ORIGEM | Soberana Magazine #3

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Editorial

Derrubar Colunas Na mais linear tradição maçónica quando uma “loja”, a sua estrutura base de agregação, se sente incapaz de continuar a desempenhar a sua função, os seus elementos mais não fazem do que “derrubar colunas”. ´É um acto simbólico, cujo devir reflectirá certamente um fim ou um novo princípio, um novo começar. É um acto simbólico quando se entende que derrubar colunas significa que os pilares básicos que sustentam um fundamento organizacional são incapazes de cumprir a sua função. Sirva o exemplo porque não somos necessariamente todos maçons mas, se apreendermos a profundidade da sua analogia, também compreendemos que Portugal está cada vez mais perto do colapso. Não interessa se, na realidade, a nossa sociedade está ou não está a caminhar para a ruptura. Interessa sim a forma como percepcionamos o actual momento em que vivemos. É verdade que a actual dinâmica de uma sociedade conduzida pela voragem comunicacional nos leva a perder o controlo sobre o que verdadeiramente acontece versus aquilo que nos é comunicado como tendo acontecido. Mas, pese embora algum exagero de intoxicação que as televisões nos provoquem e mesmo até alguma distorção factual por força de interpretações que nos são induzidas, há realidades que são imutáveis. Uma dessas realidades é o estado de verdadeiro colapso do aparelho da Justiça em Portugal. O Pilar, na aceção maçónica, ruiu completamente. Para os portugueses já não está em causa se há ou não igual acesso à Justiça, se há uma Justiça para ricos e outra para pobres ou se a Justiça é demasiado lenta no nosso país. Mas a falha não está só na complexidade da realidade jurídica em Portugal. É muito mais profunda. Está no indivíduo, na pessoa, no agente, naquele que exerce autoridade. Se o pilar da Justiça está a ruir é porque dois outros pilares fundamentais já colapsaram: o da Família e o da Educação. A revolução das elites (das poucas que ainda restam neste país) já não será suficiente. Este terá de ser o tempo da revolução “dos homens bons”. Pela força da não resignação contra esta perceção generalizada de um País à beira da rutura que se instalou em todos nós. José Manuel Caria

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Ficha Técnica Origem - Soberana Magazine Edição Maio de 2021 Nº de Registo na ERC: 127460 www.glsp.com.pt

Estatuto Editorial Origem | Soberana Magazine (glsp.pt) Diretor José Manuel Caria (CPTE-554) Diretor Adjunto Fernando Correia (CPTE-809) Editores Fotográficos Bruno Melão Tomás Arantes Direcção de Arte, Design e Paginação Catarina Redol . Creative Thinking Wrahiguer Rodríguez . Miau Digital Agency Redação Av. João Crisóstomo, 77 B 1050-126 Lisboa Edição impressa Maio de 2021 Tiragem: 600 Exemplares Impressão: Imprimir com Arte - Cascais Villa Loja 2.08 2750-786 Cascais Depósito legal: 474660/20 Distribuição nacional e internacional

Editor e Proprietário João Pestana Dias Grande Loja Soberana de Portugal – Associação Av. João Crisóstomo, 77 B 1050-126 Lisboa NIF: 514 991 437 Foto Capa: © José Carlos Pratas

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ÍNDICE Derrubar Colunas | José Manuel Caria

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Um Deus Maior

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A Soberana tem mais 2 Respeitáveis Lojas

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Carlos do Carmo e Xicofran - Dois artistas, um Rosto | Fernando Correia

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Revista de Maçonaria | Fernando Marques da Costa

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Num Mundo em Desordem para que Servem as Ordens | Abílio Alagôa da Silva

- 16

O Quinto Império | Fernando Correia

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Carta do Grão Mestre | Abílio Alagôa da Silva

- 26

Traços de Luso-brasilidade Escrita | Ígor Lopes

- 28

Uma Identidade Plural | Fernando Pereira

- 30

O Atropelar de Mandela | António Mateus

- 32

Cry Freedom

- 36

Essa Palavra Saudade... | Fernando Correia

- 37

A Liberdade Começa por Ser Zero! | António Pinto Basto

- 38

Uma Liberdade Diferente | White Louis

- 39

A Historia do Capuchinho Vermelho e a Anologia com a Maçonaria | White Louis

- 40

Bestiário Maçónico O Dragão | LMB

- 44

O Que é Ser Maçom? | Fernando Correia

- 48

Maçom: Homem Livre e de Bons Costumes | EG

- 52

Sociedade Global, Ética e Responsabilidade Social das Organizações | Fernando Casqueira

- 54

O Homen, O Músico e O Maçom | Fernando Correia

- 64

O Compositor e a Sua Obra | Vasco Lima

- 67

Os Hollies A Liberdade, Igualdade e Fraternidade | Vasco Lima

- 68

Diário de um Corpo sem Memória

- 72

O Legado de Rudolf Steiner | Paulo Réfega

- 74

Carmen Dolores - Que a Memória te Guarde! | Fernando Correia

- 80

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Um Deus Maior Abrir as portas do coração; deixar que o Sol invada a alma comum de gente que se quer bem; inundar de amor o Templo interior que existe dentro de cada um de nós; adquirir uma nova consciência ao ritmo da verdade de Deus; deixar que a esperança tome lugar das dúvidas e perceber que a vida é muito daquilo que fizemos por ela, foram as certezas que levaram a GLSP a abrir as portas do Templo Portugal, naquele fim de tarde de sexta-feira. Um Templo Maçónico de portas abertas às dúvidas, à curiosidade e à construção do espírito, no caminho luminoso para o Oriente Eterno é um dever de alma, consciência e liberdade. A arte não se fecha. A cultura não se esconde. A criatividade não se limita. Reuniram-se pintores, escritores, escultores, oradores, músicos, cantores, criadores de arte e futuro.

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O jornalista Fernando Correia apresentou o seu mais recente livro “Diário de um Corpo sem Memória”, com intervenções de Abílio Alagoa da Silva (GM da GLSP) e João Pestana Dias (PGM da GLSP); Frei Fernando Ventura e o Prof. Fernando Casqueira falaram sobre o “Deus Maior”; os artistas plásticos José Pedro Santos, David Lopes, Filomena Fonseca, Teresa Lopes, Pedro César Teles, Bogdan Dide, António Macedo, Dina Aguiar, Xicofran, Santiago Belacqua, Nogueira de Barros, Carlos Saramago apresentaram telas suas; Jacques Ruela expôs uma das suas esculturas e Bruno Melão mostrou uma das suas fotografias artísticas; António Pinto Basto cantou, acompanhado á guitarra e à viola; a sessão terminou com um Porto de Honra. “Um Deus Maior” esteve no meio de nós, também no dia 7 de Maio (mês de Maria) ao fim da tarde, no Templo Portugal, o Templo da SOBERANA.


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A Soberana tem mais 2 Respeitáveis Lojas Levantaram Colunas a R:.L:. General Gomes Freire de Andrade e a R:.L:. Bartolomeu Dias. Numa altura em que assistimos ao Abater de Colunas de Lojas em várias Obediências, por causa da crise pandémica que vivemos, fazer o Levantamento de Colunas de uma Loja é um sinal dos tempos que não deve ser ignorado. Mas qual o significado do Levantamento de Colunas? O objetivo duma Loja é o de levar aos Obreiros a essência da Maçonaria, ou seja, a melhor versão de cada um de nós. Este trabalho é um processo demorado que implica uma enormíssima responsabilidade individual, contraída no momento do juramento maçónico mas, ao mesmo tempo, é um processo coletivo vivido em Egrégora. A Maçonaria é uma espécie de “Ginásio da Alma” onde o Ritual explica quais os exercícios a fazer, para que o “músculo” que precisa de ser trabalhado o seja. Mas somos nós individualmente que temos de fazer esse trabalho. A Loja ajuda no caminho mas este tem de ser percorrido por cada um de nós. Ou seja, é impossível transmitir conhecimento. O que pode ser passado é o método através do qual ele pode ser atingido mas teremos de ser nós a experienciá-lo, porque somos todos diferentes, embora caminhemos todos para a Luz. Este detalhe faz toda a diferença numa Loja maçónica porque a Maçonaria não dá nada de mão beijada. O Maçom tem de conquistar o direito a ser reconhecido como tal e não há Maçons feitos por decreto.

A SOBERANA está pujante e em crescimento sustentável. Hoje é uma Obediência onde é difícil entrar mas de onde é muito fácil sair. Não há tolerância com atitudes que não honram os Maçons. Nesta fase, já temos Maçons representativos de várias partes de Portugal Continental e Ilhas, no reconhecimento do trabalho árduo que a SOBERANA tem vindo a fazer, porque isto de ser a Nova Maçonaria Portuguesa implica uma grande responsabilidade e muito trabalho. O maçom Almada Negreiros dizia: “Quando eu nasci todas as frases que haviam de salvar a humanidade já estavam escritas. Só faltava uma coisa. Salvar a humanidade”. O acolhimento a estas 2 Lojas foi caloroso e já se fez sentir uma das características da SOBERANA, que é a entreajuda entre Lojas. Na SOBERANA ninguém fica para trás, porque as Lojas não são Ilhas e a Egrégora é fundamental. O Nascimento de um projeto representa o melhor que o ser humano tem. Por isso desejo muitas felicidades a estas 2 novas Lojas e em especial aos seus líderes, aos Veneráveis Mestres que carregam nos seus ombros as esperanças fundadas de ajudar a transformar Homens bons em Homens melhores. “Deus Quer, o Homem Sonha e a Obra Nasce”. Fernando Pessoa

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Carlos do Carmo e Xicofran

Dois Artistas, Um Rosto por Fernando Correia

Carlos do Carmo não quis dar vida à “adormecida” festa da passagem do ano, porque não achou merecido celebrar o tempo que passava, inexoravelmente, por ele. Partiu nessa mesma noite de festejos proibidos, de fogo de artificio guardado no baú da saudade, de abraços evitados pelos homens e mulheres de sorrisos mascarados. Partiu como nasceu, na tranquilidade do desconhecido sem saber que o destino tinha chegado e que estava ali mesmo, naquele lugar, naquela hora, sem perceber o que se passava à sua volta, sem gritos nem lágrimas. Partiu como quem procura, como quem anseia, como quem quer um destino espiritual, achado único naquela noite de transformação. A notícia, inesperada e imensa, deixou lágrimas nos canteiros da sua Lisboa, menina e moça, que o Município da capital converteu em hino, como se a sua alma passasse a habitar um viveiro de flores maduras, numa varanda de bairro popular. Dali irão nascer flores de saudade, mas também verdes do futuro que a saudade esperançosa transmite aos eleitos da vida. Xicofran, o pintor, o artista, o homem da sensibilidade nas pontas dos dedos, viu na dimensão do reencontro o rosto de Carlos do Carmo. Rosto meio triste, meio feliz, com rugas de calma a marcar-lhe as mágoas, mas com os lábios a abrirem-se, em amor, a fim de pronunciarem a palavra certa.

E da imagem fez um quadro. E do quadro fez a história. E a história foi oferecida à posteridade do entendimento das pessoas. Não é certo que os vindouros, os passantes pela vida, os errantes das páginas dos livros, os que ouvem e não perguntam porque não sentem, tenham sempre presente o homem que deu ao fado uma dimensão universal, ajudando a que lhe conferissem o estatuto de património imaterial da humanidade. Mas é certo que os traços profundos da sua arte perpetuam o Ser Humano que nos alvores do ano de 2021 partiu em busca do seu próprio destino, talvez amargurado pela incompreensão de alguns, mas virtualmente feliz pela mensagem de paz que deixou ao Mundo. Carlos do Caro e Xicofran deram as mãos, entrelaçaram virtudes, plasmaram sorrisos fraternos e, no meio da ternura que só os eleitos compreendem, perpetuaram – se, um ao outro, numa tela de amor que ficará para o resto de todo o sempre. O pintor quis oferecer a sua obra à “Soberana”, para que numa futura, mas breve, redistribuição de ternura, possa ser adquirida por alguém que compreenda a necessidade de transformar o produto da venda num acto de ajuda aos que mais precisam. Carlos do Carmo ficará feliz quando souber que isso aconteceu.

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Revista de Maçonaria Por Fernando Marques da Costa

Tentar editar uma revista sobre Maçonaria independente da tutela de organizações maçónicas, seja de forma financeira ou outra, e centrada na investigação, mais do que no proselitismo ou na calúnia, não é tarefa fácil, num país pequeno como Portugal. O estudo da Maçonaria enquanto fenómeno social, nos seus diversos aspetos, é, desde há décadas, internacionalmente, uma tarefa de investigadores académicos, maçons ou não maçons e dela resultam anualmente abundantes artigos científicos, teses de mestrado e de doutoramento. Não é esse o caso em Portugal, onde o tema parece ser pouco apelativo à comunidade científica. Lá fora, as próprias organizações maçónicas possuem lojas ou institutos de investigação que publicam regularmente revistas que qualquer um pode adquirir ou assinar, para além de abundante publicação de estudos em revistas científicas académicas. Também não é esse o caso em Portugal que nunca possuiu, nem possui, uma loja maçónica exclusivamente dedicada à investigação do tema, nos seus múltiplos aspetos e são raros os não maçons que investigam o tema, Não existe, ao contrário da generalidade da Europa, uma única revista de investigação sobre Maçonaria e sociedades fraternais. Os tempos mudaram e há hoje uma facilidade de comunicação de projetos que então não existia. É também diversa a abordagem a que nos propomos. Queremos estar abertos à comunidade científica internacional em parcerias de publicação de artigos, porque o estudo comparado da Maçonaria (e das

sociedades fraternais em geral) enquanto fenómeno social permite-nos sair do quadro paroquial onde a investigação sobre a Maçonaria portuguesa por vezes se deixa aprisionar. Esta é uma revista «em papel», uma opção conservadora, mas que assenta na ambição – de que serve um projeto sem ambição? – de ser uma revista «de estante». É uma opção um pouco em contracorrente, é verdade. Mas, (por ora) seguimos o exemplo - ou será tradição? – da generalidade das congéneres internacionais. O futuro dirá da virtualidade desta opção. A esta Revista de Maçonaria estará associada uma página de internet (www.revistademaconaria.pt) onde se concentrarão conteúdos de apoio à investigação que nela não têm lugar e que servirá como uma plataforma de comunicação entre investigadores e de apoio a novos projetos. O nosso propósito não é a divulgação da Maçonaria – tarefa que cumpre às diversas organizações existentes em Portugal – , mas o estudo da Maçonaria, feita por quem a ela se dedica, com rigor e exigência metodológica, citando fontes, para que as afirmações possam ser sustentadas e corroboradas. Maçon ou não, isso de nada importa. Esta é uma revista aberta a colaboração de todos, e sobre todas as perspetivas relacionadas com o tema, na sua aceção mais ampla, isto é, não apenas Maçonaria, mas todo o tipo de sociedade fraternais, nos seus diversos aspetos, bem como um leque amplo de formas de espiritualidade a elas associado.

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entre colunas

As ordens existentes devem ser uma fonte de esperança, de inspiração e sabedoria para ajudar a redirecionar as sociedades de hoje, sendo até um imperativo na desordem mundial que atravessamos! É isso que fazemos na SOBERANA!

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Num Mundo em Desordem para que servem as Ordens por Abílio Alagôa da Silva

A emergência do restabelecimento do equilíbrio planetário é, quanto a mim, a Mãe de todas as doenças que o planeta padece, aquela que pode ser a fatalidade irreversível. Consequência, não só da crise pandémica que atravessamos, mas de todos os erros praticados e acumulados pela humanidade no último século, que nos levaram a um ponto de não retorno que urge ser atacado, correndo ainda assim o risco de já não irmos a tempo de inverter a quase inevitabilidade de um desastre climático à escala planetária. O que a humanidade parece não perceber é que o planeta, independentemente do que lhe fizermos, por cá ficará… mas nós não! Vivemos um momento de enorme disrupção tecnológica, política e social e os desafios são maiores que nunca. Nesta nova era muitos são os fenómenos que desafiam, não só a elaboração de uma nova ordem nas relações internacionais, mas também as relações e as estruturas do Poder mundial. Desde logo, está hoje mais do que nunca em causa o ator que durante séculos detinha a exclusividade do Poder nas relações internacionais – o Estado. Mais do que o conceito tradicional de soberania, é o próprio Estado que se encontra numa crise significativa, procurando sobreviver e adaptar-se a uma nova realidade onde, cada vez mais, as suas estruturas estão descontextualizadas e são manifestamente insuficientes para resolver os inúmeros problemas que ultrapassam largamente os limites fronteiriços tradicionais. Temos o exemplo vivo desta crise pandémica que, pela primeira vez na História da humanidade, confinou mais de metade da população mundial em simultâneo, vendo as maiores potencias mundiais sem capacidade de reação, resolução e de organização para fazer face a este brutal ataque pandémico.

