INDÍGENAS DE MINAS - VOZES E FACES

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MARIELAGUIMARÃES/OTEMPO�

Por um mês, O TEMPO esteve em diferentes regiões de Minas Gerais para possibilitar que os povos originários pudessem narrar suas histórias, suas lutas e suas esperanças e levar os leitores a conhecer de perto alguns territórios indígenas no Estado. Evidenciar a riqueza, a diversidade e as batalhas dos milhares de indígenas que vivem em Minas –muitas vezes, invisibilizadas por 523 anos de perseguição, exploração e violência – é a proposta deste especial.

Vozes e Faces

Indígenas de Minas buscam direitos e reconhecimento

BeloHorizonte,abril de2023 FREDMAGNO/OTEMPO FREDMAGNO/OTEMPO FREDMAGNO/OTEMPO

Caderno especial. Voz e face dos indígenas de Minas emergem de uma trajetória de violência e superação

MARCOSINDÍGENAS MARCOSINDÍGENAS

História de esperança e luta dos povos originários

Ao longo de várias páginas deste caderno, em peças em formato de losango iguais a esta, será relatado um marco da história indígena em Minas. Eventos que representam uma trajetória de perseguição e resistência, de violência e superação, de abandono e retomada. Em mais de cinco séculos de convivência com os colonizadores, bandeirantes, missionários, grileiros e posseiros, os povos originários em Minas foram forçados a migrar, massacrados e torturados e sofreram ataques ambientais, e, mesmo assim, resistem como cultura e unidos.

Confira aqui todo o conteúdo especial com reportagens, entrevistas e minidocumentários sobre as Vozes e faces dos povos indígenas de Minas

¬ CRISTIANA ANDRADE CYNTHIA CASTRO

QUEILA ARIADNE FREDERICO DUBOC

Em dezembro de 2022, Uaimanã veio ao mundo. E o choro da primeira criança nascida na aldeia em Brumadinho, na região metropolitana de Belo Horizonte – onde antes havia uma fazenda abandonada por mineradora – soou alto: “Sim, existem povos indígenas em Minas!”. Somaram-se a ele as afirmações de Maria Diva, Tito, Arapowanã, Ãngohó, Ailton, Célia, entre outros milhares de integrantes dos povos originários que vivem no Estado. Invisibilizados por 523 anos de perseguição, exploração, violência e estigma, eles têm como terras reconhecidas menos de 0,2% do território mineiro. Vozes e faces que esta reportagem especial de O TEMPO ajudam a reverberar e se fazer conhecer.

Trata-se de uma imersão na diversidade. Cerca de 20 etnias resistem em Minas, algumas originárias do Estado, outras resultados de migrações forçadas pelos conflitos agrários ou até pela crise político-econômica em outros países. O número oficial de quantos são eles deve ser conhecido neste ano, assim que os resultados do Censo de 2022 forem divulgados. Pelo estudo estatístico do IBGE, de 2010, os indígenas de Minas somam mais de 31 mil. Já a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) acredita que sejam cerca de 41 mil. Dados preliminares mostram que, nacionalmente, essa população praticamente dobrou. Neste especial, trazemos um pouco da história desses que vivem por aqui. Histórias de dor, como a do Reformatório Indígena Krenak, instituído na ditadura militar; histórias de luto, como o massacre Xakriabá por grileiros, após o qual foi impossível postergar mais a homologação de suas terras; histórias de resistência, como a dos Maxakali, que, espalhados por centenas de quilômetros, preservam a identidade e a cultura por meio da linguagem; histórias de exílio, como de Pataxó, Pataxó Hãhãhãe, Xukuri-Kariri e Kamakã-Mongoió, separados de seus pares e vítimas da lama das tragédias das barragens. Ao mesmo tempo, eles são faces da preservação de saberes e de pioneirismo na produção de conhecimento, perpetuados nas escolas indígenas e nos materiais didáticos produzidos por eles próprios. Assim como a voz, que, desde a posse, em fevereiro deste ano, assume a tribuna em Brasília por meio da primeira mulher indígena eleita deputada federal por Minas. Ou o saber reconhecido dos povos originários que, desde março, ocupa pela primeira vez uma academia de letras no Brasil – a de Minas.

Esta é a missão deste caderno: reconhecer a riqueza e a pluralidade de vozes e faces, possibilitar que os próprios indígenas narrem suas histórias. Uma trajetória de luta e esperança, que é o que representa Uaimanã, em Xukuri-Kariri.

PRESIDENTE Laura Medioli

VICE�PRESIDENTE Marina Medioli

DIRETOR EXECUTIVO Heron Guimarães

EDITORES EXECUTIVOS Renata Nunes e Juvercy Júnior

COORDENAÇÃO Flaviane Paixão DE JORNALISMO

COORDENAÇÃO E FECHAMENTO: Cristiana Andrade, Cynthia Castro, Frederico Duboc e Queila Ariadne

REPORTAGEM: Bruno Mateus, Cristiana Andrade, Cynthia Castro, Lucas Morais, Maria Irenilda e Queila Ariadne

FOTOGRAFIA: Flávio Tavares, Fred Magno e Mariela Guimarães

EDIÇÃO DE FOTOGRAFIA: Daniel de Cerqueira e Mariela Guimarães DESIGN: Rose Braga INFOGRAFIA: Rose Braga DIAGRAMAÇÃO: Janaína Panicalli, Reinaldo Dias, Renata Andrezza e Rose Braga

REVISÃO: Luciara Oliveira e Thalita Martins

2 OTEMPO BELOHORIZONTE ABRILDE2023
FLÁVIOTAVARES/OTEMPO
EXPEDIENTE
Xakriabá usa arco e flecha para caçar em seu território

Quem são os indígenas de Minas?

x Ailton Krenak

Escritor, poeta, líder indígena, ativista ambiental e membro da Academia Mineira de Letras

“Na década de 1990, quando a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e alguns pesquisadores da instituição, junto com pessoas da Secretaria de Estado da Educação, se propuseram a criar um programa de implantação da educação escolar indígena em Minas Gerais, a pergunta que se escutava era: ‘Uai, tem índio em Minas?’. De 1996, 1997 para cá, ela foi respondida de uma maneira tão retumbante que elegemos uma mulher indígena com mais de 100 mil votos para o Congresso Nacional. Elegemos prefeitos para municípios, que trazem reconhecimento à presença indígena no Estado. O povo Maxakali está tendo filmes premiados em festivais no Canadá e nos Estados Unidos, filmes feitos pelo Isael e pela Sueli Maxakali; os livros publicados por eles são lidos nas universidades e nas bibliotecas. Houve um renascimento indígena em Minas Gerais, de fato, com a presença de mais de dez etnias, uma espécie de explosão indígena, porque historicamente em Minas tem os Krenak, que são os filhos dos antigos Botocudos do rio Doce. Tem Maxakali, nossos parentes da região do Vale do Mucuri, que também já habitaram outras regiões, e os Xakriabá, no Norte do Estado.”

Veja entrevista na página 27

Eles já estavam aqui muito antes de 1500 e, desde então, precisam lutar pelas próprias terras e pela manutenção de tradições. Uma resistência ininterrupta, que até hoje exige constantes batalhas não apenas territoriais, mas contra o apagamento secular da memória e a violação de direitos básicos. Também precisam enfrentar a ignorância de quem ainda questiona: "uai, tem indígena em Minas?". Tem indígena em Minas, sim! São cerca de 20 etnias e, com base no último Censo oficialmente divulgado pelo IBGE (2010), quase 4% dos indígenas do Brasil estão no Estado.

FLAVIOTAVARES/OTEMPO

“Tem indígena em Minas, sim. Nós somos um povo originário que busca o reconhecimento e queremos que as pessoas conheçam nossa cultura, porque para muita gente os indígenas não têm valor, mas somos valorosos. Queremos mostrar que a gente existe, a gente está vivo. E somos 37 aldeias aqui dentro do território Xakriabá.”

Laurinda Gonçalves de Souza Professora de cultura indígena da Aldeia Caraíbas, Xakriabá

MARIELAGUIMARÃES/OTEMPO

x Célia Xakriabá

Deputada federal pelo Psol-MG, primeira mulher indígena mineira nesse cargo

FLAVIOTAVARES/OTEMPO

Nós somos os verdadeiros originários desta terra. A mensagem que eu deixo para o Brasil e para todos é que nós somos um deles. Nascemos índios e vamos morrer índios, para que todos fiquem sabendo.”

Xakriabá

do Conselho Distrital de Saúde Indígena (MG/ES)

indígena em Minas. Não é porque tenho carro, moro numa casa, estudo, faço faculdade e uso roupa que não sou indígena. Ser indígena está no sangue, na alma. Minha alma é indígena, meu sangue é indígena, meu pensamento é indígena, minha luta é indígena. Em Minas tem indígena, sim! Está no sangue, na alma e no pensamento.”

“Entrei na escola indígena em 1996, quando os primeiros professores indígenas de Minas assumiram. Quando se discutia, em 1996, a presença indígena no Estado, saiu uma revista que dizia: ‘Uai, tem índio em Minas?’. Hoje, mudando esse termo, respondo: ‘Uai, temos, sim, povos indígenas em Minas Gerais’. Existe uma diversidade grande de povos indígenas por aqui. Tem o povo Maxakali, que na década de 40 foi quase exterminado. Existe o povo Krenak, que foi importante não só para Minas, mas para o Brasil. Na ditadura militar, existiu um reformatório no território Krenak – um campo de concentração. Milhares de indígenas foram torturados e mortos na ditadura. Essa terra indígena é guardiã de uma história que reflete a presença indígena do Brasil. Há o povo Xakriabá, o maior povo indígena no Estado, com população em torno de 12 mil. Há o povo Xukuru, que veio de outros Estados. Existe o povo Pataxó, o povo Pankararu. Essa diversidade está no contexto urbano. Quando a gente ouve: ‘Por que os povos indígenas estão chegando até aqui?’, na verdade, foram as cidades que chegaram até os territórios indígenas. É importante reconhecer essa diversidade. Tem indígena em todos os biomas. Minas é bioma Mata Atlântica. Minas é Cerrado. Minas é Caatin- ga. Mas tem indígena no Pampa, no Pantanal.”

Veja entrevista na página 13

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Nas escolas indígenas Maxakali, até o quinto ano, as crianças aprendem na língua Maxakali; Brasil tem mais de 270 línguas indígenas faladas

MAXAKALI. Aldeias ficam no Vale do Mucuri, considerado o grande território desse povo originário

Linguagem é resistência para preservar a cultura

x Maria Diva Maxakali

Aldeia Água Boa

“Na minha criação, tudo era mato.

Tinha fruta, caça, pesca. A comida nossa era a natureza, não tinha esse problema de fazer compra. Meu sonho é ter nossas matas de volta, as nascentes e os rios para pescar.”

no Vale do Mucuri, a equipe de O TEMPO foi recebida por um grupo de crianças, com olhares curiosos e desconfiados. A comunicação foi visual, as boas-vindas vieram pelo sorriso e correria. Elas não falam português. Para os Maxakali, a preservação da língua materna é sinônimo de resistência e sobrevivência cultural. O diálogo só se estabeleceu quando encontramos o cacique Isael Maxakali, nosso guia e tradutor no território indígena.

Na aldeia, vivem 36 famílias, cerca de 380 pessoas. O grupo se mudou para lá em 2021, após uma ruptura na Aldeia Verde. As terras eram da União e estavam cedidas ao Instituto Federal do Norte de Minas, porém sem efetiva utilização. “Não tinha mais espaço. Nossa população aumenta,

mas nosso território não. Conseguimos essa terra. Todo o Vale do Mucuri era nosso território grande”, diz Isael.

BARREIRA ÉTNICA. Os Maxakali, Tikmu’un na língua dessa etnia, não falam português nas aldeias. Crianças até 12 anos e a maioria das mulheres só sabem se comunicar pela língua Maxakali, do tronco linguístico Macro-Jê. Mesmo vivendo próximo a centros urbanos, eles mantêm uma barreira étnica que reforça a identidade indígena. Eles vivem em cinco terras: Santa Helena de Minas, Bertópolis, Ladainha e Teófilo Otoni. Quatro delas estão demarcadas, e Pradinho e Água Boa no mesmo território. As outras – Aldeia Verde, Mundo Verde/Cachoeirinha e Escola Flo-

resta – chegam a se separar por mais de 100 km.

Para estudiosos, a linguagem é peça-chave para a sobrevivência, manutenção e promoção da cultura. “Os povos Maxakali se diferem por manter viva a língua ancestral – falada e transmitida às crianças e aos jovens. Muitos são monolíngues ou bilíngues”, diz o professor Fábio Bonfim, linguista e coordenador do Laboratório de Línguas Indígenas da Universidade Federal de Minas Gerais. Segundo ele, a língua é ponto-chave para explicar a manutenção da cultura, mesmo depois de mais de 200 anos de contato com o homem branco. Nas escolas, até o quinto ano, as crianças aprendem na língua Maxakali. Português e matemática só a partir do sexto ano.

PERFIL NÔMADE

Os Maxakali ocupavam extenso território no Nordeste de Minas e Sul da Bahia, e os grupos se deslocavam. Hoje, as aldeias não chegam a 7.000 hectares. São antigas fazendas, sem vegetação nativa. Segundo a Procuradoria da República de Teófilo Otoni, cerca de 2.800 indígenas vivem nessas reservas. Redução territorial e maior população são desafios. Para os Maxacali, é difícil ficar presos, pois têm hábito nômade.

Área visitada não tem rio nem mata; água vem de poço e não é potável

¬ Nossa equipe de reportagem atravessou de carro o maior território contíguo dos Maxakali – de Água Boa, em Santa Helena de Minas, a Pradinho, em Bertópolis (53 km²).

A mata não existe mais. Os aldeamentos de três a 15 moradias preenchem, de forma espaçada, a imensidão verde do capim. Em cada aldeia, vive uma mesma família, e em todas há uma escola da rede estadual de ensino. Os professores são os próprios indígenas, e as

construções são simples, de alvenaria, barro batido e pau a pique. No percurso de 40 minutos, não encontramos rio. A água vem de poços artesianos e não é potável. A falta de saneamento básico causa verminoses e diarreia. Sem floresta para caçar e rio para pescar como faziam os ancestrais, a maioria dos Maxakali sobrevive de pequenas plantações, criação de galinha e porcos, além do auxílio do governo a pessoas de baixa renda. (MI)

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FOTOS FRED MAGNO/O TEMPO
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Casas são de pau a pique, barro batido ou alvenaria; em cada aldeia, há uma escola
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Sem falar português, MAXAKALI SÃO enganados

CRIME. Indígenas pagam mais caro no comércio e ainda têm cartões de benefícios sociais roubados

CRIME. Indígenas pagam mais caro no comércio e ainda têm cartões de benefícios sociais roubados

¬ MARIA IRENILDA

ENVIADA AO TERRITÓRIO MAXAKALI

SANTA HELENA DE MINAS E BERTÓPOLIS.

“Aqui, o nosso povo sempre foi enganado pelo não indígena. Alguns comerciantes não vendem no preço certo. Fazem o preço da cabeça deles, roubando. O carro custa R$ 20 mil, eles vendem por R$ 40 mil. Celular de R$ 500, eles vendem por R$ 2.000. Tem refrigerante de R$ 8, e vendem por R$ 15”. O desabafo, em tom de denúncia, é do professor Marilton Maxakali, que recebeu a equipe de O TEMPO na Aldeia Pradinho, onde vive com cerca de 1.100 indígenas, em Bertópolis. Formado em ciências sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Marilton conseguiu vencer a barreira do idioma, mas vê com frequência seus parentes serem enganados quando precisam ir às compras

O fato de a maioria dos Maxakali não falar português, ou mesmo os que falam não dominarem o idioma, torna-os presas fáceis para golpistas e comerciantes desonestos das cidades vizinhas às aldeias, no Vale do Mucuri. Segundo Marilton, um primo, vereador em Bertópolis, levou um prejuízo de mais de R$ 17 mil com um falso vendedor de carros. “Ele pegou o dinheiro da entrada, mas não passou o documento. Depois, veio aqui e le-

vou o carro de volta”, conta.

O procurador Francisco de Paula Vitor, titular do segundo ofício da Procuradoria da República de Teófilo Otoni, explica que comerciantes e golpistas se apropriam de cartões de benefícios dos indígenas. “Na prática, são bandidos. Retêm o cartão, sacam valores e fazem empréstimos de benefícios previdenciários dos indígenas e devolvem uma porcentagem menor a eles”, explica.

“Até os cartões do Bolsa Família vão parar em mãos de estelionatários que sequer têm comércio na cidade”, acrescenta Rodrigo Horta, coordenador da Procuradoria da República de Teófilo Otoni, que atua há mais de dez anos combatendo crimes contra os Maxakali.

Em novembro passado, a Polícia Federal, junto do Ministério Público Federal (MPF), cumpriu sete mandados de busca e apreensão por estelionato, ameaça, apropriação indébita e extorsão a indígenas. Em 2020, mais de cem cartões bancários e de benefícios sociais dos Maxakali foram tomados dos criminosos e devolvidos. “A lida com dinheiro para eles é complexa porque a cultura é diferente. Essa coisa do guardar, do economizar, é uma dimensão diferente. O consumo para eles é imediato. Na problemática dos cartões, é um ponto que dificulta”, diz o procurador Francisco de Paula.

