Carlos Alberto de Carvalho ANA NÉRI A MÃE SITIADA São2021Paulo
Assistente editorial: Letícia Nakamura Preparação: Nestor Turano Jr. Revisão: Aline Graça e Nathalia Ferrarezi Arte: Valdinei Gomes Capa: Renato Klisman Projeto gráfico e diagramação: Renato Klisman C322aCarvalho, Carlos Alberto de Ana Néri : a mãe sitiada / Carlos Alberto de Carvalho. –1.ed. – São Paulo : Van Blad, 2021 176 p. : il., color. ISBN: 978-65-89370-03-1 1. Literatura infantojuvenil 2. Neri, Ana, 1814-1880 – Ficção I. Título 20-1160 CDD 028.5 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Ana Néri: a mãe sitiada © Textos 2021 Carlos Alberto de Carvalho Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros. 1ª edição – 2021 Van Blad Via das Samambaias, 102 - sala 03 Jardim Colibri / Cotia - SP CEP: 06713-280
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IV.
55
XI. Humaitá, Paraguai, março de 1868. 115
VIII. Salvador, agosto de 1865. 87
X. Salto, Uruguai, novembro de 1865. 105
IX. Porto Alegre, setembro de 1865. 95
XII. Assunção, Paraguai, maio de 1869.
VI. Salvador, maio de 1865.
I. Rio de Janeiro, janeiro de 1880. 9 Rio de Janeiro, março de 1880. 17 Rio de Janeiro, 20 de maio de 1880. 21 Manhã 21 Tarde 23 Segunda Parte Salvador, dezembro de 1864. Salvador, janeiro de 1865.
Terceira Parte
129
II.
VII. Salvador, julho de 1865. 71 Salvador, 8 de agosto de 1865. 79
PrimeiraSumárioParte
31 V.
III.
XIII. Assunção, Paraguai, setembro de 1869. 137 XIV. Assunção, Paraguai, janeiro de 1870. 149 Uma sexta-feira de abril de 1870. 153 Sobre Ana Néri – a mãe sitiada 159 Sobre o autor 159 Contextualização da obra 161 Discussão sobre literatura: linguagem e gênero 162
À Inês Maria, que, como mãe, melhor cuidou de mim… À Fátima, irmã, que em minha infância melhor se estreitou comigo… À Sônia, que saiu de casa como enfermeira de outros…
7 PrimeiraParte
I
– Esta, senhora? É esta? Ana sorriu, erguendo-se da cama, resoluta. Foi até a mesa de cabeceira, do outro lado do quarto. Caminhava sorrindo, quando passou diante da janela, a cortina tremulou, suavemente, e a lufada suave do vento da tarde bateu-lhe no rosto, no corpo. Fechou os olhos e vislumbrou… estacou e, parada, imaginou-se, no campo, na batalha, caída entre dois soldados, na vala, pro tegida pelos rapazes. Um deles a cobria com o corpo e lhe tapava os ouvidos, a cabeça. Voltou. Um arrepio lhe percorreu a espinha, tal qual uma dor. Abriu os olhos e caminhou pelo longo quarto.
Rio de JaneiRo, JaneiRo de 1880. – deixa… deixa eu ver? – O quê? – Deixa eu ver a medalha, filha? Sebastiana pôs as mãos na cintura, confusa. Olhou em volta e foi à penteadeira, viu a caixinha.
– Apenas Ana. Sim, Ana, porque gosto do meu nome. Agora venha ver a medalha que o Imperador me concedeu.Acriada foi ao seu encontro, animada. – Xá ver, senhora, então. Ana tinha a grande medalha na mão, estendida, orestá. Veja, Tiana! Que eu não admire essa coisa assim… Como olhar isso sem me lembrar dos perigos e medos; quantas aflições suportadas… e os tiros? A lástima de viver…! Eu vivi pelos meus filhos, pela minha família…, pensou e fechou a mão. Tiana se assustou, recuou. A mulher abriu a mão, envergonhada pelo gesto involuntário. – Viu, tô velha e boba, fechei a mão à toa – disse sem graça, agora o rosto sério.
A outra apanhou a medalha e pôs-se a mirá-la contra os raios de sol, que entravam festivos pela grande janela. Ainda ventava, e as mulheres eram cúmplices, tão próximas.–OImperador, Sinhá? Foi ele que deu? – Sim, Tiana, porque voltei viva do campo das mortes.–Credo, Sinhá! – Benzeu-se a criada. – Credo! Que campo da morte?
A n A n éri – A mãe siti A d A 10 – Tiana, já lhe pedi que não me chame de senhora! – Como não, senhora…? Chamar como?
gulhosa.–Aqui
Tiana voltou-se, fixou o olhar no rosto da outra, encarou séria.
C arlos a lberto de C arvalho 11
– Sim, chegaram. Que bom! A casa ficará mais animada.Tiana não respondeu, desapareceu lépida. Não viu Ana pegar a medalha e apertá-la contra o peito.
– De onde vim… onde estive para ficar perto de meus filhos e cuidar de outros homens!
– Chegaram, Sinhá! Ouviu? São eles! – animou-se Tiana, abandonando a medalha sobre a mesa de cabeceira.
– Mas fiz o que tinha de ser feito – murmurou e guardou a medalha. No andar térreo, cansados da longa viagem, encontravam-se o filho Pedro com a mulher e seus filhos.
Ana desceu as escadas apressadamente. Queria ver a nora, queria ver os netos. Tiana seguiu a senhora com os cuidados generosos de que ela necessitava: eram duas mulheres que moravam na casa confortável, contudo eram somente elas, as habitantes absolutas.
– O campo da morte? – Sim, só da morte, minha filha! Ouviu-se, então, um alvoroço no andar de baixo.
– Vocês chegaram! Que bom! – gritou ao pôr os pés no último degrau. Os braços abertos, feliz, apanhando os dois netos em grande abraço.
Pedro Antônio, capitão do Exército, aparecia vez por outra para visitar a mãe. Permanecia na casa por horas a fio, acompanhava a mãe ao jardim nos fundos da residência.
A n A n éri – A mãe siti A d A 12
– Mãe! Mãezinha querida, deixa disso. Sabemos nos ajeitar – falou Pedro, desculpando-se.
– O quê?! Não custa nada, vamos todos lá pra dentro – pediu Ana, animada.
Todos se entreolharam e obedeceram, rumaram para o interior da casa.
– Mãe…! Mãe, somente uma mãe pode rever um filho após percorrermos os terríveis Estados do Brasil, do Rio de Janeiro…! – disse o filho, nervoso, com mãos trêmulas.
– Vamos, Tiana, aprontar o jantar, sei lá, alguma coisa de comer, não? – convidou Ana. – Sim, Nhá. Vamos, sim! Ana tinha uma mão segura no neto e olhava para a criada numa expectativa alegre, satisfeita com a chegada do casal e dos filhos, um contentamento a olhos vistos.
– E as crianças correm… como se nada tivessem sofrido – dizia Ana, contente, agarrada aos netos. A casa, que se mantinha silenciosa, casa de mulher velha, solitária e cansada, agora berrava, agitada com os jovensTiana,visitantes.parada com a mão na cintura, em meio ao grande salão de entrada, sorria, ainda se acostumando com a agitação nova.
C arlos a lberto de C arvalho 13
– Mãe?! O que aconteceu? Abra a porta! Por que não me responde? – E batia com força. No interior do quarto, Ana estava sentada na borda da cama, cabisbaixa, os olhos marejando lágrimas, com as mãos nervosas, juntas, apertando-as quase aflita.
– Bom dia, mamãe! A sua bênção. – Deus te abençoe, Pedro. Bom dia!
Três dias depois, Ana estava a gritar no topo da es cadaria.–Tiana! Tiana, cadê você? A moça saiu esbaforida de um dos quartos, atarantada.–Sim, Nhá? O que quer, Nhá? Ana surpreendeu-se com a saída estrepitosa da criada, conteve-se para não rir. Disse: – Arrume-se! Vamos ao cemitério em meia hora! Pedro apareceu à porta de seu quarto.
– Vai ao cemitério? Alguém faleceu? Quem? Ana juntou as mãos e deu dois passos para trás, escondendo-se do olhar do filho. Pedro avançou, curioso.
– Mãe? O que foi? A mulher não respondeu. Voltou-se, abriu a porta do quarto e a fechou, guardando-se no cômodo. O filho encaminhou-se até lá e bateu à porta.
– Mãe, abra! Quem morreu? – queria saber Pedro. Ana sacudiu a cabeça, mexeu com força, desalinhando os cabelos já penteados. Cobriu o rosto com as mãos e chorou um pranto sentido. Choro de mãe;
– O que foi, mamãe? – insistia o homem.
– O que há, minha mãe? Por que se trancou e não me respondeu?Anasorriu contra a vontade. Não ousou mentir.
– Um instante, filho, já abro a porta.
Levantou-se e com passos firmes encaminhou-se à porta. Abriu-a. O filho precipitou-se no quarto.
sentida de mulher e mãe. O que fazer? Lançar-se janela abaixo ou arrancar fio a fio os cabelos da cabeça? Controlou-se, enxugou o rosto, ergueu a cabeça, engoliu em seco e, em voz terna, com um quê de carinho, respondeu ao filho: – Oi! Pedrinho? – Mãe, sou eu.
– Quando a dor aperta, vou ao Francisco Xavier; caminho por lá, rezo na capela e recordo teu irmão,
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– Então, mãezinha… Ana soluçava, somente isso. A dor era maior. Sabia se conter, guardar para si. Mirou nos olhos do filho. Os dois cara a cara: mãe e filho, sérios, aflitos, fitando-se fortemente.
– Nada, não, Pedrinho… é que… – Mãe, fala comigo! A mulher adiantou-se e se jogou nos braços do filho, o corpo pesado, um bloco de mármore de peso esmagador caiu sobre Pedro. Ele teve que sustentá-la, firme, nos braços.
C arlos a lberto de C arvalho 15 meu querido, perdido na guerra: Justianinho… meu filhinho…Pedrocalou-se e afagou a cabeça da mãe, estreitou-a mais e mais nos braços. Um confortava o outro, o abraço que fala mais que as palavras. – Irei também, minha mãe. Acompanharei…
II
Rio de JaneiRo, maRço de 1880. a sala estava deslumbR ante, as lamparinas acesas e as mesas ornamentadas traziam o colorido desejado para a ocasião.Osconvidados transitavam alegres, escravos e cria dos serviam enquanto os mais ilustres do Império se faziamFogosver.de artifícios pipocavam na noite clara com a lua vibrante, que iluminava a casa assobradada de Ana Néri. Ela estava parada, diante da grande janela que dava para o jardim. Num momento de não perturbação, encostou-se à parede e olhava. Que fazer? E essa agora de trazer escravos pra minha casa, eu que não tenho! Meu Deus, como isso? Bem, tinha que deixar Manuela trazer os dela… que horror! Escravos! Eu tenho a Tiana… e eu estou com a casa cheia, meu Pai do Céu!, pensava, um tanto quanto aflita.
– O que tens, Ana? Cansada? Ou arrependida? –aproximou-se Manuela.
– Acho que cansada… ou mesmo aborrecida, mas arrependida não estou, não. Precisamos deles.
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– Vamos lá com aquelas senhoras que vieram na companhia da Princesa Isabel! – Apontou Manuela.
– São senhoras ilustres e endinheiradas… – mur murou a Sorrindooutra.e com passos delicados, avançaram em meio ao frenesi de convidadas.
Eu tenho que demonstrar estar feliz, contente. Que me vejam assim!, pensou e voltou-se à amiga. – Temos que sentar um pouco. Meus pés não aguentam mais! – falou sofrida.
Os ilustres do Império estavam presentes. Ana era reconhecida por méritos realizados durante a guerra contra o Paraguai; havia recebido inúmeras homenagens, entre elas do Imperador d. Pedro ii, que lhe concedera uma pensão vitalícia, além da Medalha Geral da Campanha e da Medalha Humanitária. Quando Ana atravessou o salão acompanhada de Manuela, olhos atentos e furtivos a observavam. Ana era o modelo de mulher e mãe naqueles anos difíceis do Império brasileiro. A Princesa Isabel levantou-se e apressou-se ao encontro de Ana. Disse com voz baixa, quase sussurrante:
E a velha mãe voltou-se para o salão com um bom sorriso, o rosto esplendia uma suavidade nos traços marcados pela dor.
C arlos a lberto de C arvalho 19 – Minha senhora Ana, gostaria que sentasses comigo! Ah! Como quero ter a honra de me sentar ao vosso lado! Manuela e Ana se inclinaram reverentes, respeitosas.
– Ora, deixem disso e venham sentar-se comigo e com estas senhoras. Estou em tua casa, dona Ana, não esqueças – lembrou a princesa, tomando a mão de Ana e conduzindo-a satisfeita às mesas onde estava sentada. Ana acomodou-se em meio às nobres mulheres e todos voltaram-se a ela. Manuela estava sem graça. A princesa tomou a palavra.
– Dona Ana, esta reunião dos principais do Impé rio, em tua casa, será para a criação de um fundo de assistência? É isso? Ana ergueu a cabeça, pronta: – Sim, minha senhora. Gostaria de provocar tamanhas doações a fim de criarmos e mantermos um bom hospital, uma assistência adequada aos mais pobres, aos mais–necessitados.…sim,bom motivo… sim, claro! – falava como que sozinha a Princesa Isabel.
– Creio que isso é urgente, nossa cidade é um foco de doenças e contaminações variadas! Podemos estancar um pouco isso, que nos envergonha perante as nações vizinhas e aquelas da Europa. Estamos muito mal nos serviços de saúde! – falou Ana para as mulheres que ou viam, atenciosas. – Falarei com o Imperador, dona Ana. Prometo! –asseverou Isabel.
A n A n éri – A mãe siti A d A 20 Ana se inclinou e segurou as mãos da princesa com firmeza.–Isso é urgente, Sereníssima Princesa!
O pianista principiou a tocar e também a cantar uma modinha. Uma das damas ergueu-se entusiasmada. – Essa modinha me agrada. Vamos? – convidou.
A princesa sereníssima permaneceu sentada. Mulher de porte pequeno, contudo os seus olhos passeavam pelo salão frequentado, procurando avidamente com quem iniciar a conversação. Olhou, reparou e en controu seus olhos com os de Ana, do outro lado da sala. As duas fixaram-se, cúmplices. Não tenho com quem contar… ufa! Não tenho mesmo, mas Deus me guiará! O Império não tem garantia em seus homens ilustres!, pensou desanimada a filha de d. Pedro ii. Ana, circundada por damas alvoroçadas, voltou-se ao célebre pianista a contragosto. Valha-me…! Valha-me Deus, que não sirvo pra isso! Que meus pobres enfermos me animem a suportar este inferno de gente folgada, pensou enquanto ria, fingindo-se alegre e espontaneamente satisfeita.
O toque provocou em Isabel o pretendido por Ana. As duas se olharam demoradamente.
III
O padre subiu apressadamente os degraus, seguin do Tiana.Quando entrou no quarto, surpreendeu-se com a quantidade de pessoas que ali estavam reunidas.
Rio de JaneiRo, 20 de maio de 1880. manhã a poRta foi abeRta com força e os passos do padre Karol fizeram Tiana erguer a cabeça. Ela estava sentada no último degrau, chorosa.
O tempo de Ana Néri parecia que findava.
– Minha filha, vim o mais rápido que pude. Ela piorou?Tiana olhava, mas seus olhos estavam embaçados, sem brilho. Não enxergava. Absorta pela dor e tristeza.
– Vim ver, padre… ela se vai… – murmurou entre soluços.Acriada ergueu-se prontamente. O sacerdote continuou parado, mãos juntas ao corpo, e em uma delas o livro de orações aos moribundos.
A grande cama no centro do quarto. Ana ali jazia, tendo em torno de seu corpo umas dez pessoas, que lhe sussurravam palavras de conforto.
Padre Karol, um grandalhão polonês, disse com autoridade:–Gostaria que somente permanecessem aqui o filho, a mulher deste e a criada Tiana, por favor.
– Mãe?! Mãezinha, tá melhor? – Caiu na borda da cama Antônio, permitindo-se relaxar. Ana concordou com a cabeça e acariciou o rosto do filho, sorrindo, contida. Uma opressão lhe fazia arfar involuntariamente.–Mamãe,mamãe
– Sim, meu filho Antônio aqui está, senhor padre! – respondeu Ana, para surpresa de todos.
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No canto extremo, próximo à grande janela, cabisbaixo e com um profundo olhar de tristeza estava Antônio, como que pregado na parede, em pé, absorto, a cabeça erguida como que à procura de um alívio, um suspiro que mantinha guardado no peito oprimido.
– Preciso saber se aqui há um dos filhos de Ana –disse com firmeza.
Um murmúrio de descontentamento foi ouvido. Ana estava consciente, mas não tinha forças. Olhou fixamente o homem e aprovou a atitude com o olhar. Que tudo seja para melhor, que não me aguento mais.
minha… quer alguma coisa? –murmurava Antônio, desconsolado.
– Estou no Paraíso…? – zombou e piscou os olhos à criada.–Não brinca assim, Nhá… que coisa! Ana sentou-se com ânimo.
– Vamos, padre, é hora de fazer o que se há de fazer! O homem avançou e os fortes passos estalavam a madeira do assoalho.
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– Em nome do Pai… taRde Acordou sobressaltada. Olhou em derredor. Na grande poltrona estava Tiana, sonolenta.
A mulher de Antônio avançou e, solícita, abraçou o marido.–Vamos, levanta! O padre quer fazer as orações, meuAnabem!estava com dois grandes travesseiros apoiando-lhe as costas. O rosto tranquilo, os cabelos soltos, espalhados pelas espáduas; uma figura de mulher resignada, em preparação para a morte. Olhava e via, via a todos e seus pensamentos ora se confundiam com a notícia da morte do filho Justiniano… Fechou os olhos e abriu as mãos, que estavam pou sadas no colo.
– Mais uma desta… e parto! – arfou Ana.
–MalClaro!pronunciou
– Me ajuda?
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essas palavras e Ana tombou nos travesseiros, imersa em uma forte dor. Tiana acudiu.
– Nada! Nada, minha Nhá – dizia Tiana, enxugando o rosto da senhora, que logo se cobriu de gotas de suor.–Me busca na gaveta o retrato dele… fi-fi-filha. Tiana olhou-a, sabia quem era, o retrato do filho perdido na guerra: Justiniano. A moça levantou-se, cruzou o quarto enquanto uma forte rajada de vento agitava a cortina. Tiana caminhava com passos leves e o rosto já entristecido. Caminhando já avistava Justiniano em pé, as mãos cruzadas. O retra to perpetuava o que fora vida, agora lembrança.
– Va-vamos, Tiana, me traz meu rapaz – pedia, com voz fraca, a heroína da guerra. Ana tinha os olhos voltados ao teto, mas desejava contemplar o rosto do filho no retrato.
– Agora tenho força de uma vaca leiteira! Não en tendo como estou a morrer e agora tenho fome, fome de cavalo.–Então coma, Nhá.
– Ai! Ai! O que tem, Nhá? Ana apertou-lhe as mãos. As duas se olhavam, mãos estreitadas e olhar severo. Súbito a dor cessou. Assim como veio, assim se foi.
C arlos a lberto de C arvalho 25 – Ele era meu bem! Tiana trazia o retrato com passos apressados.
– Fui pra guerra para protegê-los… meus filhos.
– Nhá, fique calma! Fique calma! – dizia Tiana enquanto entregava o retrato, colocando-o no colo de Ana.Um
sorriso encheu seu rosto enrugado. Uma rajada de contentamento inundou o ser da moribunda. Ela não via a foto, via o filho querido. – Tudo bem, Justinho? Por que tá aí parado? Venha cá? Quero que fique perto de mim… Tiana olhava tristemente, mas logo percebeu que era melhor abrir as cortinas, deixar o sol entrar.
– É melhor chamar todos, Tiana, é melhor! – disse Ana,Aconvicta.criadaestacou em meio ao quarto por instantes e logo em seguida correu, abriu a porta e gritou: – Nhô Antônio! Nhô Antônio…! Venham todos! Quando se voltou, Ana estava lívida, os olhos semicerrados, numa tranquilidade encantadora. Foi o tempo de a família entrar no quarto, assustados, nervosos, atarantados… – Ma-mamãe? – Vo-vó! – Dona Ana! Ana Néri tinha a cabeça inclinada para a esquerda e o rosto tranquilo, e segurava o retrato firmemente nas mãos.
A n A n éri – A mãe siti A d A 26 – Pai nosso que estais nos céus… – iniciaram em murmúrios respeitosos. Eram 16h30. Tiana chorava num canto, com as mãos cobrindo o rosto. Nhá, minha mãe, vai em paz, sussurrava entre o choro contido e o horror de ver morrer quem amava.
SegundaParte
IV salvadoR, dezembRo de 1864. os músicos tocavam suavemente. O som dos violinos era o mais saliente e se espalhava pela casa luxuosa do major Maurício Ferreira, enquanto os convidados para a ceia de Natal aguardavam, elegantemente trajados, o frei Rubião.AMissa do Galo foi extraordinariamente antecipada por conta das tempestades dos dias anteriores. A cidade alagou-se tremendamente, prédios e casas foram inundados e as ruas estavam intransitáveis: lamaçal, animais feridos e mortos, além de desabrigados. No andar superior da casa grande e assobradada, sentada diante do grande janelão, defronte à sacada, Ana Néri olhava o céu entre nuvens e estrelas. O abafamento que anunciava forte chuvarada in quietava bastante os baianos. Ana ouvia os músicos tocando “Noite Feliz” numa alternância entre violino, piano e flauta. Estava encostada à parede, na sacada frontal do segundo andar. Ouvia distraída. Gostava bastante do Natal, das celebrações,
visitas, trocas de presentes, principalmente porque podia ter os três filhos juntos a si. A música enchia a casa, o burburinho dos convidados e parentes também preenchiam tudo de alegria e de uma comoção agradável, afinal era Natal, fim de ano… e a tempestade se avolumava no abafamento forte de fim de tarde.
das32
– Que faz aqui, minha irmã, escondida? – falou e imediatamente a tomou em seus braços, beijando-a de maneira afetuosa. Ana correspondeu e deixou permanecer, abraçando-o mais estreitamente.
