familiar é o mesmo. Então as consequências que tem para o abandono biológico, também ocorrem para o abandono afetivo. A principal consequência é a perda do poder familiar, mas em alguns casos o juiz pode fixar uma indenização patrimonial”, explica. Nos casos de devoluções, os argumentos que o advogado diz ouvir com frequência são incompatibilidade de gênio, emocional, personalidade e adaptação. “O pai que abandona um filho afetivo (adotado) já tem traços de conduta de que abandonaria um filho biológico também”, afirma o especialista. Do encontro com uma criança com o perfil desejado até a guarda definitiva e o processo de adoção concluído podem levar meses, às vezes até dois anos. Um projeto em análise no Senado visa agilizar o processo.

O PLS 373/2016 altera o Estatuto da Criança e do Adolescente para estabelecer prazo máximo de 365 dias para a conclusão do processo de adoção. Para o conselheiro tutelar Vinicius Ribeiro, apesar dos problemas, já se podem comemorar os muitos avanços. Ele lembra que até bem pouco tempo casais homoafetivos não podiam participar do processo. “Pessoas que tinham completa condição, mas não conseguiam, em alguns casos, por impedimento jurídico”, comenta. Segundo ele, existem ferramentas e mecanismos muito frágeis de se fazer o estudo completo sobre as famílias que estão recebendo aquela criança. No caso das devoluções, ele ainda destaca a expectativa frustrada da criança e o temor de eterno abandono. Além disso, é comum que ela tenha a adoção dificultada. “Tem pessoas que não querem adotar crianças devolvidas por acharem que elas são problemáticas”, observa. Adoções que deram certo A jornalista Dagma de Macedo e o marido dela, o autônomo Norberto de Macedo, decidiram adotar uma criança em 2011. Inicialmente, buscavam uma criança de zero a 2 anos. Passaram pelo curso obrigatório de pré-habilitação e perceberam que se mantivessem o perfil não conseguiriam adotar, pois era o mesmo sonho da maioria dos que queriam um filho afetivo. Foi assim que decidiram acolher um grupo de até dois irmãos, independentemente do sexo, de zero a 5 anos. Hoje, comemoram a família que têm e da qual fazem parte os fi-

4º passo: É iniciado o estágio de convivência, no qual os pretendentes vão aos abrigos dar início a esse processo, caso a criança também tenha interesse. Com acompanhamento da justiça são feitas visitas e são autorizados pequenos passeios 5º passo: É ajuizada ação da adoção. O juiz entra com o processo e é entregue a guarda provisória para adaptação da criança no novo lar, com validade até concluir o processo. A equipe técnica continua acompanhando o processo. lhos Yuri, 7, e Isabela, 5. “De lá para cá temos vivenciado a experiência de termos dois filhos pequenos em casa, que não vieram de dentro de nós, mas que são amados da mesma forma”, declara a jornalista. Já a funcionária pública Josmária Madalena Lopes sempre teve a adoção entre seus planos. Pedro, 11, e Paula, 12, foram para o novo lar há um ano, e estão no estágio de convivência. Ela esclarece que o processo de habilitação não demorou, uma vez que queria crianças maiores. Durante a preparação, participou também de reuniões com o grupo Laços, da Aconchego. “O início do estágio de convivência foi difícil, em virtude dos ajustes a serem feitos, da criação de uma rotina, o fortalecimento do vínculo afetivo se dá em meio a isso”, avalia.

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UM DOS abrigos do DF, Casa Ismael já soma duas devoluções este ano

3º passo: A Vara da Infância avisa quando surge uma criança com perfil desejado. Os pretendentes à adoção passam por entrevista, assim como as crianças. Eles são apresentados, caso ambos os lados tenham interesse.


UMA REALIDADE QUE PODE SER MUDADA redemoinho . ano 09 . número 14

O Censo Escolar do DF mostra que, em 2017, dos 179.170 alunos matriculados 4.656 abandonaram a escola. A evasão ou abandono escolar tem tomado espaço nos debates entre Estado e sociedade, mas algumas iniciativas bem sucedidas têm ajudado a mudar este cenário ELKE PIMENTEL 8


Antônio Martins Bento procurou o Instituto Aprender, seguindo orientações médicas, pois os filhos apresentavam dificuldades no aprendizado Para a mestranda em letras pela Universidade de Brasília (UnB) e especialista em Educação e Inclusão Escolar, professora Gina Vieira, o desempenho acadêmico dos estudantes brasileiros está abaixo do esperado. Para ela, um dos primeiros pontos é o modelo educacional. “É uma escola muito orientada como um processo de mera transmissão de conhecimento. Nessa concepção, o aluno acaba ficando muito mais na posição de objeto no processo de aprendizagem do que de sujeito. Além disso, dentro dessa concepção passa a acreditar que o conteúdo é mais importante que o sujeito”. Ainda de acordo com a profissional, esse processo gera a existência de práticas pedagógicas muito tradicionais e conservadoras. “Paulo Freire chama isso de educação bancária. Eu, professor, sou detentor desse capital cultural, desses saberes e eu preciso transmitir esses saberes para o aluno. Em algum momento, o aluno vai depositar aqueles conhecimentos em uma prova, uma avaliação, para evidenciar que houve conhecimento ou que houve aprendizagem e aquisição daqueles conhecimentos”, cita a professora.

“NÃO SOMOS um grupo de mulheres praticando assistencialismo, somos uma instituição científica”, Marina Beust, fundadora do Instituto Aprender 9

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O

cenário educacional brasileiro tem se mostrado preocupante, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Existem 1,3 milhão de jovens entre 15 e 17 anos que deixaram a escola sem concluir os estudos, dos quais 52% não concluíram sequer o ensino fundamental. A evasão escolar na educação de base faz com que seja menor o número de brasileiros a atingir níveis mais significativos de escolaridade. Esse índice aumenta para 55% se o estudante for negro e de situação social vulnerável.

Estes dados nacionais não estão distantes da realidade do ensino no Distrito Federal. Na rede pública, de acordo com o último Censo de 2017, disponível no portal da Secretaria de Estado da Educação do Distrito Federal, dos 179.170 alunos matriculados no ensino fundamental 1 e 2, nas 12 Regionais de Ensino, 2,2% (4.021 alunos) são considerados Sem Avanço. “São os alunos do Programa para Avanço das Aprendizagens Escolares, anteriormente denominado “Aceleração”, e que não progrediram de ano dentro deste programa”, explica Dinamar Rodrigues da Silva Carneiro, chefe da UNIPLAT (Unidade Regional de Planejamento Educacional e de Tecnologia na Educação), da regional de ensino de Planaltina-DF. Dos que se matricularam, 22% (39.583 alunos) foram reprovados no processo de aprendizagem. Outro dado é o índice de abandono escolar. Do total de alunos matriculados na rede pública 2,6% (4.656 estudantes) abandonaram a escola ainda no nível fundamental, seja 1 ou 2. No Distrito Federal, o termo evasão escolar não é usado pela Secretaria de Educação. Usa-se abandono escolar, principalmente, no ensino fundamental, pois entende-se que em algum momento a criança retornará para a escola. Somando todos estes números, são 48.260 alunos que não conseguiram avanço na escolaridade. A legislação nacional preconiza em seu segundo artigo que é responsabilidade da família e do Estado a jornada socioeducacional. Como está citada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB (1997:2), o ensino pleno, como se pede, não tem sido uma realidade no Brasil e no Distrito Federal em todos os níveis de escolaridade. Ao invés disso, a evasão ou abandono escolar, assim como a reprovação, tem tomado espaço nos debates entre Estado e sociedade. Organizações e movimentos são criados para entender e combater os altos índices educacionais negativos.


ALUNOS DO Instituto Aprender, no Paranoá, a caminho da aula de hip-hop

Gina conta que presenciou casos de evasão motivados por questões econômicas. Segundo ela, alunos abandonam os estudos porque têm urgência em se inserir no mercado de trabalho para garantir a própria sobrevivência e a da família. Além do fato da própria não ser atrativa. “Eles se veem obrigados a abandonar a escola e não têm como ter uma formação mais arrojada ou uma formação de profissionalização mesmo. O problema é que muitos

saem da escola para trabalhar em subempregos”, diz a professora. A professora defende um modelo de educação integral que revele os alunos como sujeitos que precisam construir saberes decisivos para o exercício da cidadania. “Se a gente tem uma proposta pedagógica onde o professor compreende o seu papel como agente de mudança haverá menos chance que esse aluno evada da escola”, complementa a professora.

O QUE PENSAM AS ESPECIALISTAS SOBRE O USO DA TECNOLOGIA NA EDUCAÇÃO “Esta é uma geração impactada pelas novas tecnologias. Em função disso, adquiriu outras formas de lidar com o conhecimento. Por outro lado, a escola continua insistindo numa forma de ensinar e numa forma de aprender que reportam ao século passado e essa escola causa estranhamento a juventude porque é uma escola onde não há espaço para as novas tecnologias, não há espaço para a voz do estudante, não há espaço para falar sobre questões que que são relevantes pra eles”. Gina Vieira, criadora do projeto Mulheres Inspiradoras. redemoinho . ano 09 . número 14

“Não acho que a metodologia atual seja arcaica, eu acho que é falta de procedimentos do professor. Ele tem que entender da linguagem usada, ser atualizado. Não é a internet que vai fazer um bom profissional, o que vai fazer um bom profissional é ele ler, estudar e ver em que ele pode melhorar. E é uma equipe, não é só o professor, tem que ter o psicólogo, o assistente social, o fonoaudiólogo. As escolas não tem [estes profissionais], tá muito jogado. Nós não temos procedimentos no Brasil”. Marina Beust, fundadora do Instituto Aprender.

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O projeto Mulheres Inspiradoras A primeira edição do projeto criado pela professora Gina Vieira aconteceu em 2014, no Centro de Ensino Fundamental 12, de Ceilândia. Em sua criação foram trabalhadas 5 turmas e, em 2015, com 7 turmas do nono ano do ensino fundamental, cada turma com 40 alunos. Nessa fase, o projeto chegou a cerca de 480 alunos. Já em 2017, ele se tornou programa de governo, chegando a 17 escolas e engajando cerca de 3.000 estudantes. Até o momento 3.480 alunos foram atendidos pelo Mulheres Inspiradoras. Como reconhecimento, o Mulheres Inspiradoras recebeu três prêmios dentro do Brasil, dentre eles o oitavo Prêmio Professores do Brasil, 10º Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero, o quarto prêmio Nacional de Educação em direitos humanos, e o prêmio Internacional Ibero-Americano de Educação em Direitos Humanos. O projeto surgiu no dia a dia da rotina escolar. Após uma década atuando como professora, Gina se deparou com uma sala de aula com problemas disciplinares e com índices de abandono escolar. Na ocasião, Gina criou uma conta numa rede social para tentar se aproximar de seus alunos, mas percebeu que era recorrente os meninos reproduzirem o referencial da mulher objetificada. Isso preocupou a professora.


“O projeto [Mulheres Inspiradoras] me deu muita base para o pensamento crítico, social e para a escrita. É uma forma diferente da educação que geralmente temos na escola” Joyce Barbosa Pereira, 18 anos, aluna da Universidade de Brasília

Uma aluna inspiradora A estudante do primeiro semestre de Artes Visuais, da Universidade de Brasília, Joyce Barbosa Pereira, 18 anos, é moradora da Ceilândia Norte. Conheceu o Projeto Mulheres Inspiradoras em 2014, quando cursava o 9° ano do ensino fundamental, através das aulas ministradas pela professora Gina Vieira. “Eu sempre tive a vontade de cursar o ensino superior e o projeto me deu mais confiança para escrever textos melhores. Então, enfrentar

uma redação de um vestibular não seria o mais difícil”, disse a estudante. Para a estudante, passar na Universidade de Brasília foi a realização de um sonho e os frutos do seu próprio esforço. “O projeto me deu muita base para o pensamento crítico, social e para a escrita. É uma forma diferente da educação que temos na escola. É mais lúdico, tivemos muitos trabalhos em grupo, podíamos pesquisar, debater e produzir bastante, nos acrescentando como estudantes e como cidadãos também”, conta Joyce. Iniciativas que transformam

GINA VIEIRA é criadora do Projeto Mulheres Inspiradoras

Doutora pela Universidade Museo Argentino-Buenos Aires e criadora do Instituto Aprender, Marina Beust acredita que a causa da evasão ou abandono escolar é a falta de profissionais capacitados para lidar com o processo de aprendizagem e as dificuldades dos alunos. De acordo com a especialista, o profissional de educação precisa se especializar. “As crianças ficam muito em redes sociais e televisão porque os pais precisam trabalhar. A solução seriam muitas creches com estimulação, algo semelhante ao que o instituto proporciona hoje”, diz Marina.

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“Criei o Mulheres Inspiradoras porque eu queria que as minhas alunas entendessem que podem ser bonitas, mas elas são muito maiores do que a beleza que elas têm”, conta. Ela propôs o estudo da biografia de dez grandes mulheres, com perfis bem diversificados: jovens como Anne Frank; mulheres idosas, como Cora Coralina; mulheres com pouca escolaridade, como Carolina Maria de Jesus; grandes pesquisadores da academia, como Nise da Silveira. Durante o ano letivo eram propostas redações, atividades de interpretação de textos, construções de frases, análises gramaticais, debates sobre diversos temas atuais e os abordados pelas obras literárias. Após a leitura aprofundada de seis obras e realização de atividades, os alunos foram convidados a observar as mulheres inspiradoras de suas unidades para descobrirem a mulher inspiradora de suas vidas. Em seguida, os alunos iam a campo realizar entrevistas com essas mulheres. O material coletado oferecia todos os elementos que uma obra literária precisava: a história da mãe, da avó e da bisavó. “Eu fiquei tão encantada com a beleza das histórias dos meus alunos que a gente transformou isso num livro”, comenta.


“Pela neuropsicologia, neuropedagogia, nós sabemos que quem trabalha na aprendizagem, trabalha o desenvolvimento do cérebro” Marina Beust, fundadora do Instituto Aprender

Marina criou o Instituto Aprender em 1983, com uma unidade no Paranoá, e em Planaltina desde 1999. Segundo ela, é preciso um passo a passo para trabalhar as habilidades e o desenvolvimento dos sujeitos que são as crianças. “Colocam pessoas despreparadas para tomar as decisões em relação aos modelos adotados em educação. O Ministro da Educação, quem é? É um político e não um cientista do saber, nós não temos técnicos”. Marina Beust e sua equipe acolheram, entre os anos de 1999 e 2016, 4.182 crianças e jovens. Neste período, realizaram 2.480.940 atividades. A profissional enfatiza que não se trata de um grupo de mulheres realizando assistencialismo. “Existe um por quê e o que fazer. Desde 1999, escolhi trazer para o Paranoá, porque eu colaborava

para a melhoria do meio vulnerável que me cercava”, diz a estudiosa que conta ter lido 330 livros e que após terminar o doutorado entrou em depressão e viajou para Buenos Aires para conversar com seus orientadores, os quais sugeriram que ela entrasse no pós-doutorado, mas que aplicasse a tese no Brasil. A maior realização da Marina é expor o fortalecimento de seu projeto, surgido de uma tese, com uma mulher à frente, hoje sendo uma ONG estruturada, com profissionais capacitados que podem colaborar para o avanço no aprendizado de todas as crianças assistidas pelo projeto. “Era seguir todos os passos da tese. Eu só sei fazer isso, recuperar as pessoas. Realizo treinamento com os profissionais para perceberem os fatores que interferem na aprendizagem”.

redemoinho . ano 09 . número 14 M.C. EM preparação para aula de capoeira no Instituto Aprender Planaltina DF 12

As crianças têm aula de dança, hip hop, capoeira, natação e assistência em fonoaudiologia, psicologia, psicopedagodia, psicometricidade. “Nós temos tudo que pedia a tese. É por isso que aqui eu trabalho de acordo com um aprendizado que tive, estagiando na Alemanha, de acordo com os três verbos: andar, falar e pensar. Para falar bem, tem que andar bem, para andar bem e falar bem, tem um pensamento que é a cognição“, diz a doutora. As crianças que frequentam o instituto são encaminhadas de hospitais, centros de saúde, escolas, Conselhos Tutelares, em sua maioria em estado de vulnerabilidade social, situação de risco e outras vulnerabilidades que interferem no desenvolvimento da aprendizagem. “Nós fazemos, primeiro, a avaliação social, avaliação psicológica. Após isso, vemos se a criança possui alguma patologia que interfere no aprendizado, como dislexia, e até mesmo algum trauma psicológico. Do produto desse estudo é que eu vou saber quais as habilidades cognitivas e sociais. Depois vem a avaliação fo-


Apresentando resultados O profissional de construção civil, no momento desempregado, Antônio Martins Bento, 50 anos, morador de Planaltina, tem dois filhos assistidos pelo Instituto Aprender, M.M e M.C. A menina chegou primeiro. Filhos de pais separados, as crianças eram vítimas de violências e abusos diversos, mas o pai não sabia. Os irmãos foram encaminhados ao Conselho Tutelar após diversas denúncias. O conselho localizou o pai no Ceará que chegou em meio a um turbilhão de acontecimentos e providências a tomar. As crianças estavam há mais de 60 dias sem ir à escola, que orientou o pai, a essa altura o responsável legal pelos irmãos, para que não faltassem mais. “No que depender de mim agora o negócio vai mudar e eu comecei. Levei eles na psicóloga do hospital e lá elas disseram que iam mandar a M.C para o Aprender”, diz o senhor Antônio.

ASSISTENTE SOCIAL, Josenílcea Rosa Cruz, em atividade pedagógica com alunos do Instituto Aprender Planaltina DF

Segundo o pai, as crianças deram muito trabalho. Todos em volta diziam que ele não aguentaria. A menina era agressiva demais e não falava, o menino furtava. “Depois que vieram pra cá muita coisa mudou. Ela fala e está conseguindo ler algumas coisas. Ele já escreve algumas coisas e lê quase tudo. Um pai tem que lutar pelos seus filhos, até a última chance. Eu vou onde precisar, onde me mandarem pelo melhor pros meus filhos. A minha parte eu ‘tô’ fazendo”, relata Antônio. O desempenho escolar dos irmãos era refletido em suas notas. Segundo o pai era “nota zero”. Em suas primeiras semanas com as crianças, o pai revela que passaram quase uma semana de suspensão em casa. Os professores não con-

seguiam lidar com os irmãos. Ao ser questionado em relação às mudanças nas crianças, inclusive no desempenho escolar, o pai se manifesta. “Melhorou e muito. Tiram nota boa, todo mundo fica admirado, quem viu o M.M. [filho] antigo não acredita no que vê hoje”, diz. Ainda segundo o pai os irmãos gostam de ir à escola, levantam, tomam banho sozinhos, se arrumam e vão tranquilos. Preferem o instituto e se precisarem faltar por algum motivo ficam descontentes. O pai acredita que é por ser mais divertido. O senhor Antônio diz que sempre é questionado a respeito do que possa ter acontecido com os filhos e que levou a essa mudança positiva. Ele responde: “foi um milagre”, sorri.

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noaudiológica, para saber o que ele está trocando na leitura e na escrita. Faço avaliação psicopedagógica e também a avaliação psicomotora. Com todo esse estudo eu traço o perfil deles”, diz Marina. O procedimento se repete de seis em seis meses, para avaliar se as crianças podem trocar de turma ou podem regredir. De acordo com a especialista, às vezes, os alunos podem precisar dessa maturação psicológica. “É dessa forma que nós vamos desenvolvendo eles, começam a partir daí a melhorar na escola. Porque no Brasil essa coisa de ter que passar de série mesmo sem ter condições é um atraso na aprendizagem”, diz Marina. Para a assistente social, Josenílcea Rosa Cruz, que está à frente do Instituto Aprender na unidade de Planaltina, o trabalho realizado vai muito além de reforço escolar, como muitos acreditam. Na unidade Planaltina o projeto atende 80 crianças. As crianças permanecem três horas diárias nas unidades, onde participam de atividades pedagógicas de recreação e de reforço escolar, fora o acompanhamento com especialistas não somente para os alunos como para os familiares.

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EDUCAÇÃO x APRENDIZAGEM O ensino necessário à nova geração dá seus primeiros passos e Brasília é pioneira com a primeira Comunidade de Aprendizagem baseada no paradigma da comunicação ALINE AGUIAR

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ma ponte só é verdadeiramente uma ponte, se alguém a atravessa. A frase, do escritor argentino Julio Cortázar, ilustra o que é a alfabetização, ao menos no Brasil. Atualmente, há aproximadamente 58 milhões de analfabetos funcionais no país. De acordo

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com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), dois milhões de crianças, ou 5% da população com faixa etária para estarem na escola (4 a 17 anos), não estão. Em setembro de 2017, uma pesquisa da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), responsável por fazer um panorama mundial da expectativa X realidade da

educação, mostrou que no Brasil, apesar de um aumento entre 2010 e 2015, apenas 65% da população têm acesso ao Ensino Médio. Entretanto, em idades avançadas (25 a 34 anos). Independente da porcentagem de pessoas com acesso à escola, a pergunta desta reportagem é outra: Que tipo de escola o país oferece à população? Qual o ensino dado a crianças e adolescentes?


JOSÉ PACHECO defende: “A escola são pessoas e as pessoas são seus valores. O que se deve exigir é o direito à educação”

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Em 2017, uma escola com mensaCinco anos depois, a proposta sai cola foram horríveis, cheios de histólidade de R$ 8 mil e taxa anual de mais do papel. Em maio de 2018 foi inau- rias de frustrações, medos e bullying”, R$ 6 mil foi aberta em São Paulo. Havia gurado o Centro de Aprendizagem do conta José Pacheco. fila de espera com 2 mil pessoas para Paranoá (CAP), destinado à crianças Ele enfatiza a importância do inteo processo seletivo. Claramente, a fi- até o 5º ano do ensino fundamental. resse no processo. Como exemplo, cita lha do motorista de ônibus não estava Mais 12 unidades já estão em proces- o caso de uma mulher que achava estar nessa lista. E a criança que frequentar so de criação. Trata-se de um novo sendo traída pelo marido, mas que não essa escola dificilmente chegará nela conceito de escola, embasado no conseguia ler os bilhetes encontrados em um transporte coletiem bolsos de calças. vo. Mas o que isso tem a Ela aprendeu a ler com “De tanto fazermos a experiência ver com educação? Pacheco, confirmou a Em 1980, os escritores suspeita e pediu o dida desigualdade e o aprendizado da Babette Harper, Claudius vórcio. Ainda assim, dependência, acabamos por perder nossa o professor avisa que Ceccon, Miguel Darcy de Oliveira e Rosiska Darcy não vem capacidade de trabalhar, de criar, de viver odainteresse de Oliveira, sob apresencriança. “A criantação de Paulo Freire, lança não estuda sobre em comunidade” çaram o livro: “Cuidado, o que tem interesse; Trecho do livro Cuidado, Escola! Vários autores, 1980 Escola!”. Nele, os autores ela tem interesse pelo expõem críticas ao modelo de ensino paradigma da comunicação. “Onde que estuda”. Cabe aos professores ou vigente, que após poucas mudanças aprendemos uns com os outros, me- tutores, como são chamados em alno decorrer dos anos, reproduz mui- diatizados pelo mundo. Aprendemos gumas dessas “novas escolas”, instigar tos problemas já conhecidos, até os na intersubjetividade, mediatizados esse interesse. dias de hoje. por um objeto, no contexto de uma A Escola da Árvore, localizada no Pensadores como Jean Piaget comunidade”, diz José Pacheco. Núcleo Rural do Córrego do Urubu, em (1896 – 1980), Humberto MaturaPara o mais conhecido educador Brasília (DF), também foge ao padrão na (1928 -), Maria Montessori (1870 brasileiro, Paulo Freire (1921-1997), a clássico. Como nas Comunidades de – 1952), Emmi Pikler (1902 – 1984), instituição escolar é um lugar onde Aprendizagem, os alunos são coloVygotsky (1896 – 1934) e Frenet (1816 os professores carregam a responsa- cados juntos, mesmo com diferentes – 1900) estudaram a partir de suas áre- bilidade de depositar conhecimento idades. O trabalho em sala é feito por as de conhecimento, o ensino. Não a em um aluno que tem o dever de se projetos, a partir do nível de desenvolpedagogia em si, mas a forma como colocar passivo e dócil para receber vimento dos estudantes. uma criança é capaz de absorver co- o aprendizado. A isso ele dá o nome Um dos projetos, contam Nathália nhecimento. Descobriram que não o de “educação bancária”. No clássico Campos e Letícia Araújo, sócias na Esfariam sentados em uma cadeira dura, Pedadogia do Oprimido, lançado em cola, surgiu de um borboletário. Para olhando para a nuca de seus colegas e 1974, Freire sentencia: a escola mata a fazê-lo, as crianças teriam que passar sendo obrigados a decorar a tabuada curiosidade dos estudantes. O ideal, por todas as etapas, partindo da fisioloou a gramática. Entretanto, desde seus constata, é o contrário: inquietá-los. gia da borboleta. Para isto, decidiram ir momentos de pesquisa (vide suas daNa Comunitas de nascimento e morte), os méto- dade de Aprendidos educacionais pouco mudaram. zagem, defendiSão esses pensadores que da por Pacheco, despertaram a curiosidade e a o conhecimento necessidade de alguns para fazer nasce da comunidiferente, somados à insatisfação dade na qual está de mães e pais com a sala de aula inserido o aluno, convencional. o que também Parte dos educadores interes- exige adaptação sados nesse novo fazer na escola dos educadores. se reuniu em 2013 na Conferência Para aprender, de Novas Alternativas de Educação é preciso desa(Conane). A partir do evento, alguns prender. “Para se professores da Secretaria de Edu- tornar professor, cação do Distrito Federal iniciaram há três razões: Neum projeto e chamaram o educador cessidade de um português José Pacheco (criador da emprego, amor Escola da Ponte, localizada no Porto, ou vingança. Eu e do Projeto Ancora, em São Paulo) me tornei por vinpara ajudá-los a tentar algo dife- gança, pois meus rente para os estudantes de Brasília. momentos na es-


ao zoológico e fizeram um bazar para custear a visita. No processo, aprendem matemática, fracasso e conquista. E valores maiores do que os monetários, acima de tudo. Se o lugar do professor é o de transmitir conhecimento e o do aluno de absorver, a questão do interesse é prejudicada. Preocupados com o modelo escolar, Guilherme e Luiza Menezes resolveram educar as filhas em casa. “Crianças que são criadas com raiva de estudar, vão se transformar em pessoas que não querem adquirir conhecimento”, diz Guilherme. Eles são pais de Helena, 4 anos, e de Ana Beatriz, com apenas 5 meses. Segundo eles, quando Helena está nas aulas complementares de equitação, inglês ou natação, a diferença entre ela e uma criança escolarizada é nítida. Não por ser mais inteligente, mas por prestar mais atenção. “Ela está sendo criada para exercer sua criatividade, sua inventividade”, diz Luiza. Eles acrescentam que veem a escola como uma empresa que serve às grandes corporações, direta ou indiretamente. As empresas têm interesse nas crianças e as escolas, por sua vez, têm interesse nas empresas. Neste triângulo, o estudante ganha o papel de ser treinado para servir ao corporativismo. O aluno e a pedagogia

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Para o psicólogo Léo Fraiman, as crianças passam hoje pela Síndrome do Imperador, gerada pelo narcisismo, medo e insegurança. Dos pais. Para Fraiman, os pais têm medo da frustração dos filhos e transferem à escola o dever de educá-los. Léo diz que os pais veem os filhos como seres que devem ser felizes “a qualquer custo”. Ou seja, seres que não podem se frustrar. “Tem dois erros. 1) Eu, pai, vou fazer você, criança, feliz, o que é impossível; 2) eu, pai, não sei o que é felicidade; e aí, o pai ou a mãe humilham a criança. Porque enquanto eles não estão deixando a criança crescer, eles estão imputando, estão colocando essa criança no papel de babaca, de fraco. Porque o oposto de autonomia é a apatia”. Para a pedagoga Juliana Garcez, o psicólogo tem certa razão. Ela vê, como mãe e professora, que a educação se dá na interação social, que

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AO DIVIDIR o lanche e a mesa, aprendese cidadania e respeito, essenciais para um indivíduo viver em sociedade

começa em casa e não na escola. “Um dos grandes problemas é que os pais não conhecem os filhos, hoje. Eles querem uma escola que faça o papel de pais. Cada qual tem sua responsabilidade”. Ela dá aula na escola Terra Brasil, em Atibaia (SP). Segundo Juliana, sua sala de aula tem crianças com as mais diversas características e não é fácil educar. “Na minha sala ninguém senta olhando pra nuca de ninguém. A relação que eles têm é de aprendizado. Inclusive os problemas pelos quais passam. Eles são incentivados por mim a resolverem suas insatisfações e desentendimentos. Isso também faz parte da alfabetização”. Alice Gwerk tem 10 anos e frequentava escolas tradicionais. Entretanto, sua mãe, Karina Gwerk, percebia que a criança não estava desenvolvendo suas potencialidades da forma ideal. Escolheu a Escola da Árvore e desde que foi matriculada lá, considera que a filha é outra pessoa. “Ela tem mais energia, adora vir pra cá e percebo que ela está abrindo a mente para coisas que não conhecia. Ela tem um professor passando pela transição da transexualidade. E levou isso numa boa”. Educação aos olhos da lei A CAP teve respaldo da Coordenação Regional do Paranoá e de seu coordenador, Isac Castro. Isac garante que não há divergência entre o que a Comunidade de Aprendizagem propõe e a Lei de Diretrizes e Bases 9394

(LDB), que regulamenta o sistema educacional público e privado. Os três primeiros tópicos do Art 3º desta lei dizem que deve haver igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas. Sendo assim, o professor tem o dever e o direito, a partir da vivência dentro do espaço de aprendizado, de propor novas possibilidades, contanto que o nível de desenvolvimento do indivíduo esteja sendo alcançado. A Escola da Árvore funciona há cinco anos e tenta cumprir todas essas normas em um novo formato, mas não tem sido fácil. O projeto entregue à Secretaria de Educação do DF não foi aprovado. “A LDB é clara e muito progressista. Nós estamos em sintonia com ela, mas quando chega na secretaria, eles querem exigir um esquema quadradinho, que é exatamente do que estamos fugindo. Para começar, o projeto que enviamos tem caráter político-pedagógico. Só isso já é barrado pela secretaria, pois escolas particulares não podem ter projeto político”, lamenta Nathália. Em resposta, a Secretaria de Educação do Distrito Federal diz que apoia e incentiva propostas inovadoras que visem e favoreçam as aprendizagens dos estudantes, bem como o seu desenvolvimento como sujeito integral e, a exemplo, cita a Escola Classe Comunidade de Aprendizagem do Paranoá (CAP). Sobre a Escola da Árvore, a Secretaria de Educação não se pronunciou.


