Vozes do Bem-Querer: 10 anos do Coral Pequeno Príncipe

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Vozes do bem-querer: 10 anos do Coral Pequeno Príncipe

Geslline Giovana Braga Ministério do Turismo apresenta

Vozes do bem-querer: 10 anos do Coral Pequeno Príncipe

Geslline Giovana Braga

Curitiba, 2022

Coordenação Geral: Ety Cristina Forte Carneiro

Autora: Geslline Giovana Braga

Coordenação editorial: Adriana Tulio Baggio

Edição: Luciana Patrícia de Morais

Revisão: Adriana Tulio Baggio

Projeto gráfico: Dlab

Fotografias: Aleksander Schoeffel, Gabriel Ekkermann, Isabella Lanave, Lucas Amorim, Maria Fernanda Schneider, Payaka e Equipe do Setor de Comunicação do Hospital Pequeno Príncipe

Produção: Elisa Cordeiro, Francielli da Rosa, Isadora Hofstaetter, Luciana Patrícia de Morais, Renata Sklaski, Shana Lima, Tania Campos

Depósito legal junto à Biblioteca Nacional, conforme Lei nº 10.994 de 14 de dezembro de 2004.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Bibliotecária responsável: Luzia G. Kintopp - CRB/9-1535. Index Consultoria em Informação e Serviços Ltda.

Curitiba - PR

Braga, Geslline Giovana

B813 Vozes do bem-querer : 10 anos do Coral Pequeno Príncipe / Geslline Giovana Braga. — Curitiba : CGCCSA Consultoria e Assessoria, 2022. 84 p. : il. ; 24 cm.

ISBN 978-65-86789-08-9

1. Coral Pequeno Príncipe - História. 2. Canto CoralVoluntários. 3. Hospital Pequeno Príncipe - Curitiba (PR). I. Título.

CDD: 784.2

IMPRESSO NO BRASIL/PRINTED IN BRAZIL

Vozes do bem-querer: 10 anos do Coral Pequeno Príncipe

Geslline Giovana Braga

Curitiba, 2022

Apresentação do coral na praça interna do Hospital Pequeno Príncipe, em 2018.
Prefácio 6 Aquecimento 10 Prelúdio: integrantes do Coral Pequeno Príncipe 12 Primeiro movimento: ________________ Por que cantar? 16 De onde vem o canto coral? __________________________________________________ 18 As misturas musicais do Brasil 19 A música no século XX ______________________________________________________ 21 O canto orfeônico de Villa-Lobos 22 Segundo movimento: ________________ Quantos acontecimentos cabem em uma década? 26 Um coral em um hospital? 28 Que hospital é este? 36 O nascimento do Coral Pequeno Príncipe 46 Cativados pelo maestro Wilson dos Santos 52 Do chuveiro ao corredor 54 Amadora-mente 62 O canto voluntário 64 Tessitura 70 Não aprendi dizer adeus 74 Movimento final... ___________________ Aplauso 81 Referências _______________________________________________________________ 82 14 24 76 e da capo! da voz ao canto o encontro das vozes Sumário

Prefácio

Com muita alegria aceitei o convite para prefaciar esta obra documental sobre um trabalho coral muito significativo, por ser realizado no maior hospital pediátrico do Brasil, localizado em Curitiba, capital de nosso Paraná. Trata-se do coral do Hospital Pequeno Príncipe que, em 2021, completou 10 anos de atividades ininterruptas.

Ao ler este livro, fui tomado de sentimentos de admiração pela atividade, mas, também, de assertividade ao perceber o papel da música como instrumento terapêutico, de promoção do encontro, de identificação e, principalmente, como instrumento do desenvolvimento da sensibilidade estética no indivíduo, independente de sua condição física, social ou de crença.

Em 1986, ainda como estudante de mestrado, fiz uma pesquisa sobre a importância da educação musical com o querido e internacionalmente aclamado e admirado maestro e educador musical Weston Noble (1922–2016). Ao perguntar-lhe sobre qual seria seu principal alvo (objetivo, meta) como educador musical, ele respondeu: “Inspirar o espírito, que vai tocar a alma e fazer o corpo realizar”. Objetivo esse que tomei para minha vida como educador e musicista. Ao “inspirar o espírito” a música

serve como instrumento de desenvolvimento da sensibilidade estética.

Certamente, a música oportuniza a comunicação efetiva e afetiva, fomenta a criatividade, provê ferramentas básicas para avaliação crítica do mundo que nos envolve, e instiga a autodisciplina e o compromisso. Contudo, ao falar sobre a importância da música, da educação musical através da atividade de canto coral, não posso deixar de tomar licença para referenciar meu artigo escrito para os Anais da Convenção Internacional de Regentes de Coros em 1999, evento esse que propiciou o surgimento da Associação Brasileira de Regentes de Coros (ABRC), da qual fui eleito presidente fundador. Nesse artigo, levanto que vários autores defendem que “a música estimula o desenvolvimento de uma série de virtudes tais como: domínio próprio; autoestima; criatividade; promove ainda a capacidade acadêmica e pessoal; a habilidade motora, disciplina no ouvir; a facilidade de expressão dos sentimentos”.

Além disso, a música desempenha uma profunda função social. A atividade de canto coral, especificamente, proporciona um espírito de corpo, ajuda a superar problemas

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de solidão, desenvolve o sentimento de pertencimento e de respeito mútuo, desperta o prazer em realizar algo coletivamente e ativa a autorrealização, pois todos alcançam os objetivos juntos. Ou seja, todos chegam ao final de suas jornadas musicais juntos.

O trabalho do Coral Pequeno Príncipe atesta essas verdades, ao se perceber que as criançaspacientes certamente têm uma resposta positiva quando expostas às apresentações musicais pelos corredores do hospital. Ademais, todos os envolvidos — cantores, regente, orientador vocal, agentes administrativos da iniciativa e, também, da própria instituição — são altamente recompensados por poder servir através dessa atividade. Os depoimentos citados neste livro nos ajudam a confirmar essas evidências.

No livro, o leitor encontrará uma estrutura textual distribuída em duas partes principais, chamadas de “movimentos”.

O “Primeiro movimento” inicia com o aquecimento ou introdução do livro, em que

1. JUNKER, David Bretanha. A importância do canto coral. In: CONVENÇÃO INTERNACIONAL DE REGENTES DE COROS, 1999, Brasília. Anais […]. Brasília: Associação dos Amigos do Coro Sinfônico Comunitário da UnB; Universidade de Brasília, 1999, p. 107.

a autora nos expõe o papel do grupo como arauto da leveza, do afeto, da coragem e da confiança para os pacientes do hospital, através da sua música.

Em seguida, o texto nos explana como a música pode ser uma ferramenta que arrebata corações, nos transporta a profundos níveis de satisfação e de sensibilidade estética, área esta que toca a dimensão espiritual de nossas vidas. A música também tem o papel não somente de resgatar nossas memórias, mas, de uma forma milagrosa, nos faz reviver momentos do passado. Aliás, pesquisas nos declaram que a música, juntamente com o sentido do olfato, é processada em uma área posterior de nosso cérebro, de tal forma que ambos nos remetem a reviver experiências do passado. Por exemplo: a música ouvida e o perfume utilizado naquele primeiro encontro de namorados… toda vez que os dois são utilizados juntos, pode vir a expressão: “Nossa!... a nossa música e… sinta o cheiro….!” Isso ajuda a definir a magia da música!