– Que coisas, minha irmã? Estás doente? O que houve?Ana se desvencilhou dos braços do irmão e se pôs a andar lentamente pelo quarto.
A n A n éri – A mãe siti A d A
As crianças agora corriam agitadas, brincalhonas pelo salão, e as escravas tentavam sossegá-las. Tudo ouvia Ana enquanto olhava o céu escuro de Salvador. Agora, absorta em pensamentos desconexos. A porta se abriu e entrou o irmão Maurício acom panhado da mulher.
– Não sei o que é… Durante a semana comecei a ter uns pressentimentos, uns sobressaltos… Certa preocupação esquisita, como que perdida em pensamentos ruins.
– Que tens, Ana? Preocupada? – Sei não… coisas minhas… A cunhada permanecia distante, olhando-os.
– Sim… também… – falou pesarosa. A cunhada, então, avançou animada, com voz vivaz.
– O Pedro Antônio também virá. Chegou cedo, pela manhã – disse Ana um pouco mais animada.
C arlos a lberto de C arvalho 33 – … com os filhos…?
– Bem! Bem! Vamos acabar com isso, vamos, sim! Temos o Natal… ao menos o Cristo para nos animar!
– Após a ceia devo comunicar algo para a família!
– disse a mulher e pegou o marido e Ana pelos braços, retirando-os do quarto.
– Mas pelo amor do Natal, deixemos as dificuldades para o tempo certo. Por Deus! – exclamou irritada. Obedeceram e seguiram silenciosos.
um trovão ribombou. A cunhada sol tou um grito e voltou correndo para abraçar o marido.
– O que é tão importante? Pelo modo que fala… –perguntou Ana, curiosa. A cunhada se pôs diante dos dois.
No corredor, Maurício estacou repentinamente.
– Que horror! Que susto, meu Pai! – horrorizou-se. Ana sorria. Os trovões, relâmpagos e tempestades a agradavam deveras. Eram um encanto íntimo os baru-
– Não. Mas que, quanto mais gente, menos desperdício!Subitamente
– Ótimo! Ótimo! Não sobrará comida. Nada de desperdício em minha casa!
– Quer dizer que meu filho é um guloso?
lhos34 e as luzes nos céus. Em vez de se afastar, corria às janelas para melhor ver e ouvir. Andavam juntos e a música vinha-lhes ao encontro.
– Santo Deus! – Que noite de Natal! – Ave Maria! – Que horror de ventos…! Ela inclinava a cabeça satisfeita, sorria animada. Que coisa boa. Isso me alegra e satisfaz. Como posso gostar tanto de um vendaval assim? Abafado... tava abafado. Que bom, bom mesmo! Que frescura de chuva. O cheiro, o cheiro. Ganhei um dia de Natal muito bom ali! Bom. O irmão vez por outra a observava. O homem estava inquieto, mas ela percebia que algo estava acontecendo. Meu irmão esquece que sei como é ele, ora! Como está esquisito! Deve ser algo ruim, só pode. E que fazer? Agora vou sorrir. Estão me olhando. Ele também me olha fixo, depois desvia o olhar. Caramba! O que há? Vamos ver isso!
O vozerio, o grito das crianças, tudo convidava ao Natal em família, festivo. A tempestade desceu vertiginosa, uma fúria entre águas torrenciais e trovões escandalosos. Mulheres e crianças vez por outra estremeciam, algumas se abraçavam,Ana,medrosas.àmesa, observava animada os movimentos de espanto aos relâmpagos, que via brilharem intensos e fulgurantes pelo clarão na janela, e logo aguardava o ribombar que assustava tremendamente a muitos.
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aconteceu…
– Abençoe-nos, frei! Abençoe-nos por este Natal do Senhor! – disse com voz forte. Frei Rubião era um homem de altura boa, voz possante e com um rosto bonito, mesmo que marcado pela gravidade. Um franciscano com seus gestos expansivos.
35 Se Antônio não estivesse aqui, logo pensaria que algo lhe mas tá aí bonito, bonito me olhando. Vou rir pra ele. Filho querido, que saudade, vou abraçar logo, logo você. Muito, muito. E os pensamentos de Ana se enchiam de novidades enquanto a chuva caía, agora mansa, uma aragem branda.
C arlos a lberto de C arvalho
O furor havia cessado. A sala com os seus convidados estava impregnada pelo vento fresco, suavidade advinda após o turbilhão de águas torrenciais, trovões e relâmpagos. O frei finalmente chegou e a animação trazida por ele contagiou a todos. O major se aproximou de seu convidado, sorrindo: – Demorou-se, frei… isso são horas? – disse jovial mente o anfitrião. Ana, logo atrás, avançou alguns passos.
Homem de penitências… no meio das pessoas se mostrava sociável, mas um quê denotava que era reservado, de poucas palavras. Sabia se dar ao convívio. Contudo, o bom observador percebia que não ficava totalmente à vontade.–Pois bem, abençoarei a todos! – disse, traçando o sinal da cruz e, enquanto todos se inclinavam, Ana falou em voz alta:
Na manhã seguinte, nas primeiras horas em que o sol encheu o jardim da casa, o major Ferreira abriu a porta da cozinha e se encaminhou com passos firmes
A n A n éri – A mãe siti A d A 36 – Sim! Sim! Amém! A mulher do major puxou o frei do meio dos convivas. Trouxe o homem às pressas para a sala do banquete. Todos seguiram, animados. Os músicos calaram os instrumentos.–Cantem! Toquem! Vamos – gritava Ana, alegremente.Quando o frei se deparou com a comprida mesa abarrotada de comida, entre frutas, frangos, porco, pães e muitas outras guloseimas e pratos diversos, o homem segurou a barriga e exclamou estupefato: – Minha santa pobreza, mas o que é isso?! – Frei Rubião, abençoe, por Deus, que estamos mortos de fome! – disse aflita a mulher do major. Mais uma vez o frei traçou o sinal da cruz com os olhos esbugalhados por ver tanta comida e coisas boas em grande Apenasquantidade!terminouo gesto, abaixou o braço, as crianças e os jovens avançaram ruidosos, esfomeados, e a ceia do Natal foi abocanhada entre gritos de satisfação e a felicidade da fartura. Os músicos tocavam uma polca.
C arlos a lberto de C arvalho 37 às mesas e cadeiras acobertados pelo caramanchão. Lu gar fresco, acolhedor, onde se podia tomar o desjejum agradavelmente entre mussaendas rosas e brancas e o cantar dos diversos pássaros, que davam ao ambiente certo recolhimento peculiar. Um refúgio tranquilo, fora do falatório dos salões da casa.
Ferreira parou por instantes, pôs as mãos na cintura e se sentou pensativo. Ele não sabia que era observado por Ana, da janela de seu quarto, por detrás da grossa cortina. Que aconteceu? Por que está no jardim, sozinho, pensativo? O que aconteceu a meu irmão? Devo perguntar? Ele disse ontem que tem algo a contar… que será? O que houve? Pois bem, devo perguntar… algo preocupa ele. O que fazer? Vamos, Ana! Vamos logo! E assim pensou e assim se retirou do quarto a irmã. Encontrou o irmão mais compenetrado. As mãos cobrindo o rosto, o tronco dobrado, em severa reflexão. – Maurício, que há? O que tens? – falou em voz baixa.O homem estava absorto, mergulhado em seus pensamentos. Não a ouviu, tampouco a viu se aproximar. Ana tocou-o, dizendo: – Meu irmão, fala comigo! – pediu. – Hã?! O quê…? Ana? – assustou-se. – Sim, Maurício, sou eu. O que está acontecendo? – quis saber. A voz mais forte, persuasiva.
– O quê? Aconteceu? – Não. Claro que não, minha irmã! Ana pôs as mãos na cintura, avançou uns passos.
A n A n éri – A mãe siti A d A
– Ana… Uma guerra…! – sussurrou, em voz quase inaudível.
– Mas… mas… Ana…!
– O quê?! Como é isto, Ana? – Vamos! Vamos, Maurício! Não arredo meus pés daqui sem saber tudo. Fala! Ele sabia como era a irmã. Mulher de palavra, cumpriria o que havia dito. O major coçou a cabeça, preocupado.
– O quê? Fala logo, Maurício! – interrompeu. –Aconteceu algo com um de meus filhos? Qual deles?
38 O homem se ergueu, buscando atitude mais firme. Estava surpreso com a presença de Ana. – Nada, minha irmã! Nada que não se resolva! – Ih! Então é sério e quero saber agora, e não ser a última a saber.
– Eu falaria, Ana, mas é tudo tão preocupante…
Voltou-se dizendo: – Pombas! O que te aconteceu, então, homem? O major se empertigou e caminhou em direção à irmã. Olhavam-se aflitos. Que ele vai me contar, Pai do céu?! O quê? Preciso ouvir isto? O que tá acontecendo, ó vida? Coitada de minha irmã! Quando lhe falar, desejará que a terra se abra aos seus pés e a engula num trago só!
C arlos a lberto de C arvalho 39 – Ah! Hã? Quê? – perguntava com os olhos, a boca aberta, sem Maurícioentender.avançou, ficou defronte à irmã, segurou-a pelos ombros, fortemente, dizendo: – Ana, estamos em guerra. O Brasil vai lutar contra o Paraguai…! – falou e olhou-a fixamente. Ana percebeu que o seu corpo amoleceu, a voz do irmão se tornou fraca, voz sumida. O que tá acontecendo? O que é isto? Os olhos pareciam embaçados… Tá chovendo? O que me impede de enxergar? Misericórdia?! É um desmaio? Tô desmaiando? O homem amparou a irmã em seus braços, ela que principiou a cair como um saco pesado, algo sem vida.
O que houve, Maurício? – perguntava aflita a mulher.
Ele olhava, entristecido, Ana e murmurou entredentes: – Contei que estamos em guerra… Ana, no entanto, desmaiada, sonhava. Estava no dia de seu casamento, diante do marido, planejavam o futuro.
olhando.–Oquehouve?
Ana não tinha sentidos, um corpo flutuando no ar quando amparado pelos braços ágeis. AcudiramDesacordada.prontamente aos gritos de Maurício a mulher e as escravas domésticas. Outros ficaram distantes,
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40 O casal estava acomodado em sua alcova, tranquilo.
Homem bom e alegre, parece gostar de minha companhia, daqui a pouco volta pra fragata e eu fico sem ele. Ah! É a vida, e eu fico por aqui. – Volta quando? – perguntou Ana. – O quê? Pra onde? – Volta pro mar, quando? Isidoro se apoiou no cotovelo direito e se debruçou quase em cima de Ana.
– Casamos hoje, dia 15 de maio de 1838, e você me quer longe já? – falou sério, Isidoro. – Não! Não, claro que não, meu querido! O contrário… – E se agarrou a ele. – Por mim, não sairia nunca desta casa!
Como ele é bonito… Que boca e olhos belos este Isidoro tem pra mim. Como me agradam seus abraços e beijos…!
Isidoro era um ho mem de grande estatura. Farta cabeleira, rosto vigoroso com dois grandes olhos negros.
– Enfim, pensei que jamais ficaríamos sozinhos! –disse Isidoro.
– Estou exausta! Recebi tantos cumprimentos, beijos e abraços nos últimos três dias que me sinto dolorida pelo corpo todo – falou Ana, rindo.
Ambos se olharam, atentamente. Sorriram. – Ufa! Merecemos agora estar sozinhos, não? – animou-se o homem. – Pois é! Sim, Aconchegaram-seestamos…!animados.
41 Ele se deixou agarrar, curvou-se para beijá-la leve mente nos lábios.
– Não! Não! Não me deixe, filho! Uma guerra! O moço cedeu. Deixou-se ficar preso nas mãos da mãe, enquanto Ana chorava sentida.
Que moça minha tão meiga! Ana, Ana, você me é um presente! O que seria de mim, homem do mar, na aventura de tantos portos e mares? Agora tenho em quem pensar, quem esperar… Gosto de você! – Amanhã vamos passear pelo rio Paraguaçu e vamos às quedas d’água, à cachoeira, tá bom? – falou animado. Ana, ainda com os olhos fechados, assentiu. Os olhos abriram e deram com os olhos do filho
– Mãe?! O que é isso, mãezinha? – acalmava o rapaz.
Apoiou-se nos cotovelos e fez um gesto, aborrecida: – Ah! Ai que eu não morri, foi um leve desmaio! Estou bem… viva! – E fitava fixamente o filho. Então, num gesto impulsivo, agarrou Pedro Antônio com força.
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– … mãe, que houve? – Sei lá! O que houve? Maurício falou de uma guerra… ai, ai, filho, eu agora sonhava que estava com o seu pai, nós dois abraçados, contentes… – falou as últimas palavras no ouvido do filho.
Pedro Antônio. Fitou-o desconcertada, tinha mais gente no quarto.
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– O quê? Não chorar meus três filhos que vão para a guerra? – falou em tom bravo. O irmão calou-se. Não tinha argumentos ou força para amenizar a dor de Ana Néri.
– Isso não está acontecendo! Estou sonhando um sonho mau, é uma mensagem maligna. Não! Não! O Brasil não está em guerra! – revoltava-se Ana e deixou tombar o corpo, desolada.
– Tenho três filhos… e homens! Todos vão pra guerra e eu ficarei aqui sem marido… e filhos! – lamentava-se. Maurício entrou no quarto, esbaforido.
O caixão com o corpo de Isidoro Néri, marido de Ana, estava exatamente no centro do salão da Câma ra Municipal de Villa de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira do Paraguaçu. Às portas todas abertas, impedindo quem desejava entrar ou sair, uma formidável multidão, entre curiosos e os que admiravam o capitão Isidoro Néri.
– O que há, Ana? Deixa, deixa disso! – pedia.
– Mãe, eu ainda tô aqui! Não morri... nem cheguei a lutar!Ana procurou com os olhos o irmão. – Não tem como impedir que se vão? Maurício meneou a cabeça, em seguida desviou o olhar e se retirou do recinto.
Ana estacou diante do caixão, toda a sua dor extravasou em silêncio. Tinha que interpretar, ou melhor, ser forte, muito forte, diante dos filhos.
Ela avançou alguns passos, inclinou-se para ver melhor o rosto do marido morto, inclinou-se mais e o beijou na testa. Vá em paz! Por que vais embora, querido? Me deixas vazia! Santo Deus! Ampara-me.
Abriu os olhos mais uma vez e deu novamente com os do filho. – Mãe? Mãe?! – gritou Pedro. – O quê?! O que é?
43
Meu Deus! Meu Pai! O que será de mim com três filhos homens e pequenos? Meu coração está arrasado…! Tenho que fazer alguma coisa… ai! Meu coração que não aguenta! A multidão abriu e Ana passou lenta e tristemente. Que calvário! Por que não fujo daqui! Que eu me acabo, sim, me acabo! Ver Isidoro morto e ainda levar os filhos para que vejam e… bem!
C arlos a lberto de C arvalho Mas quando Ana surgiu na rua com passos lentos, segurando as mãos dos filhos caçulas, Isidoro e Pedro Antônio, e à frente, segurando um buquê de variadas flores, o mais velho, Justiniano, todos os olhos se voltaram a ela, que vinha pesarosa, com os amigos e parentes próximos.
– A senhora desmaiou ou apenas está fingindo? – Fingindo? Eu?! O que é isso?
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Lá descansará melhor. – Pedro, eu não minto! Tô bem aqui! – E cruzou os braços, aborrecida.
– Tá bom! Tá certo. Alguém deve perguntar o que parece estúpido.
– Calma, mãe, tudo tem seu jeito de melhorar! –Aproximou-se e a beijou na fronte. – Sim, meu filho, que o Senhor me dê forças! – conformou-se.
– Mãe, levante-se e vamos daqui para nossa casa.
– Não me importo com essas investigações e conversas fúteis: meus filhos vão para a guerra, e eu tenho que assistir a essa separação cruel, o meu coração… Pedro pôs o dedo na boca da mãe.
Vamos? Vamos! E ela entrou na sala repleta de gente. – Mas isto aqui é uma festa? – brincou, animada. Falou e os olhos percorreram ávidos por todos os cantos, olhou a todos num átimo, em velocidade de an gústia e viu dois filhos: Justiniano e Isidoro. Os olhos procuraram o outro, sim, o outro: Pedro Antônio. Onde estava? Cadê Pedro Antônio? E tanta gente! Será que toda a Bahia está aqui? Maurício havia dito que seriam somen te as famílias mais próximas, os familiares envolvidos com
V salvadoR, JaneiRo de 1865. ana descia as escadas como se repetisse os passos do dia do funeral de Isidoro. Sabia que encontraria os três filhos, os irmãos e outros parentes, todos reunidos no salão. Estavam aguardando por ela. Isto não é um domingo! Isto é uma sexta-feira de azar e mau agouro! Tenho que ter fé e esperança! Meu olhar deve ser de esperança…! Não posso ceder às minhas fraquezas, uma mulherzinha tola, não, não! Chegarei bem, sorrindo mesmo que meu coração esteja batendo desacelerado!
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46 a nossa família, que os filhos também seguiriam para a guerra… então conhecemos toda a Salvador, não é mesmo? – Mãe! Mãe! Ana estacou. Reconheceu a voz. Era Pedro, estava atrás, entre casais se divertindo em conversa alta.
Lindo! Meu bem! – Calma, mãe, calma! Todos estão olhando. Calma que não vou escapar. Me dá o braço. Vamos! Um instante que saí, para respirar, veja como isso está abafado. Tio Maurício exagerou trazendo tanta gente! Fui respirar um pouco lá fora. – Sim, tá bom, já achei você. Vamos pra perto deles. Quero todos perto de mim. A grandiosa casa do major Maurício recebia os convidados: famílias e todos os envolvidos na iminente guerra contra o Paraguai. Esta reunião estava sendo realizada para fortalecer os ânimos, provocar o bem-estar entre pais e filhos, que partiriam para um confronto arriscado, porquanto fi nalidade de amenizar o clima de tensão e dúvida que pairava no ar: o Brasil tinha capacidade de entrar em confronto bélico e obter resultados positivos? Esta e
– Tô aqui, mamãe! – falou ternamente o rapaz. A mulher se voltou rápida e feliz. Correu ao encontro: – Pedro! Pedro, meu querido, por que não estava junto de Justiniano e Isidoro? Abraçaram-se. Ela logo passou a mão no rosto do filho.–
– Dentro de três dias embarcaremos, mãe. Nós temos que ir, mas…
C arlos a lberto de C arvalho 47 outras dúvidas afligiam o Império e, principalmente, a viúva Ana Néri.
– Mamãe, mamãe, aonde ia com tamanha pressa? Procurava o seu queridinho? Achou? Voltou com ele… – falou em tom jocoso, Justiniano.
Justiniano se adiantou com desenvoltura. Era alto, corpo definido, rosto de traços firmes, olhos negros e grandes que lhe davam um ar encantador, mas era a voz, sim, a voz que atraía a todos. Voz possante, viril, em tom grave que envolvia quem se interessasse a lhe falar.
– Não fale assim, filho, gosto de todos.
Justiniano piscou os olhos para Isidoro, dizendo:
– Mas o Pedrinho é o caçulinha, não é mesmo? Ana parou, olhou os três filhos e avançou: – Mas é ciúme? Deixe disso, Justiniano, que coisa! A mãe então se sentou. Os três filhos se aproxima ram. Isidoro se sentou mais próximo, o rosto assustado. Voltou-se para a mãe com aflição.
Tenho que manter o sorriso. Não é assim? Parecer despreocupada. Se não vou logo, logo abrir a boca em pranto medonho… Vamos, vamos, são meus filhos. Minha vontade era correr feito louca por este salão, gritando: meus três filhos vão à guerra! Quem me salvará?! Que provação esta! Ah! Arthur está ali com os dois, como tá bonito, sempre foi. Que sobrinho bonito! Vai pra guerra também? Meu Senhor e Deus, que não restarão os homens da família Ferreira!
Isidoro se jogou chorando nos braços da mãe. Justiniano se ergueu aflito. Aproximou-se da mãe e dos irmãos, compadecido. Todo ele tremia, as mãos unidas. Parou e disse: – Mamãe, acalme-se! Olha pra mim, mamãe, nós voltaremos, não vamos morrer no Paraguai! Olha! Olha pra mim, mamãe! – falou resoluto, em tom forte, bravo. Ana olhou-o, viu o filho diante de si, homem, corajoso, bonito, seu filho. O que será de mim? Tenho que ser forte, nada de mulher fraca, boba. Olhe firme pra ele e sorria. Como está bonito este meu filho! Aqui estamos em dores: eu, a mulher das dores sem marido, agora sem filhos, que vão pra guerra. Sinto que um… um… um deles não voltará. Tô angustiada e ele me olha tão firme. Quem ensinou ao Justiniano como ser assim tão envolvente, tão sério, um homem, meu filho?! – … mãe?! Mãe, tá me ouvindo, mãe? – perguntava Justiniano, agora inclinado, diante de Ana. – Sim, Justinho, tô sim; já me acalmei, fiquei confusa… tô mais calma. Deus sabe de tudo e a tudo
A n A n éri – A mãe siti A d A 48 – … o quê? O quê, meu filho? – E a senhora ficará como? Justiniano se intrometeu, nervoso. – É… mãe… fazer o quê? – Temos que ir! – confirmou Pedro. Ana abriu os braços, compreensiva. – Não tenho mais o pai de vocês, meu irmão vai, o Arthur… vocês três… Que coisa ruim aqui no peito…
– disse as últimas palavras alterando a voz, comJustinianofirmeza.
– Vamos! Pedro e Isidoro, levantem-se, fiquemos de pé e prometamos que cuidaremos um do outro!
– Ah! Pensei em uma coisa… Hã, não, nada, não… que –coisa!Fale, mãe! – incentivou Pedro. – Nada, é coisa que me passou pela cabeça, sei lá, nada não…
– Sei não, sei não, será que não poderia acompanhar vocês ao Paraguai? – perguntou e abaixou a cabeça, sem Osgraça.três rapazes se entreolharam bastante surpresos. Parecia que não haviam entendido o que a mãe dissera. – Mamãe, não entendi… – falou Justiniano. Ana ergueu a cabeça.
C arlos a lberto de C arvalho 49 providencia
puxou a mãe de encontro a si, dizendo: – Minha mãezinha, fique bem calma, cada um de nós cuidará um do outro. Estaremos próximos ou ao menos sabendo notícias… – Prometa! Prometam – retrucou Ana.