Para Marina Teotonio, professora e uma das idealizadoras da CAP, está na hora de reformar a educação, para realmente permitir um novo modelo de construção do conhecimento. “Se sabemos que os alunos estão saindo da escola sem aprendizado e temos capacidade, como professores, de mudar isso, amparados pela lei, é isso que deve ser feito”, cobra.

HOMESCHOOLING, UM TEMA CONTROVERSO

As crianças do amanhã

Homeschooling ou educação escolar em casa, em tradução livre, é uma modalidade na qual os pais também são os tutores educacionais de seus filhos, mas a grade curricular permanece igual a uma sala de aula. Para cumprir as exigências da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), as crianças são matriculadas em supletivos, para conseguirem certificados ou em instituições a distância, como a Clonlara School, que presta apoio e acompanhamento às famílias e está em diversos países, como Estados Unidos, Bélgica, Canadá, Chile e Brasil, através do Programa de Aprendizagem Individual, que analisa o desenvolvimento das crianças a distância, inclusive com aplicação de provas. O Procurador do Banco Central, Alexandre Magno, entrou em contato com o homeschooling pela primeira vez quando ainda não tinha filhos e escreveu um artigo de nove páginas a partir de uma história de uma família que estava sendo processada pelo Estado, no interior de Minas Gerais, em 2008, por ter tirado seus filhos do colégio. No final de 2010, descobriu existir em Minas Gerais a Associação Nacional de Educação Domiciliar, da qual é Diretor Jurídico até hoje. A associação tinha uma estimativa de que em dez anos, 800 famílias aderissem ao ensino domiciliar. Atualmente, são aproximadamente 40 milhões de alunos na educação básica. Para Alexandre, no longo prazo é possível considerar que aproximadamente 400 mil crianças sejam educadas em casa. Isto é 1% do total de estudantes. “É relativamente pouco, mas em proporções absolutas isso é muito importante”, argumenta. De acordo com famílias entrevistadas, o principal motivo para tirar seus filhos de dentro do ambiente escolar é a forma como estes espaços lidam com a individualidade. Para os pais/tutores, seus filhos não estavam sendo vistos dentro da sala de aula e os ensinamentos dos pais dentro de casa estavam sendo confrontados com o que as escolas estavam oferecendo. A regularização para esse tipo de ensino é mais controversa e está sendo estudada pelo governo. Reuniões na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) acontecem frequentemente para garantir as autorizações necessárias para a educação domiciliar.

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Para José Pacheco, embora o mundo evolua para a cryptomoeda e inteligência artificial, os reguladores da educação, como ministérios e secretarias, estão parados no tempo. “Estão a preparar jovens para o século XIX, com um discurso do século XX, vivendo no século XXI. Este é o drama. Resultado? Homeschooling, baixas taxas de sucesso... Índice de proficiência abaixo de 10%. No Maranhão, a cada 100 jovens que saem do Ensino Médio, apenas 1 tem conhecimentos de português e matemática”. Os novos modelos de educação buscam exatamente formar seres humanos para o mundo, o que passa também por cultivar uma horta ou mesmo meditar na escola. Ajudar os meninos e as meninas a entender que é no convívio e na relação que o aprendizado acontece. Ao dividirem o espaço escolar com indivíduos de diferentes classes sociais, culturas, credos, é possível abrir a visão para o mundo que os rodeia. Ao dividirem o lápis, estarão aprendendo a empatia, além da matemática. Ao serem ensinados a organizar e limpar o espaço onde convivem, se tornarão adultos conscientes do seu papel e da interdependência em tudo que os rodeia. O que a reforma educacional desses pedagogos, professores e entusiastas da educação pretende é tirar a palavra “grade” do currículo. Substituir a palavra “ensino” por “aprendizado”, entender o indivíduo como parte do todo e não como ser individual. Esse é o princípio. E entre escola e governo, deveria haver um fim comum: formar seres humanos para continuar o progresso de si mesmos e das comunidades onde vivem.

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EMANOEL VIROU estudante da UnB depois de cursar o Galt, preparatório gratuito para vestibular

DO ZERO AO SONHO Cursinhos pré-vestibulares gratuitos alavancam aprovação de estudantes de baixa renda nas universidades

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m 2014, no calor tropical da pequena e paradisíaca cidade de Fortim, a 200 quilômetros de Fortaleza (CE), o estudante Emanoel Ferreira, então com 22 anos, havia tomado uma decisão que mudaria sua vida pra sempre. Pegou suas coisas – um bocado de

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roupas simples e sapatos velhos – para rumar em direção à Brasília, a capital do Brasil e dos sonhos eternizados nas canções de Renato Russo. Emanoel só tinha em mente o pequeno foguete artesanal que ainda guardava na pequenina casa de tijolos à mostra. Via naquele brinquedo seu novo objetivo: cursar engenha-

BRUNO TREZENA

ria aeroespacial na Universidade de Brasília (UnB). As dificuldades? Todas aquelas reservadas a um jovem pobre do interior do Nordeste que deixava tudo pra trás em direção a um grande centro urbano. “Foi bem triste. Minha mãe era um choro só na soleira de casa”, recorda o jovem sob o sol escaldante da


O fundador do Galt acabou apadrinhando o jovem de Fortim. “Teve um dia que ele quase desmaiou no curso. Estava com fome, cansado, virava noites estudando e sem dormir. Foi aí que nos chamou a atenção do quanto ele precisava de ajuda mais direta, personalizada. Alguns professores passaram a custear suas passagens de ônibus e outras coisas para que pudesse se manter no curso”, lembra. E deu certo. Emanoel hoje ocupa uma das 40 cadeiras do curso de engenharia aeroespacial da UnB, e recebe uma bolsa-permanência no valor de R$ 900. O dinheiro é usado para pagar o quarto que divide numa república, no Gama, a passagem de ônibus e alimentação diária. “Eu olho pros meus colegas de curso, vejo os prédios da UnB e fico meio bobo. É realizador, né? Depois

de três anos e toda a ajuda do Galt, eu finalmente alcancei o sonho daquele garotinho do interior do Ceará que tinha um foguete de plástico.” Realidade dura e horizonte em risco A vitória do jovem cearense é exceção diante da atual situação do Brasil no campo educacional, em que pelo menos 10 milhões de jovens estão sem estudar (principalmente os de curso superior), de acordo com os últimos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), através da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). Em Brasília, o estudo Perfil da Juventude do Governo de Brasília, divulgado em 2017, revelou que 130 mil jovens estão nessas condições. O doutor em sociologia pela Universidade Federal do Ceará e mestre em Ciência Política da UnB,

O IMPACTO SOCIAL DE TER CURSO SUPERIOR As mudanças na desigualdade social com o ensino são gigantescas. Um relatório da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) aponta que, se todas as crianças tivessem acesso igualitário à educação, nos próximos 40 anos, a renda per capita do país aumentaria em torno de 23%. O estudo vai adiante: se todas as mulheres tivessem acesso à educação básica, os casamentos precoces e a mortalidade infantil poderiam diminuir em um sexto, e a mortalidade materna em dois terços. Quanto ao curso superior, há impacto direto na busca por soluções para os problemas ambientais, por exemplo. Pessoas com maior nível de escolaridade têm maior probabilidade de usar energia e água de formas mais eficientes e reciclar o lixo doméstico. Segundo a Unesco, em 29 países desenvolvidos, 25% das pessoas com nível educacional menor do que o secundário expressaram preocupação com o meio ambiente, em comparação aos 37% das pessoas com ensino secundário e 46% com ensino superior. Políticas públicas de incentivo são caminho O Mapa do Ensino Superior no Brasil de 2017, divulgado pelo Sindicato das Universidades Privadas de São Paulo, mostra que aumentou a proporção de alunos concluintes no ensino superior privado nas faixas de renda inferiores a três salários mínimos e de jovens pertencentes as classes C e D na comparação com o estudo anterior. Uma das causas é o Fies e o crescimento econômico que houve na última década (até 2015). A gestora do curso Galt, Bruna Lisboa, enfatiza a necessidade do trabalho voluntário no acesso ao curso superior. “Infelizmente, a educação pública, de forma geral, não se compara com a educação privada, em termos de preparação para as provas de ingresso ao ensino superior, refletindo no acesso desses alunos a faculdades e universidades. Por isso que é importante o trabalho voluntário de cursos, como o nosso.”

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cidade candanga. “A gente não tinha nada. Não tinha condições de tentar um vestibular porque nem vestibular eu sabia exatamente o que era. O professor da escola havia falado do Enem, mas só fez menção por alto. Havia estudado minha vida inteira em colégio público, mas não sabia como chegar onde eu queria.” Após o desembarque em Brasília, o inferno começaria logo em seguida. Durante dois anos, Emanoel viveu na pele o bordão popular do "comer o pão que o diabo amassou". Sem dinheiro e vivendo de favor numa casa em Samambaia, o garoto precisou trabalhar fazendo bicos como ajudante de pedreiro, carregador de carne em açougue e lavador de louça em restaurantes. O esforço feito num dos ofícios chegou a machucar a coluna, o que o deixou sem poder trabalhar por um tempo. “Eu tinha que estudar para o vestibular e ao mesmo tempo ganhar um dinheiro. Mas era muito pouco, cerca de R$ 200 por mês. Ao trabalhar no açougue tive uma queda e o pedaço de carne caiu em cima de mim, me machucando. Dali em diante tudo piorou na questão financeira. Então tentava estudar ao máximo no tempo livre. Fiz isso por um ano, mas em vão. Não passei.” A tristeza logo bateu e a vontade de desistir também, mas o deslumbre do sucesso veio no conselho de uma amiga que havia conhecido em Brasília. “Ela havia me falado do curso pré-vestibular Galt, que dava aulas preparatórias para alunos carentes e estava em fase de processo seletivo.” Emanoel foi, fez a prova para entrar no cursinho e passou. E foi ali que, definitivamente, tudo mudou. Primeiro Emanoel conheceu Rubenilson Cerqueira, o idealizador do Galt, e logo se tornaram amigos. “O Emanoel era um grande rapaz nas nossas fileiras de estudo. Trabalhador, persistente, tinha passado por tudo que poderia arremessá-lo para longe de seu sonho, mas conseguiu chegar lá. É essa realidade que a gente tenta construir no curso. É dar a possibilidade da pessoa que não tem condições de custear um curso pré-vestibular privado se preparar tão bem quanto”, conta Rubenilson.


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Erle Cavalcante Mesquita, aponta que esse segmento social está mais vulnerável ao "canto da sereia" sobre sensação de poder e do “ganho fácil” do mundo do crime. “Apesar de não poder fazer uma correlação direta dos que estão fora das salas de aula e a criminalidade, não é difícil fazer essa análise de que há um risco, sim.” Ainda segundo Erle, esse cenário pode piorar com as atuais políticas reformistas do governo Temer. “O Teto de Gastos constitucional impede maiores investimentos em educação, por exemplo, por 20 anos. Como chegar até esses jovens sem políticas de inclusão ou de incentivo ao curso superior?” A posição do professor é corroborada com a do coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara. “A diminuição de investimentos na educação pública é um problema porque o Estado também precisa garantir o acesso à educação. Se não for no preparatório pela escola pública, ao menos na manutenção dos programas sociais de incentivo à permanência desses alunos no ensino superior privado, como Fies e ProUni.” As regiões administrativas de Fercal (29%), Itapoã (27%) e Recanto das Emas (27%) lideram o ranking das cidades-satélite com maior número de jovens que nem estudam e nem trabalham. Segundo o Perfil da Juventude, a maioria dos chamados “nem-nem” é negra (23%) e possuem entre 18 e 24. O mesmo ocorre no Centro-Oeste, tendo pelo menos 19% da população sem acesso ao estudo de uma forma geral. No Brasil, o número ganha uma dimensão assombrosa: 10 milhões de jovens. “Este é o fantasma recorrente da evasão e do abandono escolar rondando as periferias, fatores já comprovados de estímulo à violência e à criminalidade. Precisamos retomar a capacidade de fazer com que os nossos jovens sonhem com uma vida melhor. Onde há sonhos, há esperança. E onde há esperança a vida sempre terá a última palavra”, finaliza Erle.

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'A garota do nome social' O cabelo loiro escorrido entre os ombros balança ao vento da W3 norte como um balé. O corpo escultural chama a atenção dos motoristas e revela logo a bela Melissa Massayuri, de 28 anos, uma amazonense que reside em Brasília há dois. A jovem transexual chegou na cidade certa de que queria mudar seu destino, talhado na dor do preconceito e das escolhas feitas nos últimos tempos. “Saí de casa muito nova para viver minha transexualidade sem conflito direto com minha família, o que foi muito difícil para mim. Mas no meio do caminho acabei fazendo programas sexuais e levando isso como meio de vida, porque meus

contatos mais íntimos, as amizades, eram no mundo da prostituição. E como estava longe de casa e frágil emocionalmente, aconteceu. Um tempo atrás isso bateu na minha cabeça que uma hora tudo ia acabar. Eu não podia continuar me prostituindo, sem uma faculdade, sem um trabalho fixo e uma renda que me atendesse na velhice.” Foi aí que Melissa resolveu ingressar em uma universidade. “O jeito foi recorrer aos estudos em apostilas on-line e cursos gratuitos que a gente encontra na internet, mas tive grande ajuda voluntária de uma professora de matemática, mãe de uma amiga. Passava meus dias estudando entre um cliente e outro, fazendo exercícios ligados ao

“É essa realidade que a gente tenta construir no curso. É dar a possibilidade da pessoa que não tem condições de custear um curso pré-vestibular privado se preparar tão bem quanto" Rubenilson Cerqueira, criador do Galt Vestibular”


BRUNA, GESTORA do Galt Vestibular, aponta que a iniciativa é importante para a desigualdade nas universidades

Do estacionamento para a UnB Se você passasse por José Mário Silva dos Santos, de 54 anos, num dos estacionamentos do Plano Piloto, provavelmente acharia que o maranhense era apenas um flanelinha a tentar ganhar alguns trocados. Mas olhando mais a fundo sua trajetória de vida, José Mário impressiona qualquer biografia famosa. Depois de décadas sem estudar e passar pelas cidades de Recife e Rio de Janeiro tentando sobreviver e ganhar a

GDF TAMBÉM TEM PREPARATÓRIO GRATUITO PARA VESTIBULAR Há três anos, os estudantes carentes de Brasília também podem contar com a ajuda do programa #BoraVencer, com “aulões” gratuitos focando o Enem e o vestibular. A criação do projeto veio a partir de uma demanda da Conferência Distrital de Juventude de 2015 para o Governo de Brasília, que diagnosticou a falta de políticas públicas locais para essa demanda. Desde então, ao menos 700 alunos já conseguiram aprovação em faculdades públicas do DF e mais de 10 mil estudantes tiveram essa ajudinha extra com aula intensiva. Só em 2017, o programa representou 8% dos aprovados na UnB. Os encontros são feitos geralmente em locais de grande aporte de público, como o Centro de Convenções Ulisses Guimarães, no Plano Piloto.

A ESTUDANTE transexual, que se prostituía, virou militante de Direitos Humanos depois de ingressar no curso de Direito

vida, o vigia de estacionamento cumpre hoje jornada acadêmica na UnB, no curso de Gestão Ambiental. “É uma felicidade imensa olhar pra trás, ver tudo que passei, e me ver na UnB.” Vivendo há 9 anos numa casa de Planaltina emprestada por um amigo, José conta que resolveu provar a si mesmo que poderia voltar a estudar. “Via livros e cadernos jogados por aí, às vezes no lixo, e pegava pra ler. Tinha curiosidade. Tinha vontade de voltar a me desenvolver intelectualmente.” O jeito foi tomar coragem e pedir uma vaga num cursinho da cidade, o MFE. “Cheguei e disse que queria estudar para passar na UnB. Óbvio que não me levaram a sério, mas acabaram me dando pouco mais de um mês de bolsa.” O primeiro resultado foi uma boa classificação para o curso de Geografia numa universidade do Goiás. Os professores notaram logo o esforço do maranhense e decidiram estender a bolsa de estudos. O resultado veio em 2014, quando se classificou entre os 4 mil aprovados no vestibular da UnB. “O trabalho do cursinho foi fundamental para que eu conseguisse. Eu queria me reintegrar ou por meio do vestibular ou por meio de um concurso público. Tenho a sensação de dever cumprido.”

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Enem. Sempre focada.” O alvo da jovem era Direito, um dos cursos mais concorridos do país em qualquer universidade pública. “Era tudo ou nada”, recorda. O resultado brilhou na tela do computador meses depois, quando chegou o resultado do Enem. Ela optou por uma faculdade particular da cidade, onde possui bolsa de 50% pelo Fies. Foi aí que Melissa havia percebido que a vida começava a mudar drasticamente. “Ao entrar no curso superior, vi que tinha muitos direitos que não conhecia e comecei a aplicá-los no meu dia a dia.” Assim veio o primeiro uso de nome social na faculdade. “A universidade não tinha a prática de adequar a identificação de uma trans ao nome social. Comigo as coisas começaram a mudar. Expliquei as legislações e fiz os pedidos formais para o uso dele. E deu certo! Não houve resistência. É como se a minha entrada na faculdade também transformasse o espaço. É enriquecedor.” Melissa fez o primeiro trabalho na área advocatícia como estagiária no escritório da ONU para Direitos Humanos. Foi ali que ela se aproximou da militância política. “Eu me apaixonei pelo mundo de conhecimento e informação que se abriu para mim. Na ONU pude entender que há muito o que se fazer neste campo, principalmente com a população LGBT no que tange seus direitos mais simples.”


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CAMINHOS DE RESISTÊNCIA DA POPULAÇÃO NEGRA Projeto 'Eu não sou seu alvo', criado por artistas visuais de Brasília, tem como objetivo dar visibilidade à luta da população negra por meio da arte THAMARA ABREU 22


COLETIVO UNIDO nas colagens dos lambes na Asa Sul

julgado por quem você é e não tem como deixar de ser negro,” diz Thaíza. Ser julgado por ser quem você é dói muito, deixa sequelas que são difíceis de esquecer. “A situação que mais me machucou foi quando eu entrei numa loja de departamentos e o segurança da loja começou a me seguir e falar no rádio. Ele me seguia muito, até que eu fiquei desesperada, comecei a chorar e não conseguia sair da loja. Fiquei num canto e o segurança em cima de mim, como se fosse avançar a qualquer momento”, conta a estudante que achou que nunca superaria esse caso, mesmo com a ajuda da família. Thaíza, como mulher negra, tem de enfrentar o racismo todos os dias, os olhares discriminatórios, as ações de pessoas racistas. “Meu enfrentamento é enfrentar diariamente, tanto com palavras quanto com atos. A gente está numa fase de visibilidade e, ao mesmo tempo, somos jogados para escanteio. Resistir é a missão”, completa a estudante. A ideia do “Eu não sou seu alvo” surgiu exatamente dessa necessidade de um enfrentamento com vários recortes. “A possibilidade de fazer algo sobre, através da arte”, diz Guilherme. “A ideia foi não abordar um recorte só, foi abordar um geral de tudo que esse corpo sofre, desde o negro LGBT, a mulher negra, o homem negro e a gente está transitando nesse sistema, inclusive, ” completa Luiz. O enfrentamento é real e incomoda, isso é um fato. “Antes de começar a colar os lambes desse projeto, eu fiz

“Você ser julgado por quem você é, é muito doloroso” Thaiza Antero, 23 anos, estudante de pedagogia

dois lambes, um do Martin Luther King e outro da Ângela Davis. Colei na Universidade de Brasília (UnB) e em Águas Claras também. Os de Águas Claras foram arrancados por alguém e você já vê que isso é um enfrentamento e uma resistência das pessoas que fazem o racismo, atuam dentro do racismo. A reação delas é essa quando uma verdade assim é posta na frente delas, porque é um pedaço de papel. Com a gente é diferente, sabe?”, diz Guilherme sobre como o enfrentamento o incomoda. Estereótipos O jeito de um negro se vestir, o lugar onde mora, o local de trabalho, onde estuda também geram situações de enfrentamento e resistência. Nádia Costa, de 21 anos, estudante de Serviço Social, diz o quanto ser uma negra classe média incomoda. “Eu moro no Cruzeiro, que é um bairro de classe média, e as pessoas ficam muito surpresas quando eu digo que moro lá”, diz. Dados da Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílio (Pdad) revelam que Ceilândia, Itapoã, Paranoá, Recanto das Emas, Varjão, São Sebastião, Estrutural e Fercal são as regiões administrativas com maior número populacional de negros (71,05% no total), enquanto no Plano Piloto,

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U

ma ideia surgida no bar foi o pontapé inicial de uma dupla para fazer mais pela resistência do seu povo. Luiz Henrique Ferreira, de 21 anos, e Guilherme Couto, de 22 anos, tiveram a ideia de criar um projeto a partir do que a população negra sofre diariamente. Segundo Luiz, todo projeto nasce de um incômodo que já existe e foi a partir disso que surgiu a ideia do “Eu não sou seu alvo”. “Surgiu desse incômodo que a gente tem, desse corpo negro que sempre é alvo de opressão, de violência e que está sempre exposto. Um corpo vulnerável a tudo: à opressão policial, ao racismo, ao machismo, ” explica Luiz. Atualmente, de cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. De acordo com o Atlas da Violência, de 2017, 23,5% dos negros possuem maiores chances de serem assassinados em relação a brasileiros de outras raças. Outro dado revela que a mortalidade de mulheres não-negras caiu 7,4%, entre 2005 e 2015 (ano em que o Atlas foi publicado), enquanto entre mulheres negras o índice subiu 22%. No Brasil, o racismo é “estrutural e institucionalizado” e “permeia todas as áreas da vida”. Essa conclusão foi feita pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 2015, na publicação de seu informe sobre a situação da discriminação racial no país. O racismo, no Brasil, ao mesmo tempo que é explícito, ele também é implícito. Aparece de forma sutil, como uma pergunta preconceituosa em tom de brincadeira, ou de forma rude, como uma agressão física. Todos os dias um negro é parado por policiais que dizem ter visto “uma atitude suspeita”. Todos os dias uma negra é hipersexualizada, tem seu cabelo como piada e caracterizado como ruim. Todos os dias um negro é bandido, pessoas trocam de calçada ao se deparar com um negro na rua e muita gente ainda insiste em dizer que o racismo não existe. A estudante de pedagogia, Thaíza Antero, de 23 anos, fala que o racismo existe e dói, sim. “Você é

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Lagos Sul e Norte, Jardim Botânico, Sudoeste e Park Way, a maioria dos habitantes são brancos (67,19%). Ainda segundo dados da Pdad, a proporção de negros em regiões de alta renda aumentou de 27,3%, em 2011, para 32,81% em 2015. E mesmo com esse aumento, as regiões de menor poder aquisitivo continuam como locais de grande concentração da população negra. Essa desigualdade é visível também na educação, no mercado de trabalho, nos espaços de decisões e deliberações de políticas públicas. Dados da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan) informam que o índice de quem tinha nível superior, especialização, mestrado ou doutorado era de 15,32% para negros e de 33,87% para brancos, em 2011. Os dados da Pdad/DF, de 2015, permitem observar a diferença existente na performance da escolaridade de negros e não-negros. Enquanto 27,18% dos negros têm apenas o primeiro grau

LAMBES COLADOS nas paredes da Universidade de Brasília

mo”, diz. “O povo negro não é inferior ao não-negro, a questão é que nós vivenciamos uma discriminação, uma dificuldade de acessar os espaços, sejam eles educacionais, sejam eles profissionais, muito por conta do racismo”, completa o subsecretário. É importante que a “Usar a rua como espaço para fazer população negra seja inserida em todos os espaços, assim como os não-negros esse manifesto, pois é na rua que a são inseridos, e para isso gente sofre essa opressão também” é essencial que todos os Luiz Henrique Ferreira, 21 anos, estudante de artes visuais órgãos façam sua parte. “É fundamental que o esincompleto, entre os não-negros tado estabeleça ações afirmativas”, este percentual é menor, de 15,17%. diz. “Não só ações afirmativas, mas a Para o subsecretário de Igualda- conscientização da população. Edude Racial, Victor Nunes, a população cação, formação, capacitação sobre negra não é inferior na sociedade e, a temática étnico racial são fundasim, vulnerável. “A população negra mentais para que a gente consiga se encontra numa situação de maior alcançar uma mudança nesse olhar vulnerabilidade por causa do racis- do que é ser negro no Brasil”, conclui.

Ciberativismo A resistência que o povo negro carrega desde a época da escravidão se reflete até os dias de hoje de diferentes formas. O momento de lutar por igualdade, pelo fim do racismo, pelo fim dos genocídios da população negra tem sido agora. Está cada vez mais visível a luta do povo preto de várias formas: rodas de conversas, grupos nas redes sociais, espaços em Universidades para debater sobre temas raciais, livros com temas raciais ou debates sobre espaço de fala. A internet tem sido o principal aliado nesses enfrentamentos, um novo espaço de militância, onde jovens usam as ferramentas que têm para fazer a diferença e mostrar para outros jovens que eles não estão sozinhos e que podem, sim, melhorar sua realidade.

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“Seus mandatos têm dias contados, nossa luta não”

“Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”

Emicida, rapper

Marielle Franco, vereadora no Rio de Janeiro, foi assassinada em março de 2018

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cultura, educação. E o surgimento de blogs, canais no Youtube com temas para a negritude, também tem sido algo visto com mais frequência no mundo cibernético. Representatividade É importante para os negros terem uma representação em diferentes espaços, pois é incomum, ainda em 2018, ver atrizes negras como protagonistas, jornalistas negros, parlamentares negros. A diversidade do Brasil não é representada na mídia e, quando representada, traz sempre o mesmo estereótipo. A internet tem esse objetivo de dar visibilidade nas representações negras e nos assuntos relacionados a esta população. A youtuber Lorena Monique, conhecida como Neggata, diz que tem muito orgulho de ser militante, mesmo sendo algo complexo. “É complicado por conta das pessoas que discordam do meu ponto de vista e partem para a ignorância e discursos de ódio que vão me atingir de alguma forma”, comenta. “Mas, por outro lado é bom porque eu estou ali dando visibilidade para uma causa super importante”, completa. Atualmente, o canal da Neggata tem cerca de 40.722 inscritos e 1.158.157 de visualizações nos vídeos. A representatividade de negros em espaços, como televisão, internet e cinema não é importante apenas no seu conteúdo, mas também na da autoestima de uma população que já nasce com “desvantagens”. Muitos negros crescem se achando feios por ter uma boca carnuda, nariz grande, cabelo crespo e isso acontece porque as representações que existem são to-

CANAL NO Youtube da estudante Lorena Monique, com mais de 30.000 seguidores

talmente diferentes da realidade deles. Até um tempo atrás não era comum ver tratamentos para cuidar do cabelo crespo e tutoriais de maquiagem para pele negra. As irmãs Quézia Costa, de 25 anos e Queren Hapuque, de 22 anos, têm exatamente esse objetivo: elevar a autoestima da população negra através da estética. Juntas, abriram o salão Nega do Pixain, que tem como foco cuidar da beleza negra. “A ideia de abrir o salão surgiu por conta da falta de salões afros em Brasília”, diz Quézia. “As pessoas ao nosso redor não tinham muitas opções de tratamento para o seu tipo de cabelo, o afro, cacheado”, finaliza a trancista. Com o intuito de ir além e emponderar não só a população negra onde moram, as irmãs criaram um canal no Youtube, onde dão dicas de beleza direcionadas aos negros e negras. O canal Negas do Pixain já tem 2.249 inscritos e 57.008 visualizações em seus vídeos.

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De acordo com dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 95,4 milhões de brasileiros têm acesso à internet, ou seja, mais da metade da população. O intenso tráfego de informações nos canais de Youtube, blogs, sites e redes sociais, como Facebook e Twitter, faz com que as pessoas tenham um acesso mais intenso a variados assuntos. Porém, a população negra aparece mais uma vez no número da desigualdade. Em 2014, o IBGE produziu uma série de pesquisas e a partir delas foi declarado que da população com mais de 10 anos que havia acessado a internet nos últimos três meses antes da pesquisa, 61,5% eram brancos, enquanto para os negros esse percentual era de apenas 39,5%. Mesmo sendo minoria na internet, as informações que são jogadas na rede chegam de alguma forma para essas pessoas com pouco acesso à internet. É nesse contexto que se encontra a militância virtual ou ciberativismo, que é o ativismo na internet usado por grupos politicamente motivados em busca de expandir informações e reivindicações com o objetivo de buscar apoio, debater e trocar informação, organizar e mobilizar indivíduos para ações, dentro e fora da rede. A representatividade negra cresceu na internet e se transformou numa ferramenta forte de empoderamento de negras e negros. Iniciativas que visam construir pontos positivos sobre a negritude são comuns de se ver agora. Comunicadores negros trazem pautas, como genocídio da juventude negra, racismo,

“A injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo o lugar”

“A educação é a arte mais poderosa para mudar o mundo”

Martin Luther King, ativista político americano, assassinado em abril de 1968

Nelson Mandela, ex-presidente da África do Sul, morto em dezembro de 2015 25


ESTE LUGAR TAMBÉM É MEU redemoinho . ano 09 . número 14

Negros precisam enfrentar a discriminação ao ocupar espaços na escalada para as camadas mais altas da pirâmide social. Produto do nosso legado histórico, um dos obstáculos para resolver o problema do racismo é a negação por muitos de que ele existe ADELAIR ALMEIDA

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E

la vai ao restaurante, senta-se sozinha e pega o cardápio. Após decidir o que pedir, chama o garçom. Então veio a pergunta: “você já viu o preço desse prato?”. Andréa Santos é negra, mora em Salvador (BA) e costuma questionar este tipo de abordagem, mas resolveu apenas responder que sim. Ela entendeu que o garçom, também negro, apenas reproduziu o que aprendeu ao longo da vida: “a imagem do belo, de quem tem condições financeiras, de quem tem condições de consumo e conhecimento, no imaginário, é branco. Preto é pobre”. “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza...”. O artigo 5º da Constituição


Democracia racial?

pressupõe o princípio da isonomia: todos têm os mesmos direitos. Mas a realidade e os números mostram que isto ainda está longe de ser experimentado pela população negra. Negros são maioria entre os mais pobres e também na população em geral, mas minoria entre as classes mais altas. E os que ascendem socialmente sofrem preconceito e são vistos com estranheza em locais de elite, ainda hegemonicamente branca. Contudo, apesar de haver uma longa caminhada adiante, as políticas públicas e outras ações afirmativas permitem vislumbrar um futuro favorável. Há uma crença em grande parte dos brasileiros de que vivemos em um país racialmente democrático. Kelly Quirino, doutora em comunicação

O problema é que esta valorização gerou para o mundo a falsa imagem de que no Brasil todas as raças são iguais, pois aqui não houve um apartheid institucionalizado. Kelly conta que, quando a ONU foi criada em 1945, os outros países não queriam reproduzir as atrocidades do nazi-fascismo e nos viram como modelo. “Onde não tem racismo? Brasil! Porque a gente exportou pro mundo o modelo da democracia racial”. O fim da escravidão não deu ao negro a possibilidade de ocupar seu espaço na sociedade. Além de não ter acesso à educação, ele não teve direito à terra. Theodoro, coautor do livro “As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anos após a abolição”, afirma que o discurso oficial do rei de Portugal para os senhores proprietários de terras era o seguinte: "Dê para os homens bons, mas que não sejam homens negros”. E o crescimento das cidades e das indústrias também não colaborou. “A ideologia do branqueamento fez com que você trouxesse de fora os imigrantes pra ocupar os espaços nas indústrias, e o negro que era escravo passou a ser informal”. A dificuldade de o negro ascender socialmente e o fato de ser discriminado nos espaços ocupados por maioria branca são frutos dessa desvantagem histórica. Marilaura Ferreira é professora de história e trabalha na Secretaria de Educação do Distrito Federal. Filha de médico negro, morou alguns anos em Minas Gerais, onde relata que foi vítima de preconceito quando alguém chamava uma pessoa da casa

Mário Theodoro, doutor em economia pela Universidade de Sorbonne, na França, diz que, para Gilberto Freyre, “aqui era uma sociedade multirracial, em que todo mundo convivia bem, era o paraíso das raças, e no futuro a gente ia ter uma mistura tão grande que seria uma raça superior porque teria o que tivesse de melhor de cada uma das três raças”. Isto não impediu o surgimento de teorias racialistas, que declaravam que negros eram degenerados. "(Havia) as teorias de Lombroso, que os negros são mais propensos a cometer criminalidades por causa da sua morfologia. E isso é muito forte. Com Nina Rodrigues, por exemplo, que era um professor de medicina em Salvador, ele vai atestar que o branco se misturar com o negro, os descendentes são “A gente não vai conseguir romper o racismo se degenenão fizer com que as pessoas brancas tenham rados”, relata Kelly. consciência dos seus privilégios” Para ela, Kelly Quirino, doutora em comunicação que atuou como tutora do Curso de Especializa- na porta e ela ia atender. “Uma vez ção em Políticas Públicas de Gênero aconteceu isso e aí eu gritei minha e Raça na Faculdade de Educação da mãe. Meu pai estava chegando de UnB, o que há de positivo em Casa carro do hospital. Ele saiu do carGrande e Senzala é o rompimento ro todo de branco, a pessoa levou com a radicalização de degenera- um susto, né? Uma casa enorme, ção “por que ele escolhe o mestiço de dois andares, uma casa bem e fala: o mestiço tem valor, o mestiço grande, meu pai entrando todo de é muito importante”. branco e com a maleta”.