O relato continua com uma viagem pelo papel da música através dos tempos até nossos dias. O texto nos desvenda, com grande propriedade, o caminho da atividade do canto coral no Brasil

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através de nossa história. Ênfase deve ser dada ao importantíssimo papel de Villa-Lobos como educador e iniciador do movimento canto orfeônico por todo o país durante as décadas de 30, 40 e 50 do século XX. Infelizmente, a partir da década de 60 esse movimento foi se dissipando até lutarmos, em nossos dias, para a volta da atividade de canto coral em nossas escolas, principalmente.

Pelas páginas do “Segundo movimento” temos o privilégio de conhecer a história lindíssima do nascimento e desenvolvimento de um hospital comprometido com a vida infantil desde as atividades de sua gestação. Para descrever essa característica dessa instituição incrível, me dou a licença de copiar o texto do próprio livro que diz o seguinte:

“Além dos diversos sons e cores que habitam o Hospital Pequeno Príncipe, há, sobretudo, o empenho no bem-cuidar. Desde os tempos em que era denominado Hospital de Crianças, os diversos médicos que passam por ali fazem do atendimento aos que mais precisam uma vocação. Não se sabe exatamente quem inventou tal tradição, mas uma vasta documentação atesta desde sempre o gosto pelo cuidado com as crianças de toda e qualquer origem socioeconômica, e a preocupação com as causas das doenças que acometem os pequenos. Essa é uma marca distintiva da instituição.”

É inspirador poder perceber como o trabalho de d. Ety e, posteriormente, de suas filhas Ety Cristina, Patrícia e Tatiana consegue trazer para o ambiente de hospital o espírito e o papel das artes, especificamente do coral, com o fim de trabalhar a dimensão espiritual do paciente através dessas atividades.Vejam que belas palavras:

“Arte e cultura não são peças acessórias; sua presença em um lugar que pode, em princípio, parecer inusitado, é orientada pela consciência do direito das crianças à educação e à cultura, mesmo quando em restrição de mobilidade devido à situação de internamento.”

O texto também nos transporta para dentro do hospital, onde conseguimos visualizar o coral cantando pelos corredores e na “Praça do Bibinha”, certamente fazendo com que o “remédio espiritual sonoro” melhore a condição dos pacientes, familiares e dos próprios trabalhadores. Também há uma rica descrição das festividades e atividades afins que acontecem ao longo dos anos. Neste bloco nos é fornecido o prato principal dessa fantástica refeição cognitiva e estética, em que o verdadeiro sentido do grupo coral é percebido através de suas atividades e das variadas descrições de emoções e comoções derivadas delas. Aqui também o leitor encontrará muitos testemunhos dos coralistas descrevendo a importância, em suas vidas, de fazer parte desse tipo de voluntariado.

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Temos ainda a descrição das almas inspiradoras deste relevante e significativo trabalho, grande exemplo para todos os estados do Brasil. Uma brevíssima descrição do saudoso maestro Wilson dos Santos, com quem tive o privilégio de partilhar a amizade, sempre alegre, generoso e humilde, procurando constantemente conhecer as novidades de sua profissão. A grande amiga Simone (para mim, Mone — como seu pai a chamava…), também faz um relato de suas atividades. Assim como o pai, sempre ávida por novos conhecimentos, a maestra Simone Abati desenvolve um trabalho digno de admiração.

Os blocos finais do texto nos dão uma noção do contexto temporal e social em que a atividade do Coral Pequeno Príncipe está inserida, enfatizando as profundas mudanças operadas pela pandemia ocorrida nos últimos anos, causando grandes transformações em todas as atividades, especialmente nas coletivas, como é o caso de um ensaio coral. Os coralistas expressam o desejo de se reunir presencialmente, novamente, com a emocionante declaração de uma das cantoras:

“Voltar a cantar. Voltar para o voluntariado. Voltar a ensaiar. Voltar a se apresentar. Voltar a cantar para as crianças. Voltar para tudo”.

Que o depoimento deste livro sirva de lição e exemplo de um trabalho de sucesso em um lugar onde raramente se considera que sejam desenvolvidas atividades corais. Porém, é exatamente em um lugar deste tipo que a música se mostra atividade essencial para a manutenção da VIDA!

David Junker, casado com Beatriz, pai de Rebeca, Flávio e Natália, fundou e regeu o Coral da UnB, o Coro Sinfônico Comunitário da UnB e o Madrigal UnB. Com extensa vida acadêmica e artística na área de Regência, foi professor na Universidade de Brasília por pouco mais de trinta anos e professor visitante em três universidades norte-americanas e uma sueca. É autor da série “Panoramas da Regência Coral”, com quatro livros e um DVD sobre a técnica de regência intitulada Matriz DJunker.

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Aquecimento

Em 2021, completaram-se 10 anos da primeira apresentação do Coral Pequeno Príncipe, grupo musical formado por colaboradores e, principalmente, por voluntários do Hospital Pequeno Príncipe.

Nessa década de existência, o Coral Pequeno Príncipe levou o som da leveza, do afeto, da coragem e da confiança a pacientes, familiares e à comunidade que circula pelo maior hospital exclusivamente pediátrico do Brasil. Cantou em todos os cantos da instituição e foi além, especializando-se em levar música e em alegrar corações de outros espaços cuja principal função também é o cuidado com a saúde.

A música espanta os males tanto de quem a ouve quanto de quem canta ou toca um instrumento. O trabalho voluntário beneficia quem o recebe e quem o oferece. Imagine, então, o bem que se produz e que se espalha com o trabalho voluntário unido à música! É algo que agita corpo e alma. Como diz a maestra Simone Abati antes de cada apresentação do coral: “Vamos alegrar as células das pessoas!”2

“Alegrar as células” é algo que este livro também almeja. É um volume de tom comemorativo e celebrativo ao duo música e voluntariado.

Um almanaque para saborear bocados da história do canto coral, da trajetória do Coral Pequeno Príncipe, das transformações promovidas pela sua existência e das emoções provocadas em seus integrantes e no público.

Esta introdução é apenas um aquecimento para o que vem a seguir, assim como fazem os grupos corais antes das apresentações. Os coralistas se concentram e exercitam as cordas vocais para o encontro com a própria voz. Aqui, é o livro exercitando suas “cordas verbais” para o encontro com leitoras e leitores.

Será que já estamos aquecidos? Para ter certeza, nada melhor do que fazer um teste cantando. O livro canta em palavras escritas, mas vocês, leitoras e leitores, podem soltar a voz, para dentro ou para fora. A música vocês já conhecem: é uma das preferidas dos coralistas e do público.

Vamos lá? Lembremo-nos dos momentos importantes das nossas vidas e deixemos fluir as tantas emoções que dão sentido à nossa existência!