Na Carta Régia de 13 de maio de 1808, o príncipe regente de Portugal, dom João VI, declara as chamadas

“Guerras Justas” aos botocudos e aos Puri, residentes nas regiões mineiras Central e Zona da Mata para “defender os colonos e proteger as propriedades das incursões indígenas”. A medida foi o ponto culminante de uma longa disputa por territórios férteis ocupados pelos povos originários, que ganharam importância com a decadência da atividade minerária e a busca de canais de escoamento de produtos para o Espírito Santo, desde meados de 1760. A guerra provocou a diáspora dos povos indígenas, que fugiram para a região do Rio Doce, o Vale do Mucuri e a divisa com o Espírito Santo. Os que permaneceram foram mortos ou aculturados.

Conflito por terra é recorrente

Aldeias ficam em quatro municípios; a distância entre algumas delas chega a 100 km

¬ As primeiras demarcações de território foram na década de 1950, quando a Fundação dos Povos Indígenas (Funai) comprou duas fazendas e as doou aos Maxakali. Ainda assim, as áreas são alvo de conflito com fazendeiros, que ignoram a delimitação e colocam gado no pasto vizinho. Para o professor Marilton Maxakali, não adianta chamar a polícia, pois a prática criminosa sempre volta. A PF, atendendo ao MPF, instaurou inquérito para apurar as invasões. No fim de 2022, quatro fazendeiros foram intimados. (MI)

EDITORIA DE ARTE
O TEMPO Aldeia Verde Aldeia Escola Floresta Teófilo Otoni Carlos Chagas Águas Formosas Ouro Verde de Minas Ladainha Mundo Verde Cachoeirinha Água Boa MG BA ES Pradinho Belo Horizonte MG
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FOTOS FRED MAGNO/O TEMPO Aldeia Escola Floresta, a 19 km de Teófilo Otoni; Maxakali preservam o idioma próprio
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“GUERRASJUSTAS” “GUERRASAOSBOTOCUDOS JUSTAS” AOSBOTOCUDOS (SÉCULOSXVIIIEXIX)

Fevereiro de 1987. Território só foi homologado pela Funai após massacre que matou três lideranças

Os 15 pistoleiros envolvidos no massacre foram julgados e condenados, mas estão livres. O julgamento foi realizado pela Justiça Federal em BH em setembro de 1988. O grileiro Francisco de Assis Amaro recebeu a maior pena: 27 anos. Germano Gonçalves foi condenado a 20 anos e seis meses; Roberto Freire Alkimim e Sebastião Vidoca a 12 anos; Claudomiro Vidoca a dois anos e seis meses. Eles foram condenados por genocídio, lesões corporais, invasão de domicílio e formação de quadrilha. Após cumprirem um terço da pena em regime fechado, foram soltos.

Terra demarcada com sangue Xakriabá

x Domingos Nunes

Cacique Xakriabá

“Meu pai falava que preferia ser adubo dessa terra, mas não abandonaria a luta. Com seu sangue derramado, ele realmente serviu de adubo. Nosso território ficou livre, porque em seguida veio a homologação.”

¬ SÃO JOÃO DAS MISSÕES Primeiro, tiros no meio da madrugada. Depois, outro barulho ainda mais estarrecedor. “Escutei o tombo do meu pai caindo atrás da gente”, conta Domingos Nunes de Oliveira, 49. Naquele dia, 12 de fevereiro de 1987, ele viu o pai, Rosalino Gomes de Oliveira, ser assassinado por posseiros, viu o irmão de 11 anos ser obrigado a arrastar o corpo, e a mãe grávida ser baleada com sua irmãzinha de 2 anos nos braços. Outras duas lideranças foram mortas.

O menino, que na época tinha 12 anos, hoje é o cacique do povo Xakriabá, que só conseguiu regularizar a posse de parte das próprias terras debaixo do sangue derramado. “Meu pai dizia que preferia ser adubo do que abandonar a luta. E ele foi, pois, a partir dali, nosso território ficou livre, porque em seguida veio a homologação. A morte desses guerreiros não foi em vão”, conta o cacique.

Domingos lembra que, no dia do massacre, cerca de 15 pistoleiros invadiram as terras da família, na época conhecida como Aldeia Sapé, hoje chamada de Itapicuru, em São João das Missões, no Norte de Minas. Rosalino Gomes, então com 42 anos, lutava pela regularização do território, desagradando a fazendeiros, posseiros e grileiros. A demarcação de parte desse território já tinha sido feita pela Fundação Nacional

dos Povos Indígenas (Funai) em 1979. Mas faltava a homologação para garantir o reconhecimento e retirar os não indígenas. “A alegação era que não tinha dinheiro para as indenizações. Mas, depois do massacre, o dinheiro apareceu”, conta Domingos. A homologação foi assinada em 14 de julho de 1987, cinco meses depois dos assassinatos.

OUTROS GUERREIROS . Dona Nena, 64, também viu de perto o massacre. Ela era casada com Manoel Fiúza da Silva, cunhado de Rosalino. “Naquela madrugada, ele ouviu os tiros e falou: ‘Tá acontecendo alguma coisa na casa da minha irmã’. Ele saiu. Fui atrás, e ouvi ele dizer: ‘Não atira, seu Amaro, tenho quatro filhos para criar’. Então ouvi: “É para você aprender a tomar terra dos outros’”, lembra dona Nena. O marido ainda conseguiu se levantar e contou quem tinha atirado.

Os irmãos tentaram levá-lo para o hospital. “No caminho, o pneu do carro furou. A gente encontrou com outro irmão. Manoel olhou para ele e falou: ‘Não chora, porque eu já tô morto’. Aquela foi a conversa derradeira”, lembra José Fiúza, que é liderança na aldeia de Itapicuru, onde ocorreu a chacina.

Outro parente da família, José Pereira Santana, que morava na casa de Rosalino, também foi assassinado. No dia seguin-

te, os três corpos foram sepultados ali mesmo, onde estão até hoje. Mais ou menos dois meses depois da tragédia, dona Nena perdeu a filha bebê, de 6 meses, em um acidente de carro. A criança está enterrada no mesmo local, ao lado das lideranças dizimadas. “A gente tem esse espaço como sagrado. É palco de luta do nosso povo no passado. Todo ano, no 12 de fevereiro, a gente faz aqui um momento de reflexão”, afirma o cacique Domingos. A arqueóloga e historiadora Alenice Baeta, do Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (Cedefes), explica que infelizmente esse massacre não é um caso isolado.

“Muitos mártires indígenas já derramaram seu sangue lutando pela terra. O Rosalino é um herói indígena em Minas Gerais que dei-

xou muitos frutos e exemplos de resistência”, ressalta. O filho que arrastou o corpo de Rosalino aos 11 anos, José Nunes, foi prefeito de São João das Missões por três mandatos. RIO SÃO FRANCISCO. Agora, a luta dos Xakriabá é pela homologação de outros 43 mil hectares delimitados pela Funai, que vai devolver a eles o direito de viver às margens do rio São Francisco. “Tenho esperança. Rosalino não morreu, ele fez uma viagem que tá brotando e dando frutos que vão produzir coisas boas. Os Xakriabá ainda vão beber água no nosso rio”, diz José Fiúza. Com 12 mil pessoas em 37 aldeias no Norte de Minas, os Xakriabá são o povo com a maior população indígena do Estado.

¬ QUEILA ARIADNE ENVIADA AO TERRITÓRIO XAKRIABÁ Cacique Domingos ao lado do Domingos ao lado túmulo do pai, Rosalino Gomes, do Rosalino que morreu pela que liberdade de seu povo de Os Xakriabá transformaram o local onde as lideranças foram brutalmente mortas em palco para reflexão e luta FOTOS FLÁVIO TAVARES/O TEMPO Pistoleiros livres
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Retomada teve início em 2006

G O povo Xakriabá tem 96.571 hectares de terra delimitados. Desse total, 53.214 hectares já estão totalmente regularizados. Os outros 43.357 hectares já estão delimitados, mas aguardam homologação. “Os estudos todos já foram feitos. Agora falta só a carta declaratória”, explica Santo Caetano Barbosa. Ele é cacique da Aldeia Morro Vermelho, uma das áreas retomadas pelos Xakriabá.

Com o crescimento da população e sem respostas efetivas do poder público, as retomadas se tornaram a ferramenta de reparação e sobrevivência. “Em 2006, nós saímos da cidade de São João das Missões e viemos para cá, em três fazendas. Eram 45 famílias na época. Foi uma luta muito grande, com muita perseguição contra nossas lideranças”, diz.

Hoje as áreas são reconhecidas como terra indígena, mas a falta da homologação ainda gera transtornos. “A gente já teve vários projetos impedidos de serem implantados aqui, na aldeia, como a construção de um prédio da educação, pois, para levantar uma escola, precisa de legalização da Funai”, explica Santo. (QA)

Direito.

Xakriabá lutam por homologação de 43 mil hectares para poderem viver às margens do Velho Chico

SÃO JOÃO DAS MISSÕES E ITACARAMBI Quem descobriu o Brasil? A resposta que costuma vir tão automaticamente não traduz a realidade indígena. “Na escola, a gente era obrigado a dizer que foi Pedro Álvares Cabral, senão perdia ponto. Mas percebemos que estava errada era a pergunta, que deveria ser: ‘Quem invadiu o Brasil?’”, questiona o cacique do povo Xakriabá Domingos Nunes de Oliveira, 49. Ele lembra que, quando os colonizadores chegaram, os indígenas já estavam lá. E, desde então, vêm sendo obrigados a lutar pela própria terra. E pela água também.

É que, ao longo de séculos, os Xakriabá foram sendo expulsos das margens do rio São Francisco e, agora, lutam para retomar a área que lhes foi tirada por fazendeiros, grileiros e posseiros no Norte de Minas.

“O sonho da gente não é só a terra. É a água também. Hoje, só temos uma nascente aqui dentro, sendo que temos o rio São Francisco limitando com o território. É onde está nossa reivindicação”, ressalta o cacique Xakriabá João Batista dos Santos, 63, que representa as aldeias Vargem Grande e Caraíbas, em Itacarambi.

Agora, a esperança de reaver esse pedaço de terra, e também da água, aumenta. O Ministério dos Povos Indígenas (MPI) já anunciou um pacote de homologação de 14 terras indígenas para este mês de abril. Nenhuma é em Minas, mas a ministra da pasta, Sonia Guajajara, sinalizou que em breve haverá uma nova rodada de homologações. “Sobre as de-

Rio São Francisco: sonho de um povo que quer água também

mais terras a serem demarcadas além dessas, reiteramos que a demarcação de terras é uma das prioridades deste ministério, então há, sim, a intenção de demarcar outros territórios, porém, quando apropriado, divulgaremos quando e quais serão essas terras”, informou o MPI, por meio de nota.

LUTA CONSTANTE. O massacre de 1987, com os assassinatos de Rosalino Gomes e de outras duas lideranças, é um marco para a conquista territorial Xakriabá. No entanto, os conflitos começaram muito antes. No século XVIII, os bandeirantes avançaram sobre terras indígenas. Segundo pesquisa histórica do Instituto Socioambiental (ISA), eles foram aldeados, forçados a falar português e a seguir os costumes europeus. Nessa época, Januário Cardoso de Almeida, filho de Matias Cardoso, doou uma terra para garantir que os Xakriabá não se espalhassem. A doação foi registrada em dois cartórios: o de Januária e o de Ouro Preto. Em 1850, a legislação mudou, e as terras voltaram a ser devolutas.

Os indígenas, mais uma vez, foram expulsos. Mas nunca deixaram de lutar. Em 1979, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) demarcou o território. Mesmo com a posse reconhecida, não era possível obrigar os fazendeiros a deixar as terras, pois não tinham homologação. Ela só veio oito anos depois, mas só reco-

nheceu 46.415 hectares nos arredores da aldeia onde aconteceu o massacre, hoje chamada Itapicuru. Isso é menos da metade da área de direito.

Em 1995, foram reconhecidos mais 6.798 hectares, regularizando a Aldeia Tenda Rancharia, cuja homologação veio em 2000. Faltam 43.357 hectares a serem homologados. São eles que levarão os Xakriabá de volta às margens do São Francisco.

“Nós sempre estivemos neste espaço. Com as invasões, nosso povo foi sendo dizimado, e foram tirando a gente dos lugares mais férteis. Em 1728, com a doação, as terras foram delimitadas, mas isso aconteceu só para não deixar que os indígenas saíssem para fazendas alheias. Depois os fazendeiros continuaram invadindo. Em 1969, já tinha uma grande luta pela demarcação. Cacique Rodrigão e meu pai saíram em busca de soluções. Em 1985 e 1986, as brigas foram acirradas. Até que veio o massacre em 1987”, lembra Domingos.

Quase 40 anos depois da chacina, a população Xakriabá cresceu. “Hoje somos mais de 12 mil indígenas lutando para sobreviver. Mas, sem um território capaz de dar um suporte para isso, fica inviável manter nossa cultura, nossas tradições. E sem

água a gente não consegue sobreviver”, afirma o cacique.

ESPERANÇA. Milton Fernandes Ribeiro, 59, é uma liderança na aldeia São Bernardo. O local está dentro da área que aguarda regularização. Para ele, que articulou a retomada dessa terra, a cerca de 5 km do leito do São Francisco, a homologação trará muitas mudanças. “O indígena vai ter direito de acesso ao rio para poder pescar, trabalhar, plantar suas pequenas roças. É um direito do povo Xakriabá. E no futuro pode até ter projetos”, destaca. Para o cacique João, a expectativa é de oportunidades. “Eu acredito que seja possível fazermos projetos para distribuir a água. Hoje temos 15 comunidades que ainda precisam de caminhão-pipa. O que eu espero é a liberdade do rio”, ressalta.

¬ QUEILA ARIADNE ENVIADA AO TERRITÓRIO XAKRIABÁ
Indígenas lutam pela regularização de 43 mil hectares banhados pelo São Francisco, já delimitados pela Funai
FLAVIO TAVARES/O TEMPO FOTOS FLAVIO TAVARES/O TEMPO ABRILDE2023 OTEMPO BELOHORIZONTE 7
Aldeia Morro Vermelho é fruto de uma retomada em 2006; está nos 43 mil hectares delimitados pela Funai, mas faltam declaração e homologação

Ditadura. Krenak e outras etnias foram forçados a viver em campo de concentração criado em 1969 Krenak e outras etnias foram forçados a viver em campo de concentração criado em 1969

João Bugre procura vestígios do centro de repressão montado pela ditadura militar no território Krenak, na região do Rio Doce, em Minas Gerais

Medo e tortura em Resplendor

Guarda rural aumentava o terror em MG

¬ BRUNO MATEUS ENVIADO AO TERRITÓRIO KRENAK RESPLENDOR. João Bugre, um então jovem de 16 anos, foi acordado com cinco fortes e precisas batidas na janela da casa onde morava com o tio Jonas. “O cabo Vicente está querendo te ver”, disseram os policiais. Acuado, João foi ao encontro de Antônio Vicente, então cabo da Polícia Militar de Minas Gerais. “Podem levar esse índio preso. Ele estava bebendo por aí”, foi o que escutou. Ali, no meio de uma noite quente de março de 1970 em Resplendor, às margens do rio Doce, começa um pesadelo que duraria 12 meses. Antes de ser jogado na cadeia, João passou três dias e três noites em um cubículo onde mal conseguia esticar o corpo franzino no piso duro e malcheiroso. Água e comida eram raridade.

Constituído de duas edificações, o presídio para onde João Bugre foi levado tinha nome: Reformatório Agrícola Indígena Krenak, ou Reformatório Krenak. Inaugurado pela ditadura com apoio da polícia e da Funai, em 1969, o local serviu de espaço para repressão, tortura, trabalho escravo e maus-tratos a indígenas de 15 etnias, de 11 Estados. Pelo menos cem ficaram encarcerados nos três anos de funcionamento da prisão, desativada em 1972.

Os Krenak foram forçados –em mais um episódio de expulsão de suas terras – a deixar Resplendor, numa ação da ditadura para liberar a área para fazendeiros, e se alojar na Fazenda Guarani, em Carmésia, a 300 km do território Krenak. Lá, os Krenak e indíge-

nas de outras etnias continuaram confinados e vigiados. Eles só retornaram a uma pequena parte do território em 1980.

TRABALHO FORÇADO. No centro de tortura em Resplendor, João Bugre cumpria uma rotina típica de campo de concentração – dormia em beliches de madeira frágil em uma pequena cela com outros dez indígenas. Quando a cama despedaçava, o chão era o destino dos corpos maltratados. Os indígenas eram obrigados a trabalhar e a plantar o próprio alimento – geralmente arroz, mandioca e inhame. Se conversassem nos idiomas próprios, eram repreendidos com violência. Soldados armados e cães treinados para atacar faziam rondas. “Vi vários indígenas sendo espancados. Teve um que apanhou igual cachorro, depois foi amarrado na grade da cela por mais de um dia. Os policiais ficavam me rodeando, me pondo medo, me acusando do que eu não tinha feito”, recorda-se. Segundo o capítulo “Viola-

“A ditadura roubou minha juventude e muito mais. (...) A gente acha que está bem, mas por dentro não está.

Você acha que não está solto, sempre tem alguma coisa te segurando.”

ções de Direitos Humanos dos Povos Indígenas”, do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, ao menos 8.350 indígenas foram mortos na ditadura militar.

