Magazine 60+ #37

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portugueses ricos não sorriem, enquanto os brasileiros pobres, sim, sorriem ou sorriem mais que aqueles em condições opostas. Afinal que química foi esta que fez da dor, prazer, música e dança? Sorriso sim, humor, não diria. Será porque nos falte a noção do trágico que os argentinos possuem? Isto me faz lembrar que os cubanos também sorriem mais que os espanhóis e, como nós, se distinguem dos argentinos. Matemática a parte, o elemento comum é o africano. Nada de novo sobre a Guanabara. Assim, a música popular brasileira, tanto a popular quanto a erudita, como a cubana não têm dúvidas sobre o pertencimento dos seus ritmos mestiços. E os brasileiros, que nível de consciência tem desse fenômeno? Outro dia, uma criatura me disse que a Bossa Nova, nossa mais elegante, sofisticada produção musical é europeia. Espantada, quis conhecer o argumento. Mais espanto: Nara Leão, Tom Jobim e Carlinhos Lira não são do morro, não são negros e nem pobres, me afirmou o interlocutor, cioso do seu conhecimento visual. Senso comum ou podemos chamar de ignorância? Ou ainda: “De todo os ódios, nenhum supera o da ignorância contra o conhecimento”, atribuído a Galileu Galilei (1564-1642). Faz tempo heim! Não tenho nada contra a ignorância. Afinal todos nós a carregamos em algum grau. Porém, a julgar pelos inumeráveis exemplos, estamos precisando de algumas pesquisas antropológicas, sociológicas para explicar o gosto pela expressão de convicções desprovidas de informação básica, ou portadoras de mero achismo, ou de negação do óbvio, o que é particularmente patológico. Ou não? Estou exagerando, de certo. É hora de perguntar: ler civiliza? Perón e Getulio, “los cantantes” e a Bossa Nova, o humor e o sorriso são pretextos para falar de livros que ajudam a compreender, mas não ajudam a aceitar esse destino cavernoso que nos assalta a cada três décadas, segundo um cientista político, desses que campeiam nos noticiários, para ajudar a atenuar nossa consagrada ignorância. E o país do futuro vai ficando cada vez mais país do passado, sem que a maioria dos brasileiros tenha a menor consciência disso, ou, eu estou completamente equivocada ao acreditar que ler civiliza, na medida em que nosso povo e aí sem distinção de classe social (o que é uma anomalia nossa) aprecia o passado numa versão “passadista confesso”. Essa mistura de cínicos e ignorantes que se encontram nos auxílios mútuos de sempre: uma migalha temporária aqui para malas cheias de dinheiro ou de emendas ali. Uma correspondência nada sutil, tão reiterada que chega ao ridículo, placidamente aceito pelo conjunto das gentes. Só o sorriso nos resta? E o que fazem os argentinos com seu humor indefinido? Cínicos dali também retornam usando o nome (nem tão santo) de Perón, sempre em vão. Ministros caem por todos os lados, mas no 1º Mundo as coisas se recompõem, encontram outras saídas. Por aqui, na América Espanhola e na Portuguesa, as coisas se repetem à exaustão. Quando, afinal, sentiremos tédio? Quando daremos vuelta a la tortilla? Se não fiquei propriamente ofendida, fiquei chateada de meu primeiro texto ganhar a pecha de “pra baixo”. Hoje, assino embaixo e não vejo porque escrever ”para cima”. Reafirmo minha crença na leitura. Aceito que estamos todos um pouco enfermos. Porém, não me conformo com a leitura apenas para acalmar os espíritos cansados. A leitura deveria servir também para desacomodar-nos e, em alguma medida, descolonizar-nos. Ou se preferirem Sócrates: “Existe apenas um bem, o conhecimento, e um mal, a ignorância”. O mau humor e não o sorriso tomou conta do texto e o que era divagação virou tema central. Fica para o próximo, tratar do humor e dos mitos argentinos.

magazine 60+ #37 - Agosto/2022 - pág.40


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