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pela Universidade de Brasília (UnB), diz que isto se deve à forma como Gilberto Freyre, autor de Casa Grande e Senzala, explicou as relações entre brancos e negros durante a nossa colonização. “Ele interpretou de uma forma como se não tivesse tido violência. Interpretou de uma forma como se as relações fossem harmônicas, entendeu? Como se o português fosse benevolente porque o português estava disposto a transar, benevolente porque o português estava disposto a ter os negros de casa, tratava os negros de casa como, entre aspas, parte da família”, afirma Kelly. É uma fala repetida ainda hoje, quando ter o negro empregado doméstico comendo na mesma mesa é argumento utilizado para justificar ausência de racismo.


MÁRIO THEODORO acredita em um futuro melhor para a população negra

Situações A engenheira de alimentos Raquel Vilharva é negra e a filha dela é branca. A pergunta “você é babá?” é frequente quando está com a criança. “Quando eu tava de licença-maternidade com a Marina a gente ia muito ao parque de Águas Claras e as pessoas nunca confirmavam assim: ‘poxa sua filha...’. Não. ‘Ah! Você cuida dela? Você é babá dela?’. Eu falava assim: ‘não... é minha filha’. Isso já aconteceu aqui no meu prédio, em vários lugares”. Por causa do seu emprego na Agência de Promoção das Exportações Brasileiras e Investimentos (APEX), ela faz muitas viagens a serviço e conta que por diversas vezes foi parada em aeroportos e ouviu questionamentos que não foram feitos a outros passageiros. “Nós viajá-

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MESMO EM Salvador, uma cidade de maioria negra, Andréa Santos sofre racismo

KELLY QUIRINO diz que a autoestima da pessoa negra deve ser trabalhada desde a infância

vamos de executiva e aí, numa dessas E eu já observei muitas vezes que se viagens, a gente estava na fila e veio o meu cabelo tá solto aí é que pode um rapaz da companhia aérea e me acontecer mais”. perguntou pelos meus bilhetes e perOs números demonstram a granguntando: ‘a senhora vai viajar por de diferença de ganho salarial entre qual categoria?’ Eu falei ‘Executiva’. brancos e negros. O IPEA - Instituto E ele pegou o bilhete, ficou lendo, e de Pesquisa Econômica Aplicada - reele olhava pra mim, ele olhava pra o alizou um estudo chamado “O Retrato bilhete, sem “Tem gente com discurso idiota: ‘se eu for acreditar. E aí o meu coatendido por um médico cotista eu não lega pegou o bilhete e quero ser atendido’. Como se a cota fosse disse ‘rapaz’ para sair. Ninguém sai por cotas” e botou o Mário Theodoro, doutor em economia dedinho em cima da palavra ‘Business. Business’”. Raquel foi das desigualdades de gênero e raça”, a única pessoa questionada na fila. O no qual disponibiliza informações socolega ficou mais indignado que ela, bre as desigualdades de gênero e raça que já está “acostumada” com este no Brasil de 1995 a 2015. Os indicadotipo de situação. “Sempre acontece al- res são do IBGE, o Instituto Brasileiro guma coisa comigo de me pararem... de Geografia e Estatística, fornecidos na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). O gráfico de rendimento médio mensal mostra a renda de brancos e negros, de 1995 a 2015. Mesmo o rendimento das mulheres negras sendo o que mais cresceu, é possível notar a manutenção da mesma ordem por todo o período, do maior para o menor: homens brancos, mulheres brancas, homens negros, mulheres negras. A falta de negros em ambientes de trabalho melhor remunerados é constatada por Marilaura. Com cerca de 300 funcionários, “no andar onde eu trabalho, se tiver três ou quatro negros, tem muito”. E dentro das organizações, quanto maior o nível hierárquico, menor a proporção de negros. Em 2016, o Institu-


to Ethos de Empresas e Responsabilidade Social publicou o estudo “Perfil social, racial e de gênero das 500 maiores empresas do Brasil e suas ações afirmativas”. A pesquisa mostra que os negros ocupam penosos 6,3% das gerências, 4,7% do quadro executivo e 4,9% do conselho de administração. A informação ainda mais é assustadora, quando comparamos com os dados do IBGE da mesma época, quando negros somam 54% da população do país. Para Theodoro, as corporações vão refletir o racismo da sociedade. “Uma sociedade secularmente racista ela forja instituições racistas. As instituições pra funcionarem numa sociedade racista têm que ser racistas porque senão elas vão de encontro ao estabelecido”. Marilaura já sofreu discriminação em uma instituição bancária. “Eu cheguei ao banco e entrei na fila. A fila era conta especial e aí o gerente saiu de lá da cadeira dele e veio direto falando comigo o que eu queria, o quê que eu estava fazendo, eu fiz: ‘eu vim fazer serviço de banco pro meu pai'. E ele: ‘quem é seu pai?’ Eu: meu pai é o dr. Adir. Aí ele mudou: ‘Ah! Você é filha do dr. Adir? Você quer que eu faça pra você, quer que adiante?’”, conta. Theodoro reforça que as organizações não funcionam de forma igual para todos, e “a polícia é uma pra o negro outra pra o branco. O banco é um pra o negro outro pro branco. O Judiciário é um pra o negro outro pro branco. O Senado é um pra o negro outro pro branco”.

MARILAURA FERREIRA já foi questionada pelo gerente do banco por estar na fila de conta especial

Representatividade Contar com pessoas negras em postos de poder é primordial para o combate ao racismo. “É importante a gente ter representatividade. A nossa autoestima é tão deteriorada, tão violentada, tão alijada, que a gente acha que não pode fazer nada”, diz Kelly. Ocupar estes espaços mostra a outros que é possível. Ela ressalta que o preconceito não é uma questão exclusiva do capitalismo e usa como exemplo Cuba, onde “os negros, de pele escura, ainda têm os piores indicadores econômicos, mesmo num governo socialista. Eles têm acesso à educação, eles têm acesso à moradia, à alimentação, mas eles sofrem o racismo”. Ou seja, mesmo com a questão da condição social muito relacionada ao racismo, devido à prevalência de negros nas classes mais baixas aqui no Brasil, ela não pode ser considerada o único problema.

RAQUEL VILHARVA faz muitas viagens a serviço e é parada em aeroportos com frequência

“A questão é você ser negro. Porque, num lugar socialista, que as pessoas, em tese, têm as mesmas condições de educação, de saúde, etc. você é alijado dos postos de poder por você ser preto. O alto escalão cubano poderia ser majoritariamente preto, e não é”, afirma a doutora em comunicação. Gabriel Sampaio é advogado e foi ministro da Justiça interino em 2015, assumindo o posto em 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. Ele concorda com Kelly sobre como as características físicas pesam quando uma posição como esta é ocupada por um negro. “O que fica mais evidente quando a gente começa a acessar espaços onde tradicionalmente nós não ocupávamos é notar que, do ponto de vista do fenótipo, as pessoas não se identificam com aquilo que você representa. Em geral as pessoas não estão acostumadas a lidar com pessoas negras nesses espaços”, constata. E para ele a chance de

NO MERCADO DE TRABALHO

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GABRIEL SAMPAIO foi o primeiro negro a assumir o posto de ministro da Justiça

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ocupar este espaço deve carregar o comprometimento de ser um agente de transformação. “Acho muito importante ter tido essa oportunidade e ocupado esse espaço. E mais do que isso, é ocupar o espaço trazendo uma mensagem. Ocupar o espaço carregando compromissos com essa mudança da estrutura da sociedade que a gente vive. Estar no espaço e reproduzir essa estrutura, refuso como não tão válido”. Um novo tempo “É importante que a luta do racismo não seja só dos negros; tem que ser de toda a sociedade. A gente não vai conseguir romper o racismo se a gente não conseguir fazer com que as pessoas brancas tenham consciência dos seus privilégios”, declara Kelly. Outro ponto a ser trabalhado é a autoestima da pessoa negra desde criança. Conforme Kelly, “mostrar pra ela que ela tem condições, porque isso que nos é negado”. Esta foi a preocupação da mãe de Andréa durante a educação dela e de seus irmãos. “Minha mãe sempre fez um trabalho grande de estar dizendo que a gente tinha valor, que a gente era bonito, de trabalhar sempre nossa autoestima”. Isto foi muito significativo na sua formação e ela foi a primeira da família, tanto materna quanto paterna, a ingressar na universidade. A aplicação de políticas públicas afirmativas também é necessária para um futuro menos desigual e com mais negros no topo da pirâmide social. Com experiência como conferencista

NA ESCOLA

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em temáticas de direitos humanos, Gabriel afirma: “Se você não investe numa forma de lidar com essa problemática que envolva desde a integração econômica, políticas de cotas, políticas de incentivo, até o empreendedorismo negro como formas de reverter estereótipos que são construídos pelo Estado, você não vai atingir o objetivo de maior integração e maior diversidade nos espaços”. Examinando os dados da educação revelados no estudo do Ipea, é gritante a distorção que o sistema de cotas almeja diminuir. O percentual de negros no ensino superior passou de 5,5% para 12,5% entre 2005 e 2015. Porém, o patamar alcançado em 2015 pelos negros ainda é inferior ao dos brancos em 2005, que era 17,2%. E o da população branca nestes dez anos aumentou para 25%. O sistema de cotas provoca muitas discordâncias por conceder um privilégio a quem antes não tinha acesso à universidade. Theodoro prevê que haverá uma briga muito grande ”porque você vê, por exemplo, tem gente com discurso idiota: ‘se eu for atendido por um médico cotista eu não quero ser atendido’, como se a cota fosse pra sair. Ninguém sai por cotas. Ninguém vai receber nota melhor por ser cotista. Ao contrário: os professores até perseguem mais”. Mesmo assim, ele acredita que estes novos profissionais vão superar os obstáculos e vencer. “Eles vão se impor como grandes profissionais que são. E a sociedade vai ter que aceitar. Não tem jeito”.


Ilustração: Bruna Alvino

AFINAL, O QUE SÃO OS DIREITOS HUMANOS?

N

orteadora das Constituições de vários países, inclusive a brasileira, de 1988, a Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 70 anos no dia 10 de dezembro. Mesmo que a maioria das pessoas não conheça o teor deste documento assinado por 58 Estados-membros, ele faz parte do cotidiano de todo mundo e ajudou a regular direitos básicos, como condições dignas de trabalho, liberdade, igualdade, saúde, educação e propriedade, por

exemplo. Sete décadas após a reunião da assembleia geral das Nações Unidas para firmar o documento, a luta pela defesa dos direitos humanos segue com diversos desafios. No Brasil, o principal é uma deturpação do conceito, que faz com que os menos informados ou conscientes usem o termo “direitos humanos” como sinônimo de defesa de bandido. A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi lançada em 1948, num momento em que o mundo precisava se fortalecer, pós Segunda Guerra. De acordo com o professor e pesquisador em direitos humanos

FERNANDA BARROS

da UnB, Alexandre Bernardino Costa, a declaração se formou em meio a diversos processos. “A revolução francesa e a declaração da independência americana, foram dois movimentos, absolutamente liberais, que escreveram cartas que são marco para os direitos humanos”, conta. O professor cita, ainda, a revolução mexicana e a revolução de Weimar, na Alemanha. Movimentos relevantes na construção e evolução de direitos humanos. Segundo o Procurador Regional da República Felício Pontes, responsável por casos envolvendo o tema no Ministério Público Federal, é impor-

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Os 70 anos do documento quer influenciou constituições e foi um marco para o mundo


INSTRUMENTOS DE DEFESA Ministério Público Vela pelos direitos básicos do indivíduo. No âmbito penal, é acusador, mas também tem que assegurar que a pena não passe da privação de liberdade, que não haja tortura, maus tratos, nem nada que atente contra a dignidade do ser humano. Disque 100 do Departamento de Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos Tem a competência de receber, examinar e encaminhar denúncias e reclamações, atua na resolução de tensões e conflitos sociais que envolvam violações de direitos humanos. Conselho de Direitos Humanos do Distrito Federal Atua segundo a demanda. Pode entrar em qualquer órgão e solicitar qualquer documento na busca de mediação para solucionar o conflito. Defensoria Pública É uma instituição criada pelo Estado para defender pessoas em situação de vulnerabilidade social. Sociedade Deve conhecer os direitos e defendê-los.

O presidente do Conselho de Direitos Humanos do Distrito Federal, (CDHDF) Michel Platini, lembra que o direito ao voto, os direitos trabalhistas, são fruto de uma mobilização internacional pelos direitos humanos. “É um desafio a efetivação desses direitos, num momento em que um setor da sociedade faz um embate aos direitos humanos”, relata. Mesmo sem conhecer o documento da ONU, a catadora Adriana dos Santos sabe bem o que são essas violações. “Se preciso levar meu filho pequeno no hospital, a empresa não aceita meu atestado. Se vou ao colégio e pego uma declaração, posso ser mandada embora”, diz. Defesa de bandido

tante comemorar o aniversário dessa declaração, até para reforçar o que são os direitos humanos. “Deve ser comemorado, porque ela [a declaração] trouxe para toda a sociedade, uma tentativa de quebrar todos os preconceitos”, explica. Para ele, esses direitos são responsáveis pelos avanços da humanidade e isso ainda não é compreendido por alguns grupos. O artista de rua argentino Sebastian Algornoz diz sentir o peso da incompreensão, em relação à profissão dele. O preconceito, ele reclama, vem da própria população. “Temos que falar mais de cultura, ter mais compreensão e sabedoria”, acredita. Ele mora em Brasília desde abril, na casa de amigos e, faz malabares nos semáforos da capital, para garantir a renda.

Os direitos humanos são inerentes a todos, independentes de etnia, sexo, nacionalidade, religião ou qualquer outra condição. De acordo com a Organização das Nações Unidas, algumas das características mais importantes, dos direitos humanos são o respeito pela dignidade e o valor de cada indivíduo. Por isso, todas essas condições são igualmente importantes e podem ser evocadas em qualquer tribunal dos países signatários. No entendimento do professor Alexandre, é preciso compreender que os direitos humanos não são injustificados e aleatórios. “É uma criação por conta das violações, que foram perpetradas ao longo da história e da luta, para que não fossem mais cometidas”, explica. São afirmações, expressas em cartas, que devem reger a convivência em sociedade.

redemoinho . ano 09 . número 14 ARTISTA DE rua, Sebastian faz malabares no semáforo para garantir renda 32

Para o procurador Felício, uma visão deturpada que as pessoas construíram em relação aos direitos humanos é a ideia de proteção somente dos mais vulneráveis. Essa compreensão acabou por fazer acreditar que os mais fracos eram pessoas que tinham cometido algum crime. Ele faz questão de explicar que quando uma comissão de direitos humanos atua no sistema carcerário, por exemplo, é para garantir que os condenados paguem pelos crimes que cometeram e precisam de um mínimo de dignidade dentro da prisão. “Que eles possam ser tratados como seres humanos e que a pena não passe daquilo que estabelece, que é privação de liberdade”, explica. O defensor público Daniel de Oliveira reclama do fato de muitas pessoas partirem da premissa de que direitos humanos serve apenas para a defesa de bandidos. “A gente esquece que direitos humanos também é saúde, educação, também é segurança pública”, diz. “Se isso não existir, o Estado passa a ser um ser soberano e a gente volta a ter uma época de ditadura”, opina. O discurso contra os direitos humanos, segundo o professor Alexandre, mascara um comportamento grave: negação do outro. “A gente vivencia isso de uma forma muito agressiva, que bandido bom é bandido morto. Leva para casa o bandido, esse tipo de coisa”, reclama.


Direitos além da cadeia

A DECLARAÇÃO Universal dos Direitos Humanos já foi traduzida para mais de 500 idiomas

CONHEÇA OS ARTIGOS Liberdade e igualdade de todos os seres humanos;

Direito de casar e de constituir família; Direito à propriedade; Liberdade de pensamento, consciência e religião;

Não discriminação;

Liberdade de expressão, opinião e informação;

Direito à vida, liberdade e segurança pessoal;

Liberdade de reunião e associação pacíficas;

Proibição de escravatura; Proibição de tortura e tratamento degradante;

Direito de participar nos assuntos públicos do seu país e em eleições livres através do voto secreto;

Direito à personalidade jurídica;

Direito à segurança social;

Direito à igualdade perante a lei;

Direito ao trabalho, a remuneração suficiente favorável e a aderir a sindicatos;

Direito a recurso efetivo perante jurisdições nacionais; Proibição de prisão, detenção e exílio arbitrários; Direito a ser julgado em público num tribunal independente; Direito a ser considerado inocente até prova em contrário;

Direito ao repouso e ao lazer; Direito a um nível de vida adequado; Direito à educação; Direito de participar na vida cultural da comunidade;

Direito à vida privada, familiar e proteção da correspondência;

Direito a uma ordem social para a plena aplicação dos direitos aqui enunciados;

Direito a circular livremente no país e de sair e entrar em qualquer país;

Deveres dos indivíduos para com a comunidade;

Direito de requerer e receber asilo;

Nenhum indivíduo ou Estado pode atentar contra os direitos e liberdades acima mencionados.

Direito à nacionalidade;

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Dados do Ministério dos Direitos Humanos apontam que cerca de 40% dos presos no Brasil ainda não foram julgados, mas cumprem pena sem condenação. Para o defensor público, isso é resultado da soma de lentidão da Justiça, excessos de prisões e falta de acesso a advogados, já que a maioria desses 40% é formada por negros e pobres, o que já demonstra uma violação dos direitos humanos. “Da maneira como funciona hoje, é criar soldado para facção”, diz. Ele aponta que o ideal, seria oferecer ao infrator, a possibilidade da prestação de um serviço alternativo, em benefício de toda a sociedade. Os moradores de rua sofrem preconceito e discriminação, que partem da própria sociedade. Além disso, eles são combatidos por agentes do governo, que deveriam dar assistência. Para o defensor Daniel de Oliveira, as atitudes conservadoras são uma forma de retrocesso. Ele diz que a população em situação de rua é a que mais sofre. “Quando um comerciante vê uma pessoa em situação de rua, em vez de tentar ajudar, chama logo a polícia para retirar aquela pessoa do local”, conta. Ele acredita numa sociedade com uma cultura mais forte em direitos humanos. Ele explica como a Declaração norteou a Constituição brasileira, que recebeu o nome de Constituição Cidadã. O principal exemplo apontado é o Artigo Quinto. A atual Constituição veio após um período militar, na tentativa de reestabelecer, fortalecer e trazer outros direitos, que não existiam nas cartas anteriores. “A principal garantia são os órgãos fiscalizadores, entre os quais, a Defensoria, o Ministério Público, as ouvidorias de todos os órgãos e o Disque 100”, enumera Daniel. No entanto, por mais que a caminhada seja longa e que ainda existam retrocessos, é possível perceber alguma evolução, como destaca Daniel. “Se a gente lembrar que a mulher sequer podia votar [hoje podemos ver] que o empoderamento da mulher cresceu muito”, comenta. “Tem legislações, como o Estatuto do Idoso, lei Maria da Penha, lei da inclusão. São várias as medidas no sentido de amparar os direitos humanos”, conclui.

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OPÇÃO CULTURAL oferecida gratuitamente no Espaço Imaginário Cultural em Samambaia

RESISTÊNCIA CULTURAL NA PERIFERIA Comunidades se organizam para criar espaços cênicos e fomentar a produção teatral nas Regiões Administrativas do DF

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D

omingo, cinco da tarde. Cerca de 50 pessoas, entre elas muitas crianças, assistiam ao espetáculo teatral dos palhaços do Circo Teatro Artetude, no espaço Imaginário Cultural. O local funciona como centro cultural desde 2013 na QS 103 de Samambaia Sul e oferece à comunidade espetáculos, oficinas, shows e saraus.

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Entre os espectadores, estava a servidora pública Liliana Vieira de Andrade, 42 anos, que levou o filho João Gabriel Vieira dos Santos, de 6 anos, e a irmã Marta Andrade. Liliana frequenta o local há mais de cinco anos e faz os cursos que são oferecidos, como de técnica vocal e de teatro. “É uma oportunidade porque são oficinas gratuitas, é um momento pra comunidade mostrar seu talento”, conta a servidora, que

LARISSA SARMENTO

se descobriu poeta frequentando os saraus de Samambaia. Para Liliana, que mora a poucos metros do Imaginário, é uma ótima opção de cultura e lazer para levar o filho. “Quando a criança tem acesso à arte desde pequena, fica com a mente aberta, passa a respeitar mais as pessoas, e aprende a lidar com as diferenças.” Espaços culturais como o Imaginário são escassos no Distrito Federal.


GRUPO NUTRA Teatro faz intercâmbios e disponibiliza o espaço para outros grupos e artistas

OPÇÕES DE TEATRO NO DF Espaço Imaginário Cultural

QS 103 Conjunto 5 Lote 5 Samambaia Sul Capacidade para 100 pessoas

Galpão do Riso

Miniteatro Lieta de Ló

QS 405, Área Especial 2 Samambaia Norte Capacidade para 160 pessoas

Rua Hugo Lobo, Quadra 46, Lote 3A, nº790, Setor Tradicional 40 lugares

Plano Piloto

Teatro Goldoni, Teatro Oficina Perdiz, Espaço Cena, Teatro Mapati, Teatro Bar, Teatro Goldoni, Casa dos 4, Coletivo Janela

Espaço Semente Cia de Teatro Quadra 52/54, AE, S/N, Projeção 2, Setor central 90 lugares

“O objetivo da maioria dos grupos de teatro é ter um lugar pra chamar de seu, onde a gente possa fazer nossos ensaios, apresentações, receber artistas, realizar essas trocas e trabalhar com a formação”, completa. Marília fala que sentiu a necessidade de ter um equipamento público na cidade para reunir os movimentos artísticos. “A gente sempre funcionou como um aglutinador.” O espaço oferece oficinas, quase sempre gratuitas, de teatro, técnica vocal, hip hop, ginástica, capoeira, danças populares, teatro de bonecos, iluminação e cinema. O grupo tem conseguido sobreviver por meio de editais de fomento, mas para a coordenadora o maior

desafio não é a manutenção do local. O desafio é conseguir uma efetiva participação da comunidade. “Hoje, a nossa maior luta não é a captação de recursos, mas, sim, o engajamento do público de Samambaia”, ressalta Marília. Em Samambaia Norte a história não foi muito diferente. Com a mesma dificuldade de ter um espaço para ensaiar, o grupo Nutra Teatro buscou um local para estabelecer sede e desenvolver o trabalho de laboratório de palhaços. Com esse propósito, solicitaram a cessão de uso de outro centro comunitário ocioso na região. Esse processo deu forma ao Galpão do Riso, em 2011. Além desse apoio, o grupo contou com recursos

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Os aparelhos culturais públicos voltados para apresentações cênicas na capital estão, em sua maioria, concentrados no Plano Piloto. De acordo com a plataforma de georreferenciamento de agentes, espaços e ações culturais da Secretaria de Cultura do Distrito Federal, Mapa nas Nuvens, há 32 teatros entre públicos e privados cadastrados. Destes, 19, mais da metade, estão localizados no Plano Piloto. Ao se distanciar desse centro, que concentra a maior parte das opções culturais de Brasília, têm-se a impressão que são escassas as possibilidades de entretenimento e arte. Contudo, as chamadas Regiões Administrativas, mais conhecidas como cidades-satélites, estão fervendo de movimentos culturais e coletivos de artistas. Porém, não é fácil encontrar um local para apresentações cênicas na periferia. Nesse contexto, alguns grupos de teatro sentiram a necessidade de ter um espaço devido à falta de lugar para ensaiar, oferecer cursos e fazer apresentações, de aglutinar grupos e movimentos artísticos. Assim nasceu o espaço Imaginário Cultural, além de outros, como o Galpão do Riso e Semente Cia de Teatro, que reformaram e revitalizaram áreas públicas anteriormente ociosas, por meio de cessão de uso. Também na tentativa de suprir essa carência, surge em Planaltina, dentro de uma área residencial, o miniteatro Lieta de Ló. No espaço do Imaginário Cultural, por exemplo, funcionava um centro comunitário desativado, que só contava com um vigilante. Segundo a coordenadora do espaço, Marília Abreu, esse patrimônio ficava vazio. “Quando chegamos aqui, transformamos o lugar, no sentido de trazer vida. Samambaia não tinha equipamento público cultural.” O grupo já funcionava desde 2011 em outra quadra de Samambaia, mas viu ali um potencial. Então fecharam com a Administração Regional uma ocupação por meio de cessão de uso do espaço.

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do projeto Pontos de Cultura do governo federal. Dessa forma, conseguiram revitalizar a área que, segundo Nilton José de Oliveira, 60 anos – morador da casa em frente –, era infestada de ratos. O vizinho relata que a ocupação foi positiva por causa da limpeza e por trazer opções para a comunidade, principalmente para as crianças. “É bom porque o circo deu outra cara para vizinhança. Áreas abandonadas acabam sendo ocupadas por usuário de drogas”, completa. Hoje o espaço serve não só para apresentações do grupo, mas também para ensaios e oficinas, além de oferecer um Projeto de Extensão de Ação Contínua – vinculado ao Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília. O fundador do Galpão do Riso, João Porto Dias, comenta que o local não serve apenas para o grupo residente. Ao promover as oficinas, acaba gerando vínculo com outros artistas, que passam também a utilizar o espaço para ensaios e montagens de espetáculo. “O Galpão promove isso, gera uma economia solidária de sobrevivência do trabalho artístico. Se forma uma rede de artistas.” Para Paula Sallas, integrante do grupo, a ideia é promover o intercâmbio e a troca. A atriz relata que

“Ainda há uma dificuldade de público nessas Regiões Administrativas porque não há o hábito de frequentar o teatro” Paula Sallas, atriz do grupo Nutra Teatro

um dos problemas do espaço é a questão do público local. “Ainda há uma dificuldade de encher uma plateia nessas regiões administrativas porque não existe o hábito de frequentar o teatro”, destaca. Público cativo em Planaltina Lieta de Ló é um miniteatro em Planaltina que não passa por esse problema de público. Localizado a 44 quilômetros da rodoviária do Plano Piloto, existe há seis anos e conta com audiência cativa. Preto Rezende, professor de teatro e fundador do espaço, fala que o teatro de 40 lugares sempre fica cheio quando tem espetáculo. “A gente quase não divulga porque lota”, comemora. Segundo o professor, basta acionar os frequentadores, por meio de grupos de WhatsApp e redes sociais. Muitos moradores vão assistir aos espetáculos sem saber o enredo, pois confiam na curadoria do espaço.