No mês passado, João Bugre conduziu a reportagem de O TEMPO ao local onde foi instalado o Reformatório Krenak. Em 1979, o centro de repressão foi destruído por uma enchente do rio Doce, tornando vestígios impossíveis de serem encontrados. Passados mais de 50 anos da injusta

prisão, é difícil para João falar sobre o que viveu. Em sua casa na Aldeia Krenak, para onde voltou há três anos, ele se emociona ao recordar os horrores da ditadura. “Ela roubou minha juventude e muito mais. Não consegui estudar, aprender bem meu idioma, perdi o rumo. Me destruíram de uma só vez; até hoje penso por que fizeram isso comigo”.

Os traumas o perseguem. “A gente acha que está bem, mas por dentro não está. Sempre tem alguma coisa te segurando”, lamenta. Hoje, ele aprende a ler e escrever na escola, inclusive no idioma itchok borum. Da cultura e da luta de seu povo, jamais se esqueceu. João Bugre abre um sorriso quando é chamado de “Borum Rim” – algo como “indígena preto” em português. Embora tenha tentado, a ditadura nunca lhe arrancou o orgulho de ser Krenak.

GA sombria história da prisão Krenak se mistura a outra experiência intolerável, a Guarda Rural Indígena (Grin), criada em 1969 para treinar indígenas para atuarem na repressão à própria comunidade, enfraquecendo a cultura e os laços entre eles. Fardados como policiais, aprendiam técnicas de tortura, instrução militar e tiro. O jornalista Rubens Valente traz, no livro “Os Fuzis e as Flechas: História de Sangue e Resistência Indígena na Ditadura” (Companhia das Letras), depoimento do chefe da Grin, o capitão da PM Manoel dos Santos Pinheiro, em 1972: “Fui eu quem criou a Grin e idealizou Krenak. (...) Fui convidado pela Funai para trabalhar com os índios em Minas”. (BM)

Justiça determina reparação

¬ Em 2015, o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública contra a União, o Estado de Minas Gerais, a Funai, a já extinta Fundação Rural Mineira (Ruralminas) e o oficial militar reformado da PM de Minas Gerais Manoel dos Santos Pinheiro.

A ação parte de três episódios centrais: a criação da Guarda Rural Indígena, a instalação do Reformatório Krenak e o deslocamento forçado para a Fazenda Guarani, que também funcionou como centro de detenção arbitrária de indígenas. Em setembro de 2021, a Justiça julgou a denúncia como parcialmente procedente e condenou o Estado brasileiro. Entre as medidas de reparação estão o pedido

público de desculpas, que deverá ser feito pela União, pela Funai e pelo Estado de Minas Gerais mediante consulta prévia aos Krenak; e a conclusão do processo de demarcação da região dos Sete Salões, território sagrado para o povo Krenak. Parte dele é ocupado por fazendeiros.

Segundo o procurador da República Edmundo Antônio Dias, do MPF em Minas Gerais, as medidas de reparação ao povo Krenak são fundamentais “porque tomar consciência de graves violações a direitos humanos, repará-las e preservar a memória do legado de violência que encerram são instrumentos de prevenção à repetição de ciclos autoritários”. (BM)

MARIELA GUIMARÃES/O TEMPO
Indígena torturado; ao menos 8.350 foram mortos pela ditadura ARARA / DIVULGAÇÃO
8 OTEMPO BELOHORIZONTE ABRILDE2023

Rio Doce. Rompimento da barragem da Samarco em 2015 envenenou águas sagradas para o povo Krenak

Zezão Krenak, Zezão Krenak, o barqueiro que o barqueiro que viu o Uatu morrer viu o Uatu morrer

¬ BRUNO MATEUS ENVIADO AO TERRITÓRIO KRENAK RESPLENDOR. Zezão Krenak, 70, navegou por décadas nas águas do rio Doce. Barqueiro por 28 anos, atravessava alunos, moradores e turistas no Uatu – ou Watu –, como o rio é chamado na linguagem Krenak. Ele guarda lindas histórias desse período e ainda sente o sabor do peixe que pescava para comer ou vender. Cascudo era o mais caro, mas a tilápia também tinha bom preço. Certo dia, Zezão escutou o vizinho falando que a lama de Mariana estava chegando. Ele sentiu no coração apertado a maior tristeza do mundo. Em 5 de novembro de 2015, Zezão viu sua vida mudar.

Na tarde daquele dia ocorreu, em Mariana, o rompimento da barragem de Fundão, da Samarco, empresa controlada pela Vale e pela multinacional anglo-australiana BHP Billiton. Dezenove pessoas morreram, e a enxurrada tóxica de rejeitos – cerca de 50 milhões de metros cúbicos de resíduos de mineração – contaminou a vegetação e a fauna do rio Doce, a mais importante bacia hidrográfica do Sudeste. A lama percorreu mais de 600 km até a foz, no Espírito Santo, deixando um rastro de destruição e morte.

O povo Krenak foi atingido com a contaminação e o envenenamento

do rio. O que antes era um local sagrado se transformou em tristeza e solidão. Ali, às margens e nas águas do Uatu, os Krenak cantavam e dançavam em celebração a tudo o que o rio representa: fartura, vida, cura, amizade e bem-estar. A relação era de subsistência, mas também sempre foi espiritual. Se a terra é a mãe, o rio Doce era o pai que cuidava, protegia e abastecia. “O rio nos criava. Em tempos de calor, ninguém ficava em casa. Todos iam pescar, conversar. Quando a lama veio, foi uma tristeza só, um choro danado. Tem gente que nem gosta de chegar perto do rio”, diz Zezão, que se recorda da chegada da onda de rejeitos: “Fiquei com a pele ruim, três dias com o estômago embrulhado. A água podre foi subindo, subindo. Água pesada e fedorenta. Eu tinha seis cachorros, eles ficavam comigo no barco e nadavam no rio. Morreram todos. Eu chorava só de lembrar”.

Não há um Krenak sequer que não tenha sido impactado pela agonia do Uatu. “Mataram nosso rio, ele era tudo para nós. Eu também morri, foi como se tirassem tudo que eu tinha. Fiquei de pés e mãos quebrados”, relata João Bugre. Lia Kre-

nak, companheira de João há 33 anos, revela sua dor: “Não tem como não se emocionar, né? Hoje, a gente tem até medo de colocar o pé na água”. A neta deles, Sofia, 10 anos, lamenta não poder brincar com as amigas no rio Doce.

“O Uatu é sagrado para nós. Perdemos os peixes e as plantas que a gente tinha na beira do rio. Mas não perdemos a guerra”, avisa Dejanira Krenak, anciã da aldeia. O escritor, ativista e membro da Academia Mineira de Letras Ailton Krenak é só desgosto ao falar das consequências socioambientais da lama da Vale que desceu de Mariana. “É muito triste. Quando você anda pela aldeia, você sente que tem uma densidade ali, tem uma tristeza. E não vai ser com o dinheiro da Vale que essa tristeza vai passar”, anuncia

SAUDADE. A vida de Zezão Krenak mudou muito nos últimos tempos. Há três anos, ele perdeu a visão em função da catarata e espera pelo transplante de córnea. De seis em seis meses,

INDÍGENAGUARDARURAL (1969)INDÍGENA

Empossado no comando do então Serviço de Proteção aos Índios (SPI) em 1966, o capitão Manoel Pinheiro criou dentro da área dos povos Maxakali a chamada Guarda Rural Indígena (Grin), em setembro de 1969, para apaziguar conflitos. Pinheiro usou sua experiência como ex-membro do Serviço Nacional de Informações e do serviço reservado da Polícia Militar de Minas para formar a milícia, originalmente composta por 84 recrutados de aldeias da região. Eles aprendiam táticas de contraguerrilha, investigação e tortura e tinham a missão de manter a ordem em territórios indígenas e impedir o deslocamento para áreas do Estado ou de fazendeiros. No período, houve desarticulação das lideranças, divisões nos grupos locais, denúncias de tortura e favorecimento a posseiros. O Grin foi desmantelado em 1972.

sai de Resplendor e vai a Belo Horizonte para consultas médicas. Zezão recorrentemente sonha que está pescando nas águas límpidas do seu rio Doce. Ele se enche de saudade. Quando desperto, do quintal da casa no território Krenak, o que ouve é o ruído dos trens da Vale que carregam toneladas de minério, sobem e descem trecho cortando as margens do rio que ela envenenou, apitando tantas vezes ao dia. Para Zezão, soa como um alarme para nunca esquecermos de que ali há um rio que morre todos os dias.

Barqueiro Zezão ainda sonha que está pescando nas águas do rio Doce

Rio Doce foi atingido por enxurrada tóxica de lama da mineração

G A situação do Uatu é “um crime que acontece todos os dias desde novembro de 2015”, na avaliação do conselheiro municipal de Saúde de Resplendor, presidente do Conselho Local de Saúde Indígena Krenak e representante da aldeia no Conselho Distrital de Saúde Indígena, Marcelo Krenak. Ele diz que “a falta do rio traz muitos impactos, (pois) aumenta a possibilidade de doenças respiratórias e o consumo de jogos eletrônicos, já que as crianças não têm o rio para brincar”. “Com o sedentarismo, vem o risco de depressão e alcoolismo”, acrescenta. Walison Vasconcelos Pascoal, doutor em antropologia e professor do Instituto Federal de Goiás, publicou, em 2021, na “Ambientes: Revista de Geografia e Ecologia Política”, o artigo “Os Krenak e o Desastre da Mineração no Rio Doce”, assinado também pela professora Andréa Zhouri, do Departamento de Antropologia e Arqueologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) da UFMG. Ele fez questão de sublinhar que “a história dos povos indígenas em Minas Gerais é marcada a ferro e fogo pelos interesses mineradores” e destacou que a trajetória dos Krenak é forjada na luta: “Cada um deles carrega no próprio corpo o trauma de sua própria história”. (BM)

“É um crime que acontece todos os dias”
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Mineração acirra luta por território na Grande BH

Busca por direitos. Exploração mineral e rompimento de barragem intensificaram conflitos fundiários

Cacique

“Já passamos pela Bahia, por Caldas e Presidente Olegário, sempre de forma provisória. Queremos um território para preservar o meio ambiente, as águas e o nosso projeto de vida, que é igual a esse cocar: de esperança, luta e garra. E é em cima dele que tenho uma mensagem: os invasores aqui certamente não somos nós.”

Em Brumadinho, indígenas Em Brumadinho, indígenas de etnias diferentes de etnias diferentes lutam pelo direito à terra lutam pelo direito à terra

¬ LUCAS MORAIS BRUMADINHO. Sob o sol forte típico do fim do verão, o canto e a dança milenar si zam a resistência de um povo.

Em cada rosto e no peito, desenhos homenageiam os antepassados mortos por conflitos que insistem em não cessar desde a invasão portuguesa ao Brasil, no século XVI. No território cercado por matas e uma lagoa, em Brumadinho, na região metropolitana de Belo Horizonte, a união de quatro povos busca um direito básico: o acesso à terra.

Caciques e cacicas Pataxó, Pataxó Hãhãhãe, Xukuri-Kariri e Kamakã-Mongoió, juntos com outros membros das comunidades, relatam os problemas fundiários que foram ainda mais agravados pela mineração. Enquanto o povo Yanomami briga contra o garimpo ilegal, em Roraima, a mais de 3.000 km de distância, como mostrou o caderno especial de O TEMPO em fevereiro, em Minas um dos embates é com a exploração de minério.

Sem condições de viver na cidade, diante do preconceito e da falta de estrutura para a manutenção das tradições, parte da comunidade Pataxó Hãhãhãe que vivia na região do Barreiro, na capital, segue rumo à esperança de viabilizar um novo território em Esmeraldas, próximo ao rio Paraopeba. Era janeiro de 2017 quando criava-se a aldeia Kamakã, em um terreno da Fundação Caio Martins (Fucam). Dois anos depois, o inimaginável aconteceu: o rompimento da barragem da Vale na mina de Córrego do Feijão, além de matar 272 pessoas, levou 13 milhões de

tos para o leito do Paraopeba, inviabilizando a pesca e o uso da água até hoje. Com o crime ambiental, vieram a insegurança alimentar e conflitos internos entre indígenas.

O conflito pela terra gerou dois grupos de indígenas: um deles segue no território; outro ficou provisoriamente em Belo Horizonte e, depois, acabou se estabelecendo em terreno da mineradora, no distrito de Córrego de Areia, em Brumadinho.

“O grande espírito nos levou até lá, pela necessidade de termos uma terra. Estamos em Minas há mais de 40 anos, desde que fomos expulsos da aldeia-mãe, na Bahia. Queremos dar continuidade para nossa etnia, mas sofremos muita opressão, vigiados pela Vale com drones e até pessoas armadas”, conta a cacica Katarã Kamakã, 61. Segundo ela, o novo território viabilizou a formação de uma aldeia multiétnica, que acolheu outros povos, além dos Kamakã Mongoió.

Mais de 50 famílias seguem em esmeraldas

¬ Sem sequer terem sido reconhecidas como atingidas, 52 famílias indígenas seguem em Esmeraldas, na RMBH, lutando por um território, quatro anos após o rompimento da barragem Córrego do Feijão. “Na cidade não tem como viver, não dá para plantar, ter as criações, defender a sustentabilidade”, diz a cacica Pataxó Hãhãhãe, Marinalva Maria de Jesus, 61. Segundo ela, a comunidade ainda precisou enviar as crianças para BH todos os dias para a escola. “Muitas aldeias conseguiram colocar de pé suas escolas; nós não tivemos apoio nenhum.” (LM)

Esperança de recomeço com terra

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Na língua Xukuri-Kariri, Uaimanã representa a luta e a esperança. E foi esse o nome escolhido para o primeiro indígena que nasceu na Aldeia Arapowã Kakyá, em dezembro. Há pouco mais de um ano, um grupo de Xukuri-Kariri chegou a uma fazenda abandonada da mineradora Vale, em Brumadinho, após meses de promessas por um território provisório cedido pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

“Uaimanã é meu filho, cujo nome simboliza nossa resistência. Enfrentamos uma luta com a Vale, sendo perseguidos e até interditados para a chegada de alimentos, água e energia no território”, aponta o cacique Arapowanã Xukuru Kariri, 32.

CONFLITOS. Ao todo, 17 famílias construíram suas casas e salas de aula para 22 crianças no local e, até o momento, já plantaram mais de 2.500 mudas. A etnia é originária de Palmeira dos Índios (AL), mas parte do grupo deixou a terra natal há décadas por causa de conflitos fundiários e até assassinatos. “Passamos pela Bahia, por Caldas (Sul de MG) e Presidente Olegário (Alto Paranaíba), sempre de forma provisória. Queremos um território fixo, para preservar o meio ambiente, as águas e nossos costumes”, diz. (LM)

FOTOS FRED MAGNO/O TEMPO
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Kariri
Arapowanã Xukuru
10 OTEMPO BELOHORIZONTE ABRILDE2023
Primeiro bebê nascido na aldeia Arapowã Kakyá, Uaimanã é símbolo de resistência de seu povo

Habitação. Etnias que vieram da Bahia para Minas na década de 1950 ainda lutam por território próprio

Cacica Ãngohó. Pataxó luta para que seu povo e outras etnias conquistem seus sonhos

Povo Pataxó busca por reparação secular

¬ LUCAS MORAIS BRUMADINHO “Na memória do nosso povo tem histórias tristes, de medo, de alegria, de sofrimento, de fracasso, de êxito e coragem”. Retirado do livro “Cada Dia É uma História”, de autoria dos professores Kanátyo, Poniohom e Jassanã Pataxó e publicado pela Secretaria de Estado de Educação em 2001, o trecho resume parte do sofrimento de toda uma etnia que já perdura séculos. Era 1951, quando a demarcação do território indígena Pataxó em Barra Velha, distrito de Porto Seguro, no litoral Sul da Bahia, se transformou em um conflito com derramamento de sangue: policiais chegaram atirando, e parte da comunidade precisou sair às pressas. Um dos destinos de quem escapou foi Minas Gerais, principalmente a região metropolitana de Belo Horizonte (RMBH).

SONHO DE RECONSTRUÇÃO. “Parte dessas famílias veio para Minas Gerais e passou a viver sobretudo na capital, mas também em Sarzedo e Ibirité. Desde então, esses grupos vêm se organizando para reaver um território próprio, já que perderam os vínculos com seu território tradicional”, diz o gerente de Reparação Socioeconômica do Núcleo de Assessoria às Comunidades Atingidas por Barragens (Nacab), Luciano Marcos da Silva. Passados quase 70 anos, mais uma vez esse povo convive com a divisão entre as famílias, mas desta vez a mineração é a principal causa.

Assim como ocorreu décadas antes na Bahia, as aldeias criadas em Brumadinho, São Joaquim de Bicas e Esmeraldas dois anos antes do rompimento da barragem da Vale, que dizimou o leito do rio Paraopeba, vi-

ram o sonho de reconstruir toda uma cultura se perder em poucas horas. “Eles viviam em territórios amplos, onde as famílias organizavam seus clãs. É claro que, com a situação de insegurança alimentar, as indefinições, sem nenhum tipo de apoio por parte da empresa nem o reconhecimento dos danos, aumentam e tensionam ainda mais as questões”, argumenta Silva.