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entre colunas

Atualmente, muitos são os atores ou agentes que atuam junto dos centros de decisão nacionais e internacionais, assumindo uma cada vez maior fatia de Poder. Basta pensar na enorme relevância das multinacionais, dos media, dos grupos de pressão (lobbies) ou das organizações não-governamentais (ONG) para nos apercebermos das enormes mutações de Poder que ocorrem, quer no seio das sociedades, quer nas relações internacionais. Julgo ser hora das Ordens, às quais pertencemos, de terem um papel mais interventivo na sociedade no que se refere à ética, à responsabilidade social e à meritocracia, combatendo firmemente o flagelo da corrupção que no nosso país, escandalosamente e para determinadas elites, passa no crivo da justiça com total impunidade. Muitos, para não dizer a esmagadora maioria dos organismos estatais e empresas privadas, ainda não enxergam a importância de tais ações para o seu património e continuam ainda a visar apenas o lucro, enquanto muitas outras aplicam a doutrina

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ética apenas por uma questão de sobrevivência. Por outro lado, temos um outro fenómeno não menos preocupante, o processo de erosão do protagonismo dos Estados, obviamente acelerado pela transferência de competências para organismos supranacionais, onde há um aspeto particularmente preocupante e perigoso: os cidadãos têm hoje maior dificuldade em controlar democraticamente os verdadeiros detentores do Poder. De facto, num mundo que cada vez mais se diz pautado pelos valores democráticos liberais e respeitador dos direitos humanos e individuais, grande parte dos agentes do Poder não são sancionados pela legitimidade eleitoral, não possuem mandato popular e escapam de forma escandalosa ao controlo das instituições democráticas tal qual as conhecemos. A ordem global foi abalada e está a sofrer uma mutação de resultado imprevisível e que radica numa desordem sistémica. Hoje, em 2021, os valores da liberdade, da igualdade e da fraternidade que defendemos continuarão a ser questionados e postos à prova.


No entanto e na verdade, o mundo será, cada vez mais, definido pela evolução da ciência, da tecnologia ou das mudanças climáticas, do que pelas dinâmicas e mesquinhices partidárias. Na entrada deste novo decénio é previsível que a economia do conhecimento abra um novo ciclo de modernização sustentável à escala global e que a transição energética possa criar novas condições para o desenvolvimento e bem-estar, assim como para conter a poluição do meio ambiente e a degradação da natureza. Em 2021 teremos também muita imprevisibilidade, dadas as relações entre a pandemia, uma agitada geopolítica e uma recuperação económica incerta. Esta imprevisibilidade, repito, abre como nunca espaço às ordens em geral, mas às Obediências Maçónicas em particular, que se souberem modernizar, pois a sociedade precisa de orientações e de liderança. É esse o nosso desígnio enquanto a nova Maçonaria Portuguesa. Acredito convictamente que esta crise é uma oportunidade de se fazer uma purga

generalizada dos muitos males de que padecemos e de um consequente progresso económico e social. Porém, a grande questão de 2021 é saber se teremos estadistas ou, pelo menos, líderes minimamente responsáveis para a aproveitar. Mas, como sempre, o futuro depende do que fizermos dele e nós devemos enquanto Maçons ter um papel participativo e determinante na nova era e na transição que agora iniciamos. A Soberana, nesse sentido, tem tomado medidas de carácter estrutural, mas também de carácter tecnológico e social, instruindo e capacitando os seus obreiros para os grandes desafios que se nos deparam. Sempre acreditámos que o trabalho árduo, a integridade e a resiliência acabam por dar excelentes resultados. O homem e a mulher do século XXI estão necessitados de se reencontrarem e nós, Ordens iniciáticas e do bem, podemos e devemos ser o seu porto de abrigo. Que num futuro não muito distante não olhemos para trás e vejamos que nunca fomos senão um vislumbre de nós próprios. É HORA!

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entre colunas

O Quinto Império por Fernando Correia Não podendo ser um império geográfico só podia ser um Império do Espírito que sucederia aos quatro impérios decadentes: Grécia, Roma, Cristandade – Época Medieval e Renascença – Europa Laica. Seria, portanto, o Império da Cultura e do Espírito. O próprio Pessoa forneceu pistas significativas acerca desta grande possibilidade quando escreveu: “O futuro de Portugal, que não cálculo, mas sei, está escrito, para quem sabe lê-lo, nas trovas de Bandarra e nos quadros de Nostradamus”.

Fernando Pessoa, o eterno cavaleiro errante da palavra perdida, “ou de mim mesmo viandante”, como se definia, renovou a mensagem do Padre António Vieira e quiçá do próprio Bandarra ao trazer á tona das suas proféticas ideias a formação do Quinto Império, colocando Portugal em contacto direto com o Centro do Mundo conhecido, e com o historicamente adivinhado, deixando uma porta aberta à universalidade das suas conquistas. De Vieira, a visão era outra, não retomada pelo poeta e pelo pensador. Isto significa que Fernando Pessoa, o poeta, o alquimista, o astrólogo, o pensador, o espiritualista, talvez Maçom, Rosacruz e Templário, estava tão avançado nas suas dissertações sobre a quinta dimensão (corpo/ existência) sucedendo à quarta dimensão (espaço/ tempo) que terá sido por aí o caminho para a admissão do seu sonho acordado de

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Portugal ser o centro do Quinto Império. Era uma espécie de saudade esperançosa. Não podendo ser um império geográfico, facto inadmissível de acordo com as suas ideias e com a sua visão, só podia ser um Império do Espírito que sucederia aos quatro impérios decadentes: Grécia, Roma, Cristandade – Época medieval e Renascença – Europa Laica. Seria, portanto, o Império da Cultura e do Espírito. De resto, o próprio Pessoa forneceu pistas significativas acerca desta grande possibilidade quando escreveu: “O futuro de Portugal, que não cálculo, mas sei, está escrito, para quem sabe lê-lo, nas trovas de Bandarra e nos quadros de Nostradamus”. Ora, esta ideia de Quinto Império surgiu, mais explícita ao pensamento, com a interpretação do sonho de Nabucodonosor no Antigo Testamento, do Livro dos Reis, onde se refere que depois do império do ouro, da prata, do bronze e do barro haverá um Quinto Império, sediado em Portugal, assente na dimensão cultural e espiritual da Língua Portuguesa.

E, também, como parece ser óbvio, na riqueza da sua História. Por esta via se chega à conclusão, clara e evidente, que Fernando Pessoa sonhava que Portugal fosse a grande nação transformadora, o país do espírito futuro, onde se havia de guardar o espólio da alma coletiva. De acordo com a visão de Pessoa, D. Sebastião, o Encoberto ou o Desejado, seria a figura simbólica desse Império do Espírito, sendo por isso necessário esperar pela nova alma portuguesa, expressa na ideia do regresso do Rei que se desconhece quando será, mas que há-de voltar no seu cavalo branco, numa manhã de nevoeiro. Aqui entroncam duas razões motivacionais: a primeira que diz respeito ao desejo de ver satisfeita uma dúvida, tornada num símbolo da portugalidade, ou seja, no facto de o guerreiro D. Sebastião não ter morrido na batalha; e a segunda diretamente respeitante à noção do herói que foi sacrificado para ressurgir ou ressuscitar, em espírito, como símbolo de alguma “coisa” futura. Mesmo em termos simbólicos, esta ideia

Fernando Pessoa escreveu: “Não há homens salvadores. Não há Messias. O máximo que um homem pode ser é um estimulador de almas, um despertador de energias alheias”.

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de regresso e ao mesmo tempo de virtude suprema tinha a ver com o surgimento de um supra-Camões, de um poeta supremo que seria o grande virtuoso das almas e a expressão máxima da difusão da língua, da história e da cultura nacionais. No fundo era, igualmente, a visão absoluta e concreta do domínio do Ser sobre o Ter e tudo o resto, a que Fernando Pessoa procurava errante, mas desesperadamente, regressar. O poeta alquimista tinha um sonho, entre tantos, e uma determinação que se traduziam na reunião do lado esquerdo da Sabedoria (ciência, raciocínio, especulação, intelecto) com o seu lado direito (conhecimento, intuição, misticismo, cabalística). Ser ou não ser capaz de o fazer era uma outra tarefa que nem sequer lhe devia importar demais, porque, lançados os dados e colocadas as bases, só era preciso que o futuro as fizesse

crescer, erguendo o sonho de ver a Língua Portuguesa espalhada por todo o mundo (o que está a acontecer a um ritmo, certamente, por ele previsto) e que solidifica a razão de ser de uma frase que se emprega no final de cada Sessão do Rito Português e que o Venerável Mestre transforma em dogma: A minha pátria é a Língua Portuguesa! Fernando Pessoa escreveu: “Não há homens salvadores. Não há Messias. O máximo que um homem pode ser é um estimulador de almas, um despertador de energias alheias.” E é isso que se faz em Maçonaria: despertar as almas e juntá-las através de uma egrégora de tal forma potente e forte que se transformem em elementos fundamentais para a edificação do Império do Espírito que há–de dominar o mundo. Não é possível ignorar o que o professor António Telmo escreveu sobre o poeta do

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Frei Manuel dos Reis. Visão de D. Afonso Henriques na Batalha de Ourique (c.1665), Óleo sobre painel. Museu Alberto Sampaio, Guimarães, Portugal.

espírito, sobre o homem do sonho acordado, no seu livro História Secreta de Portugal: “Fernando Pessoa foi o nosso primeiro poeta maçónico e toda a sua obra poética pode e deve ser interpretada como a expressão da viagem iniciática da alma num adepto que não se limita a cumprir os ritos e estudar o dogma, mas desse cumprimento e desse estudo tira todas as consequências nos vários planos de vivência do Ser.” Esta profecia do Quinto Império está imortalizada na Mensagem, no seu poema “O Quinto Império”: Triste de quem vive em casa, Contente com o seu lar, Sem que um sonho, no erguer de asa, Faça até mais rubra a brasa Da lareira a abandonar! Triste de quem é feliz! Vive porque a vida dura. Nada na alma lhe diz

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Mais que a lição da raiz Ter por vida a sepultura. Eras sobre eras se somem No tempo que em eras vem. Ser descontente é ser homem. Que as forças cegas se domem Pela visão que a alma tem! E assim, passados os quatro Tempos de ser quem sonhou, A Terra será teatro Do dia claro, que no atro Da erma noite começou. Grécia, Roma, Cristandade, Europa – os quatro se vão Para onde vai toda a idade. Quem vem viver a verdade Que morreu D. Sebastião?


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Carta do Grão Mestre Por Abílio Alagôa da Silva

A Soberana, firme nas suas convicções de abertura à sociedade de forma continuada, permanece apostada em dignificar a Maçonaria e prestigiar o bom nome dos Maçons. Orgulhosos de sermos a Nova Maçonaria Portuguesa estamos na primeira linha das melhores práticas da Maçonaria Universal e trabalhamos no Renascimento do ideal Maçónico com outras obediências internacionais, divulgando e destacando o nosso Rito Português por todo mundo lusófono, mundo nosso espalhado pelos quatro cantos do mundo, seja em África, na Ásia, na América ou onde haja uma afirmação da nossa portugalidade. Com o desconfinamento em curso reabrimos o nosso templo aos nossos trabalhos e retomamos os eventos de carácter cultural e artístico, de portas abertas para a sociedade e em prol das comunidades e do bem comum. O lastro histórico da nossa existência atesta a veracidade do que sempre nos propusemos fazer desde a nossa constituição. Também a egrégora que vivenciamos na Soberana nos ajudou a angariar e a operacionalizar, de forma discreta, o apoio a quem dele necessitou. Assim, a

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«Antevemos e acreditamos que o legado pandémico, apesar de duradouro, será o prenúncio de um mundo mais fraterno, mais preparado e mais sustentável.»

nossa esperança nunca foi abalada, nunca se cansou e nunca deixou que a descrença se apoderasse de nós. Antevemos e acreditamos que o legado pandémico, apesar de duradouro, será o prenúncio de um mundo mais fraterno, mais preparado e mais sustentável. A restauração da independência das nossas vidas, num novo paradigma universal face a este devastador vírus, poderá muito bem materializar o sonho do Quinto Império, o Império Português, o império espiritual do Espírito Santo. Meus irmãos, mantenhamos a nossa luz e façamos a nossa História, a História dos homens bons e de bons costumes!


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Traços de luso-brasilidade escrita por Ígor Lopes Jornalista, Escritor e Social Media entre Brasil e Portugal

“Sim, a construção da identidade luso-brasileira acontece diariamente e quem sai com maiores “regalias” em termos de protagonismo e força é a nossa língua portuguesa, tão bem defendida pelo seu público falante. É importante perceber que a língua portuguesa é extremamente valiosa e que este código linguístico, que conta com milhões de falantes em todo o mundo, é utilizado, trabalhado e serve de integração em países cuja língua oficial não é a mesma falada pelos lusófonos.”

palavras ditas . 28 .

Sim. Somos lusófonos! Falamos e comunicamos por meio de um mesmo código linguístico. Sentimos na alma o desafio de internacionalizar a língua portuguesa. Através das palavras em português, somos capazes de conjugar desejos, criar poemas, construir pontes, distinguir destinos e unir pensamentos. Pode ser ao estilo de Camões, de Pessoa, de Saramago, de Florbela Espanca ou sob o repto de Machado de Assis, de Guimarães Rosa, de Cecília Meireles, de Lima Barreto. Com ou sem acordo ortográfico, conseguimos perceber, entender os nossos anseios. Defendemos dogmas e nos sujeitamos à evolução natural da comunicação falada, escrita. A oralidade está no seio da nossa formação. Por ser natural do Rio de Janeiro, e por trazer no sangue as ambições de todo lusodescendente, defendo a ligação entre o país que me viu nascer, Brasil, e o chamado país de acolhimento, Portugal, onde estão as minhas raízes familiares. Abordo essa conexão Brasil-Portugal na execução da atividade jornalística, na investigação académica e nos projetos literários. É mais do que evidente que brasileiros e portugueses mantém laços históricos inegáveis, incontornáveis. Com o passar dos anos, esses dois povos uniram-se. A afetividade tornou-se no aspeto central dessa conexão. São um só povo, rodeado de história e aptidão por sentir o que são. E a língua portuguesa viabiliza esse cenário. Uma das formas mais bem-sucedidas para se defender e promover qualitativamente a ligação entre esses dois países acontece no campo afetivo, onde gerações procuram conexões humanas entre o seu passado e o presente da sua família. Nos dias


atuais, é necessária essa integração e é cada vez mais visível que o que esses lusodescendentes consideram existir move a razão desse grupo, ao qual chamamos “luso-brasileiro”. É caso para se dizer que existe um paradoxo intrínseco nesse sentimento íntimo que só se existe no peito de brasileiros e portugueses. Sim, a lusofonia continua viva! Os luso-brasileiros, que são os lusodescendentes que vivem no Brasil, interiorizaram um modo de vida próprio. A forma de pensar e de agir não é nem brasileira nem portuguesa, é, portanto, luso-brasileira. Formado por imigrantes portugueses no Brasil, naturais de Portugal, ou que obtiveram nacionalidade portuguesa, ou ainda os que mantém ligações históricas, afetivas ou familiares com Portugal, os luso-brasileiros construíram, ao logo dos anos, uma forma única de vivenciarem “as suas culturas”, que são hoje fruto dessa interação da influência dos meios. Não são nem de um lado nem do outro, são culturas e raízes luso-brasileiras. Essa influência, que possibilitou a existência um novo padrão, chegou à gastronomia, ao desporto, às tradições familiares, à música, ao entretenimento, à cultura, ao trabalho, às universidades, ao turismo, ao meio empresarial, à diáspora. Essa troca de experiências resultou na chamada “luso-brasilidade”, que se caracterizaria pela formação de um público, ou uma população, que vive e age em torno de padrões específicos caracterizados pela junção de aspetos culturais e sociais do Brasil e de Portugal. É sobretudo um modo de vida único, empírico. E esse traço, apesar de sensorial, e de ser ainda alvo de estudos, facilitou discussões e avanços em torno da luta contra a xenofobia, da minimização dos estereótipos de ambos os lados, da compreensão

por Marco Silva das leis migratórias, do desenvolvimento e adequação da diplomacia entre as duas nações, na promoção comercial da língua portuguesa, na valorização e defesa do bem-comum. “Não somos de lá, nem de cá”! Os luso-brasileiros, e, consequentemente, a luso-brasilidade, assumem traços muito próprios. Deixaram de ser apenas a comunidade portuguesa no Brasil. Estão integrados e interagem como se o oceano Atlântico fosse apenas uma pequena parcela de fronteira natural que os separa. Há aí uma clara valorização dos lusodescentes na América do Sul, e por que não no mundo? Sim, a construção da identidade luso-brasileira acontece diariamente e quem sai com maiores “regalias” em termos de protagonismo e força é a nossa língua portuguesa, tão bem defendida pelo seu público falante. É importante perceber que a língua portuguesa é extremamente valiosa e que este código linguístico, que conta com milhões de falantes em todo o mundo, é utilizado, trabalhado e serve de integração em países cuja língua oficial não é a mesma falada pelos lusófonos. Ah, sim. Somos lusófonos!