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ALUNOS E ex-alunos do diretor Valdeci Moreira frequentam o Teatro Semente no Gama

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Para Preto Rezende, esse trabalho de formação de plateia é anterior à inauguração. Antes de o miniteatro ser construído por seu pai no terreno da família, Preto ensaiava com o grupo Senta Que o Leão É Manso em garagens e embaixo de pés de manga. A companhia – que existe desde os anos 80 e conta com mais de 20 integrantes e quatro diretores – usava uma área da administração para se apresentar e, assim, foi criando um hábito na comunidade de assistir às peças. Para o advogado Wálteno Marques da Silva, 65 anos, vizinho do miniteatro que fica a menos de um quilometro de sua casa, o local traz a oportunidade da oxigenação cultural na cidade. Ele diz que é um privilégio ter um teatro na porta de casa. “Sempre que as peças estão em cartaz, eu e minha esposa assistimos.” Formação de plateia no Gama A fila na porta do teatro Semente no Gama, em pleno domingo à tarde, chamava atenção pela quantidade de jovens. Essa é apenas a primeira sessão do espetáculo Maré Cheia. O espaço adaptado para receber apresentações teatrais conta com 90 lugares acolchoados, refletores e equipamento de som. Tudo isso é fruto do trabalho do professor de artes Valdeci Moreira. O espaço público estava há 16 anos abandonado. Ele transformou o ambiente, reformou e levou seu grupo Semente Cia de Teatro, que deu nome ao lugar. Proporcionou também oficinas teatrais e espetáculos para a comunidade. “Esse espaço, que era invisível para comunidade do Gama, se tornou visível depois que ocupamos com arte. Era um local de prostituição, tráfico de drogas, e virou um local artístico”, conta Valdeci. O professor afirma que vem gente do Plano Piloto, Ceilândia, Taguatinga, de todas as regiões de Brasília. Para ele,


está havendo uma inversão de fluxo. 1991, oferece apoio financeiro a pro“O espaço Semente está fazendo uma jetos como filmes, peças de teatro, coisa diferente: eu não tenho que ir CDs, DVDs, livros, exposições, oficipara o Plano apresentar minhas peças, nas e inúmeras circulações artísticas. as pessoas vêm de lá assistir.” O GDF destina 0,3% da receita corNo entanto, constata que poucos rente líquida para o fundo. moradores do Gama vão assistir às Anualmente, o FAC lança os ediapresentações. Segundo ele, o traba- tais de fomento de acordo com áreas lho de sensibilização artística nas es- de atuação. Para espaços culturais, colas é de suma importância. Por isso existem os editais de manutenção trabalha há cinco anos na Secretaria de de grupo e manutenção de espaços, Educação como professor de teatro e de acordo com o subsecretário de sempre leva o universo das artes cêni- Fomento e Incentivo Cultural, da Secas para seus alunos. cretaria de Cultura, Thiago Rocha. Além do trabalho nas salas de aula, Valde“No mundo capitalista em que ci também ministra uma oficina livre de teatro há estamos inseridos, uma grande mais de 10 anos. Hoje, esse curso acontece no ferramenta de desenvolvimento Espaço Semente e conta humano é a arte” com 100 inscritos. maestro Rênio Quintas Com adaptações teatrais de obras da literatura brasileira, Valdeci sensibiliza Segundo o subsecretário, o muitos jovens e acaba transformando edital passou por algumas transforvidas. Ele conta que 13 de seus alunos mações nesta gestão. Para ele, a de estão na Universidade de Brasília, sete maior ganho é a regionalização, que deles fazendo Artes Cênicas. “Os es- consiste em contemplar projetos e tudantes se tornam o público que vai artistas de acordo com a região onde consumir arte amanhã.” vivem. Ele fala que essas alterações no fundo de apoio são fruto de debaManutenção dos espaços tes com a comunidade artística local. Entre as políticas públicas que O subsecretário explica que a ajudam a fomentar esses espaços, ideia é fazer com que haja um rodío Fundo de Apoio à Cultura (FAC) zio maior entre as pessoas que são da Secretaria de Cultura, criado em contempladas, que não sejam sem-

Luta por políticas públicas Participando das lutas por direitos artísticos na capital desde 1999, um dos coordenadores do Fórum de Cultura do DF, o maestro Rênio Quintas, avalia que esses espaços são fundamentais para a ampliação do acesso à cultura. “Cada espacinho desse é uma centelha de inteligência”, completa. Na visão do maestro, ainda falta muito da parte do governo, como políticas públicas específicas de formação de plateia e a construção de espaços públicos culturais nessas regiões. Rênio acredita que Brasília esteja vivendo um momento cultural “catastrófico”. Palcos importantíssimos e icônicos para cidade, como o Teatro Nacional Cláudio Santoro e o Espaço Cultural Renato Russo, estão fechados para reformas. O maestro acredita que, para os governos, não existe uma prioridade em relação às questões culturais e reafirma a importância do teatro. “Se você tem teatro, você tem fruição cultural, você tem troca, diversidade, você pode apresentar para o público uma coisa nova. No mundo capitalista em que estamos inseridos, uma grande ferramenta de desenvolvimento humano é a arte.”

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MINITEATRO LIETA de Ló, construído no terreno de casa, tem público cativo em Planaltina

pre os produtores culturais do Plano Piloto a aprovarem os projetos que serão levados para as Regiões Administrativas. “A ideia é empoderar os agentes artísticos do local.” Produtora cultural há 10 anos, Ana Paula Martins já montou espetáculos na maioria desses teatros. Ela diz que quando vai apresentar nesses espaços percebe que o público geralmente é de pessoas que já são envolvidas com arte. “Para garantir público, nós convidamos os estudantes das escolas públicas para assistir aos espetáculos, mas infelizmente a maioria nunca teve contato com teatro.” Na visão da produtora, os fomentos culturais do governo acabam sustentando os lugares, mas ainda faltam espaços públicos culturais ou incentivos para os independentes. “Pagar um dia de apresentação num teatro é muito caro. Tem teatro em Brasília que custa R$ 6 mil a diária.”


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MEIO NERD É DESAFIO PARA MENINAS À mulher, durante muito tempo, foi reservado o papel de interesse amoroso dos heróis, a gostosa dos games ou a esquisita da escola. O machismo refletido no meio nerd não é falácia, é real e atual DÁVINI RIBEIRO

N

erd. O que vem à cabeça quando você pensa nesta palavra? O menino inteligente, porém, bobo, de óculos e camisa xadrez? E se, com muito esforço, conseguir pensar em uma mulher: é a ingênua, imatura, fora de todo e qualquer padrão de beleza? Esse estereótipo causa efeitos na vida real de quem vive no meio. Na realidade, o nerd está em qualquer lugar, pode se vestir como quiser, não necessariamente tem a resposta para todas as perguntas e, pasmem, pode ser uma mulher. Indo além, a representação do feminino nas histórias em quadrinhos, games e filmes, em geral, tinha dois objetivos: sexualização e submissão — ou um “belo” combo dos dois. De acordo com a professora doutora em história cultural e pesquisadora da área de quadrinhos, Selma Regina Nunes, durante muito tempo, até meados dos anos 90, as mulheres nos quadrinhos eram sempre, apenas, interesses amorosos dos reais protagonistas, os heróis.

“Nos anos 60, com X-Men e Quarteto Fantástico, os papéis começam a ser diferenciados, mais interessantes. Sai daquela função de ser namorada do herói ou do vilão e passam a ter papéis mais relevantes. Nos anos 80 e 90, nós vemos a explosão de personagens com protagonismo mais acentuado nas histórias.” Provar que sabe Maria Eduarda Derquian, a Duda, 19 anos, nasceu e cresceu rodeada pela cultura nerd. Por influência de três irmãos (sim, homens), a menina se apaixonou por vídeo game e anime. Hoje, Duda é funcionária da Ludoteca BGC, em Brasília (DF). Ela faz parte da equipe que é responsável por atender os jogadores e ensinar o funcionamento dos board games (jogos de tabuleiro) — sendo quatro homens e, ela, a única mulher. Duda é exemplo de uma reclamação unânime: todas as entrevistadas foram categóricas em dizer que o mais comum entre as situações ruins já vividas é a desconfiança por parte

“Sempre preciso provar que sei das coisas”, diz a jovem. Certa vez, em um evento em que a BGC participava, mas Duda não estava a serviço, e ninguém sabia que ela trabalhava com isso, ela chamou a galera para ir ao estande da loja e “uns meninos viraram pra mim e falaram ‘desde quando você entende de board game?’ O bom foi falar: eu entendo tanto de board game que eu trabalho lá’”, lembra. Atuando na área, ela presencia situações desagradáveis com outras mulheres. “Uma vez tinham três homens e uma mulher jogando e eles disseram ‘ela é a cota da mesa, mas ela vai perder’”. Outra vez ao perguntar para um cliente o que achou do jogo foi obrigada a ouvir: “‘Achei de menina, muito fraco.’ E eles tão falando isso para uma menina. É muito sem noção”.

Natália Picarelli, jornalista

Ela destaca o papel do feminismo na jornada das personagens do gênero. Segundo as pesquisas feitas por Selma, com cada onda feminista (confira box na página 41) personagens com mais relevância nos roteiros das histórias eram criadas.

dos meninos sobre sua competência. Deixam na cara o que estão pensando: “Garota, você sabe do que tá falando ou ao menos gosta, de verdade, do que tá fazendo?”. Para os machistas, o universo nerd pertence ao mundo exclusivo dos garotos.

“OS MENINOS mais novos continuam repetindo como os avós faziam. É uma briga a cada dia”, Selma Regina Nunes, pesquisadora da área de quadrinhos 39

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“Os caras realmente têm uma dificuldade enorme em lidar com mulheres dizendo para eles o que é certo ou errado”


MARIA EDUARDA Derquian, a Duda, explica o funcionamento dos board games (jogos de tabuleiro) na ludoteca BGC. De cinco funcionários, ela é a única mulher

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Outra que sabe, e muito bem, o que está fazendo é Natália Picarelli, 25 anos. Jogadora de RPG desde muito nova — aos três anos já acompanhava a tia nas mesas. No Role-Playing Game, em tradução livre Jogo de Interpretação de Personagens, cada pessoa (player) assume um papel e decide quais passos esse personagem irá tomar na história narrada pelo mestre. Natália é casada com um também jogador. Segundo a jornalista, os dois são experientes, porém, ela é mais criativa — o que para ser o mestre é fundamental. Por isso, ela mestra e o esposo fica como jogador auxiliando os players menos experientes. É normal que jogadores novos tenham certas dificuldades com as regras. Mas, para infelicidade e revolta, Natália relata que diversas vezes ao dizer algo sobre o jogo, a desconfiança é nitidamente demonstrada por ela ser uma mulher ditando as regras. “Não importa o quanto eu diga que algo é feito de tal maneira, a discussão só acaba de duas formas: ou eu preciso provar a regra, mostrando no livro, ou meu marido precisa afirmar que eu estou certa. Mesmo que quem esteja mestrando seja eu!”, diz. Ela relata ainda que, no começo, achava que era paranoia ou militância excessiva, mas ao colocar outra mulher na mesa viu que ela não contestava suas ações. “Foi impressionante

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como a reação dela às minhas instruções era completamente diferente. Em momento algum precisei provar nada”, lembra, impressionada. “Ou seja, não era paranoia. Os caras realmente têm uma dificuldade enorme em lidar com mulheres dizendo para eles o que é certo ou errado”. Para Selma Regina, pior que a discriminação é a naturalização dos preconceitos. ”Constatei na minha pesquisa que há mudança, mas muito pouca. Tem muita coisa que ainda está arraigada. E os meninos mais novos continuam repetindo como os avós faziam. É uma briga a cada dia”, diz. E assédio? Tem também A história da jornalista Franciele Bessa, 24 anos, transcende a inferiorização. Ela é gamer (jogadora de jogos online) e cosplayer (faz e usa roupas como personagens da cultura pop). Há algum tempo, usando o nick feminino (apelido utilizado para entrar no jogo), assim que a partida começou, homens que faziam parte do time dela começaram a destratá-la. “Falaram que a gente ia perder, que não tinha jeito porque tinha uma garota no time. Eles não me deram a oportunidade de jogar e tentar mostrar.” Após os insultos, os “parceiros de time” se deixaram morrer repetidas vezes para atrapalhar o andamento da partida.

Em outra rodada, descobriram ocasionalmente que ela era mulher. Após isso, falaram que ela merecia ser estuprada por jogar mal. “É muito recorrente. Fico com muita raiva porque é um jogo que só precisa da minha habilidade. E isso é igual em competitivo para homens e mulheres. Fico revoltada porque é muito injusto as pessoas agirem dessa forma”, lamenta. Como cosplayer a coisa foi ainda pior. Em um evento, um rapaz pediu para tirar uma foto com ela, porém, junto veio o assédio. Ao se posicionar para a foto, ele colocou a mão na bunda de Franciele. Outra vez, a amiga flagrou um homem fazendo uma série de fotografias por trás. Apesar desses episódios lamentáveis, Franciele diz não deixar de fazer o que gosta por medo do preconceito. Ainda assim, admite que não gosta de jogar com pessoas desconhecidas ou ir para eventos desacompanhada. Problemas de identificação A falta de representatividade é tanta que Ludimila Pereira, 23 anos, diz não conseguir se auto intitular porque não consegue se sentir incluída na figura do que é ser nerd. Que fique claro: ela é totalmente inserida no meio e encontrou um grupo que sempre a tratou muito bem. A questão de não identificação tem total influência da forma como o nerd é representado. “As pessoas definem o que é ser nerd e eu fico pensando: ‘eu não me encaixo aqui’. Só conheci há pouco tempo páginas que são comandadas por meninas. A minha imagem de nerd é o menino com a blusa de super-herói, camisa

DICAS! #GRLPWR Locais legais pras minas no DF Taverna BGC Ludo Girls D30 RPG Sites de nerdices comandados por elas garotasnerds.com www.garotasgeeks.com


ENTENDA AS 'ONDAS' FEMINISTAS Amplamente, pode-se dizer que o objetivo do feminismo é uma sociedade sem hierarquia de gênero, ou seja, não sendo utilizado para conceder privilégios ou legitimar a opressão. O termo “onda feminista” é usado academicamente para evidenciar um momento histórico relevante de efervescência militante aonde determinadas pautas e reivindicações surgiram e dominaram o debate. No Brasil, o feminismo como movimento organizado em grupo surge em meados do século 19. À época é atribuída a primeira onda: marcada pelas reivindicações de direito ao voto. A segunda onda é marcada pelas discussões acerca da sexualidade e reprodução. Lutou pela valorização do trabalho da mulher, contra a violência sexual e pelo direito ao prazer. Além disso, também lutou contra a ditadura militar. A terceira onda é das garotas rebeldes. Contra o corporativismo, tratavam de assuntos como estupro, o patriarcado, a sexualidade e o empoderamento feminino. Há ainda a tentativa de ressignificar termos tidos como pejorativos. Exemplos: vadia, usado para discriminar, foi pego pelo movimento para ser usado como uma coisa boa: uma mulher que tem noção da própria sexualidade e não vai se importar com o que dizem dela. O desafio nesta fase do feminismo é pensar, simultaneamente, a igualdade e a diferença na constituição das subjetividades entre o masculino e feminino. De acordo com a professora doutora em história cultural e pesquisadora da área de quadrinhos, Selma Regina Nunes, hoje, temos uma divergência entre teóricos se vivemos em uma quarta onda feminista ou ainda estamos na anterior. Além de lutar pelos ideais principais do feminismo, a característica que diferiria uma da outra é a união de bandeiras: contra a discriminação com base na raça, etnia, nacionalidade ou religião.

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xadrez e óculos. E aí eu não consigo me ver. Isso é muito ruim”, reclama a estudante de serviço social. Ou seja, apesar de andar com nerds, a moça não se sente “digna” para se definir como uma deles. “Quando eu fui pra Comic Con Experience, em 2015, cheguei a pensar se seria legal estar lá. Fiquei com medo deles serem os fodões, que falam várias línguas e são antissociais. Mas foi super legal. São gente como a gente. Tem criança que já é nerd”. Mãe de um bebê de oito meses, Ludimila tem mais um desafio a cumprir: criar um menino que não reproduza tais comportamentos machistas, nem no meio nerd, nem fora dele. Por influência dela, do pai e de amigos próximos, a criança já tem várias roupinhas de personagens da cultura pop e o móbile do berço faz referência à série de TV norte-americana Game of Thrones. Porém, ela relata a dificuldade de achar bodys com personagens femininos e utensílios (colher, mamadeiras, etc.) que não sejam, necessariamente, rosas ou azuis. “Eu não gosto de rosa, me vejo obrigada a comprar o azul. Não porque não quero que ele use rosa, porque eu que não gosto mesmo”. Por falar em rotulação do que é de menino e menina, a estudante escancara ainda outra questão que várias

LUDIMILA PEREIRA, 23 anos, e o pequeno Caetano, seis meses, vestidos a caráter: ela com R2D2, de Star Wars, ele de Capitão América, super-herói da Marvel 41


meninas no meio passam: hoje, a indústria têxtil começa a demonstrar avanço. Até conseguimos achar roupas feitas para público feminino — coisa que há uns cinco anos era possível apenas na internet —, mas, muitas vezes, as estampas da parte destinada aos homens são mais atraentes. “Parece que as de mulher têm obrigatoriamente que ter um rosinha, um gliter”, observa. Ela cita ainda personagens como a Viúva Negra, integrante dos Vingadores, da Marvel, que tem uma história interessante, mas nunca foi bem explorada nos filmes. Feminista que é, Ludimila lança uma pergunta aos homens: “Por que quando eu falo que quero ser bem tratada, vocês imaginam que eu quero ser tratada como vocês? Por que a imagem do bom é masculina?”.

De acordo com a pesquisadora Selma, isso tem relação com o machismo dentro e fora do meio. “Uma menina se vê representada em um personagem masculino, mas o menino não vê. O outro do homem não é uma mulher. O outro do homem é um homem. O correspondente do herói seria o vilão e não uma super-heroína. Isso vale para a vida”, constata. “A mulher é uma coisa à parte. Os meninos gostaram da Mulher-Maravilha no filme, mas não vestem uma blusa, não usam uma bicicleta com adereços dela, por exemplo”, completa. Juntas somos fortes Com o intuito de deixar as minas em um local livre da possibilidade de assédio e inferiorização, três amigas criaram o Ludo Girls. O evento proporciona o ambiente para que só gurias possam entreter-se com jogos de tabuleiro.

Segundo Carla Osytek, uma das organizadoras, o processo de criar o evento foi intrigante porque elas puderam ver que havia muito mais por trás de uma simples ideia de criar um evento para meninas. “Fomos conhecendo relatos de meninas que gostavam de jogar, mas não tinham amigas pra compor mesa, até outras que pararam de ir a eventos por motivo de assédio”, lembra. Aconteceram duas edições até o momento e o balanço que Carla faz é: mulher para jogar tem. No primeiro evento conseguiram vender todos os ingressos que colocaram à venda — 75 mulheres compareceram. No segundo, aumentaram para 90 e, novamente, esgotaram. “Pensamos em proporcionar um ambiente onde elas se sentissem à vontade. Foi lindo! Acho que deu certo”, comemora. As organizadoras estão programando o próximo evento. A previsão é para agosto ou setembro deste ano e o local ainda não foi definido. Para deixar todo mundo por dentro, as meninas mantêm a página no Facebook (homônima ao evento) sempre atualizada. A BGC, que emprega a Duda, é parceira da iniciativa e incentiva a participação das mulheres. Como elas enfrentam

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Cada uma tem seu modo de lidar com as situações demonstradas. Absorver, bater de frente, gritar ou se calar. Duda rebate com objetividade mostrando o conhecimento que possui e tenta não dar importância. Ludimila procura quebrar preconceitos na família e amigos. Já Natália diz que ser mulher é se posicionar, e lamenta ter que usar a ferramenta do grito nas mesas de RPG. “Foram incontáveis vezes em que eu tive que berrar ou xingar numa mesa, para que os jogadores olhassem para mim. Mas funcionou”, salienta. Claro, a meta é que, um dia, nem discutir ou fingir que não é com você e, muito menos, eventos específicos para as mulheres sejam necessários e homens e mulheres possam conviver pacificamente. Esse é o objetivo. “As mudanças acontecem, mas aos pouquinhos e a gente tem que lutar por elas’’, motiva Selma.

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RUMO A PARIS Jovens promessas no cenário esportivo do Brasil, brasilienses treinam pesado para garantir vaga em Tóquio e conquistar medalhas em 2024

A

NADINE OLIVEIRA

pouco mais de dois anos para o início dos Jogos de Tóquio, um grupo de jovens atletas do Distrito Federal traça planos para estrear no maior evento poliesportivo, que chegará à 29ª edição. As promessas são Matheus Takaki, 18 anos, no judô; Vivian Lima, 18, no vôlei; e Luís Felipe, 15, nos saltos ornamentais. Os três já sonham com a primeira participação olímpica, um marco na carreira de qualquer competidor, mas investem pesado para garantir medalhas em 2024, em Paris. Brasília tem o histórico de revelar atletas de prestígio nacional, mas quase sempre acaba por perdê-los para polos esportivos de outros estados. Entre eles, as campeãs olímpicas no voleibol Tandara Caixeta, Paula Pequeno e Fabíola Nascimento; o campeão olímpico de vôlei de praia

Bruno Schmidt; o campeão da NBB Arthur Belchior; os jogadores de futebol Kaká e Dimba, entre vários outros. Na opinião do gestor de federações do Distrito Federal Mauro Osório, os atletas saem da capital devido à falta de grandes clubes e de empresários que vislumbrem o poder de transformação do esporte. “Futebol é um agregador em termos de patrocínio e, quando vemos o cenário da capital, não temos clubes fortes que estão competindo nacionalmente. Isso dificulta atrair empresas”, explica Mauro. A Secretaria de Esporte, Turismo e Lazer do GDF, junto com o Ministério do Esporte, oferece diversos programas para estimular a prática na capital, mas o apoio só atende uma parte mínima das demandas dos atletas. Outra situação recorrente são empresários que, quando resolvem investir, acabam por selecionar um atleta e patrociná-lo, priorizando o retorno imediato da marca exposta

pelo atleta, e não o real incentivo ao esporte. “O ideal seria um apoio institucional, apoiar uma federação por completo e, a partir daí, dividir com o atleta. Mas, o que acontece, é que o empresário vai aos clubes, retira o atleta destaque e sai de cena. E os outros atletas que podem surgir no mesmo lugar? E a federação dele? É uma mentalidade que precisa mudar”, opina Mauro. Até agora, os poucos incentivos conquistados pelos três atletas que estão de olho em 2024 são apoio de nutricionista, academia e suplementação. Com toda influência pelo histórico de grandes competidores da capital, eleainda buscam o reconhecimento. Eles sabem que, em geral, esse tipo de conquista só vem após as vitórias olímpicas. Parte da bem-sucedida história do judô brasileiro foi construída pelas “pratas” de Brasília. Aqui cresceram Érika Miranda, Ketleyn Quadros e Lu-

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AOS 18 anos, a levantadora Vivian Lima já ocupa vaga de titular


TAKAKI É a promessa no judô nacional

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ciano Corrêa. Juntos, eles são donos de uma medalha olímpica, seis títulos mundiais e três ouros em pan-americanos. A história deles é uma das inspirações de Matheus Takaki. “Eu vejo como uma motivação para treinar cada vez mais e realmente chegar a alcançar meus objetivos, e não ficar só na promessa”, conta. O jovem atleta, no entanto, já coleciona medalhas. Campeão Brasileiro Sênior 2017, Campeão Brasileiro Escolar 2017, Campeão Brasileiro Sub-18 2017, Campeão Sul Americano Adulto 2017 e Campeão Brasiliense em judô -60kg, sem contar a participação no Campeonato Mundial e Pan-americano. “Eu me preparo para ir para o Japão, mas o foco maior é em Paris 2024, onde eu tenho mais chances de estar e brigar por algo. Mas claro que quero estar na próxima seletiva olímpica”, declara. Desde a década de 1970, a capital também tem revelados nomes nos saltos ornamentais. Berço de atletas como Silvana Neitzke, Hugo Parisi e César Castro, o DF vê surgir uma nova geração de talentos. Entre eles, Luís Felipe Moura, que já exibe no currículo o vice-campeonato Sul-Americano no Peru e o terceiro lugar no Sul-Americano na Colômbia, ambos em 2017. No mundial da Rússia 2017, ficou entre os 15 primeiros. O jovem saltador também sonha com uma vaga nas Olimpíadas de 2020. “Meu objetivo é conquistar meu espaço e ser capaz de representar meu país. Para isso, vou lutar a cada

dia para chegar lá e, em Paris 2024, Mesmo distante da capital, a mequem sabe, já me tornar um campeão nina acabou brilhando aos olhos de olímpico”, afirma Luís Felipe. Sérgio Negrão, ex-gerente e treinador Ao conviver com as consideradas do Brasília Vôlei, que acabou fazendo estrelas, eles se sentem pressionados e, o convite para a atleta retornar à caprincipalmente, motivados a seguir o pital e já integrar o time profissional, mesmo caminho. Por ora, o passaporte no final de 2016. “Foi uma surpresa para Vivian Lima é ter mais espaço den- para mim. Fui para São Paulo, jogar tro da equipe profissional. “Confesso pela categoria infanto. O Sérgio me viu que na primeira semana atuando, eu fi- jogando e me fez o convite para jogar quei muito assustada, mas com o apoio como profissional”, relembra. das meninas da equipe, eu aprendi muiApesar de novos, os brasilienses to e, por consequência, amadureci e já conquistam prêmios que recofoquei em batalhar pelo meu objetivo nhecem suas promissoras trajetómaior que é as Olimpíadas”, relata. Há rias. Na temporada 2017/2018, com um ano ela conseguiu ser titular no Bra- a oportunidade de jogar de forma sília Vôlei, time profissional da capital. integral uma Superliga Feminina, a Para chegar aos resultados de hoje, levantadora se transformou em uma o caminho foi longo. Aos 11 anos, es- das grandes promessas do Brasília treou nas quadras como passatempo. Vôlei. Vivian já entrou para a história Assim como ela, Luís Felipe começou da competição nacional ao receber o a treinar com 11 anos em busca de la- prêmio de melhor jogadora em quazer. Já Matheus iniciou no tatame mais dra, sendo a mais jovem atleta com o cedo, com 6 anos. Todos, no entanto, Troféu Viva Vôlei. No início de 2018, têm certeza de que o esporte é a pro- Takaki conquistou o prêmio Brasília fissão. No caso de Matheus, o cami- "Meu objetivo é conquistar meu espaço nho para o que seria inicialmene ser capaz de representar meu país" te hobby passou Luis Felipe, promessa nos Saltos Ornamentais por dificuldade. Alvo de bullying na escola, por conta da Esporte destacando seu desempebaixa estatura em relação aos colegas, nho em competições nacionais. ele buscou a superação no esporte. A Um dos problemas enfrentados mãe dele, Sueny Takaki, resolveu pro- no cenário esportivo da capital é a curar solução para ajudar no desenvol- má gestão nas categorias de base, vimento. Hoje, a baixa estatura ajuda- porta de entrada e, talvez, a única -o a surpreender os adversários, com saída para jovens promessas. Muimovimentos mais rápidos. tas vezes sobra pressa e falta paciJá Luís Felipe nem conhecia os ência com o tempo de maturação saltos ornamentais quando também do atleta. a mãe, Francisca Moura, resolveu inscrevê-lo nas aulas do esporte no Centro Olímpico do Gama. De segunda a sábado, o jovem enfrenta uma rotina considerada puxada de treinos pela parte da manhã, no local onde está instalado o Centro de Excelência em Saltos Ornamentais da UnB. Também foi na família a primeira influência de Vivian. O irmão dela, poucos anos mais velho, foi decisivo. Diariamente, os dois iam juntos treinar. Inicialmente, ela ficava à beira da quadra pegando as bolas que por ali saíam. Logo, no entanto, chamou atenção do treinador e daí até chegar às divisões de base do Brasília Vôlei foi um pulo. O ótimo desempenho a levou para o time do Taubaté, em São Paulo.

LUIS FELIPE realiza os saltos da plataforma de 10m 44


atenção para os dados coletados após as OlimpíaVivian Lima, jogadora de vôlei das do Rio de tério do Esporte em parceria com a Janeiro em 2016. Na edição olímpica, UnB, o centro é considerado um dos 77% dos 465 atletas convocados para melhores da América Latina e rece- defender o Brasil eram bolsistas. Das beu várias seleções durante os Jogos 19 medalhas conquistadas pelos braOlímpicos Rio 2016. Conta com uma sileiros – a maior campanha da história piscina olímpica de 50m, uma semio- –, apenas o ouro do futebol masculino límpica de 25m, uma piscina de saltos não contou com bolsistas. Já nos Joornamentais e um ginásio de treina- gos Paralímpicos, o Brasil teve a maior mento no seco. delegação da história, com 286 atletas, Em geral, os programas ofereci- sendo 90,9% bolsistas. Foram 72 medados são relacionados a jovens inician- lhas conquistadas, em 13 esportes difetes e interessados no esporte, como o rentes: 14 ouros, 29 pratas e 29 bronzes, Centro de Iniciação Desportiva, que além de 99 finais disputados. têm a função de ofertar a iniciação, o aperfeiçoamento e o treinamento por meio de atividades gratuitas. Existe também o programa Boleiros, que gaBRASILIENSES EM DESTAQUE rante apoio a ligas de futebol amador, e o Escola de Esportes, que visa incentivar a prática esportiva entre crianças e adolescentes de 6 a 17 anos, além de integrar o adulto, o idoso e pessoas com deficiência. Para atletas profissionais, existe o programa Compete Brasília, com o objetivo de incentivar a participação de ATLETISMO atletas e paratletas de alto rendimento Joaquim Cruz em campeonatos nacionais e internacionais, por meio da concessão de pasNascido em Taguatinga, em sagens terrestre e aéreas nacionais e 1963, conquistou o recorde mundial juvenil na disputa pelos internacionais. A maior parte do apoio 800 metros em 1981, resultado que o levou aos Estados governamental vem da Bolsa Atleta, BASQUETE Unidos. Aos 21 anos, em Los que beneficia atletas de alto rendimenAngeles, conquistou o ouro e o Pipoka recorde mundial. to em competições nacionais e internacionais. Começou a jogar aos 10 anos Asa Sul. O ex-jogador de A bolsa garante condições mínimas na basquete João José Vianna, conhecido pelo apelido Pipoka, para que se dediquem ao treinamento integrou a seleção brasileira por FUTEBOL e competições locais, sul-americanas, 13 anos — de 1985 a 1998. Com o Brasil, conquistou o Lúcio pan-americanas, mundiais, olímpicas histórico ouro dos Jogos PanAmericanos de Indianópolis em e paraolímpicas. Atualmente, são seis Pentacampeão com a seleção 1987 sobre a seleção norteas categorias de bolsa oferecidas pelo americana. brasileira de futebol na Copa do Mundo de 2002, o zagueiro Ministério do Esporte: Atleta de Base, Lúcio iniciou a carreira na capital. No currículo, soma R$ 370; Estudantil, R$ 370; Nacional, R$ VOLEIBOL também um Mundial de Clubes, 925; Internacional, R$ 1.850; Olímpico/ três Campeonatos Alemães e Leila Barros um título no Italiano. Paralímpico, R$ 3.100; e Pódio, R$ 5 mil a R$ 15 mil. Existe, ainda, a Lei do Leila nasceu em Taguatinga e duas medalhas Incentivo ao Esporte, que permite que conquistou olímpicas, os bronzes em Atlanta (1996) e em Sydney empresas e pessoas físicas invistam (2000), além de diversas outras SALTOS ORNAMENTAIS parte do que pagariam de Imposto marcas com a equipe nacional, uma prata e um bronze em Hugo Parisi de Renda em projetos esportivos como mundiais, quatro títulos do Grand Prix e um ouro panaprovados pelo Ministério do Esporte. Nasceu na Asa Norte e se As empresas podem investir até 1% americano. tornou um dos maiores nomes nacionais da modalidade. Além desse valor e, as pessoas físicas, até 6% das Olimpíadas de Atenas 2004, Parisi tem 25 títulos no do imposto devido. Campeonato Brasileiro Absoluto O Ministério do Esporte chama e cinco no Sul-Americano.