2. Para contar a história do Coral Pequeno Príncipe, a autora deste livro entrevistou integrantes do grupo — apresentados logo a seguir — e outras pessoas ligadas a ele. As entrevistas foram realizadas em setembro e outubro de 2021.

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Quando eu estou aqui eu vivo esse momento lindo olhando pra você e as mesmas emoções sentindo são tantas já vividas são momentos que eu não esqueci detalhes de uma vida histórias que eu contei aqui

do Coral Pequeno Príncipe

“Emoções” (1981), de Roberto Carlos e Erasmo Carlos 13 10 anos

Prelúdio: integrantes do Coral Pequeno Príncipe

Sopranos

Equipe técnica

Da esquerda para a direita a pianista Elena Moukhorkina Moreno (52 anos, musicista profissional;) o multiinstrumentista e preparador de voz Mauro Abati Filho (36 anos, jornalista); a regente Simone Abati, (60 anos, maestra).

Da esquerda para a direita: Letícia Mara Marca (27 anos, bióloga); Maria Eneida Abrahão (71 anos, aposentada); Marilei Sprada de Medeiros (55 anos, empresária); Mônica Cristina Takahara (48 anos, do lar); Roseni Scarante (63 anos, psicóloga); Rosicler Ferraz Ceschin (59 anos, professora aposentada); Simone Ruon (49 anos, autônoma); Tânia Mara Frazeto (61 anos, geógrafa aposentada).

Contraltos

Da esquerda para a direita: Ailema Jesus Moreira Loureiro (74 anos, do lar); Fabiola Coelho de Queiroz (38 anos, enfermeira); Ingrassulina Sonza Alberti (73 anos, aposentada); Maria Goreti Soares (65 anos, aposentada); Maria Joaquina de M. Wasmann (67 anos, aposentada); Neuza Terezinha Ragonetti (58 anos, aposentada); Sandra Lopes Vieira Sobczak (64 anos, aposentada); Terezinha Julia de Medeiros (65 anos, aposentada).

Tenores

Voz principal infantil Baixos

Da esquerda para a direita: Carlos Eduardo Kierski (61 anos, técnico de equipamentos); Osmei Ricardo de Souza (76 anos, economista aposentado); Sergio Roberto Souza (73 anos, engenheiro químico aposentado).

Da esquerda para a direita: João Carlos Moreno (58 anos, engenheiro); Marcio Zeni (76 anos, economista aposentado).

Nikolas Takahara da Silva (9 anos, estudante)

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Coralistas e seus naipes
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Tenores

Baixos

Contraltos

Pianista

Multiinstrumentos

Regente

Naipe é a denominação que se dá para a classificação dos agrupamentos vocais dentro de um grupo coral ou coro. Essa denominação é feita a partir dos timbres que se delineiam da região aguda até a mais grave do som vocal, ou vice-versa. Os naipes femininos são chamados, do agudo para o grave, de sopranos, mezzo sopranos e contraltos. Os naipes masculinos são classificados, do agudo para o grave, em tenores, barítonos e baixos.

Em uma partitura ou grade musical, as vozes são descritas do timbre agudo para o grave, de cima para baixo em suas pautas. Pauta é o conjunto de cinco linhas e quatro espaços. Uma partitura para coro a quatro vozes contém quatro pautas ligadas por uma linha vertical.

Apresentação do Coral Pequeno Príncipe nos corredores do hospital, em 2019. Palco Palco
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Sopranos Coro
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Primeiro movimento

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Primeiro movimento da voz ao canto

Primeiro movimento 17 10 anos do Coral Pequeno Príncipe

Por que cantar?

O cantar é tão antigo quanto o falar. Nos primórdios da humanidade, não existia distinção entre as duas coisas. Em algumas culturas, o canto não tem fala: pode ser apenas uma vocalização que imita os sons emitidos pelos animais ou pelas divindades, sem a articulação de palavras com significados. Em outras culturas, a própria fala é cantada, como no caso do sânscrito, a língua ancestral do Nepal e da Índia.

Segundo a ciência, a música mobiliza todas as regiões cerebrais e todos os subsistemas neurais, alojando-se junto às memórias mais remotas. A música está presente nas culturas humanas desde sempre, sendo um dos elementos mais assíduos na trajetória de qualquer grupo social.

Não só cantar, mas o cantar junto, sempre foi um hábito essencial para a humanidade. De acordo com o neurocientista Daniel Joseph Levitin, cantar em torno da fogueira mantinha as tribos acordadas, afastava predadores e contribuía para o desenvolvimento da coordenação e da cooperação. A música ainda hoje é um vínculo que promove a coesão social dentro dos grupos.

Essa arte também exerce funções celebrativas e mágicas. Nos rituais de muitas culturas,

por exemplo, ela é parte da perfomance que transforma o iniciante em iniciado. E isso não é coisa só dos tempos antigos. Até hoje, em diversas manifestações religiosas a música promove o encontro com o sagrado por meio do canto, do toque percussivo ou da melodia instrumental. É natural, portanto, que a música demarque épocas, festas e a passagem do tempo, arrebatando corações e nos acompanhando na jornada imprevisível da vida.

O cantar junto, nascido no ritual e na magia, continuado na oração e no louvor, é uma potente forma de união por meio da música. É daí que vem o canto coral.

Na Catalunha, nas Cavernas de El Cogul, encontram-se as Dançarinas de Cogul, o mais antigo conjunto de desenhos associados à música. É datado do Neolítico (10.000–4.500 a.C.), quando os povos se tornaram sedentários e desenvolveram a agricultura. Ele representa nove mulheres dançando em volta de um homem nu no que parece ser um ritual com dança e canto conjunto — ou seja, um coro.

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Os instrumentos musicais são usados há milhões de anos. Os mais antigos já encontrados são flautas feitas de ossos como tíbias de aves de grande porte, marfim de mamute e fêmures de grandes animais. Acredita-se que as flautas serviam para imitar os sons dos animais e atraílos para serem caçados. No final do século XX, arqueólogos encontraram em Divje Babe, no noroeste da Eslovênia, uma flauta datada de meados do Paleolítico (60.000–50.000 a.C.).

O instrumento, feito de osso de fêmur de urso, pode ser tocado na escala de sete notas. Ele é conhecido como flauta Neandertal.

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Pintura das Dançarinas de Cogul reproduzida em desenho pelo arqueólogo Henri Breuil (1877–1961).
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De onde vem o canto coral?

Um dos registros mais antigos de formação de um coro de vozes remonta à Antiguidade clássica. Nos séculos VI e V a.C., coletivos de cantores e dançarinos participavam da dramaturgia da tragédia grega, o primeiro dos gêneros teatrais. Esses coletivos entoavam melodias, intercalando ou acompanhando a fala dos atores, e eram chamados de choro, palavra grega que originou o nosso “coro”.

Nas suas primeiras manifestações religiosas, o coro estava muito relacionado aos rituais pagãos, mas o cristianismo também se rendeu ao poder da música. Em 312 d.C., quando o imperador Constatino I aboliu a perseguição aos cristãos, os religiosos dessa fé passaram a usar a música como forma de atrair mais seguidores e de tornar a liturgia mais interativa, a exemplo do que se fazia nos cultos de adoração ao Sol — de que os cristãos se recusavam a participar.