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Uma identidade plural por Fernando Pereira “Tive sempre, desde criança, a necessidade de aumentar o mundo com personalidades fictícias, sonhos meus rigorosamente construídos, visionados com clareza fotográfica, compreendidos por dentro das suas almas. (...) Esta tendência não passou com a infância, desenvolveu-se na adolescência, radicou-se com o crescimento dela, tornou-se finalmente a forma natural do meu espírito. Hoje já não tenho personalidade: quanto em mim haja de humano, eu o dividi entre os autores vários de cuja obra tenho sido o executor. Sou hoje o ponto de reunião de uma pequena humanidade só minha.” Fernando Pessoa

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As crises identitárias são muitas vezes como os sismos de baixa magnitude em terras vulcânicas. Passam por nós e nós por elas através dos anos, sem quase as sentirmos, muitas vezes até como se nunca nos tivéssemos cruzado, de tão inócuas e subtis que se revelam. Fazem afinal parte de um natural processo de crescimento, de uma insegurança latente e quase pueril, que permanece inclusive na idade adulta, em todo o seu percurso e ao longo da vida. Estas pequenas questões da identidade, acompanham-nos sempre, para sempre e nas nossas mais diversas circunstâncias. Vejamos, por exemplo, aquele curioso fenómeno provocado em nós pela publicidade ou pelos mass media e que nos leva, em perfeito automatismo, impulsivamente, muitas vezes compulsivamente, a desejar e adquirir coisas que não necessitamos. Objetos tantas vezes inúteis, dispensáveis ou supérfluos, mas que subconscientemente nos fazem sentir outra pessoa. O que fazemos, enfim, para transmitir de nós uma ideia de maior sucesso, um estatuto que não nos pertence, uma imagem que não corresponde à real essência do que somos. Quantas figurinhas criamos, quantas personagens vamos fabricando, projetando a cada dia nos outros e que, sem pedir licença, usurpam no fim a nossa verdadeira identidade? Quantas vezes nos despimos de nós, abdicamos de nós, para sermos invariavelmente uma outra pessoa qualquer? E que bom deve ser, em certos momentos da vida, “possuir” um carro de Ronaldo, o perfume de Banderas ou mesmo até o café e o charme de Sir George Clooney. De repente, somos pessoas importantes, reconhecidas socialmente a ganhamos confiança para enfrentar o mundo. Interessante fenómeno este, que se traduz afinal num jogo inocente, uma dança subtil entre


egos e alter-egos, cuja consequência é uma sequência inequívoca de equívocos de personalidade. Fazendo assim e muito bem, jus ao famoso “speech” de William Shakespeare: “all the world’s a stage, and all the men and women merely players.” Coisas do mundo e de todos os mundos, em todos os tempos. Recordo por isso que, quando há décadas atrás iniciei as minhas deambulações pelo mundo da música e do espetáculo, enfrentei então alguns acrescidos problemas de identidade. Como se não bastassem os naturalmente resultantes do meu próprio crescimento e desenvolvimento enquanto persona, numa sociedade em grande transformação e cada vez mais exigente, tinha agora que lidar também com as questões de identidade derivadas da minha atividade profissional, enquanto cantor e performer. Que fazer, que caminho seguir, que decisões artísticas tomar, quando aparentemente se possui um aparelho vocal que, segundo os entendidos e a experiência vivida, dava para cantar tudo e nos registos mais incríveis? Depois de tantos anos, desde criança, rigorosamente a brincar e a divertir-me com a voz, descubro de repente que as minhas apresentações levam milhares de pessoas ao delírio, que tenho agora uma carreira promissora pela frente e a enorme responsabilidade de me encontrar, em essência e enquanto artista, no meio daquela multidão de vozes e infinitas possibilidades musicais. Deveria apostar em temas originais e ser mais um cantor convencional, a uma só voz? Deveria explorar o aparelho vocal único que Deus me deu e elevá-lo a todas as proezas possíveis ou impossíveis? Onde estava afinal a minha verdadeira identidade enquanto artista? E tem uma identidade artística que se definir irremediavelmente pela singularidade? Então e se eu fosse um cantor plural? Porque não poderia eu ser afinal isso tudo e cantar tudo, declamar, representar, imitar em grande estilo todas as vozes do mundo? Numa sociedade em que todas as pessoas procuram “imitar” alguém, quase sempre dissimuladamente, pelos motivos mais fúteis ou no mínimo discutíveis, eu podia, assumidamente, fazer da imitação de grandes cantores o principal ingrediente de um espetáculo de excelência, um produto artístico absolutamente único e inimitável. E fazer também, humildemente, aquilo que mais gostava, que era divertir as pessoas, levar alegria e felicidade às pessoas. Citando P. T. Barnum, a incrível personagem de Hugh Jackman em The Greatest Showman: ”the noblest art is that of making others happy”. E eram já tantas as pessoas felizes e a divertir-se com esta arte original...

por Marco Silva Entendi então definitivamente, que a minha identidade não se caracterizava pela singularidade. A minha identidade era toda essa pluralidade. E poderia depois fazer o que quisesse com o aparelho vocal. Não só criar o tal “espetáculo das vozes”, mas também usar essa capacidade especial de mudar e moldar a voz, para cantar originais em vários registos diferentes, com várias personalidades vocais diferentes, como se fossem de facto cantores diferentes a interpretar cada um dos temas. “Sê plural como o Universo”, exortou-nos Fernando Pessoa. E se Pessoa materializou o conceito de heterónimo, com a genialidade da sua escrita, inventando outros “Pessoas”, eu poderia então materializar o conceito de “heterófono” criando as minhas diferentes fonias. Confesso que volvidos tantos anos, vivendo estas crises de identidade vocal, sou ainda às vezes assaltado por dúvidas existenciais. Penso que se trata de algo natural, quando num exercício quase esquizofrénico, se guardam assim todas as “vozes” e sons na cabeça. Mas como diria o compositor Raul Seixas: “prefiro ser uma metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo…” E o nosso caminho sempre se faz caminhando. No final, devemos pôr de lado todos os arquétipos e estereótipos, sejam eles sociais ou culturais, porque a verdadeira identidade somos nós, em cada um de nós. A minha identidade sou Eu!

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Destaque

Mandela vincava a quem o escutava que não aceitaria ser libertado em Pretória ou Joanesburgo, como pretendia o governo, mas sim a pé e daquela prisão, nas proximidades de Cidade do Cabo, onde ao entrar, anos antes, o então comandante lhe dissera que nunca dali sairia vivo.

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O Atropelar de Mandela! por António Mateus

Faltavam poucas semanas para ser libertado, após 27 anos de cadeia, de uma sentença de prisão perpétua por ter liderado o lançamento da luta armada contra o sistema de apartheid na África do Sul. No pátio da residência, para onde fora transferido na prisão de Victor Verster, o carcereiro informou-o de que iria poder, pela primeira vez em quase três décadas, contactar com crianças. E logo com os netos que nunca conhecera. A cara de Nelson Mandela arredondou-se num sorriso de orelha a orelha. E, por uma vez, apressou os cumprimentos aos adultos, para se ir apresentar aos meninos, tentando sem muito sucesso quebrar o gelo dos jovens, cujas atenções se grudavam na mais de uma dúzia de polícias à civil, corpulentos, que enquadravam a visita a céu aberto. Mandela repôs a atenção nos mais velhos que aguardavam em silêncio. Depois de cumprimentos e de galanteios, rodeou-se de um pequeno grupo, trocou com eles algumas palavras e convidou-os a sentarem-se sob um dos sombreiros, onde sabia estarem embutidos microfones de escuta dos serviços secretos. O tema era a dignidade. Mesmo na hora rara de acesso de um preso de alta segurança a amigos e familiares, a prioridade era sempre o caminho e o sentido da liderança. De uma liderança servidora. Construtora de pontes assentes em pilares sólidos. Ao falar com os seus companheiros, próximo dos microfones (mal) escondidos dos serviços secretos, induzia nuns e noutros uma mensagem de valorização da dignidade, como terreno comum suprarracial.

A cara de “Madiba” (seu nome de clã, pelo qual era tratado carinhosamente) pareceu petrificar-se com as sobrancelhas franzidas e os lábios apertados numa linha estreita.

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Mandela vincava a quem o escutava que não aceitaria ser libertado em Pretória ou Joanesburgo, como pretendia o governo, mas sim a pé e daquela prisão, nas proximidades de Cidade do Cabo, onde ao entrar, anos antes, o então comandante lhe dissera que nunca dali sairia vivo. O seu era por isso um gesto – explicava ele – não de despeito ou de provocação, mas de dignidade. A bandeira que um ser humano nunca deve ceder, nem retirar aos outros. De repente calou-se, com os olhos fixos no fundo do quintal onde netos e afilhados gracejavam ruidosamente em língua Xhosa e alguns mimetizavam a postura e movimentos dos polícias à civil, vigilantes do encontro. A cara de “Madiba” (seu nome de clã, pelo qual era tratado carinhosamente) pareceu petrificar-se com as sobrancelhas franzidas e os lábios apertados numa linha estreita. Pediu um momento aos que o rodeavam e dirigiu-se, em passo célere, aos meninos que minutos antes lhe tinham acendido um sorriso e o subtraíam agora: - Escutei bem aquilo que me chegou aos ouvidos? – perguntou aos jovens, visivelmente surpreendidos e incrédulos com o raspanete do ancião, que o tinham aprendido a encarar como mito-vivo. - Vocês estão mesmo a faltar ao respeito e a ridicularizar aqueles senhores por serem polícias e brancos? – insistiu na sua língua materna, fora da compreensão dos agentes Um dos interpelados, mais desenvolto, ainda tentou justificar a situação; - Tata (“avô”, em Xhosa), são da raça que te prendeu e ainda por cima polícias, os que perseguem, torturam e matam os nossos…”. Mandela crispou ainda mais os lábios antes de tocar-lhe na cabeça com a palma da mão virada

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para baixo e unir num círculo, desenhado com o indicador da outra mão, o grupo de meninos: - Parte do que me dizes é verdade. Mas parte também é falso. Eu fui preso. Outros torturados e mortos. Mas fômo-lo por um sistema. E não por uma raça qualquer. O sistema foi defendido e combatido por gente de todas as raças, incluindo brancos, que foram por isso acusados de trair os “seus”. - Só que eles entenderam que os “seus” somos todos nós. E não os brancos. Ou os indianos. Ou os asiáticos ou os mestiços. Da mesma forma que houve negros que apoiaram o sistema de apartheid. Por convencer, o mesmo jovem insistiu: - Esses eram os traidores Tata! Um dia trataremos deles! -prometeu, arrancando gestos de anuência dos outros. Mandela abanou a cabeça em reprovação e dirigiu-se ao grupo de meninos: - Foi para isso que estou preso há 27 anos? Para sermos os selvagens em que somos descritos pelos justificadores do apartheid? Ou o caminho não será mostrarmos que em circunstância alguma baixamos nós próprios a fasquia da nossa dignidade, portando-nos como selvagens? - Sim há polícias maus, como os há bons, que guardam o nosso sono. Insultá-los como grupo só dá razão aos que nos vêem e tratam como sub-humanos. Não se constroem pontes atirando tijolos, mas procurando ligá-los num caminho comum. Tal como aprendera com o seu pai biológico, o chefe Mphakanyiswa Gadla Mandela, e depois, da morte deste, com o adoptivo, rei dos Tembos, Jongintaba Dalindyebo, a união da nação passava pela conciliação de expectativas, receios e pulsões emocionais muitas vezes opostas. E, principalmente, de saber escutar sem rejeitar e só depois disso avançar a sua própria opinião.


Quando, nos dias que correm, se agravam as clivagens e o apontar de dedos, de cariz racial, género e religioso e se procura rescrever a História, sob palas cerebrais de cariz ideológico ou “politicamente correctas” mas de profundidade asinina (e interpretando escritos antigos à letra dos nossos dias e não do tempo em que foram redigidos) apercebemo-nos da fragilidade da herança de Mandela. E se o esclavagismo, praticado há milénios por todas as raças em todos os continentes, foi erradicado por decretos, a xenofobia e o racismo, ainda recorrentes em todos os continentes e praticados por pessoas de todas as raças, por maiorias sobre minorias, só serão vencidos sem “nós” e os “outros”. Erradicando as ervas daninhas, os discursos de ódio e de vitimização. De todos. Sobre todos. Vendo SERES HUMANOS, onde alguns vêem raças. Nota prévia: Este texto é escrito por vontade expressa do autor à revelia do Acordo Ortográfico.

António Mateus é jornalista e escritor, autor de vários livros: “MANDELA: A CONSTRUÇÃO DE UM HOMEM”, Oficina do Livro “MANDELA: O REBELDE EXEMPLAR, Editora Planeta “OLHAR O MUNDO”, Editora Marcador “SELVA URBANA”, Editora Colibri “GENTE VESTIDA DE PELES DIFERENTES”, Editora Ulmeiro “NADA É NUNCA APENAS AQUILO QUE PARECE, para gente de todas as idades com criança lá dentro”, Edição de autor.

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Destaque

Cry Freedom

Liberdade… alegre, nostálgica, reprimida, conquistada, libertina, farta. Seja como for o conceito em si redunda sobre si mesmo, tão amplo, tão vasto e, ao mesmo tempo, tão pessoal, tão individual, tão “meu porque não quero que seja nosso”. Nestas páginas retratamos várias reflexões: o exemplo de Madiba, da vida de cárcere à conquista do White Louis por uns dias de fuga a este confinamento que nos amordaça. Qual das liberdades vale mais? Nenhuma mais do que a outra. Cada uma vale por si, para nós, no momento em que se atravessou na nossa vida. Não confundamos sofrimento ou dor com liberdade. Vivem muitas vezes associados mas não são elementos de pertença. Carregados estamos de arautos da desgraça, de apropriadores egoístas duma liberdade que querem que seja lei, sempre na foz da dor e do sofrimento, da árdua conquista, quando tantas vezes existem outras, também elas liberdades, tão ou mais importantes. Por isso mesmo, nos extremos, aqui estão alguns momentos de reflexão estendidos nestas páginas sobre essa mesma liberdade. Não a mesquinha de alguns mas a nossa, de todos, mulheres e homens bons. Seja ela qual for, será sempre LIBERDADE.