Os irmãos se abraçaram diante da mulher, apertados, cabeças erguidas e com os olhos fixos na mãe. – Sim, prometemos! – falaram juntamente. Ana deu um passo.
– Mas fale mesmo assim, por que não? – incentivou Pedro.Os três olhavam a mãe, silenciosos, atentos.
– Deixem-me ir, devo ajudar também na arrumação de alimentos e suprimentos. Daqui a pouco conversaremos mais. E partiu em rapidez de quem quer ajudar.
– … mas o que é isso, mãe?! Isso é sério? Não acha que seja perigoso, mortal? – desabafou Pedro Antônio, dando passadas ruidosas ao redor da família.
50 – Quero acompanhar vocês ao Paraguai, também fazer algo bom! Os rapazes avançaram em passos rápidos, mas a expressão no rosto era de espanto.
– Me respeite! Não sou louca! Por que não poderei partir também?
– A senhora, minha mãe, quer ir à guerra?! – perguntou
Falou, olhou-os mais uma vez, foi-lhes ao encontro, beijou-os nas frontes e disse claramente:
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– … é uma guerra… – falou alto Justiniano.
AnaJustiniano.nãorespondeu, mas encarou a cada filho com paciência e um leve sorriso no canto da boca.
– O que me importa?! Se meus três filhos vão ao Paraguai, não tenho nada mais que me prenda por aqui… vou também! Quero ser útil. Os filhos se sentaram abismados, confusos. Ana observa-os atentamente, feliz por ter três filhos amáveis.–Sim, eu tentarei todas as maneiras possíveis! Se vocês partirão, eu também irei!
Ouvimos isso mesmo: nossa mãe pretende ir tam bém à guerra? – falou, perplexo, Isidoro. – Sim, irmão, dona Ana Néri, nossa mãe, pretende nos Eacompanhar…ostrêsrapazes
olhavam o vaivém das pessoas, muitas, mas seus olhos não viam, tão assustados estavam com a informação dada pela mãe. Mamãe conseguirá? Será? Sei que procurará todos os meios. Oh, meu Deus! Como será isso? Proteja-a! Guarde-a! Sei que não desistirá, pois não terá mais nada a perder depois que embarcarmos ao sul, assim pensava Justiniano, maisAconsolado.ideiaouo desejo entrou no espírito de Ana e assim desabrochou. Inquieta, no dia seguinte retornou à casa do irmão. Encontrou-o à mesa do desjejum, tranquilo, nem parecia que no dia seguinte embarcaria rumo à província do sul, acompanhado de quatro sobrinhos, além de Justiniano, Antônio e Isidoro, filhos de Ana, e Arthur, outro sobrinho; uma família rumo à Tríplice Aliança! O que provocou tal situação? Ou significava uma guerra no sul das Américas? Por que Argentina, Uru guai e Brasil se uniram contra o Paraguai? O Uruguai tinha lutas entre os partidos Blanco e Colorado, uma guerra civil na qual o Brasil se intro-
C arlos a lberto de C arvalho 51 –
O governo de Solano instituiu aos paraguaios o serviço militar obrigatório, organizou todo o exército com oitenta mil homens, arregimentou a Marinha e estabeleceu indústrias bélicas.
Solano Lopes era um homem ambicioso, de olhos expansionistas e desejos largos, possuía material bélico moderno e se sabia que pretendia alargar em territórios outros, como os da Argentina, do Brasil e do Uruguai, regiões que abrangeriam as áreas de Correntes e Entre Rios (Argentina); Rio Grande de Sul e Mato Grosso (Brasil); Uruguai e o próprio Paraguai.
O Brasil do século xix era um Império incômodo com fronteiras republicanas.
A n A n éri – A mãe siti A d A meteu52 e o ditador paraguaio Solano Lopes não gostou, contrariou-se e não se fez de rogado para que o Império brasileiro notasse seu aborrecimento.
Solano aproveitou a deposição de Atanásio Aguirre, seu aliado, do Partido Blanco e, contrariado em seus interesses, aprisionou no porto de Assunção, em 11 de novembro de 1864, o barco a vapor brasileiro Marquês de Olinda, que transportava o presidente da Província do Mato Grosso, Frederico Corrientes, entre outros brasileiros distintos e oficiais da Marinha.
O coronel Carneiro de Campos, que tinha em sua embarcação rumo à Província do Mato Grosso o médi co Antônio Antunes da Luz, além de outros passageiros e a tripulação, viram-se sós, desemparados, antes tão rápida e insólita prisão!
Solano Lopes estava tão certo da vitória e do sucesso que logo invadiu o sul do Mato Grosso e deixou os prisioneiros brasileiros sucumbirem à fome e aos maus-tratos.
C arlos a lberto de C arvalho 53
O governo imperialista brasileiro devia ficar atento ao que ocorreria no sul de Mato Grosso e como deveria reagir ao aprisionamento do general Carneiro e dos outros com ele aprisionados. O Brasil não estava preparado para uma guerra, mas os esforços ou orientações deveriam convergir primeiro para o Rio de Janeiro, onde os oficiais do Exército e da Marinha receberiam instruções e, em seguida, partiriam ao Rio Grande do Sul. Atenta por demais, Ana ouvia os boatos e procurava saber notícias certas do conflito.
Mas como? Uma viúva e na Bahia?! Como saber? Quem confiaria em mulher, viúva e baiana? Que notícias poderiam ser autênticas ou falsas? Como saber? Como filtrar? Ter certeza? Somente no conflito! Lá entre homens, soldados, paraguaios, uruguaios, argentinos… brasileiros: sobrinho, irmão, filhos; o Arthur, o Maurício, o Justiniano, o Isidoro, o Pedro. Valei-me, Nossa Senhora do Perpé tuo Socorro, Anjo da Guarda! Minha família toda numa guerra e morrerão todos?!
Tais acontecimentos trágicos chegaram aos ouvidos do Imperador d. Pedro ii, que, com o seu ministério, estavam estupefatos ante tamanha ousadia e arrogância do ditador paraguaio.
E os meses avançaram, quando recebeu a visita inesperada da amiga de infância.
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Minha Nossa Senhora, mãe de Jesus! Acordava e, com os olhos esbugalhados, fitava amargurada a escuridão, numa tentativa de enxergar o teto do quarto e se agarrar num desespero avassalador, que a fazia levantar da cama, abrir as janelas e ficar até o amanhecer com a cabeça apoiada na travessa, na persiana de madeira, absorta, fora de si, entre um estado de tristeza profunda e imperiosa vontade de correr desati nada pelas ruas de Salvador, gritando feito louca: “Pa rem! Parem! A guerra cessou! Meus filhos devem voltar pra cá! Pra mim!”.
Sobressaltada, Ana acordava no meio da noite en tre latidos distantes de cães e o canto de galo alheio, banhada de suor, com as mãos no coração, afogueada.
E não mais sabia se delirava ou vivenciava um estado de loucura. Não comia bem, vomitava sempre e desejava a morte, antes de receber uma notícia funesta.
VI
salvadoR, maio de 1865. a caRRuagem paRou defronte à casa. Carruagem de madeira forte, vistosa; os adornos adequadamente em alto-relevo; coisa de pessoa importante, endinheirada, pois os cavalos que conduziam eram, na verdade, ro bustosTodoscorcéis.osolhares:
dos negros, das mulheres às janelas, dos homens brancos em quitandas, bares e armazéns da rua se voltavam para a portinhola do veículo que estacionou defronte à casa de dona Ana Néri. Quem era? O que veio fazer em Salvador? Por que tal visita em casa de mulher reclusa, solitária, somente frequentada por duas ex-escravas e o robusto Leléo, negro de rosto indômito, traços bonitos, principalmente a boca, mas que deixava grande impressão pelo andar vigoroso, voz possante e enormes olhos negros, negros? Leléo era um gigante, porquanto protetor de Ana Néri.Então o cocheiro desceu e rápido abriu a portinhola, enquanto imediatamente surgiu Bárbara muito bem
Que calor infernal! Que lugar é este, por aqui? Pois tudo parece a derreter com tamanho calor! – E assim falando, atravessou a pequena calçada, empurrou a porta de ingresso da casa e gritou: – Ana! Aninha! Adivinha quem chegou? Ufa! Que viagem, purifiquei-me de todos os meus pecados! – falava séria, olhando a longa e sinuosa escadaria na vastidão da requintada sala, que adentrou sem pedir a permissão. Olhava e falava, quando Ana surgiu no parapeito do corredor superior. Cabelos desgrenhados, em roupas de dormir.–Quem é, ora? Que não para de gritar com esta voz irritante!Bárbara se calou imediatamente. – Sou eu, minha amiga – falou em tom baixo e de polidez.–Quem? Não me recordo a voz e não estou enxergando nada, nada cá de cima. Intimidada, Bárbara lembrou: – Ana, minha querida, sou tua amiga, lá de Porto de Cachoeira!Adonada casa crispou a mão direita que se apoiava no corrimão. A boca abriu lentamente, enquanto a ca beça se inclinou numa tentativa de os olhos enxergarem quem ela já sabia. – Bárbara…?! Bárbara?!
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trajada56 e com gestos afetados. Metida, cabeça erguida arrogantemente.–Vamos!Vamos!
Abraçaram-se efusivas, os extremos do entusiasmo cessaram ao se tocarem. O abraço recolheu em ambas a fraternidade, o toque de respeito e solidariedade que sintonizou o sofrimento de Ana ao carinho de Bárbara.
Permaneceram abraçadas por um curto tempo. O tempo do silêncio que fala, daquele gesto de comunicaçãoEntãointerior.seolharam, cara a cara se viram. Ana baixou os olhos, envergonhada.
– Sei tudo que está passando, por isso vim aqui para ficar! – disse Bárbara. – … e o teu marido? Como ficarás sem ele? – Ana, não arredarei o pé daqui até o dia que acreditar que assim deve ser! Ana fitou Bárbara. As mulheres se olharam convictas.
– Bem, sim, pode ser, preciso mesmo de alguma companhia… mas devo também dizer que a tristeza é minha!–Claro! Sim, Ana, tua e minha. Nossa tristeza! – Tá bom. Sim, desisto. Pode ficar. Bárbara, logo que ouviu, puxou-a pela mão, em ins tantes Ana estava no terreiro, em meio ao sol. – Olha! Repara! – O quê? O quê?!
C arlos a lberto de C arvalho 57 – Sim, sou eu mesma! Ana se precipitou em passos rápidos pelos degraus que a separavam da amiga.
– Repara este sol, este céu lindo! É nosso, por isso devemos nos alegrar, retirar a tristeza – falava Bárbara enquanto ainda puxava a amiga pela mão.
Ana estava absorta, ofuscada pela claridade. Dias e dias esteve confinada em seu quarto, entre o desgosto e a morbidez do entristecimento. Seus pensamentos eram direcionados aos filhos, ao irmão… ao sobrinho… Como aguentar sem lágrimas e sensações de desfalecimentos uma guerra que arrastava filhos, sobrinhos e irmão?! Como?! Ana estava destroçada… – O quê?! Que cara é esta, Ana?! Por favor. Atraves sei terras e léguas para te encontrar um lixo?! Ana se voltou à amiga e se deixou abraçar.
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– Vamos! Vamos! – falou Ana. Prosseguiu mais animada: – Vamos fazer um lanche, comer alguma coisa. Deves estar esfomeada. – Sim, sim, não como bem há dias – confirmou a outra, adiantando-se apressadamente em direção à casa.
– Bárbara, Bárbara, tu estás sempre animada. – Não devo? – Não está sendo fácil para mim… Bárbara aconchegou-a: – Mas… mas, ora, quem está dizendo isso? Então ficaram silenciosas, quietas, enquanto se olhavam, enternecidas.
– Nada… nada, estou bem, minha querida – falou e sorriu, mas o coração em descompasso, taquicardia constante e um peso enorme no corpo, como se dois elefantes a esmagassem com os seus medonhos corpos. Enlouquecendo? Talvez, em breve. Os pensa mentos surgiam involuntários, espontaneamente, sen sação de morte… um pressentimento de horror e algo mórbido feito um calafrio, algo gelado que a envolvia e o corpo por completo se arrepiava, e, para não gritar, pronunciava os nomes dos filhos: Isidoro…
C arlos a lberto de C arvalho 59 No dia seguinte, Bárbara estava sentada diante de Ana. As duas mulheres estavam na sacristia da Igreja São Francisco das Chagas. Ana buscava consolação, algum conforto, além do carinho da amiga. Queria conversar, ouvir algo da boca do frei Rubião, algo que confirmasse seus propósitos de partir para a guerra… e saber dos filhos, do irmão, do sobrinho… que fazer? Que aflições e que tamanhas angústias! Que bom que a presença alvoroçada de Bárbara a distraía deveras.
Nem sei que fazer de mim. Estou perdida! Não tenho marido, não terei filhos, parentes, ninguém! Meu Deus poderoso, que queres fazer de mim?! Já estou destroçada. Meu querido e bom São Francisco, rogai, rogai, rogai por mim. Rogai por eles, meus filhos, meu irmão… o Arthur, tão no vinho! Ai! E aí se mexeu, Bárbara se ergueu apreensiva.
– O que tens? O que tens, Ana, tão quieta…? Fala!
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– Sim, Bárbara, estou certa! Farei isso, é o melhor.
Justiniano, então se acalmava enquanto a es curidão súbita, que lhe toldava o brilho dos olhos, desaparecia também.
Louca? Amargurada? Uma desgraçada… e desamparada.–Pretende
– Mas também podes morrer, e eles perderão a mãe.
– Tanto melhor, tanto melhor. A ordem natural são os filhos enterrarem os pais, não quero ver um filho morto em meus braços. Ana falou com tamanho ardor que Bárbara emude ceu. As duas se entreolharam e se compreenderam.
– Quero te abraçar, minha amiga, mulher de coragem! – elogiou Bárbara.
– Melhor? Como, o melhor? Estás partindo para o desconhecido, o horror da fome, medo… morte! Ana ergueu a cabeça. Bárbara estava em pé, diante da outra.–Meus filhos estão entre os bons e os maus, preciso estar entre eles, Bárbara – replicou e sorriu.
Pedro…60
mesmo ir à campanha? Seguir a guerra? A voz de Bárbara ecoou distinta naquela sacristia espetacular em arte de decoração. Era um teatro? Estava interpretando uma peça teatral? Qual nome? Quem é o dramaturgo? Mas estava no silêncio de uma sacristia, lugar de preparação, primeiro recinto na igreja onde o sacerdote partia para a celebração do culto.
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– A mim?! Eu, tão medrosa e inconstante – zombou de si, Ana, erguendo-se prontamente e se encaminhando à outra.Bárbara avançou entusiasmada, dizendo:
– Ana, Ana, parta mesmo ao encontro de teus filhos! É o que deves fazer e o melhor – sussurrou, ao ouvido da amiga, Bárbara.
– Ora, ora, ainda tens cuidado em ser humilde. E se abraçaram, aconchegando-se intimamente.
– Sim, graças a Bárbara, minha amiga de Cachoeira, de Porto de Cachoeira, que veio se hospedar em minha
frei, que bom que poderei ter tuas palavras por agora!
– Aqui estou, minhas senhoras. Bárbara olhou-o admirada pelas vestes paupérrimas. Ana avançou silenciosa, mas com os passos apressados,–ansiosa.Frei!Meu
– Sei, filha, sei, que bom que a aparência ficou melhor.Ana estacou, voltou-se e apontou para a amiga.
– O que é isto?! Eu quem devo me desculpar por meus comentários egoístas e nada maternais! Mil e mil perdões – pedia, com lágrimas nos olhos, Bárbara. E entrou no grande espaço frei Rubião. O homem apareceu em uma maltrapilha veste de frade. A roupa humilde contrastava com a riqueza do recinto.
– Obrigada! Obrigada pelo apoio e compreensão, Bárbara – falou emocionada a mãe desolada.
Ana puxou Bárbara da cadeira e sussurrou: – Ora, levante-se! O que há? Vamos, cumprimente o frei!Bárbara foi ao encontro do homem; ele a olhava fixamente e disse com voz calma: – Ana, Ana, deixa tua amiga à vontade. É rica, bem trajada, não reconhece as pessoas com trajes como os meus, que são os pobres, os miseráveis, os escravos, coitados!Asmulheres estacaram frente ao homem. Ele continuou:–Cuidado, Ana, você quer ir à guerra, nos confins deste Brasil, por conta de teus filhos, mas o amor deve encher o teu coração, porque não verás talvez teus filhos, mas muita pobreza, miséria, injustiças e crimes presenciarás! Cuidado para não morrer de desgosto, mais que de saudades dos filhos. Quando terminou de falar, Bárbara caiu-lhe aos pés, enternecida.
Frei Rubião permaneceu onde estava. Percebeu que Bárbara não se agradou de si.
– Bem… reclamona, chata, mas generosa também, porque pretende ir aos locais de guerra. Não vejo mães ou esposas solicitando isso aos governos provinciais.
Ela é muito generosa em querer frequentar uma viúva, sem filhos, reclamona e muito chata – apontava e se encaminhava à outra.
A n A n éri – A mãe siti A d A casa.62
C arlos a lberto de C arvalho 63 – Perdoa-me, frei, perdoa-me. A vaidade, o orgulho me tomam a vida. Perdão! E não esperando palavras de frei Rubião, segurou-lhe as mãos, beijando-as com emoção. – Basta! Basta, filha, levante-se, vamos daqui ao claustro para conversarmos melhor sobre o horror dessa guerra.As mulheres seguiram silenciosas pelos corredores longos do templo. Frei Rubião à frente, andar rápido enquanto a solidão invadia o coração de Ana, que olhava atenta os adornos e as imagens esculpidas com esme ros pelos artistas brasileiros. A Igreja São Francisco das Chagas trazia em sua ar quitetura e nos detalhes de entalhes a exuberância do apogeu do barroco português. Andar pelo interior do templo, pela sacristia e pelos corredores que se interligavam por inúmeras dependências era esbarrar com o sagrado pungente, um grito de fascínio e estupor diante de obras-primas em esculturas e pinturas. Nem sei o que será de mim! O que faço? Como avançar? Devo retroceder? A cada passo que dou, eu me desmorono… que doida que estou eu, hein! Adentraram o claustro, na parte que mulheres po diam permanecer. Frei Rubião se voltou solícito. Mos trou-se animado, pois desconfiava que a conversa seria tensa.– Pedirei que sirvam um cafezinho, uns biscoitos por aqui. Aguardem.
A n A n éri – A mãe siti A d A 64 – Frei, não precisa se incomodar conosco. Estamos bem. Fique! – Não, não, vamos beber e comer; a conversa se torna mais interessante! – disse e saiu rapidamente. Bárbara ficou diante da amiga. – O que tens? Parece que vais desmaiar! O que tens, Ana?! – perguntou aflita. Ana se jogou nos braços da outra, chorava convulsivamente. Não conseguia falar, deixou-se ir pela dor, pela saudade que lhe parecia torcer as entranhas: seus intestinos estavam como que à mostra: Reparem! Vejam! Há dor maior que uma mulher assistir à partida de seus três filhos para a distância violenta da guerra? Este é o meu grito e não há quem escute. Por isso exponho aqui as minhas vísceras, porque assim lastimarão com horror a sorte que me foi con fiada!, chorava e pensava Ana, amparada por Bárbara.
Frei Rubião retornou e se comoveu diante do que via e se acercou de ambas com solicitude fraterna. – Venham. Sentem-se aqui. Sentem-se! Vamos agora mesmo resolver toda essa lástima e aflição – falava animado, com voz suave, compreensivo. Ana, amparada pela amiga, sentou-se mais reconfortada. Ao se sentar, puxou de encontro a si a outra e deixou sua cabeça apoiada no ombro de Bárbara. – Frei… – Fala, filha, estou aqui para escutar… e te reconfortar.
se desnorteou. Aturdido ante a resolução de Ana, permaneceu ao menos um minuto em silêncio.
O homem se empertigou. O olhar de Ana inflamado desconcertou-o.–Ajudar?Sim, claro, por que não? Ana se desvencilhou dos braços de Bárbara, atitude decidida, e se pôs de pé, frente ao frei. – Me ajuda a ir também ao sul do Império, à guer ra onde estão meus filhos! – falou e juntou as mãos, suplicante.FreiRubião
C arlos a lberto de C arvalho 65 – Frei, não sei se sinto vergonha por isso… raiva, porque me mostrei fraca, ou se sou uma boba, mulher estúpida que chora em demasia… Frei Rubião estava de pé diante de Ana, então se curvou respeitosamente e falou em voz baixa: – Vergonha? Frouxa? Como isso? A senhora está sendo natural, uma grande mulher, porque é mãe. Não está chorando a ausência de um filho, mas de três, todos os três filhos foram embora… para a guerra! Ter vergonha? Sentir vergonha? Como é isso? – falava o sacerdote com os olhos fixos nos de Ana. A mulher então enxugou com as mãos as lágrimas, que lhes enchiam o rosto. Reanimou-se, a cara enrijeceu e, quando falou, a voz tomou-lhe uma impostação clara e firme.–Frei, então, pelo amor de Deus, me ajude! – pediu a mãe desolada.
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– É isso que realmente quer, minha filha? – indagou responsavelmente.–Sim,frei,éisto: viúva, sem filhos, então me prestarei aos serviços entre os militares, para acudir os feridos e moribundos – respondeu convicta. Bárbara a tudo ouvia com forte interesse, admirada pela reação dos dois interlocutores.
– Preciso saber quem poderá não só me autorizar a ir à guerra, como me dar as cartas de recomendações. Frei Rubião ouviu, pôs a mão direita no queixo e passou a alisá-lo, preocupado. – Sim, filha, isso mesmo… quem poderá autori zar sua partida e lhe garantir o respeito devido como mulher digna entre diversos homens, das mais variadas procedências.Bárbarase ergueu, nervosa.
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Frei Rubião se sentou pensativo, ficou um momen to de cabeça baixa e, em poucos instantes, ergueu-a e os olhos eram setas inflamadas de certeza.
– Bárbara, fiquei viúva aos vinte e nove anos; o Justiniano contava cinco anos e era o mais velho. De repente, fiquei sozinha e com três filhos pequenos… e hoje estão os três no combate – falou séria e com voz firme.
– Agora eu também estou aflita. Nem sei em que pensar. Como será isso? Ana, tu tens preparo para cuidar de enfermos, feridos ou agonizantes? – falava atabalhoadamente a amiga.