A introdução do canto no ritual católico teria sido uma iniciativa de São Silvestre, que foi papa durante o reinado do imperador Constantino. A este papa também se atribui a criação da Escola Romana de Canto. Um pouco depois, no início da Idade Média, os católicos passam a

incluir na liturgia um tipo de oração em forma de canto que ficará conhecida como canto gregoriano, devido aos papas aos quais está relacionada (Gregório I, no século VI, e Gregório II, no século VIII).

Por volta do século XI, a difusão e normalização do canto gregoriano faz surgir nos mosteiros e comunidades religiosas europeias os coros mais assemelhados aos que conhecemos hoje. Os primeiros registros de música feita para coro datam do século XII. Após a Reforma (século XVI), o canto coral se desenvolve nos cultos festivos das Igrejas protestantes.

Nos séculos seguintes, o canto coral é influenciado pela valorização dada ao canto folclórico no contexto dos ideais nacionalistas de países como França, Inglaterra, Alemanha e Itália. Além de estar presente nos rituais sacros, o coro era integrado em obras mais amplas, servindo de acompanhamento em óperas, balés e teatro. Peças autônomas para canto coral podiam ser segmentadas em três categorias: canções para pequeno conjunto vocal e outras peças breves, para o canto à capela ou acompanhado por piano ou órgão; canções associadas à liturgia e outros serviços religiosos; e obras para coro e

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orquestra que, mesmo compostas sobre textos dramáticos, eram voltadas para apresentações em concertos, não em encenações. Estas últimas são denominadas oratórios.

Entre os séculos XVII e XIX são compostas as mais importantes peças arranjadas especialmente para o canto coral, como fizerem os seguintes compositores: o italiano Antonio Vivaldi (1678–1741), o alemão Johann Sebastian Bach (1685–1750), o alemão (naturalizado inglês) Georg Friedrich Händel (1685–1759), o austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (17561791), o francês Hector Berlioz (1803–1869), o húngaro Franz Lizt (1811–1886) e os alemães Felix Mendelssohn (1809–1847) e Johannes Brahms (1833–1897).

As misturas musicais do Brasil

Em nossas terras já havia música e instrumentos antes mesmo da chegada dos portugueses. Ao “descobrirem” o Brasil, os conquistadores encontraram povos originários que cantavam narrativas míticas sobre humanos, onças, cobras, peixes e deuses.

Nas gravuras presentes nos relatos dos viajantes e artistas do século XVI, como o alemão Hans Staden (1525–1576) e o francês

André Thevet (1516–1590), os Tupinambá são desenhados tocando maracás, e notações musicais desse povo aparecem na terceira edição de Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, autrement dite Amérique, de 1578, de Jean de Léry (ca. 1536–1613).

Ainda nos anos 1500, as missões jesuíticas portuguesas aproveitaram a musicalidade dos povos originários como ferramenta de catequização. Nas chamadas reduções (outro nome para as missões) havia verdadeiras escolas de música, que acabaram influenciando a expressão indígena. Instrumentos musicais de cordas, característicos dos europeus, foram incorporados aos cantos tradicionais. É o caso do violão, ainda hoje tocado com as cordas soltas

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entre os Avá-Guarani de Terra Roxa, no oeste do Paraná, e entre os Mbyá-Guarani de São Miguel das Missões, no noroeste do Rio Grande do Sul. A influência portuguesa se deu também em ritmos populares que apreciamos até hoje. Um exemplo é o baião, que se dança a dois e com batidas de pé no ritmo das toadas, próprio da música nordestina.

Outra importante influência na sonoridade brasileira remonta igualmente ao século XVI, quando chegam os primeiros contingentes de pessoas escravizadas oriundas do continente africano, e segue durante toda a diáspora. Os diferentes povos trazem consigo instrumentos percussivos e cantos derivados das culturas Bantu, Jeje e Iorubá ou Nagô, resultando em nosso afro-brasileiríssimo e rico conjunto de manifestações populares, como o jongo do Sudeste e o tambor de criola do Maranhão. Os atabaques, por sua vez, saem dos terreiros e se misturam a instrumentos de cordas e a ritmos eruditos europeus. É dessa fusão que nascem as variantes do nosso conhecidíssimo samba.

Dos tempos do Brasil Colônia e Império até o século XX, o cantar assumiu muitas formas e sotaques. A primeira música gravada no Brasil, em 1902, chama-se “Isto é bom” e foi composta pelo soteropolitano Xisto de Paula Bahia (1841–1894). A música é um lundu, considerado um dos primeiros ritmos afro-brasileiros.

Acesse para ouvir a primeira música gravada no Brasil.

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A música no século XX

Nas duas primeiras décadas do século XX, quando ainda não havia rádio e nem televisão, a música era uma importante forma de entretenimento nos lares brasileiros. As famílias se reuniam para cantar, dançar e transmitir tradições musicais. Mas, naquela época, faziase distinção entre a música cantada e aquela executada por instrumentos. Esta última era considerada mais nobre, pois a prática de um instrumento exigia formação, escolarização e preparo, enquanto o canto estava associado à vida cotidiana e às festas populares.

O canto era uma manifestação muito comum também durante o trabalho, entoado de forma coletiva. Esse costume, vindo dos tempos da escravidão, adentra o século XX. Em 1920, por exemplo, o poeta paulista Mário de Andrade (1893–1945), que também era etnógrafo, excursionou pelo Brasil pesquisando o folclore e registrou, dentre outras músicas, alguns desses cantos.

Hoje em dia, com tantas outras formas de lazer e entretenimento, o canto coletivo é bem menos presente, mas não desapareceu. Ainda são comuns, em nossa cultura popular, as reuniões para se fazer música e cantar.

Acesse e conheça alguns dos cantos de trabalho entoados durante atividades laborais em municípios da Bahia.

Nas comunidades caiçaras do litoral norte do Paraná e do litoral sul de São Paulo, por exemplo, o fandango é aprendido, tocado e cantado entre parentes e vizinhos. Os instrumentos — a viola, o adufo (ou adufe) e a rabeca — são esculpidos com a caxeta, madeira da região também usada para fazer canoas, e os versos e notas são aprendidos “olho no olho”.

Outra manifestação popular marcada pelo canto coletivo é a tradicional Folia de Reis, que todo 6 de janeiro toma ruas e casas em muitas cidades do Brasil. As músicas que embalam o reisado são tocadas e aprendidas no ritmo da troca de saberes entre gerações.

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O canto orfeônico de Villa-Lobos

Nos anos 1930, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas (1882–1954), o maestro Heitor Villa-Lobos (1887–1959) teve importante participação nas iniciativas de reformulação do ensino ao incluir a educação musical nos conteúdos curriculares das escolas.Villa-Lobos, influenciado pelo nacionalismo e pelo canto popular do folclore, tornara-se entusiasta do canto orfeônico, modalidade de canto coral amadora surgida no século XIX, na França.