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Essa Palavra Saudade... por Fernando Correia

(…) Essa palavra saudade Aquele que a inventou A primeira vez que a disse Com certeza que chorou (…) Saudade é um sentimento, talvez intraduzível, e é uma das palavras mais bonitas da língua portuguesa, porque sendo amarga é doce; porque sendo triste é amor; porque sendo lágrima é sorriso; porque sendo passado é esperança. Tenho saudades… É tão bonito sentir vontade de dizer isto sobre alguém que está longe do coração; sobre a terra perdida e distante; sobre os dias antigos da vida a crescer; sobre o primeiro beijo nos primeiros lábios; sobre o tempo que se perdeu na passagem do tempo; sobre ti, meu Irmão, que fizeste do longe, perto; e transformaste a noite escura, num dia claro; sobre ti, meu filho, que foste a luz do Sol a rasgar as nuvens da minha solidão; sobre a mulher que me acordou para o tempo novo da minha vida; sobre ti, mãe, que te foste dos meus olhos, sempre presa à minha alma… Tenho saudades do tempo em que passeava contigo no jardim das lindas flores e me espreguiçava ao Sol no promontório da nossa esperança e me rebolava na areia daquela nova praia das descobertas em que vivíamos.

Tenho saudades das tuas mãos, dos teus lábios maduros, do teu ventre rasgado em sementes, do teu rosto, da tua pele, dos teus seios do tamanho dos meus desejos… ESSA PALAVRA LIBERDADE… Liberdade, onde estás? Quem te demora? Quem faz que o teu influxo em nós não caia? Porque (triste de mim) porque não raia Já na esfera de Lísia a tua aurora? Só não tenho saudades do passado sofrido entre a esperança e o desespero; entre o medo e a ousadia; entre as conversas clandestinas dos que desejavam a Liberdade para nos soltarem do jugo da maldade e da violência e as lágrimas de minha mãe choradas à porta da prisão pelo meu pai que só ouvia o vento e o barulho do mar e cravava as unhas na parede para riscar cada dia do seu calendário de opressão. Vivi entre a saudade e a esperança para não voltar a sofrer a morte lenta dos meus dias futuros. Agora voltei a estar acordado, desejando que a Liberdade não se transforme, de novo, em Saudade!

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A liberdade começa por ser zero! por António Pinto Basto

Começo por tentar desmistificar uma coisa que, repetidamente se diz, à laia daquelas mentiras que tanto se repetem que até parece que se tornam verdades. Refiro-me àquela enorme falácia de que “Todos nascemos livres!”. Que total mentira! Nós nem escolhemos nascer! Não sabemos quando, como ou onde nascemos. Nem sequer sabemos o que é isso de nascer. Não temos liberdade para escolher os nossos pais, escolher a nossa nacionalidade, a primeira língua que aprendemos, o menu das nossas refeições, etc., etc. A liberdade começa por ser zero! À medida que se vai formando a nossa consciência, aí sim a liberdade vai começando a despontar em nós e, tal como tantos outros conceitos, vai-se desenvolvendo. Nascemos envolvidos nessa tal jaula e só começamos a ser livres quando descobrimos que a jaula é feita de pensamentos. E é claro que esse conceito de liberdade não se desenvolve igualmente para todas as pessoas. O conceito de liberdade não é fixo, não é objetivo, não é determinado por ninguém, não é imposto o que, neste caso, estaria desde logo em total contradição. Portanto, parece-me que resulta a liberdade ser qualquer coisa pessoal, ligada à sensibilidade. Pode, até, acontecer, isto como exemplo, que alguém se sinta mais feliz, sob as ordens de alguém, do que numa total liberdade tal como mais comummente a consideramos. Gandhi disse mesmo que existem homens presos na rua e livres na prisão. É uma questão de consciência. E a liberdade deve estar fundamentalmente associada à felicidade.

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Li, algures, que a maior aspiração do ser humano é a liberdade, seguida de felicidade. E poderei citar o exemplo de um monge que usou a sua liberdade para abdicar de todos os prazeres do corpo e do espírito, para abraçar somente a Deus. E será que lhe falta algo para ser feliz? A liberdade que não tenha um compromisso com a verdade e com a responsabilidade torna-se libertinagem. Fazer tudo o que se quer não é ser livre, é ser louco! Tal como tantas outras coisas, a liberdade parece, então, que tem limites. Ao optarmos por um direito - temos essa liberdade - há que ver qual é o dever a que ele nos obriga. Uso, propositadamente, o termo “obrigar”, por parecer que ele é contra a liberdade. Mas não é. Está associado. Ao usarmos a nossa liberdade estamos obrigados a usá-la devidamente e a cumprir as determinações que ela nos implicar. Manuel de Oliveira disse: “Hoje, a liberdade é tida como um direito absoluto. Mas não há liberdade absoluta. A liberdade não é, sequer, um direito. É, bem mais, um dever. Um dever que nos obriga a um respeito pelo próximo!” E podemos recusar liberdades, também. Como disse Vergílio Ferreira: “Diz NÃO à liberdade que te oferecem, se ela é só a liberdade dos que ta querem oferecer. Porque a liberdade que é tua, não passa pelo decreto arbitrário dos outros.” O que desejo para mim e para todos os meus queridos irmãos é que a nossa liberdade nos saiba fazer afastar de tudo o que nos faz mal.


Uma Liberdade diferente por White Louis

Fevereiro 2021 em Confinamento (outra vez). Teletrabalho (outra vez). Há dias melhores, outros nem por isso. Se fosse verão, o sol ajudava-nos com a alegria dos seus raios e pelos bons passeios no final do dia. Mas o tempo atual, chuva e céu cinzento, afeta-nos! Nós somos um povo de “Sol”. Em Fevereiro, tive que me deslocar à ilha da Madeira pois há tarefas que não são possíveis online. Levei comigo 4 pequenos fracos de álcool gel e umas 20 máscaras (nunca se sabe!). Para contextualizar cronologicamente foi na altura do Carnaval (lembram-se? Não aconteceu nada, não foi?) Sem pensar muito, ao logo da estadia fui verificando aos poucos que estava tudo aberto até às 17h00/18h00 – sim, o comércio estava todo aberto, as lojas, os restaurantes, as esplanadas... uau! No primeiro dia, já tinha ido a um dos Picos mais altos da ilha para ver os restos de neve (na Madeira além do sol constante também aparece a neve!). Lembro-me de um dia, ao final da tarde, depois de ter cumprido com as responsabilidades agendadas, estava eu numa esplanada (com muito poucas pessoas, de preferência) a beber uma cerveja e pensar – “Epá, há quanto tempo não fazia isto! Aqui é possível! Eles (os madeirenses) nem se apercebem da Liberdade que têm!”. Dias depois, com sol, ainda consegui ir à praia e dar um mergulho. Sim, em Fevereiro as praias estavam

abertas e a temperatura da água é mais quente do que em Portugal Continental (ainda bem!). Pensamento constante: “Como é possível, apanhei um avião e uma hora e meia depois tenho esta “Liberdade!”. Em conversas com os locais, eu terminava sempre com a mesma expressão: “Vocês nem sabem quanto vale esta Liberdade!” (parecia que estava num filme, gravado no dia seguinte após o 25 de Abril de 1974). Comecei a fazer algumas analogias com algumas memórias de quando eu era mais novo e viva em Angola (antes de 1975). Lá, também se falava a Língua de Camões e as mulheres tinham “Liberdade” – elas podiam usar saias curtas, camisas de alças, ir aos cafés sozinhas, fumar … na Metrópole era tudo diferente. Liberdade - por vezes temos algo precioso mas não o valorizamos e até desrespeitamos… Simbolicamente, costumamos dizer que é preciso ver a Escuridão da noite para dar valor à Luz do dia. Nestes tempos, é preciso conhecer as limitações do confinamento para dar sentido à amplitude da Liberdade.

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templo interior

A História do Capuchinho Vermelho e a analogia com a Maçonaria por White Louis “Até que este texto poderia ser um artigo vulgar. Ou, quiçá, uma deliciosa crónica lobo-antuniana. Mas na soberana natureza cosmogónica do ser, aliada a uma imperativa experiência divina, é inevitável navegar o corpo e a alma para uma redação intimista.” A aprendizagem, por parte dos maçons, é constituída por lendas, por alegorias, por símbolos e, no final, a sua interpretação conjunta. A lenda não serve apenas para contar uma história mas também para transmitir uma ideia filosófica e uma moral. O mais importante são os Princípios, os símbolos são meios para não nos esquecermos, são expressões visíveis da ideia filosófica que queremos transmitir. Vou começar por fazer um breve resumo da história do Capuchinho Vermelho: a mãe pede à filha - o Capuchinho Vermelho - que leve comida para a avô que mora longe e alerta-a para a menina ir pelo caminho indicado e para não falar com estranhos. E a analogia começa agora! Para a minha reflexão vou utilizar as ferramentas simbólicas do Aprendiz Maçom (1º Grau) e iniciar pelo seu lado, pela Coluna do Norte (mais “escura”). Quando entramos nesta Arte Real somos todos Homens Livres e de Bons Costumes, mas os Aprendizes têm ainda pouca sabedoria, têm ainda muito que aprender (interiormente). Apenas

“Também há outra interpretação importante que se pode retirar desta história: o elemento de Vida universal - o feminino - descrito pelas três fases: a avó, a mãe e a filha.” . 40 .

conseguem ver a Luz da Lua - os Aprendizes são como uma pedra bruta, ou seja, uma pedra com Imperfeições. As nossas imperfeições são, em Loja, trabalhadas espiritualmente para sermos melhores do que no dia de ontem. Com o maço e o cinzel, vamos trabalhar na nossa pedra bruta (no nosso interior), iremos desbastar as imperfeições que há em nós. O maço pode representar a força bruta e o cinzel a inteligência – ambas irão trabalhar em sintonia, vamos usá-las com equilíbrio. Em Loja, recebemos também a Luz que vem do Oriente via Venerável Mestre. O compasso no Altar dos Juramentos, representando a retidão, ajuda-nos para os dias seguintes. Para os Aprendizes, é a matéria que sobrepõe o espírito. Com o nosso trabalho interior, com a nossa presença em sessões em Loja, com a busca de Sabedoria e as apresentações de Trabalhos em Loja, vamos transformando a pedra bruta imperfeita numa em pedra mais cúbica - é essencialmente um trabalho interior.


Enrique Meseguer por Pixabay

Um dia, os Aprendizes irão passar para a coluna do Sul, onde há Luz, mais Sabedoria, terão menos imperfeições mas o trabalho interior nunca cessa. Quando entramos em Loja, há uma vivência maçónica que começa e é intransmissível. Mas também é um “banho” de simbologia. A energia que se cria numa Cadeia de União é uma vivência espiritual, atingindo um clímax de energias criadas por todos, uma Força Espiritual, a Egrégora. O pavimento mosaico, oriundo de civilizações antigas e trazidas para a Maçonaria como representação da dualidade, dos opostos - preto/branco, bem /mal, virtude/vício, matéria/espírito - que é preciso cruzar com a Escuridão, com as Trevas, para se compreender a Luz. No nosso dia-a-dia surgem dilemas, problemas e que temos que resolver, temos de decidir ir pela “esquerda ou direita” ou “faço isto ou aquilo”. As ferramentas que foram transmitidas aos Aprendizes e por eles já utilizadas, devem contribuir para uma tomada de decisão mais ponderada, mais adequada.

Simbolicamente são as ferramentas - nomeadamente o maço e cinzel - que utilizamos para o nosso aperfeiçoamento e que nos permite diferenciarmo-nos dos outros. Um Maçom poderá “detetar” outro Irmão pelos seus comportamentos, atos e exemplo. De notar que também existem profanos (não Maçons) que possuem um carácter exemplar e serem um bom modelo para a sociedade. Voltando à História do Capuchinho Vermelho… a menina teve que decidir, foi uma opção de escolha, ir pelo caminho indicado pela mãe - que era o caminho mais longo mas seguro na perspetiva da sua mãe - ou ir por outro caminho, pela floresta - mais rápido e eventualmente mais desafiante ou aventureiro. Sabemos que o Capuchinho Vermelho não recebeu a Luz que provém do Oriente, muito menos utilizou as ferramentas de um Aprendiz Maçom. A floresta representa simbolicamente os perigos da Vida que surgem no nosso percurso e na qual temos que tomar decisões, resolver e/ou evitar esses perigos.

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Tumisu por Pixabay

Nesta Ordem Iniciática quando olhamos para o espelho vemos refletida a nossa imagem como “o nosso principal inimigo”. Na História do Capuchinho Vermelho, o reflexo que poderíamos ver no espelho seria o Lobo – olhávamos para o espelho e apenas víamos uma imagem do Lobo (o nosso principal inimigo, o Lobo, somos nós próprios). Este Lobo seria como o interior do indivíduo numa fase bruta, como uma pedra bruta à espera de ser trabalhada. Com a Luz que vamos recebendo ao longo do percurso Maçónico, passamos de uma pedra bruta - as nossas imperfeições - para uma pedra mais cúbica - com menos imperfeições. Este novo patamar corresponde ao Lenhador que mata o Lobo - simbolicamente, o nosso estado inicial, cheio de imperfeições. O Lenhador representa uma versão melhorada de nós próprios, uma pedra mais polida, podendo representar a Justiça. Na Maçonaria, as lendas e alegorias, transmitem também uma moralidade. O mesmo acontece com

a história do Capuchinho Vermelho: “Ó filha, faz o que eu digo e não fales com estranhos…” – pode haver consequências desagradáveis para quem não obedece à mãe. Também há outra interpretação importante que se pode retirar desta história: o elemento de Vida universal - o feminino - descrito pelas três fases: a avó, a mãe e a filha. As cores também representam uma particularidade nesta história: o vermelho representando a emoção e o branco como a pureza espiritual e a inocência. As decisões nas nossas Vidas são reflexo da quantidade de Luz que recebermos. White Louis Mestre Maçom R:. L:. Alexandre Soares dos Santos

“Na História do Capuchinho Vermelho, o reflexo que poderíamos ver no espelho seria o Lobo – olhávamos para o espelho e apenas víamos uma imagem do Lobo (o nosso principal inimigo, o Lobo, somos nós próprios). Este Lobo seria como o interior do indivíduo numa fase bruta, como uma pedra bruta à espera de ser trabalhada.” . 42 .


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templo interior

Bestiário Maçónico O Dragão por LMB “São Jorge representa a mente e a inteligência do Homem. Através da ação justa e perfeita da mente humana, pelo domínio absoluto e total controlo sobre as emoções, representadas aqui pelo cavalo, subjuga à sua vontade o poder carnal, o vício e a impulsividade dos homens, representadas pela besta, para que cada um seja a melhor versão de si próprio. No fundo, o Dragão é visto como algo perigoso e temível que poucos ou nenhuns são capazes de enfrentar.” O Dragão, animal mitológico de morfologia serpentínea, que está presente um pouco por todo o mundo na cultura de diversos povos, é o guardião de tesouros e fortunas sem fim e também, no imaginário medieval europeu, o guardião de grutas onde esconde uma bela princesa indefesa. O Dragão é também comumente associado à figura de São Jorge, onde este, montado num cavalo, trespassa o seu corpo animal com a sua lança. E é nesta imagem clássica de São Jorge, o Santo Guerreiro, que está representada a luta interior de cada um de nós. São Jorge representa a mente e a inteligência do Homem. Através da ação justa e perfeita da mente humana, pelo domínio absoluto e total controlo sobre as emoções, representadas aqui pelo cavalo, subjuga à sua vontade o poder carnal, o vício e a impulsividade dos homens, representadas pela besta, para que cada um seja a melhor versão de si próprio. No fundo, o Dragão é visto como algo perigoso e temível que poucos ou nenhuns são capazes de enfrentar.