– O senhor presidente da Província da Bahia, o doutor Manuel Pinto de Sousa Dantas! Ana e Bárbara se aproximaram silenciosas.
– Deixa! Deixa disso, dona Ana – falava sorrindo.
Tenho um nome. Creio que somente ele poderá te dar cabal autorização e todas as possibilidades ou garantias de mulher numa travessia pelo Brasil rumo à guerra do Paraguai.–Quem, frei? – perguntaram quase gritando as duas o único… apesar de ainda jovem, tem articulações boas no governo do Brasil…
– Mas quem, frei? Fala, por favor – pediu nervosamente,FreiAna.Rubião, diante das duas amigas, pronunciou devagar, quase silabicamente, o nome e a função do promissor protetor de Ana Néri:
–mulheres.Eleémesmo
– Não, não é meu amigo, mas tenho amigos que o são e poderão ajudar… Ana bateu palmas, alegre. Frei Rubião se espantou com a atitude.
– Ao menos não vejo mais lágrimas. A esperança já lhe deu alento e contentamento. Ana sorriu satisfeita.
– Perdão! Perdoa-me, frei Rubião, não é adequado tal comportamento aqui no claustro…
C arlos a lberto de C arvalho 67 –
– O senhor tem contato com ele, frei? – quis saber Bárbara. Continuou: – É amigo do senhor?
– … hummm. Como poderemos ser vistas… – repetiu Ana, feliz. – Pois bem, organizaremos uma festa onde estarão os amigos do frei Rubião e o presidente Manuel Pinto – articulou Bárbara. Ana e frei Rubião se entreolharam e concordaram com a cabeça, silenciosamente.
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– Bendita e bendita a hora que me veio visitar, Bár bara – disse Ana, beijando as faces da amiga. – Ago ra, precisaremos saber quais pratos ele e a mulher mais apreciam –
––Bárbaraconcluiu.fixouofrei.Eleécasado?–indagou.Nãosei,masdeveser;fácil de saber… – respondeu o Anahomem.foiao encontro de frei Rubião, beijou-lhe a mão direita e agradeceu:
68 – O que faremos, então? Como poderemos ser vistas pelo presidente da Província da Bahia, e ele se interessar pela causa de nossa Ana? – falava como pensava Bárbara.
– Meu frei, estou satisfeita demais! Organizaremos imediatamente uma recepção. Logo comunicaremos ao senhor, pode ser assim? Que bom! Que bom que esta mulher forte logo reco brou o ânimo. Veja como está! Contente… há pouco era um abismo de prostração e vazios! Valha-me Deus que permaneça assim sempre! Amém!
– Vamos tomar um café, então – convidou o frei. – Sim, agora vamos! – retrucou Ana, empolgada.
E as duas se precipitaram à frente do frade, alvoroçadas, o homem andava rápido, mas agora eram elas: Ana e Bárbara.
C arlos a lberto de C arvalho 69 – Claro, minha filha. Contem comigo! Hoje mes mo procurarei aqueles que são do relacionamento do presidente.Quando se fixaram, ambos perceberam a formidável cumplicidade que tramavam.
Quem não gostaria de comparecer a tal evento? Algo surpreendente: auxílio aos soldados e marca certa de patriotismo.Foiquando apareceu também, para ajudar, a jovem e rica Manuela Jordana Telles de Menezes, que se jun tou às duas atarantadas amigas, acompanhada de sua criada, a silenciosa Justina. Ana se agradou de imediato das duas, mas se aproximou de Justina, que se mostrou desconfiada.
Bárbara foi de grande ajuda, porque conseguiu, junto a frei Rubião, os melhores contatos entre os ricos e influentes políticos da capital baiana, então inventaram uma recepção de arrecadação de materiais hospitalares e mantimentos para os militares no conflito no Rio Grande do Sul.
VII salvadoR, Julho de 1865. um acoRde animado! O brilho nos olhos de Ana. Todos estavam ali, inclusive o presidente da Província da Bahia, o senhor Manuel Pinto de Sousa Dantas.
Numa tarde, quando menos se esperava, Ana se aproximou de Justina, que varria o terreiro dos fundos da casa. Gritou forte: – Ô! Ô! Justina? A mulher parou de varrer e foi ao encontro da senhora.–Para de varrer e venha comer comigo aqui dentro! – disse e se voltou para o interior da casa. Justina permaneceu parada, sem entender. Ana já estava à mesa, então percebeu que a escrava não apareceu. Levantou-se e, com passos rápidos, foi à porta dos fundos. Viu que Justina ainda estava parada, vassoura à mão, olhando estupefata.
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72 Manuela se tornou companheira de Bárbara, as duas ficaram dias e dias em idas e vindas ao convento e pelos palácios e mansões de Salvador, enquanto a tarefa de Ana mais Justina foi arrumar e ornamentar o casarão para a festa promovida em prol dos militares.
– O quê? Vai ficar aí, mulher? Venha comer comigo logo – falou e entrou. Justina deixou a vassoura cair ao chão. Mexeu-se demoradamente, aí ouviu o grito de Ana, chamando-a: – Jus-ti-na! Entre logo e venha comer, que a comida vai esfriar, mu-lheeeer! A escrava se apressou e em instantes estava ao lado de Ana Néri. – Minha se-nhnhnhoraa… – gaguejou Justina.
– Agora, veja, Manuela e Bárbara não retornaram ainda das andanças pela cidade baixa…! Chegarão mortas de fome e cansadas – falava animada, sem fixar os olhos em Justina, de modo que a mulher não ficasse constrangida.–Sinhá…–Vamos,coma, Justina! Não tem mal algum estar à mesa comigo. – Assim falou Ana e tocou levemente no queixo da Enfim,outra.olharam-se demoradamente, Ana sorriu e Justina permaneceu séria. – Tá bom… – murmurou, aliviada, Justina. – Você tem filhos? – quis saber Ana. – Sim. – Quantos? A escrava ergueu o dedo indicador: – Uma filha. – Como se chama? –AnaSebastiana.considerou uns instantes e pediu: – Traga a Sebastiana aqui, amanhã. Qual é a idade dela?– Minha fia tem treze anos, Sinhá!
Vamos logo! Está uma delícia este ensopado. Justina obedeceu prontamente e se pôs a se servir, ainda que com timidez.
C arlos a lberto de C arvalho 73 Ana não deixou que terminasse. Bateu forte na mesa.–
Quando a carruagem parou à porta de entrada, Manuela atravessou o salão numa agitação tamanha que despertou a atuação dos demais. Esbarrou em Ana, dizendo com voz emocionada: – Minha amiga! Amiga!
E a recepção foi concorrida. As melhores famílias desejaram comparecer para tão nobre causa, mas a única família que não poderia estar ausente era a do Dr. Manuel Pinto de Sousa Dantas.
A n A n éri – A mãe siti A d A 74 – Pois bem, quero conhecê-la. Poderá me ser útil. Quero conhecer Sebastiana! – falou enfática, enquanto seus pensamentos voaram aos filhos distantes.
– O quê, Manuela? O que aconteceu? – Ele chegou! O leque caiu das mãos de Ana, que olhava a outra, estarrecida.–Ufa!Graças a Deus! Graças! Bárbara se aproximou também e sussurrou às duas: – O presidente é nosso! – Sim, nosso – retrucaram juntas Ana e Manuela. Sim, o presidente da província baiana era um homem bonito de cabelos castanhos, elegante e um político de boas e sérias referências. Seu espírito articulador tinha despertado interesse na Corte. Não era um político qual quer, mas homem jovem e promissor em ambições admi nistrativas e econômicas de fortes garantias. Era nesse homem de olhos pequenos, boca carnuda e fartos cabelos que Ana Néri repousava suas
C arlos a lberto de C arvalho 75
– Claro! Sim… Ah, que é melhor primeiro? O porco recheado? – disse Ana sorrindo, marota.
Bárbara se voltou sorridente.
O homem se ergueu num salto, contente. – Minha senhora. Que casa! Que música, mas sobretudo que jantar formidável! – elogiou o político.
– Darei as ordens que sirvam o jantar, pode ser? –indagou Bárbara.
Manuela, que estava de braços dados com Ana, apertou-lhe o cotovelo com força. Que é isso? Como é capaz de fazer isso? Que coisa. Quase gritei! Pois bem, também farei o mesmo… As duas se apertavam feito crianças. – Fico feliz, senhor presidente, que nesta recepção tenhas encontrado comida e bebida a contento – falou
– Que bom! Então, ele será nosso pelos pratos servidos e sobremesas, tudo de sua preferência – disse Ana, enquanto piscava os olhos para as duas cúmplices.
esperanças de vencer as barreiras de ser da camada pri vilegiada da sociedade e ser mulher para seguir rumo ao sul. O que fazer? – A mulher dele é ao menos simpática, aparentemente? – quis saber Ana. – Sim, sim, bem alegre – afirmou Manuela.
– Ele vai morrer de felicidade hoje, querida! Mais tarde, Ana e Manuela se aproximaram da mesa presidencial.–Senhor
presidente… senhora – apresentou-se Ana.
– Mas, minha senhora, curiosamente tudo que me foi oferecido me apeteceu deveras. Tudo me agradou bastante: pratos, quitutes, guloseimas ou sobremesas apetitosas, geralmente aquilo que me serve bem, não é? – falou o presidente, voltando-se à esposa.
– Perfeitamente, Manuel – confirmou. Bárbara as olhava do outro lado da sala, num grupo de mulheres. De lá incentivou Ana que falasse do assunto que tanto a incomodava, então sussurrou: “Fale, Ana!”. A outra se encorajou. – … e essa guerra em que o Brasil está metido, se nhor?A esposa do presidente se surpreendeu, olhou-a atenta (não era comum mulheres tratarem desse assun-
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Ana76 e se voltou simpaticamente à mulher de Manuel Pinto, sorrindo. – A senhora também está bem servida? Necessita de mais alguma coisa? A esposa se levantou imediatamente.
– Não, não, dona Ana, estou bem, estamos bem.
– Ótimo! Ótimo! Oferecer um jantar não é algo tão fácil quanto parece, os gastos e as preferências predominam em individualidades, mas procurei trazer o que há de comum e aceitável – justificou-se a anfitriã, apertando fortemente o braço da companheira, que a olhouManuelperturbada.Pinto cofiou o bigode e retesou o corpo.
tem marido nessa guerra? – intrometeu-se a esposa. Ana se encaminhou em direção à mulher, desven cilhou-se do braço de Manuela. Aproximou-se por de mais da mulher de Manuel Pinto e, de um ângulo que este também pudesse vê-la falar, replicou firme: – Sou viúva há muito, mas meus três filhos embarcaram ao Rio Grande do Sul no último mês. A esposa fitou-a e logo desviou o olhar. O homem avançou, inquirindo surpreso: – Três filhos?! – Sim, senhor presidente, dois médicos: Justiniano e Isidoro, e um militar, meu mais novo: Pedro Antônio; todos já seguiram para o sul.
C arlos a lberto de C arvalho 77 to com homens); ele, que também não aguardava falar sobre isso, disse: – Guerra forte e que colocará os brasileiros em situações violentas. O Paraguai quer usurpar terras que jamais foram suas e tem um nosso prisioneiro, aliás, toda uma tripulação e pessoas comuns… – Sim, um conflito perigoso, e pais e mães têm que assistir aos seus filhos partirem – falou Ana com voz estremecida.–Asenhora
Marido e mulher se entreolharam, nervosos. – Bem, senhor, esta recepção tem a finalidade de auxiliar de alguma forma àqueles que lá se encontram. Na caridade e no amor fraterno desejamos cuidar de
nossos78
– O que houve? Por que não pediu ao presidente o que tanto quer? – quis saber Manuela.
– Uma recepção cara desta e perdeu oportunidade, meu bem – acrescentou Bárbara. Em pé, diante da grande janela, olhando o mar defronte, Ana respondeu confiante:
– Assim falando, Ana afastou-se sem olhar paraSetrás.olhasse, veria tanto o homem quanto a mulher, ambos em pé, boquiabertos, pensativos ante a notícia retirou ao seu quarto e logo chegaram Bár bara e Manuela. Estavam sérias.
– Por quê? Não entendo? – quis saber Bárbara.
proveitoso.
– Nada foi perdido. Ele agora jamais me esquecerá.
– Porque a esposa ficou lívida ao saber que, além de viúva, ainda ofereci meus três filhos à pátria – falou com voz Manuelafirme.se voltou para Bárbara.
– Sim, eles têm filhos; nós, mulheres, sofremos de mais quando envolvemos nossos filhos – confirmou Manuela.
recebida.Anase
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filhos que estão por lá defendendo o Império, não é mesmo? – disse Ana, temperando a política.
– Então, fiquem à vontade, e que tudo por aqui seja
– Sim! Claro que sim, minha senhora – respondeu enfaticamente o presidente.
salvadoR, 8 de agosto de 1865. Alguns dias depois, a carta de dona Ana Justina Ferreira Néri chegou ao gabinete do Exmo. Sr. Dr. Manuel Pinto de Sousa Dantas – mui digno presidente desta província –, com o seguinte teor: “Ilmo. Ex. Sr: Tendo já marchado para o Exército dois de meus filhos, além de um irmão e outros parêntes, e havendo se offerecido o que me restava nessa cidade, alluno do 6o anno de Medicina, para também seguir a sorte de seus irmãos e parêntes, da defesa do país,
– Cuidarei o melhor possível dos feridos de guerra, como se fossem meus filhos – disse convicta.
C arlos a lberto de C arvalho 79 Bárbara se aproximou carinhosa e abraçou forte mente Ana.
– O que pretendes fazer agora?
– Em menos de uma semana remeterei ao gabinete do presidente uma carta solicitando permissão para seguir ao sul! – Sim, Ana, faça isso – incentivou Manuela. Ana se sentou então numa poltrona, absorta, enquanto as duas amigas a observavam.
offerecendo seus serviços médicos – como brasileira, não podendo ser indifferente aos sofrimêntos dos meus compatriótas, e, como mãe, não podendo resistir à separação dos objetos que me são caros, e por uma tão longa distância, desejava acompanhá-los por toda a parte, mesmo oppondo-se a este meu desejo, a minha posição e o meu séxo não impédem, todavia, estes dois motivos, que eu offereça os meus serviços em qualquer dos hospitais do Rio Grande do Sul, onde se façam preci sos, com o que satisfarei ao mêsmo tempo os impulsos de mãe e os deveres da humanida de para com aquelles que óra sacrificam suas vidas pela honra e brio naciónais e intégridade do Império. Digne-se V. Ex. de acolher benigno este meu espontâneo offerecimênto, ditado tão sómente pela vóz do coração.”
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Manuel Pinto primeiro leu sem dar importância a quem se tratava, porém, ainda sentado em seu gabinete, de súbito lembrou-se de Ana Néri. Releu a carta devagar, e em seguida deixou a mão cair sobre a mesa, ergueu a cabeça para o teto e suspirou emocionado.
– Que mulher! Ana Néri não só quer ter os filhos lá na guerra no sul, como também quer seguir, estar lá! Que mulher! Ufa! Fazer o quê?!
O presidente da província baiana estava verdadeiramente admirado com tamanha e incomum abnegação de que devo aceitar!
– Certamente, querido! – concordou a esposa. – O conforto de dona Ana é saber de perto sobre o irmão, os três filhos e os outros parentes, mesmo que cuidando de doentes em hospitais da campanha. Manuel olhava a mulher, absorto, buscando uma solução adequada, que amparasse o valor de mãe de Ana–Néri.Expedirei ordens ao Conselheiro Comandante das Armas, ele a garantirá muito bem em seus projetos como enfermeira! – desabafou Manuel.
– Sim, querido, entendo, mas o gesto dela é notável.
Não é prática de mulheres brasileiras serem voluntárias durante guerras porque marido ou filhos rumaram para o campo de batalha! Que esse conselheiro possa notar que dona Ana é um exemplo único, pelo que me consta! – falou a esposa, tranquila e confiante.
mulher!–Claro
C arlos a lberto de C arvalho 81 Levou a carta para casa e a releu em voz alta para a esposa, que a ouvia também emocionada, sem conseguir pronunciar uma palavra sequer. Olhavam-se.
– Certo. Pessoalmente tratarei disso com o conselhei ro. Agradecido, minha querida, pelo apoio a mim dado!
– Beijou ternamente a fronte da mulher e logo se retirou. E, assim, numa tarde, a poucos dias do envio de sua solicitação – enquanto tomava café ao lado de Justina e
dos82 olhos recriminadores de Manuela e Bárbara –, Ana Néri recebeu a resposta do presidente, o qual a elogiava em carta datada de 13 de agosto.
“[…] O rasgo do patriótismo e de abnégação com que V.M., depois de ter visto seguir para o campo de guerra, em que se acha empenhado o país, um irmão e dois filhos, e agóra o terceiro, como médico, se offeréce para, acompanhando-os em tão nóbre missão, prestar os serviços de humani dáde compatíveis com o seu séxo e idade, nos hospitais do Rio Grande do Sul, não póde deixar de ser benevolente acolhido por esta Presidência, que folga de louvar os sentimentos com que v.m., por esse ácto tão importante e digno de inveja, se torna recommendável ao país. Aceito, pois, tão espontâneo offerecimento, e vão ser expedidas órdens ao Conselheiro Commandante das Armas, com quem se entenderá V.M. para ser contractada como primeira enfermeira, e brévemente seguir para o Rio de Janeiro.”
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Quem leu foi Bárbara, pausando ao repetir primeira enfermeira em voz alta. Manuela bateu palmas, festiva. – Hummm! Viva! Nossa primeira enfermeira! – gritou a loura, animada.
– Aos cinquenta e um anos de idade irei ao sul do país para assistir em uma guerra! – disse, não muito empolgada, Ana Néri.
– Mas não era o que pretendia? – indagou Bárbara e acrescentou, curiosa: – Por quê? Desistirás agora? Sentada, a mulher apenas voltou a cabeça à amiga inquieta. Olhou-a firme, depois relanceou um olhar a Manuela e, por fim, sorriu a Justina.
– Tenho palavra! Minhas perdas serão o lucro de meu vigor! Irei, sim, porque permanecer por aqui é uma inutilidade para o meu caráter! – exclamou e então se aquietou. Seu olhar se distanciou, o rosto tranquilo. Meu coração arde e deseja ir logo! Fazer o quê? Como suportar tamanhas bobeiras dessas duas e outras, apesar de amigas?!
C arlos a lberto de C arvalho 83 – Contratada pelo Conselheiro Comandante de Armas! – acrescentou Bárbara, de maneira elogiosa. Justina, sentada diante das mulheres brancas, mantinha-se calada, observadora.
TerceiraParte
– Não se esqueça de mim, minha amiga! – falou, com voz embargada pelo choro, Manuela.
VIII salvadoR, agosto de 1865. no cais de salvadoR, as três amigas se abraçavam e a efusão não deixava de tocar também a escrava Justina, que, acompanhando o grupo, era vista pelos outros de maneira diferente.
– Escreverás, Ana, por favor, quando chegar ao Rio de Janeiro? – quis saber, preocupada, Bárbara.
Ana se voltou para Justina e percebeu que ela seguia acompanhada da filha, Sebastiana. Olhou-as com atenção e se aproximou.
– Sim, claro, escreverei.
– Justina, minha querida, cuida bem da Tiana, porque quando retornar do terror, que por ora é para onde me dirijo, te buscarei para que fiques comigo! – disse ternamente.–Sinhá, Sinhá! Xá comigo que tomo conta! – respondeu a pobre escrava, intimidada.
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Manuela olhava espantada a amiga, jamais pensou que o último pedido de Ana seria o cuidado com duas escravas.–Venha cá, minha cara! – pediu Ana, abraçando-a fortemente.
88 Ana encaminhou-se em direção a Manuela. – Queres me agradar muito bem, Manu? Queres mesmo? – perguntou. – Claro, querida! – Pois bem. Cuida daquelas duas por mim, sei que são tuas, mas conversaremos quando eu retornar…!
– Obrigada! Obrigada por tudo que fez por Asmim!três mulheres se abraçaram e começaram a cho rar. Justina deixou uma lágrima rolar pela face. Sebastiana observava, atenta. Ana desvencilhou-se dos braços das duas amigas com–força.Deixem-me ir! Deixem-me… jamais pensei que sairia um dia de minhas terras, de minha casa… Vou não sei para onde, não sei por quê… Mas vou com meus filhos, meu irmão, meu sobrinho Arthur… vou… Andou, andou, subiu as escadas e não se voltou uma única vez para acenar às amigas, a Justina… a Sebastia na. Forte, passos firmes, segurando sua própria mala.
Ana somente saiu de seu compartimento no navio quando percebeu que estava em alto-mar, sem a vista das terras baianas. Não queria ficar dividida entre os sofrimentos.
Qual deles seria o pior: deixar a terra ou ir à guerra?Sentia-se pesada ou mesmo assustada. Viajar sozinha entre tantos homens e pouquíssimas mulheres –quase não as via –, rumo ao desconhecido. O que fazer?
– Que beleza é o mar! Que coisa encantadora! Oh! Esse vento na cara… tanta água, parece um tapete que se mexe vez por outra… Que coisa espetacular, vou fi car por aqui e olhar, olhar, olhar! Que bom! De súbito alguém lhe tocou levemente no ombro. Voltou-se e viu-se diante de um rapaz franzino sorrindo como que a querer dizer algo, mas que nada falava, apenas sorria. – Oi, filho, fala! O rapaz se fez sério e se afastou rapidamente. Ana ficou parada, vendo-o se afastar, sem entender nada.– O que ele queria comigo, o coitado? Ao olhar o convés, percebeu os marinheiros ocupados em suas tarefas pesadas, então se aproximou da amurada. Apoiou-se nela para admirar o mar, o mar grande… e os seus pensamentos se alargaram como a extensão e a profundidade do oceano.
O que fiz comigo? É isso mesmo a fazer? Agora aqui e aqui estou… sozinha, uma solitária indo para a guerra!
C arlos a lberto de C arvalho 89
– Qual é o teu nome? O que queria? – indagou Ana diante do rapaz. O marujo ergueu a cabeça, assustado. Os olhos, a expressão do rosto, de surpresa.