"Muitas vezes faltam investimentos para times e atletas de baixa renda"

Foto: Getty Images

Foto:: CBB

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Foto: Arquivo Pessoal

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Segundo o técnico de bases de voleibol, Inácio Junior, que treina o time feminino do Sesi e é auxiliar técnico do Brasília Vôlei, esse processo começa já nas primeiras competições. “Eles enfrentam esse cenário porque começam cedo demais, então isso pode ser considerado normal. Nesta hora é que entra o trabalho do clube, em ser paciente para cuidar da adaptação deste atleta que, por consequência, vai entrando no ritmo e ganhando potencial para suportar toda a mudança com naturalidade”, opina. Apesar de estar realizando esse grande sonho, Vivian destaca a falta de apoio para os que começam a carreira. “Existem muitas dificuldades. A base ainda não tem a visibilidade da Superliga. Muitas vezes falta o investimento para alguns times, algumas atletas mesmo de baixa renda”. Em relação ao cenário brasiliense no judô, Matheus explica que Brasília tem potencial para se tornar uma capital reconhecida na modalidade, mas ainda precisa ter base para oferecer suporte aos atletas. “Por falta de clubes, que os ajudem em salários, a migra para os outros estados. Eu mesmo já recebi propostas para sair daqui e provavelmente isso vai acontecer no futuro”, explica Takaki. Luís Felipe considera-se privilegiado, pois treina em uma estrutura olímpica. “Não tenho nada para reclamar da minha estrutura de treino, na realidade me sinto cada vez mais um atleta profissional. Me preparando para realizar meu sonho”, relata. Construído e financiado pelo Minis-


EDUCAÇÃO COM AJUDA DO MEIO AMBIENTE redemoinho . ano 09 . número 14

Número de jovens que se envolvem no movimento escoteiro aumenta nos últimos 10 anos, estimulando a conscientização ambiental

FELIPE DOURADO

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Cuidando do meio ambiente

S

er escoteiro está se tornando cada vez mais comum entre jovens no nosso país. A prática, de acordo com a União dos Escoteiros do Brasil (UEB), cresceu cerca de 35% nos últimos 10 anos, atingindo, direta e indiretamente, mais de 100 mil pessoas no território nacional. No DF, já são mais de 2 mil crianças e adolescentes, com idades entre 4 e 18 anos, segundo o órgão nacional. Esse aumento no interesse pelo movimento escoteiro tem relação direta com um estímulo fundamental na vida dos praticantes, e que se intensificou nos últimos anos: o

Em diversas regiões do DF, ações de limpeza urbana, exploração em leitos de nascentes, entre outras atividades, têm sido incorporadas à rotina dos grupos, que se encontram normalmente aos sábados para aprender sobre a importância da natureza. A prática incentiva os adolescentes a adotar uma postura mais consciente. Todos os anos, por exemplo, os escoteiros promovem um Mutirão de Ecologia (Muteco). Durante uma semana, os grupos desenvolvem atividades relacionadas à preservação, conscientização e conservação do meio ambiente. “Nas atividades de 2017, os meninos aprenderam a importância da reciclagem na paisagem urbana. Foi muito interessante vê-los aprendendo sobre como fazer uma separação eficiente do lixo, como reutilizar materiais e outras atividades assim”, conta Albuquerque.

Durante o mutirão de 2017, o grupo escoteiro João XXIII, do Guará II, realizou atividades dentro do Parque Ecológico do Guará, envolvendo coleta de material para reciclagem e plantação de árvores. “Praticamente todas as árvores do parque foram plantadas pelo nosso grupo”, conta Maiara Bezerra de Lima, estudante de 14 anos, e membro do ramo escoteiro do grupo. “A gente atua de uma forma, muitas vezes, discreta. Sempre tentamos deixar os lugares por onde passamos melhores do que quando os encontramos”, completa. O presidente regional ressalta, ainda, a importância dessas atividades para os membros da comunidade. “Nosso trabalho é similar a um ‘trabalho de formiguinha’: de pouquinho em pouquinho. Nós ensinamos as crianças, que ensinam os amigos, e ensinam os pais, que passam a implementar nos condomínios, nas quadras, e acaba que, no final, uma região inteira já está se conscientizando”, detalha. O movimento escoteiro utiliza a meritocracia como principal “modelo educacional”. E é assim que os grupos escoteiros vêm trabalhando a prática da educação ecológica. Uma das maneiras de estimular à conscientização é a distribuição de insígnias – emblemas que são conquistados através da realização de diversas atividades, e que simbolizam uma especialização do escoteiro. “Nós tivemos recentemente uma insígnia que ensinou os jovens a separar o lixo e reduzir o

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amor à natureza e o despertar da juventude brasileira pela defesa da maior riqueza do Brasil. Os adeptos desse movimento são sempre voluntários e acreditam na educação como principal ferramenta para mudança da realidade brasileira. Os escoteiros atuam principalmente como responsáveis pela fiscalização e conscientização nas comunidades em que se localizam, em busca de uso sustentável dos recursos naturais e maior cuidado para com o meio ambiente. A prática do escotismo existe desde o início do século XX – no Brasil, já tem 98 anos. Ao longo dos últimos anos, contudo, o movimento escoteiro tem recrutado cada vez mais jovens. Entre 2010 e 2018, o número de ingressantes do movimento passou de 75 mil para 100 mil pessoas, desde o primeiro ramo escoteiro (os chamados lobinhos) até o último (pioneiro). Destes, apenas 25% possuem mais de 18 anos. “Nossos métodos não se congelam. Eles se moldam. Nós sempre nos moldamos à realidade que os jovens vivem. Seja por meio da abordagem, seja por meio da linguagem”, sustenta Márcio Albuquerque, diretor presidente da União dos Escoteiros no Distrito Federal.

NO MÉTODO educacional, emblemas, medalhas e insígnias são aplicadas como incentivo 47


Consciência ecológica

ESCOTEIROS SEMPRE buscam deixar o lugar por onde passam melhor do que quando encontraram

"Ensinamos as crianças, que ensinam os amigos e os pais, que passam a implementar nos condomínios, nas quadras" Márcio Albuquerque, presidente da União dos Escoteiros do DF

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consumo”, exemplifica João Henrique Moretti, diretor do 6º Grupo Escoteiro do DF – Caio Martins; sediado no Setor Militar Urbano. A importância dos escoteiros na vida urbana também é percebida por quem luta em prol de um futuro mais sustentável. Segundo a analista de conservação do WWF-Brasil Alessandra Manzur, os ganhos da comunidade são percebidos ao longo do tempo. “O trabalho de educação ecológica que esses grupos desenvolvem, principalmente nas crianças e nos adolescentes, reforça a importância de lutarmos por um país melhor

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para as gerações futuras. Em longo prazo, os cuidados que são ensinados, se tornam fundamentais para nossa sobrevivência enquanto espécie no planeta”, afirma. Dentre outras atividades, Caio Martins também desenvolveu, no último ano, a criação de uma horta comunitária para a comunidade cultivar alimentos orgânicos. “Foi outra ação de impacto, que estimulou as famílias a terem alimentação balanceada e coerente. Além do mais, foi extremamente divertido aprender a cultivar alimentos. Todos acabamos aprendendo um pouco mais”, observa.

Em 2018, o tema mais importante a ser abordado em cada grupo escoteiro pelo Brasil, delimitado pela UEB, trata da “educação para a vida”. O assunto é estabelecido pelo órgão a fim de preparar terreno para o principal encontro dos escoteiros no Brasil: o Jamboree Nacional. Para isso, as instituições ao redor do Brasil têm até o fim do ano para desenvolver atividades relacionadas à consciência ecológica, inteligência emocional e, principalmente, espírito social e liderança. Além disso, a proposta também estimula os grupos a desenvolverem uma maior interação entre os familiares e os jovens ligados ao movimento. O modelo já vem sendo aplicado em algumas das associações de escoteiros em Brasília, como no caso do grupo João XXIII. “Nós nos preocupamos em usar de modo consciente e cauteloso o ambiente em que estamos inseridos. Afinal, a prática do escotismo depende diretamente de um meio ambiente fortalecido para ser praticada. Até o planejamento de o que podemos retirar da natureza para o nosso uso é calculado, para que não haja excessos. Ensinar isso ao jovem, é ensiná-lo a ser mais consciente, de uma forma intuitiva e natural”, explica Matheus Weny, chefe-escoteiro do grupo. O mutirão ecológico ressaltou a importância da conscientização, principalmente nos jovens, e demonstra que ainda precisamos reduzir o consumo de lixo. Na Região Administrativa do Guará, por exemplo, aproximadamente 13 toneladas de lixo foram recolhidas pelo Serviço de Limpeza Urbana do Distrito Federal (SLU) nos três primeiros meses de 2018. Em 2017, foram 39 toneladas de resíduos recolhidos pelo SLU, cerca de duas toneladas a mais do que em 2016. Aos poucos, o Distrito Federal e o Brasil vêm percebendo a atuação sutil do escotismo, e a importância da manutenção e do incentivo à educação ambiental, cada vez mais cedo. “Se passássemos a tratar o meio ambiente como ele realmente deve ser tratado, como a maior riqueza que temos, com certeza teremos uma vida ainda mais pacífica e harmoniosa”, detalha Márcio Albuquerque. O brilho em seus olhos ressalta o valor que a natureza precisa ter, principalmente para quem, hoje, é o futuro do nosso país.


O QUE É E COMO GANHAR A INSÍGNIA DO MEIO AMBIENTE A Insígnia Mundial do Meio Ambiente (IMMA) envolve uma série de atividades as quais o escoteiro realiza, com o objetivo de “explorar e refletir” sobre os seguintes itens: Ar e Água; Habitats e Espécies; Substâncias Perigosas; Melhores Práticas Ambientais; e Riscos Ambientais e Desastres Naturais. Cada um dos itens possui sua série de atividades, orientadas para desenvolver o conhecimento acerca deles. Como o sistema educacional estimula a autoaprendizagem, o jovem que persegue essa insígnia deve se orientar por um guia que estabelece como proceder para cada tipo de atividade proposta pelo seu chefe-escoteiro.

Para ganhar a insígnia, Amanda Brito Pennington, de 13 anos, se empenhou em um projeto, ao longo de três meses, em que confeccionou cerca de 120 brinquedos reutilizando material reciclado, quando ainda era do ramo lobinho (aos 8 anos de idade). Como parte da ação social a qual a jovem precisava desenvolver, todos os brinquedos produzidos pela escoteira foram doados para crianças de uma creche na Estrutural. “Conheci outras realidades além da minha: crianças que não tinham condições de ter brinquedos. Apenas juntei um sentimento de vontade de ajudar o próximo, ao mesmo tempo em que aprendia com a insígnia que eu ganhei”, sustenta.

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Entre as atividades executadas está, por exemplo, um projeto ambiental criado pelo jovem (ou pelo grupo em que ele está inserido) que reúna todo o conhecimento adquirido. Nesse momento, o jovem é encaminhado à “Corte de Honra”, um conselho formado por membros da UEB, que avaliam suas atividades e, enfim, redigem uma recomendação atestando a participação do jovem nas ações coletivas da seção ambiental. A organização destaca, ainda, que cada um dos ramos do escotismo (lobinho; escoteiro; sênior ou pioneiro) tem seu ciclo de atividades.

AMANDA PENNINGTON é uma das contempladas pela IMMA

A HIERARQUIA é ensinamento fundamental do movimento escoteiro 49


ATHOS POR TODA A PARTE Seja em fotos, objetos, obras e até tatuagens, Athos Bulcão permeia o cotidiano de quem mora ou visita a capital

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L

ogo que desembarcam no aeroporto, os visitantes da capital federal já se deparam com dois enormes painéis de azulejos - um azul e verde e outro laranja e amarelo. A maioria nem imagina que está diante de uma obra de arte de um dos maiores símbolos de Brasília. Dez anos depois de ter morrido e no ano em que completaria 100 anos de idade, Athos Bulcão continua tão presente na paisagem e

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no espírito da capital que é praticamente impossível não se deparar com uma das obras dele, todos os dias. Carioca, Athos Bulção veio para Brasília em 1958, movido pelo interesse de contribuir com a construção da nova capital. Amigo intimo do urbanista Lúcio Costa e do arquiteto Oscar Niemeyer, ele foi convidado por Juscelino Kubitschek para fazer parte da equipe que conduziria os principais trabalhos de criação e arte dos monumentos que seriam construídos aqui. Cinco

LUCAS FARIA

décadas depois, o artista segue encantando moradores e turistas. A arte de Athos Bulcão está tão identificada com a cidade que basta uma rápida navegada pelas redes sociais para se deparar com a quantidade de pessoas que se exibem em fotografias tiradas com os azulejos da Igrejinha ao fundo, os mosaicos da parede do Teatro Nacional e o painel Ventania, do salão verde do Congresso. Como se não bastasse, a obra do artista está nas canecas, toalhas


e até azulejos usados como peça de tratado para projetar a azulejaria do decoração nas casas. E há quem não Teatro Municipal de Belo Horizonte. resista e carregue a marca do artista Um ano depois ele integrou a equipe na pele. Elas fazem parte da lista de do pintor Candido Portinari, na proopções oferecidas pelos tatuadores dução do painel de São Francisco de de Brasília. Assis, na Igreja da Pampulha. A estudante Nirvana Maciel não Para o professor de história da pensou duas vezes na hora de home- arquitetura Brasileira, da Universidanagear Brasília e tatuou nos braços os de de Brasília, José Carlos Córdova, símbolos da Igrejinha. “Quando resol- o trabalho feito na Pampulha recolovi tatuar queria algo que simbolizasse cou o azulejo na arquitetura moderna. a cidade, e então me perguntei, por “O azulejo estava esquecido. Estava que não Athos?”, diz. Já o estudante só nas paredes internas das casas e de arquitetura Lucas Viana sempre foi servia apenas como algo decorativo apaixonado pelo trabalho do artista. dentro de um ambiente”, explica. Ele lembra que quando era mais novo “Com a obra na Pampulha, as pesfazia tours soas voltaram a pela cidade se atentar a essa “Athos na minha vida é para vislumarte e partir dali brar tudo o azulejo volta a mais do que Brasilia” aquilo que recuperar força Lucas Viana, estudante tinha ligação dentro da arquicom Athos tetura”, conclui. Bulcão. Na hora de escolher uma carA arquiteta Ana Luísa Oliveira, reira, não teve dúvidas e optou por também professora da Universidaarquitetura. Ele queria estudar Athos de de Brasília, confirma que as obras Bulcão mais profundamente. “Athos na igreja da Pampulha engatilharam na minha vida é mais do que Brasília”, uma série de obras com este tipo de conta, com um sorriso no rosto. “Eu trabalho pelo Brasil. “Após esta igreja, sempre brinco que se não fosse a ge- os arquitetos voltaram a fazer projenialidade do professor junto com Os- tos com azulejos. Um exemplo é o car [Niemeyer], essa cidade seria tão Pedregulho, no Rio”, afirma. menos colorida e alegre” diz Lucas. De acordo com Córdova, outro Em casa, Lucas possui diversos ponto importante na volta dos azuitens que faz questão de deixar à lejos ao cenário moderno da arquimostra. São pratinhos, canecas e até tetura foi a adaptação da arquitetura um quadro com uma réplica dos azu- para uma produção mais industrial. lejos da igrejinha. “Meus amigos já até sabem o que me dar de presente”, afirma. Mas a mãe dele, Marta Viana, reclama. “Com a quantidade de coisa que ele tem, fica complicado não dar algo repetido”, relata.

O professor acredita que essa inovação permitiu aos arquitetos e artistas novas possibilidades de voos na imaginação. “Você tem nessa etapa o fim das fachadas artesanais, cheias de esculturas e cariatides [aquelas estátuas que seguram os pilares]”, explica. O professor de arte contemporânea da Universidade de Brasília, Antônio Martins, ressalta a importância desta produção. “O Athos junto com os arquitetos passaram a trabalhar mais os volumes geométricos, sem ornamentação, explorando essa nova forma de produção de materiais”, explica. Identidade de Brasília Foi o céu de Brasília que fez Athos Bulcão escolher a cidade para passar o resto da vida. O artista começou a desenhar os azulejos da igrejinha ainda no Rio de Janeiro e veio, em 1958, supervisionar a instalação, mas não resistiu à imensidão azul que cobria e daria ainda mais ênfase ao trabalho dele. “Athos dizia que quando chegou a Brasília tudo o encantava, mas principalmente, a sensação de vastidão da paisagem e o céu sem fim”, relata a diretora da Fundação Athos Bulcão, Valéria Cabral. Para o artista plástico Ralph Gehre, Athos Bulcão assumiu a identidade da cidade e a cidade assumiu a identidade dele. “Ele se encantou pelo que estava sendo construído aqui, e trouxe a paixão pelo que ele viu para dentro da sua

O começo

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Nascido no Rio de Janeiro em 2 julho de 1918, Athos Bulcão abandonou o curso de Medicina, aos 21 anos, para se dedicar à pintura e às artes plásticas. Em 1939 fez amizade com o pintor e paisagista Roberto Burle Marx. Era o começo de uma parceria que encantaria o mundo. Já a parceria com Oscar Niemeyer começaria em 1943, quando já famoso pelos azulejos, o artista foi con-

LUCAS VIANA e Nirvana Maciel homenagearam Athos com a tatuagem da igrejinha

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VALÉRIA CABRAL é responsável por manter e preservar a obra do artista plástico

obra”, explica. Nos 50 anos que passou na capital, Athos Bulcão trabalhou em 261 obras. Todas catalogadas e inventariadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Durante os anos que viveu em Brasília, o artista se tornou muito popular entre o público. “Athos fez de Brasília um museu ao ar livre”, afirma o arquiteto Sergio Parada, que

trabalhou e foi amigo de Athos Bulcão. “Você vai ao parque e tem azulejo dele. Num edifício público tem um painel dele. Vai a uma casa, tem obra dele. Ele faz parte de Brasília”, finaliza. Valéria Cabral concorda e explica que a paixão das pessoas pela obra do artista está ligada ao fato dele as ter tirado de dentro de um museu e as colocado em espaços abertos. De acordo com a diretora, os painéis pensados e feitos pelo artista sempre se preocupavam com o deslocamento do admirador da obra. Para ela, Athos Bulcão tinha a característica de sempre favorecer o expectador.

Em 2009, o Governo do Distrito Federal tombou as obras públicas do artista como patrimônio de Brasília. É uma maneira de impedir que elas fossem destruídas ou ficassem sem manutenção. A fiscalização é feita pela Secretaria de Patrimônio e Meio Ambiente do Ministério Público, com supervisão da Fundação, única entidade autorizada a reproduzir e reformar qualquer obra ligada a Athos Bulcão. Influência Além de ter tido grande importância na arquitetura da cidade, Athos também participou da formação de novos jovens arquitetos e artistas plásticos na capital. Ele lecionou no Instituto Central de Artes da Universidade de Brasilia, a convite de Darcy Ribeiro em 1963. Foi professor da Universidade até 1965, quando participou dos movimentos de protesto contra o regime militar, que resultou na demissão coletiva de mais de 200 professores da

PERFIL DE UM ARTISTA Artista célebre, cheio de talentos, Athos Bulcão também colecionou amigos durante os 50 anos em que viveu em Brasília. Conhecido por ser uma pessoa simples, discreta, de fala mansa, não perdia o bom humor e a língua afiada. “A inteligência do Athos era muito grande. Irônico ao extremo”, explica Sergio Parada. O artista plástico Ralph Gehre conheceu Athos Bulcão quando ainda era adolescente, ele explica que seguia o artista até a única papelaria da cidade, na época na 508 Sul, e ficava observando o que ele iria comprar. “Eu via tudo o que ele levava, depois que ele saia eu ia lá, e comprava a mesma coisa”, lembra. “Na época eu não sabia muito o que fazer com tudo aquilo, mas uma coisa era certo, eu queria ser como ele”, finaliza Ralph. Em uma dessas idas à papelaria Athos Bulcão conversou um pouco com Ralph, e passou dicas de como seguir na carreira das artes plásticas. “Ele sentou comigo e me falou: Encontra aquilo que você se identifica na arte, e reproduz para o papel. O importante é que você ame isso”, recorda. Ralph. “Eu arregalei os olhos e absorvi aquilo para minha vida”, diz. Anos mais tarde, em 1980, quando Ralph se torna artista plástico e passa a trabalhar com a arte mais de perto, ele reencontra Athos Bulcão em uma mostra de arquitetura, com obras dos dois artistas expostas. O trabalho de Ralph Gehre foi caracterizado pela utilização de mídias gráficas, pinturas e fotografias tratando de questões relativas à leitura, utilizando a relação da imagem e da palavra. Nessa exposição Athos se reaproxima de Ralph e elogia o trabalho do artista plástico. “Quando ele fala que se encantou por aquilo que eu fazia, fiquei sem palavras”, conta. “Me fez relembrar a época que eu corria atrás dele”, afirma. Depois desse reencontro passaram a frequentar cafés e conversar sobre vários assuntos. redemoinho . ano 09 . número 14

Da mesma maneira, a diretora da Fundação Athos Bulcão, Valéria Cabral, teve o primeiro contato com o artista. Ela explica que era muito amiga de Ralph e que ia com ele à papelaria que Athos frequentava. Depois de morar muitos anos fora do Brasil, Valéria volta à capital e passa a frequentar a casa da curadora Maria Luísa de Carvalho, que viveu com Oscar Niemeyer por 25 anos, e era muito amiga da família de Athos Bulcão. Em uma dessas visitas ela explica que encontrava Athos bebendo um vinho e se divertindo com os amigos. “Eu ficava super preocupada com aquele homem, já de idade, indo para casa dirigindo aquele carro antigo”, recorda. “Ele nunca soube mas eu ia atrás dirigindo até determinado momento para ver se ele ia direitinho, depois ia embora, mas gostava de acompanhar”, relata. Depois que começou a trabalhar na Fundação, com projetos de produção e pesquisa, em 1996, a relação de amizade só aumentou. “A gente vai crescendo e a idade vai perdendo a importância”, explica. “Então com a relação de trabalho, ele ia lá para casa tomar um café, e mais no finzinho eu ia visita-lo no Sarah” 52


UnB. Foi reintegrado à Universidade em 1988, pela lei da anistia, onde deu aulas até se aposentar em 1990. Em 1997 recebeu o título cidadão honorário de Brasília. Em julho de 2008, morreu de parada cardiorrespiratória, aos 90 anos, no Hospital Sarah Kubitscheck, onde estava em tratamento contra o Mal de Parkinson. Principais parceiros O artista plástico trabalhou com grandes arquitetos brasileiros, como Ítalo Campofiorito, Milton Ramos e Elvo Duvograsi. Mas dois foram considerados fundamentais por tirar o máximo da capacidade de Athos Bulcão: Oscar Niemeyer e João Filgueiras Lima, o Lelé. Com Niemeyer, Athos trabalhou em projetos que completassem as construções de importantes edifícios públicos da capital, e em painéis que trouxessem leveza ao concreto. Com Lelé, ele fez a Rede Sarah, casas particulares e os tribunais de contas do Nordeste e do DF. Para a diretora da Fundação Athos Bulcão, a relação dele com os dois arquitetos era marcada pela forte troca de experiências. Ela explica que os projetos feitos com Oscar não levavam em conta o grau de instrução da pessoa. “Era uma obra monumental, grandiosa e para todos”, explana. Já com Lelé, Valéria afirma que a obra servia mais para familiarizar o visitante com o local em que estava. “Eram projetos que faziam o bem, a pessoa entra e sente um abraço, um aconchego, uma alegria por estar naquele lugar”, completa. Comércio e legado

PROJETO AEROPORTO Além de trabalhar com Oscar Niemeyer e Lelé, Athos Bulcão também teve uma importante contribuição no projeto artístico do Aeroporto Internacional de Brasília. Em 1990, o governo brasileiro contrata o escritório do arquiteto Sérgio Parada, para desenvolver as obras dos terminais do aeroporto. Sérgio afirma que na época, fez o primeiro contato com Athos Bulcão, apresentou o projeto e esperou a resposta. “Logo de cara eu falei que queria um painel dele”, explica. “As pessoas quando desembarcassem queria que já respirassem um pouco de Brasília”, completa. “Fiquei todo bobo, porque o cara que eu tinha estudado na faculdade tava assinando um projeto meu”, explica. Em 2014, a reforma feita pela Inframerica, concessionária que administra o Aeroporto de Brasília, acabou destruindo em parte o projeto inicial de Athos Bulcão e Sérgio Parada. O painel de azulejos que deveria ser de livre acesso ao público ficou restrito a só uma parte da parede . “Se perdeu um pouco daquilo que era original, pois a pessoa sai do terminal e não tem vista global deles”, explica. “E o que ele falou para mim é que as pessoas possuíam o direito de recorrer essa obra”, sem esconder a chateação. Mesmo com a reforma do terminal é comum que um passageiro passe ali e tire uma foto com os azulejos de Athos. O advogado paraense Ricardo Alves veio a Brasília para uma reunião de trabalho e quis fotografar o mural do Aeroporto. Ricardo afirma que parou para tirar fotos com o painel por conta da beleza da parede. “Fiquei deslumbrado com o painel, aproveitei pra tirar uma foto e colocar no Instagram.

Exposição Para comemorar os 100 anos de nascimento de Athos Bulcão a Fundação organizou, em parceria com o Centro Cultural Banco do Brasil, a exposição “100 anos de Athos Bulcão”. A ideia da mostra é reavivar todos os

momentos do artista no decorrer da vida. São obras feitas à mão, pinturas dos principais trabalhos e as maquetes dos painéis de azulejos encontrados nos pontos turísticos de Brasília. A exposição vai até janeiro de 2019 e passará por Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro.

O ARQUITETO Sérgio Parada possui um painel privado em sua casa. A obra foi feita após trabalho com Athos no aeroporto de Brasília

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A Fundação Athos Bulcão é responsável por manter vivo o legado do artista. Em parceria com Governo do Distrito Federal, a fundação conseguiu implementar na grade horária das escolas veiculadas à Secretaria de Educação a matéria Athos Bulcão como obrigatória para o quarto e quinto anos do ensino fundamental. Além de estudarem a obra do artista, a Fundação recebe os alunos no museu destinado ao artista. Além disso ela é responsável por autorizar a reprodução e venda de qualquer objeto relacionado ao artista. Camisetas, tapetes e canecas precisam passar pelo aval da Fundação, antes de serem comercializados. A intenção é que a obra não perca a originalidade.

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O RETRATO DA POBREZA NA CAPITAL Enquanto o Distrito Federal lidera o ranking das unidades da federação com maior renda per capita do Brasil, situações de pobreza e extrema pobreza se escondem no Planalto Central.

A

AFONSO FERREIRA

UM PEDAÇO de madeira se transformou em um outdoor de pedido de ajuda

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os 27 anos, grávida de sete meses do quarto filho e desempregada, Kelly Karine mora com os filhos, a irmã e os primos em dois barracos de madeira com telhados de lona, às margens da Via N4 Leste, no Setor de Embaixadas Norte, no centro da Capital Federal. A distância entre o ponto onde os bar-

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racos estão e o Palácio do Planalto é de pouco mais de 2 quilômetros. Mas a proximidade do mais alto poder político do Brasil não traz condições dignas para ela e a família viver. Kelly Karine faz parte de um triste dado da Capital Federal. Ela está entre as 67.582 famílias que vivem em extrema pobreza no quadrado do Planalto Central. Os dados são da Secretaria de Estado de Trabalho, Desenvolvimento Social, Mulheres,

Igualdade Racial e Direitos Humanos – (SEDESTMIDH). Os números são de março de 2018 de acordo com Cadastro Único, instrumento do governo que identifica e caracteriza as famílias de baixa renda. Ao lado de um dos barracos, um pedaço de madeira se transformou em um outdoor de pedido de ajuda. Pintado à mão, com a frase “Precizamos (sic) de alimentos, roupas, brinquedos, enxoval e material


escolar”, a placa revela a situação de extrema pobreza em que a família vive. “Vivemos de doação de quem passa por aqui. Não deixo meus filhos passarem fome, se for preciso até pedir esmola, eu peço para não ver meus filhos passando fome e dormindo no relento”, relata Kelly. Vizinha da área nobre A moradora, que tem como vizinhas as sedes das Embaixadas, recebe por mês, do governo, pouco mais de R$ 200. São R$120 do programa Bolsa Família e R$90 do programa DF Sem Miséria. Em todo o Distrito Federal, 18.431 famílias são beneficiárias do programa Bolsa Família e 63.409 recebem o programa DF sem Miséria, de responsabilidade do governo local. Para sustentar os filhos, além de pedir ajuda, como alimentos e roupas aos moradores da Asa Norte, a desempregada cata latinhas e vigia carros na região nobre da capital. “Faço de tudo para não ver meus filhos passando aperto”, conta a moradora das margens da Via N4 Leste. Em vulnerabilidade social, a família de Kelly é considerada para o Governo como em situação de pobreza. Conforme tipificação do Ministério do Desenvolvimento Social, a família em extrema pobreza é aquela cuja renda per capita não ultrapasse R$85. Já as famílias em situação de pobreza possuem renda per capita entre R$85,01 e R$170.

“Brasília é uma das cidades mais desiguais do Brasil. A pobreza e extrema pobreza existem, mas estão escondidas” Thiago Aparecido Trindade, professor da UnB

Brasília (UnB), Thiago Aparecido Trindade, de 34 anos, os dados mostram o cenário de desigualdade da capital. Entre os brasilienses que sobrevivem com o que tem está dona Helena Rosa de Jesus, de 72 anos, que em busca de uma vida melhor saiu do Nordeste, há 48 anos, rumo a Capital Federal. Há mais de 20 anos, ela tenta se aposentar e não consegue. A justificativa, de acordo com a idosa, é que ela não tem tempo de contribuição junto ao Instituto Nacional do Seguro Social. Com a ajuda de vizinhos e recebendo um salário mínimo no valor de R$ 954, dona Helena tem em uma das paredes do barraco em que mora de favor em Samambaia, a bandeira do Brasil estampada. A idosa paga as contas de luz, água e ainda compra os remédios para o coração. O dinheiro mal dá para a idosa se alimentar. “É uma vida difícil, sou pobre, não estudei porque me criei na roça. Às vezes, olho para as panelas e só tem arroz e feijão”, conta dona Helena. A idosa, que carrega no olhar as marcas de sofrimento, tenta sair da linha da pobreza. Um sonho que ela

carrega consigo é o de ter uma casa para chamar de sua. Há mais de 20 anos na fila de espera da Companhia de Desenvolvimento Habitacional do DF (Codhab) para ter a tão sonhada casa própria, não perde a esperança de ter uma casa em seu nome. “Eu sonho de noite numa felicidade tão grande tendo minha casinha própria para eu não precisar de viver de favor na casa dos meus sobrinhos”, relata a idosa. Ao contrário da situação de pobreza e extrema pobreza que vivem Kelly Karine e Dona Helena, dos mais de 3 milhões (3.039.444) de habitantes do Distrito Federal, cerca de 40% vivem com uma renda acima das que a idosa e a desempregada vivem. De acordo o IBGE, no ano passado a renda mensal de 1,2 milhão de pessoas chegou acima de R$ 2.548. Entre essa população está Vera Lúcia Vieira de Almeida, de 48, servidora do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Com uma estabilidade econômica, ela, que tem o salário de R$ 10 mil, conseguiu dar para as duas filhas, de 20 e 22 anos, uma educação de qualidade. As filhas sempre estudaram

A Síntese dos Indicadores Sociais 2017, apresentada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em dezembro de 2017, mostrou que 14,2% da população do Distrito Federal vive, por dia, com pouco mais de R$ 12, ou seja R$387 por mês. Essas pessoas estão classificadas de acordo com o IBGE como população em situação de pobreza monetária. Na contramão dessa situação, atualmente, o Distrito Federal lidera o ranking das unidades da federação com maior renda per capita do Brasil. No DF, a renda média por habitante é de R$ 2.548, mais que o dobro da média nacional, que é de R$ 1.268. Para o professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de

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Retrato da desigualdade

NOS ÚLTIMOS três anos, o número de pessoas em pobreza extrema aumentou no Brasil por conta da crise econômica

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FAMÍLIAS EM SITUAÇÃO DE POBREZA

em escola particular durante todo o período de estudos. A filha mais nova, recentemente, passou para o curso de Relações Internacionais na Universidade de Brasília, maior instituição de ensino superior do Centro-Oeste.