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Parece que a imagem do Dragão foi usada no passado como forma de inibição, castração e até mesmo doutrinação. Através da imagem mitológica da besta, besta essa que nunca ninguém chegou, de facto, a ver, criada na mente dos homens, séculos após séculos, criaram-se “ovelhas de rebanho”, onde o medo e o receio inibiam toda e qualquer iniciativa individual daqueles que queriam algo mais para as suas vidas. Como ainda se faz hoje em dia às crianças. Quando os pais não querem que elas vão para um determinado local, diz-se-lhes que ali mora o “bicho papão”, grava-se-lhes na memória que algo de muito mau existe em determinado local. Embora todos nós saibamos que essa ameaça não é real, numa mente pouco desenvolvida ou pouco culta, essa ameaça fica bem presente. Ora, este mito criado pelo homem tornou-se realidade na cultura dos nossos antepassados. A ignorância é a melhor arma daqueles que querem controlar as massas e não há melhor forma de o fazer do que criar a imagem de que existe um monstro à solta. Assim, o povo limitar-se-á a fazer


Artista - Gustave Moreaux Título - Saint-Georges et le dragon Data - 1889/90 Técnica - Óleo em tela Colecção - National Gallery, London

o seu quotidiano, a viver na miséria e a ser mal ressarcido pelo seu trabalho. Todo aquele que desejasse partir em busca de uma vida melhor teria que estar preparado para o encontro com o Dragão, encontro esse que seria provavelmente mortal. Quantas vezes os nossos mentores, pais, avós ou até mesmo representantes do Estado, como, por exemplo, professores ou educadores, tiveram parte importante na formatação do nosso ser e na castração dos nossos sonhos? Gostaria de partilhar convosco um poema de Carlos Tê que Rui Veloso usou para compor uma música que é o exemplo perfeito daquilo que acabo de dizer: Andava eu na quarta classe e fiz uma redacção sobre o que eu queria ser um dia quando crescesse Quero ser um marinheiro, sulcar o azul do mar vaguear de porto em porto até um dia me cansar quero ser um saltimbanco, saber truques e cantigas ser um dos que sobe ao palco e encanta as raparigas

A professora, que simboliza o preconceito dos nossos mentores, com a imagem que eles próprios possuem sobre o que deve ser o futuro dos outros, à sua imagem ou à imagem de um determinado ideal político, não permitindo que alguém se emancipe, toma a seguinte atitude: A sessôra chamou-me ao quadro e deixou-me descomposto Ò menino atolambado, que gracinha de mau gosto A criança, após ter percebido que o que estava a sonhar e a idealizar para o seu futuro era completamente impossível e desajustado, responde: Lá fiz outra redacção, quero ser um funcionário ser zeloso, ter patrão, deitar cedo e ter horário ser um barquinho apagado sem prazer em navegar humilde, bem comportado, sem fazer ondas no mar

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Quadro de Peter Rubens no Museu do Prado

A professora, agora satisfeita com o resultado da doutrinação que impôs a este aluno, premeia-o. A criança explica a forma como foi premiada: A sessôra bateu palmas e deu-me muitos louvores apontou-me como exemplo e passou-me com quinze valores Esta forma de doutrinação é amplamente combatida e desconstruída pela Maçonaria. A Maçonaria abre os olhos e a mente dos seus obreiros para uma nova realidade, bem diferente daquela que os poderes instalados querem que o povo acredite e se subjugue. Os poderes instalados sabem que a Maçonaria irá fazer crescer um São Jorge dentro de cada um de nós, e que, com o tempo, esse São Jorge irá aprender a dominar o Cavalo. Sabe também que inevitavelmente São Jorge irá acabar por enfrentar o Dragão e, desta vez, bem preparado, com a mente bem aberta ao conhecimento e a novos horizontes,

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o desfecho é-lhe muito favorável. Deixemos que cresça um “São Jorge” dentro de cada um de nós para que possamos vencer os dragões que nos vão surgindo ao longo do nosso caminho. Tomemos como grande exemplo os nossos antepassados que, com as suas almas a transbordar de medo - medo esse criado por contos e lendas sobre monstros marinhos e anseios criados por tantas outras adversidades e incertezas que poderiam surgir no seu caminho – e, ainda assim, fizeram-se ao mar em busca de um futuro melhor. E que futuro esse que tanto dignificou a nossa Pátria. LMB Aprendiz Maçom R:. L:. Alexandre Soares dos Santos


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O que é ser Maçom? por Fernando Correia

“Se o Ser Humano, que quer fazer parte de uma Ordem Maçónica, não for capaz de entender e cumprir estas regras, não pode ser maçom, por mais que o deseje.”

Não sei se algum de vós já fez a pergunta e, se a fez, se já encontrou a resposta adequada. O que é ser maçom? Tentarei falar um pouco sobre esta questão, importante, decisiva e determinante. Ser maçom é ser um bom Homem, um bom Ser humano, à procura de ser melhor e ansioso por encontrar o caminho da Luz, o caminho espiritual, o caminho da paz interior, o fazer parte do exército dos sentidos, onde as armas são a fraternidade, a concórdia, a igualdade, a paz, a liberdade, o amor e a lealdade. Não é fácil reunir todas estas vontades. E, por isso, é lícito afirmar que não é maçom quem quer, mas sim quem tem condições para o ser. Porquê? Porque mesmo tendo vontade de ser mais perfeito, há muito Ser Humano que não o consegue. Por dezenas de razões, à frente das quais estão os hábitos de vida, a cultura, a educação, os sentimentos, a vontade, a consciência, o desapego a tudo o que tenha a ver com o mistério da existência,

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a desvalorização da natureza, o alheamento do próximo, o dinheiro, a forma como surgimos do nada para enfrentarmos o TUDO e o TODO. Por outro lado, é fundamental a qualquer pessoa que queira ser maçom, acreditar na importância do Universo e perceber que existe um Grande Arquitecto do Universo que, de uma outra forma ou numa outra cultura, pode ser definido como Deus, que coloca em nós todos os poderes que ele próprio tem, com excepção da capacidade de resolver, de decidir, de criar. É o GADU que diz como dever ser feito, para que o Homem faça; que ensina a doutrina, para que o Homem a cumpra; que mostra o caminho, para que o Homem o percorra; que define a vida, para que o Homem a viva; que mostra a importância do espírito, para que o Homem o assuma. Se o Ser Humano, que quer fazer parte de uma Ordem Maçónica, não for capaz de entender e cumprir estas regras, não pode ser maçom, por mais que o deseje.


Senão vejamos: - O maçom tem todo o direito de pertencer ou de apoiar um partido político. Mas não tem o direito de levar para o interior do Templo essa preferência. Porque, no interior do Templo, a política que conta é a da fraternidade. - O maçom é um ser livre. Mas, no interior do Templo, a liberdade fundamental que tem é para amar o próximo. - O maçom pode ter uma religião. No interior do templo a sua religião obedece ao GADU. - O maçom pode ser um homem com muito dinheiro. Mas, no interior do Templo, o seu dinheiro só serve para ajudar um irmão que precise ou para ajudar a Ordem a que pertence. - O maçom pode ser um homem culto, com formação académica. Mas no interior do Templo é igual aos outros irmãos e não pode querer ser mais do que eles por essa razão. - O maçom tem todo o direito a ter opinião. Mas, no interior do Templo, a sua opinião vale o mesmo que a dos outros, porque o tema é comum.

Tem a ver com a sua ascensão espiritual. - O maçom, muitas vezes, quer ter apenas um avental bordado e um colar. Tem direito a querer, mas tem o dever de pensar que os outros irmãos têm o mesmo direito. - O maçom deve discutir ideias e ter opinião. Mas, no interior do Templo, as suas ideias e as suas opiniões dizem respeito ao crescimento espiritual e à construção do edifício interior que o suporta. - O maçom não pode ter, no interior do Templo, práticas diferentes das que tem cá fora, no que concerne ao respeito pelos outros, à pluralidade de opinião, aos direitos e aos deveres. - O maçom discute, argumenta, faz valer as suas ideias no mundo profano. No interior do Templo, os seus argumentos e as suas ideias vão sempre no sentido de se construir um Mundo melhor. - O maçom desempenha um cargo de chefia. No interior do templo desempenha um cargo de humildade. - O maçom não deve ter um comportamento no exterior do Templo diferente do que tem no

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interior, no que diz respeito à solidariedade, à compreensão, à ajuda, à distribuição, à sua contribuição para o equilíbrio da sociedade. - Um maçom não pode limitar-se a ser maçom de 15 em 15 dias, quando vai à Sessão da sua Loja. Sempre que lhe seja possível deve comparecer às Sessões de outras Lojas. - No caso vertente, tem de ser maçom, também, ao acompanhar os “Podcast” semanais; tem de ser maçom ao ouvir as “Conversas da Soberana”; tem de ser maçom ao seguir as conferências, as exposições, as entrevistas e as visitas promovidas pela sua Grande Loja; tem de ser maçom ao cumprir o programa de leituras maçónicas; ou seja, não é possível ser maçom em part-time. - Um maçom pode faltar às Sessões de Loja ou Grande Loja. O que não pode é deixar de justificar a sua falta, sob pena de estar a ofender o se VM e os restantes irmãos, remetendo-os para um plano secundário das suas preocupações.

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Muitas vezes, um maçom chega ao seu Templo e esquece-se do sítio sagrado onde está. Esquece-se dos juramentos que fez. Esquece-se que ali o que está em causa é ser um Homem melhor. Transporta para o interior do Templo as suas frustrações, as suas mágoas, os seus desesperos, as suas vaidades, as suas convicções de ordem material, os seus desejos de Poder, a sua condição de mortal transportando em si os defeitos da génese, esquecendo-se que está ali para fazer uma viagem ao interior de si próprio, no sentido de se descobrir, de se aperfeiçoar, de caminhar em direcção à vida espiritual, deixando os metais á porta. Mas faz pior e quando regressa aos “Passos Perdidos”, depois de terminada a Sessão, esquece-se do significado da Cadeia de União, da prece em que participou, da egrégora em que esteve envolvido, e dá abraços de conveniência ou de ocasião, porque lhe disseram que as Sessões maçónicas terminam assim.


Volta a ser maçom em part-time. Por outro lado, e de um outro modo, serve-se das plataformas digitais, abertas em nome das Lojas e das Grandes Lojas, para descarregar as suas frustrações, falando de tudo menos de maçonaria, destruindo em vez de construir, separando em vez de unir, fragmentando o sentimento de fraternidade que diz possuir. Invariavelmente fá-lo em nome da liberdade de expressão que é algo que não colhe. As plataformas são maçónicas, não são profanas. As conversas devem ser, por isso, construtivas e não destrutivas. A liberdade de expressão, tal como é entendida, deve ser usada no mundo exterior. No mundo maçónico, a liberdade de expressão (e de pensamento) vai no sentido da egrégora, da espiritualidade, da construção do Templo interior, da fraternidade pura e da lealdade. Meus queridos irmãos, vou dizê-lo com mágoa, mas com grande sentido de responsabilidade e de respeito pelo Mundo Sagrado onde estou:

As pessoas que não pensam assim e não procedem assim não são precisas. Podem voltar para onde vieram. Podem fazer a vida que acham que devem fazer. Estaremos, claramente, melhor sem eles. Podemos ser menos, mas somos, certamente os necessários e os suficientes. Não é por isso que o Templo interior vai demorar mais tempo a ser construído. Pelo contrário. Porque assim ninguém o destrói, ninguém o arrasa, ninguém o deixa, de novo, sem pedra sobre pedra, como aconteceu com o Templo de Salomão, por diversas vezes, na história da vida e dos homens.

Fernando Correia Venerável Mestre R:. L:. Almada Negreiros

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Maçom: Homem Livre e de Bons Costumes

por EG

Um Homem não chora. Dizem que um Homem não se mede aos palmos. Dizem também... que um Homem não é de pedra. Dizem que tão pouco um Homem é uma ilha. Ainda te dizem que não és Homem, não és nada... vais de encontro ao tudo. Diz-me com quem andas, e dir-te-ei quem és. Viver é certamente tratar com o mundo. Este é o sentido da mais famosa máxima de Ortega y Gasset: “O homem é o homem e a sua circunstância”. São muitos os locais, as pessoas e as circunstâncias em que encontramos afirmações e definições do que um homem é ou não é. Segundo o dicionário, é um mamífero primata, macho, bípede, sociável (uns mais do que outros), que, tal como a mulher, se distingue de todos os outros animais pela faculdade da linguagem verbal e pelo superior desenvolvimento intelectual. Sim, esta é uma boa definição de Homem... mas... será suficiente? Eu diria claramente que não. Um Homem é o que se vê, mas sobretudo o

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que se sente. É o que fala, mas muito mais o modo como age. É o modo como pensa, mas muito mais aquilo que ensina. É tudo aquilo que construiu, mas tanto mais o que deixou construído. Com isto quero dizer que o Homem não tem uma fórmula universal, nem detém tão pouco uma receita infalível. Possui o condão de poder nascer de uma forma e morrer de outra, de crescer em todas as suas dimensões: Física, Intelectual e Espiritual, e até é capaz de se reinventar quando é dado como acabado. Durante a sua vida vai sendo paulatinamente moldado pelo seu contexto, desde a educação dos pais, à escola da vida, desde o seu percurso académico, até ao seu rumo profissional. É definido pela forma como trata o próximo e pela forma como nutre as suas amizades. E na sua maioria, por todas essas etapas, ele tem o privilégio de optar pelo caminho que segue e pela companhia que leva a seu lado. A isso meus irmãos eu intitulo: Ser Livre.


Mas essa liberdade não vem sem risco. É um dom precioso que não poucas vezes é esbanjado ou pobremente utilizado. E é aí que chegam os Bons Costumes. Bons Costumes esses que segundo a definição do Código Civil Português são: um conjunto de regras de convivência que num dado ambiente e em certo momento as pessoas honestas e corretas aceitam como contrários a imoralidade ou indecoro social. Sim... correto... mas algo sujeito à interpretação da bússola moral/religiosa/cultural de cada um. A moral e os bons costumes são partes da mola de uma engrenagem cientificamente perfeita, qual criação de um ente superior. Eu prefiro classificar os Bons Costumes como balizas da liberdade de um Homem numa perspetiva sócia filosófica. Os Bons Costumes são para mim a execução dos nossos valores no mundo físico, de uma forma coerente e consistente. Com humildade, amor, e respeito pelo próximo.

E vivo com a fé de que cada um desses bons hábitos que luto por praticar da melhor forma possível diariamente, seja incendiário de boa conduta nos outros. E só é possível haver uma simbiose humana que melhore o mundo, entre homens que partilhem destes ideais e princípios de vida. E tem de haver uma casa que os acolha, onde possam seguir esse caminho de crescimento do indivíduo e da obra construída pelo todo. E que belo é ver estas situações em que 1+1 é igual a muito mais do que 2. E termino tomando como boa uma máxima: “Um Homem é aquilo que dizem dele quando não está presente”.

EG Aprendiz Maçom R:. L:. Almada Negreiros

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Estas (e outras) fragilidades incentivaram a emergência de uma literatura, jornalística e académica, que desloca o foco do debate ético, já não apenas reduzido à retórica dos enunciados sobre grandes princípios e processos coercivos e outros, de observância geral, mas igualmente, questionando a urgência da criação complementar, de mecanismos sociais mais expeditos, em ordem á superação da grande crise de valores éticos da sociedade atual.