Tenho que encontrar o rapazinho que veio a mim; ele parecia aflito. O que será que ele tem?, e, enquanto pensava, tentava localizá-lo. Bem, terei de andar pelo navio. Não me é permitido ficar andando, mas encontrarei o garoto! Sob o olhar de rapazes e homens maduros, Ana an dou pelas salas e compartimentos do navio até encon trar o moço. Ele estava retraído, sozinho na cozinha, descascando cebolas e batatas. Aproximou-se.
90 Que me una a Pedro, Isidoro e Justiniano! Que me una a esses meus filhos!
– Como a senhora chegou aqui…? Não… pode… – gaguejou.Anaseaproximou
E olhava o céu e olhava o mar. Olhava: porque tudo era como uma única coisa: solidão. A mulher solitária em busca de conforto entre feridos e mortos de guerra!
Suspirou Voltou-se,profundamente.então,resoluta:
mais e mais. – Bobagem! Estou indo para a guerra! Ficarei entre homens e homens! Por que não poderia estar aqui? Fala! O que queria comigo? O rapaz abaixou a cabeça, intimidado. O rosto enrubesceu demais. Ficou vermelho e não respondeu. A faca se afrouxou na mão e a cebola caiu da outra.
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– Sei… – murmurou Ana. José então ergueu a cabeça e os seus olhos tristes fixaram-se na mulher. Os dois se encararam por instantes de compreensão.–Asenhora de longe, quando vi a senhora de costas, me lembrou minha mãe… – falou com voz embargada pela emoção e concluiu: – Sabia que não era minha mãezinha, mas ousei me aproximar; queria ao menos ver a cara da senhora e ter minha mãe perto de mim…! – explicava, já choroso, com as lágrimas rolan do pelas faces vermelhas. Uma agulha ou foi um arrepio que penetrou no co ração e no corpo de Ana? Ela titubeou, mas encontrou forças para se manter em pé. Forte, uma rocha lhe enrijeceu as pernas. Firme.
O moço pegou a cebola que lhe escapou e disse atabalhoadamente:–Senhora…
senhora, me chamo José Manuel! – Hummm… novo, um garoto… bem, e quantos anos
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– Se não falar, ficarei aqui parada. Não arredarei o pé daqui… Acho que até descascarei batatas! Tô cansada de ficar trancada, sozinha!
–tem?Completei dezoito anos, senhora. Ana estava por demais perto. Estavam tão próximos que ambos ouviam a respiração um do outro.
E assim falou e avançou para se sentar em outro tamborete naquele ambiente quente e abafado.
– Não chore, filho! Não chore! O silêncio de comoção pairou entre mulher e rapaz.
tempo não vê a tua mãe? – quis saber.
A n A n éri – A mãe siti A d A 92
– Fique de pé, filho! Ele obedeceu prontamente, choroso. Ela, admirada, aguentando-se.–Háquanto
Ai! Ai! Meus filhos… este filho! Que eu não me lance ao mar! Que aflição no meu peito! O que é isso que me tortura?! Minha Nossa Senhora! As pernas fraquejaram, sua mente, no entanto, orde nou ao corpo que se mantivesse firme, vigoroso: … tenho três filhos bravos, e eu sou também a mãe, a brava!
O que fazer agora? Como pude me aproximar dessa senhora? Agora ela aqui está, e nervosa! Que não se queixe ao capitão, meu Deus do céu! Ana avançou e tomou o rapaz nos braços, animando-o.– Chore, filho! Fique bem, moço!
José prorrompeu em fortes soluços, chorando convulsivamente, abraçando Ana com força.
– Há mais ou menos um ano, senhora!
– Meu filho, vamos conversar durante a viagem… Agora, aqui, sou a tua mãe! – disse Ana amorosamente.
O aflito marujo afastou-a em instante de si e falou: – Mil desculpas, minha senhora! Perdão!
– O que é isso? Que nada… Sou mãe de três rapazes!
– Sim… e onde estão eles? – Na guerra, para onde tô indo, filho!
C arlos a lberto de C arvalho 93
E durante a viagem assim procedeu Ana, como se fosse a mãe de José Manuel, indiferente aos demais homens e os seus superiores, que não se opuseram ao tratamento dado ao marujo. Mãe e filho adotivos, coisas do coração. A dor mitigada, uma compensação para ambos.
José Manuel olhou-a admirado, inclinou a cabeça e chorou silenciosamente. – Senhora… – murmurou resignado. Ana tinha os olhos bem abertos, fixando-o. Tenho por agora um filho pelos meus filhos!
IX
Estava na antessala do convento vicentino. Freiras usando grandes chapéus brancos com abas andavam agitadas, um frenesi. O movimento era tamanho que Ana se percebia invisível, encolhida a tremer de frio. Os olhares eram muitos, mas aquelas mulheres estavam por demaisUmaocupadas.imensa sala e um turbilhão, entre homens e mulheres, vozerio e corre-corre. Então surgiu uma mu lher de robusto corpo, ela era a irmã Alfonsina. Vinha feliz, despejando alegria e acenos entusiasmados. Na multidão, ela conseguia se destacar e vinha entre gestos e sorrisos. Vinha. Caminhava. O chapéu
poRto alegRe, setembRo de 1865. chovia toRRencialmente. As águas desciam barulhentas, num estardalhaço formidável. Chuva volumosa e vento impetuoso. Os trovões ribombavam e os chicotes dos raios iluminavam os céus carregados, como o anún cio do final dos tempos.
O que mais me aflige é esse frio! Que chova, meu Pai, mas me dê o alívio do calor!
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vicentino,96 com abas pontiagudas, era um destaque na cabeça de irmã Alfonsina, quase um adereço de pantomima, contudo, por seus traços vigorosos, postura ereta e olhos grandes e brilhantemente azuis, provocava nos seus observadores admiração. Rapidamente parou diante de Ana.
– Tanta e tanta coisa… a fazer! – falou a irmã, estendendo aAnamão.cumprimentou-a levemente, que logo a puxou para o meio daquele frenesi, exclamando: – Me acompanhe e já perceba o quanto precisare mos de ajuda…! Sou freira, uma catarinense, mas os trabalhos que nos trouxeram e nos trazem aqui são de espantar o próprio demo! E assim falava, despreocupada, puxando a outra pelaAtravessarammão. salas e corredores, enquanto Alfonsina mostrava os setores a Ana. Um lugar superlotado de militares, médicos, enfermeiros, freiras, padres, soldados e feridos diversos. E a tudo olhava Ana, atenta, nervosa.–Está com frio? Aqui é diferente da Bahia, não é? – Sim… muito, irmã. Acredito que, mais um pou co, congelarei!–Não!Não será! Ficará tão ocupada que não sentirá mais frio!
– Senhora Ana Néri? Desculpe-me pela demora! –quase gritava a freira devido ao seu tom vigoroso de voz.
– A senhora, então… – Vim aqui para aprender! – interrompeu resoluta.
QuinzeAnaforça.correspondeu.diasapós a sua chegada às terras geladas do Rio Grande do Sul, Ana Néri estava acomodada no
tem conhecimentos médicos? Já cuidou de gente muito doente… feridos graves?
Então a freira passou à frente da outra. Ana estacou, surpresa.–Asenhora
– Não. Somente dos meus filhos. – Doentes? – Não, saudáveis. Estão aqui também, nesta luta! –respondeu Ana e olhou firme a religiosa.
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Prosseguiu: – A senhora me ensina! Aprenderei muito bem! Sou correta e pronta para obedecer. Vim para aju dar. AlfonsinaServirei? gostou do que ouviu. Sorriu de maneira amável.–Sim, mas claro, minha querida! Então veio como voluntária pelos filhos… Hummm… Muito correto! Vamos sair daqui e logo darei as primeiras lições, sim?
– Irmã! – pronunciou Ana Néri, séria. – Irmã! Não vim para ser um estorvo! Vim para servir e bem! Irmã Alfonsina avançou prontamente e a abraçou com
Cuidava das freiras idosas, mas aguardava irmã Alfonsina com as suas lições de enfermagem, ela, que jamais estivera em um hospital, tampouco esteve junto a feri dos Anagraves.Néri, contudo, estava bem arranjada entre as abnegadas Irmãs de Caridade. Tinha seu quarto privado com vista para o claustro, cama dura, de colchão rígido, um roupeiro de duas portas, lamparina e uma poltrona grande, além de uma mesa onde havia um caderno para anotações e uma Bíblia. No vigésimo dia na capital gaúcha, ainda de madrugada, irmã Alfonsina bateu forte à porta de Ana.
– O que houve, irmã? – perguntou, enquanto abotoava o vestido.
– Vamos, dona Ana, imediatamente! Obediente, Ana a seguiu pelos corredores frios e es curos da ala de dormitórios do convento.
– Vamos! Me siga! Preciso da senhora! – disse após a outra mal ter escancarado a porta, assustada.
convento98 vicentino. Aos poucos se habituava ao frio in tenso e congelante.
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Minha alma está dilacerada. Não tenho o que fazer ainda… O que vim fazer por aqui? Estou perdida! À toa e com uma guerra aqui perto! Meus filhos bem perto de mim, e eu sem ver um deles. O que fazer? Passava algumas horas no jardim, ou melhor, no claustro das freiras vicentinas – ou Irmãs de Caridade.
vicentinas foram organizadas por São Vicente de Paulo e Santa Luísa de Marillac durante uma longa guerra civil que assolou a França seiscentista.
Quando o facho de luz da lanterna do oficial iluminou melhor a entrada da casa, Ana Néri recuou dois passos. Não eram sete homens, mas um amontoado de homens sendo socorridos por várias freiras, enfermeiras e médicos.Ochão estava coberto de corpos vivos e mortos e sangue e gritos.
C arlos a lberto de C arvalho 99
–
A senhora verá! Teremos práticas das lições de en fermagem.Asfreiras
O padre Vicente conseguiu trazer conforto espiritual e material aos milhares de pobres, órfãos e viúvas, entre outras classes e condições dos inúmeros desgraçados e miseráveis que pululavam e transitavam pelo solo francêsAfinal,destroçado.coma ajuda de poucas senhoras nobres, dentre elas, Luísa de Marillac, e camponesas, como Margarida Naseau, formou um exército organizadíssi mo de mulheres abnegadas e devotadas completamente aos pobres, aos mais necessitados: estes eram o Cristo!
E foi com o que Ana se deparou quando, à porta do modesto convento, viu sete soldados caídos, gemendo, revolvendo-se bruscamente em suas dores.
Irmã Alfonsina transpirava tal ideal, porquanto segui-la naquela madrugada friorenta era encontrar trabalho – e pesado.
100 – Venha! Não tenha medo e me observe! – Puxou-a Alfonsina.–Sim, irmã! E avançaram naquele tumultuado ambiente de dor e aflição.Osol estava no meio do céu quando Ana Néri recostou-se numa parede, exausta, trêmula.
– Senhora! Senhora…! Ela olhou e nada viu, quem chamava? – Aqui, senhora, estou acenando! – falava um rapazinho no leito, do outro lado da enfermaria.
– Passando mal? Sim? – preocupou-se ele. Ana o olhou bem, na penumbra. Era isso mesmo? Um soldado ferido a chamava e a confortava? Olhou-o melhor e o rapazinho estava apoiado nos cotovelos, acenando: – Minha senhora…
– O que é? O que é? – sussurrou a mulher. E assim respondendo, encaminhou-se ao jovem.
– A senhora está cansada, não é? Sente-se aqui perto de mim e conversamos… – falou o rapaz, ajeitando-se mais ao canto, na parede. Ana foi em silêncio, sentou-se sem falar nada, quieta, cansada; apenas recostou-se à parede e fechou os olhos.
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– Meu nome é Luiz Tadeu, sou do Rio de Janeiro. – apresentou-se o moço. Por instantes, Ana permaneceu em silêncio, com os olhos fechados. Abriu-os calmamente instantes depois. – Qual é a tua idade, filho?
Ela permaneceu ao lado do rapaz até que adormecesse, num sono tranquilo, ao lado da pequena irmã.
ver – pediu Ana. Luiz afastou o lençol. Ana conseguiu conter o espanto quando viu a perna direita em chaga viva… uma ferida longa e profunda.
As lições de enfermagem dadas por irmã Alfonsina foram imediata e prontamente aprendidas por Ana Néri. Seu quarto era pouco frequentado. Ela passava mais tempo nas grandes e longas enfermarias superlotadas de feridos e soldados moribundos.
Ana se aproximou mais e acariciou as faces de Luiz. Ele segurou a mão, contente. – Sim, senhora, faça isto! Minha irmã caçula toda noite me afagava… tenho saudades dela. – Então, meu filho, hoje e aqui sou a tua irmã…!
C arlos a lberto de C arvalho 101 – Vinte… vinte anos, dona… – Ana. Ana Néri, filho… tão novo… E se olharam sérios, mas a mulher sorriu e o jovem sorriu também.
– O que houve contigo?
– E você não se queixa, não é? – Não, não, finjo que estou bem!
– Machucados por bala de canhão… quase perdi a perna.–Deixa-me
mostrava-se pronta para todos os serviços, fosse no cuidado com os feridos e doentes, fosse na arrumação da enfermaria e dos medicamentos.
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Respondia resoluta: “Estou indo, irmã!”, “Deixa comigo!”, “Sim, irei…!”, “Tá bom, tá bom! Tô indo!”, “Ah, meu filho, tudo bem?”, “Coragem! Força!”, “Va mos! Vamos! Por que demoram?”. E os dias passavam e ela, voraz como mulher de dicada, fazendo jus ao seu cargo de enfermeira; ela, que jamais havia tocado em outros corpos masculi nos, que não o do marido e os dos três filhos homens.
Quandoextremo.asirmãs ou outras enfermeiras não suportavam mais o cansaço, ela se prontificava imediatamente a Erasubstituí-las.incansável,
Acorria com pressa e cuidados, e buscava também ter notícias dos filhos. Perguntava sempre e procurava confortar a todos e, assim, mostrou-se solícita e cuidadosa ao
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Diante dos homens intimidados com a sua presença para os banhos higiênicos, comportava-se dignamente, em especial com os mais moços. Estes ficavam por demais envergonhados; ela dizia de forma amigável: “Meu filho, um deles, um que parece com você, tem também os olhos assim como os seus!”, “Ah! Sou uma senhora, mãe de filhos, vim aqui cuidar de você!”, “Ai! Ai! Como é bom um pouco de água fria, não é mesmo?”. E eles cediam logo ao carisma de Ana.
C arlos a lberto de C arvalho 103 Ela conseguia-lhe a aproximação de maneira ma ternal e o seu coração tremia e se rasgava em fendas ao ouvir: “Não, não me deixe, senhora!”, “Cadê? Cadê minha mãe…? MÃE?!”, “Onde está? Onde estão minha esposa e filhos?!”, “Estive no inferno!”, “Tô morrendo… morro, minha senhora?”, “Segure minha mão pelo amor de Deus!”. E a baiana, silenciosa, confortava.
Na madrugada, Ana já adentrava o grande salão recheado de soldados e oficiais em convalescença. Ali entrava e se demorava até a noite, quase não se ali mentando, debruçada ora sobre um aflito, ora sobre um Entãoqueixoso.numa tarde foi cumprimentada por Rozendo Muniz Barreto, um acadêmico de Medicina.
Os acamados eram convalescentes das enormes batalhas ocorridas em Albuquerque, Corumbá e Corrientes.
Que há comigo? O que faço? Como é isso? O que não sei mais nada de mim sei o quê? O que sei e não sei? Onde estão meus filhos? Até na Argentina estou perdida, louca, esperando que Deus me ampare e proteja!
Andava vagarosamente pela rua escura, a chuva caindo lenta e persistentemente pelos últimos quatro dias. Seu andar era forte, apesar da solidão que invadia seu coração.Aliestava por conta dos grandes depósitos de sangue.
X salto, uRuguai, novembRo de 1865.
– Senhor… – Rozendo Muniz, também da Bahia. Ana o olhou atentamente. Era um jovem bem-apessoado, cabeleira farta, cabelos castanhos, olhos grandes, nariz afilado, jeito impetuoso e inteligente. A boca pequena coberta pelo espesso bigode e barba farta, que se abria como um leque, destacando-o por esta peculiari dade. A voz grave e agradável. E a mulher ficou a fitá-lo, sem nada dizer, quando ele prosseguiu com o seu jeito extrovertido: – Conheço a senhora. Está famosa! – Eu?! – espantou-se Ana. – Sim, senhora, todos falam da senhora…
– Falam muito, os soldados e oficiais, entre outros, que a senhora é a salvação de todos! – E acentuou as últimas palavras. – Eu?! Ora! Deixe disso, moço! – respondeu prontamente e desviou o olhar, intimidada. Rozendo se fez sério.
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106 Encontraram-se pela primeira vez na sala dos mé dicos; Ana passava rapidamente por ele, sem olhar para os lados.–Senhora Ana! – ele a chamou. Ela estacou e o olhou firmemente nos olhos.
– Por quê? O que há? Rozendo se aproximou ainda mais. Todos da sala observavam silenciosos, atentos à conversa. Eram médicos, freiras e enfermeiras.
no recinto entreolharam-se satisfeitos e sorriram.
Dias depois, Ana cruzou com o acadêmico Rozendo perto da Capela. Ele adiantou os passos para falar-lhe.
C arlos a lberto de C arvalho 107 – Estou falando sério, dona Ana Néri! Ela abaixou a cabeça, envergonhada. Não tinha o que dizer, por isso se esquivou.
– Exemplar como mulher… e humilde! – falou Rozendo com a voz forte. Ana não conseguiu cuidar de seus doentes. Correu ao seu quarto e jogou-se na cama. Eu, hein! Salvadora eu, como é isso? Porque, ai de mim, não tenho notícias dos meus filhos, eu estou sozinha aqui. Onde estão vocês, meus queridos filhos? Cadê? Por que tô assim tão sozinha, meu Pai do céu? Virgem Santa Maria! E encostou-se à parede, chorosa, olhando o vazio do quarto sem fitar nada.
– Dona Ana! Dona Ana! Me escute, por favor! Ana fez um gesto com as mãos e continuou a andar.
– Tenho notícias, senhora, de um dos filhos da senhora…
Tô morta, tô viva… como é isso? O que fazer?
– Com a licença, senhor, tenho o que fazer! – E retirou-seAquelesrapidamente.quepermaneceram
– O filho é o Pedro Antônio! Ana juntou as mãos no peito, em seguida, agarrou as mãos do jovem, ansiosa, perguntando aflita:
– Senhora, não estive com ele, mas um amigo meu esteve. Foi uma longa conversa até que percebi o sobrenome… e como a senhora é famosa… Ana levantou a mão displicentemente. – … qual dos meus filhos? Fala! Que demora! Aconteceu algo e não me quer dizer? Fala, rapaz! – gritou Ana as últimasRozendopalavras.espantou-se, fez-se sério, abaixou a cabeça e se –calou.Oque é?! Não falará?!
– Moço, qual dos meus filhos? – perguntou com voz arrastada. Tremia e os olhos estavam arregalados. Rozendo deu alguns passos, lentamente. Que escuto? Quem sou? Como é isso? Por que isso? Quem é esse que tá aqui? Estou morrendo, é um vento forte que me carrega junto às águas, estou submergindo. Socorro! Que alguém me salve, salve, salve, meu Pai do céu. Ficaram demasiadamente próximos e ela pôde aten tar para a feia barba do rapaz. Ela olhava, mas nada via, porque os seus ouvidos dilataram-se, era como se toda a alma se abeirasse, crescesse para acolher as palavras a serem pronunciadas.
108 A mulher estacou os passos. Um raio como que a fulminou ali. Por instantes não se mexeu. Voltou-se para o acadêmico como se fosse uma boneca, um fantoche.
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– Meu Antônio está bem? Em que lugar está?! Ele está bem mesmo? Ai! Que bom saber! Rozendo observava a agitação da mulher, mas não conseguia responder. Por fim, tapou-lhe a boca com uma das mãos e com a outra segurou-lhe as mãos agitadas.
Fiquemos perto desta mussaenda, quero perceber que estou viva e tenho olhos para contemplar a beleza! – falou, sentando-se, e novamente se voltou para o rapaz. – Meu jovem, então, por favor, me fale como está o meu Antônio!
Ela estava sentada, mas seus sentidos estavam am pliados. Os olhos enxergavam demais; os ouvidos di latados pareciam escutar o mundo; o paladar tornou-se azedo, como gosto de comida salgada; o cheiro era intenso: sangue, água, os remédios… Então as mãos
C arlos a lberto de C arvalho 109
– Que espetáculo esta mussaenda! Para mim, que sofro, é uma maravilha poder vê-la em todo seu esplendor – falou baixo. Apenas Rozendo pôde ouvir o sussurro. E continuou mais esperançosa: – Ao menos posso vê-la em tamanha beleza; eu, que presencio todos os dias a morte de jovens e horrorosas amputações de membros…
– Dona Ana, calma! Calma! – Sim… – Calma! Vamos nos sentar que te conto tudo! Ana sossegou prontamente e seguiu o rapaz aos bancos de pedra do jardim. Uma farta mussaenda cor -de-rosa exuberante atraiu o olhar da mãe chorosa.
crisparam-se110
Talvez…Anaergueu-se, surpresa. – Não conheceu? O que faço aqui, cheia de coisa a fazer lá dentro? – gritou, pronta para se retirar.
Como ele sabe sobre meu filho? Quem era? Como fazer para escapar? O que é isso? Por quê? Quem me protegerá? Tô morta? Tô viva? Quem sou eu por aqui? É verdade que ouvirei o pretexto de um rapaz fácil para amargurar meus dias.
–Ana,Corrientes…quesemantinha de pé, deu as costas para o rapaz.–Como…
– Senhora, conheci! Apenas não nos tornamos amigos. Claro que jamais poderíamos ambicionar a amizade naquele lugar… – Qual lugar? – interrompeu a mãe de Antônio.
Olhavam-se; queriam se entender: ela, mais velha, mulher voluntária na enfermagem; ele, um médico em formação, um acadêmico.
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– Fala! Por Deus! – exigiu Ana. – Não conheci bem o filho da senhora, bem, não sei!
– ela apertava uma à outra, nervosa, me donhamente insatisfeita.
como meu filho está? – Estão bem, dona Ana. Ela o encarou, aflita. – … estão? Quem é o outro? – Justiniano…
– Sim, vivos e bem! – confirmou o acadêmico.
