SÓ QUERIA TE DIZER
Ovelha Desgarrada Rodrigo Santos
– Você está bem? Óbvio que ela não estava. Os cabelos cortados à máquina, rente ao couro cabeludo, deixavam entrever algumas cicatrizes, novas e antigas. Olheiras profundas deixavam o azul de seus olhos opaco, como a pintura de um Corcel II estacionado há décadas na Avenida 18 do Forte. Uma calça de moletom escondia uma provável magreza – logo Elaine, cujas formas sempre causaram inveja a todas nós – e um casaco que eu nunca tinha visto (e que já vivera dias melhores) se jogava por cima de uma camisa velha de futebol. Não dava nem pra saber se era um garoto ou uma garota. – Estou indo... E o pessoal da escola? – Vão bem... Todos perguntam por você. – Mentira, ninguém queria saber dela, só eu. Nem o Tiago queria ouvir falar no nome de Elaine (“Pára de falar nessa menina, ela escolheu o caminho dela e eu não quero minha namorada envolvida com esse tipo de gente”), em menos de um ano parecia que ela deixara de existir nas vidas de todos. Menos na minha. Estudamos juntas desde o jardim. Era a minha melhor amiga, das panelinhas de plástico a confidências da puberdade. “A gente vai ser amigas para sempre, não vai?”, dizia Elaine antes das fotos abraçadas ou depois de corações partidos. Ninguém sabia os segredos que Elaine chorava em silêncio, ninguém via as marcas de cinto e mãos na sua carne branca. Nem eu. Elaine tentava comer o copão de açaí que eu levara com alguma dignidade, mas a fome é um algoz espaçoso e desesperado. Não devia comer há dias. Tomei coragem e perguntei: – Você volta? – Não sei. Meu dente está sujo? – E sorriu, mostrando os dentes pretos em mais uma brincadeira antiga, só nossa. Ri também. – Sua porca! E esse cachorrinho fofo? 19