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Curiosidades Maçónicas (Parte 1)

Sociedade global, ética e responsabilidade social das organizações por Fernando Casqueira Este tema foi inicialmente apresentado numa conferência realizada no Hotel da Penha Longa (Sintra) num contexto de debates sobre ética dos profissionais e das organizações de saúde. Simultaneamente e aproveitando o contexto, foi possível assinalar a obra da Professora da Universidade La Sapienza de Roma, Lauretta Napoleoni – O Lado Obscuro da Economia (que citarei igualmente ao longo da exposição). A citada obra, bem como o presente texto, apesar de alguma antiguidade (2010) a sua pertinência continua atual e ressalta mais evidentes dadas as circunstâncias dramáticas de comportamentos desviantes, de difícil controlo e cujas dimensões são infelizmente transversais à Sociedade Global (não redutível apenas ao tecido social português). Uma ideia inovadora da autora reside na sugestão por ela formulada de que a existência de economia fraudulenta, de nepotismos, corrupção institucional e do vasto leque de práticas económicas ilícitas (nomeadamente o branqueamento de capitais) constituem, na atualidade,

condição necessária para a estabilidade do sistema económico global e funcionamento da economia legal! Se pensarmos, ao nível dos comportamentos de decisão e de gestão, não apenas o que ocorre entre nós, mas igualmente ao nível das políticas dos Estados, por exemplo, na Rússia, Malta, Luxemburgo, Países Baixos, alguns NarcoEstados, poderemos ser levados a pensar na urgência da criação de soluções. É sabido que vêm sendo pensadas soluções e implementadas algumas medidas de alcance e profundidade diversa, por parte de entidades várias, de índole jurídica, política, comportamental e organizacional, mas que, todavia, se têm mostrado de limitadas consequências corretoras. Assim sendo, este será um modesto contributo, no campo teórico da Ética Organizacional (ou ausência dela), que designarei por Responsabilidade Social das Organizações e que foi sendo atualizada no desenvolvimento da minha anterior prática da docência universitária.

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As considerações que a seguir se explicitam exprimem uma abordagem transversal relativa aos campos da responsabilidade social, dos comportamentos éticos na gestão organizacional e de alguns efeitos perversos sobre a quotidianidade, decorrentes do fenómeno da globalização, nomeadamente, a internacionalização de práticas económicas ilícitas, afetando a sociedade global. Tal parece constituir uma temática atual e interessante, não apenas pela cobertura mediática de que tem sido objeto, mas sobretudo pelo significativo impacto que recentemente recai sobre a existência dos cidadãos e os constrangimentos sobre as políticas e instituições que enquadram a nossa vida coletiva, bem como, a necessidade premente de segurança individual e coletiva. As circunstâncias subjacentes à presente intervenção não são apenas conexas com a minha atividade académica, no decurso da qual venho tentando incentivar alguma reflexão e pesquisa sobre as diversas dimensões do comportamento organizacional, nomeadamente a cultura organizacional, o conflito, a comunicação e liderança nas organizações, os comportamentos de cidadania e gestão ética, entre outras, mas exprime igualmente as minhas apreensões enquanto cidadão, face aos amplos processos mutacionais que o capitalismo informacional reflete, bem como, a fluidez, a versatilidade e a ambiguidade da “rede”, instaurando uma lógica sociocultural diferente, em paralelo com a rapidez do desenvolvimento tecnológico associado. Em tempos anteriores, as relações económicas “clássicas” comportavam uma dimensão financeira que surgia como consequência direta da economia real, nomeadamente, das trocas comerciais efetuadas. Atualmente, a sofisticação técnica e científica do sistema financeiro, com particular relevância do complexo (e “esotérico”) formulário matemático de diversos produtos da indústria dos fundos (subprimes e quejandos), ocorre em paralelo com as sofisticadas interações em rede e com a sensação, não apenas da sua completa separação da economia real, mas igualmente com a impressão de fugacidade e dificuldade de controlo, constituindo-se, um pouco paradoxalmente, como instância dominante do sistema global. Assim, confrontamo-nos com uma ficção

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económica e monetária, pairando num mundo virtual, integrado na rede, incorporado em uma complexa interação tentacular, envolvendo poderosas instituições especializadas e vorazes, origem e fim de um “saber” pouco partilhado, pouco responsável e com vastos proveitos para organizações obscuras muitas vezes ligadas ao tráfico ilícito e ao terrorismo. Recordemos que essa dimensão financeira logrou (e logra) notoriedade recente, com realce para os efeitos perversos emergentes, nomeadamente no campo das práticas económicas e de gestão, pondo em causa a ética (ou a ausência dela) e a sua dimensão institucional e comportamental, mergulhando a ecúmena numa crise de consequências imprevisíveis. Afinal, até instituições públicas respeitadas, constituindo um dos pilares essenciais do nosso sistema, não puderam eximir-se a implicações descredibilizadoras, não justificando a imagem positiva que muitos ainda lhes atribuem, indo a reboque de poderosos interesses particulares, situados algures. Num ensaio recente de Vicente Verdu, (O Estilo do Mundo – A Vida no Capitalismo de Ficção, 2009) pode-se constatar que atualmente um capitalismo de ficção sucedeu a formas anteriores (capitalismo de produção e capitalismo de consumo): “… o capitalismo de produção era triste, o capitalismo de consumo era trivial, mas o capitalismo de ficção, é matreiro e aldabrão. O capitalismo procurava, no passado, ganhar a qualquer preço,


A NECESSIDADE DE UMA VISÃO ÉTICA

mas o capitalismo de ficção aspira especialmente a agradar. O objetivo fundamental deste capitalismo não é a produção de bens, mas, acima de tudo, a produção de realidade. Uma segunda realidade, ou realidade de ficção, mais infantil, anti trágica e simples, expurgada de sentido e destino, transformada em resguardo e em cultura de distração …”. Estas (e outras) fragilidades incentivaram a emergência de uma literatura, jornalística e académica, que desloca o foco do debate ético, já não apenas reduzido à retórica dos enunciados sobre grandes princípios e processos coercivos e outros, de observância geral, mas igualmente, questionando a urgência da criação complementar, de mecanismos sociais mais expeditos, em ordem á superação da grande crise de valores éticos da sociedade atual. Em nossa opinião, entre tais mecanismos de reforço e correndo o risco de uma visão redutora equacionamos três alternativas, não exclusivas, integrando: (1) processos de socialização desde os estádios mais precoces dos sujeitos até à idade de cidadania plena, implicando forte formação no campo da ÉTICA; (2) maior eficácia da ação fiscalizadora e regulamentadora, das instituições nacionais e internacionais; (3) o empenhamento das organizações, empresariais e outras – incluindo as do terceiro sector ou da economia social – implicando uma certificação em RSO (Responsabilidade Social das Organizações).

Não é intenção, neste contexto, tecer amplas considerações, teóricas, morais ou filosóficas, sobre as raízes essenciais em que os grandes princípios éticos se fundamentam, nem tão-pouco explorar as questões conexas aos enunciados e fundamentos legais que integram os subsistemas jurídicos, nem sequer debater as práticas pontuais dos seus diversos operadores, problematizando-as ou especular eventuais consequências. Pretende-se apenas explicitar uma chamada de atenção para o facto de que a eficácia organizacional, a competitividade ou o êxito empresarial e até a própria sobrevivência do sistema socioeconómico interage, para a sua efetivação, com princípios éticos. Em associação, e para além disso, as considerações que fazemos sobre os efeitos não desejáveis decorrentes de deficits de eticidade chamam à colação a dificuldade (ou impossibilidade) de controlo e regulação eficaz por parte das diversas organizações e centros de decisão nacionais e internacionais. Com efeito, os diversos pontos de vista dos variados quadrantes e instâncias corroboram afinal a ideia de que a crise mundial recente poderá, a prazo, pôr em causa a continuidade ou sobrevivência do sistema e de passagem a constatação que os centros de decisão e controle das instâncias internacionais e nacionais (sobretudo estas) já pouco controlam e decidem! Tudo isto, porém, constitui matéria de omissão governativa, até porque existe uma notória reflexividade crítica que, a prazo, pode resvalar para o (re)equacionamento do papel e função do Estado (e suas instituições), ele próprio fazendo parte do problema e já não da solução, porque demasiado ”gordo”, despesista, nepotista, inoperante, caríssimo e apenas preocupado com o voto em urna, que permitirá conservar Poder!, havendo já quem ponha em debate, novas formas de participação coletiva, em substituição daquelas que emergiram de uma modernidade, cuja lógica cultural pouco terá que ver com o motor atual dos dinamismos sociais, ou seja, do capitalismo informacional, da ecologia, dos problemas laborais, demográficos e geracionais, da sociedade em rede e do conhecimento e por aí fora.

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Em paralelo, a imagem dos cidadãos sobre a credibilidade do Estado de Direito e da democracia representativa esmorece, bem como a perca, a um ritmo preocupante, nos meandros dos escândalos e da corrupção, da noção de serviço público. Algures num passado recente, um jornal escrevia que “nenhuma democracia aguenta por muito tempo uma imagem pública dos seus responsáveis políticos ferida pelas suspeitas”… e mais à frente recorria á velha frase… ”à mulher de César não basta ser séria, tem de parecê-lo …”. Vivendo-se uma época em que ressalta a necessidade e a urgência do debate sobre a questão da ética, a sua efetivação não parece, contudo, ser condição suficiente ou de pleno alcance. Apesar de constituir tema recorrente, ao nível das retóricas mediatizadas, será necessário ir mais além (além das boas intenções), nomeadamente - e reportando-nos apenas às estruturas e processos organizacionais - na criação de dispositivos de regulação dos comportamentos de gestão, privilegiando, não apenas os códigos de ética e de conduta adotados por muitas empresas, mas aprofundando-os, através da operacionalização das ações propostas por instituições interventivas, como a Corporate Governance, a implementação de Códigos de Ética e de Conduta ou ainda a designada Responsabilidade Social das Organizações (RSO).

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As considerações precedentes sugerem uma via de exploração deste tema, esperando que isso transpareça na presente exposição e cujos pressupostos sintetizamos a seguir: a) Naturalmente que a incorporação de valores e a assunção de comportamentos adequados ao nível dos agentes terá de ser efetivada a partir dos processos precoces da chamada socialização primária (relações parentais) e que se prolongarão ao longo da vida estudantil e laboral, o que leva a processos de formação contínua no campo da ética. Isso igualmente sugere a alteração e integração nos currículos escolares, independentemente da vontade dos encarregados da educação; b) As instâncias socioculturais, os valores éticos e as boas práticas de gestão que veiculam deverão complementar os processos educativos e interagir ao longo das experiências de vida do sujeito; c) Não recusando a importância dos sistemas normativos, educativos e culturais, pensamos, todavia, que será muito expedito colocar o focus ao nível dos comportamentos das várias organizações (empresariais e outras) que enquadram a inserção na vida ativa. Muitos autores assinalam a propósito o facto de que a maior parte das experiências relevantes da vida dos sujeitos são mediadas pelas organizações (não apenas laborais) em que se inserem, chamando a atenção para a questão de que a vida organizacional, em muitos casos, não é muito enriquecedora, sendo até considerada


SÍNTESE CONCEPTUAL

como essencialmente “tóxica”, nomeadamente pela ineficácia gerencial ou de gestão, por uma cultura organizacional demasiado burocrática, por inexistência de boas práticas ao nível da Gestão de Recursos Humanos, etc. (Arménio Rego e Miguel Pina e Cunha, Organizações Positivas, 2007). Deste facto resulta, na esteira daqueles autores, um decisivo impacte na sua ineficácia, bem como deficits de produtividade e na sua funcionalidade social; d) A importância da implementação de Códigos de Ética e de Conduta e dos princípios de Corporate Governance, sendo de extrema importância deveria, apesar de tudo, ser complementada, pela recente operatividade de Certificação em Responsabilidade Social (das Organizações), enquanto instrumento dissuasor de ineficácia organizacional, e que muitas grandes empresas vêm já adotando. (por exemplo a Delta Café ou a BP). A noção de Responsabilidade Social (em consonância com a noção de Sustentabilidade), os princípios em que se fundamenta e a construção de indicadores que operacionalizam aquela noção, inspirada de resto nas recomendações das Nações Unidas (v. Global Reporting Initiative), podem ser um ponto de partida para a superação das situações que vimos referindo. Não desenvolverei aqui o conceito de RSO, remetendo, todavia, para alguma bibliografia expressa no final, especialmente a obra de Maria João Nicolau Santos.

As diversas abordagens sobre ética explicitam, desde logo, a impossibilidade de se possuir ou privilegiar qualquer das diversas doutrinas em confronto (conceptuais, descritivas prescritivas /normativas): a) As várias perspetivas conceptuais equacionam o sentido de conceitos como justiça, obrigação, virtude, responsabilidade e outros; b) As perspetivas descritivas acentuam a explicitação dos valores, das crenças morais, dos factos e dos comportamentos; descrevem o como e o porquê daquilo que acontece e nesta lógica existem numerosos estudos sobre as conceções éticas dos gestores ou sobre o clima organizacional; c) As abordagens prescritivas costumam formular e argumentar determinadas normas, nomeadamente a prescrição da satisfação de direitos humanos dos stakeholders ou a adoção, por parte dos gestores, de certos procedimentos justos numa aceção utilitarista da produção dos melhores resultados; d) Acrescente-se que atualmente, no domínio da ética, também se discute uma perspetiva relativista, a qual, pondo em questão a variabilidade dos padrões consoante as pessoas e os sistemas socioculturais, afirma a dificuldade de enunciar padrões éticos e morais, aplicáveis em qualquer circunstância de tempo e espaço. Esta breve alusão a diferentes abordagens permite ressaltar a não unanimidade entre as diversas noções que incorporam o conceito de eticidade (legalidade, moralidade, legitimidade, responsabilidade social, e outras), remetendo a sua validade, relativamente aos diversos contextos espaço temporais. Assim, a presença ou ausência de ética pode ser controversa, dada a fluidez de fronteiras entre o que é e o que não é ético, recobrindo uma extensa gama de factos, desde a insofismável atividade criminosa (terrorismo, contrabando, corrupção, branqueamento, contrafação, etc.), até incontáveis situações diversas, as quais sendo legais são provavelmente ilegítimas e pouco éticas. Por exemplo, poder-se-ia admitir opiniões opostas sobre o desastre ecológico que há alguns anos ocorreu na zona costeira dos EUA, por virtude de decisões questionáveis por parte da BP, mas dentro de uma

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lógica racional que o sistema socioeconómico vigente consente ou ainda, na mesma perspetiva, sobre as recentes exigências da União Europeia, a propósito da desregulamentação/flexibilização do mercado laboral. Partindo de algumas constatações produzidas por autores diversos, sobre liderança, gestão ética, corrupção e outras práticas eticamente reprováveis, reiteramos o convencimento da necessidade e urgência de uma ação educativa e formação em ética, moldando atitudes e comportamentos, desde os processos precoces da socialização primária, continuando pela formação escolar e académica, com inclusão nos currículos de todos os cursos universitários e simultaneamente atuar na criação e implementação de dispositivos que ao mesmo tempo premeiam, incentivam e regularizam, a Responsabilidade Social das Organizações (R.S.O.). A segunda parte deste trabalho será abordada no próximo número da Soberana Magazine, estruturada em quatro questões fundamentais:

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A CRISE DE VALORES DA SOCIEDADE ACTUAL e as INOVAÇÕES TECNOLÒGICAS (…) Existe na atualidade uma crescente consciencialização sobre a urgente necessidade de se estabelecer o reforço da matriz dos valores e comportamentos éticos em todas as dimensões da esfera humana, não apenas no que se refere às assimetrias sociais, á economia e ao desenvolvimento e ainda à ordem interna dos Estados, mas igualmente, no que respeita à compreensão das “questões globais” (Seitz, 1995) que afetam globalmente todas as coletividades humanas, implicando a adoção de estratégias globais mais eficazes, em ordem a uma sociedade mais sustentável. O debate já antigo e recorrente sobre a complexidade dos processos sociais implicados nesta temática, nomeadamente, quanto ao futuro da sociedade humana, tem já uma longa história, desde o famoso relatório de 1972, do Clube de Roma (“Limites do Crescimento”) e Conferência de Estocolmo do mesmo ano, passando pelo Relatório da Comissão Brundtland (1987, definindo o conceito de Desenvolvimento Sustentável), a Cimeira da Terra (1992), Agenda 21 e Declaração do Rio, a Estratégia de Lisboa e diversos outros acontecimentos e publicações mais recentes, refletindo idênticas preocupações (nomeadamente as grandes opções políticas da U.E. em 2004, para o período de 2007 / 2013). Isso significa


outras) têm todo o interesse em procurarem certificação, já que isso representa novas oportunidades de negócio, novos nichos de mercado, maior otimização nas relações com os stakeholders, imagem institucional positiva, maior competitividade, aumento dos lucros, etc. Daí poder assinalar-se o crescente interesse e adesão por parte das organizações a estas novas conceções e práticas de gestão (…). BREVE HISTÓRIA DESTA ECONOMIA OBSCURA

que, pelo menos ao nível da retórica, existe uma gradual consciência sobre a necessidade de uma visão holística destes problemas e vontade manifesta na sua concretização (…).