– Antônio e Justiniano estavam em Corrientes? – Sim, estavam… – Um viu o outro? Os três estão juntos, sabe dizer? – indagou, ansiosa. – Estavam juntos. Muitos sabiam deles por causa da senhora. Tomam conta dos filhos da senhora. Todos… Ana desviou o olhar, contudo não deixou de perguntar:–Cuidam de meus filhos por causa de mim? Rozendo encaminhou-se à mãe. Tomou-lhe as mãos, beijou-as uma a uma e disse: – Cuidam deles porque a senhora não descansa em cuidar de todos por onde anda!
A mulher rodou o corpo feito bailarina em apresen tação. Juntou as mãos, contente. – Somente os dois? – Sim, Antônio e Justiniano.
– Ao menos… vivos! – exclamou, resignada.
Rozendo manteve a voz tranquila. Sentia-se bem em falar com Ana Néri. Ele ouvira muitas coisas boas sobre ela; por onde passara, vários elogios e palavras edificantes. Sabia que viera ao campo de batalha para estar junto aos filhos, então ao menos ele seria o porta-voz de boas notícias sobre os filhos da voluntária de guerra, que não media esforços para cuidar de todos os brasileiros que seus braços incansáveis conseguissem alcançar e abraçar.
C arlos a lberto de C arvalho 111
aproximou-se do rapaz, passou-lhe a mão no rosto, ternamente.
– Então – desconversou –, sabe me dizer se continuam juntos…?
de Rozendo se avermelhou bastante. Ele desviou o olhar, envergonhado.
– Aqui se fala muito! Eu, generosa? Bem, escutei falar também que o senhor escreve bons versos, estrofes de qualidade! Então temos entre nós um poeta e médico?!Orosto
Se todos os médicos, enfermeiras e voluntários se dedicassem como a senhora faz…! – falou o rapaz, firme.
– Sim, senhora, claro! – respondeu Rozendo prontamente.Amulher
112 Ana puxou as mãos.
– Nada, uns versos fracos…!
– Não é o que eu muito escuto por aí. Parabéns! E assim falando, deu-lhe uns tapinhas nas costas e se retirou com passos apressados, leves, silenciosamente.
– Ora! Ora! Estou aqui para trabalhar! – proferiu secamente.–Hum…
– Agora o senhor procurará saber sobre o meu filho Isidoro! – avisou e sorriu.
– Não. Separaram-se. Antônio, Corrientes; Justiniano seguiu para Assunção. Ana suspirou profundamente, satisfeita.
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C arlos a lberto de C arvalho 113 Já chamam a senhora de mãe dos brasileiros! E não falam isso por pouca coisa ou por pouca valia!
de Caxias trouxe então o fôlego necessário para os brasileiros e aliados suspirarem mais aliviados
O Imperador d. Pedro ii, ciente dos perigos, decidiu ir pessoalmente para o front e levou como ajudante de campo o bravo marquês de Caxias. Guerra que era um celeiro de feridos e mortos, e uma incógnita em estratégias de ataques e cercos: o Paraguai contra os três aliados – Brasil, Argentina e Uru guai – mostrava-se deveras articulado e estrategicamen te mais bem equipado com armas, soldados e oficiais destemidos.Omarquês
XI humaitá, paR aguai, maRço de 1868.
sob uma toRRencial chuva, Ana e outras voluntárias e freiras vicentinas atravessaram, silenciosas, as ruas en charcadas. O medo intimidava os passos e os estrondos dos trovões perturbavam o grupo, porque não sabiam se eram tiros de canhão ou trovões repetitivos da borrasca que caía violentamente sobre a cidade já fustigada pela guerra – uma guerra de alianças entre povos vizinhos, que avançava lenta e ferozmente contra o povo paraguaio.
Ana entrou no grande casarão transformado em hospital e, sem se alimentar, dirigiu-se aos feridos de uma sala contígua.
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Um soldado estendeu o braço, impedindo-a de passar. Ela não entendeu e prosseguiu. O homem se postou diante dela dizendo: – Senhora, não pode atravessar, são feridos paraguaios, não são brasileiros! – disse, com rigidez na voz.
– Senhora, neste recinto estão os feridos inimigos, os paraguaios e os aliados blancos do Uruguai. Ana olhou firmemente para o soldado. – Filho, sou enfermeira e devo cuidar desses ho mens também! – anunciou, avançando.
após116
Caxias, como comandante-geral, suspendeu as investidas, treinou os soldados, revistou os equipamentos bélicos e adquiriu outros novos, melhorou as unidades médicas e a higiene das tropas e, sobretudo, aproximou-se de todos ao transmitir bastante confiança.
tamanhas trapalhadas do comandante anterior, o vice-almirante Joaquim José Inácio.
– Como?! – Estacou, confusa.
O soldado se surpreendeu com a atitude e estendeu o braço com a mão direita espalmada. – Alto, senhora! Obedeça!
Todos olhavam perplexos: a ordem de não cuidar dos doentes e feridos inimigos era do comandante e chefe, o marquês de Caxias, Luís Alves de Lima e Silva.
– Mas são ordens, e a senhora pretende infringir…?! Ela, então, voltou-se ao seu interlocutor: – Senhor, qual ordem é maior que aquela de cuidar de doentes, sejam eles quem foram em suas vidas? Eu
117 – Devo obedecer antes à minha consciência de enfermeira, que deve acudir aos que sofrem… e estão doentes, feridos… – disse, caminhando, num confronto com o
Outrossoldado.soldados
O homem prosseguiu: – Senhora! – Senhor, a tua autoridade não pode me impedir de cuidar de feridos durante a guerra! Os homens e mulheres presentes aquietaram-se. O silêncio era grande no corredor abarrotado de curiosos.
– Não ouse me impedir! – gritou a mulher.
O rapaz desceu o braço obediente e recuou ante a autoridade na voz de Ana. Ela prosseguiu com passos pesados, quando uma nova voz masculina preencheu o ambiente:–…fui
C arlos a lberto de C arvalho
eu quem ordenou que ninguém cuidasse dessesAnadoentes!estacou, mas não recuou.
se agruparam; também se juntaram médicos, enfermeiras e até os oficiais superiores.
– Senhora… – Ana Néri, senhor, Ana Néri! – interrompeu. E prosseguiu, olhando-o firme nos olhos: – Se eu ali entrar, serei presa?
Dias depois, Rozendo avistou Ana saindo da Cape la. Apressou os passos e a alcançou. Ela andava a passos rápidos, não se demorava de uma ala da enfermaria à outra.
estou118 aqui para cuidar de feridos e doentes, e não sabia que se escolhiam doentes para serem cuidados! O homem que se confrontava com Ana Néri era o marechal Caxias. Ele estava com o rosto vermelho e a sua voz parecia irritada.
– A senhora está me desafiando?! – Não, senhor, nada disso. Sou obediente, mas a esta ordem eu não obedecerei! – E, como para demons trar sua convicção de estar com a consciência tranquila, deu-lhe as costas e encaminhou-se ao alojamento dos feridos inimigos. O marechal permaneceu imóvel por instantes, sem graça. Com a cabeça baixa, dirigiu-se ao interior da casa. Seus passos firmes e barulhentos revelavam o quanto estava
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–contrariado.Mulher!Tenho que saber quem é essa Ana Néri! –murmurou entredentes, desapontado.
Era a exaustão falando mais alto. Finalmente o cor po esgotado não suportou mais as noites maldormidas; o corre-corre de atendimentos de múltiplos doentes; a alimentação parca e às pressas; e o sofrimento constante de assistir a amputações, aos moribundos e aos desesperados. Enfim o grito do mortal atacado pela estafa.
– … Rozendo, você aqui…? – Mal conseguiu terminar sua fala, perdeu os sentidos. O rapaz, num pulo, segurou-a com força nos braços.
– Quanto tempo devo ficar deitada, inutilmente, meu filho? – quis saber.
Imediatamente inúmeras portas se abriram e várias pessoas acudiram ao apelo. Ana foi pronta e seguramente transportada, inconsciente, a uma das alas das enfer marias. Um enfermeiro a carregou e a colocou na cama.
Instantes depois, cercada por amigos e curiosos, Ana reanimou-se. Ao abrir os olhos, tinha sobre si o semblante gentil de Rozendo.
– Dona Ana, a senhora deve descansar… – pediu, quase num sussurro. Ana o fitou e sorriu. Todos sorriram e se retiraram, mas não sem antes acenar-lhe carinhosamente.
C arlos a lberto de C arvalho 119 – Olá! Está tudo bem por aqui? Ana se voltou, surpreendida; reconheceu o estudante e avançou alguns passos vacilantes.
– Acudam! Acudam! Dona Ana Néri passou mal! Desmaiou! – gritou, aflito.
– Quanto tempo? – perguntou novamente e continuou, quase impaciente: – O que é tudo em reparo? Rozendo sentou-se à beira da cama. Olhava para Ana Néri com respeito e carinho. Inclinou-se mais ainda, afirmando:–Minhaboa senhora, estás em minhas mãos. Estás doente e muito, por isso não determinarei o tempo… observarei tudo, durante todos os dias, e em algum mo mento lhe darei alta – falou e ergueu-se, calmo.
Ela falava com voz cansada. O rosto demonstrava realmente o cansaço físico. Ana estava doente.
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– Bem, a senhora conseguiu se estafar. Tudo precisa de reparo e repouso absoluto, e nada de aflições.
– … estou em tuas mãos?! – repetiu Ana, perplexa. Estava tão fraca que logo adormeceu. Um adormecer diferente, confortável, humano. Ela, que somente repousava no máximo quatro horas por noite, quando assim se permitia. A convalescença foi longa, durante os meses de março, abril e princípios de maio. Primeiro, um tratamento nos órgãos vitais, exames frequentes no coração, pulmão e estômago. Mais que sentada, tinha que permanecer deitada. Era observada durante todo o dia, tarde e noite, por vários voluntários: médicos, enfermeiras, voluntários e até sacerdotes – todos queriam colaborar na recuperação daquela chamada Mãe dos Brasileiros. – Isso mais me chateia que agrada! – reclamou.
120
– Rozendo, meu filho, aquela ordem não serve para quem cuida de enfermos! A proteção dos feridos de guerra e o cuidado com eles são atitudes dignas e hon rosas aos nossos semelhantes! – disse e cerrou os olhos. Rozendo olhou-a admirado. Sabia que aquela mu lher cumpria as palavras ditas. Ela se calou, mas os pensamentos do rapaz alavancaram-se. Como ficar quieto? A inércia para um médico de guerra é a ruína. A mulher respeitava princípios da humanidade: acudir a quem precisasse, indistintamente. Ela foi aos soldados inimigos e mostrou-lhes amor forte. Outras seguiram seu exemplo, e o marechal Caxias teve de aceitar a atitude de Ana Néri: ela foi aos doentes inimigos. Ao amanhecer de um junho invernoso, quando já conseguia ter forças para caminhar em seu quarto, Rozendo bateu à porta.
– Não sou teimosa, sou dedicada!
– E brava! Até do marquês de Caxias, o marechal, a senhora desrespeitou as ordens! Ana fez-se séria.
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121 Rozendo e ela estavam nos jardins dos fundos do hospital.–Mas não estamos aqui para atender opiniões de enfermos teimosos! – retrucou, brincalhão, o acadêmico.
conseguia largar o filho, permaneceu por instantes ligada a ele. Quando Pedro Antônio afastou -se, Ana estava mórbida, então Rozendo a amparou, guiando-lhe até a poltrona frente à janela. Puxou a cortina e a aragem encheu o quarto.
Aquilo que seus olhos viram fê-la dar passos para trás. A boca ficou aberta, os braços rentes ao corpo.
mãe e filho. Um elefante gritava à procura do filhote, enquanto um leão observava atento.
Queria gritar, correr, sacudir a cabeça, mas as forças lhe faltavam. Não sei, o que é isso? Como pode? Não estou vendo-o… não é verdade! Meu Pai do céu! Senhor? O que é isso? – Ma-mãe! – pronunciou, emocionado, Pedro An tônio.Ana deu um pulo, avançou correndo como um jato, em Abraçaram-sefrenesi.
Um grito desmoronava com força impetuosa todas as paredes e muros do hospital – forte detonação de energia entre queridos que se enlaçavam num abraço maternal.Elanão
A n A n éri – A mãe siti A d A 122
– O que queres, rapaz? Agora tenho certeza de que pensas ser meu pai ou tutor! – falou Ana sem lhe abrir a porta.–Sim, sou o pai! – Não estou dizendo que é confiado! – disse isso, animada, e abriu a porta abruptamente.
– Fazer o quê? Período de convalescença – justificou-se.–Eu sem notícias e meu filho na cidade há um mês…! Eu, hein! Que coisa! – desabafou, nervosa.
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– Um mês?! – repetiu, espantada, e olhou em seguida para Rozendo. O acadêmico encolheu os ombros, cínico.
O filho aproximou-se da mulher. Não era mais o rapazinho de modos calmos. Agora estava abatido, os gestos pareciam mecânicos, o olhar perdido, como a querer um repouso, um sossego. Um grito se avolumava em seu interior despedaçado por tamanhas desgraças.
Abriu os olhos e viu.
Aproximou-se de Ana e estendeu-lhe a mão esquerda, confortando-a com um toque firme, enquanto sorria feliz por reencontrar a mãe. Ela tá magra, abatida. Um frangalho de magra, mas é minha mãe! Ela veio mesmo! Mãe…! Mamãe! Meu filho tão bonitinho…! Tão meu e agora feio, magro… quem é este? Cadê meu filho? Vou-me embora daqui… Pedro… Pedro Antônio! Ela gritou, então os homens a olharam e, desperta, sentiu forte vontade de se erguer e correr o mundo.
– Mas estou aqui graças ao Rozendo, mãe! Ana olhou seu protetor e voltou-se ao filho.
– Pedro, há quanto tempo está por aqui? – Completou um mês no sábado.
– Vou deixá-los a sós. Ficarei em minha sala. Qualquer coisa… – justificou-se o acadêmico.
– Quero ficar sentada! A tonteira passou… me ajudem, vamos! – exigiu.
Os rapazes avançaram prontamente. Rozendo ajeitou-lhe os travesseiros às costas, Pedro acomodou-lhe o vestido e as cobertas.
– Não foi nada, senhora – disse e se retirou.
– Não precisarei mais! Fique descansado! – inter rompeu Ana em tom brincalhão. – Esta velha não cairá mais de susto! – Espero! Tem muito a trabalhar! – ajuntou Rozendo, piscando-lhe o olho. Ana acenou-lhe, contente. – Obrigada, filho!
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Imediatamente Ana se voltou para o filho. Pedro estava como que alheio; ela percebeu o olhar perdido do rapaz e a magreza excessiva. Sabia que sofria.
– Notícias de teus irmãos? Sabe deles? Pedro aproximou-se e sentou-se na beirada da cama. Permaneceu em silêncio por instantes, enquanto
124 – Entendo, ele impediu que me visitasse para mi nha melhor recuperação! – falou, compreensiva. Rozendo sorria, satisfeito. Ana animou-se.
O rapaz a olhou por alguns segundos, fez-se sério e então esboçou um sorriso de contentamento.
C arlos a lberto de C arvalho 125 lágrimas rolavam lentamente pela face. Logo se incli nou, com as mãos no rosto, e chorou convulsivamente. Ana aconchegou-se num abraço ao filho. Forte, continha-se para que as emoções não aflorassem mais e mais e prejudicassem a conversa, que desejava positiva e agradável.–Como e como senti falta da senhora e dos meus irmãos! – confessou, soluçando. – O inferno foi visitado por mim, mamãe! Não há mais nada neste mundo que me amedronte! – falou, convicto. Ana afagou o rosto forte do filho. Beijou-lhe a testa e o apertou mais e mais em seus braços. – Estive com Justiniano em Assunção. Ele está bem, até forte, vibrando pela guerra. Se comporta como se nada de ruim estivesse acontecendo. Não vejo o Isidinho há cinco meses. Soube que está em Mato Grosso. Estava bem… todos choraram, nós choramos e nos abraçamos. Prometemos viver… viver, mamãe. Ana escutava. Seus olhos passeavam pelo quarto. O coração apertado, o sofrimento de ver um filho abatido e ainda não abraçar os outros, tão perto de onde se encontravam. O que fazer? Como posso?! Isso? O que é isso? A vida! Casar, perder o marido… criar filhos… criei… eduquei e agora aqui estou neste lugar e sem meus filhos… Este, um trapo, mal consegue ficar de pé. Finge que está forte pra mim. Ao menos vejo, sim, vejo, beijo e abraço! Ninguém mais vai tirá-lo de mim. É meu!
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– Está vendo a mussaenda rosa, como está em ca chos? Como está em todo seu esplendor! Gosto de tocar seus fartos cachos. Linda, não? Fui eu que plantei, filho!
126 Pedro contorceu-se, incomodado. – Mãe, está me sufocando – queixou-se. Ana afrouxou o braço em torno do pescoço do filho.
Pedro Antônio voltou-se.
– Não ouso perguntar… mas…
– Soube que a senhora é exemplar como enfermeira! Ele desconversava. Tinha missão a cumprir. A guerra continuava com toda a força pelas fronteiras do Brasil, da Argentina e do Uruguai. Os paraguaios detinham estratégias e armamentos que superavam os aliados.
– Pergunte, mãe, pode perguntar… já sei do que se trata…–Sim, filho. Por quanto tempo ficará por aqui?
– Conversa! Cumpro minhas obrigações, como você cumpre as tuas! O rapaz avançou, pegou as mãos da mãe. Ajoelhou-se obediente e seus olhos estavam brilhando.
– Ficarei somente três dias, mamãe. Hoje e mais doisAnadias…abriu a boca, mas palavras não saíram. Os braços caíram desanimados. Olharam-se demoradamente.
O rapaz desvencilhou-se dos braços da mãe, caminhou até a janela, em silêncio. Ficou lá, sozinho, a observar a paisagem, tão quieto.
C arlos a lberto de C arvalho 127 – Mamãe, todos me apontam como o filho de Ana Néri, a mulher que não se cansa de socorrer e ajudar os soldados… Isso me emociona! Graças a Deus tenho a senhora como mãe! Ana aconchegou o filho contra si, beijando-o com ternura.
XII assunção, paR aguai, maio de 1869. os passos de ana néRi eram lentos. O frio lhe cortava o ânimo ou a notícia desgraçada lhe arrancara as forças? Caminhava ao longo do grande muro de sua residência. Caminhava em busca de fios de sol que abraçassem o coração do frio exterior e da frialdade fatal que lhe atormentava o espírito. Parou. Quem lhe daria ânimo novamente? Seus passos eram dados no vazio, como se não pisasse. Em sua casa estavam seus dois filhos: Isidoro e Pedro Antônio. Chegaram à noite Rozendo e o irmão, o major Maurício Ferreira. Todos estavam chorosos e aflitos: Justiniano havia sido morto em batalha. A quarta-feira foi chuvosa durante o dia inteiro. Às 17h o frio e a densa cerração cobriam Assunção. A cidade sitiada há muito atemorizava pelos ensurdecedores disparos de canhões e o ribombar de forte artilharia:
Um raio clareou lá fora? Um barulho estrondoso sacudiu a casa? O que aconteceu? Ana Néri estacou. Seus movimentos musculares se retesaram. Parou. A boca feliz se fechou. Os olhos ávidos pela presença dos filhos toldaram-se. Ela estava como que petrificada. O coração era o único órgão ativo, pulsante. Ela estava se tornando um bloco de sal, feito a mulher de Ló? Ana não se mexia. Era pedra, era estátua, era como uma esfinge, um ser bruto, não raciocinava, olhava e via os dois filhos. Cadê Justiniano?, mas a pergunta não brotava na boca, não conseguia fazer o som sair: pergunta e palavra perdidas no íntimo, contudo seu interior era o
A n A n éri – A mãe siti A d A gritos,130 pedidos de socorro, correria e aflições tomavam parte do cotidiano, mas nada afligiu mais o coração de Ana Néri do que encontrar Isidoro parado frente à porta de casa. Ela viu o rapaz assomar à entrada, mas não atentou de imediato que era seu filho, então parou e ficou a encará-lo, vendo-o vir em sua direção, sério, passos firmes. A mãe avançou rápido e contente a fim de abraçá-lo. Que surpresa! Ele aqui, agora veio contente ao meu encontro. Que bom, meu Isidinho! Que saudade do meu queridinho! Estava na hora; a hora de a mãe ver e abraçar o filho sozinho em guerra… Então viu também aparecer na porta o outro filho: Pedro Antônio. Este não andou, deixou-se ver e ficou parado, cabisbaixo na soleira da porta.
Os filhos não se afastaram. Pedro Antônio permaneceu com a mãe, deitado em colchas e cobertores no chão. Rozendo e Isidoro tentaram inúmeras vezes que o rapaz se retirasse do
Isidoro a envolveu em um forte abraço, mas filho não consegue abraçar tal qual a força de uma mãe. Ela o puxou de encontro a si. Forte. Seus olhos buscavam Pedro Antônio, e ela ainda encontrou Rozendo e outros, que enchiam o corredor. – Mãe, Justiniano se foi… e também o Arthur! Mãezinha, eles morreram – disse Isidoro em seu ouvido direito.Bastou.
O abalo emocional foi tão forte que durante dois dias Ana Néri não reagia. Deitada e absorta, os olhos passeavam pelo quarto, viam as coisas e as pessoas que a visitavam, mas a reação era mínima. Estava paralisada.
C arlos a lberto de C arvalho 131 vulcão irrompendo, o terremoto desastroso, o tsunami arrasador… mas… cadê… força?!
Os olhos se arregalaram e se tornaram como que vítreos, mãos e braços se afrouxaram, e o corpo, em queda livre, foi suspenso por Isidoro e Rozendo. Eu não… Eu não! Nada disso e disso! Tô aqui parada. Justiniano tá aqui. Deus te abençoe, meu bem! Deus te abençoe, querido! Meu filho querido!