Para o maestro, ensinar o canto coral era prático porque não demandava instrumentos caros e de difícil acesso. Além disso, proporcionava o cantar junto, exercício cujos benefícios extrapolavam o universo da educação musical. O canto coletivo

seria capaz de socializar e integrar, valorizando a coletividade, a solidariedade humana e a participação anônima na construção de algo maior. Diante desses benefícios — alinhados à política ideológica do Estado Novo —, o canto orfeônico tornou-se obrigatório nas escolas.

É possível que as qualidades que levaram VillaLobos e o governo Vargas a impor o canto coral na educação básica — obrigatoriedade que deixou de existir em 1960 — sejam as mesmas que fazem com que essa modalidade permaneça, ainda hoje, uma prática incentivada não apenas em escolas, mas também em empresas, associações, corporações, igrejas e outras organizações.

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Um coral é um grupo de arte coletiva em que um depende do outro e toda pessoa importa.

Cada pessoa dá um pouquinho de si para produzir a música.

O canto coral é muito democrático, todas as pessoas estão na mesma posição, cantando juntas; todas são importantes.

E se uma falhar a outra pode ajudar. Todas têm a mesma oportunidade.

Elena, pianista do Coral Pequeno Príncipe

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Segundo movimento
Segundo
Segundo movimento Apresentação do coral nos corredores do Hospital Pequeno Príncipe em 2019, com a maestra Simone Abati em primeiro plano. 27 10 anos do Coral Pequeno Príncipe
o encontro das vozes
movimento

Quantos acontecimentos cabem em uma década?

A percepção do correr do tempo é relativa. O tempo passa devagar quando nosso vizinho coloca uma música de que não gostamos em sua potente caixinha de som, ou passa num piscar de olhos quando o show tão esperado do nosso cantor preferido, com ingressos comprados um ano antes, acaba rapidinho. Dos 10 aos 20 anos de idade as transformações são muitas; já dos 20 para os 30, nem tanto. Nos tempos em que vivemos, cabe muita mudança no espaço de uma década!

Em 2011, ano em que o Coral Pequeno Príncipe começou seus ensaios, o aplicativo de mensagens WhatsApp estava dando seus primeiros passos; fazer chamadas de vídeo na palma da mão, a qualquer hora, ainda parecia cena de desenho da futurista família Jetsons dos anos 1970. Ninguém imaginaria que, apenas 10 anos depois, algumas das entrevistas feitas para este livro, em fins de 2021, aconteceriam por vídeo-chamada do “zapzap” (apelido que o WhatsApp ganhou no Brasil).

Naquela época, os celulares ainda não contavam nossos passos e tampouco os app (os aplicativos)

nos mandavam tomar água. As redes sociais ainda eram vistas quase como brinquedo; só os apocalípticos vociferavam que em uma década elas seriam um vício para a maioria da população da Terra, e que as fake news — as notícias falsas espalhadas deliberadamente para influenciar eleições, e cujo termo foi popularizado no pleito norte-americano de 2016 — teriam poder de direcionar os rumos de muitas nações.

Em 2011, o mundo teve uma miss universo negra e o Brasil teve sua primeira presidenta mulher. Dentre as pautas que marcaram o período, a participação das mulheres na política e os feminismos negros tiveram avanços irreversíveis, transformando padrões de comportamento e beleza. Houve também uma mudança no perfil da população brasileira. Empretecemos na última década, pois mais brasileiros se reconhecem como negros, e também envelhecemos. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), desde 2014 há no país mais idosos de 60 anos do que crianças de até

9 anos, devido a reduções sensíveis nas taxas de natalidade e ao aumento da expectativa de vida.

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Parte dessas transformações está espelhada no Coral Pequeno Príncipe. Treze dos seus atuais 22 coralistas têm mais de 60 anos. São pessoas ativas e empenhadas em transformar a si mesmas e o entorno com uma vitalidade que acaba chamando a atenção dos mais jovens. O multi-instrumentista Mauro Abati Filho, que tem 36 anos e é preparador vocal do grupo, conta que se surpreende com a disposição dos coralistas mais maduros. Lembra que, mesmo tendo o papel de ensinar, pela troca de experiências é ele quem mais aprende.

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anos do Coral Pequeno Príncipe

Um coral em um hospital?

Quando o Coral Pequeno Príncipe começou suas atividades, o Hospital Pequeno Príncipe tinha pouco mais de 90 anos de existência. Nesse quase centenário, já dava o que falar como uma instituição dedicada a quebrar paradigmas em todas as áreas, inclusive no que se refere à humanização no espaço hospitalar e ao entendimento de educação, arte e cultura como direitos. Devido a essa trajetória, não havia lugar melhor para abrigar o canto de voluntários e colaboradores que tinham como desejo romper o silêncio dos corredores com a emoção na forma de música.

Para entender o percurso que fez do Pequeno

Príncipe um lugar propício para o encontro das vozes do coral, é preciso voltar um pouco no tempo, mais precisamente para o fim da segunda década do século XX.

Em 1917, a Cruz Vermelha do Paraná foi fundada por senhoras da elite citadina de Curitiba, organizadas no Grêmio das Violetas que, por sua vez, era ligado ao Clube Curitibano. De um lado, estava o desejo dessas damas, atentas às transformações sociais e dispostas a lutar por protagonismo nas poucas áreas de atuação permitidas às mulheres da época: as causas sociais e as entidades de organização civil. De outro, a necessidade de atenção ao campo da saúde dos mais pobres. Essa união faria da Cruz Vermelha, no Paraná e em âmbito mundial, entidade de referência durante a Primeira Guerra Mundial e no combate às pandemias de febre tifoide (1917) e de gripe espanhola (1918).

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Vozes do bem-querer

Em sentido horário, placa produzida pelo Clube Curitibano em 1944, em homenagem aos cinquenta anos do Grêmio das Violetas. Acervo Casa da Memória / Diretoria do Patrimônio / Fundação Cultual de Curitiba. Coleção Fundo Casa da Memória; Hospital de Crianças, futuro Hospital Pequeno Príncipe, na década de 1930. Acervo Casa da Memória / Diretoria do Patrimônio / Fundação Cultural de Curitiba. Coleção Arthur Wischral. Fotógrafo: Arthur Wischral;

Damas reunidas em baile de carnaval, realizado no ano de 1923 no Clube Curitibano. Acervo Casa da Memória / Diretoria do Patrimônio / Fundação Cultual de Curitiba. Coleção Fundo Casa da Memória.

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As pandemias ensinaram — e nos ensinam até hoje — que higienização e vacinas são as melhores armas para a prevenção de boa parte das doenças. Então, médicos e damas de caridade se uniram e colocaram em prática esse aprendizado em benefício da saúde das crianças de Curitiba. Em 1919, a Cruz Vermelha e a recém-criada Universidade do Paraná fundaram o Instituto de Higiene Infantil e Escola de Puericultura. Essa foi a semente do que passou a ser conhecido, a partir de 1990, como Hospital Pequeno Príncipe.