(…) Sobre a etapa inicial destes desenvolvimentos, Napoleoni (e outros) referem que os acontecimentos subsequentes à queda do muro de Berlim marcam a transição para uma economia marginal hegemónica a par da ascensão á vida democrática (a partir da década de 90), de numerosos países, do Sudoeste Asiático, América Latina e especialmente do Leste da Europa, como consequência da queda do muro de Berlim e do desmembramento da União Soviética. Tais factos, articulados com as possibilidades abertas por virtude do fenómeno da Globalização, implicaram,

PARA UMA DEFINIÇÃO DE ÉTICA e da INFORMALIDADE (…) Em verdade, as questões que aludimos, ganham extrema atualidade se os contextualizarmos na atual crise global do sistema e no desajuste ao nível do deficit de comportamentos éticos, individuais e institucionais. Na vasta literatura disponível, a gestão ética, na ótica de alguns autores (Rego e al., 2006), pode ser definida como um sistema de princípios, valores e práticas adotados pelos centros de decisão de qualquer organização, indo muito para além do objetivo restrito da procura do lucro, incorporando a noção de responsabilidade social e sustentabilidade do negócio. Estas asserções têm uma dimensão operativa, dado que, na atualidade, instrumentos analíticos como os crescentes relatórios de certificação de RSO, são capazes de avaliar com objetividade relativa o desempenho organizacional ao longo do tempo, ao nível gerencial, social e ambiental. As organizações (não apenas empresariais - PME’s incluídas - mas igualmente todas as instituições públicas e privadas, nomeadamente autarquias, sindicatos, ONG’s e

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em curto intervalo de tempo, uma enorme mobilidade e penetrabilidade de milhões de cidadãos, errando agora por espaços outrora interditos e que eram fortemente controlados. Tudo isso teve (tem ainda) efeitos perversos, assinalando a autora com particular relevo a escravatura sexual, assumindo um carácter internacional, “nas mãos de protagonistas diversos com particular relevo para as máfias de leste e cujo valor em 2006 se estimava em cerca de 52 mil milhões de dólares” (…). UMA VEZ MAIS: CÓDIGOS DE ÉTICA E A RESPONSABILIDADE SOCIAL DAS ORGANIZAÇÕES Torna-se para muitos cada vez mais óbvio que, dada a fragilidade das instituições de controlo Nacionais e Internacionais e em reforço dos processos de socialização, muitos estudiosos discutem com entusiasmo a importância das organizações adotarem códigos de ética e de conduta, nas sua práticas de gestão, ou a sua adaptação no caso de organizações que já as possuem. Em Portugal, como de resto um pouco por todo o lado, as comunidades percecionando a existência de práticas não éticas nas diversas modalidades sociais (e não apenas nos negócios), vêm induzindo por parte das organizações a elaboração de documentação escrita visando orientar os comportamentos dos colaboradores. Estes códigos de ética e de conduta, explicitam os valores filosóficos e princípios de justiça de uma organização, bem como, as práticas que os devem refletir. Tais procedimentos tiveram a sua origem na década de 70,

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representando uma prática de autorregulação, preferencialmente adotada por classes profissionais e por empresas, em lugar da regulamentação governamental. Referências Bibliográficas: Canton, James (2oo8) Sabe o Que Vem Aí; As Principais Tendências que Redesenharão o Mundo, Lisboa, EditoriaL Bizâncio. Cunha, M.P.,& Rego, A (2007), Organizações Positivas. Lisboa, D. Quixote. Napoleoni, Loretta, (2009) O Lado Obscuro da Economia, Lisboa, Ed. Presença. Porter, M.E. & Kramer,M.R.(2006) Statregy & Society, The Link Between Competitive Advantage and Corporate Social Responsibility, Harvard Business Review, December, 78-92. Rego, Arménio; Cunha, Miguel Pina e; Costa, Nuno Guimarães da; Gonçalves, Helena; Cardoso, Carlos Cabral, (2006) Gestão Ética e Socialmente Responsável; Teoria e Prática, Lisboa, Editora RH. Santos, Maria João Nicolau e al., (2006) Responsabilidade Social nas PME, Casos em Portugal, Lisboa, RH Editora. Seitz, Jonh L. (1995) Questões Globais, Uma Introdução, Lisboa, Instituto Piaget. Verdu, Vicente, (2009) O Estilo do Mundo- A vida no capitalismo de Ficção, Lisboa, ed. Fim de Século.


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O Homem, O Músico e O Maçom por Fernando Correia

João Domingos Bontempo nasceu em Lisboa no dia 28 de Dezembro de 1775 e faleceu, também em Lisboa, a 18 de Agosto de 1842. Foi um pianista clássico e compositor de grande notoriedade em Paris e em Londres, guardando para Lisboa a parte menos significativa da sua produção musical, certamente por causa das motivações políticas que, de alguma forma, tiveram influência na forma como foi requisitado pelos grandes centros musicais, onde as pessoas apreciavam a sua obra pelo que realmente valia. A sua primeira passagem por Paris verificou – se em 1801, onde fez sucesso como pianista clássico e onde estabeleceu uma grande e sólida amizade com Filinto Elísio que ali viva. Há escritos da época que relatam as suas notáveis actuações na “Salle Olympique”, da capital francesa, onde estabeleceu uma relação interessante com Dussek e Clementi, sendo através deste que publicou em Itália uma parte significativa da sua obra. Em Paris compôs a Grande Sonata para Piano; o Primeiro Concerto em Mi Bemol para piano e orquestra; o Segundo Concerto para piano; e o Minueto Afandangado que é uma obra absolutamente “sui generis”. Quando se obrigou a ir para Londres, para fugir às perseguições políticas de que estava a ser alvo, já a sua Primeira Sinfonia recebia os mais rasgados elogios da crítica parisiense.

Em Londres relacionou – se com John Field e foi professor da filha de Lady Hamilton. Nessa altura, o Embaixador de Portugal em Londres, D. Domingos António de Sousa Coutinho, Conde do Funchal, organizou um grande festival para celebrar o aniversário daquele que viria a ser o Rei D. João VI e a expulsão do exército francês do território português, em consequência da derrota de Massena. Convidou João Domingos Bontempo para esse festival de música e o compositor português apresentou uma cantata intitulada “Hino Lusitano (Opus 10)”, com versos do poeta liberal Vicente Nolasco da Cunha. Foi um êxito enorme e é possível dizer que a Cantata foi ouvida localmente por todo o Conselho de Ministros britânico. João Domingos Bontempo era maçom, tendo sido iniciado em Paris e frequentando Lojas, mais tarde em Londres e em Lisboa. Aliás, em Agosto de 1822 conseguiu criar a sua Sociedade Filarmónica, na Rua Nova do Carmo, onde o Grande Oriente Lusitano teve instalações. Quando lhe foi permitido, João Domingos Bontempo compôs uma Missa de Requiem à memória de Gomes Freyre de Andrade, outro maçom que dá agora o seu nome a uma nova Loja da “Soberana”, e aos supliciados de 1817. Evocou assim o nome do ilustre General e Muito Respeitável Grão - Mestre da Maçonaria Portuguesa.

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Conservatório Nacional

Gomes Freire de Andrade viveu entre 1757 e 1817 (quando foi assassinado) e João Domingos Bontempo entre 1775 e 1842. O nosso compositor já tinha escrito anteriormente um outro Requiem dedicado á memória de Camões. Vindo a ser perseguido pelos seus ideais liberais durante o período miguelista, refugiou-se no Consulado da Rússia, em Lisboa, onde permaneceu cinco anos. É preciso dizer que se Bontempo saísse do Consulado corria o risco de ser assassinado pelos absolutistas. Após o triunfo liberal, Bontempo foi professor da Rainha D. Maria II, em 1836, nomeado por D.Pedro IV. Dirigiu depois a Escola de Música integrada no Conservatório Geral de Arte Dramática, idealizado por Almeida Garrett, mas manteve-se como Chefe da Orquestra da Corte. Em 1842, já muito perto da sua morte, compôs uma Missa Festiva (obra notável) que foi executada na Igreja dos Caetanos, por professores e alunos do Conservatório.

Era casado com Maria das Dores, viveu na Rua de São Bento nos últimos anos da sua vida, e está sepultado no Cemitério dos Prazeres, em Lisboa. Algum sector da música erudita considera – o um compositor romântico, o que não parece ser inteiramente verdade. Foi sobretudo um clássico, talvez com influências de Beethoven, mas também com um “Te Deum” que lembra Rossini. Foi, isso sim, um dos grandes compositores da sua época, durante tantos anos injustamente esquecido. Terá vivido um pouco entre o progressismo político, com as suas ideias liberais, e o tradicionalismo musical. Recebeu justa homenagem em Setembro de 2012, na Assembleia da República, onde dois Deputados, Laureano Carreira e Gabriela Canavilhas, fizeram o seu justo elogio, seguindo-se no mesmo local uma actuação de músicos do Conservatório Nacional. A música de João Domingos Bontempo, apesar da sua grande qualidade, não é vanguardista, sendo menos moderna no conceito do que a música de Haydn, Mozart ou Beethoven. No entanto, todos reconhecem a sua luta pela defesa dos valores portugueses, assumindo na sua vasta obra uma posição de relevo os valores da liberdade individual e da soberania da nação portuguesa, lutando sempre contra as colonizações estrangeiras em Portugal no início do século dezanove. Até certo ponto, João Domingos Bontempo foi um injustiçado. Prestamos – lhe a nossa homenagem, enquanto grande português, músico, compositor e maçom.

“Até certo ponto, João Domingos Bontempo foi um injustiçado. Prestamos-lhe a nossa homenagem, enquanto grande português, músico, compositor e maçom.”

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O compositor e a sua obra

Por Vasco Lima

A escassez de concertos em Paris, cidade onde principalmente residiu a partir de 1801, agora sob Luís XVIII dominada pela agitação política, e a impossibilidade de prosseguir a atividade em Lisboa, onde procurou reestabelecer-se entre 1817 e os meados de 1818, forneceram a Bomtempo a oportunidade para se dedicar à composição das suas primeiras obras corais sacras. No início de 1816, publicou em Londres os “Elementos de Música e Método de tocar Piano Forte” - com exercícios de todos os géneros, seis lições progressivas, trinta prelúdios em todos os tons, e doze estudos, obra composta e oferecida à nação portuguesa. Graças a alguns excertos da sua correspondência, sabemos que a composição do Requiem Op. 23, iniciada em Lisboa em 1817, foi concluída em Paris no segundo semestre de 1818. No ano seguinte, a obra teve a sua primeira audição privada, estreando publicamente em Londres, em Junho ou Julho de 1819. Parece ser deste ano a dedicatória à memória de Camões, cujo objetivo, abertamente confessado, foi o de garantir o sucesso da subscrição que permitiu a impressão da partitura (em Paris, por Auguste Leduc, 1819/20), aproveitando o renascimento camoniano iniciado com a edição monumental d’Os Lusíadas promovida pelo

Morgado de Mateus, em Paris, no ano de 1817. Diz Bomtempo numa carta – que escreveu a um correspondente anónimo (possivelmente a Duquesa de Hamilton): «Compus um Te Deum e duas Missas, uma das quais de Requiem consagrada à memória de Camões que, espero, me seja mais produtiva que tantas obras dedicadas a homens ainda vivos, os quais, até ao presente, não me foram de grande utilidade”. Com o advento do primeiro regime constitucional em 1820, Bomtempo regressou definitivamente a Portugal. As audições documentadas do Requiem Op. 23 em Lisboa serviram a causa do Partido Liberal, em cerimónias cívicas largamente publicitadas na imprensa da época. A primeira execução da obra teve lugar no sufrágio do General Gomes Freire de Andrade, a 18 de Outubro de 1821, na Igreja de S. Domingos, sob a direção do compositor. Uma segunda audição realizou-se na Basílica da Estrela, na ocasião da trasladação do corpo de D. Maria I, a 20 de Março de 1822, também sob a direção de Bomtempo. O Requiem Op. 23 cantou-se depois nas exéquias do próprio Bomtempo, celebradas na Igreja de S. Caetano a 5 de Novembro de 1842, por iniciativa do Conservatório Real de Lisboa, que o compositor fundara em 1835 e de foi o primeiro Diretor.

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“Numa época conturbada pelos repetidos confinamentos causados por esta pandemia que tirou as emoções, os beijos, os abraços e em que a saudade aperta, chega a Primavera e com ela desperta este desejo de mudança.”

The Hollies

Os Hollies A liberdade, igualdade e fraternidade

por Vasco Lima

Porquê escrever sobre os Hollies? Allan Clarke elemento fundador da banda é um reconhecido Maçom, que escreveu entre muitas canções uma que é especial, que ficou para a história da música e que ainda hoje é um grande sucesso desta banda: He Ain’t Heavy, He’s My Brother. Uma canção que reflete uma mensagem de fraternidade, irmandade, amor e tolerância.

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Numa época conturbada pelos repetidos confinamentos causados por esta pandemia que tirou as emoções, os beijos, os abraços e em que a saudade aperta, chega a Primavera e com ela desperta este desejo de mudança. Eu, rodeado de caixotes por arrumar numa nova casa, escrevo com o pensamento renovado para um novo ciclo em que a luz do Sol reflete sobre a natureza, dando-me a emoção necessária para criar novas ideias melódicas e harmónicas, preparando-me para novos ciclos de rutura criativa.


O tema foi uma mudança de estilo influenciado pelas visitas de Graham Nash aos Estados Unidos. Nash queria uma nova direção mas a grande resistência dos outros membros da banda acabou por levar à sua saída e mudança para os Estados Unidos. Embora um sucesso para a crítica, a canção foi um fracasso comercial para os padrões dos Hollies, precipitando a saída de Nash que foi integrar o trio Crosby, Stills and Nash. Tal como os The Rolling Stones, os Hollies, mesmo apesar das diversas mudanças na sua formação, acabou por ser são um dos poucos grupos pop britânicos do início dos anos 60 cujos elementos nunca se separaram oficialmente e que ainda hoje continuam a gravar e a dar concertos. E, em Março de 2010, Allan Clarke, Graham Nash, Tony Hicks, Bobby Elliot, Chas Smyth

Foi numa conversa com um grupo de amigos, daquelas reuniões que nos renovam e motivam a continuar, que um nós falou dos The Hollies, banda britânica de rock and roll formada no princípio dos anos 60 pelos amigos de infância Allan Clarke e Graham Nash, aos quais se juntaram Don Rathbone, na bateria, Eric Haydock, no baixo, e Vic Steele na guitarra-solo que, no entanto, acabaria rapidamente substituído por Tony Hicks. Já em 1963, quando começaram a ter algum sucesso, também Don Rathbone acabou por ser substituído por Bobby Elliot, um dos melhores bateristas ingleses do período do Merseybeat. A banda foi contratada pela Parlophone, a mesma editora dos Beatles, e lançou o seu primeiro álbum em 1964, nos Estados Unidos. Apesar de não ser reconhecida como uma das principais bandas dos anos 60, os Hollies acabaram por gravar uma serie de sucessos e tornaram-se, ao longo da década, o grupo de maior reconhecimento da Grã-Bretanha em termos de venda de discos, atrás apenas atrás dos Beatles. Os arranjos e as harmonias vocais feitas por Clarke, Nash e Hicks tornaram-se caraterística diferenciadora deste grupo que muitos compararam aos Everly Brothers. Mas já em 1967, Graham Nash compôs a canção “King Midas In Reverse”, creditada a Allan Clarke, Nash e Tony Hicks e lançada pelos The Hollies como single, em setembro desse ano, em antecipação ao álbum Butterfly

Rick Wakeman

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The who live more iconic

Na verdade, o simbolismo e a mística das ”Artes Reais”, que tanto fascinam e influenciam compositores e múltiplos projetos em vários géneros musicais da atualidade, demonstram o interesse contínuo dos artistas e criadores nas mensagens e nos ideais Maçónicos, tanto nas letras das canções como no grafismo das capas dos álbuns. E porque estamos na Primavera e no mês de Abril faz todo o sentido, como homenagem a todos os músicos Livres-pensadores, concluir este texto com as palavras de Natália Correia: “O alvoroço redobra-me a ansiedade. A iminência de ver florir por fora a Primavera que sempre trouxe dentro do meu amor à liberdade morderem coração como uma alegria insuportável”.