ÁGUA COM LAMA. Sobre a aldeia NaôXohã, o gerente da Nacab pontua que a situação é mais grave, já que a população vivia a menos de 200 m do rio. “Com o rompimento, eles foram uma das primeiras vítimas, onde a lama chegou com muito mais intensidade. Houve uma dispersão das famílias, entre núcleos na periferia da região metropolitana, no Taquaril (bairro de BH) e também na aldeia Katurãma (criada em São Joaquim de Bicas). Outros seguiram na comunidade, que teve boa parte da estrutura inundada e destruída pelas cheias de 2021”, acrescenta Luciano da Silva.

MANUTENÇÃO DA CULTURA. Para ele, o problema fundiário, intensificado pela Vale nos últimos anos, é o maior desafio da população indígena que vive na RMBH. “Eles querem permanecer enquanto povo, querem manter suas culturas, ter uma educação e os meios necessários para ter renda. Para eles, a reivindicação número um é ter as terras reconhecidas, porque isso permite que se reorganizem de novo além de políticas públicas efetivas”.

Conforme o último Censo do IBGE, divulgado em 2010, na Grande BH vivem 7.979 indígenas, de 18 etnias diferentes, sendo 3.477 só na capital mineira.

Enquanto o imbróglio das reparações se arrasta, uma família Pataxó Hãhãhãe chegou a viver de forma improvisada em curral de uma fazenda em Brumadinho. Sem alternativa, outra parte do núcleo se abrigou embaixo de uma caixa-d’água na mesma localidade.

“Fizemos denúncia ao Ministério Público Federal, que visitou o local. Assim que a Vale descobriu, imediatamente tirou esse pessoal e o levou para uma pousada. Só assim que fizeram algo”, conta o cacique Arakuã Pataxó. Em nota, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) disse que tem acompanhado as comunidades da RMBH e solicitou apuração das denúncias de violações de direitos na aldeia Katurãma.

AGRÍCOLAREFORMATÓRIOINDÍGENA(1969)AGRÍCOLAINDÍGENA

Sob a inspiração do Ato Institucional nº 5 (AI-5), entre o fim dos anos 1960 e o fim dos anos 1970, a Funai administrou dois centros para detenção de “infratores”. O primeiro deles, o Reformatório Agrícola Indígena Krenak, em Resplendor, em 1968, e o segundo, a Fazenda Guarani, em Carmésia, em 1972. Ambos foram chamados de “campos de concentração” no relatório da Comissão da Verdade. Os indígenas eram obrigados a uma rotina de oito horas diárias de trabalho forçado, vivendo em celas isoladas, sob espancamentos e torturas. O reformatório Krenak recebeu mais de 150 pessoas de quase duas dezenas de povos, com o objetivo também de dividir os indígenas e facilitar a ocupação de territórios por posseiros. Em 1973 foram transferidos para a Fazenda Guarani, em condições igualmente precárias.

procurador aponta falhas em acordo

Empresa diz que mantém diálogo

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Passados mais de quatro anos do crime da Vale em Brumadinho, a empresa não contratou consultoria independente para avaliar os impactos causados à população indígena na bacia do Paraopeba. Ainda assim, foi aceito pelo Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF-6) o acordo de reparação, que, entre outras medidas, prevê fundo de R$ 22,5 milhões para ações diversas. Em março, o órgão decidiu que a mineradora contrate assessoria técnica para os indígenas.

O procurador da República Helder Magno da Silva aponta falhas no acordo, como a quitação inte-

gral pelos danos passados, presentes e futuros – com isso, as comunidades nada mais poderiam contestar. “Aleatoriamente, a Vale ditou um valor e não se sabe se equivale ao que é devido aos indígenas”, diz. Magno alega que a mineradora se aproveita da condição dos indígenas, inclusive pressionando lideranças. “Na relação de direitos humanos e empresas, temos princípios chamados orientadores, criados pela ONU, que são proteger e reparar. E a Vale não tem observado essas obrigações, produzindo, constantemente, violações aos direitos humanos”. (LM)

¬ A Vale informou, por nota, que busca manter diálogo com os indígenas de Brumadinho e Bicas, respeitando suas tradições: “Os acordos celebrados com os Pataxó e os Pataxó Hãhãhãe foram construídos respeitando sua organização interna. Eles foram assistidos por advogados escolhidos por eles, e antecipamos parte dos pagamentos pelos danos”. Com relação aos indígenas que ocupam terreno da empresa, informou que “as propriedades são particulares e não se trata de territórios indígenas tradicionais, motivo pelo qual a ocupação configura uma invasão ilegal, cuja análise é feita pelo Judiciário”. (LM)

FRED MAGNO/O TEMPO
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Preconceito. Grupo Pataxó vive no Taquaril, na região Leste de BH, há 30 anos, e ainda sofre retaliação

Grupo Pataxó vive no Taquaril, na região Leste de BH, há 30 anos, e ainda sofre retaliação

Uma rotina de discriminação na cidade grande

¬ LUCAS MORAIS

No coração de Belo Horizonte, mais conhecido como “praça Sete”, no hipercentro, mais de 2 milhões de pessoas circulam todos os dias entre os quatro quarteirões fechados batizados como Maxakali, Xakriabá, Krenak e Pataxó. Da Tamoios à Tupis, da Carijós à Timbiras, da Guajajaras à Aimorés, as ruas abrigam prédios imponentes, comércio e repartições públicas que passaram a fazer parte do cotidiano belo-horizontino. Os nomes carregam algo em comum: de povos indígenas tradicionais que ajudaram a construir o país. Mas a homenagem, que mais parece “póstuma”, fica apenas nas placas, e a cultura indígena real é praticamente ignorada no corre-corre da capital mineira.

“Muitas ruas e espaços têm nomes indígenas – o Edifício Acaiaca, os shoppings Oiapoque e Xavantes –, mas não temos o direito de expor nosso artesanato nesse território urbano. E ainda nos chamam de ‘aproveitadores’”, resume a cacica Ãngohó Pataxó.

Do mesmo sentimento compartilha a pataxó Elísia Nascimento, 64, que vive no bairro Taquaril, na região Leste da capital, há mais de 30 anos. “Se você for para a Amazônia afora ou algum outro território tradicional, vê indígena sem roupa, mas eles estão na sua cultura, na natureza. Eu estou na cidade e não deixo de ser indígena Pataxó por estar vestida como as brancas”, diz.

De volta à cidade

Depois de décadas na cidade, o sonho de ter um território para viver a cultura e as tradições Pataxó estava se concretizando, em 2017. Com outros indígenas, Elísia e a família fundaram a Aldeia Naô-Xohã, às margens do Paraopeba, em São Joaquim de Bicas. “Retomamos costumes, tinha o rio para banhar, a terra para plantar. Mas a barragem rompeu, e tudo veio abaixo”. Sem escolha, voltou para a cidade. “Assim ficou nossa vida, entre quatro paredes. Mas o indígena não quer viver assim –quer sua liberdade, quer mostrar sua cultura para netos e bisnetos”.

Os episódios de preconceito são sentidos na pele até no espaço que deveria ser de acolhimento e aprendizado: a escola. O caso ocorreu com a sobrinha de Elísia. “A professora falou que índio é bicho, que vivemos só por conta da Funai e que somos burros. Ela foi discriminada na frente dos colegas, chegou chorando, mas pediu que a gente não fizesse nada. Ela ficou chateada com tudo aquilo”, conta a tia.

DIREITO ROUBADO. Adereços típicos do povo Pataxó também viram alvo de discriminação na cidade grande, como conta Tahhão Pataxó, 57.

“Não posso usar cocar, colar nem meu maracá para cantar cânticos sagrados. Não podemos vivenciar nossa cultura, esse direito foi tomado de nós”, diz. A cacica Ãngohó, que também viveu no Taquaril por mais de um ano após o crime da Vale em Brumadinho, acrescenta que relatos como esses são comuns. “Há omissão em relação ao massacre indígena. Já temos casos de tortura, discriminação racial, expulsão de lideranças indígenas de restaurantes.

Nossa presença dentro dos ônibus sequer pode ser notada”.

Criado na cidade, Junio Nascimento, 32, diz que sempre teve vínculo com a aldeia por causa da mãe e dos avós. Mesmo assim, alega sofrer com o desprezo dos não indígenas.

“Aqui, no bairro, sofremos muito preconceito no posto de saúde, quando vamos consultar”, conta.

A Pataxó Elísia Nascimento e a família: sonho de ter um território permanece vivo

Aos 57 anos, Tahhão

Pataxó desafaba: “Não posso usar meu cocar, meu colar, não posso vivenciar minha cultura”

Venezuelanos Warao buscam refúgio em Belo Horizonte

¬ Inflação nas alturas, violência e vulnerabilidade social. Apesar da riqueza natural presente em todo o território dos indígenas Warao, oriundos do nordeste da Venezuela, a forte crise que atravessa o país já fez quase 90% da população buscar refúgio em outras localidades. E uma das escolhidas foi Belo Horizonte. Segundo a antropóloga do Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados (SJMR), Isabel Campos, os primeiros núcleos familiares chegaram em fevereiro de 2020.

Atualmente, são atendidas mais de 120 pessoas, que vivem em residências mantidas pela entidade, com recursos da prefeitura da capital, no bairro Tupi, na região Norte. Porém,

no último mês, a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, em parceria com o Ministério Público Federal, emitiu ofício recomendando melhorias no acolhimento. “Inspeções realizadas em fevereiro e março indicaram inúmeros problemas, como a estrutura dos imóveis, que são pequenos para o número de famílias; falta de acesso regular a serviços de saúde, educação, emprego e renda; situação de pobreza”, resume a defensora Rachel Passos. A antropóloga do SJMR garante dialogar com entidades. “Nenhum abrigo é solução duradoura, são muitos os desafios. É preciso pensar talvez um local onde possam viver em comunidade”, diz. (LM)

FOTOS LUCAS MORAIS/O TEMPO
12 OTEMPO BELOHORIZONTE ABRILDE2023

“O futuro é ancestral ou não será”

x Célia Xakriabá

Primeira mulher indígena eleita deputada federal por Minas Gerais

A força da ancestralidade presente no canto indígena chega à Câmara Federal quando Célia Xakriabá (PSOL-MG) tem voz no plenário. Pode ser ouvida e sentida em reuniões e em outras falas públicas da primeira mulher indígena eleita deputada federal por Minas Gerais. Aos 32 anos, nascida no Norte do Estado, é assim que Célia costuma iniciar os trabalhos: cantando – numa tentativa de “reflorestar” o Congresso Nacional, como ela mesma denomina, e ocupar o árido espaço político com as tradições dos povos originários, rompendo com o “racismo da ausência”. Os grafismos, o cocar e outros símbolos fazem parte do gabinete 619, do Anexo 4 da Câmara, e da forma como Célia se apresenta. Ela esteve na redação de O TEMPO e falou sobre os desafios dessa nova jornada. Demarcação de territórios e proteção das áreas já garantidas devem ser prioridades quando se fala em direitos dos primeiros habitantes do Brasil e crise climática. Célia Xakriabá é mestra em desenvolvimento sustentável e doutoranda em antropologia pela UFMG. Leia a seguir, trechos da entrevista.

Por que o futuro é ancestral? É tempo dos povos indígenas, é tempo da diversidade. Só se pode pensar em solução para o futuro se a gente tiver sabedoria e chegar um pouco para trás. A ancestralidade marca um ponto importante, sobretudo para pensarmos as soluções para as crises climáticas. Nós, pov os indígenas, não somos nem 1% da população brasileira. Somos 5% da população do mundo e protegemos mais de 80% da biodiversidade. A demarcação dos territórios significa a solução número 1 para barrar a crise climática. O futuro é ancestral ou não será.

Como é sua articulação no Congresso, com uma bancada conservadora? Sempre estive presente nos territórios. Defender os povos indígenas é defender a si mesmo. Tem sido essa fala articulada, em Minas, no

Congresso, entre bancadas estaduais e federais. (...) Há muitos parlamentares conservadores no Congresso, inclusive com direitos privados em relação ao Projeto de Lei (PL) 490, que pretende aplicar o marco temporal. Essa tese é o julgamento de uma terra indígena de Santa Catarina. Se for julgada, será aplicada no Brasil. Com isso, só serão territórios indígenas os promulgados até a Constituição de 1988. Pode ser revisto território demarcado e dificulta a demarcação. Nossa presença no Congresso é importante também para as pessoas entenderem que o que acontece com os Yanomami ocorre em parte com os Maxakali. O que acontece lá com o garimpo acontece em Minas, com a mineração.

O avanço das pautas passa pela sensibilização sobre a importância da questão indígena para a humanidade? O projeto político programado era exterminar povos indígenas. Agora, exterminam águas, florestas, oxigênio. Isso tem a ver com a destruição da humanidade. Eu falo no Congresso: se você não se sensibiliza porque não está sujeito a morrer nos conflitos territoriais, vamos morrer por um mal comum. Todo território indígena que conheço foi demarcado depois da morte de uma liderança.

Nas eleições, foi difícil convencer as pessoas a te dar um voto? Sinto saudade da campanha. Era um processo de descolonização, de pensar o ensino e a aprendizagem da sociedade mineira, que conseguiu romper com vários racismos da ausência. Quando nos falam que não somos povos indígenas do presente, isso nos mata. Mesmo existindo, consideram como se fôssemos inexistentes. A dor do racismo da ausência é maior. Essa eleição, para além de um saldo eleitoral, foi para reconhecer, para colocar Minas na centralidade do debate. São 853 municípios. Fui eleita em 804. Isso é uma resposta. Tive quase 40 mil votos só em Belo Horizonte.

A senhora preside agora a Comissão da Amazônia. Quais são os desafios? A Comissão da Amazônia dos Povos Originários e Tradicionais é um momento histórico, não só porque sou a primeira indígena a ser presidenta da comissão no Congresso, mas a primeira de povos e comunidades tradicionais neste lugar. É estratégica para pensar projetos. Quando as leis se calaram, o genocídio falou, e se aprovou muita lei do mal. Precisamos avançar em leis de proteção. É uma oportunidade para trabalhar por consulta, escutando povos indígenas e comunidades tradicionais.

Há alguma ação para aumentar o orçamento? Na responsabilidade do Parlamento, tenho discutido com deputados, pela Frente Parlamentar Indígena, composta por parlamentares, deputados e senadores. Vamos lançar a Frente Parlamentar no Abril Indígena, de 24 a 28. Estaremos enviando carta de sensibilização aos parlamentares, que enviem emenda para saúde indígena, ao Ministério da Educação e ao Ministério dos Povos Indígenas, que é novo e não tem orçamento previsto para essas políticas públicas. Estamos sensibilizando nossa bancada do PSOL a enviar emendas.

A senhora fala em “reflorestar” o Congresso com a presença indígena. Qual a importância do canto? O canto indígena tem sido uma ferramenta importante. Me emociona. Nunca tivemos espaço no microfone dentro do Congresso; sempre foi pela força do canto tradicional. No acampamento Terra Livre do ano passado, em vários momentos, com opressões policiais e, em 2020, na mobilização nacional, mais de 150 povos cantaram em línguas diferentes, e fizemos mudar processos de decisão. Quando o povo indígena canta, não canta sozinho. Traz a força do território e de milhares de pessoas que já se foram. Por isso, mesmo hoje, no Congresso, eu começo cantando. Cantar é um jeito de abençoar a palavra, para que a gente tenha sabedoria de falar. É um jeito de alimentar e sensibilizar as pessoas.

Para ouvir o canto e para assistir à entrevista na íntegra, acesse o QR Code.

“A demarcação de territórios indígenas significa a solução número 1 para barrar a crise climática”
FRED MAGNO
¬ CRISTIANA ANDRADE CYNTHIA CASTRO
FRED MAGNO/O TEMPO ABRILDE2023 OTEMPO BELOHORIZONTE 13

Maxakali

Localização: (1) Bertópolis, (2) Ladainha, (3)Teófilo Otoni, (4) Santa Helena de Minas População estimada-Brasil: 2.407 (Siasi/Sesai 2020)

Principal concentração geográfica: MG

MAPA DOS INDÍGENAS

Xakriabá

Localização: (5) São João das Missões e (6) Itacarambi

População estimada-Brasil: 8.867 (Siasi/Sesai 2014)

Krenak

Localização: (7) Resplendor, (8) Conselheiro Pena (9) Itueta, (10) Santa Rita do Itueto

População estimada-Brasil: 494 (Siasi/Sesai 2020)

Principal concentração geográfica: MG, MT e SP

Principal concentração geográfica: MG Mukurin

Localização: (13) Campanário

População estimada-Brasil: (sem informação oficial)

Aranã

Localização –(11) Araçuaí e (12) Coronel Murta

População estimada-Brasil: 362 (Funasa/2010)

Principal concentração geográfica: MG

Principal concentração geográfica: MG

São João das missões é o 4º município do país com maior proporção de população indígena

67,7%

MUNICÍPIOS COM MAIORES POPULAÇÕES INDÍGENAS

Minas Gerais

São João das Missões 7.936

Belo Horizonte 3.477

Uberlândia 926

Contagem 810

Santa Helena de Minas 758

Ribeirão das Neves 677

Juiz de Fora 639

Montes Claros 625

Bertópolis 505

Betim 498

CatuAwa-Arachás

Localização: (6) Araxá

População estimada-Brasil: (sem informação oficial)

Principal concentração geográfica: (sem informação oficial)

Pataxó

Localização: (1) Carmésia, (2) Governador Valadares, (3) Açucena, (3) Guanhães, (5) Belo Horizonte População estimada-Brasil: 12.865 (Siasi/Sesai 2020)

Principal concentração geográfica: BA

Puri

Localização: (12) Araponga, (13) Barbacena, (14) Aimorés, (15) Piau, (16) Pirapora População estimada-Brasil: 675 (IBGE 2010)

Kaxixó

Localização: (17) Martinho Campos e (18) Pompéu

Principal concentração geográfica: MG e RJ

População estimada-Brasil: 301 (Siasi/Sesai 2014)

Principal concentração geográfica: MG

Minas Gerais tem pelo menos 31.112 indígenas, fia e Estatística (IBGE), que são do Censo Demográfic metropolitana, eles somavam 5.000 há 13 anos. Já relatórios que apontam cerca de 41 mil no Estado, Macro-Jê e Tupi-Guarani, além de migrantes venezuel Possivelmente, hoje esses números sejam ainda primeiros resultados definitivos devem ser divulgado dação das informações de indígenas por Estado. aumento na população indígena do Brasil. Em 2010, era em torno de 900 mil, e hoje já preliminar, devendo passar pela etapa de tratamento podendo crescer até a divulgação dos primeiros maio”, diz o IBGE. Conhecer a população indígena melhor as políticas públicas.