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do seu torpor emocional, Ana Néri tinha sobre si os olhos atentos de Pedro Antônio.
ao menos umas horas dormidas em cama, mas alegava, convicto: – Ela cuidou da gente e está aqui para cuidar de mim e de outros desconhecidos, como uma mãe! Deixem-me ficar! Não sairei daqui. – E não arredou os pés, somente para os banhos e rápida alimentação. Quando se retirava, suplicava com rigidez ao irmão, a Rozendo e a tantos outros que estavam prontos para acudir Ana Néri: – Não a deixem sozinha! Fiquem de guarda! Prestem Osatenção!irmãos não se podiam olhar, logo choravam e se abraçavam.Aodespertar
Uma enfermeira puxou a cortina e o sol inundou o quarto com tamanha intensidade que assustou Ana. Ela ergueu as mãos para impedir a inundação de luz.
quarto,132
– Oi, mamãe! Estamos aqui… – falou o filho caçula e se afastou para que a mulher visse o outro, Isidoro.
– A sua bênção, mamãe! – Acenou e se ergueu da poltrona o filho do meio. Ana esboçou um sorriso fraco. – Deus te abençoe, meu filho.
– Oh! Oh! Quanta claridade!
– Dona Ana, infelizmente teu filho Justiniano e o teu sobrinho Arthur morreram em um combate há qua tro dias. Lamento e sinto muito. As mãos do rapaz procuraram as mãos da mulher, que se deixou tocar. Suas mãos foram apertadas fortemente.
133 – Receba, senhora! Receba bem esta luz. O sol faz bem, muito bem! – incentivava Rozendo, de pé, no centro do quarto. Ana olhou para todos. Viu seus filhos magros, chorosos junto da cama. O sofrimento unia a todos.
Rozendo a olhou admirado. A enfermeira desviou o olhar, compreensiva. Ele, então, aproximou-se, curvou-se sobre a mulher e lhe beijou a testa.
– Quero sair daqui! Saiam do quarto! Vou me arrumar!OsVamos!homens ficaram estupefatos. Rozendo conseguiu bater palmas, contente.
– Meu Justiniano e o Arthur morreram mesmo? –perguntou em voz vacilante.
Vou me levantar. Tenho que ir, tenho que ter forças e caminhar bem… Não chorarei… Não agora, basta!
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– Vamos! Dona Ana pediu pra ficar só! Vamos! Vamos!Os filhos se retiraram prontamente. Ao permanecer sozinha, apenas com a enfermeira e Rozendo, ela o puxou pela mão.
A n A n éri – A mãe siti A d A 134
Rozendo caminhou em direção à porta, parou de súbito, voltou-se para Ana, fitando-a demoradamente, quando, então, decidiu continuar seu caminho de saída, batendo a porta atrás de si.
A recuperação veio lenta e certa. Ana procurava as forças contrárias ao luto voraz. Sentia-se presa a uma dor, então voltou-se a Deus e aos filhos com mais intimidade.Nãopermanecia
– Senhor, nas minhas profundezas, no abismo, clamo a ti! E chorava, chorava. E corria ao jardim para cultivar, adubar, irrigar as mussaendas, as ixoras, os fícus e tantas outras plantas e flores que lhe alegravam o coração.
muito tempo no quarto porque não queria se refugiar no leito, com a tristeza avassaladora e impetuosa nas costas e no peito. Então corria à capela e se prostrava aos prantos. Ali permanecia por horas e horas e, vez ou outra, chamava aflita:
– Caxias voltou ao Rio sem permissão do Imperador! – confiou Isidoro.
– Que Deus tenha meu filho Justiniano e meu que rido Arthur! – falou a mulher com a voz firme.
Sentava-se com os dois filhos, conversavam e se en tendiam: mãe e filhos, todos envolvidos com a guerra.
– Sim, mamãe! – concordaram.
– Bem, é hora de retornar aos meus feridos e doentes! Os rapazes se entreolharam satisfeitos.
C arlos a lberto de C arvalho 135 – Esta guerra está por acabar, o cerco aos paraguaios está dando certo! – acrescentou Pedro Antônio. Ana se ergueu, ajeitando a longa e farta saia preta.
– Então ela aceitará o senhor… ela gosta do senhor?
Ela, paciente, deixava-se reter, enquanto o homem, mergulhado em lágrimas, lamentava a sua condição.
XIII assunção, paR aguai, setembRo de 1869. Rosto magRo, corpo com menos volume e olhar sério, Ana Néri corria pelo leito dos feridos. Era o seu turno e conversava com um sargento cujo olho fora vazado por estilhaços de bala de canhão.
– O que me será sem um olho? – Aos menos lhe restou um, querido! – confortava Ana.– Senhora! Senhora…! Como será isso?! – gritava, aflito.Ana se ergueu, acariciou-lhe o rosto ternamente e, fixando-lhe o olhar, disse: – O senhor tem mulher? – Sim, sim, tenho… senhora!
– Fique bem, o esquerdo está bem! Continuará enxergando. O olho esquerdo não foi danificado! – falava calmamente, mas o homem a segurava com forças, aflito.
O ferido a fitou seriamente, quando uma lágrima escorreu do olho machucado.
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O doente a encarou seriamente, depois, reconfortado, sorriu também.
– Tens filhos? – Sim, dois; um menino pequetito, de três anos, e uma menina de cinco.
Ela se inclinou e falou suave e firmemente:
– Hummm… estamos bem, meu senhor!
– Quando retornar à tua casa, todos os dias mostre o olho vazado e, em seguida, peça que beijem… que beijem! Fará isso, meu senhor? – concluiu, tocando-o com a mão direita.
– Que bom! Que bom! – E pediu: – Agora me deixe ir aos outros que me gritam. Fique bem! Mais tarde, retorno.Osargento ficou sério, vendo-a retirar-se. Ela, que correria a outras alas de feridos e doentes.
– Sim… sim, farei isso, minha senhora! Ana se ergueu rapidamente.
A residência de Ana Néri em Assunção logo foi transformada em uma espécie de hospital: mutilados,
138 – Sim, me parece que sim. Ana sorriu e acenou positivamente com a cabeça.
A casa grande de vários cômodos era centralizada num vasto terreno, avarandada e cercada por robustas mangueiras e fícus, e possuía o teto alto e a estrutura rígida. O arejamento era confortável por conta das largas e altas janelas: duas por cômodo. Então Rozendo e a sorridente irmã Luísa apareceram no terreiro dos fundos. O rapaz estava acompanhado de quatro crianças. Ana estava debruçada, remexendo a terra da mussaenda rosa que acabava de plantar.
– O que faz aqui?! Que bom te ver, Rozendo! – disse quaseEntãogritando.viuascrianças, intimidadas, atrás do rapaz. A irmã segurando no colo a menina pequena.
– Quem são? O que fazem com você estas crianças? – preocupou-se a enfermeira. Rozendo, sorrindo e tendo as mãos seguras no menino, respondeu:
Freirasmais.vicentinas também ali se estabeleceram: as Irmãs de Caridade Luísa Santos e Pacheca Andrade, duas jovens brasileiras, gaúchas, que em muito ajudavam a anfitriã e as outras voluntárias.
– Oh! Como isso é bom, não é? – falou Rozendo, animado.Anase virou, contente, ergueu-se sacudindo as mãos sujas de terra.
C arlos a lberto de C arvalho 139
feridos diversos e convalescentes ali entravam e não saíam
Olhava a tudo e voltava ao rosto sorridente de Rozendo.–Minha mãe, agora temos seis órfãos, de que cuida remos nesta casa, junto aos feridos desta maldita guerra! Ainda perplexa, Ana limpou as mãos sujas no aven tal branco. Limpou as mãos e avançou falando: – Bem, eu tomarei conta de seis crianças, não é mesmo, Rozendo? – A senhora e nós também! – retrucou o acadêmico, rindo ainda mais.
140 – São nossas, mãe! Ana estacou. Mãos suspensas no ar, a boca se abriu involuntariamente. Indagou sem saber por quê: – Quê?! Quem são? – Mãe, já disse, são nossas! A mulher, então, atentou bem para a irmã Luísa, que tinha nos braços uma pequena, e viu se aproximar a irmã Pacheca, ladeada por dois meninos pequenos.
Ana aproximou-se da menina que era a maior em tamanho e perguntou: – Está com fome? Todas as crianças a olharam demoradamente. Uma respondeu prontamente: – Estamos, sim, senhora! – Então, vamos comer! Rozendo ficou para trás, enquanto Ana passava por ele a passos rápidos.
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– Sim, senhor, ficaremos! Aqui tem lugar para estas crianças! Poderão até ajudar nos jardins e canteiros de rosas e heras-roxas.
O acadêmico, com as mãos à cintura, olhava boquiaberto ora para irmã Pacheca, ora para irmã Luísa e sacudia a cabeça, rindo, surpreso.
– Dona Ana! Mãe! – gritou. Ana voltou-se mais uma vez.
– O que é, filho?
– Estas crianças poderão ficar aqui, mesmo?! – gri tou mais uma vez, espantado. A mulher levou também as mãos à cintura.
– Então, aceitou? Ficará com elas, dona Ana? – quis saber, agora sem rir.
– Sim, já disse! Por que pergunta mais uma vez? Rozendo abaixou os braços e suspirou, aliviado.
– Vamos! Venham comigo! – chamou Luísa. – Va mos tomar banho e depois tomar café! As freiras entraram na casa e as crianças seguiram silenciosas e ainda intimidadas.
A mulher parou e voltou-se calmamente.
141
C arlos a lberto de C arvalho
– Esta mulher me surpreende sempre! Que alívio que não verei mais estas crianças perambulando pelas ruas… – murmurou, mas foi ouvido pela irmã Pacheca.
O olhar de ambos se cruzou, mas nenhum deles disse qualquer coisa. Tinham muito o que fazer.
A mulher ocupada, que se desdobrava para atender aos diversos doentes e tantos outros necessitados que lhe batiam à porta, pedindo-lhe ajuda ou socorro, ainda encontrou tempo para cuidar e tratar de seis crianças órfãs.Oque fazer? Em tempos tenebrosos, nada poderia se tornar pior do que a situação em que já se encontrava. A guerra eram as trevas; o caos, propício para as desgraças, como fome, violências, pilhagens, abusos e misérias que brotavam dos corações de pessoas más ou desesperadas.
Os braços se abriram. Os braços de Ana Néri se abriram como acolhimento e proteção. Reunia as crianças após a ceia junto a si, em seu quarto e, com os menores no colo, contava-lhes histórias da Bíblia, dos contos de fadas ou de Trancoso: “Era uma vez um rei que tinha uma filha linda, linda, chamada…”, “A raposa tão esperta foi vencida pela tartaruga… porque…”, “Ora, Abraão juntou a lenha porque faria o sacrifício, então Isaac perguntou…”. E uns logo adormeciam, outros permaneciam acor dados, atentos, queriam saber como a história termina ria. E, quando acabava o relato, pediam: – Outra! Outra história, mãe…! Então uma das irmãs acudia.
A n A n éri – A mãe siti A d A 142
A residência de Ana se efetivou naqueles dias difíceis como lugar de repouso e recuperação e, a partir da chegada dos órfãos, também como casa de recolhimento.
O luto pelo filho Justiniano foi mitigado pela presença das crianças. Ana distraía-se em tomar conta, sa ber de tudo, como comiam, bebiam, se brincavam ou brigavam, se estavam bem de saúde ou quem eram os pais. Se realmente eram órfãs ou estavam perdidas, distantes dos pais – que, aflitos, deveriam estar procurando pelas ruas da cidade, pelos campos. Coitados! – Não. Não estão perdidos. São órfãos! – garantiu Rozendo numa tarde calorenta de novembro.
– Isso me tranquiliza bastante! – confiou Ana. Estavam um defronte para o outro, sentados na varanda, frente à casa. – Por quê? – Porque levarei comigo ao Brasil, quando a guerra acabar.–Qual delas levará? Ana o olhou, séria, e disse convicta: – Todas as seis.
– Ora, chega! Dona Ana precisa descansar… Ela acorda cedo, tem o que fazer já pela madrugada com tantos doentes pela casa!
– Credo, minha irmã! Até parece que irei morrer! Deixa um no meu colo, por favor! – Não! Não! A senhora precisa descansar. Tá cansada! Vamos, senhora, me dê a criança!
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E todas as noites essa cena se repetia, e somente bem tarde as freiras conseguiam sossegar a mãe e as crianças.
144 Rozendo ouviu, cruzou os braços e descruzou as pernas.–Fará isso?
– Por que duvidas? Já disse! – Não duvido, estou surpreendido.
– A senhora está querendo dizer que cuidar das crianças não será um trabalho árduo? – perguntou o estudante, interessado.
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esteve em quais lugares de batalhas?
– Nem um pouco árduo, senhor Rozendo. Estarei em um jardim após o inferno dos hospitais, das am putações, dos feridos, dos gritos, de todos os doentes gritando pelo meu nome! Rozendo observava a mulher, atento, com olhar complacente.–Asenhora
Ana ergueu a cabeça, olhando-o bem.
– Surpreendido?!
Escute bem: perdi o marido ainda bem jovem e com três meninos pequenos! Criei os três com mão forte e a pátria os tomou de mim… Não contente vim ao sul, à guerra, atrás deles; um se foi pela bala, pela bomba, por um canhão?! E me restaram dois: Isidoro vive em delírios, somente Pedro Antônio parece um pouco bem da cabeça e dos membros… A brisa sacudia as madeixas que se soltavam do co que no alto da cabeça de Ana. O olhar era firme, fixos em Rozendo, mas as mãos – quando ela pronunciou sobre a morte de Justiniano – se fecharam, firmes, e assim permaneceram.
– Não sei! Ao longo do dia eles me gritavam, chamavam tanto, tanto, e ainda me chamam, que, ao tentar fechar os olhos, adormecer um pouco, tirar um cochilo, eu não conseguia. Ouvia ininterruptamente: “Dona Ana! Dona Ana! Aqui! Senhora? Senhora? SenhoraRozendoAna!”. inclinou o corpo. Ouvia o comentário de Ana muito de perto, próximo demais. Não queria per der uma palavra; queria o relato por completo.
– Então cuidou bem dos soldados inimigos?
– Estive em Humaitá, Salto, Corrientes, no Rio Grande do Sul quando cheguei, e agora aqui em Assunção! O senhor sabia que por diversas vezes eu não conseguia adormecer tranquilamente porque ouvia vozes? – Vozes? Como vozes?
– E então? O que fazia?
– A senhora não descansava, não é?
– Na certeza de que era chamada, corria à enfermaria com a lanterna à mão. E sempre tinha dois, três ou todos eles passando mal, uns chorando, outros se maldizendo e outros, sim, muitos queriam tocar em minhas mãos, que eu me sentasse ao lado, e aí vi inúmeras vezes muitos e muitos morrerem… – ela falava com voz firme, contudo seu semblante estava pálido, sentida deveras da dor que lhe retornava pela recordação evocada.
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– Muito, muito pouco, porque queria trazer o con forto àqueles homens, porque meus filhos também poderiam se ferir e necessitar de uma forte enfermeira.
– Cachaça?! – interrompeu Rozendo. – Sim, cachaça aos demasiadamente feridos, os mo falavam? Gritavam? Recusavam violentanão. Apenas me olhavam calmamente, seguravam-me a mão e perguntavam: “É o veneno para que eu morra?”.–Como a senhora reagia? – Apenas sorria, olhava séria e dizia com firmeza: “Sou mãe e, aqui, enfermeira. Creio também em Deus! Toma, meu filho, e durma bem hoje!”. Assim me obedeciam e logo adormeciam. No dia seguinte, quan do transitava entre eles, ouvia vozes animadas, felizes: “Dona! Dona! Olha aqui, tô vivo!”, “Dona Ana, por favor, olha pra mim!”, “Senhora, tô vivo! Aqui?”, “Senhora…”, “Senhora… Amém!”, “Senhora! Dona! Ana! Ana!”.
– Que coisa! É verdade? – Sim, entre eles havia se espalhado um boato de que, junto aos remédios noturnos, gotas e gotas de veneno também seriam distribuídas. Assim, quando eu os e, principalmente, quando lhes dava água, um mísero suco ou até mesmo cachaça…
A n A n éri – A mãe siti A d A 146 – Sim, claro, creio que até melhor que os nossos! – Melhor? – Sim, eram mais jovens e estavam muito assustados. Desconfiavam que seriam envenenados…
alimentava
ribundos.–Que
mente?–Não,
C arlos a lberto de C arvalho 147 E a conversa foi interrompida porque chegaram cartas para Ana Néri. – Veja! Já era tempo! As cartas perdidas dos últimos meses… Finalmente. Hummm… hum… aqui estão minhas duas amigas baianas. – Como se chamam? – quis saber o jovem. – As medrosas Bárbara Altero e Manuela Menezes. – respondeu sarcástica.
– a gueRR a acabou, minha filha! – falava alto a irmã Alfonsina. – Ficará conosco ou retornará ao Brasil?
XIV assunção, paR aguai, JaneiRo de 1870.
Sentados em poltronas confortáveis estavam Rozen do, Pedro Antônio, Isidoro, as irmãs Pacheca e Luísa, enquanto no canto da sala vasta da Casa Mãe das Vicentinas encontravam-se, sentados ao chão, os seis órfãos. Ana não viu mais irmã Alfonsina. Somente naqueles primeiros meses de aprendizagem da técnica de enfermagem. Os estágios furiosos, rápidos e práticos entre os feridos. Aprendizagem crua e espontânea. Passados quase cinco anos, as mulheres se reen contraram. Alfonsina não era mais robusta e vigorosa: estava levemente encurvada e seus tremendos olhos azuis perderam o viço e o brilho intenso, contudo a delicadeza continuava no tom de voz e nos gestos. – Ana, me parece que você diminuiu de tamanho? O que fez? É isso mesmo? – brincou Alfonsina, quando se reencontraram na mesma sala, no dia anterior.
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– Então, menos mal, minha filha! E abraçaram-se afetuosamente. E ali se encontravam para a forte despedida. – Irmã, bem que gostaria de permanecer, mas veja quantos filhos agora tenho!
– A guerra trouxe novidades, não é, filha? Todos olhavam Ana Néri. – Sim, irmã, as novidades tristes e aquelas felizes! Rozendo pigarreou e se ergueu entusiasmado. – Volta, sim, mãe! Volta para o Brasil!
– Rozendo também é seu filho, Ana? – perguntou Alfonsina, brincalhona.
– O que fez? – Rozendo pulou diante de Ana, ajoelhou-se, beijou-lhe as mãos e disse: – A senhora cuidou
– O que é isso? O que fiz para tanto?
150 – Não, irmã, não diminuí de tamanho. Sempre fui baixinha, mas devem ser os quase treze quilos que perdi durante a grande guerra!
– Por usurpação, irmã! Ele chama a minha mãe de Grande Mãe! – intrometeu-se Pedro Antônio, en ciumado.Rozendo, que estava de pé, continuou entusiasmado, com gestos animados, encaminhando-se a Ana: – Pois bem, minha Grande Mãe, pois bem, retorne, sim, ao Brasil, à Pátria que soube honrar, porque soube que serás homenageada pelo Imperador! A Corte quer ver aAnasenhora!enrubesceu e inclinou a cabeça, envergonhada.
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C arlos a lberto de C arvalho 151 bravamente dos feridos de guerra e até do inimigo, per deu um filho e continuou na enfermaria. O que fez?! A senhora foi extraordinária! Isidoro abraçou o irmão, chorando. Irmã Alfonsina se ergueu:–OImperador d. Pedro ii quer homenagear Ana Néri, filho? Isso é verdade?! Rozendo a encarou, sério. – Eu, por minha vez, compus umas coplas, que já sei de cor, que cantam os feitos de dona Ana: Quando eu, a tão justo espanto, não sabia achar um Donatermo, Ana… Chamou-a enfermo, cuja voz chamou meu Pressurosapranto.ela acudiu-lhe, ânsias de sede extinguiu-lhe…Cumpra o que ordeno… sossegue na esperança que lhe dou. Rozendo declamava olhando-a, em frente a todos, animadíssimo.Anaentão se levantou, contrariada. E esta? Que coisa! Cismaram em me ter como santa, heroica… eu? Eu? Como pode ser? Quero me socar em meu quarto, voltar para Bahia… e… caramba, Rozendo, isso é demais da conta!
– Basta! Chega dessas delongas, Rozendo! Para que isso, meu filho?! Tudo me envergonha por demais! – falava Ana num tom alto. Mas não era escutada. Todos estavam voltados para Rozendo, que terminou seu longo poema, de pé, olhos no alto, braços erguidos. Então voltou-se para Ana Néri, cantando, com cadência na voz alinhada à medida dos versos, numa suavidade de tom quase em falsete: E onde havia auxílio igual, Se ela fez, por duplo auxílio: – hospital – seu domícilio, Seu domícilio – o hospital?
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Sem graça, sem conseguir mais falar, Ana se sentou e se deixou afundar na larga poltrona, enquanto todos batiam palmas – Rozendo mais ainda.
O rapaz ainda desfiava seus elogios, então, para maio res ciúmes dos filhos presentes, declamava fascinado: E ao véu em torno dos doentes, alegrando os descontentes Como as aves amanham, diziam da glória obreiros
– “Ela é mãe dos brasileiros, da caridade é a irmã”.
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parou diante da porta do salão principal da casa. Seu ajudante também cessou abruptamente os passos. Aguardavam o retorno de Rozendo e Pedro, que conversavam no interior da sala com Ana Pronto,Néri.Rozendo
C arlos a lberto de C arvalho 153 uma sexta-feiR a de abRil de 1870. Rozendo e Pedro Antônio caminhavam apressados. Eram acompanhados de um homem baixo, corpulento, usando óculos pequeninos que contrastavam com seu rosto gordo e a papada enorme, dando-lhe um aspecto curioso, devido, também, ao seu cavanhaque fino, que deixava o bigode cofiado, aberto em leque.
retornou, abriu as portas de par em par, então os artistas entraram e viram Ana e as crianças, juntas, no centro do salão. – Senhora, com o meu respeito, sei da fama que adquiriu por cuidar dos soldados na guerra desgraçada que acabou com o meu país. – Sim, meu senhor, que a fama seja o de menos. Fiz o que deveria ser feito! – retrucou, estendendo-lhe a mão, em cumprimento. – Oh! Oh! Se todos fizessem o que a senhora fez! Oh! Oh! – falava o homem enquanto gesticulava e a admirava.
Andavam apressados. Era o fotógrafo. A máquina era trazida por um rapaz esguio, alto e também trajado adequadamente.Ohomempequenino
– Bem, bem! Vamos ao que interessa! – alentou Rosim, sim, as crianças também? – quis saber o rapaz magricela. – Sim, meu senhor, as minhas crianças! – acatou a mãe.O fotógrafo pôs as mãos na cintura e avançou em direção às crianças, que recuaram amedrontadas.