O acesso à educação da servidora e das filhas mostra que o principal problema quando se fala em desigualdade é a educação. Umas delas estuda na Unb, a outra, em particular. “ Com certeza, a mais nova passou na UnB, boa parte por causa

da escola particular e também porque fez cursinho preparatório. Mas ela tem uma inteligência acima da média e é muito interessada”, conta a servidora pública. Mesmo sabendo do esforço da filha, Vera Lúcia reconhece que ela vive em uma das cidades mais desiguais do país. “A Capital Federal é um retrato da desigualdade do país. É mais gritante, porque concentra as camadas da classe média ligadas ao serviço público, o que acaba ‘puxando’ para cima a renda per capita. A forma de administração que foi desenvolvida na cidade também criou uma massa de excluídos em volta. As oportunidades não são bem distribuídas por conta da orientação política utilizada”, acredita Vera. Alerta

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HELENA ROSA de Jesus, de 72 anos, mostra a geladeira vazia: "Às vezes, só tem arroz e feijão”

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Erradicar a extrema pobreza no mundo é o objetivo número 1 da agenda global de desenvolvimento da Organização das Nações Unidas (ONU) para os próximos 12 anos, período em que a ONU estabeleceu priorizar a proteção do planeta e a luta contra as desigualdades. O plano, batizado como Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, foi acordado em setembro de 2015 por 193 países das Nações Unidas, grupo do qual o Brasil faz parte desde 24 de outubro de 1945. Até 2030, a ONU quer erradicar a pobreza extrema para todas as pessoas que vivem com menos de R$ 6,65 por dia, ou seja quase R$ 200 por mês. Além disso, a organização pretende reduzir pela metade a proporção de homens, mulheres e crianças, de todas as idades, que vivem na pobreza, em todas as suas dimensões, de acordo com as definições nacionais. Para isso, a ONU, até 2030, quer implementar, em nível nacional, medidas e sistemas de proteção social adequados, para todos, incluindo pisos, e atingir na cobertura substancial dos pobres e vulneráveis. Mas a agenda de 2030 pode estar ameaçada. A coordenadora de cooperação técnica do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Samantha Salve, de 29 anos, alerta que há o risco de não se alcançar a meta até 2030, devido à crise


econômica que o país enfrenta. “Nos últimos 3 anos temos visto o número de pessoas em pobreza extrema aumentar no Brasil por conta da crise econômica que o país passa. Entre 2016 e 2017, cerca de 1 milhão e meio de brasileiros retornaram ou se tornaram extremamente pobres, esse é um número que nos preocupa bastante. É um sinal de atenção a que o governo e toda a sociedade precisam estar atentos para reverter esse quadro”, alerta a coordenadora da ONU. De acordo com a coordenadora de cooperação técnica do Programa das Nações Unidas, a situação de crescimento da extrema pobreza no DF não é diferente. Entre os anos de 2014 e 2015, por exemplo, mais de 2.200 pessoas na Capital Federal entraram para a linha da extrema pobreza. “No Distrito Federal, se comparado com o restante do país, é um número mais baixo. Mas entre os últimos anos da pesquisa, tivemos crescimento, isso representava 0,97% da população em 2014 e em 2015 cresceu para 1,01%, assim como no restante do país a extrema pobreza cresceu”, lembra Samantha Salve.

67.582 FAMÍLIAS vivem em extrema pobreza no quadrado do Planalto Central

Tchau extrema pobreza

“Dou graças a Deus com o que tenho, pobre não tem direito de comer carne” Helena Rosa de Jesus, moradora de Samambaia

“A CAPITAL Federal é um retrato da desigualdade do país”, afirma Vera Lúcia, servidora pública

social para o mercado de trabalho na publicação, ajudando a trazer novos trabalhadores para o grupo. Atualmente, tem a carteira de trabalho assinada pela empresa. O ex-morador de rua chegou a receber ajuda do governo com benefícios sociais como o DF Sem Miséria, Bolsa Família e outros benefícios. Mas no ano passado ele abriu mão dos benefícios, porque julgou que não precisava mais. Ele conta que o recebimento da ajuda do Governo o ajudou a construir uma nova vida. “Todos os auxílios do governo que se imaginar eu recebi. Mas eu abri mão, depois que comecei a trabalhar vi que eu não precisava mais”, conta Rogério Soares.

Atualmente, cursa o Ensino Médio pelo EJA – Educação para Jovens e Adultos – e tem planos de cursar Assistência Social. Há quatro anos longe das ruas, ele tem certeza de que nunca mais quer voltar para a vida antiga. Sobre o futuro, nem pensa antes de responder: “A sociedade me ajudou e me abraçou. Eu brigo pelas pessoas em situação de rua, porque eu venho da rua. Quero ter uma casa para receber moradores de rua e tratar todo mundo com dignidade. Meu prazer está em atender à rua, sou casado com ela. Me sinto na obrigação de atender essas pessoas que vivem como eu vivi”, finaliza o ex morador de rua.

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Mesmo com o crescimento da pobreza no DF, há quem conseguiu sair dessa situação. Há pouco mais de dois anos, Rogério Soares de Araújo, de 46 anos, conhecido como Barba, fez algo impossível para ele que até pouco tempo atrás vivia nas ruas do DF: alugou uma casa para chamar de sua em Taguatinga. Na verdade, a primeira de toda sua vida. Ele passou por orfanatos, morou de favor na residência de conhecidos e em lugares onde conseguia trabalho. Passou 30 anos vivendo nas ruas que também foi o lugar onde nasceu. Rogério começou a estudar e conheceu a revista Traços, que apoia moradores de rua e os emprega como vendedores, por meio do Centro para Pessoas em Situação de Rua (POP). Ele acreditou no projeto e virou agente


ALÉM DAS GRADES Alvo dos olhares preconceituosos da sociedade, mulheres que passaram pelo cárcere encontram dificuldades para reconstruir a vida

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É

do lado de fora da penitenciária que as ex-presidiárias costumam enfrentar o maior desafio, desde o dia em que receberam a condenação e passaram a cumprir a pena. Se reatar laços familiares e refazer amigos é uma tarefa difícil, se reinserir no mercado de trabalho é uma barreira quase intransponível.

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DARCIANNE DIOGO No DF, as 242 mulheres em regime semiaberto e as 201 em regime provisório sabem bem o que é isso. Das 443, apenas 92 estão empregadas. A situação retrata uma sociedade que ainda não aprendeu a dar oportunidades a quem quer reconstruir a vida depois do crime. Em Brasília, as ex-presidiárias geralmente encontram trabalho por meio da Fundação de Amparo ao Preso (Funap).

Reconstruir a vida foi algo que a ex-presidiária Wanessa Leão, 41 anos, teve de fazer. Presa em 2016 por tentativa de homicídio, ela conta que ao sair do cárcere descobriu o peso do preconceito da sociedade. “Até meus amigos me olham torto. Sempre você vai ser conhecido como a ex-presidiária”, lamenta. Até 2021 Wanessa terá de cumprir pena em regime domiciliar e conta que aban-


hora que pedem o nada consta, nem precisa voltar. Não adianta”, explica. O nada consta, também conhecido como “certidão negativa” é um documento que serve para confirmar, ou não, a existência de ações civis, criminais ou federais. Geralmente na admissão de um funcionário, empresas costumam pedir o documento para constatação. A ilusão do amor

“Até hoje todos, até meus amigos me olham torto. Sempre você vai ser conhecido como a ex-presidiária, isso nunca vai mudar” Wanessa Leão

dando dos filhos, ou não tem dinheiro para visitar, ou foram abandonadas pelos maridos”, destaca. A psicóloga atenta ainda para uma das consequências do encarceramento, o medo da liberdade. Segundo ela, muitas mulheres ao receberem o livramento condicional, entram em pânico por não saberem o que vão encontrar fora. “Às vezes já não se tem mais vínculo familiar”, explica. Atualmente, Núbia é contratada pela Funap e trabalha como copeira na Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento Básico do Distrito Federal (Adasa), mas o maior sonho é um emprego fixo. Ela diz que o emprego deu a ela a oportunidade de se sentir mais humanizada. “Aqui eu me inspiro nos funcionários, aprendo com eles sobre o bom comportamento, a ter disciplina, conversar, falar baixo e a respeitar”, diz.

A PSICÓLOGA Márcia Baradó explica que uma das características mais recorrentes dentro da unidade feminina é o abandono

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donou o curso de Direito por medo de não conseguir emprego depois. “Voltar a estudar pra que, se não vou arrumar emprego?”, questiona. Sem trabalho, ela depende do Bolsa-Família, que garante uma renda mensal de 240 reais. O dinheiro é insuficiente para manter as três filhas de 11, 10 e 8 anos. Para se sustentar, Wanessa depende de ajudas. Ela conta que desde o dia que saiu da prisão busca uma oportunidade no mercado de trabalho, mas só encontra portas fechadas. “Até que sou chamada para as entrevistas e passo direto, mas na

Presa em 2010 por tráfico de drogas, a ex-presidiária Núbia Mendes, 45 anos, é apenas mais uma vítima dos diversos casos que levam as mulheres ao cárcere: a paixão. O ex-marido estava preso, e pedia para que Núbia levasse dinheiro para ele. Envolvida e sem medir consequências, Núbia passou a traficar. “A gente pensa que existe esse amor todo e se ilude”, relata. Já presa, em 2013 Núbia recebeu a notícia de que o filho havia sido assassinado, aos 18 anos. Ela conta que não recebeu o direito de ir ao enterro. “Meu mundo caiu. A primeira coisa que fiz quando saí da cadeia foi ir ao cemitério para ver o túmuo do meu filho”, lembra. Com apenas um filho agora, a ex-detenta reconforta com o apoio da família. Foi com o auxílio dos familiares que a ex-presidiária conseguiu recomeçar a vida. Segundo ela, o primeiro passo foi se afastar das antigas amizades, que de certa forma a influenciaram no crime. “Troquei minhas amizades e abri mão de festas e bebidas alcóolicas”. Hoje, ela é casada com outro homem e diz que a escolha foi criteriosa. “Tive que escolher uma pessoa que não bebesse e que não gostasse de festa, até mesmo para me apoiar”, relata. Para a psicóloga e coordenadora de Grupo de Trabalhos do Sistema Prisional, do Conselho Federal de Psicologia, Márcia Badaró, uma característica recorrente dentro da unidade feminina, é o abandono. Ela conta que as mulheres ao contrário dos homens sofrem por não receberem visitas, principalmente do companheiro. “Ou a família está cui-


Oportunidades e futuro O mercado de trabalho é uma das portas que podem auxiliar um ex-presidiário a ser reinserido na sociedade. No Distrito Federal o único programa de apoio ao preso é a Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso (Funap), que tem por objetivo oferecer capacitação profissional. O programa tem 74 contratos com empresas parceiras, sendo 59 em empresas públicas e 15 em empresas privadas. A Funap atende 92 mulheres que cumprem pena em regime fechado e semiaberto. Dentre alguns serviços que são executados por elas, estão o trabalho no viveiro, serviços administrativos e serviços gerais. A diretora executiva da Funap Fátima Imai, diz que todas as demandas de encaminhamento para o mercado de trabalho são atendidas. “Nós temos ofertas, mas não temos demanda. A partir do momento que recebemos o pedido da Vara de Execuções Penais, já encaminhamos”, explica. A gestora de contratos da Adasa, Vanessa Pádua, explica quais motivos levaram a empresa a firmar contrato com a Funap, e diz que a ideia é dar crédito e oportunidade para que ex-presidiários não se sintam excluídos. “A gente tenta viabilizar uma cultura institucional, mais

A GESTORA de contratos da Adasa diz que um dos objetivos da empresa é dar oportunidade aos ex-presidiários

humanizada e de valorização”, diz. A empresa atende cinco sentenciados, sendo três homens e duas mulheres. Segundo a gestora, depois do vencimento do contrato, há a possibilidade de contratação terceirizada. “A gente fica com a expectativa de contratar”, diz a gestora. Para a ex-presidiária Juliana Batista, 31 anos, o mercado de trabalho foi a porta de saída dos problemas. Depois de cumprir três anos em regime fechado na Penitenciária

Feminina do DF, Juliana foi contratada pela Funap e trabalha desde 2014 no Instituto Brasília Ambiental (Ibram) como recepcionista. Mãe aos 15 anos, ela conta que em um certo momento da vida se deparou com a dificuldade de sustentar os quatro filhos. Foi pelo desejo do dinheiro fácil que a ex-presidiária começou a traficar drogas. Na cadeia, teve de enfrentar a dor e a saudade de ficar longe das crianças e relata que mudou de vida por causa dos filhos. Enquanto presa, os filhos ficavam com a avó, mas recebia todas as quintas-feiras, a visita das crianças. A ex-presidiária reconhece que não é fácil conseguir emprego de carteira assinada e diz que já entregou diversos currículos, mas nunca foi chamada. “Uma vez passei direto na entrevista, e fui levar os documentos, mas não aceitaram. Fui pessoalmente conversar com o dono e explicar que queria uma chance para mudar, mas ele negou”, relata. Foi na cela que Juliana conheceu Aline Aparecida, 31 anos. As duas se tornaram amigas e trabalham no mesmo local. Presa também por tráfico de drogas, Aline teve de conviver com outra dificuldade. Na época em que foi presa, ela estava grávida de seis meses. Quando o bebê completou oito meses, ele foi mandado para a avó cuidar. “Meu mundo caiu quando tiraram meu bebê de mim”, relata. Aline conta que o envolvimento no tráfico foi por influência do ex-namorado. “Fiz tudo por ele, e inclusive separei dele”, diz. Hoje, o grande sonho é terminar o curso de técnico em enfermagem e iniciar a faculdade. Aline trabalha no setor administrativo do Ibram e diz com orgulho ser o braço direito do protocolo. “Sei mexer em tudo aqui. Tudo o que o chefe precisa, eu sei fazer”, conta.

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“Agora estou aqui, trabalhando por um tempo, mas e depois? Ninguém vai me dar emprego” Juliana Batista PARA A ex-presidiária Núbia Mendes, o mercado de trabalho foi uma das portas para a ressocialização na sociedade

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Solidariedade

Sistema em números O Brasil tem a quinta maior população de mulheres encarceradas do mundo. São ao todo 37.380 presas. Nos Estados Unidos são 205, 4 mil, na China, 103.7 mil, na Rússia 53, 3 mil e Tailândia 44, 7 mil. Os dados são do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen). Na Penitenciária Feminina do Distrito Federal (PFDF) existem 782 mulheres presas Do total, 286 cumprem pena em regime fechado, 242 em regime semiaberto, 201 presas provisórias e 53 internas em cumprimento de medida de segurança (pessoas com deficiência mental, que cumprem a pena no hospital de custódia). Entre os crimes mais cometidos por elas estão o tráfico de drogas, roubo qualificado e homicídio.

A PRESIDENTE da Ahup, Marina Rosa, diz que a ideia é promover a igualdade

MATERNIDADE COMO FATOR DE RESSOCIALIZAÇÃO Foi no dia 20 de fevereiro de 2017, por quatro votos a um, que o Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu um habeas corpus coletivo para beneficiar mulheres grávidas ou mães de crianças de até 12 anos, que estejam cumprindo prisão preventiva. Na Penitenciária Feminina do Distrito Federal (PFDF) existem nove lactantes e nove grávidas. Até o momento oito internas foram liberadas em decorrência do habeas corpus. Segundo a Secretaria de Segurança Pública e Paz Social do DF (Sesipe), a PFDF tem duas alas distintas, sendo uma para mães com bebês de até seis meses e outra para gestantes. A ala berçário tem 22 vagas com beliches, berços, local de higienização para os bebês e banheiro coletivo. Na ala para gestantes tem 24 vagas. Além disso, uma equipe médica da Secretaria de Saúde oferece acompanhamento e pré-natal das gestantes. Antes do habeas corpus ser concedido, as crianças ficavam com as mães até os seis meses. Após esse período elas eram encaminhadas para as famílias das respectivas custodias. Quando a detenta não tinha parentes, a Vara da Infância, designava um abrigo para receber a criança. Minimizar a quantidade de crianças no sistema prisional é um trabalho que a Coordenadora de Políticas para Mulheres e Promoção das Diversidades, do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), Susana Almeida, desenvolve. Ela defende a decisão do STF e diz que o cárcere não é feito para crianças. “Lutamos para que esse benefício seja transpassado para o máximo de mulheres possíveis”, explica. Em 2009, a coordenadora deu início ao projeto “Mulheres Livres”. Susana explica que o objetivo é oferecer proteção social a essas mulheres. “Nós vamos levar a defensoria pública os casos, para que elas possam cumprir a pena de outro modo”, diz.

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Foi por meio das constantes visitas ao irmão na cadeia, que Marina Rosa passou a olhar profundamente para os problemas do sistema carcerário. Sensibilizada, Marina decidiu criar a Associação Humanizando Presídios (Ahup), para receber reclamações de problemas no cárcere. Com o apoio do Conselho Distrital de Segurança Pública (Condisp), a Ahup recebe reclamações dos familiares por meio de um grupo do whatssap e pelo facebook. A presidente da Ahup diz que a maioria das reclamações está ligada ao mercado de trabalho. “Todos sabem que ninguém oferece emprego a um ex-presidiário, mas eles querem trabalhar, principalmente para ter o contato com outro mundo e ocupar a mente”, diz ela. Marina explica que o sistema carcerário já é visto como uma masmorra, e que a sociedade acaba colocando para os presos uma pena a mais, justamente por não abrir portas. “A sociedade tem muito preconceito, e quando o preso sai e quer se endireitar, o povo não dá espaço nem no trabalho e nem educação”, diz. O projeto “Pipoca do Bem” é o mais novo programa da Ahup. Previsto para iniciar em dezembro de 2018, a ideia é doar carrinhos de pipoca aos ex-detentos. Na lógica a pessoa que vender cerca de 50 sacos de pipoca ao valor de 3 reais poderá receber no final do mês um salário de até R$ 4,5 mil.

O projeto se divide em quatro etapas: levantamento de dados; assistência jurídica; decisão judicial e rede de proteção social. Os quatro pontos têm a finalidade de levantar dados das mulheres privadas de liberdade, analisar os processos pelas defensorias públicas dos estados e dos núcleos de práticas, desencarcerar o número máximo de mulheres que tenham direito ao cumprimento de pena e a inclusão social.

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JARDIM DAS Delícias, obra de Hieronymus Bosch de 1495/1505, descreve história do mundo a partir da criação

‘FAST-FODA Marcado por aplicativos, sem qualquer tipo de vínculo e visando muito prazer, sexo rápido e casual é cada vez mais praticado em locais públicos

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S

exo. Compulsão. Vício. Culpa. O prazer que se transforma em doença e obsessão e que, em casos extremos, pode levar a crimes e até à morte. Conhecido entre os praticantes como “fast-foda”, o sexo descompromissado ou o sexo rápido garante encontros a partir de aplicativos ou até mesmo em locais já conhe-

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cidos entre os adeptos. A adrenalina experimentada nos lugares públicos é um componente a mais. O banheiro da Rodoviária do Plano Piloto e os estacionamentos do Parque da Cidade são pontos de encontro constantes. A intenção é sempre a mesma: muito prazer e nenhum vínculo. Entre os aplicativos mais usados estão 69 Place, Grindr, Scruff, Tinder, Hornet e Happn. No 69 Place, por

MATEUS ROSA

exemplo, os usuários que estão online podem ser notificados por pessoas disponíveis para sexo em locais públicos. Já o Grindr funciona de maneira similar, mas garante sigilo e mostra outras que estão próximas sem identificá-las. Usuário frequente do aplicativo, o microempresário Vander*, 26 anos, é adepto do sexo casual pelo menos quatro vezes ao dia. Já chegou a faltar aulas e trabalho frente


Crédito: Museu do Prado

MÍDIA E ARTE O sexo na arte existe desde a Antiguidade. Era entendido como mágico e divino. O falo e os seios usados como símbolos de sorte e de fertilidade. Os deuses, em geral, eram seres muito sexuais, tais como Vênus, Marte, Mercúrio, Eros, Príapo, sátiros e bacantes. Já no século XVI, "O jardim das delícias, do pintor e gravurista holandês Hieronymus Bosch, apresenta a história do mundo desde a criação com prazeres carnais nas formas mais diversas. Na mídia, o fast-foda é abordado na música, em filmes e séries. A sexóloga Cintia Folgierini explica que o sexo é muito abrangente, envolve valores, experiências, cultura emocional e até religiosa. O filme A Vida secreta de Zoe ou o Ninfomaníaca I e II são referências para o assunto, não somente da doença, mas também do sexo sem compromisso. No Ninfomaníaca, “Preencha meus buracos” é uma das falas mais comentadas da personagem principal Joe, diagnosticada com psicopatia. O documentário (Des)Honestidade é citado pelo especialista em novas mídias Leyberson Lelis como exemplo para se entender o uso de aplicativos em adeptos de encontros casuais. Uma música chamada Fast-Foda, lançada este ano por Nancy Hallow, um dragqueen brasileiro, faz sucesso entre o público LGBTTI. "É fastfood ou fastfoda? Nem vem com caô / Se tu não quer compromisso, a solução chegou / Vou marcar um fast foda para me aliviar / Mal sei o seu nome, Eu deveria perguntar?", entoa o refrão da música. A planner e conteudista Thaís Oliveira, 20, observa que a indústria pornográfica é um dos mercados que mais movimenta a economia mundial, atraindo empresários e usuários na abordagem de abusos, pedofilias, estupros, violência física, verbal, hipersexualização, padrão de sexo e sexo violento, quase sempre em uma relação de desvalorização da mulher. “Sem contar os pontos relacionados às histórias das mulheres envolvidas nessa indústria, o antes e o depois. Muitas são abusadas sem consciência disso”.

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Crédito: Museu do Prado

à compulsão, que denomina incontrolável. “Sinceramente? Já pensei em me matar”, relata. Segundo ele, não dar vazão ao instinto provoca forte crise de ansiedade. “Na hora, eu sou um animal, não penso em nada”. O Parque da Cidade é um dos principais pontos em Brasília para o sexo casual em público. O técnico de enfermagem Renato Mourão Rockfeller, 20, diz que, entre as árvores do local e à luz do dia, relaciona-se com dois ou três parceiros. Como tudo já está previamente marcado, a sedução passa apenas pela troca de olhares. “Eu gosto das loucuras que faço. Geralmente faço em locais públicos como a esquina da rua durante a madrugada”, comenta. Especialista em sexualidade, o psicólogo Clécio Sousa explica que muitas vezes o que existe nessa busca pelo prazer é a tentativa de acionar

Segundo Thais, um dos maiores problemas é a questão da submissão. O homem manda, o homem faz e acontece e tudo é justificado com o "instinto masculino", o que reforça estereótipos muitas vezes elogiados pela indústria pornográfica. “Então percebo que nesse contexto, a sexualidade da mulher está sendo comandada por homens. Eles ditam as regras. A violência, por exemplo, torna-se fator excitante”.

SEGUIDOR DE Jerônimo, obra de Hieronymus Bosch, de 1500

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TRANSTORNOS E PARAFILIAS Transtornos e parafilias: São desejos sexuais e fantasias que, dependendo de qual sejam, podem trazer prejuízos e provocar vícios Fetiche: Tipo de parafilia muito comum e que nem sempre traz prejuízo. O desejo é despertado por objetos como, por exemplo, calcinhas, algemas, chicotes ou até mesmo partes do corpo Pedofilia: Ato sexual com crianças e adolescentes, desde a fantasia e o desejo enrustidos, passando pela exploração comercial, pornografia infantil, abuso e violência Efebofilia: Quando um adulto personifica um adolescente para conseguir excitação e orgasmo Vícios sexuais: exagero e descontrole pelo ato sexual, múltiplos parceiros, contato intenso com pornografia, obsessão pelo erotismo (tendência abusiva para o sexo), fantasias, fetiches, masturbação constante, ansiedade e vida dupla

um sistema de recompensas. “Busca-se recompensar aquele vazio existencial e os buracos dentro de si, com coisas que as viciam, independente do que seja”. O raciocínio é que, frente ao vazio, a pessoa descobre a fuga no prazer imediato. “Em qualquer compulsão existe uma fragilidade, pois se está buscando algo para compensar o vazio existencial. É uma questão para qualquer vício, seja álcool, droga e até mesmo o sexo”.

depois a pessoa ser decepcionante”. A crítica é principalmente em relação à frieza com o parceiro após a consumação do ato sexual. Com a internet, o sexo casual tornou-se frequente entre os usuários como um “facilitador” de encontros. No caso do Tinder, algumas etapas contam como preliminares. O chamado “match” só ocorre a partir dos “likes” e “superlikes”, com a indicação de perfis que podem evoluir para um encontro

Psicólogos alertam que o chamado DSH, Desejo Sexual Hiperativo, não é saudável, por ser incontrolável

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Também especialista em sexualidade, a psicanalista Cíntia Almeida Folgierini observa que a opção pela ausência de vínculos não funciona para todos. Em alguns casos pode, inclusive, ocasionar transtornos psicológicos. “Existem pacientes que já me relataram que fariam de novo e outros que disseram que é uma experiência estranha, diferente e fria e que, não foram saciados e sim frustrados”. É o caso do sub-chefe de cozinha Gabriel*, 21. Usuário frequente dos aplicativos Grindr e Hornet, ele afirma que transou a primeira vez no chamado “fast-foda”. Segundo ele, todas as relações do tipo foram aquém do esperado. Ainda assim, mantém as relações sexuais sem compromisso. “Já aconteceu de na hora ser bom, mas

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casual. Diferente de outros aplicativos, o Tinder revela a identidade da pessoa e proporciona um relacionamento mais “romantizado”, como define Gabriel*. No início, o uso de aplicativos, segundo ele, era uma forma de facilitar os relacionamentos. “Foi um momento de aceitação, acho que tinha 19 anos. Eu não tinha me envolvido com homens ainda, por ser muito tímido, tentar esconder da família e por não me aceitar ainda”, lembra. Para Anderson*, 48, casado e pai de dois filhos, adepto do “fastfoda”, o fetiche está no relacionamento com pessoas mais novas e sem a exposição da verdadeira identidade. “Minha esposa é mais velha”, descreve Anderson*, sem admitir a bissexualidade.

A possibilidade de lidar apenas com desconhecidos, que nunca mais serão vistos, é argumento comum entre eles. A estudante Elisa*, 19, revela que o fato de não se apegar e o sexo a qualquer momento que a vontade surgir, inclusive várias vezes ao dia, são os pontos positivos. “Eu levo tudo pelo lado da experiência e faço tudo mesmo que seja só para saber se gosto ou não”, relata. O psicólogo Clécio Sousa observa que a emoção do sexo está na ativação da dopamina. “A dopamina produz essa descarga do vício e a pessoa já não tem controle, daí a coisa começa a complicar”. Para os especialistas, o chamado DSH, Desejo Sexual Hiperativo, não é saudável. O problema não está na quantidade de vezes que a pessoa transa por dia, mas quando isso se transforma em rotina incontrolável. “Ter atitude contra esses gatilhos é essencial para combater qualquer vício. Tirar as crenças más sobre as relações sexuais é outro ponto para evitar vício em pornografia ou uma possível compulsão sexual”, explica Clécio. A empresária Danielle Fontes, 22, conta que por muito tempo foi ninfomaníaca. A cura para a obsessão pelo prazer só veio com tratamento. Na avaliação dela, o apetite sexual é muito romantizado. “Ninguém fala sobre


Crédito: Museu de Londres

Compulsão sexual A compulsão sexual é definida como o desequilíbrio do desejo e um misto de várias ansiedades que podem atingir um patamar de distúrbio e evoluir para uma doença. Para muitos, a culpa é recorrente, como relatam Vander*, Gabriel*, Renato e Elisa. Clécio explica que essa culpa ocorre porque a pessoa sente que fez algo errado. “No momento do ato há o sentimento de poder, mas após vem o sentimento de culpa pois a pessoa não tem domínio sobre o poder, mas o poder da sexualidade tem o domínio sobre a pessoa”. Segundo Cintia, por ser algo fora dos padrões ditos normais da sociedade, o sentimento de culpa gera internamente um conflito, o julgamento de si mesmo, em que as pessoas se enxergam como não merecedoras por fazerem algo as escondidas. “Essa patologia é silenciosa, uma demanda grande de pessoas que relatam não ter coragem de conversar com ninguém sobre suas dores, ansiedade e culpa. Vivem nesta esfera de julgamento e pouca compreensão”, explica. Há consequências com o excesso do comportamento sexual, como desinteresse pelo parceiro ou parceira fixos, disfunção e perda de sensibilidade no órgão sexual, ejaculação precoce, perda de memória e ansiedade social. A sexóloga lembra que certa vez atendeu um paciente passou pela ansiedade social. Ele estudou três anos para um concurso e, no dia da prova, não conseguiu realizá-la, porque estava tão ansioso que manteve relações sexuais em grupo durante quatro horas seguidas e perdeu o horário do compromisso. A falta desse controle pode ainda levar a práticas criminosas, tais como estupro, abuso e pedofilia. Estas duas são consideradas parafilias, desvio sexual classificado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como doença. Já o estupro é típico de quem tem disfunção sexual. O acompanhamento com psiquiatra e, em grande parte das situações, o uso de medicação são necessários por envolverem processos químicos do cérebro.

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quando isso passa dos limites e eu acho que esse tabu tem que ser quebrado. Precisamos falar do desejo tanto como uma obsessão como também da completa ausência dele e que essas coisas podem acontecer com qualquer um a qualquer momento e é necessário buscar equilíbrio”. A ninfomania e a satiríase (ninfomania masculina) são definidas pela psicanalista como a necessidade contínua de manter relações sexuais com vários parceiros, correr riscos, desafios e situações constrangedoras para que o prazer seja alcançado. “Mas não se pode confundir essas doenças com alterações hormonais, que também são investigadas no diagnóstico da enfermidade psicopata”. A compulsão sexual de Danielle não se restringia ao ato sexual. Em alguns momentos, o desejo era tão incontrolável que recorria a masturbação por “horas seguidas”, ao ponto de chorar de dor e prazer. “Não conseguia mais viver minha vida normal, desmarcava compromissos ou saía no meio deles para me dar prazer, satisfazer-me”. A masturbação também faz parte do cotidiano de Vander*, que sente a necessidade permanente de gozar. A pornografia funciona como gatilho. “Quero ter controle sobre isso, mas realmente não tenho. Sou escravo do sexo”, afirma. O psicólogo explica que a pornografia é apenas um detalhe quase sempre ligado a autoestima da pessoa. Os vícios em conteúdo de sexo explícito podem ser tratados, segundo o psicólogo, com exercícios físicos e educação dos pensamentos, além de psicoterapia. Em alguns casos, é necessário uso de medicação. “Pessoas viciadas em pornografia têm pensamentos alterados e disfuncionais, por isso, é necessário realizar uma terapia comportamental”, explica. Para a sexóloga, ao mesmo tempo que o sexo “encanta” também “assombra”. “É um tema que nem sempre as pessoas querem falar por existirem profundos motivos tanto de alegria, como de reprodução e do prazer físico”, conta. Cíntia explica que o sexo pode ser perigoso, insalubre, ilegal, como também pode ser benção se percebido como necessário. “Acredito que quanto mais esclarecimento sobre tal assunto mais pessoas serão ajudadas”, acrescenta.