Totem com desenhos de animais sagrados em frente à casa de ritual dos Maxakali�

Pataxó

Hã-Hã-Hãe

Localização: (7) Esmeraldas, (8) Brumadinho (Córrego de Areias), (5) Belo Horizonte, (9) Bertópolis, (10) Itapecerica, (11) São Joaquim de Bicas

População estimada-Brasil: 3.285 (Siasi/Sesai 2020)

Principal concentração geográfica: BA

3 5 10 4 7 2 9 6 12 8 13 1 11
MG
11 16 15 17 10 4 2 7 1 8 9 13 6 12 14 3 MG
FRED MAGNO�
5 5 14 OTEMPO BELOHORIZONTE ABRILDE2023

INDÍGENAS EM MINAS

indígenas, conforme os dados oficiais do Instituto Brasileiro de GeograDemográfico de 2010, o último oficialmente divulgado. Na região Já a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) tem Estado, divididos em 20 etnias pertencentes ao tronco linguístico venezuelanos Warao. ainda maiores. O IBGE realizou um novo Censo em 2022, e os divulgados em maio. Ainda não há previsão sobre a consoliEstado. Mas, em uma análise preliminar, o instituto já constatou chegou a pelo menos 1,6 milhão. “Esse número é tratamento estatístico posterior à coleta de dados, primeiros resultados definitivos na primeira semana de indígena brasileira é imprescindível para orientar

Canoeiros

Localização:

Kiriri

Localização: (1) Brumadinho e (2) Caldas

População estimada-Brasil: 2.806 (Siasi/Sesai 2020)

Principal concentração geográfica: BA

Tuxá

Localização: (4) Buritizeiro

População estimada-Brasil: 1.703 (Siasi/Sesai 2014)

Principal concentração geográfica: AL, BA e PE

Localização: (1) Brumadinho, (2) Caldas e (3) Presidente Olegário

População estimada-Brasil: 1.700 (Siasi/Sesai 2020)

Principal concentração geográfica: AL e BA

(5) Coronel Murta

População estimada-Brasil: 26 (Siasi/Sesai 2020)

Principal concentração geográfica: TO e GO

Guarani

Localização: (1) Brumadinho (Córrego de Areias)

População estimada-Brasil e principal concentração geográfica: (ver Pataxó Hã-Hã-Hãe)

Localização: (1) Belo Horizonte e (2) Governador Valadares

População estimada-Brasil: 85.255 (Mapa Guarani Continental 2016)

Principal concentração geográfica: MS, SP, PR, RS, RJ, ES, PA, SC, TO

Pankararu

Localização: (3) Coronel Murta e (4) Araçuaí

População estimada-Brasil: 8.184 (Siasi/Sesai 2014)

Principal concentração geográfica: MG, PE, SP Warao (Venezuela)

Localização: (1) Belo

Horizonte e (5) Uberlândia

População estimada-Brasil: cerca de 3.200 (Acnur-Brasil 2020)

Principal concentração geográfica: Venezuela

Karajá

Localização:

(1) Belo Horizonte

População estimada-Brasil: 4.373 (Siasi/Sesai 2020)

Principal concentração geográfica: GO, MT, PA, TO Kambiwá

Localização: (6) São

Joaquim de Bicas

População estimada-Brasil: 3.105 (Siasi/Sesai 2014)

Principal concentração geográfica: PE

Borum-Kren

Localização: (7) Ouro Preto (Santo Antônio do Leite)

População estimada-Brasil e Principal concentração geográfica: (ver Krenak)

EDITORIA DE ARTE / O TEMPO / ROSE BRAGA
3 5 4
KamakãMongoió XukuruKariri
MG 5 6 7 2 3 4
MG 1 2 1 1 2 1 1 1
ABRILDE2023 OTEMPO BELOHORIZONTE 15
FONTES: IBGE CENSO INDÍGENA ����, FUNAI, “POVOS INDÍGENAS NO BRASIL ����/����” � INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, PIB SOCIOAMBIENTAL, CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO ELOY FERREIRA DA SILVA �CEDEFES�, ACNUR�BRASIL E FUNAI.�

ENSINO. Lei que obriga ensino da cultura originária mal é cumprida, e práticas reforçam preconceitos

Em 12 de fevereiro de 1987, três lideranças Xakriabá foram assassinadas por grileiros. As invasões de terras pertencentes aos indígenas, patrocinadas por políticos, empresários e fazendeiros da região, se estendia e se tornava cada vez mais violenta. Durante a madrugada, enquanto as vítimas dormiam, um grupo de 15 homens fortemente armados invadiu a casa do líder Xakriabá Rosalino Gomes de Oliveira, que foi morto ao lado de José Pereira Santana e Manoel Fiúza da Silva. A mulher de Rosalino, Anizia Nunes de Oliveira, foi gravemente ferida. Os assassinos obrigaram uma criança de 11 anos a arrastar o corpo do pai, Rosalino.

currículo nacional tem uma lacuna de 508 anos

¬ CRISTIANA ANDRADE

Foram necessários 508 anos para o ensino da história dos mais de 265 povos originários se tornar obrigatório por lei no currículo escolar. E, 15 anos depois de a Lei 11.645/2008 entrar em vigor, ela ainda não surtiu efeito em sala de aula. “Nossa realidade é completamente distorcida nos livros didáticos. Eles retratam muito os indígenas do passado, não representam a realidade do indígena contemporâneo”, diz Nei Leite Xakriabá, mestre em artes pela UFMG e professor indígena formado pela FAE/UFMG na primeira turma voltada para professores indígenas. “Além de nos deixar tristes, isso tem contribuído com o preconceito que existe contra nós”, afirma o professor Nei Leite Xakriabá.

ORIGEM. Nas salas de aula do ensino fundamental, 28,3% dos docentes afirmam abordar o tema somente em datas comemorativas (citando textualmente o 19 de Abril), e 14,1% não tratam dele no cotidiano, de acordo com levantamento realizado em 2018 por Adriano Toledo Paiva, doutor em história pela UFMG e autor do livro “História dos Povos Indígenas em Sala de Aula”.

Para Toledo Paiva, a pesquisa reflete uma grande parte do pensamento nacional que não correlaciona a origem do brasileiro aos povos indígenas. “A questão indíge-

na foi relegada a um papel secundário e se limitou a lembrá-la só no antigo Dia do Índio, ao vestir crianças e jovens com saias de palha, cocar e pinturas no rosto”, diz.

CULTURA VIVA. “É possível falarmos na escola sobre essa grande diversidade: há grupos em territórios demarcados, outros em áreas não demarcadas; uns mais urbanos, outros mais isolados”, observa. “É uma cultura viva, pois, antes mesmo de os conquistadores chegarem, os originários já tinham redes de trocas e comércio entre eles. Sempre estiveram em transformação e inter-relação. Nunca foi uma cultura ultrapassada, fora do seu tempo, anacrônica, como muitos não indígenas pensam”, pontua.

Na visão de Toledo, para melhor tratar o tema indígena no cotidiano escolar são necessários cursos de aperfeiçoamento e especialização para a formação de professores não indígenas; produção de literatura feita por indígenas para escolas não indígenas; e maior divulgação das pesquisas acadêmicas do que professores indígenas produzem nas universidades.

“Tem-se produzido muito conhecimento sobre isso, mas a sociedade brasileira ainda não tem acesso ao conteúdo”, esclarece. Cursos

Pioneirismo ao formar educadores indígenas

propostos pela Secretaria Nacional da Diversidade, Promoção e Igualdade Racial deixaram de existir nos últimos quatro anos, relata.

UNIVERSIDADE. E apesar de liderarem o crescimento de 233% no percentual do total de matrículas entre beneficiários das cotas universitárias, entre os anos de 2013 e 2020, os indígenas são minoria em sala de aula: eram 2.903 matriculados em 2013 (0,25% do total), ano em que as cotas passaram a valer, e 9.685 em 2020 (0,77%), último dado do Censo da Educação Superior. Faltam também políticas públicas que ajudem a manter os indígenas nas universidades na graduação.

GOs povos originários em Minas já frequentavam a Faculdade de Educação da UFMG (FAE/UFMG), quando, em 1996, foi oficializada a Lei de Diretrizes e Bases da educação (LDB). Naquela época, as professoras Márcia Spyer, Maria Inês Almeida, Lucinha Alvarez Leite, em parceria com outros professores, como Macaé Evaristo e Kleber Gesteira, conduziam o Programa de Implantação das Escolas Indígenas (Piei), para formação em magistério para educadores indígenas, em parceria com a Secretaria de Estado de Educação (SEE). Em 1997, todas as escolas em Minas foram estadualizadas.

CONCURSO. A professora da FAE Ana Maria Rabelo Gomes explica que hoje todos os professores das escolas indígenas em Minas são indígenas, e cada um atua dentro das comunidades da própria etnia, mas não são servidores públicos efetivos. “Não há normativa jurídica administrativa até hoje para que o Estado faça um con-

curso. Eles são contratados. Esta é, inclusive, uma luta atual deles, a carreira do professor indígena”, acrescenta. Segundo a assessora da Subsecretaria de Educação Básica da SEE, Iara Viana, há um grupo de trabalho debruçado sobre o tema concurso indígena. GRADUAÇÃO. “Outro pioneirismo no Estado foi quando em 2006 o Ministério da Educação criou o Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Interculturais Indígenas (Prolind) com a oportunidade de cursos de graduação para professores”, diz Ana. A UFMG largou na frente e ofereceu o curso ‘Formação intercultural para educadores indígenas’ - a primeira turma formou, em 2011, 140 indígenas. Hoje, outras 26 instituições federais tem Prolind.

O projeto Saberes Indígenas na Escola, de 2013, gerou a produção de material didático e paradidático feitos pelos próprios indígenas para seus povos, a partir de seus saberes. À época, foram produzidos livros Pataxó, Maxakali e Xakriabá, em Minas, e, na Amazônia, para Yanomami e Ye’kuana. (CA)

MASSACRE
FOTOS
DOSXAKRIABÁ (1987)
FLÁVIO TAVARES/O TEMPO
Maciel Xakriabá Maciel Xakriabá dá aula de dá aula de cultura indígena cultura indígena em São João em das Missões das Missões
16 OTEMPO BELOHORIZONTE ABRILDE2023

Educação.

Aldeias cobram mais estrutura para escola

¬ QUEILA ARIADNE

ENVIADA AO TERRITÓRIO XAKRIABÁ

SÃO JOÃO DAS MISSÕES. Entre paredes de reboco de uma casa emprestada crianças de diferentes idades se juntam para aprender na Aldeia Morro Vermelho, do povo Xakriabá, nos arredores de São João das Missões, no Norte de Minas. Não faltam professores qualificados, seja do conteúdo convencional ou da cultura indígena, mas falta infraestrutura. Às vezes, nem a merenda chega. “Com dois meses de aula, ainda não veio. Eles mandaram alguma mistura (carne), mas arroz e feijão, não. Eles comeram o que sobrou do ano passado, mas agora acabou”, explica o cacique Xak-

riabá Santo Caetano Barbosa.

Perto dali, na Aldeia Tenda Rancharia, a estrutura da escola-sede está montada, mas pequenas reformas necessárias não são liberadas. “Dizem que depende de licitação. Para valores mais baixos, de cerca de R$ 16 mil, não aparece empresa interessada”, conta o diretor Julio Cesar Lopes de Oliveira.

Infraestrutura deficiente em escolas indígenas é realidade em várias regiões do Brasil. Em 2022, o relatório “Violência contra os Povos Indígenas no Brasil”, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), mostrou 28 casos de desassistência no âmbito da política pública de educação escolar indígena em 13 Estados.

Minas tem 25 escolas de educação indígena, que se desdobram em 48 anexos e turmas vinculadas, além de seis anexos de escolas não indígenas que atendem os territórios.

Elas estão inte-

gradas ao sistema da Secretaria de Estado de Educação (SEE-MG) e estão em 15 municípios. Em 2023, foram matriculados cerca de 4.400 estudantes, de 12 etnias, atendidos por 1.355 professores.

ESPANCAMENTO EABANDONO(2017)ESPANCAMENTO EABANDONO(2017)

REFORMAS FEITAS PELO ESTADO. De acordo com Silas Fagundes, subsecretário de Administração da SEE-MG, entre 2019 e 2022, o governo investiu cerca de R$ 46,5 milhões na educação escolar indígena, entre custeio fixo, infraestrutura, merenda escolar, mobiliário e equipamentos. “Reformamos 13 escolas indígenas em Minas, aplicando R$ 11,4 milhões. Para este ano, serão 19 obras em seis escolas”, explica.

Uma das dificuldades apontadas para a estrutura física é cultural. Segundo Fagundes, tudo o que tem na escola é da aldeia, por isso há o desafio de fazer um controle patrimonial e também de executar os projetos, já que cada etnia tem suas tradições. “Em dez escolas num raio de 10 km, não posso replicar o mesmo projeto arquitetônico a

Em 15 de janeiro José Januário da Silva, 57, dormia no chão da rua 21 de Abril, no centro de Belo Horizonte, quando foi espancado até a morte, com chutes e pisões em sua cabeça, e se tornou um símbolo de abandono e burocracia com os povos indígenas. Integrante da etnia Fulni-ô, em Pernambuco, ele vivia em situação de rua na capital. A prisão do culpado ocorreu em 11 de fevereiro. A provação não acabara. O corpo foi mantido no Instituto Médico-Legal por 67 dias e liberado apenas após o Ministério Público Federal intervir para a liberação do atestado de óbito em 16 de março. Só então ele pôde ser sepultado com chocalho, colar e penas, com ritos de seu povo, no Cemitério da Paz, em Belo Horizonte.

todas.

Cada etnia quer a escola do seu jeito e, para obras de baixo valor, não achamos empresas que querem o serviço”, conta.

Sobre a merenda escolar, o subsecretário afirma que o Estado cumpre a quantidade per capita dobrada de merenda escolar nas escolas indígenas. Segundo a assessora da Subsecretaria de Educação Básica, Iara Viana, há comunidades que se alimentam da merenda, sendo alunos ou não. “Compreendemos a necessidade do aldeamento extensiva a toda a comunidade e não regulamos o acesso”, diz. (Com Cristiana Andrade)

xTito Krenak

Ex-coordenador executivo de Educação Indígena de Minas

“Falar sobre identidade, memória e tradições para as novas gerações significa resistência e um orgulho grande de permanecer como um povo que quiseram extinguir e não conseguiram.”
Professor escreve Professor escreve lição em língua lição em língua Maxakali em Maxakali em escola indígena escola indígena
Povos citam pequenas obras e merenda, e diversidade cultural gera desafios ao governo
FRED MAGNO/O TEMPO
ABRILDE2023 OTEMPO BELOHORIZONTE 17
MARIELA GUIMARÃES-O TEMPO

19 de abril:

Dia dos Povos Indígenas

¬

¬ Chamar os povos originários somente de índios, como eles foram denominados há alguns séculos pelos portugueses que chegaram ao Brasil, pode ser considerado hoje algo pejorativo, que reafirma preconceitos, mesmo quando essa não é a intenção. O mais adequado atualmente é a denominação povos indígenas. Inclusive, o 19 de abril passou a se chamar Dia dos Povos Indígenas.

A mudança da nomenclatura na data comemorativa está instituída pela lei federal nº 14.402, de julho do ano passado. Essa nova legislação revogou o decreto-lei nº 5.540, de junho de 1943, que foi assinado por Getúlio Vargas e declarava a data como Dia do Índio.

Joenia Wapichana, ex-deputada federal, pelo Estado de Roraima, é a autora do projeto que virou lei em 2022. Logo que assumiu a presidência da Funai, no início deste ano, ela afirmou, à agência internacional Mongabay, que “é a primeira legislação que fez mudança nessa terminologia, deixando o termo pejorativo, que muitos brasileiros se acostumaram a falar, índio ou índia, mas que, na prática, era utilizado como chacota.” De acordo com Joenia, povos indígenas é uma terminologia étnica mais apropriada, que busca reconhecer a diversidade de 305 povos, com 274 línguas e cultura diferente.