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154 Ana se fez séria. Emudeceu, constrangida.
– Não quero fotos minhas com tristeza ou cara murcha! Quero olhar bonito, cara alegre, tá bom? – dis se, provocador.–Claro!Sim, vamos, sim, não é, crianças? – incen tivou Ana, agarrando as duas menores.
– Vamos arrumar a cena! – pediu o fotógrafo, puxando a menina maior. – Dona Ana, a senhora no meio, sentada. Vamos colocar aqui uma cadeira, para a senhora se sentar, certo? Ana obedeceu prontamente. Sentou-se. O vestido pesado e armado avolumou-se demais. Eram seis crianças, então o fotógrafo baixinho os organizou da seguinte maneira: – Senhora, sente-se e arrume a saia, pouse as mãos no colo. Junte-se às crianças, todas voltadas para mim, sim, isso. A menina maior fique às costas de Ana, em seguida, em sentido horário, o menino, isso, também crescidinho, agora, a outra menina, terceira em altura menor, aconchega-se à dona Ana, isso. Bem, agora estas
zendo.–Pois,
– Sim! Sim! Estou com fome… muita fome! – quase gritou o fotógrafo.
– Parto em breve, Rozendo… – confiou Ana.
C arlos a lberto de C arvalho 155 duas, juntem-se à terceira, juntinhas, carinhosas e uma pouse a mãozinha no coração da outra… Hummm… Hummm. Agora esta pequenininha fica junto ao colo, como esparramada… aí! Que gracinha, isso, isso, muito bem! Por fim, agora, esta outra fique também às costas de dona Ana e pouse a mãozinha direita em seu ombro… assim, isso, muito bem! Dona Ana, toque na mãozinha da pequenina, isso! A maior, aproxime-se mais. Temos uma foto! Plaft! Pum! Pow! Rozendo e Pedro Antônio aplaudiram, contentes.
– Mãe, bonita foto teremos! – disse o filho, em aprovação.–Ganhamos
– Vamos lanchar! É hora! – convidou Ana.
– Vamos logo, então, meu senhor! – insistiu Ana.
Conversavam na sala de estar agora que a casa não servia mais como hospital. O silêncio percorria os corredores, enquanto a uma distância segura os gritos e
uma boa recordação! – falou Rozendo em alto tom. As crianças permaneceram junto a Ana Néri. Silenciosas sempre, acuadas diante dos desconhecidos. O fotógrafo acariciava duas delas, enquanto o magricela se aproximou do menino.
– Sei disso, senhora. Que tenhas uma boa viagem!
–exibida.Quehonra, senhora! O próprio Imperador e a Corte!Ana se ergueu, andou pela sala a passos lentos, as mãos unidas à cintura.
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– Bem, bem, que tudo isso seja feito! Sou uma he roína que carrega nas costas o cansaço e a tristeza na cara! Espero que o pintor Victor Meirelles apreenda isto de mim: cansaço e tristeza! – Vestirá que cor? – O preto, por conta do meu Justiniano… – Sim, compreendo, senhora. Olharam-se demoradamente, amigáveis.
irei ao Rio de Janeiro. Serei fotografada, pintada… Homenageada! Terei que frequentar a Corte e ser
das crianças brincando preenchiam os espaços outrora preenchidos por gritos de dores e grandes sofrimentos.–Primeiro
– Desejo abraçá-la, minha mãe! Posso? – pediu Rozendo, emocionado. Os braços de Ana se abriram. – Claro! Claro, meu filho. Agradeço tudo que me fez! – disse Ana, alegremente.
alaridos156
Ana chegou ao Rio de Janeiro em 6 de maio de 1870. Em noite de gala, recebeu um álbum guarnecido
Victor Meirelles a pintou em tela grande, de preto, com expressão de cansaço e tristeza no rosto. O Governo Imperial concedeu-lhe pensão anual e vitalícia de um conto e duzentos mil réis. Retornou à Bahia a bordo do vapor Arinos, em 5 de junho do mesmo ano. No dia seguinte, em sua casa, a Filarmônica Minerva e de Música do Corpo de Polícia, senhoras das famílias ilustres, foram felicitá-la.
– Minha cara, fico feliz em vê-la e abraçá-la! – gri tou Bárbara ao
Abraçaram-se,vê-la.contentes.
– Querida! Querida! Viva entre nós! Que coragem! Sinto, sinto muito por tudo! – E puxou Ana de encontro aQuandosi.
Encaminhou-se discretamente ao grupo, sua nova família.–Olá, Sebastiana, quero ficar por aqui! – Oh! Iá… sim, Iaiá!
Ana abriu os olhos, viu no canto da sala, quieta, Sebastiana. Ao lado da negra estavam as crianças, atentas, parecendo aprovar a festa.
C arlos a lberto de C arvalho 157 de madrepérola e prata, com as iniciais atfn e a de dicatória “Tributo de admiração à caridosa baiana por alguns compatriotas”.
– Ah, que bonito! Não precisava… – murmurou.
Então outro grito e grande alvoroço, era Manuela que vinha ao seu encontro para também cumprimentá-la.
esta seção tem como finalidade contextualizar o autor, a obra e seu gênero literário. Para isso, apresentaremos uma breve biografia do autor e suas motivações para escrever a obra. Em seguida, indicaremos o gênero literário da obra, bem como as características que o definem, exemplificando-as para melhor compreensão e aprofundamento.
Sobre o autor Carlos Alberto de Carvalho é doutor em Letras com ênfase em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universida de Católica do Rio de Janeiro (2005), mestre em Letras com ênfase em Literatura Brasileira pela mesma instituição (1996) e graduado em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) com habilitação em Português e ItalianoAtualmente,(1991).
SOBRE ANA NÉRI – A MÃE SITIADA
é professor titular da Universidade Estácio de Sá, professor vigente de Literatura Brasileira do Colégio Santa Maria e professor da rede pública de ensino.
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Percebe-se também o gosto do autor por tratar de figuras históricas importantes menos celebradas. A afeição por romancear a vida dessas figuras históricas é o mote também para este livro, Ana Néri – a mãe sitiada. Aqui, o autor vale-se de sua experiência para imagi-
160 Suas experiências literárias tangem à mitologia, à fabulação e aos romances históricos, abordando temas das culturas grega, africana e brasileira. Em 2001, publicou o seu primeiro livro: Heróis de ideal e coragem. Seus trabalhos como escritor já somam mais de quinze obras publicadas, dentre elas Histórias de ouvir da África fabulosa, Filosofia para crianças: Sócrates e Platão, Chica, Sinhá! e Apolo e Ártemis: sol, força e sedução – este último selecionado pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) para o catálogo da Feira de Bolonha de 2010.
Enquanto escritor sobre temas das mitologias grega e africana, além de filosofia para crianças, fábulas africanas, romances e novelas históricos, Carlos Alberto de Carvalho compreende no ofício de escrever um jeito de transformar a realidade por meio dos pensamentos e dos sentimentos que se pretendeEmcomunicar.seusescritos e obras, as figuras históricas sempre estiveram presentes: desde suas teses de mestrado e doutora do – que analisaram, respectivamente, a obra de Padre Antô nio Vieira e de Manuel da Nóbrega – até seu primeiro livro publicado, Heróis de ideal e coragem, que mostra uma visão romanceada da vida de Francisco de Assis, Joana D’Arc, Anchieta, Zumbi e Tiradentes.
C arlos a lberto de C arvalho 161 nar como se deu a inusitada história da pioneira enfermeira brasileira. Como uma mãe foi parar em uma guerra a fim de proteger seus filhos e parentes? Quais foram suas motivações e seus medos? Como era sua vida antes do acontecimento em questão? E como foi sua vida após esse fato marcante? Responder a essas e a outras perguntas sobre uma figura tão admirável é a motivação do autor neste livro.
Contextualização
Ana Néri tinha razão ao se preocupar quando seus filhos e seu irmão foram para a guerra. Com o aval do presidente da província da Bahia, o conselheiro Manuel Pinto de Sousa Dantas, ela foi incorporada ao décimo batalhão de voluntários em agosto de 1865, na qualidade de enfermeira, prestando serviços nos hospitais militares de Salto, Corrientes, Humaitá e Assunção, bem como nos hospitais
da obra Entre os meses de dezembro de 1864 e março de 1870, aconteceu o conflito de maior duração e proporção de toda a história da América do Sul: a Guerra do Paraguai. Nele, Brasil, Argentina e Uruguai – chamados de Tríplice Aliança – enfrentaram o Paraguai por conta de conflitos de interesses políticos e econômicos. A guerra foi um grande divisor de águas para todos os países envolvidos, afetando não só a área territorial de cada país, como a economia e a população. No Brasil, a guerra deixou uma dívida enorme, fortaleceu o Exército como instituição e marcou o início da decadência da monarquia, além de tirar a vida de milhares de Portanto,brasileiros.
homenagens foram feitas a ela postuma mente: em 1923, a primeira escola oficial brasileira de en fermagem de alto padrão foi batizada com seu nome; em 1938, Getúlio Vargas instituiu o dia 12 de maio como o “Dia do Enfermeiro”, devendo nessa data ser prestadas ho menagens especiais à memória de Ana Néri em todos os hospitais e escolas de enfermagem do país; e, em 2009, ela foi a primeira mulher a entrar para o Livro dos Heróis e das Heroínas da Pátria. Discussão sobre literatura: linguagem e gênero Uma das manifestações artísticas do ser humano, a literatura é chamada de arte das palavras, pois representa co linguagem e criatividade em prosa e verso. Por intermédio da literatura, a realidade é recriada de modo ar tístico com o objetivo de proporcionar mais expressividade, subjetividade e sentimentos ao texto. “O texto repercute em nós na medida em que revele emoções profundas, coincidentes com as que em nós se abriguem como seres sociais”, conceitua Domício Proença Filho, em seu livro A linguagem literária.1 1 PROENÇA FILHO, D. A linguagem literária. São Paulo: Ática, 2007. p. 7-8.
municação,
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da162frente de operações. Voltou à sua cidade natal após o término da guerra e foi condecorada com a Medalha Geral de Campanha e a Medalha Humanitária de primeira classe. Ela morreu na cidade do Rio de Janeiro aos 65 anos, em 20 de maio deOutras1880.
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Mas nem todo texto possui linguagem literária. Uma reportagem, por exemplo, pode contar uma história que provoca reações e reflexões no público. Ela usa, porém, linguagem jornalística e seu conteúdo se limita aos fatos apurados pelo repórter. Ou seja, a função do texto é informativa e não literária.“Oque faz de um texto literatura é o tratamento que a ele se dá”, explicam Cinara Ferreira Pavani e Maria Luíza Bonorino Machado, em seu livro Criatividade, atividades de criação literária.2 “Uma mesma frase pode expressar o que suas palavras indicam, literalmente, ou ir além, sugerindo significados que exigem um ato interpretativo por parte do leitor.”
Como existem vários tipos de produções literárias, os especialistas decidiram agrupá-las de acordo com suas características em comum. São os chamados gêneros literários. Entre eles, estão biografia, teatro, poema, novela, história em quadrinhos. Ou seja, um fato pode ser contado sob formas diferentes, dependendo do gênero que se utiliza paraNocontá-lo.casode
Ana Néri, trata-se de uma história que se ba seia em fatos reais, mas imaginada, sendo classificada, por tanto, como obra literária. Essa afirmação se fundamenta no fato de que o texto recria uma realidade, fazendo para tanto uso de lirismo e subjetividade. Um exemplo dessa característica pode ser notado no trecho da página 64: 2 PAVANI, C. F.; MACHADO, M. L. B. Criatividade, atividades de criação literária. Porto Alegre: UFRGS Editora, 2003.
164 Ana se jogou nos braços da outra, chorava convul sivamente. Não conseguia falar, deixou-se ir pela dor, pela saudade que lhe parecia torcer as entra nhas: seus intestinos estavam como que à mostra. Recriar uma realidade torna a obra literária e, neste caso, impede sua classificação como biografia, gênero usual mente escolhido para contar a vida de uma pessoa. É o que fez o livro Elisa Lynch: mulher do mundo e da guerra,3 que se utilizou do gênero biografia para contar a história de outra personagem feminina importante na Guerra do Paraguai. A mesma guerra também foi retratada em formato de conto no livro Guerra do Brasil: contos da Guerra do Paraguai,4 que apresenta nove contos, cada qual abordando um recorte biográfico ou episódio da guerra, inclusive um deles dedicado à citada Elisa Lynch. Neste livro, a história de Ana Néri foi contada utilizando o gênero novela, que é definido como uma forma in termediária entre o conto e o romance. Ele é caracterizado, em geral, por apresentar uma narrativa de extensão média, na qual toda a ação acompanha a trajetória de poucos, mas elaborados, personagens em torno de um único conflito. Outras características desse gênero são: possuir elementos típicos de uma narração (narrador e foco narrativo; núme-
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4 BACK, S. Guerra do Brasil: contos da Guerra do Paraguai. Rio de Janei ro: Topbooks, 2010.
3 BAPTISTA, F. Elisa Lynch: mulher do mundo e da guerra. São Paulo: Civilização Brasileira, 1986.
C arlos a lberto de C arvalho 165 ro limitado de personagens; tempo, espaço e enredo bem definidos) e estrutura bem organizada, dividida em quatro grandes momentos (introdução, desenvolvimento, clímax e desfecho), a agilidade dos acontecimentos na trama e os conflitos narrativos (único no caso de novela). Nesse sentido, destacaremos alguns exemplos que justificam a classifi cação do livro como novela. Mostraremos a seguir alguns exemplos que justificam a classificação do livro Ana Néri – a mãe sitiada no citado gêneroOliterário.focoda obra é contar como Ana Néri foi para a Guerra do Paraguai, ou seja, esse é o único conflito da obra. Na primeira parte, conhecemos a personagem já mais velha, como mostra o trecho da página 12: A casa, que se mantinha silenciosa, casa de mulher velha, solitária e cansada, agora berrava, agitada com os jovens visitantes. Ana[…] tinha uma mão segura no neto e olhava para a criada numa expectativa alegre, satisfeita com a chegada do casal e dos filhos, um contentamento a olhos vistos. Mas sabemos também que já era renomada, como mostra o trecho nas páginas 18 e 19, que narra o encontro dela com a Princesa Isabel:
166 Quando Ana atravessou o salão acompanhada de Manuela, olhos atentos e furtivos a observavam. Ana era o modelo de mulher e mãe naqueles anos difíceis do Império brasileiro. A Princesa Isabel levantou-se e apressou-se ao encontro de Ana. Disse com voz baixa, quase
–sussurrante:Minhasenhora Ana, gostaria que sentasses co migo! Ah! Como quero ter a honra de me sentar ao vosso lado! A primeira parte nos conta também que ela estava com a saúde debilitada e termina com sua partida: Mal pronunciou essas palavras e Ana tombou nos travesseiros, imersa em uma forte dor. Tiana acudiu. – Ai! Ai! O que tem, Nhá? Ana apertou-lhe as mãos. As duas se olhavam, mãos estreitadas e olhar severo. Súbito a dor ces sou. Assim como veio, assim se foi. – Mais uma desta… e parto! – arfou Ana. Ana[…] Néri tinha a cabeça inclinada para a esquerda e o rosto tranquilo, e segurava o retrato firme mente nas mãos.
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– Casamos hoje, dia 15 de maio de 1838, e você me quer longe já? – falou Isidoro, sério. – Não! Não, claro que não, meu querido! O con –trário…Eseagarrou a ele. – Por mim, não sairia nunca desta casa!
C arlos a lberto de C arvalho – Pai nosso que estais nos céus… – iniciaram em murmúrios respeitosos. Eram 16h30.
167
Nas páginas 40 e 43, por exemplo, ela relembra o dia do casamento e o funeral do marido: – Volta quando? – perguntou Ana. – O quê? Pra onde? – Volta pro mar, quando? Isidoro se apoiou no cotovelo direito e se debru çou quase em cima de Ana.
Tiana chorava num canto, com as mãos cobrindo o rosto. Nhá, minha mãe, vai em paz, sussurrava entre o cho ro contido e o horror de ver morrer quem amava. A partir daí, sabemos que o restante da história acon tecerá no passado. Apesar de a narrativa não seguir uma li nha temporal linear, as idas e vindas cronológicas funcionam para apresentar melhor os personagens, evidenciando, assim, outra característica importante do gênero novela.
A n A n éri – A mãe siti A d A 168 Mas[…]
É também nessa parte do livro que ela fica sabendo que seus três filhos irão para a guerra: – Tenho três filhos… e homens! Todos vão pra guerra e eu ficarei aqui sem marido… e filhos! –Mauríciolamentava-se.entrou no quarto esbaforido.
quando Ana surgiu na rua com passos lentos, segurando as mãos dos filhos caçulas, Isidoro e Pe dro Antônio, e à frente, segurando um buquê de variadas flores, o mais velho, Justiniano, todos os olhos se voltaram a ela, que vinha pesarosa, com os amigos e parentes próximos. Meu Deus! Meu Pai! O que será de mim com três filhos homens e pequenos? Meu coração está ar rasado…! Tenho que fazer alguma coisa… ai! Meu coração que não aguenta! A multidão abriu e Ana passou lenta e tristemente. Que calvário! Por que não fujo daqui! Que eu me acabo, sim, me acabo! Ver Isidoro morto e ainda levar os filhos para que vejam e… bem! Ana estacou diante do caixão, toda a sua dor ex travasou em silêncio. Tinha que interpretar, ou me lhor, ser forte, muito forte, diante dos filhos.
O que há, Ana? Deixa, deixa disso! – pedia.
– O quê? Não chorar meus três filhos que vão para a guerra? – falou em tom bravo.
O irmão calou-se. Não tinha argumentos ou força para amenizar a dor de Ana Néri.
– A senhora, minha mãe, quer ir à guerra?! – per guntou Justiniano. Ana não respondeu, mas encarou cada filho com paciência e um leve sorriso no canto da boca.
E que ela decide que irá para a guerra: – Quero acompanhar vocês ao Paraguai, também fazer algo bom! Os rapazes avançaram em passos rápidos, mas a expressão no rosto era de espanto.
– … mas o que é isso, mãe?! Isso é sério? Não acha que seja perigoso, mortal? – desabafou Pedro Antônio, dando passadas ruidosas ao redor da –família.Merespeite!
Não sou louca! Por que não poderei partir também? – … é uma guerra… – falou alto Justiniano.
– O que me importa?! Se meus três filhos vão ao Paraguai, não tenho nada mais que me prenda por aqui… vou também! Quero ser útil.
C arlos a lberto de C arvalho –
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170 Na terceira parte, vemos sua partida rumo à guerra, seu aprendizado no ofício da enfermagem no convento e o cuidado com os feridos de guerra – tanto brasileiros quanto paraguaios –, assim como o fim da guerra, com as homenagens prestadas a ela. Seus cuidados lhe garantiram fama no combate, como mostra o trecho da página 106: – Conheço a senhora. Está famosa! – Eu?! – espantou-se Ana. – Sim, senhora, todos falam da senhora… – Por quê? O que há? Rozendo se aproximou ainda mais. Todos da sala observavam silenciosos, atentos à conversa. Eram médicos, freiras e enfermeiras. – Falam muito, os soldados e oficiais, entre outros, que a senhora é a salvação de todos! – E acentuou as últimas palavras. Ao longo da história, o autor nos apresenta os pensa mentos não só da protagonista como também de outros per sonagens, evidenciando a presença do narrador onisciente. Temos assim o pensamento do marido de Ana Néri, no trecho da página 41: Que moça minha tão meiga! Ana, Ana, você me é um presente! O que seria de mim, homem do mar,
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171 na aventura de tantos portos e mares? Agora tenho em quem pensar, quem esperar… Gosto de você!
-
E outro pensamento do filho quando a encontra no momento da guerra, na página 123: Ela tá magra, abatida. Um frangalho de magra, mas é minha mãe! Ela veio mesmo! Mãe…! Mamãe!
O pensamento de um dos filhos quando ela decide ir para a guerra, na página 51: Mamãe conseguirá? Será? Sei que procurará todos os meios. Oh, meu Deus! Como será isso? Pro teja-a! Guarde-a! Sei que não desistirá, pois não terá mais nada a perder depois que embarcarmos ao sul, assim pensava Justiniano, mais consolado.
Portanto, ao contar a história de Ana Néri, Carlos Alberto de Carvalho criou uma novela que exalta o vigor de uma mulher forte e determinada, que virou símbolo da enfermagem no Brasil. A trama incentiva o leitor a se colocar no lugar do outro, a conhecer seu ponto de vista e suas motivações. Ao trazer ao leitor novos contextos, mundos e realidades por intermédio da leitura, a obra literária proporciona a compreensão das narrativas produzidas ao longo da História a
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fim172de entender e ressignificar o presente, além de estimular a projeção do futuro. Ela incentiva ainda a imaginação, a criatividade, auxilia na ampliação de vocabulário e na construção de conhecimentos de múltiplas áreas do saber.
Há que se notar também a presença de questões atemporais nas entrelinhas da obra, como amor materno, guerra, morte e luto, aspectos que fornecem elementos para uma reflexão mais do que necessária sobre a atualidade. Afinal, como defendeu o antropólogo e filósofo Edgar Morin, a li teratura nos oferece antenas para entrar no mundo.
Tipografia Adobe Garamond Pro
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A o ver seus filhos serem enviados à Guerra do Paraguai, Ana Néri não se conformou: seguiu-os ela também. Posteriormente, em razão de sua atuação dedicada no socorro aos feridos das batalhas, ela recebeu diversas homenagens. Ao a própria história e desafiar as convenções sociais que lhe impunham passividade simplesmente por ser mulher, Ana Néri trilhou caminhos que se revelaram fundamentais para a história do país e do ofício da enfermagem, ajudando a cuidar e salvar muitas vidas ao longo de sua jornada. Mas quem foi Ana Néri – a mulher, mãe, pessoa? Nesta narrativa envolvente, o autor Carlos Alberto de Carvalho esboça aspectos da personalidade dessa figura histórica e, ao entrelaçar ficção e realidade, traz ao leitor uma perspectiva única, inovadora e humana sobre essa mulher muito à frente de seu tempo. 786589 370031 ISBN 978-65-89370-03-1
protagonizar