O instituto voltava-se ao atendimento gratuito a crianças de famílias pobres; funcionava como dispensário (o mesmo que consultório), como centro de vacinação e como centro de educação para as mães, seguindo o modelo francês de puericultura.

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Acervo Paulo José da Costa. Vozes do bem-querer
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Evolução das fachadas do Pequeno Príncipe desde 1930 — edifício histórico e edifício do Hospital Pequeno Príncipe, e vista da quadra ocupada pela instituição.
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Na época, as condições de higiene eram precárias. Além disso, as mães operárias trabalhavam por até 12 horas nas fábricas, sendo que creches e licença-maternidade eram direitos muito distantes no horizonte. Em uma cidade onde poucas residências tinham água encanada e saneamento, orientar as mães sobre os cuidados com a saúde das crianças era um paliativo para os problemas estruturais que deveriam ser resolvidos pelo poder público.

A criação do Instituto de Higiene Infantil contribuíra para melhorar o acesso de filhos de famílias pobres a procedimentos básicos de saúde (as famílias ricas eram tratadas em casa, por médicos particulares). O atendimento como dispensário, porém, não bastava. No decorrer dos anos 1920, sentia-se a necessidade de um estabelecimento onde as crianças pudessem ser internadas e passar por procedimentos cirúrgicos. As damas de caridade então se mobilizaram novamente, agora para uma empreitada ainda maior: viabilizar a construção de um hospital de crianças.

É a partir desse momento que música e voluntariado passam a fazer parte da história do Hospital Pequeno Príncipe: quando as senhoras renovam as estratégias de arrecadação de fundos para o árduo processo de sensibilização da sociedade e do poder público.

Festivas e melodiosas “que só”, as damas dos grêmios Violeta, Bouquet, Magnólias e

Camélias organizaram festas, saraus e chás para angariar o dinheiro; promoveram eventos culturais e musicais com os quais contribuíam graciosamente, sem cobrar cachê, os artistas que agitavam a Curitiba daqueles anos. Em 1926, por exemplo, o então chamado Theatro Guayra apresentou a ópera La Fornaria, e também um espetáculo idealizado pela maestra Felice Clory e suas alunas, com coro, poesia e dança rítmica. Ambos foram realizados em benefício do hospital infantil que se pretendia construir.

Os esforços voluntários das damas e dos artistas deram resultado. Em 1930, inaugurouse o Hospital de Crianças, ampliando o escopo e a capacidade de atendimento do Instituto de Higiene Infantil e Escola de Puericultura, fundado 11 anos antes.

E, se um hospital de caridade precisa de recursos para ser construído, recursos também são necessários para mantê-lo em funcionamento. Diante disso, eventos artísticos de arrecadação de fundos continuaram a ser realizados.

A música nutriu o hospital nas décadas seguintes com iniciativas como as “festas da seringa” e a peça musical Amores de estudante, realizadas pelos alunos de medicina da Universidade do Paraná no início dos anos 1930. Outra importante contribuição veio dos jantares dançantes oferecidos entre 1932 e 1945 por Zelinda

Fonseca, esposa do interventor Manoel Ribas. 34 Vozes do bem-querer

Em sentido horário, apresentação do Coral Pequeno Príncipe na Escola Menino Jesus, em Curitiba, 2018; matéria de março de 1924, publicada no jornal O Dia, noticia os avanços na construção do prédio do Hospital de Crianças, com imagem da fachada prevista; antiga sala de cirurgia do Hospital Pequeno Príncipe, então chamado Hospital de Crianças; apresentação natalina do Coral nos corredores do Pequeno Príncipe, 2018.

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Durante as décadas de 1920 e 1930, era comum que os jornais noticiassem as ações em prol do Hospital de Crianças.

Vê-se que a forte vocação do Pequeno Príncipe como espaço de transformação pela música — e por meio de todas as artes! — não é de hoje. Vem de outrora, dos tempos em que o hospital ainda era um sonho a ser construído e desenvolvido. Desde então, a música transforma as pessoas que passam pelo hospital. Elas, por sua vez, por meio da música, ajudam a promover a metamorfose do lugar. É na continuidade dessa história e nos jardins dessa “casa” que o Coral Pequeno Príncipe fez morada.

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Notícias de ações em prol do Hospital de Crianças no jornal O Dia e coralistas em frente ao prédio histórico da instituição. Em sentido horário: nota sobre o início da construção do hospital em julho de 1923; em outubro do mesmo ano, divulgação do Dia da Caridade; matéria exaltando as ações do Dia da Caridade, também de outubro; Coral Pequeno Príncipe na fachada do antigo Hospital de Crianças, hoje Hospital Pequeno Príncipe, em 2019; em março de 1926 divulgação de matinê em prol do Hospital de Crianças.

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Que hospital é este?

Além dos diversos sons e cores que habitam o Hospital Pequeno Príncipe, há, sobretudo, o empenho no bem-cuidar. Desde os tempos em que era denominado Hospital de Crianças, os diversos médicos que passam por ali fazem do atendimento aos que mais precisam uma vocação. Não se sabe exatamente quem inventou tal tradição, mas uma vasta documentação atesta desde sempre o gosto pelo cuidado com as crianças de toda e qualquer origem socioeconômica, e a preocupação com as causas das doenças que acometem os pequenos. Essa é uma marca distintiva da instituição.

Médicos como Raul Carneiro, César Pernetta e muitos outros, de ontem e de hoje, empenharam e empenham seu tempo e saberes no cuidado com os pacientes, tendo também certa liberdade para constituir práticas próprias e eficientes.

O trabalho desses médicos sempre teve resultados impactantes no desenvolvimento de seu campo de atuação. Os frutos são muitos e vão da criação de serviços hospitalares à formação de novas gerações de profissionais, passando pela gênese de tratamentos de

vanguarda e, de maneira mais ampla, culminando no desenvolvimento da pediatria como especialidade médica.

Tudo isso já acontecia no Hospital Pequeno Príncipe antes mesmo que os brasileiros tivessem o direito incondicional à saúde, proporcionado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), estabelecido e garantido pela Constituição Cidadã de 1988.

Antes do SUS, o atendimento não era universal, ou seja, não era um direito de todos os cidadãos. Havia serviços públicos de saúde desde os anos 1940, mas eram destinados apenas àqueles que estavam vinculados à previdência social, isto é, àqueles que tinham registro em carteira de trabalho e que descontavam seus impostos mensalmente. Os desempregados, empreendedores, mensalistas e autônomos precisavam pagar pelo atendimento. Se não tivessem condições, eram considerados “indigentes” e recorriam aos hospitais de caridade, dependentes de donativos da sociedade civil ou de entidades privadas e governamentais. Esse era o caso dos hospitais mantidos pelas Santas Casas de Misericórdia no Brasil, e também do Hospital de Crianças em Curitiba.

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bem-querer

Em 1956, médicos e voluntários que atuavam no Hospital César Pernetta (nome que o Hospital de Crianças passou a adotar em 1951) fundaram a Associação Hospitalar de Proteção à Infância Dr. Raul Carneiro. A partir daí, os recursos para garantir o atendimento aos pacientes começaram a vir, em grande parte, das ações promovidas pela associação, e isso muito antes de o governo estadual ceder-lhe o hospital em comodato, o que só ocorreria em 1979.