Erick Haydock, Bernie Calvert e Terry Sylvester entraram para o Rock and Roll Hall of Fame. Mas porquê escrever sobre os Hollies? Allan Clarke elemento fundador da banda é um reconhecido Maçom, que escreveu entre muitas canções uma que é especial, que ficou para a história da música e que ainda hoje é um grande sucesso desta banda: He Ain’t Heavy, He’s My Brother. Uma canção que reflete uma mensagem de fraternidade, irmandade, amor e tolerância. Tal como os Hollies, a música Rock do século 20 aos dias de hoje tem tido forte influência maçónica: Rick Wakeman, compositor e produtor, mais conhecido como teclista dos Yes é Venerável Mestre da Loja Chelsea 3098; John Entwistle baixista da banda The Who, que entrou para o Rock and Roll Hall of Fame em 1990 e considerado um dos baixistas mais importantes de sempre, foi um reconhecido Maçon. Pete Townshend foi mesmo surpreendido quando os maçons apareceram no funeral de John Entwistle, pois descobriu que John era maçom há anos sem que ninguém da banda soubesse; Também Chas Smyth, conhecido também por Cathal Smyth, o compositor e baixista dos Madness, foi reconhecido como um Maçom; Outro exemplo é o álbum Black Clouds & Silver Linings, lançado em 2009 pela banda de metal progressivo de Nova Iorque Dream Theatre – formada em 1985 por Mike Portnoy, John Myung e John Petrucci – onde o single de avanço A Rite of Passage, tal como o nome sugere, descreve um processo de iniciação e a capa utiliza evidente simbologia maçônica.

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Rick Wakeman


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www.hobvolt.com


Fernando Correia. Jornalista, comentador de rádio e televisão, professor, nasceu em 1935 e dividiu a sua infância entre a Mouraria, o Alto de Santo Amaro e São Domingos de Benfica. Entrou para a Emissora Nacional em 1958. Trabalhou depois na RDP, Rádio Clube Português, Rádio Comercial e TSF. Foi diretor do Diário Desportivo, redator e colaborador dos jornais Record, A Capital, O Diário, Gazeta dos Desportos, Jornal de Notícias e Diário Popular. Sportinguista assumido, colabora também com a Sporting TV, depois de ter sido diretor-adjunto e diretor do jornal do clube. Casado, pai de cinco filhos e avô de dez netos é autor de dezenas de livros nas mais variadas áreas temáticas, desde livros infantis a ensaios e romances.

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Diário de um corpo sem memória

Fernando Correia acaba de ver lançado o segundo volume de uma pequena série relativa à doença de Alzheimer. Partindo de um caso familiar, o jornalista e escritor conduz o leitor ao interior de uma problemática da saúde mental, ainda sem destino sob o ponto de vista curativo, e que revela a pequenez do ser humano perante uma situação de contornos difíceis de explicar. O primeiro livro chama-se “Piso 3 – Quarto 313” e este segundo, escrito sete anos depois, intitula-se “Diário de um Corpo sem memória”. Se o primeiro explicava os contornos da doença e aquilo que é possível fazer em cuidados paliativos, este segundo vai mais longe e faz uma proposta de contornos de transcendência, ao sugerir que um cérebro saudável seja capaz de substituir um cérebro doente, nas suas funções vitais de pensamento e de comunicação interior. É um caminho complexo, cheio de escolhos e de dúvidas, mas que se torna menos difícil de percorrer

quando os protagonistas se conhecem bem e são capazes de interagir, através do subconsciente, permitindo admiráveis conclusões. No fundo é como se fosse possível partilhar memória, ou substituir memória, numa avaliação que só pode ser feita por quem conhece bem os intervenientes. O livro tem duas partes distintas. A primeira conta a história de duas vidas que se encontraram e que tentaram ser uma só. A segunda revela o confronto com a doença de Alzheimer e o caminho espiritual que foi capaz de levar um dos protagonistas a substituir o outro no respeitante ao arquivo da memória. Por tudo isto, pelas dúvidas, pela beleza do conceito e pelo hermetismo dos mistérios da mente revelada, se recomenda a leitura deste livro que, por certo, obrigará o leitor a um complexo exercício de apreensão da mensagem de fraternidade que transmite. “Diário de um Corpo sem Memória” é uma edição Guerra e Paz e é um livro que se recomenda.

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O Legado de Rudolf Steiner por Paulo Réfega Rudolf Steiner é um personagem extremamente interessante, multifacetado e de grande qualidade intelectual e que, do ponto de vista maçónico, é muito interessante conhecer. Claro que haveria muito mais a dizer, nomeadamente sobre a sua filosofia, mas este modesto trabalho visa apenas aguçar o apetite para aprofundar o conhecimento sobre um grande pensador.

Rudolf Steiner foi um educador, artista, esoterista e filósofo. Tinha interesses extremamente variados e, além do ocultismo, interessou-se por arquitetura, drama, literatura, arte, agricultura, medicina, ciência, religião, matemática e filosofia. Foi o fundador da agricultura biodinâmica, da pedagogia Waldorf, da euritimia, da medicina antroposófica e da antroposofia. Para se compreender Rudolf Steiner é fundamental atribuir e perceber a sua génese - quer enquanto individuo, quer do seu pensamento - integrada no Império Austro-Húngaro e no mundo germânico, em geral, se bem que tenha acabado por ter uma atuação e uma influência muito mais internacional e seguidores espalhados pelo mundo inteiro. O império Autro-Húngaro, principalmente na viragem do Século XIX para XX, altura da vida do Rudolf Steiner, foi uma fonte de cultura e ciência a todos os títulos ex-

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O segundo Goetheanum

cecional, além de ser uma potência económica. Era um Estado extremamente vasto, com uma área apenas ultrapassada pelo Império Russo, e o terceiro mais populoso da Europa depois da Rússia e da Alemanha (na altura Império Alemão). Era também um Estado multinacional, incluindo, além dos países que lhe dão o nome, a Boémia, Morávia, Caríntia, Croácia, Eslovénia, Bósnia-Herzegovina, Tirol, Galícia e outros territórios. A sua diversidade era contudo extremamente difícil de manter e, no início do século XX, surgiram movimentos nacionalistas que estiveram na origem do incidente que deu início à I Guerra Mundial e que levou ao fim do Império. O Império tinha em si as sementes da sua destruição. Viena, a capital, era um centro de alta cultura e de modernismo, além da capital mundial da música, onde viviam compositores como Richard Strauss, Mahler e Brahms. A nível cultural, as contribuições de Viena incluem a psicanálise, com Freud, o movimento designado por Sucessão de Viena, na arte, a filosofia de Wittgenstein e a arquitectura de Adolf Loos.

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Foi neste ambiente, nesta efervescência cultural, que nasceu e cresceu Rudolf Steiner. Nasceu no dia 27 de Fevereiro de 1861, em Murakirály, no reino da Hungria, mas numa região habitada por austríacos falantes de alemão. Atualmente esta localidade está situada na Croácia e chama-se Kraljevec. Desde cedo que as suas capacidades intelectuais foram reconhecidas e a família mudou-se para próximo de Viena para que Steiner pudesse frequentar o prestigiado Instituto de Tecnologia. Ali estudou física, matemática, mineralogia, botânica e zoologia e frequentou cursos de filosofia e literatura, tendo obtido uma bolsa de estudo para estudar estes ramos da ciência. Em 1888 foi convidado a editar os arquivos de Goethe, em Weimar, e tornou-se um profundo conhecedor da sua obra. Acabou mesmo por escrever numerosas obras sobre Goethe, dedicando-se à explicação do pensamento do autor alemão, ao mesmo tempo que escrevia sobre muitos outros assuntos filosóficos.


O primeiro Goetheanum

Em 1891 doutorou-se em filosofia pela Universidade de Rostock e seis anos mais tarde deixou os arquivos de Weimar e mudou-se para Berlim. Aí trabalhou como editor de uma revista literária, tendo também começado a trabalhar como escritor e conferencista. Nessa qualidade, foi convidado a falar numa conferência de Teosofistas, acabando por, entre 1902 e 1912, se tornar o líder da Sociedade Teosófica na Alemanha. A Teosofia foi uma religião fundada por Helena Blavatsky, no final do século XIX, nos Estados Unidos e é considerada, não só como parte de uma corrente esotérica ocidental, mas também como um novo movimento religioso, bebendo influência tanto de religiões asiáticas - budismo e hinduísmo - como de antigas filosofias ocidentais, como o neoplatonismo. Contudo, Steiner acabou por romper com a Teosofia e fundou a Sociedade Antroposófica, desenvolvendo a ciência espiritual antroposófica ou antroposofia. Pode-se resumir a Antroposofia de Steiner como um modo de alcance de um conhecimento supra-sensível do destino humano e da realidade do mundo. Mas o

O túmulo de Rudolf Steiner

conteúdo desse resumo é complexo e remete a um estudo de extrema profundidade e disciplina, aliado a um método de exercícios metódicos precisos, com o intuito de revelar no Homem o Divino que nele reside adormecido. A Antroposofia, o corpo de conceitos derivados da Ciência Espiritual, coloca o Antrophós (Homem) como participante efetivo do mundo espiritual, através de seus corpos superiores, tornando assim evidente no mesmo mundo espiritual o conceito do Theós (Deus). A Ciência Espiritual é o meio de experiência consciente direta com o mundo espiritual. Podemos ver aqui semelhanças com o pensamento maçónico e é relevante o facto de Steiner ter sido, entre 1906 e 1914, Grão-Mestre de uma loja maçónica denominada Mystica Aetern, que praticava o rito de Memphis Misraim. Steiner acabou mesmo por acrescentar referências rosacrucianas ao rito maçónico. A Sociedade Antroposófica cresceu rapidamente. Devido à necessidade de ter uma casa artística, que incluía a encenação de peças de teatro de Steiner e de Edouard Schuré, foi decidido construir um centro organizacional e um teatro. A construção do primeiro Goetheanum começou em 1913, em Dornach, na Suíça. O edifício, desenhado por Steiner e construído em madeira, foi edificado por voluntários de diversas nacionalidades. Mesmo durante os anos da I Grande Guerra pessoas de toda a Europa trabalharam pacificamente lado a lado para constituir o edifício. Em Dezembro de 1922, o primeiro Goetheanum foi destruído por um incêndio e substituído pelo atual

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edifício em cimento, o segundo Goetheanum. E foi também em Dornach que Steiner viveu desde 1913 até ao fim dos seus dias, a 30 de Março de 1925.

Uma figura controversa Steiner tornou-se uma figura controversa e conhecida durante e depois da I Guerra Mundial. Opôs-se ao Plano Wilson de criação de nações baseadas em grupos étnicos, propondo como alternativa “territórios sociais”, com instituições democráticas acessíveis a todos os habitantes de um território independentemente da sua origem. Em 1918, na sequência de revoluções na Alemanha e na Rússia, Steiner apresentou sugestões para a compreensão da diferenciação da sociedade como um todo, partindo do princípio da liberdade na vida cultural, igualdade na esfera jurídica e fraternidade na esfera económica, uma ampliação dos ideais da Revolução Francesa e criando a base do movimento da Trimembração Social, mediante o qual as esferas económica, cultural e política deviam ser independentes. Na década de 20, as suas ideias entraram em conflito com o partido Nazi que estava em ascendência na Alemanha. Foi atacado pessoalmente por membros do Partido, incluindo Adolf Hitler, e foi obrigado a cancelar conferências na Alemanha depois de ter mesmo sofrido ataques físicos. Na verdade, depois da I Grande Guerra, Steiner envolveu-se numa grande variedade de contextos culturais. Fundou várias escolas, a primeira das quais

foi a Escola Waldorf, em 1919, em Stuttgart, e em consequência do movimento da Trimembração Social. Note-se que atualmente existem aproximadamente 1100 escolas no mundo e 1800 jardins-de-infância que seguem essa pedagogia. Fundou também um sistema de agricultura orgânica, agora conhecida por agricultura biodinâmica, que contribui grandemente para o desenvolvimento da agricultura orgânica. Os seus dois Goetheanum são considerados obras-primas da arquitetura moderna e os seus desenhos e pinturas influenciaram muitos artistas modernos. Noutro domínio, uma das primeiras instituições a praticar banca ética foi um banco antroposófico influenciado pelas suas ideias e muitas outras instituições sociais antroposóficas foram criadas. O seu trabalho em medicina levou ao desenvolvimento de terapias biográficas e artísticas, bem como à medicação complementar. Também o legado literário de Rudolf Steiner é muitíssimo vasto. As suas conferências, com cerca de 300 volumes, abrangem um leque extremamente vasto de temas e o seu espólio inclui peças teatrais (dramas mistério), poemas, livros, ensaios e uma autobiografia. Não é habitual encontrar alguém com uma profundidade de pensamento de Rudolf Steiner e principalmente um conhecimento tão ecléctico e abrangendo áreas tão diferentes. Numa altura em que o rótulo de génio é usado levianamente, podemos afirmar que estamos, sem dúvida, perante um genuíno génio.

“Steiner tornou-se uma figura controversa e conhecida durante e depois da I Guerra Mundial. Opôs-se ao Plano Wilson de criação de nações baseadas em grupos étnicos, propondo como alternativa “territórios sociais”, com instituições democráticas acessíveis a todos os habitantes de um território independentemente da sua origem”.

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IN

MEMORIAM

Carmen Dolores Que a memória te guarde!

por Fernando Correia

Carmen Dolores, com a sua voz celestial, feita de gotas de água transparente vertidas pela fonte do seu coração puro, deixou fisicamente este mundo de trevas infindas, para cantar harpejos de fé diante da nova luz que inunda o seu espírito. Lembro-me do seu cantar de ternura aos microfones do Rádio Clube Português, espécie de gorjear de encantamento, seguindo a linha única do professor Manuel Lereno que tinha o dom de transformar as palavras em cânticos da alma e ele próprio deixava transparecer a ideia de que tudo era fácil, quando os olhos se encostavam à voz e deslizavam pelo caminho florido da paz. Era isso que acontecia. Carmen Dolores cantava a poesia com voz de paz, sempre à procura da doçura do amor, mel incontido das almas eleitas. Partiu agora, aos noventa e seis anos de idade, com a vida terrena cheia de boas memórias e o teatro cheio de saudades da sua presença, da sua arte, da sua força interior, da capacidade que tinha de dizer “eu estou aqui”, mas não quero que se saiba.

Oiçam apenas. Carmen Dolores esteve na rádio, na poesia, no teatro, no cinema, na televisão e “descobriu”, ao lado de Álvaro Benamor, esse inesquecível Teatro das Comédias, da rádio oficial, que fazia as delícias dos ouvidos e fermentava a imaginação de cada ouvinte. Que bela saudade. No Teatro Aberto despediu-se com a peça “Copenhaga”, quando ainda a víamos representar o “Frei Luis de Sousa” no Teatro Nacional e deixou a sala do Trindade com o seu nome gravado para sempre. No cinema gravou a sua imagem no “Amor de Perdição” e no “Camões”, ao mesmo tempo que soube ser uma simpática “Vizinha do Lado”. Carmen Dolores partiu para que a sua voz se integre no coral de anjos que dão alento à sua nova vida espiritual. Que a memória te guarde!

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CARTOON

“União”

por XicoFran

“ O mal que os homens praticam sobrevive a eles; o bem quase sempre é sepultado com eles.” William Shakespeare . 82 .




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