CARTILHA PERSA de 1824 explica posições para ato sexual

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VIVER ALÉM DA DEPRESSÃO Uma entre quatro pessoas vai ter algum tipo de transtorno ou episódio da doença ao longo da vida. Conheça histórias das que conseguiram superar ou conviver com o problema

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C

ortei meus pulsos e fiquei 15 dias internada na UTI. Hoje eu vejo que eu não queria morrer e sim acabar com aquele sofrimento intenso, uma tristeza constante que eu sentia na minha alma e coração”. A declaração é de Karen Viana, 48 anos, técnica de enfermagem, diagnosticada com depressão crônica. A depressão pode ser apresentada por sintomas como tristeza, perda de interesse ou prazer, sentimentos de culpa ou baixa autoestima, sono e apetite alterados,

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cansaço e falta de concentração. Ela pode ser de longa duração ou recorrente, prejudicando bastante o cotidiano de quem enfrenta o problema. Karen teve uma infância traumática, com um pai violento. Cansada de remédios e terapias, tentou tirar a própria vida por diversas vezes. Para controlar a dor, trancada no quarto, sucumbia: chorava e se mutilava. “Depois me reerguia das cinzas para sonhar novamente”. Em todas as 10 vezes que precisou ser internada, Karen diz que voltava pior: “Era uma ida ao inferno. Prefiro a morte a ter que passar por mais uma internação”.

CAROLINE FOGAÇA

Depois de várias terapias e medicamentos, hoje ela consegue conviver com a depressão. Karen presta serviços em uma ONG que ajuda animais abandonados. Adotou cinco cães, destes, um é cego. “Com eles aprendi a ver a vida de outro jeito. Não tive mais crises desde então”. Ainda assim, Karen continua sob tratamento médico e vai ao psiquiatra toda semana. O desejo de cometer suicídio está diminuindo e o médico a ajuda a ver que é possível resolve seus problemas sem recorrer à morte. Já são mais de 300 milhões de pessoas afetadas com depressão no mundo, segundo relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS). Quem


Karen Viana, técnica de enfermagem

estuda a saúde mental diz que qualquer pessoa está sujeita a passar por sofrimentos. A psicóloga Cassia Relva, integrante do Conselho Regional de Psicologia do DF, explica que a possibilidade de desenvolver doenças físicas ou mentais é geral, especialmente porque questões como sofrimento e dúvida atingem a todos. Ela enfatiza que é preciso mais atenção do sistema de saúde às emoções. “Enquanto isso não for visto como prioridade, os números vão aumentar”. Saúde mental A OMS define o conceito de saúde como um estado de bem-estar em que cada indivíduo atinge o seu próprio potencial, consegue se relacionar com as tensões normais da vida, trabalhar de forma produtiva e é capaz de contribuir para a sua comunidade. Na verdade, só é possível ter saúde quando há um completo bem-estar físico, mental e social. Cassia Relva explica que a saúde mental é mais do que a ausência de transtornos ou deficiências. “Muitas vezes é você aprender a lidar com as frustrações, aprender a lidar com a perda, com condições que muitas vezes são desagradáveis”, explica. O fotógrafo Valcione Lucena, 47, lembra que após a morte da mãe, há sete anos, começou a sentir os sintomas da ansiedade, só que não queria aceitar o diagnóstico dado por um psiquiatra. Para ele, psiquiatra e psicólogo são coisas de doido – e ele não se considerava louco. Com essa ideia, Lucena não fez o tratamento. “Todos os dias eu acordava com uma tristeza profunda. Meus amigos perguntavam e eu sempre escondia.” O corpo, então, começou a mostrar sinais. Valcione teve uma crise de ansiedade perto de familiares. Ele não conseguia mais dormir e resolveu procurar um psicólogo. Foi aí que começou a se tratar. A terapia o ajudou a aceitar seus problemas e a morte da mãe. Ele também conheceu terapias alternativas, como yoga e florais, que têm ajudado a combater a ansiedade.

Hoje, Valcione não faz mais terapia com o psicólogo, mas diz que exercícios físicos e de respiração são aliados para manter o controle. “Faço uso da medicação somente em último caso. Quando eu sinto que estou perto de dar uma crise, eu ouço música, faço exercícios físicos e procuro meu equilíbrio. Aprendi a aceita ansiedade e estou seguindo em frente”, conta. A depressão é identificada pela perda ou diminuição de interesse e prazer pela vida, gerando angústia e prostração, algumas vezes sem motivo evidente. Esse transtorno pode atingir pessoas de qualquer idade, ainda que seja mais frequente em mulheres. Hoje, a depressão é considerada a quarta principal causa de incapacitação, de acordo com a OMS. Existem diversas terapias que auxiliam no tratamento da depressão, ansiedade e dos transtornos emocionais. As ações com maior evidência estão dentro da psicoterapia e para cada transtorno existe um tipo de terapia mais indicada. Para a depressão, uma das linhas mais sugeridas é a terapia cognitiva comportamental, na opinião do psiquiatra Rafael Vinhal. As terapias alternativas como cromoterapia, yoga, aromaterapia e hipnose são classificadas como um suporte no tratamento de algumas doenças psicológicas. Os tratamentos alternativos podem ampliar as possibilidades de melhora. “Funcionam como uma

oportunidade da pessoa ter uma escuta qualificada, inserção em algum grupo que pode de alguma forma aliviar o sofrimento”, explica Vinhal. Nesses casos, é necessário sempre ter o acompanhamento de profissionais como psiquiatras, psicólogos e neurologistas. A promotora de festa Estefany Almeida, 29, nunca tinha sido diagnosticada com qualquer problema relacionado à saúde mental. Os incômodos, no entanto, começaram com a descoberta da gravidez. “Comecei a ter uma grande preocupação de como eu iria seguir com a gravidez, a sensação que eu tinha constantemente era que eu ia perder meu bebê”. Estefany acreditava que aquela preocupação era normal, mas com o decorrer dos meses já não conseguia trabalhar, e tinha medo de dormir e seu bebê morrer. “Eu fiquei com uma forte depressão, com o nascimento da minha filha as coisas só foram piorando”. Sua família a levou a um psiquiatra, que iniciou o tratamento para depressão pós-parto. “Quando Camila nasceu eu não suportava ouvir o choro dela. Tinha medo de pegar ela no colo”, lembra. No primeiro ano de Camila, Estefany não conseguiu cuidar da criança, que ficou com a avó materna. “O que mais me machucava era que eu não amamentei a minha filha por causa dos medicamentos”. A melhora começou mesmo ao conhecer e trocar histórias com mães no grupo de Facebook depressão pós-parto e maternidade. “Busquei forças para reconstruir a minha vida, não suportava ver meu esposo e filha sofrendo. Comecei a

O PSIQUIATRA Rafael Vinhal ajuda os pacientes a lutar contra o suicídio

A PSICÓLOGA Cássia Relva enfatiza que é preciso atenção com a saúde mental para evitar sofrimentos

Terapias

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“Em todas as minhas internações era uma ida ao inferno, a sensação é de estar em um filme de terror”


BUSQUE AJUDA Os profissionais de saúde enfatizam que é essencial buscar ajuda para tratar a depressão. Há vários serviços que oferecem atendimento psicológico comunitário em Brasília. Um deles é a clínica escola do Centro Educacional IESB, na 614 Sul. São realizados atendimentos clínicos de psicoterapia individual, em grupo e conjugal. O telefone para informações é o (61) 3445 4502. Outra possibilidade é o Instituto de Psicologia Universidade de Brasília, no campus do Plano Piloto. A cada semestre são abertas novas vagas, disponibilizadas pelo telefone (61) 3107 9102. Vale também conhecer o Projeto Coletivo Psicanálise na Rua, que oferece atendimento de forma gratuita no Conic e na Rodoviária do Plano Piloto na sexta-feira de 16h às 18h e, no sábado, das 9h às 13h. Não é preciso agenda, basta comparecer. Outro serviço importante é oferecido pelo Centro de Valorização da Vida, que não disponibiliza atendimento psicológico, mas faz um trabalho de apoio emocional e prevenção do suicídio por meio de voluntários. O atendimento, para quem precisa conversar, é 24 horas, tanto pelo telefone 188, com ligação gratuita, ou pelo site www.cvv.org.br. Também há a conversa presencial, na sobreloja do Edifício Brasília Rádio Center, na 702 norte, de segunda a sexta-feira, das 8 às 19 horas. praticar a yoga, que me ajudou bastante. Ainda faço uso de medicação, mas já tem dois anos que não tenho crise. A Camila já fica comigo eu aproveito cada segundo”. Estefany vai ao psiquiatra para acompanhamento e tem a esperança de um dia não precisar mais dos remédios. O marido dela, o técnico de informática Fabricio Almeida, 35, diz que esteve ao lado de Estefany nas recaídas e quando os tratamentos não davam certo. “Admiro a força de vontade que ela teve, foram momentos tristes, hoje estamos superando e refazendo a nossa família”, comemora. Os transtornos psicológicos que mais afetam as pessoas são os depressivos, ansiosos e relacionados à insônia. A OMS supõe que a depressão será o principal mal do planeta em 2030. A doença atinge ainda mais o público feminino: para cada homem

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com depressão, há duas mulheres que sofrem desse mal. A depressão é a primeira causa entre as mortes por suicídio por ano, são 800 mil casos no mundo. O estudante de administração Fernando Amorim, 25, foi diagnosticado com depressão e transtorno de humor. Relata que sempre sentiu um vazio enorme. “Não conseguia me expressar só vivia em casa, nunca tive muitos amigos”. Fernando tinha medo de pedir ajuda e ser enquadrado com maluco. A psicóloga Cassia Relva confirma: ainda existe preconceito em se falar sobre a saúde mental. “Isso porque a psicologia e a psiquiatria ainda estão vinculadas à ideia do louco”. Com o passar do tempo, Fernando sentiu vontade de morrer. “Meu objetivo era terminar com aquela tristeza que eu sentia”. Sua família é proprietá-

ria de uma gráfica e Fernando pensou que lá seria o lugar ideal para ninguém ouvir quando ele disparasse a arma contra a cabeça. Com tudo planejado, em um domingo acordou cedo e escreveu uma carta de despedida para a família. “Um funcionário me encontrou com a arma e pediu que eu não fizesse aquilo pelo amor de Deus, larguei a arma e chorei. Ele sentou ao meu lado me falando palavras de conforto”, recorda. Encaminhado para uma clínica de saúde mental, Fernando foi diagnosticado. “Foram seis longos meses de internação até eu me recuperar depois da tentativa de suicídio. Meus pais me deram total apoio”. Dr. Rafael explica que quando uma pessoa deseja cometer o suicídio, na verdade, não que morrer, e sim aliviar a dor e o sofrimento. “Nós, profissionais, procuramos trabalhar estratégias para mostrar ao paciente que existe outra forma de resolver aquilo, além da morte. Muitas vezes a pessoa acaba executando o suicídio em uma situação de impulsividade, de muito desespero. Quando o paciente conhece outras estratégias, ele não vai cometer esse ato”, avalia. A maioria das pessoas dá sinais antes de cometer suicídio como mudanças de comportamento e de rotina, tristeza constante e desmotivação. Sinais como estes, que incluem troca de hábitos, podem ajudar a identificar a depressão para quem tem convívio com a pessoa. De acordo com a OMS, 90% dos casos de suicídio poderiam ser evitados com tratamento adequado, visto que, em sua maioria, estão associados a transtornos psiquiátricos, especialmente a depressão. Fernando foi uma destas pessoas que pediu e consegui ajuda. Hoje, está na faculdade cursando administração, faz psicoterapia e uso da medicação. “Todos os dias eu derrubo uma barreira, tem dias que eu não quero acordar, mas lembro do que eu aprendi no tempo que eu estive internado. Eu sei que vou vencer e conseguir realizar meus objetivos”. É a luta de todos que convivem com a depressão. ESTEFANY ALMEIDA, que prefere não ter a imagem divulgada, está reaprendendo a conviver com a filha após a depressão pós parto


Traumas vividos nos relacionamentos familiares durante a infância, tais como negligência e violência física e emocional, podem ficar por toda a vida se não contarem com rede de apoio adequada

THAYS DE OLIVEIRA

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ABUSO EM CASA


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família é o primeiro relacionamento que o ser humano conhece. Gestos, palavras e comportamentos são aprendidos neste grupo mais próximo. Porém, a desestrutura no lar ou o distanciamento afetivo, especialmente entre pais e filhos, pode gerar traumas por toda a vida. O ambiente familiar abusivo contribui, por exemplo, para o alcoolismo, o transtorno de ansiedade, a depressão, a propensão à obesidade e o déficit de atenção. O evento traumático, sobretudo na infância, costuma atrapalhar o desenvolvimento do sistema nervoso, da saúde mental, emocional e física. “O trauma inibe aquilo que se sonha fazer na vida, há uma sobrecarga na capacidade de respostas, trazendo sensações como perda de controle, medo ou sensação de impotência”, explica a psicóloga especializada em trauma Ana Carolina Fernandes. As consequências, no entanto, variam de pessoa para pessoa. “Cada caso deve ser analisado, é importante não simplificar as experiências de um indivíduo sem que antes se entenda o seu quadro geral”, adverte . Sentimentos de solidão, ansiedade e necessidade de se isolar também podem ser desencadeados, assim como doenças como depressão e transtornos de personalidade. Os traumas vividos na infância, advindos de negligência, abuso, físico, emocional, são conhecidos com traumas de desenvolvimento. Lucas*, 15 anos, esteve exposto a um lar violento desde a infância. Hoje, apresenta sintomas típicos de alto grau de estresse. Desequilíbrio, tremores e isolamento são comuns. “Ele fala que está tudo bem, mas guarda uma mágoa muito grande do pai”, conta a mãe, Laura*, 39. A agressividade do pai também foi determinante para Aline*, 14. Usuário de drogas, frequentemente batia na mãe, sempre na frente da filha e mesmo após a separação. No início, ela apenas guardava para si os efeitos da relação conturbada. Depois, passou a tentar interferir e tentar proteger a mãe fisicamente. “Não sabiam conversar direito. De tanto ver as brigas, também passei a ser agressiva e

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AS AGRESSÕES físicas podem deturpar a forma como os filhos enxergam o relacionamento

hoje tenho dificuldade para controlar a violência que pode produzir esa raiva”, conta a adolescente. ses efeitos. Famílias que ignoram Mesmo que o alvo das agressões os sentimentos dos filhos afetam não seja a criança, o abuso familiar a forma de ele se comunicar com afeta a forma como ela encara o mun- o mundo. O sofrimento com o do. No caso da violência doméstica, bullying escolar, por exemplo, não os traumas podem se estender para percebido pelos pais, pode levar a os relacionamentos amorosos na fase criança a se refugiar em outras atiadulta ou contribuir para situações de vidades, como o uso excessivo da vulnerabilidade social, pois a crian- internet ou a comida, na tentativa ça aprendeu que a violência é uma de preencher a solidão. “forma natural” de comportamento. Além do bullying, humilhações A psicóloga clínica Rafaela Schlottfel- e coerção também contribuem para dt Brandão reforça a importância do a baixa autoestima. A psicóloga clímodelo dos pais na infância. “Tem um nica Suelen Ruas, que trabalha no fenômeno que se chama teorias da atendimento a vítimas de violência aprendizagem, que defende que a no programa Pró-Vítima do Governo gente aprende com modelos. Então, do Distrito Federal, ressalta que as a forma como a gente interage com o agressões psicológicas são decisivas mundo também pode ser aprendida para a baixa autoestima. “Essas criancom os pais”, comenta. ças expostas a tantas agressões cosPais e mães que demonstram tumam ter mecanismos mais frágeis, que a violência é a forma de solu- dificuldades de tomar decisões na cionar conflitos não garantem aos vida adulta, reagir em situações de filhos habilidades sociais para lidar estresse”, diz. com os problemas na “Crianças expostas a agressões e situações vida adulta, não só em vexatórias podem ter mecanismos mais casa, mas frágeis, dificuldade de tomar decisões e também no ambiente reagir em situações de estresse” de trabaSuellen Ruas, psicóloga do Pró-Vítima lho. Porém, não é só


Desestrutura Familiar A assistente Social do Pró-Vítima Eliane Alves da Silva, 54 anos, relata que muitos casos são mais complexos do que o abuso, incluindo fatores sociais como vulnerabilidade e violência familiar a gerações. “A gente acaba constatando ao longo da entrevista que tem um histórico de violência familiar, não em todos os casos, por exemplo, a violência contra a mulher pode ser psicológica, pode ser física, pode ser patrimonial. A violência não tem classe social. Pode acontecer em qualquer família”, comenta. Ao denunciar a violência contra a mulher, é possível se evitar que se estenda aos filhos, tornando-se um ciclo de agressão que se estende na vida adulta, com novas vítimas ou abusadores em relacionamentos conjugais.

Rede de apoio O Distrito Federal tem programas para atendimento de vítimas em situações de vulnerabilidade social, como o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). Além disso, existe um programa voltado especialmente para o atendimento de vítimas, o Pró-Vítima, da Sejus-DF. O programa oferece atendimento psicológico e social a crianças, adolescentes, mulheres, idosos e familiares, vítimas de violência, homicídio, tentativa de homicídio, latrocínio ou tentativa, sequestro, acidente de trânsito com vítima fatal, estupro, desaparecimento de pessoas, feminicídio e violência contra a mulher, junto com o atendimento psicológico para as vítimas, que em geral duram 12 encontros. O que diz a lei A vítima de violência na infância pode denunciar quando adulta, porém depende do prazo de prescrição do crime, como explica a defensora pública Cláudia Navarro, Coordenadora da Defensoria Pública do Núcleo de Infância e Juventude. “No caso de lesão corporal leve, agressão, a vítima tem seis meses para denunciar após completar 18 anos e antes que o crime prescreva. Nos casos de lesão corporal grave, o prazo é de oito anos, mas com a apresentação de provas. Agora, em caso de abuso sexual, o prazo é de 20 anos”, explica. Um dos desafios, no entanto, é conseguir provas suficientes que comprovem o abuso mesmo após tantos

anos. Uma proposta aprovada pelo Senado e em análise na Câmara dos Deputados torna o crime de estupro imprescritível. Já a violência contra a mulher, prevista como crime pela Lei Maria da Penha e do Feminicídio, pode ser denunciada na Delegacia da Mulher, independentemente de o agressor ser parente da vítima. Ser vítima não é sentença Os especialistas destacam que ser vítima de abuso na infância não é uma sentença de que as sequelas ficarão por toda a vida, desde que as vítimas tenham apoio adequado. Cada um reage de um jeito. “A presença de figuras protetoras na vida das crianças ajuda a amenizar os possíveis traumas, contribuindo para que venham a constituir uma vida familiar saudável”, afirma a psicóloga Rafaela Schlottfeldtb. O acompanhamento psicológico, por exemplo, ajuda as crianças e adolescentes a não repetirem as atitudes dos familiares. Aline* faz acompanhamento psicológico para lidar com os problemas familiares. “Hoje, eu me dou melhor com a minha mãe, vejo que só porque na minha casa era assim, não preciso ser também, a violência não leva a nada”, enfatiza. O filho de Laura, também tem consciência da importância de separação das atitudes do pai e das dele. “Meu filho me diz que tudo o que ele não quer ser é igual ao pai, tem consciência disso”, ressalta a mãe do adolescente. *Nomes das vítimas alterados a pedido delas.

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Nem sempre os abusos partem dos pais. Familiares próximos também podem ser responsáveis, inclusive em casos de abuso sexual. É o caso da auxiliar de limpeza Clara*, 56 anos, que viveu esse tipo de violência praticada por um membro da família sucessivas vezes. Todas vieram à tona recentemente. A filha e a sobrinha e, mais recentemente, a neta foram estupradas pela tia avó. “A minha filha ficou sabendo que uma outra sobrinha ia ficar com essa tia-avó, e começou a passar mal. Foi quando ela contou para a gente que a tia avó ‘mexia’ com ela”, lembra. O caso está na Justiça e a menina, hoje com 4 anos, conta com medida protetiva. Um dos motivos alegados pela filha dela para nunca ter denunciado foi o medo de abandono do pai, que já tinha problemas com a bebida. “Ele não era agressivo, mas a tia a ameaçava dizendo que se ela contasse o pai iria abandoná-la”, afirma a mãe da vítima. Na época dos abusos, ela tinha 6 anos. Em casos mais severos, esquizofrenia, transtornos de personalidade boderline e antissocial podem estar associados ao abuso familiar. Hoje, Laura tem uma medida protetiva do marido e recebe atendimento psicológico no programa Pró-Vítima, da Secretaria de Estado de Justiça e Cidadania do Distrito Federal (Sejus-DF). O filho também iniciará tratamento em breve.

RAFAELA SCHLOTTFELDT: "As crianças aprendem com o comportamento dos pais”

SUELEN RUAS: "O acompanhamento psicológico é importante para que se expressem sobre os abusos” 71


CICATRIZES INVISÍVEIS Uma em cada quatro brasileiras que deram à luz sofreu abusos no parto, aponta estudo da Fiocruz

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enfermeira subia na minha barriga, colocando todo o peso enquanto eu gritava. Elas me mandavam ficar quieta e disseram: ‘Na hora de fazer é bom, né? Agora aguenta.’ Com muito sofrimento minha filha nasceu, porém, sem vida”, conta Juliana Nunes Carvalho, 22 anos. “Os médicos e os enfermeiros me chamavam de gorda e disseram: ‘Não irei fazer cesária nesse monte de banha’. Fiquei depressiva, não tinha vontade nem de amamentar, parecia que aquelas palavras estavam sendo

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repetidas constantemente na minha cabeça”, rememora Lucileide Corrêa, 36 anos. “Eu não tinha passagem e me cortaram sem minha permissão, levei 23 pontos. Passei seis meses em acompanhamento psicológico pelo trágico parto que tive”, afirma Maria Nathalya Batista, 19 anos. Esses relatos são de mulheres que sofreram violência obstétrica. É muito comum meninas e mulheres passarem por procedimentos humilhantes e dolorosos na hora de dar à luz. De acordo com pesquisa coordenada pela Fiocruz, em 2014, uma em cada quatro brasileiras que deram à luz sofreu abusos no parto.

NATÁLIA RIBEIRO Estima-se ainda que esse número possa ser maior, levando em consideração que os relatos quase nunca chegam de fato à denúncia formal. No DF, por exemplo, de acordo com o Núcleo de Estudos e Programas na Atenção e Vigilância em Violência, não há registros de reclamação de violência obstétrica no período entre 2015 e 2017. No entanto, a realidade é completamente diferente. Violência obstétrica são as diversas formas de violência que a mulher sofre da gestação ao parto, durante os cuidados obstétricos realizados pelos mais diferentes profissionais que atendem a gestante, parturiente ou puérpera. Os procedimentos des-


rede particular de saúde são feitos por meios de cirurgias. O número é alarmante, levando em consideração que a Organização Mundial de Saúde (OMS) estabelece que o índice fique entre 10% e 15%, como medida de segurança para controle e redução de mortalidade materna e neonatal. Apesar disso, o Ministério da Saúde garante que, no SUS, a taxa de partos cesarianos apresenta redução nos últimos anos. Em 2015, foram 1,3 milhão de partos normais de um total de 3 milhões. Em 2014 foram 1,2 milhão de partos normais de um total de 2,9 milhões. Entre os estados do Brasil com maiores percentuais estão Goiás

de, baseado em evidências científicas e que serve de consulta para os profissionais de saúde e gestantes. Segundo as diretrizes, a partir de agora, toda mulher terá direito de definir o seu plano de parto, que trará informações como local onde será realizado, orientações e benefícios do parto normal. Parto humanizado O parto humanizado é aquele que promove o nascimento saudável, pois respeita o processo natural e evita condutas desnecessárias ou de risco para a mãe e o bebê. Diante das estatísticas assustadoras sobre a

“As consequências da violência obstétrica podem durar a vida inteira e gerar traumas irreversíveis para a relação mãe-bebê e para a vida sexual da mulher” psicóloga perinatal Rafaela Schiavo.

(67%) e Rondônia (66%). No DF, em 2017, foram realizados aproximadamente 43.529 partos nos hospitais da rede pública, sendo 19.549 normais e 23.980 cesáreos. Os motivos seriam as ações de incentivo ao parto normal no Brasil que aconteceram no primeiro semestre de 2017. É a primeira vez que o Ministério da Saúde constrói um documento com essa finalida-

violência obstétrica, uma forma de se precaver e criar um ambiente agradável para a gestante é contar com os serviços e o acompanhamento das doulas durante toda a gestação, parto e pós-parto. Além de informar e acolher a gestante, a doula pode auxiliar na elaboração de um plano de parto personalizado, que traz recomendações baseadas em evidências para

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necessários e danosos – como episiotomia, clister, tricotomia, uso de ocitocina rotineira, impedimento do acompanhante, cesarianas desnecessárias, o não alojamento conjunto, o não aleitamento materno na primeira hora quando há condições – são formas de violência obstétrica. A psicóloga perinatal Rafaela Schiavo – especializada no atendimento psicológico da mulher ou do casal, tanto na fase que antecede a gravidez, como no parto e no pós-parto – explica que esse tipo de violência pode ser velada : o poder simbólico é invisível. “A pessoa sente-se mal com a ação do outro, entretanto, aceita, por acreditar que aquilo é um ato normal ou certo. Como a relação médico-paciente é hierarquizada, onde o médico está no topo e detém o poder técnico e ‘científico’ de decisão sobre o corpo do outro, a paciente acaba aceitando a situação, mesmo que a incomode.” As consequências da violência obstétrica podem durar a vida inteira e gerar traumas irreversíveis para a relação mãe-bebê e para a vida sexual da mulher. “Cada uma poderá reagir de uma forma diferente, vai depender muito do tipo de violência obstétrica que sofreu. Mas, no geral, a mãe pode sentir que o momento do nascimento de seu filho foi um dos piores de sua vida.” Patrícia Adriana Schnorr, 24 anos, sempre teve o sonho do parto normal e humanizado. Mesmo com o planejamento e o plano de parto elaborado, seu desejo não foi respeitado. No hospital, foi condicionada à cesárea e submetida a pressões psicológicas para aceitar a dilatação induzida. “A médica perguntava o tempo todo se eu queria matar o meu filho, pois, segundo ela, ele estava em sofrimento.” Quase dois anos depois do parto, Adriana pediu o prontuário e descobriu que, na verdade, tinha passado por uma cesárea desnecessária e que tinha todos os requisitos para um parto normal. “Fui refém de um sistema onde não podemos questionar, afinal não estudamos igual eles, não podemos sequer questionar suas justificativas.” E Adriana não foi a única. O Brasil é o segundo país que mais faz cesarianas no mundo: 84% dos partos na

“HÁ UM vínculo muito forte entre a gestante e a doula que permite que essa mulher se entregue de forma diferente para o parto”, explica a doula Yohanna Cordeiro 73


para que ela auxiliasse no parto e no pós-parto. “Foi essencial ter o acompanhamento de doula no meu parto. Ela sabia pelo que estávamos passando, nos trouxe calma quando era necessário, esclarecimento nos momentos certos, acolhimento quando estávamos exaustos. Foi a melhor coisa do meu parto.” A doula Beatriz Leal enxerga seu trabalho como uma forma de levar informação de qualidade e empoderar mulheres, para assim evitar a prática da violência. “Quando se fala em violência obstétrica, se pressupõe que é algo drástico e violento, mas em algumas vezes pode ser sutil. Pode ser um ponto a mais, para apertar o canal vaginal, pode ser um ‘fica quieta, mãezinha’”, diz. Seus direitos

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que a mulher possa se sentir segura de suas decisões e esteja preparada para os sinais que o corpo der. A doula Yohanna Cordeiro ressalta que esse acompanhamento é especial. “Há um vínculo muito forte entre a gestante e a doula que permite que essa mulher se entregue de forma diferente para o parto. A simples presença da doula traz uma maior chance de parto espontâneo e vaginal, menos pedidos por analgesia, menor necessidade de instrumentalizar o parto, maiores índices de experiência positiva com o nascimento do filho.” A policial civil Roberta Redorat, 32 anos, teve alguma resistência em contratar uma doula, pois não achava necessário. Com insistência do companheiro, contou com a ajuda da profissional no último mês de gravidez,

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Apesar da luta dos profissionais e do movimento feminista para erradicar a violência obstétrica e levar informação de qualidade para as mulheres, o caminho ainda é longo. Isso porque, segundo a psicóloga Rafaela, vivemos em uma sociedade onde há o mito de que toda mulher grávida está plena e que a maternidade completa “o ser” feminino. “Quando uma grávida ou mãe não se sente bem em relação à gravidez ou à maternidade, acaba acreditando que tal sentimento só ocorre com ela. Inclusive ela sente medo e vergonha de procurar um profissional da saúde, pois tem o receio que o profissional também a condene”, explica. Gabriela Repolho, ativista e presidente da ONG Humaniza Coletivo Feminista, acredita que não há uma fórmula para evitar a violência obstétrica, mas há muito engajamento e luta nesse sentindo. O coletivo re-

O PARTO humanizado é aquele que promove o nascimento saudável, pois respeita o processo natural e evita condutas desnecessárias ou de risco para a mãe e o bebê

aliza rodas e palestras para debater o tema com usuárias de postos de saúde, maternidades, profissionais e estudantes da área de saúde e jurídica. Além disso, é responsável por fazer a mediação entre as mulheres e os órgãos competentes, encaminhar as denúncias de violência e acompanhar todo o processo. “Juntas debatemos e realizamos ações pra prevenir e combater os casos de maus tratos às mulheres desde o pré-natal ao pós-parto.” A advogada Ruth Rodrigues sentiu, na pele, o que antes ela só tinha ouvido falar. Após planejamento de um parto natural em casa, viu-se obrigada a ir ao hospital por causa de complicações no pós-parto e foi lá que o sonho do parto perfeito acabou. “Sofri retaliação e violência obstétrica por ter chegado à instituição particular sem bebê e com placenta retida. Me trataram como uma mulher que tinha feito aborto e me deixaram sangrando por seis horas.” No entanto, diferentemente de muitas mulheres que não possuem informação, Ruth logo percebeu que havia sofrido violência obstétrica e não se calou. Além de buscar ajuda para si, se especializou por meio do Curso de Capacitação Jurídica da Artemis, ONG que luta pelo direito das mulheres, e há cinco anos faz pesquisas e estudos sobre a humanização do parto e a violência obstétrica, ajudando outras mulheres juridicamente.