Dr. Raul Carneiro com uma de suas filhas. O médico atuou no antigo Hospital de Crianças antes mesmo da inauguração, e dá nome à mantenedora do hospital.
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De cima para baixo: d. Ety e suas filhas Ety Cristina Forte Carneiro, Patrícia Maria Forte Rauli e Tatiana Forte, ainda crianças; d. Ety.

Na outra página, colaboradores do Setor de Educação e Cultura em atividades educacionais e recreativas com crianças internadas no hospital, em 2006.

Noinício daquela década, mais especificamente em 1971, a associação inaugurara um novo hospital, o Pequeno Príncipe, em terreno anexo ao César Pernetta. Com a cessão deste pelo Estado, a associação passou a administrar e manter ambas as instituições sob um único nome, Hospital Pequeno Príncipe — às vezes referido como HPP.

Tais avanços, fundamentais para a ampliação do atendimento à saúde das crianças de Curitiba e do estado, devem-se principalmente a uma pessoa: Ety da Conceição Gonçalves Forte.

Ety foi voluntária pela primeira vez ainda adolescente, tocando violão em uma instituição de acolhimento de pessoas idosas. Com o passar do tempo, os pincéis, as agulhas, a caneta e o raciocínio tomaram o lugar do violão. O trabalho voluntário passou a ser em período integral e de relevância gerencial estratégica, articulando habilidades artísticas e políticas para tecer parcerias e formar redes de apoio.

Foi no ano de 1966 que Ety, artista visual de cores intensas, assumiu a presidência da Associação Dr. Raul Carneiro, promovendo um ponto de virada na trajetória da organização. Da limpeza do chão no dia de sua posse às parcerias com o poder público e a iniciativa privada, passando pelo acolhimento à arte como forma

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de expressão necessária à vida, as mudanças operadas por d. Ety, como é carinhosamente chamada, ajudaram a transformar o HPP no que ele é hoje: o maior hospital pediátrico do Brasil, referência em atendimento à saúde integral e em tratamentos de alta complexidade.

D. Ety pinta como se arranjasse um concerto de muitos naipes, tanto nas telas e na cerâmica quanto nas diretrizes de atendimento do hospital. A partir de sua gestão, o hospital consolida sua vocação, amplia seus horizontes e se enraíza em princípios igualitários. Com ela e com as muitas gestoras e os muitos gestores que vieram depois, a competência administrativa definitivamente vira cúmplice das artes, que nunca mais deixaram de ecoar nos corredores da instituição. E a música, como parte dessa paleta, entrou pela porta da frente.

No decorrer das gestões e dos anos, voluntariado e filantropia continuaram sendo importantes peças, e não mais apenas no hospital, mas em todo o Complexo Pequeno Príncipe, formado também pela Faculdades Pequeno Príncipe e pelo Instituto de Pesquisa Pelé Pequeno Príncipe.

O complexo congrega uma comunidade nacional e internacional de apoiadores, muitos deles voluntários, graças também aos nós mais fortes dessa rede: as continuadoras do trabalho de

d. Ety, suas filhas Ety Cristina Forte Carneiro, Patrícia Maria Forte Rauli e Tatiana Forte, que ocupam hoje, respectivamente, as funções de diretora-executiva no hospital e de diretora e diretora de extensão nas faculdades.

Herdeiras do espírito audaz e inovador da mãe, com elas as artes se estabeleceram definitivamente e ocupam todos os espaços do hospital, assim como permeiam as atividades do instituto e das faculdades. Arte e cultura não são vistas como acessórias; sua presença em um lugar que pode, em princípio, parecer inusitado é orientada pela consciência do direito das crianças à educação e à cultura, mesmo quando em restrição de mobilidade devido à situação de internamento. Com base nessa orientação, a partir de 1987 as crianças internadas passaram a ter aulas em seus leitos, programa oficializado em 2002 com a criação do Setor de Educação e Cultura. O setor também oferta sistematicamente atividades artístico-culturais.

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Essas iniciativas foram implantadas no HPP antes se tornarem políticas públicas, pois só em 1988, por exemplo, a Constituição passou a assegurar, em seu artigo 215, que “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”. O direito à educação tornou-se uma diretriz das Leis de Diretrizes e Bases da Educação apenas em 1996, quando já fazia nove anos que o Pequeno Príncipe garantia o acompanhamento escolar aos seus pacientes.

O acesso à cultura é libertador, muda trajetórias e oferece um desvio de destinos previstos e inscritos apenas na condição social. Às vezes, tais momentos podem mesmo oferecer novas perspectivas de vida aos pequenos que passam por lá. Por um lado, é triste que muitas crianças só venham a se encontrar com a cultura no momento da doença; por outro, esse encontro pode tornar menos aflitivos os períodos, longos ou curtos, de tratamento e de internamento.

Tanto quanto ter acesso à educação, entrar em contato com a música e outras artes proporciona aos sujeitos uma disposição estética e ética.

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O acesso à cultura é libertador
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Atividades artísticas e culturais nos diversos espaços do Pequeno Príncipe.

43 10 anos do Coral Pequeno Príncipe Fachada do edifício histórico do Hospital Pequeno Príncipe no espetáculo comemorativo do centenário da instituição. 44 Vozes do bem-querer

Nessas ocasiões em que o hospital se transforma em palco, o Coral Pequeno Príncipe é uma das principais e mais duradouras atrações, algo que só se conquista quando a cultura e a arte são vistas de forma estratégica pela gestão institucional. Não por acaso, uma das ações comemorativas do centenário do hospital, celebrado em 2019, foi a homenagem do coral às iniciadoras de toda essa história de virtuosismo. O figurino das coralistas para a apresentação compôs-se de vestidos azuis modelados ao estilo dos anos 1920. Com essa evocação, o voluntariado do século XXI reconheceu os esforços das elegantes “damas” dos grêmios femininos da aurora do século XX, que tanto fizeram, voluntariamente e convocando a música, pelo início e manutenção das atividades da instituição.

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“Agentesesentiuomáximo em fazer parte da comemoração dos 100 anos. Foi maravilhoso, parecia que a gente era mesmo artista! Eu amo o hospital.” Sergio, tenor
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Da esquerda para a direita: fachada do edifício histórico do Pequeno Príncipe no espetáculo comemorativo do centenário da instituição; apresentação do Coral Pequeno Príncipe no espetáculo dos100 anos.

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“Afestados100anos,festalinda que fizeram! Deixou o coral muito feliz, nossa imagem ficou oficializada pela festa.” Sergio, tenor

Em 2019, o Hospital Pequeno Príncipe comemorou seus 100 anos com diversas ações celebrativas. Teve livro histórico, festa em praça pública com apresentação do Coral Pequeno Príncipe e, para encerrar o ano, espetáculo com atores, orquestra e novamente o coral, tudo acompanhado por uma projeção mapeada nas fachadas do prédio do antigo Hospital César Pernetta.