“São consideradas nações indígenas. Somos um povo, temos uma terra, temos uma legislação específica, temos a cultura específica. É uma coletividade que precisa ser reconhecida. Por isso, o termo povos indígenas, e não índio, é o mais apropriado”, disse Joenia, à Mongabay. O nome da Funai também mudou de Fundação Nacional do Índio para Fundação Nacional dos Povos Indígenas. Como também explica o procurador Edmundo Antônio Dias, do Ministério Público Federal, índio é um termo reducionista que deriva de uma confusão original. “Na conquista das Américas, Cristóvão Colombo acreditou que havia encontrado as Índias, realizando a circumnavegação da Terra. Depois disso, passou-se a chamar todos aqueles habitantes desconhecidos de índios, o que empobrece a visão da enorme vastidão multicultural e pluriétnica que havia por essas bandas de cá”, diz o procurador.

Edmundo Dias acrescenta ainda que o termo indígena se refere a quem é do lugar, autóctone, ou seja, aos povos originários. “Além disso, a partir do momento em que o movimento indígena enuncia sua preferência pelo termo indígena, é uma questão de respeito adotá-lo”, finaliza o procurador. Portanto, em 19 de abril o Brasil comemora o Dia dos Povos Indígenas.

Queila Ariadne)

Entenda por que não é mais Dia do Índio; mudança foi aprovada em legislação em 2022 18 OTEMPO BELOHORIZONTE ABRILDE2023
Está na lei: mais em
¬ CYNTHIA CASTRO MARIA IRENILDA (Com Indígena Krenak
FLÁVIO TAVARES/O TEMPO FRED MAGNO/O TEMPO MARIELA GUIMARÃES/O TEMPO
FLÁVIO TAVARES/O TEMPO
Indígenas Xakriabá
FRED
MAGNO/O TEMPO FRED MAGNO/O TEMPO Cacique Xakriabá Cacique Xakriabá Povos indígenas Maxakali Escola em território Maxakali Indígena na região Indígena na região metropolitana de BH metropolitana de BH

“Existe essa questão de índio e indígena. Índio não é correto, mas dificilmente acaba assim. Aquela história que chegaram ao Brasil e denominaram índios. A história mostra que acharam que estavam chegando à Índia, mas, na verdade, nosso povo era originário, já estava aqui. Hoje, até a gente às vezes questiona, erra ainda. Muitas coisas estamos adaptando para agir de forma correta, acho que no futuro isso vai estar na ponta da língua”.

Cacique Domingos, do território Xakriabá

MARIELA GUIMARÃES/O TEMPO Indígena na Indígena na aldeia Xucuru- aldeia XucuruKariri, em Kariri, em Brumadinho Brumadinho Arte Arte carregada carregada nopeito nopeito Sofia, às margens Sofia, às margens do rio Doce, em do rio Doce, em território Krenak território Krenak
FLÁVIO TAVARES/O TEMPO MARIELA
FLÁVIO
FRED MAGNO/O TEMPO FRED MAGNO/O TEMPO FRED MAGNO/O TEMPO
GUIMARÃES/O TEMPO
TAVARES/O TEMPO
Indígena Krenak Indígenas em em território Xakriabá território Xakriabá Cacique Xakriabá
Pintura
MARIELA GUIMARÃES/O TEMPO FRED MAGNO/O TEMPO
ABRILDE2023 OTEMPO BELOHORIZONTE 19
Espera em posto de saúde, no Vale do Mucuri Crianças
Maxakali
Indígena Indígena Krenak Krenak
Maxakali
FLÁVIO TAVARES/O TEMPO

doenças respiratórias e infecciosas afetam saúde

¬ CRISTIANA ANDRADE Mesmo não convivendo com a malária e o mercúrio, provenientes da exploração ilegal de ouro, como os Yanomami têm de lidar em seu território, no Norte do Brasil, os indígenas que moram em Minas Gerais enfrentam situações também alarmantes: fome, roças devastadas pelo avanço da agricultura, usurpação de terras, mineração, racismo e preconceito. Sofrem ainda com doenças do sistema respiratório e parasitárias, as que mais afetam indígenas em Minas e no Espírito Santo, segundo o Ministério da Saúde. Em 2022, foram 5.641 casos de doenças respiratórias e 2.074 ocorrências infecciosas e parasitárias, registradas pelo Distrito Sanitário Indígena (Dsei) MGES, que abrange os dois Estados.

Segundo Pablo Matos Camargos, pesquisador do Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (Cefedes), todo ano, os Maxakali, por exemplo, são vítimas de surtos de diarreia, um problema que dizima inúmeros indivíduos, principalmente crianças, e de solução governamental simples: saneamento básico. O Cefedes foi criado em 1984 em Belo Horizonte para promover a informação e formação cultural e pedagógica, documentar, pesquisar e publicar temas ligados a indígenas e povos tradicionais, como quilombolas.

“A luta é difícil. Até há pouco tempo, muita gente nem sabia que havia indígena em Minas. Na saúde, há muitas demandas. Os Maxakali, cujo território foi destruído por pastos, ficaram sem acesso ao seu modo alimentar. A caça é insuficiente, e eles passaram a comer alimentos comuns aos não indígenas. Com isso, o diabetes aumentou, e os problemas de pressão, também. As comunidades ainda convivem com a falta de respeito às suas crenças e curas ancestrais. Muitos profissionais de saúde não consideram os conheci-

mentos dos pajés e o uso de ervas medicinais, gerando conflitos”, diz Matos, que é agente indigenista da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), em Governador Valadares.

“Em 2019, 12 crianças Maxakali morreram de diarreia em Minas. É inadmissível pensar que isso ainda ocorra em pleno século XXI. Elas morreram de desnutrição e diarreia”, alerta a deputada federal Célia Xakriabá (PSOL-MG).

ESTRUTURA. Segundo o indigenista, a Funai em Minas está estruturada com uma sede regional em Governador Valadares, para atender Minas e Espírito Santo; e alguns escritórios, como em São João das Missões (atende etnias Xakriabá e Krixá); Teófilo Otoni e Santa Helena de Minas (Maxakali); Resplendor (Krenak); Carmésia (Pataxó); Aracruz (ES), que atende as al-

Na aldeia Maxakali, mulheres recebem orientações sobre importãncia da amamentação

deias Tupiniquim e Guarani. “Há inúmeras etnias descobertas do ponto de vista da assistência de saúde, como os indígenas que vivem na região metropolitana de Belo Horizonte, Sul de Minas e Centro-Oeste”, acrescenta Matos.

DESAMPARO. Além do atendimento à saúde em si, há outras questões que precisam melhorar. “Temos muitas emergências em saúde, fruto de ameaças e violência contra os indígenas. É preciso organizar melhor a produção de documentos, acesso a benefícios sociais, aposentadoria e auxílio-maternidade. Onde não há demarcação ou reconhecimento oficial da terra indígena, eles ficam desamparados institucionalmente falando”, diz o agente da Funai.

Em janeiro de 2017, Kamakã-Mongoió, Pataxó Hãhãhãe e membros de outras etnias, com apoio da Associação dos Povos Indígenas de Belo Horizonte e Região Metropolitana, ocuparam a Fazenda Santa Teresa, em Esmeraldas, dentro do processo chamado de “retomada” ou reapropriação de propriedades dos povos originários. Segundo relatório da ALMG, a fazenda, pertencente à Fundação Educacional Caio Martins (Fucam), estava com instalações abandonadas ou subutilizadas pela entidade e pelo Estado de Minas. Em novembro, outra fazenda, identificada como pertencente a um projeto minerário de Eike Batista, em São Joaquim de Bicas, foi objeto de retomada por membros dos Puri e, depois, por Pataxó, Karajá e Pataxó Hãhãhãe. Em 2021, grupos Kamakã fizeram uma terceira ação, em Brumadinho.

País registra desassistência

¬ O relatório “Violência contra os Povos Indígenas no Brasil 2022”, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), mostrou que em 2021 foram registrados 107 casos de desassistência em saúde em quase todo o Brasil, grande parte relacionada à Covid-19. Em Minas, foram dois registros de negação de vacina às comunidades Aranã, em Coronel Murta, e Kiriri, em Caldas. “A assistência à saúde indígena, que já se apresentava precária ou inexistente em alguns territórios, se agravou ainda mais com a crise sanitária. As demais doenças estavam praticamente esquecidas pelas autoridades e pelos serviços de saúde, bem como as ações de prevenção”, diz trecho do documento. (CA)

Retomada de programa alivia atendimento G

A falta de médicos é um grande problema para as comunidades indígenas em todo o país. Algumas aldeias Xakriabá, no Norte de Minas, chegaram a ficar até três anos sem um profissional. Agora, a dificuldade será amenizada. Dois médicos cubanos acabam de chegar no território, pelo programa do governo federal Mais Médicos.

“Veio um para São João das Missões, outro para Itacarambi, para atender os indígenas”, diz o presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena de Minas Gerais e Espírito Santo, Adailton Cavalcante Bizerra, que é xakriabá.

O entrave para atrair os médicos para os territórios indígenas é a diferença salarial entre os profissionais contratados pelas prefeituras e pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Segundo Bizerra, enquanto a Prefeitura de São João das Missões paga cerca de R$ 18 mil líquido, o médico da Sesai recebe em média R$ 14,6 mil, sem descontos.

“Na Sesai, faz tempo que não tem aumento. Então, como o médico já é um profissional muito demandado no mercado, enfrentamos essa dificuldade. Estamos com uma discussão muito forte pelo reajuste”, destaca.

Em Itacarambi, as aldeias Vargem Grande e Caraíbas estão entre as que ficaram até três anos sem médico. “A escassez de profissional é em todo país. Quando se formam, preferem a capital. Ou quando vêm para zona rural, depois que pegam experiência, vão embora”, avalia a enfermeira Janaína Ferreira de Alckmin. (Queila Ariadne)

(2017)
(2017)
RETOMADAS
RETOMADAS
Maxakali tem a pressão aferida no posto de saúde que atende sua aldeia FOTOS: FRED MAGNO/O TEMPO
Qualidade de vida. Dados mostram que saneamento básico resolveria boa parte das questões nas aldeias
20 OTEMPO BELOHORIZONTE ABRILDE2023

Saúde. Nas aldeias Krenak e Xakriabá, infraestrutura garante atendimento primário de qualidade

Curas tradicionais em sintonia com a medicina

¬ BRUNO MATEUS

QUEILA ARIADNE ENVIADOS AOS TERRITÓRIOS

KRENAK E XAKRIABÁ

¬ SÃO JOÃO DAS MISSÕES E RESPLENDOR Chás, rezas e plantas medicinais e unidades de saúde equipadas para atender os indígenas. Nas aldeias, as curas tradicionais andam lado a lado com a medicina convencional. “Tem a parte da nossa sabedoria, da espiritualidade, do nosso deus Tupã e dos nossos encantados. O que a gente entende, a gente faz a parte da gente. O que for para o médico, a gente passa para o médico. Cada sabedoria é ciência”, afirma o pajé Vicente, do território Xakriabá.

Ele ressalta a importância da parceria com os raizeiros e as parteiras. “A gente não trabalha sozinho. E a luta da gente é passar essa sabedoria para os jovens, ensinar o que aprendemos e não deixar a cultura acabar”, destaca o pajé, que aprendeu com os avós e os pais a arte da cura.

A enfermeira Janaína Ferreira de Alckmin trabalha na unidade de saúde das aldeias Xakriabá Vargem Grande e Caraíbas, em Itacarambi. Segundo ela, a adesão aos tratamentos convencionais não é um problema. “Muitos indígenas diagnosticados com hipertensão queriam beber seus chás e às vezes ficavam com medo de misturar com a medicação. Mas a gente explica que não tem problema, e eles aderem bem aos comprimidos”, conta. Essa unidade é muito bem equipada, inclusive para atendimento odontológico.

INFRAESTRUTURA. Do chão de terra na Aldeia Krenak, localizada entre as cidades de Resplendor e Conselheiro Pena, na região do Rio Doce, é possível avistar, no elevado de um trecho da estrada, a Unidade Básica de Saúde Indígena (UBSI), um posto médico recém-ampliado que atende os cerca de 600 moradores do território.

A UBSI Krenak é vinculada à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), responsável pela coordenação e pela execução da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas e de todo o processo de gestão do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (Sasi) no Sistema Único de Saúde (SUS). A Sesai foi criada

em 2010 e atende mais de 760 mil indígenas em todo o país.

O centro de saúde Krenak recebe pacientes de todas as idades, desde a gestação, inclusive os indígenas mais velhos da aldeia. O serviço é de atenção primária – há atendimento odontológico, enfermagem e distribuição gratuita de medicamentos do Programa Hiperdia, para pessoas com hipertensão e diabetes. “Eles entendem a importância (dos cuidados à saúde) e não têm dificuldade nenhuma em relação a isso, não há resistência à vacinação. Tenho mais facilidade com eles do que com os brancos. Com eles o tratamento é muito mais fácil. Essa é uma aldeia diferenciada”, afirma a enfermeira Jacqueline Brasil.

Marcelo Krenak é conselheiro Municipal de Saúde de Resplendor, presidente do Conselho Local de Saúde Indígena Krenak e representante da aldeia no Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi). Segundo o indígena, o maior desafio enfrentado pela aldeia atualmente é o acesso ao tratamento especializado de saúde.

A unidade de saúde no território Krenak e as Casas de Apoio à Saúde Indígena (Casais) não são preparadas para atendimentos mais complexos e acompanhamentos oncológicos, cardiológicos e neurológicos, para citar três exemplos. Assim, os indígenas têm de recorrer aos equipamentos de saúde em Governador Valadares, distante cerca de 130 km da terra Krenak.

¬ Desde que retomaram a área da Aldeia Morro Velho, em São João das Missões, no Norte do Estado, os Xakriabá são obrigados a conviver com um vizinho indesejado. O lixão do município fica dentro do seu território, delimitado pela Funai. “Já tentamos vários acordos com a prefeitura, mas nunca retiraram, e ele está aí, contaminando nosso território, o meio ambiente. Já

Indígenas já denunciaram depósito ilegal de lixo até ao Ministério Público Federal, mas nada foi feito

De acordo com o pajé Vicente, do povo Xakriabá, tem a parte espiritual e a parte dos médicos. “Cada sabedoria é ciência”, diz ele

Conselheiro de Saúde Indígena

denunciamos para o Ministério Público Federal (MPF), mandaram tirar, mas até agora nada. Nossa maior preocupação é com a saúde, porque esse lixão está adoecendo as pessoas”, lamenta o cacique Santo Barbosa. Manter lixões a céu aberto é proibido em Minas Gerais pela Lei 18.031/2009. O TEMPO procurou a prefeitura, que não se manifestou. (QA)

“Temos uma situação muito complicada quando o assunto é atendimento especializado de saúde. Na pandemia, perdemos indígenas porque não tivemos acesso a UTI.”

x Marcelo
Krenak
Área indígena é usada como lixão, uma afronta à legislação ambiental
ABRILDE2023 OTEMPO BELOHORIZONTE 21
A enfermeira Janaína Alkimin explica que adesão aos tratamentos é bem alta

direito previsto na aindaconstituição é negado

¬ MARIA IRENILDA

Em Minas Gerais, vivem atualmente cerca de 41 mil indígenas, de pelo menos 20 etnias. Uma luta comum, no Estado e no país, é pela garantia do reconhecimento e demarcação dos seus territórios. Na prática, esses povos, que estão aqui desde antes dos anos 1500, ainda precisam brigar por um direito previsto na Constituição Federal, de 1988. A lei garante – e precisa ser cumprida – que os indígenas, nossos povos originários, devem ter prioridade sobre a terra. Entretanto, mais de 30 anos depois, continuam lutando e morrendo para terem a própria casa, o seu lugar de viver.

Das 16 terras indígenas em Minas oficialmente registradas na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), nove estão com o processo de demarcação concluído. As outras estão em fase de estudo ou delimitação. Os direitos à terra, aos costumes, às línguas, às crenças e tradições dos povos indígenas, assim como sua forma de organização social, estão previstos na lei. “A Constituição brasileira, em

Áreas indígenas somam apenas 0,19% em Minas

¬ De acordo com dados da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), há 16 terras reconhecidas em Minas Gerais – demarcadas ou em processos de demarcação –, o que corresponde a uma área de cerca de 1.158 km². Dentro dos 586.528 km² do território de Minas, as áreas indígenas somam apenas 0,19%.

Além disso, muitos territórios não cumprem os requisitos de sobrevivência para os cerca de 41 mil indígenas. Nas aldeias Maxakali, no Vale do Mucuri, visitada por O TEMPO, as terras demarcadas são antigas fazendas, cobertas por pasto e sem floresta nativa. “Todas as terras indígenas demarcadas em Minas dependem de revisão de limites, para que sejam ampliadas de acordo com os territórios tradicionalmente ocupados”, diz o procurador Edmundo Antônio Dias.

“Vários povos indígenas permanecem sem nenhum reconhecimento territorial no Estado, como os Tuxá e os Puri”, completa. (MI)

seu artigo 231, reconhece os direitos originários dos povos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam e estabelece a competência da União para demarcá-las, assim como para proteger e fazer respeitar todos os seus bens”, pontua o procurador da República Edmundo Antônio Dias, do Ministério Público Federal. Ele é especializado na temática dos direitos dos povos e comunidades tradicionais em Minas Gerais.

O membro do MPF lembra que a Constituição estabeleceu o prazo de cinco anos para a conclusão da demarcação das terras indígenas. “Já se vão quase 35 anos da promulgação. O prazo assinalado pelo Constituinte venceu em outubro de 1993, portanto há quase 30 anos”, comenta. No início do ano, ao assumir a presidência da Funai, Joenia Wapichana afirmou que uma das prioridades do órgão será viabilizar e sensibilizar o governo para que “seja cumprida a obrigação constitucional dos direitos relacionados à proteção da terra”.