O BRASIL é o segundo país que mais faz cesarianas no mundo: 84% dos partos na rede particular de saúde são feitos por meios de cirurgias

• Liberdade de posição: a gestantes podem escolher a posição mais confortável na hora do parto; • Enfermeiro obstetra na condução dos partos de risco habitual; • Presença de doulas e acompanhante; • Privacidade: respeito da presença da família e intimidade da gestante;

Ela conta que, apesar de ter buscado apoio na justiça, coisa que poucas mulheres fazem, o processo é longo, demorado e dificilmente a mulher ganha a causa, o que torna tudo ainda mais propício para as práticas abusivas. Quase dois anos após seu parto, ela ainda briga pela indenização por parte do hospital e dos médicos. “Na área jurídica, vejo pouca atuação ainda, mas as informações e a importância que o tema tem ganhado junto às mídias auxiliam bastante no descortinamento da violência obstétrica e no seu enfrentamento pelas mulheres e profissionais mais atualizados.”

No Hospital Universitário de Brasília (HUB), o Grupo de Gestantes, Paridas e Casais Grávidos oferece informação e apoio às mulheres que estão passando pela fase de gestação, parto e pós-parto. Além da troca de experiências e orientações clínica, a principal função do grupo é acolher e empoderar para a gestação, informando sobre o parto humanizado e preparando psicologicamente e fisicamente para o grande momento. As reuniões do grupo ocorrem às sextas-feiras, das 10 às 12 horas, na sede do HUB. Não é preciso fazer nenhuma inscrição prévia, apenas comparecer ao encontro.

• Dieta livre: jejum não é obrigatório;

GLOSSÁRIO

• Contato pele-a-pele imediato com a criança logo após o nascimento;

Epsiotomia: Corte cirúrgico feito na região entre a vagina e o ânus para ampliar o canal de parto

• Métodos de alívio da dor (banhos quentes, massagens, técnicas de relaxamento);

Tricotomia: Raspagem dos pelos pubianos Clister: Lavagem intestinal

• Uso da anestesia;

Ocitocina sintética: Medicamento que promove as contrações e as deixam mais doloridas

• Restrição de intervenções rotineiras (rompimento da bolsa, episiotomia, ocitocina);

Alojamento conjunto: Sistema hospitalar em que o recém-nascido permanece com a mãe 24 horas por dia

• Estímulo à amamentação na primeira hora de vida do recémnascido.

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O MINISTÉRIO DA SAÚDE GARANTE:

Parturiente: Mulher que se encontra em trabalho de parto ou acabou de dar à luz Puérpera: Mulher que deu à luz há bem pouco tempo

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O PERIGO QUE MORA NA GAVETA Seja pela falta de acesso a médicos ou por hábito, tomar remédio por conta própria é uma grave ameaça à saúde. Prática pode matar e é responsável por 25 mil intoxicações por ano no país GUILHERME MOTA 76


duas semanas, para se tratar de uma intoxicação provocada pelo uso exagerado de remédios, por conta própria. Diagnosticado com dengue em 2015, Cláudio ignorou as recomendações medicas. “O médico indicou que eu tomasse o remédio de seis em seis horas ou quando a febre aumentasse. Acabei exagerando na dose e tive uma intoxicação”. Cláudio conta que logo depois da ingestão dos remédios ele começou a sentir tonturas, dores na região do fígado e que acabou desmaiando dentro de casa.

Como o fígado do rapaz estava comprometido e sem condições de metabolizar qualquer medicamento, ele teve de suportar as dores e a sensação de mal-estar, durante todo o período. ‘É que o fígado e os rins, dois órgãos vitais, costumam ser os mais afetados pelo uso inadequado ou exagerado de remédios. Por isso, esse tipo de intoxicação pode ser fatal. Fitoterápicos Mesmo quem alega não gostar de tomar remédio geralmente recorre aos “produtos naturais”. Mas eles também oferecem risco. O alerta é da fitoterapeuta Maria Helena Oliveira. Além disso, diz a médica, os medicamentos ditos “naturais” podem prejudicar a

imagem dos produtos feitos à base de plantas e que realmente auxiliam no tratamento de doenças. Esses recebem o nome de fitoterápicos. Segundo Maria Helena, os remédios fitoterápicos são aqueles que contêm substâncias derivadas de plantas, que tiveram eficiência comprovada e que ajudam no tratamento de uma série de problemas de saúde. Desde 2013, a procura por esse tipo de medicamento vem crescendo exponencialmente, segundo Maria Helena. Até o Sistema Único de Saúde (SUS) passou a adotá-los. Mas a fitoterapeuta alerta que eles também oferecem risco se forem tomados de maneira incorreta, seja na dosagem ou na combinação com outros produtos. “É bom lembrar que das dez substâncias mais tóxicas que se conhecem, oito são naturais”, alerta. “Todo produto natural, assim como os medicamentos, possui um princípio ativo e seu uso indiscriminado pode levar a intoxicação”, explica a médica. Em relação a esses tipos de medicamentos, também é fundamental que o paciente seja orientado por um especialista. Segundo Maria Helena, é importante saber que o uso fitoterápico é recomendado apenas em casos de doenças mais simples. Nos casos mais graves os produtos podem apenas complementar o tratamento, desde que informado ao médico. Para o Conselho Brasileiro de Fitoterapia (Conbrafito), o principal risco ao usar esses produtos está ligado ao consumo exagerado e à falta de fiscalização. Sem controle do governo, esses produtos são vendidos até na rua e pela internet. Os riscos são levar para casa remédios vencidos ou com a composição alterada e até mesmo placebos, aqueles compostos por substâncias sem propriedades terapêuticas. Muitos medicamentos também são vendidos de forma a se passar por naturais e alguns podem conter uma série de substâncias que são prejudiciais ao organismo, segundo a Conbrafito. Principais riscos Outra causa de intoxicação é a interação medicamentosa, quando a combinação dos remédios anula ou potencializa o efeito um do outro. E não é apenas a automedi-

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É

naquela caixinha de remédio aparentemente inofensivo e usado para aliviar sintomas como dores de cabeça, azia e cólica, por exemplo, que está uma das maiores ameaças à saúde das pessoas. A automedicação e o consumo de remédios fora do prazo de validade são responsáveis por 33% de todos os casos de intoxicação que chegam aos hospitais. Por ano são pelo menos 25 mil ocorrências no país, segundo levantamento do Sistema Nacional de Informações Toxicofarmacológicas (Sinitox). O Brasil é líder mundial em automedicação. Esse hábito de tomar remédio sem receita médica, apenas por recomendação de amigos ou balconista de farmácia, é consequência da junção de três fatores: acesso à informação pela classe média que se sente empoderada pelos dados na internet, a dificuldade de acesso ao sistema de saúde pela população de baixa renda e a chamada “empurroterapia”, venda forçada de remédios, admitida por profissionais ouvidos na reportagem. Para as autoridades, a automedicação é um caso de saúde pública. A automedicação é um problema agravado ainda pela venda livre de remédios e pelo livre acesso a informações sobre doenças, pela internet. Um estudo realizado em 2016 pelo Instituto de Ciência, Tecnologia e Qualidade (ICTQ) quanto mais alta a escolaridade das pessoas, maior a automedicação.Com fiscalização ineficiente e na falta de uma política severa de controle do setor, basta uma pessoa identificar sintomas, traçar um falso diagnóstico e entrar em uma farmácia onde a maioria dos remédios está ao alcance das mãos ou é fornecida ao consumidor, diante de um simples pedido. Segundo o Instituto de Ciência e Tecnologia e Qualidade (ICTQ) a prática comum em todo o país é ainda mais evidente em Brasília, fruto das estatísticas, que apontam o DF como a região mais conectada do país. Aqui, 85,3% das pessoas estão conectadas à rede, enquanto a média nacional é de 64,7%. O estudante de engenharia da computação Cláudio Barros, de 20 anos, já teve de ficar internado por


OS REMÉDIOS naturais ou fitoterápicos também podem causar sérios problemas ao organismo, principalmente em casos de consumo exagerado

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cação que provoca esse incidente. A omissão durante uma consulta também pode levar à interação inadequada. Por isso, segundo o clínico geral Luiz Renato Navega, é fundamental informar ao médico o consumo de qualquer remédio, ainda que ele seja aparentemente inofensivo. A mesma recomendação vale para as alergias. O médico explica que tomar o remédio sem prescrição é só um dos vários comportamentos perigosos. “A falta de conhecimento a respeito de um medicamento também pode levar ao uso de substâncias que causam alergia, por exemplo. E algumas reações alérgicas podem ser graves a ponto de levar uma pessoa a morte”, conta o médico. Uma das consequências desastrosas do uso indiscriminado de remédios no Brasil foi o surgimento das bactérias resistentes à maioria dos antibióticos. É que até setembro de 2010 esse tipo de remédio era vendido livremente nas farmácias. Foi preciso mudar a legislação para que eles passassem a ser vendidos apenas com receita especial, com identificação do médico, do farmacêutico responsável e do comprador.

Hipocondria

Todo mundo conhece ou tem na família aquela pessoa que nunca está se sentindo bem, que conhece todos os sintomas de doenças e é capaz de traçar um “diagnóstico” instantaneamente, diante de qualquer queixa. Essas pessoas, em geral, mantém um estoque de remédio nas gavetas e jamais se recusam a indicar um comprimido para quaisquer males. São os hipocondríacos. A hipocondria é uma doença e está diretamente relacionada à automedicação. Raramente um hipocondríaco se reconhece como tal. A hipocondria é um transtorno mental que se caracteriza pelo vício em remédios, e também com a preocupação excessiva com a saúde. Para os pacientes com hipocondria, sintomas comuns são interpretados como sinais de doenças graves e a visita ao médico acontece, na maioria das vezes, de forma desnecessária. Ainda assim, o paciente sente sintomas reais de doenças imaginárias, o que torna o diagnóstico e tratamento muito difícil. A dona de casa Maria Lúcia, de 62 anos, é um desses casos. Basta um sintoma e dona Maria recorre aos remédios. Ela explica que parte desse com“Eu sei que o que eu faço é errado e que por tamen veio da eu corro muitos riscos tomando remédio to forma que foi educada, sem me consultar, mas cresci assim” coisa de faMaria Lúcia, dona de casa, 62 anos mília. Ela diz

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que a mãe costumava dar remédios para tratar os sintomas mais simples. “Quando eu fiquei mais velha passei a fazer a mesma coisa”, admite. “Ir ao hospital requer muito esforço e nem sempre a gente sai de lá com uma receita na mão. Então eu opto por comprar os remédios e me virar da forma que dá”, diz. Apesar disso, dona Maria faz questão de dizer que não aconselha a automedicação para ninguém. “Eu sei que o que eu faço é errado e que eu corro muitos riscos tomando remédio sem me consultar, mas cresci assim e para mim isso se tornou algo normal. Não acho que tomar remédios dessa forma seja melhor que ir ao médico. Muito pelo contrário”, conta Maria. Automedicação no Brasil Uma pesquisa feita em 2016 pelo Instituto de Ciência e Tecnologia e Qualidade (ICTQ) aponta que 72% dos brasileiros se automedicam. Além do uso incorreto de remédios, muitas pessoas têm o hábito de usar a internet para se autodiagnosticar e se automedicar. O mesmo estudo apontou que a dor de cabeça é o sintoma mais procurado. Segundo o estudo, quanto maior o grau de escolaridade, maior é a prática da automedicação. Em relação a gêneros, os dados apresentaram uma pequena diferença: 76,7% dos homens e 75,1% das mulheres se automedicam. A compra de remédios pela internet tem contribuído com esses dados, de acordo com mesmo insti-


tuto. Além disso, comerciantes ilegais contribuíram para a criação de um mercado paralelo de medicamentos controlados negociados sem prescrição, onde é possível comprar com facilidade produtos que nem podem ser comercializados no país. Intoxicação Quando se tratam dos casos de intoxicação por uso de medicamentos, os números também assustam. Segundo dados divulgados em janeiro de 2016, pelo Sinitox, mais de 25 mil casos de intoxicação medicamentosa foram registrados e 24 pessoas morreram, na maioria homens. Isso mostra que em uma hora, três brasileiros se intoxicam por uso incorreto de remédios. Em termos de comparação, por exemplo, os atendimentos por picadas de animais peçonhentos e consumo de produtos químicos representam apenas metade disso. Segundo o mesmo estudo, os medicamentos que mais provocam intoxicações costumam ser aqueles livres de prescrição, como analgésicos, anti-inflamatórios e antialérgicos que estão à mão dos pacientes nas prateleiras das farmácias. Venda de medicamentos O Brasil é o sétimo país do mundo em venda de medicamentos, com cerca de 70,4 mil farmácias e alguns dos medicamentos vendidos nesses locais, mais especificamente os sem tarja, são comercializados livre-

do calor e da claridade. O guarda-roupa é o melhor local, pois o quarto costuma ser arejado, com temperatura amena e longe da umidade. Outro cuidado é colocá-los no alto, longe do alcance das crianças. Outro alerta verificar o prazo de validade. Medicamentos vencidos podem matar. Nestes casos, o correto é descartar qualquer remédio depois do vencimento, de preferência em postos de coleta nas farmácias. Ministério da Saúde O Ministério da Saúde instituiu o Comitê Nacional para a Promoção do Uso Racional de Medicamentos (CNPURM) para orientar e propor ações, estratégias e atividades para a uso correto de remédios no âmbito da Política Nacional de Promoção da Saúde, estabelecendo um plano de ações que contempla quatro áreas: regulação, educação, informação e pesquisa.

O que fazer Segundo o Conselho Regional de Farmácia do DF (CRF), a população parece não estar atenta aos riscos da automedicação. E por conta dos inúmeros casos de intoxicação que acontecem todos os anos, o Conselho Federal de Farmácia vem realizando diversas campanhas para mostrar à população o risco da automedicação e estimular a busca de informações sobre medicamentos em fontes seguras, entre elas o farmacêutico, profissional que atua na elaboração e testes em medicamentos e produtos estéticos. As campanhas também têm o intuito de informar sobre a conservação correta de medicamentos. Elas informam que importante seguir as recomendações que estão na embalagem desses produtos como mantê-los protegidos da umidade,

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O CLÍNICO Luiz Renato já teve que lidar com diversos casos de intoxicação medicamentosa

mente. Além desse “livre comércio”, muitos balconistas admitem tentar vender mais remédios, sem necessidade, para bater metas. Essa prática é chamada de “empurroterapia”, um comportamento abusivo vedado pelo Código de Defesa do Consumidor que infelizmente acontece diversas vezes. Segundo um balconista de farmácia entrevistado nessa reportagem, a empurroterapia acontece por conta do movimento no comércio. “Quando o movimento tá mais vazio, tentamos empurrar um remédio sim, nem que seja um melzinho”, conta o balconista. Ele ainda diz que devido as farmácias online, muitas pessoas correm o risco de comprar o remédio errado, ilegal ou até placebo. “Com certeza tem muita gente que ganha dinheiro vendendo mercadoria que não condiz com o que a pessoa precisa”, conta o balconista. Para que haja a comercialização, todo remédio precisa ser registrado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), seguindo uma calssificação de tarjas. Na venda desses medicamentos tarjados, a prescrição é indispensável, uma vez que os produtos apresentam possíveis efeitos colaterais.

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LAICO, MAS NEM TANTO Especialistas temem que ampliação de grupos religiosos no Congresso Nacional resulte em aumento do conservadorismo e retrocesso de direitos humanos MÔNICA SIQUEIRA

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de diversas religiões devem ser dirigidas aos fiéis, e não para o comando da sociedade em um Estado laico”. Para os pesquisadores, o conceito de direitos humanos é um ponto polêmico. “Existe uma má interpretação sobre direitos humanos, que sofre uma construção sensacionalista de associação dessas questões com a imoralidade”, afirma Tatiana. Essa percepção, defende, acaba por contribuir para o aumento da subordinação das minorias sexuais, do confinamento da mulher na sociedade e do racismo. O sociólogo Jessé Souza, especialista em classes e desigualdade sociais no Brasil, com mais de 20 livros publicados sobre o assunto, avalia que a

te pela valorização dos direitos humanos. “Algumas pessoas construíram esse slogan que os direitos humanos são a proteção de bandido, e não é isso. Direitos humanos significa olhar prioritariamente para sujeitos subalternizados”. Outra ideia que ganhou o senso comum, segundo eles, é de que a esquerda defende posições que a Igreja tenta combater. “Esses partidos tornam-se um ambiente muito propício para temas mais conservadores”, afirma Cursino. A pauta da bancada evangélica, no entanto, vai além de questões como aborto, drogas e homo afetividade. Integrante da Frente Parlamentar em Defesa da Família, o se-

“A laicidade é um princípio secular, que vai prever que o Estado tem autonomia em relação às instituições religiosas” Tatiana Lionço, professora da Universidade de Brasília

religião ocupa um espaço que nem o governo nem a sociedade preencheram para uma parcela da população vulnerável ou excluída das principais instituições. "A sociedade no Brasil é criminosa, perversa, má. Ela odeia o mais fraco. As igrejas entraram nessa lacuna, nesse vazio”. Cursino considera que a busca é pela humanização. “Para sair da invisibilidade, ter existência simbólica”, diz. Essa existência, na avaliação de Tatiana Lionço, passa necessariamen-

nador Magno Malta (PR-ES) adianta que o grupo está unido também em torno de questões como a prisão perpétua e a redução da maioridade penal. Quando o assunto é a família, argumenta que ela é a base da sociedade. “Essa é a visão da maioria dos brasileiros. Cerca de 90% são pelos direitos universais. E a minoria não pode afrontar a sociedade inteira, que é cristã. Existe o sexo masculino e o feminino, é uma escolha de Deus, não da pessoa”, diz o senador.

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Brasil é considerado Estado laico desde 1891, mas a mistura entre política e religião é cada vez mais comum. O Congresso Nacional registra, nesta legislatura (2015-2019), o crescimento da bancada religiosa, sobretudo a evangélica. E, segundo especialistas, a aposta para as eleições de 2018 é aumentar em 50% o número de atuais deputados e senadores, além de lançar candidato à Presidência da República. No início da última legislatura, a bancada religiosa contava com 74 parlamentares. A intenção para este ano é eleger 150 deputados e 15 senadores. A ambição por mais espaço nas esferas de poder está diretamente ligada ao número crescente de fiéis. O censo demográfico de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que o número de católicos caiu em relação ao levantamento anterior, em 2000. Por outro lado, cresceu o de evangélicos, que agora representam 22,2% dos brasileiros. Em 1991, este percentual era de 9,0% e, em 1980, de 6,6%. A consequência direta dessa maior representatividade pode ser o retrocesso nos direitos humanos, segundo o analista político Antônio Queiroz, diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). A avaliação dele é sobretudo com as consideradas pautas mais progressistas, afetadas de uma ou outra forma por princípios e valores religiosos. Entre elas, a união homoafetiva, a pesquisa com células-tronco, a descriminalização do aborto, a legalização das drogas e a maioridade penal. “Eles atuavam de forma muito pulverizada e hoje se concentram em dois ou três partidos, o que facilitou o fortalecimento de interesses mais conservadores. Professora da Universidade de Brasília (UnB), a psicóloga Tatiana Lionço lembra que a laicidade é um princípio secular que prevê que o Estado tem autonomia em relação às instituições religiosas. O professor de sociologia Eurico Cursino, também da UnB, concorda. “As normas e crenças

JESSSÉ SOUZA: "Direitos Humanos significa olhar prioritariamente para sujeitos subalternizados" 81


Foto: Marcos Oliveira - Agência Senado

HÁ MAIS de sete anos Senado analisa proposta que permite reconhecimento legal da união entre pessoas do mesmo sexo

Na opinião de Magno Malta, o conceito de família não pode passar pela união de pessoas do mesmo sexo, que conquistaram a regulamentação do casamento via Supremo Tribunal Federal. Tanto que, um projeto de lei sobre o assunto, em análise no Congresso Nacional, tem tido a votação constantemente adiada pela obstrução dos parlamentares cristãos, que se unem em propostas desse tipo. Mas os temas defendidos por integrantes de diversos segmentos religiosos necessariamente não passam pela defesa de uma pauta única. É comum, por exemplo, na Câmara, que parlamentares da bancada evangélica atuem em conjunto com a chamada bancada “da bala”, que luta pelo direito ao acesso de armas pela população civil, e a “do boi”, que se organiza para defender temas ligados ao agronegó-

cio. “Eles têm uma visão de mundo muito conservadora, que valoriza o estado penal no sentido da repressão, pois o desvio de conduta não associa um pequeno assalto a um estado de necessidade dos cidadãos, à ausência de estado e de oportunidade, e sim atribui uma atitude delinquente a um desvio de conduta propositado”, afirma o diretor do Diap. Temas polêmicos A associação de interesses e de atuação dessas bancadas ocorre, ainda, em temas polêmicos ou que necessitam de quórum qualificado para a aprovação em plenário, como é o caso da votação de Propostas de Emenda à Constituição (PEC), que passam por várias discussões e precisa de dois terços dos votos dos parlamentares. “A unidade nessas agendas vem também de

LAICIDADE E LAICISMO redemoinho . ano 09 . número 14

O Brasil tornou-se um Estado laico em 1890, na Proclamação da República, pelo decreto de Ruy Barbosa. Laicidade: É característica dos Estados não confessionais que assumem uma posição de neutralidade perante à religião. Laicismo: Igualmente não confessional, refere-se aos Estados que assumem uma postura de tolerância ou de intolerância religiosa, ou seja, a religião é vista de forma negativa, ao contrário do que se passa com a laicidade.

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católicos carismáticos e que se juntam aos evangélicos pela primeira vez para se ajudar reciprocamente, fazendo julgamento moral a respeito de quem propõe o debate dessas ideias”, diz Antônio Queiroz. Nessa configuração, segundo Tatiana Lionço, a fragilização de movimentos sociais e dos direitos humanos não é um problema nem de direita e nem de esquerda, mas sim do sistema político brasileiro. “No Brasil, a falta de separação prática entre os poderes leva a estratégia de disputas políticas a só pensarem estrategicamente caminhos para a viabilização das candidaturas e eleição”, opina. Enxergar comunidades religiosas como nichos eleitorais tem sido uma constante nos últimos anos. “Os ex-presidentes Lula e Dilma consideravam que deveriam dialogar para a garantia de adesões, que é o voto”, lembra Tatiana. O teólogo Michel Augusto, pastor da Igreja Batista Nacional Deus é Luz, defende que a Teologia da Libertação impulsionou a esquerda no Brasil e enfatizou segmentos como pobres, negros, mulheres e crianças. “A Bíblia não é de esquerda nem de direta, não coloca ênfase no pobre, na viúva e nem no rico. O evangelho é para todos os grupos. Não existe na Bíblia um deslocamento para um grupo específico, Deus não faz acepção de pessoas”, declara o teólogo.


e para a geração de riqueza”, complementa Cursino. “Os evangélicos quando olham para crenças de outras religiões, ou por exemplo, crenças seculares da questão feminina e da questão da orientação sexual, eles estão, na verdade, vendo o demônio. Por que Deus só gosta de quem trabalha, sem pensar, o tempo todo e vive para gerar mercadorias”, sustenta. O problema do crescimento tanto das bancadas religiosas quanto do conservadorismo na política, segundo Jessé Souza, está no uso manipu-

Jessé Souza cita como exemplo a cobrança de dízimos, traduzida como O cenário político de 2018, na demonstração de fé. Seguir uma reliopinião dos analistas políticos, oferegião e deixá-la influir inclusive nas escoce uma conjuntura favorável à expreslhas políticas é um processo de pertensão do conservadorismo, nos mais cimento para classes que, muitas vezes, diversos contextos sociais. Cursino se sentem humilhadas com frequência. explica que esse tipo de pauta, mais “Não é só a diferença econômica. Essas associada à direita, não chega a ser pessoas sentem o desprezo o dia inteinovidade. A raiz histórica, no entanto, ro. Tudo isso são coisas que ninguém é citada por Tatiana Lionço. “O conpresta atenção, esse abandono é cotiservadorismo decorre do processo diano”, explica Jessé. Segundo ele, a escolonizador, de abuso contra diversos querda também não conseguiu montar segmentos, e determinou na estruum projeto para, realmente, conquistar tura da socieesse grupo social. “É preci“Fragilização de movimentos sociais dade brasileira so mostrar que a ascensão um viés racista, deles tem a ver com vone de direitos humanos não é problema elitista, misógitade política”. no e de subalNessa mistura entre nem de direita, nem de esquerda, ternização de empresa, religião e Esmas do sistema político" trabalhadores tado, surgem reivindicae índios”. ções de benefícios diretos, Tatiana Lionço, professora da UnB como isenções de imposPara os especialistas, quando existem repre- lativo de pessoas por lideranças políti- tos. “Privilegiar templos de qualquer sentantes na política que defendem cas. O sociólogo realizou um trabalho culto com isenção de impostos é uma determinados preceitos, isso legitima empírico por vários anos sobre esses competência muito antiga das religio clamor e a expressão popular de indivíduos. “Não se pode demonizar ões. A religião protestante é particuuma série de representações que es- o conjunto desses fieis, são abando- larmente competente no sentido de tavam de alguma forma invisíveis. O nados, esquecidas pelo Estado”. Ele reconstruir o indivíduo, dizer pra ele: fundamentalismo religioso, segundo entende que esse discurso da prospe- tudo que disseram para você até hoje eles, é uma dessas características que ridade das igrejas acontece como em está errado, mas se você acreditar niselegem demandas. “O discurso con- qualquer empresa. “As religiões são so e naquilo aí as coisas vão começar a servador das classes média ou alta, empresas, agem da mesma forma que andar”, diz Cursino. Ele considera que os inserido em instituições de poder, o mercado econômico. Se as empre- avanços da bancada evangélica ainda não enxerga pessoas em condição de sas querem angariar consumidores, as não ganharam tanto espaço apenas no Senado, mas é uma questão de tempo. vulnerabilidade econômica. As clas- igrejas buscam angariar fieis”. ses dominantes, que se presumem únicas, questionam o motivo de determinados sujeitos serem considerados pelo Estado”, explica Tatiana. Como exemplo, cita os constantes questionamentos às políticas para o segmento LGBTTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) contempladas pelo Sistema Único de Saúde. “É importante dialogar com as mais variadas instituições da sociedade, incluindo as religiosas, mas colocando como ponto de partida a ética democrática”. A inclusão de parcelas da população tradicionalmente excluídas passa a ser uma pauta cada vez mais distante. “A ideia é: nós precisamos de agentes econômicos, voltados para a produção. É uma espécie de luxo injustificável bancarmos a existência de seres que não estão voltados para a transformação do mundo TATIANA OBSERVA que no Brasil não se discute ocupação de cargos públicos por religiosos

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Conservadorismo


O secularismo é o princípio da separação entre instituições governamentais e religiosas, no mundo Ocidental, a partir da Reforma Protestante. No Brasil, Cursino afirma que a mistura entre Estado e Igreja acontece desde o processo de formação, no século XVI. O poder da religião nunca desapareceu . Tanto a Igreja Católica quanto a Protestante tiveram participação expressiva na história do Brasil e desempenharam papéis ativos e de forma diferente diante das crises do país. Ao longo dos séculos, a proximidade pouco mudou. As igrejas neopentecostais, vindas dos Estados Unidos, ganharam força em 1970. “O protestantismo é uma religião de quebrar tradições, baseada na Teologia da Prosperidade que diz que quanto mais próspero for o homem, mais perto ele estará de Deus”, observa Cursino. Para os católicos, o raciocínio é inverso. “No catolicismo, ser rico é feio, bom é a pobreza, a modéstia, a humildade”. O escritor Hamilton Pereira, ex-secretário de Cultura do Distrito Federal, relata que, no período pós-Vargas, a Igreja Católica se firmou

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com posições reacionárias ligadas aos interesses de produtores urbanos. Antônio Queiroz reforça que, no início do governo militar, houve forte apoio ao movimento internacional para interromper a trajetória de esquerda no Brasil. “A igreja queria fortalecer cada vez mais o Estado, tanto do ponto de vista da prestação de serviços e da exploração da atividade econômica, quanto da produção de bens, serviços e programas sociais para população”, destaca. Na avaliação da cientista política Marilde Loiola, professora do Instituto de Ciência Política da UnB, no auge da ditadura houve uma cisão na Igreja Católica, que rompeu pela primeira vez com um discurso único e se dividiu, criando espaço, inclusive, para o surgimento da Teologia da Libertação, com personalidades dentro da própria Igreja contrárias ao sistema político e preocupadas com os direitos humanos. “Após 1964, com a truculência da ditadura, alguns bispos e clérigos adotarem posturas mais progressistas. Surge então um papel importante nas Comunidades Eclesiais de Base, que caminharam no sentido de buscar reparar aquele erro cometido quando não imaginaram que ele não teria a agressividade, truculência que teve”, diz Queiroz. Desde, então, sustentam os especialistas, a Igreja Católica procura atualizar seu discurso. Em maio deste ano, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) divulgou a posição da Igreja Católica para as próximas eleições destacando a preocupação do Papa Francisco com a carência de políticas públicas consistentes no país. Segundo o documento, os discursos e atos de intolerância, de ódio e de violência estão na raiz de “graves questões sociais”,

ELEMENTOS RELIGIOSOS ainda são comuns no Congresso

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POLÍTICA E RELIGIÃO Max Weber verificou uma relação entre crença religiosa e as atividades econômicas. Ele identificou que proprietários do capital, empresários e mão de obra qualificada, eram, em sua maioria, protestantes. Já os católicos tinham inclinação para uma educação humanística, enquanto os protestantes preferiam uma educação de tipo técnica. Crédito: Arquivo pessoal

Poder de ontem e hoje

com posturas fechadas ao diálogo e a conciliação, além do aumento do desemprego. Um ponto de convergência entre a CNBB e os evangélicos é a expectativa de fortalecimento da democracia e o exercício da cidadania nas eleições deste ano. “Nós vivemos em uma sociedade que não conhece os fundamentos das questões partidárias e, muito menos, quando os fundamentos se cruzam por questões convenientes”, diz o pastor Michel Augusto. Por outro lado, Tatiana Lionço, que atualmente se dedica ao estudo do fundamentalismo religioso na política nacional, lembra que no Brasil não se levantam questões como autoridades religiosas não poderem ocupar cargos públicos, como ocorre em outros países, como o México: “Isso é para além de um projeto político de país, de sociedade. No Brasil, temos deputados distritais, federais e senadores que são pastores”, conclui.


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salto só precisa de uma coisa: o 1º passo.

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