De acordo com o procurador, assegurar a proteção desses limites é

a forma de preservar a identidade, o modo de vida, as tradições e a cultura desses povos, bem como garantir o acesso dos indígenas a políticas públicas. “Não se trata de um lote de terra ou de um terreno, mas do espaço existencial a partir do qual são coletivamente acessados seus modos de viver, criar e fazer”, explica.

GUARDIÕES DO CLIMA. E não para por aí. A demarcação dos territórios indígenas é uma solução para barrar a crise climática, como apontou o relatório elaborado pela Rights and Resources Initiative, juntamente com a Woods Hole Research Center e o World Resources Institute, em 2016. Segundo o levantamento, as terras indígenas contribuem para a diminuição do efeito estufa, pois barram o desmatamento. “Demarcar as terras indígenas é também respeitar o cuidado que os povos tradicionais têm com a natureza e, assim, respeitar nossa casa comum”, conclui Edmundo.

TERRITÓRIOS INDÍGENAS

Saiba quais são as terras demarcadas ou em processo de demarcação em Minas

Martinho Campos, Pompéu Cônego Marinho, Itacarambi, São João das Missões Araçuaí, Coronel Murta Araçuaí, Coronel Murta Araçuaí

Delimitada Delimitada Em estudo Em estudo Em estudo

Guajajara

Ministra dos Povos Indígenas

“A demarcação de terras indígenas no Brasil é crucial, é um passivo do Estado brasileiro com os povos indígenas. Temos hoje somente 13% do território nacional como terras indígenas. Precisamos avançar, destravar essa demarcação de

Krenak

Mucurim

Xucuru-Kariri

Krenak-Pataxó

Maxakali

Krenak

Maxakali

Pataxó

Maxakali

Xakriabá

Xakriabá

Conselheiro Pena, Itueta, Resplendor, Santa Rita do Itueto Campanário

Caldas

Carmésia, Senhora do Porto Ladainha

Resplendor

Bertópolis, Santa Helena de Minas Itapecerica

Teófilo Otoni

Itacarambi, São João das Missões Itacarambi, São João das Missões

Em estudo

Em estudo

Regularizada Regularizada Regularizada Regularizada Regularizada Regularizada Regularizada Regularizada Regularizada

EM ESTUDO Estudos antropológicos, históricos, fundiários, cartográficos e ambientais

DELIMITADA Funai aprova estudos e publica no “Diário Oficial da União” e no Estado

DECLARADA Ministro da Justiça pode declarar limites e determinar demarcação

HOMOLOGADA Passa a ser terra indígena após decreto presidencial com os limites

REGULARIZADA Funai auxilia a Secretaria de Patrimônio da União a fazer registro cartorário

EDITORIA DE ARTE / O TEMPO
Promessa. Neste ano, o governo federal deve demarcar 14 terras indígenas no Brasil
POVO INDÍGENA MUNICÍPIOS FASE FASES 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16
Xakriabá Aranã Aranã
Kaxixó
Pankararu-Pataxó
FONTE: FUNAI� *Alguns nomes de territórios se repetem porque são áreas diferentes
x Sonia
Terras indígenas Maxakali são antigas fazendas, cobertas por pasto e sem floresta nativa
FRED MAGNO/OTEMPO REPRODUÇÃO INSTAGRAM / @GUAJAJARASONIA 22 OTEMPO BELOHORIZONTE ABRILDE2023

Programa. Estado oferta medida protetiva desde 2010 para pessoas ou grupos com direitos ameaçados

proteção contra perseguição e ameaças

¬ QUEILA ARIADNE

ENVIADA AO TERRITÓRIO XAKRIABÁ

SÃO JOÃO DAS MISSÕES. Eles estão em terras reconhecidamente deles, ainda assim, medo e violência rondam a rotina dos indígenas. Já são pelo menos 13 incluídos no Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos de Minas Gerais, o equivalente a 15% dos 86 protegidos no Estado.

“Fizeram uma emboscada para mim. Estava voltando de São João das Missões para a Aldeia Morro Vermelho quando dei de cara com carros fechando a estrada. Fugi e, graças a Deus e aos nossos encantados, nada me aconteceu”, relembra o cacique Santo Caetano Barbosa, da Aldeia Morro Vermelho. Também não ocorreu nada com os suspeitos na época, por volta de 2011, cinco anos após a retomada de terras Xakriabá.

BOATOS. Só o povo Xakriabá, que vive no Norte de Minas Gerais, tem oito lideranças sob proteção. O cacique João de Jovina também integra o programa. Em 2013, quando liderou a retomada das terras onde hoje estão as aldeias Vargem Grande e Caraíbas, recebeu várias ameaças de morte. “Jogaram a cidade contra a gente, falando que iría-

mos tomar as casas das pessoas. Precisei ficar mais de três anos sem ir a Itacarambi, por causa das represálias. Falavam que iam matar a gente, fizeram seguimento nas estradas”, lembra o cacique. “A gente teve muita ameaça. Estar num instituto de direitos humanos não é segurança de vida. Nossa vida tem que ser liberta, com direitos e liberdade”, afirma o cacique João.

RECONHECIMENTO. As aldeias onde vivem Santo e João estão delimitadas. Isso significa que todos os estudos de reconhecimento de terra indígena foram aprovados pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Faltam a declaração e a homologação. E, mesmo nos casos em que a situação da aldeia está regularizada, ainda há risco para as lideranças. “Primeiro, a gente conta com a proteção de Deus. Depois, com a da Justiça na terra. Estamos sempre informando sobre ameaças ao programa, para buscar caminhos de livrar a gente”, afirma o cacique Age- nor Lopes, da Aldeia Tenda Rancharia, demarcada des- de 2000.

De acordo

com a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese), que coordena o programa, o objetivo é garantir a proteção da vida e a integridade física, emocional ou social de pessoas ou grupos que tenham seus direitos violados ou ameaçados em decorrência de sua atuação pelo reconhecimento, respeito, proteção, promoção ou exercício de direitos humanos.

Desde que foi criado, em 2010, o programa tem recebido cerca de 30 casos por ano. Por nota, a Sedese esclarece que, no caso dos Xakriabá, a necessidade de proteção se deu pelo contínuo registro de ameaças, não apenas à vida, mas às suas tradições e valores. “Há relatos de ameaças indiretas através de recados, boatos e bilhetes”, diz a Sedese. Além dos Xakriabá, lideranças Pataxó de Almenara, no Vale do Jequitinhonha, e Esmeraldas e São Joaquim de Bicas, na Grande Belo Horizonte, estão no programa.

Direitos humanos

VEJA O QUE GARANTE O PROGRAMA ESTADUAL

DE PROTEÇÃO:

- Fornecer e instalar equipamentos para a segurança pessoal ou da sede do defensor dos direitos humanos;

- Viabilizar o atendimento psicológico, médico, de assistência social e jurídica;

- Prestar ajuda financeira para prover a subsistência individual ou familiar;

- Viabilizar a transferência de residência ou acomodação provisória em local sigiloso;

- Articular proteção policial;

- Articular transferência para o Programa de Assistência às Vítimas e Testemunhas Ameaçadas, quando for o caso; entre outros.

G“A população indígena em Minas Gerais foi absorvida e engolida, assim como está ocorrendo com os Yanomami”, diz o historiador e pesquisador Adriano Toledo Paiva, doutor em história pela UFMG.

“Muitos indígenas tiveram sua mão de obra usada na mineração do ouro, no século XVIII, época de grande exploração em Minas, e também nas casas dos conquistadores, que empregavam indígenas. Além da ocupação de seus territórios, os indígenas mineiros vivenciaram todo tipo de doença, passando por um massacre na saúde, assim como assistimos com os Yanomami”, diz.

Toledo Paiva se dedica a estu-

SURTODEDIARREIA������

SURTODEDIARREIA

Em pouco mais de 15 dias em novembro de 2018, quase 200 Maxakali de Pradinho e Água Boa, no Vale do Mucuri, tiveram diarreia, e pelo menos duas crianças morreram com suspeita de virose, segundo dados da Superintendência Regional de Saúde de Teófilo Otoni. O problema é historicamente ligado às condições precárias de saneamento, que propiciam o espalhamento desse tipo de doença. Em 2010, um relatório do Ministério Público Federal apontava “situação precária” na região após outro surto de diarreia ter matado quatro crianças indígenas nas duas comunidades. Os procuradores constataram que não havia banheiro, água encanada ou rede de esgoto em nenhuma das habitações das duas reservas.

dar as guerras de extermínio contra os indígenas em Minas Gerais, principalmente entre os anos de 1765 e 1767. “Houve uma série de guerras contra os povos da região do rio Doce, principalmente próximo ao rio Piracicaba.

Ali era uma região de grandes conflitos”, comenta ele, lembrando que eram guerras contra indígenas chamados genericamente de “botocudos”, considerados bravios e antropófagos (que comem carne humana) pelos conquistadores, para colocar uns povos contra outros, como os Koropó e Koroado, que lutavam contra os Puri.

“Era uma tática bélica e guerreira dos colonizadores que impunha essa realidade. Eles, inclusive, clas-

sificavam indígenas como amigos ou inimigos (os botocudos, que não cediam suas terras e representavam resistência). Para se ter ideia, há registro de um conflito que envolveu 4.000 indígenas armados com arcos e flechas em prol da defesa de suas aldeias. Porque movimentos exploratórios dos conquistadores e também de mestiços brasileiros e negros africanos eram para retirar os indígenas de suas terras, como ocorre hoje”, comenta.

ESCOLHA POLÍTICA. Na visão de Toledo, foi uma escolha política do mundo colonial o extermínio dos povos

originários. “Em 1755, foi criada a Lei de Liberdade dos Indígenas e, em 1758, o Diretório dos Indígenas, para ‘organizar’ essa liberdade. A organização passava pelo incentivo do casamento de indígenas com não indígenas. Logo depois vieram as práticas de catequese, que no início da colonização usaram as línguas indígenas, mas passaram a proibi-las, exigindo o uso do português, ou seja, um processo de apagamento das culturas indígenas”, analisa o historiador.

Em pleno 2023, a sociedade brasileira ainda carrega resquícios de três séculos atrás. Exemplo disso, cita o historiador, são narrativas investidas de binarismo, como “índios isolados” e “índios assimilados” (que vivem nas cidades), e a forma como as pessoas enxergam o ideal indígena de isolamento, na floresta, longe da sociedade.

Para Toledo, é importante pro-

blematizar a temática na educação e na sociedade como um todo, para que a maioria passe a ver o indígena brasileiro como “nosso povo”.

SUJEITOS COM HISTÓRIA. “Isso deve ser feito reconhecendo como a comunidade indígena vem ocupando as universidades; produz conhecimento científico na academia; produz arte, cultura e música. Devemos passar a enxergá-los como nossos vizinhos nas áreas urbanas; e discutir como sua cultura é viva; como acionam tecnologias como nós; e estão em constante transformação. Só assim vamos quebrar a ideia de binarismo e deixar para trás esse mundo colonial tão presente até hoje no nosso imaginário e nas práticas racistas. Os indígenas são sujeitos da sua própria história”, acrescenta. (Cristiana Andrade)

Cacique Santo Caetano, liderança Xakriabá, conta sobre emboscadas e “recados” recebidos
O apagamento das culturas indígenas
ABRILDE2023 OTEMPO BELOHORIZONTE 23
FLÁVIO TAVARES/O TEMPO

Para além da aldeia

Riqueza. Povos indígenas levam para o mundo a beleza e a profundidade dos seus territórios

Cineasta premiado mostra quem são os Maxakali

ENVIADA AO TERRITÓRIO MAXAKALI

Arte como instrumento de contar história

¬ QUEILA ARIADNE

ENVIADA AO TERRITÓRIO XAKRIABÁ

SÃO JOÃO DAS MISSÕES. É a fase da lua que d etermina o melhor momento para pegar o barro que vai ser moldado e transformado em peças de cerâmica. “Tem que saber a hora da coleta para evitar trincas”, explica o ceramista Nei Leite Xakriabá, 42. Ele, que incorporou a etnia no nome para transmitir a história do seu povo, aprendeu a modelar observando a mãe fazendo bichinhos do Cerrado e conversando com os mais velhos sobre as técnicas que estavam guardadas na memória. Hoje, Nei repassa tudo que aprendeu aos alunos da Aldeia Barreiro Preto, em São

João das Missões, no Norte de Minas, e expõe seu trabalho pelo Brasil e pelo mundo.

No início, quando começou a participar de feiras, Nei relutava em assinar suas peças. “Aqui, no território, todo mundo é artista. Eu sei fazer cerâmica, mas outra pessoa sabe lançar arco e flecha, outra faz um trançado, um cesto. Não é um conhecimento meu, é um conhecimento coletivo. Então passei a assinar Nei Leite Xakriabá, para trazer essa coletividade”, destaca o artista.

Para ele, a arte assume um papel muito importante para transmitir as tradições às gerações mais novas, mas também para contar a história do povo indígena além da aldeia. “Nas feiras, con-

“Não é um conhecimento meu. É um conhecimento coletivo.”

Nei Leite Xakriabá Ceramista

verso com muita gente desinformada sobre a cultura indígena, que acaba tendo uma visão genérica e ultrapassada do passado, porque foi o que aprenderam. Eu começo a explicar que o Brasil tem mais de 300 etnias diferentes, que falam diversas línguas e têm costumes distintos”, explica.

“Eu conto que os Xakriabá têm mais de 400 anos, estão aqui desde a chegada dos bandeirantes, que passamos por violências e perda de território, que fomos expulsos das margens do rio São Francisco. Com essas conversas, muita gente passou a trocar os equívocos por alianças. Fico feliz quando eles me falam que vão embora com uma visão diferente. A arte indígena tem esse papel, de levar a nossa realidade para as pessoas”, destaca Nei.

Formado em educação indígena pela UFMG, Nei foi escolhido pela aldeia para ser o professor de cultura na Barreiro Preto. “Precisei adaptar a aula, porque o modelo de 50 minutos não era suficiente. Trocamos a hora do relógio pela hora do barro. Os alunos saem com a gente para coletar o barro. Depois aprendem a produzir a tinta com a raspagem da pedra toá e a fazer o polimento com a semente de mucunã. E, por último, a oficina da queima. Aprendem todo o processo e, no final, levam as peças. Além de fortalecer a cultura, que é o objetivo principal, tem o lado da geração de renda com o artesanato”, observa.

“Se eu fico conhecido, eles ficam também. Se eu ganho um prêmio, eles ganham também.”

Isael Maxakali Cineasta

TEÓFILO OTONI. Luz, câmera e a história ancestral de um povo para ser contada – e preservada. Com mais de 20 filmes produzidos, o cineasta Isael Maxakali, 46, encontrou na sétima arte o caminho para realizar seu maior sonho: mostrar ao mundo a cultura e a língua Maxakali. “Queria clarear o povo Maxakali, mostrar quem somos. Sempre estivemos debaixo da coberta, na escuridão”, conta o indígena. A empreitada não foi fácil. Pegou uma câmera, pela primeira vez, no início dos anos 2000, na Aldeia Água Boa, em Santa Helena de Minas, no Vale do Mucuri. Os primeiros vídeos saíram com enquadramentos tortos e imagens tremidas. Deixou a aldeia e foi para Belo Horizonte fazer oficinas de vídeo para aprimorar a técnica. Uma delas foi ministrada pelo cineasta indígena Divino Tserewahú no festival forumdoc.bh, em 2004. “No começo foi difícil. Tinha medo de estragar a câmera, e a tecnologia era novidade”, lembra Isael em entrevista a O TEMPO, na Aldeia Escola Floresta, em Teófilo Otoni. Ele e mais 36 famílias se mudaram para lá depois de uma ruptura na Aldeia Verde, em Ladainha, em setembro de 2021.

A primeira produção como cineasta veio em 2007. “Meu primeiro filme foi ‘Fim de Resguardo’. É sobre resguardo de casal indígena.Quando nasce a criança, as mulheres não podem comer carne, e os

maridos, também não. Não podem coçar com a unha. Contei um pouco da cultura Maxakali”, conta. Nos anos seguintes, o indígena intensificou as produções, ao lado da mulher e também cineasta, Sueli Maxakali. Entre longas e curtas-metragens, animações e desenhos, alguns títulos receberam especial atenção da crítica e do público. Um deles é “Konãgxeka: O Dilúvio Maxakali”, um curta exibido em festivais nacionais e internacionais. Outra obra de destaque é “Grin”, dirigido por Isael e pelo cineasta, roteirista e diretor Roney Freitas – exibido e premiado na 21ª Bienal Sesc_Videobrasil.

O trabalho como cineasta é também uma forma que o ativista indígena encontrou para conscientizar o público sobre a importância da preservação da diversidade cultural e da proteção dos direitos dos povos indígenas. Em 2020, Isael Maxakali venceu o prêmio Pipa Online – um dos mais importantes de artes visuais do país. “Com o meu trabalho, eu cresço e fortaleço os Tikmu’un - Maxakali na língua deles. Se eu fico conhecido, eles ficam também. Se eu ganho um prêmio, eles ganham também!”, escreveu em sua bio, na página do prêmio Pipa. Em 2020, Isael ganhou o mundo. Foi premiado no Festival Sheffield, na Inglaterra, com “Nuhu yãg mu yõg hãm: Essa Terra É Nossa!” –em parceria com os cineastas Carolina Canguçu e Roberto Romero. O documentário foi exibido em festivais de cinema em Portugal e no Canadá. No Brasil, venceu a 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes.

¬ MARIA IRENILDA FLÁVIO TAVARES/O TEMPO
FRED MAGNO/O TEMPO
24 OTEMPO BELOHORIZONTE ABRILDE2023

Futebol é orgulho Krenak e aliado na defesa da etnia

Além das 4 linhas. No Vale do Rio Doce, indígenas se organizam em times feminino e masculino

¬ BRUNO MATEUS

ENVIADO AO TERRITÓRIO KRENAK

RESPLENDOR E CONSELHEIRO PENA

Viviane Damaceno Krenak, 42, é a orgulhosa zagueira do Dhukunãn Krenak Futebol Clube, time feminino da aldeia Krenak, situada entre Resplendor e Conselheiro Pena, na região do Rio Doce. Toda segunda, quarta e sexta-feira, ela e suas companheiras só saem do treino no campinho do território indígena quando a noite começa a colorir o céu e as estrelas brilham com mais nitidez. Cansadas e felizes na mesma intensidade, elas se reúnem aos pés de uma árvore para tomar água, descansar e falar amenidades. Em seguida, cada uma vai para sua respectiva casa com o mesmo sentimento daqueles garotos do saudoso Eduardo Galeano, que um dia acabaram de jogar uma pelada e voltaram para casa cantando: “Ganamos, perdimos, igual nos divertimos”.

Já é noite na Aldeia Krenak quando Carlinhos Ita, 27, deixa o gramado após mais um treino do Krenak Futebol Clube, time masculino da etnia. O defensor e os outros jogadores só param a bola ao perceberem que a escuridão tomou conta do campo e tornou o jogo tão confuso que alguém teve de gritar: “Chega, parei!”. No fim das contas, o empate em 4 a 4 deixou a todos satisfeitos.

Viviane Krenak e Carlinhos Ita têm consciência da importância de vestir o uniforme verde. Verde da esperança, cor que também representa a história, a cultura e a memória de uma etnia que por diversas vezes foi forçada a deixar sua terra, mas resistiu bravamente, voltou a Minas Gerais e desde meados dos anos

1990 ocupa o solo que lhes pertence.

ORGULHO EM VESTIR A CAMISA. “Orgulho demais por jogar no time da aldeia, da minha cultura. Quando visto aquela camisa escrito Krenak, rapaz, eu me sinto bem. Com meus parentes, a gente luta pelo time. Quando vestimos a camisa, ficamos com mais força e vontade. Nossa ideia é levar o time para fora, para todo mundo conhecer quem é o time Krenak”, diz Carlinhos Ita.

O Krenak Futebol Clube, fundado há mais de 30 anos, se prepara para disputar a etapa regional dos Jogos Indígenas neste semestre. Se conseguir a classificação, participará da fase final em Brasília, no mês seguinte. Antes do campeonato, porém, o zagueiro já se concentra num só objetivo: “Queremos muito levar o nome Krenak. Antes dos jogos, a gente canta e dança para ter mais força, fala na nossa língua (Itchok

Território Xakriabá tem mais de 25 equipes

G No território Xakriabá, o futebol começou a ser inserido em 2005, principalmente como um trabalho social com os mais jovens. “Fomos organizando aos poucos, e esse esporte passou a ajudar no combate às drogas, ao uso excessivo de álcool. Faz muita diferença”, conta um dos fundadores do projeto, João Fiuza Xakriabá.

Atualmente, a comunidade conta com mais de 25 equipes, entre masculinas e femininas.

“Das oito olimpíadas estaduais que participamos, ganhamos cinco com os meninos. As mulheres venceram todas”, acrescenta.

Segundo Fiuza, indígenas já

chegaram a se destacar em equipes profissionais, mas a falta de apoio financeiro foi um empecilho. “Temos muito talento aqui, vamos mostrar isso nos jogos, e tenho certeza de que estamos muito bem representados”.

Agora, a comunidade se prepara para o Campeonato Nacional de Futebol Indígena, que acontece entre as etnias das cinco regiões do país. As datas ainda não foram divulgadas. “Focamos todas as idades, temos também os veteranos, que não deixamos de dar suporte. Ainda disputamos com não indígenas, principalmente da região”, finalizou.

Krenak Futebol Clube, fundado há mais de 30 anos, está se preparando para disputar a etapa regional dos Jogos Indígenas

borum) e vamos pra cima”.

O futebol pode ser só um esporte de 11 contra 11 para quem não enxerga o caráter social, poético, político e histórico desse jogo milenar. No ludopédio Krenak, esse aspecto, que transborda as quatro linhas, corre junto à bola lado a lado no gramado

“Eu me sinto honrada quando entro em campo para defender nosso time Krenak e muito orgulhosa por saber que estou ao lado das meninas da minha aldeia, das mulheres do meu povo, da nossa comunidade”, sublinha Viviane, que tem nora, filhas, primas e amigas como companheiras de equipe.

As meninas do Dhukunãn Krenak Futebol Clube, time em atividade desde a década de 1990, também vão participar dos Jogos Indígenas. O resultado é importante, claro, porque todas querem vencer quando a bola rola, mas há algo que transcende os números do placar da partida: “Sempre falo com elas que é importante saber perder e ganhar, faz parte do esporte. Temos que respeitar todas as mulheres, mostrar que somos indígenas e capazes de termos nosso futebol”.

Viviane Krenak

Zagueira

“É maravilhoso saber que entramos em campo para defender as cores da nossa etnia, não tenho nem palavras.”
FOTOS MARIELA GUIMARÃES/O TEMPO Dhukunãn Krenak Futebol Clube, time feminino da aldeia Krenak, entre Resplendor e Conselheiro Pena, na região do Rio Doce
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ABRILDE2023 OTEMPO BELOHORIZONTE 25

RESISTÊNCIA. Jovens se organizam em movimentos de defesa por direitos e preservação de tradições

Juventude potencializa a luta e promove a diversidade

¬ QUEILA ARIADNE

ENVIADA AO TERRITÓRIO XAKRIABÁ

“Mas você não é indígena, você é quilombola”. Quem falou isso foi uma professora universitária. Quem ouviu foi Wasady Xakriabá, 25, logo nos primeiros dias de aula. “Foi a primeira vez que eu ouvi alguém falando que eu não era indígena. As pessoas questionavam por que eu tinha o cabelo cacheado, e isso é normal. Não debati com ninguém, não culpei ninguém por não me reconhecerem, porque é uma questão de ignorância. Com o passar do tempo, eu fui tentando mostrar a diversidade dos povos indígenas”, conta Wasady, uma articuladora da juventude Xakriabá.

Ela transformou cada oportunidade para ocupar a academia e levar informação. “Sempre eu trazia questões indígenas para as aulas e consegui desconstruir algumas mentes na academia. Até mesmo na minha própria turma, percebi que meus colegas começaram a mudar e a se interessar mais em entender a nossa realidade”, afirma Wasady, segunda indígena a se formar em assistência social na Universidade Federal de

Goiás (UFG). Ela começou a fazer parte da articulação da juventude Xakriabá em 2015. “A gente costuma dizer que não temos liderança, pois já temos os caciques para seguir. Quando a gente começou, já tínhamos em mente que o movimento viria para dividir a bagagem.

E, embora seja um grupo da juventude, temos pessoas mais velhas também, porque sempre trazem conhecimento”, destaca.

Eles organizam encontrões da juventude, para discutir de pequenas a grandes questões do território. A vitória de Célia Xakriabá como deputada federal é um fruto dessa articulação. “A candidatura dela foi um lançamento coletivo do povo Xakriabá, veio de uma construção da qual a juventude faz parte”, destaca Wasady.

Cada uma das 37 aldeias conta com uma antena, que mobiliza os jovens do local. Edvan Srêwakmõwê Xakriabá é um deles, representante na aldeia Itapicuru. Ele ressalta que a juventude sempre esteve presente nos movimentos do seu povo, principalmente nas retomadas. “Não tinha essa denominação, mas a representação sempre existiu. Hoje, a gente se organiza por aldeias e discutimos pontos que

precisamos melhorar, vemos as prioridades junto com os caciques e lideranças e trabalhamos juntamente com eles”, afirma Edvan. Segundo ele, uma das prioridades é o resgate da língua materna, por meio de oficinas. Mas existem várias outras, com destaque para a luta pela terra e expectativa pela homologação de novas áreas que devolverão ao povo Xakriabá o direito de viver às margens do rio São Francisco. Assim como Wasady, Edvan também enfrentou questionamentos. “Mas você não tem cara de índio”, lembrase do que ouvia. Para ele, são perguntas de quem acredita que, para ser indígena, uma pessoa tem que ter cabelo liso, olhos puxados, o mesmo tom de pele e andar pelado. A resposta veio com a territorialização da universidade. “Os indígenas vêm, aos poucos, adentrando no espaço de conhecimento, o que ajuda a fortalecer o nosso povo. A nossa presença, de certa forma, ajuda a demarcar esse espaço”, diz Edvan.

Conhecer a história e defender memória da terra dá sentido à vida

GRESPLENDOR. Ni Krenak, 45, é filha de dona Laurita Krenak, importante liderança feminina que esteve à frente do processo de retomada do território Krenak, em Resplendor, na região do Rio Doce, em meados dos anos 1990. Desde criança, ela aprendeu que a luta pelos direitos dos povos indígenas pode se dar em vários níveis –do debate político institucional ao bate-papo com parentes.

“Minha mãe nunca deixou o povo Krenak acabar e aprendi que essa é uma luta que devo seguir. Te-

mos que ter uma raiz bem forte como se fosse uma árvore frondosa, com a raiz profunda. Mesmo que tentem cortar por cima, tem a força de produzir, florir, dar frutos.

Resistir, saber a história dos nossos antepassados e aprender com o sofrimento deles deixa a gente forte para lutar”, diz a ativista.

NOVAS GERAÇÕES. Defender a memória, a terra, a identidade e a cultura Krenak é, segundo ela, algo que lhe dá sentido de vida. Casada há 22 anos com o escritor, ativista e

membro da Academia Mineira de Letras Ailton Krenak, Ni encontrou no parceiro a mesma vontade não só de preservar a história de seu povo, mas de repassá-la às novas gerações, para proteger o passado, o presente e o futuro dos Krenak.

“Se a gente deixar essa história morrer, como vamos saber de onde viemos? Meus filhos têm que saber para poder passar para meus netos. Todos os indígenas têm que saber suas histórias, tristes ou alegres”, reforça. (Bruno Mateus)

FLÁVIOTAVARES/OTEMPO

Wasady Krenak: “Sempre levei questões indígenas para as aulas e consegui desconstruir algumas mentes na academia”

MARIELAGUIMARÃES/OTEMPO

FLÁVIO TAVAARES/O TEMPO Edvan Xakriabá: “Nossa presença ajuda a demarcar esse espaço” Ni Krenak: “Temos que ter uma raiz bem forte”
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“O Estado brasileiro tem tradição de matar índio”

¬ BRUNO MATEUS

Quando atendeu a reportagem de O TEMPO às 10h16 daquele sábado, 1º de abril, Ailton Krenak estava longe de casa, em Teresina (PI). Na capital piauiense, o escritor, poeta, líder indígena, ativista ambiental e mais novo membro da Academia Mineira de Letras (AML) participava de rodas de debates e lançamento de “Futuro Ancestral” (Companhia das Letras), seu livro mais recente. “Estou aqui tomando cajuína e lembrando da canção de Caetano Veloso, ‘a cajuína cristalina em Teresina’”, Krenak cita um verso de “Cajuína”. Com a mulher, Ni Krenak, e o filho Nakatã – a outra filha do casal, Nouá, mora em Vitória –, o escritor vive no território indígena Krenak, entre Resplendor e Conselheiro Pena, na região do Rio Doce, mas passa boa parte do tempo viajando a trabalho, sobretudo com a divulgação do livro. “Eu queria voltar para casa, mas não sei se consigo, tenho que dar um nó aqui”, ele diz. Primeiro indígena a assumir uma cadeira em uma academia de letras do Brasil, Ailton Krenak celebra a representatividade e fala sobre ditadura, governo Lula e violência contra os povos originários em Minas Gerais.

Neste 1º de abril, são lembrados os 59 anos do golpe militar. A ditadura foi violenta contra os povos indígenas. Em Resplendor, teve o Reformatório Krenak, um centro de tortura e trabalho escravo. Qual é a marca da ditadura em você e em seu povo? A marca da morte. Todo povo que sofreu esse colapso ficou marcado com essa terrível perda da fé na vida, porque a fé na vida não é só uma ilusão, é uma experimentação. Se você tem negado o direito de viver, não só do indivíduo, mas da coletividade – o que caracteriza etnocídio, com a proibição da língua, dos costumes, da religião (era o que os nazistas queriam fazer com judeus, ciganos) –, significa matar o corpo e o espírito, cauterizar e não deixar memória. Lembra o que os portugueses fizeram com a Inconfidência Mineira – esquartejar Tiradentes, queimar os restos, jogar as cinzas fora e jogar sal no terreno para não aparecer nem grama? Tentaram aniquilar os Krenak, as pessoas que estão vivas hoje são mutiladas psicologicamente, fisicamente e desconfiam da vida.

Lula assumiu a Presidência pela terceira vez. Dias depois, foi criado o Ministério dos Povos Indígenas. O que se pode esperar das políticas públicas? Criar o Ministério dos Povos Indígenas é mais do que um pedido de perdão. O papa já pediu perdão, todo mundo pede, mas o ato de criar um ministério é mais efetivo que um pedido de perdão, porque inclui a voz plural dos povos indígenas no desacordo da governança. Não é acordo, o pau vai quebrar, não tenho dúvida. Todos os fascistas que queriam acabar com os indígenas estão armados até os dentes para sabotar o governo Lula. Parece que as pessoas pensam que não tivemos Bolsonaro no caminho. Bolsonaro queria matar os índios, destruir as terras indígenas. Temos que lembrar o que aconteceu ontem para cobrar hoje. Não vou querer que de uma hora para outra o governo Lula resolva tudo.

Pessoas indígenas estão ocupando espaços de poder e decisão. Como você analisa o momento? Elas têm que ter ciência de que assumem um lugar de alto risco,

x Ailton Krenak

escritor, poeta, líder indígena, ativista ambiental e membro da Academia Mineira de Letras

“O Equador tem quase 70% da população formada por indígenas; na Bolívia, mais de 50%. O Brasil acabou com os indígenas. Não chegamos a ser 1%.”

não é privilégio. É um risco grave de ser aniquilado ou de ficar com a biografia suja, porque é entrar num aparelho do Estado sabendo que ele é colonial e sempre teve dono. Não é confortável. É diferente para os brancos. Os brancos entram nesses organismos para ficar. Alguns têm aposentadoria vitalícia. Os negros e os indígenas têm que ficar espertos, estão passando por um organismo estranho, que não vai assimilar a presença deles. Quero ver quando o Estado brasileiro vai conseguir vomitar o genocídio histórico. Além da tentativa pontual de matar um ou outro povo, o Estado brasileiro tem a tradição de matar índio. É diferente de Bolívia, Peru, Equador, Venezuela… O Equador tem quase 70% da população formada por indígenas; na Bolívia, mais de 50%. O Brasil acabou com os indígenas. Não chegamos a ser 1%. O IBGE fala que somos novecentos e poucos mil sujeitos (Censo 2010).

Há uma tentativa sistemática de apagamento da cultura, identidade e memória indígena? Sim, isso repercute uma declaração de dom João VI. A família real portuguesa chegou ao Rio de Janeiro em 1808. O primeiro ato do dom João VI foi atender a um pedido dos colonos da floresta do Rio Doce, que tentavam colonizar a região e não conseguiam porque os índios não deixavam, resistiam. Os colonos foram ao Rio e pediram para dom João VI declarar guerra de extermínio contra os Botocudos. Dom João VI estava sem grana, precisava de propina, assinou uma declaração para mandar matar todo mundo e arrumou uma grana para se estabelecer no Rio de Janeiro. A história do Brasil é assim, é trocar fazenda por terra indígena, trocar favores com fazendeiros, aniquilar o povo indígena.

Você assumiu, em março, uma cadeira na Academia Mineira de Letras. Como isso pode reverberar?

Foi muito além do que eu podia imaginar quando vejo a repercussão. Saiu uma matéria na revista “piauí”, mais de um mês depois do evento. Uma matéria que vai ser lida por milhares de pessoas em Minas e fora de Minas falando de literatura, da academia, mas principalmente do fato de o sujeito que foi convidado a estar dentro dessa academia ter uma biografia de luta. Não sou puxa-saco das letras brasileiras, eles sabem que estou lá com as minhas idiossincrasias, com as minhas contradições. Não estou lá para bater continência. Os jovens indígenas, esses que estão em escolas precárias nas aldeias, alguns saindo para fazer curso técnico e faculdade, isso dá a eles um exem-

plo de coragem. Principalmente às mulheres indígenas e à juventude, representada nessa destacada presença da Célia Xakriabá (deputada federal). A presença indígena, não só em mandato político, é importante na vida cultural do país. São exemplos para meninos e meninas saírem da aldeia de cabeça erguida, em vez de esconder que são índios. Os pais deles tinham que se esconder, se esgueirar pelas beiras

O que significa ser um Krenak, carregar Krenak no seu nome? Tem o peso das montanhas.

REPRODUÇÃOINSTAGRAM/@_AILTONKR

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