Com as celebrações do centenário, o coral declarou seu amor à casa que é também porto e estação de encontros para afetos que transbordam e ecoam pelos corredores. Foi uma dupla dádiva, para o coral e para o hospital, os coralistas serem protagonistas do espetáculo que celebrou esse aniversário.

Acesse para ver o video desse espetáculo

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Coral Pequeno Príncipe

O nascimento do Coral Pequeno Príncipe

Além de prezar pela cultura, o Hospital Pequeno Príncipe é festeiro. Todas as datas comemorativas são celebradas, como forma de levar às crianças o espírito festivo e familiar e de não deixar que o internamento faça as datas tradicionais passarem “em branco”.

Durante muito tempo, foi comum o convite a grupos corais para que se apresentassem ao público do hospital nessas ocasiões, especialmente no Natal. Um dia, porém, veio a ideia: e se o hospital tivesse seu próprio coral? A ideia virou semente, que germinou, se desenvolveu e frutificou graças ao trabalho de três mulheres: a entusiasta, a que nutre, e a que faz caminhar. A tradição natalina de convidar grupos corais para se apresentar no HPP se manteve mesmo com a fundação do coral próprio, que até 2019 foi o grande anfitrião desses encontros.

“Se há um lugar onde a gente precisa ter alegria, ser ativa, ter a criatividade estimulada, é em um hospital. Um hospital de crianças, mais ainda. A arte e a música fazem parte disso. E a música é uma arte muito universal, porque você não precisa compreender o conteúdo das palavras, só o ritmo já é uma coisa que mexe profundamente com as pessoas. É extremamente mobilizador. E poder celebrar a vida e a passagem de fases da vida com a música é muito especial.” Ety

Forte Carneiro, diretora-executiva do Hospital Pequeno Príncipe.

Cristina
Patrícia Bertolini Izidorio, coordenadora de projetos e do Centro de Reabilitação e Convivência HPP
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“Essa coisa de ter coral, de ter música, é um foco na inclusão através da cultura que sempre esteve presente no hospital.”

A entusiasta — uma das maiores que o coral já teve — é Patrícia Bertolini Izidorio, no hospital desde 1996. Chegou à instituição como estagiária de psicologia no Setor de Voluntariado e hoje é coordenadora de projetos e do Centro de Reabilitação e Convivência Pequeno Príncipe. Patrícia conta que, quando via as apresentações dos corais convidados para os diversos eventos, pensava com seus botões: “o Pequeno Príncipe precisa ter um coral. É a cara da instituição!” Entre um suspiro e outro, Patrícia dividiu seus sonhos com Ety Cristina Forte Carneiro, diretora-executiva do hospital, e ambas perceberam que o sonho era compartilhado. Entrou em cena, então, a nutriz, pois Ety Cristina também acalentava a vontade de contar com um coral no hospital, integrando voluntários e colaboradores.

“Quantas vezes eu vejo as reações das pessoas, se emocionando com o Coral Pequeno Príncipe, e fico extremamente contente por estar participando disso. O Brasil ainda é um país em que as pessoas não têm as mesmas oportunidades, e ver um momento no qual todo mundo está desfrutando e interagindo intensamente com a arte é muito gratificante”. Ety Cristina Forte Carneiro, diretora-executiva do Hospital Pequeno Príncipe.

A escolhida foi a maestra Simone Abati. Convidada pela dupla Patrícia e Ety Cristina, Simone trouxe na bagagem a experiência de regência em diversos corais. E essa experiência vinha de berço: é que os pais da maestra se conheceram justamente em um coral. Quando o casal se fez trio, a ida aos ensaios passou a incluir também a bebê Simone. Dizer que a regência acompanhou a maestra em todos os momentos da vida não é exagero ou licença poética: seu casamento foi celebrado com a apresentação de um coral infantojuvenil, regido pela própria Simone, na frente do altar e vestida de noiva!

Mas, quem colocaria o grupo para caminhar?

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A maestra Simone Abati regendo o coral formado por filhos de funcionários da Universidade Federal do Paraná no dia de seu casamento, 9 de dezembro de 1983. 10 anos do Coral Pequeno Príncipe

A partir do sonho compartilhado e da ideia semeada, o hospital passou a acolher um projeto contínuo, viabilizado pela Lei Federal de Incentivo à Cultura, que trazia o canto coral “para dentro de casa” na forma de ensaios e apresentações para pacientes, familiares e colaboradores da instituição. Para que a ideia efetivamente germinasse, mais uma mulher entrou em cena: a historiadora e produtora cultural Eliane da Cunha Aleixo passou a estruturar e cuidar do projeto, função que ocupou até 2017.

Com o projeto aprovado e o coral oficialmente criado, chegara o momento de encontrar coralistas. A notícia de que estava surgindo um coral dentro do Hospital Pequeno Príncipe foi divulgada entre colaboradores e voluntários e atraiu muitos interessados. A primeira reunião entre os futuros integrantes aconteceu em uma quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011, com a presença de 32 pessoas. De acordo com Patrícia — fazendo referência a um verso da música “Sá Marina”, de Antonio Adolfo e Tibério Gaspar —, nesse mesmo dia a maestra Simone “já fez o povo inteiro cantar”. Desde então, ficou definido que os ensaios aconteceriam sempre às quintas-feiras.

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Vozes do bem-querer

Irmã Joana Marli Stroka, foi da Pastoral Hospitalar e integrou o Coral Pequeno Príncipe.

Registros da primeira reunião do Coral Pequeno Príncipe, em fevereiro de 2011.

“Lembro-mebemdasreuniões nosextoandardohospital,na capelinha.Euachavaqueseria um coral de música católica, e nãoera;maseuadoreiporser mais cultural.”
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De cima para baixo: informativo dirigido aos colaboradores do Complexo Pequeno Príncipe noticia o início das atividades do Coral, em fevereiro de 2011; primeira apresentação do Coral Pequeno Príncipe, na Praça do Bibinha, junto com o Coral do Lar de Meninos São Luiz; convite para a estreia do coral na Praça do Bibinha, no Hospital Pequeno Príncipe.

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Com menos de três meses de ensaio, o Coral Pequeno Príncipe já fazia sua estreia. As primeiras apresentações aconteceram em 2011, em dupla com o Coral do Lar de Meninos São Luiz, também de Curitiba. No dia 6 de maio, os grupos cantaram no Memorial de Curitiba e, no dia 10, repetiram a dose na Praça do Bibinha, no hospital.

A performance com o Coral do Lar de Meninos

São Luiz colocou lado a lado instituições com pontos de contato em suas histórias. O lar também é centenário. Foi fundado como Asilo

São Luiz em junho de 1919, apenas alguns meses antes da criação do Instituto de Higiene Infantil e Escola de Puericultura — o antepassado do Hospital Pequeno Príncipe. A missão da instituição era assistir os órfãos de pais vitimados pela gripe espanhola, que assolou Curitiba à época. E, assim como no caso do hospital, os grêmios femininos ativos nos anos 1920 também foram responsáveis por nutrir o Lar de Meninos no início das suas atividades. Mais uma vez, mulheres idealizando, nutrindo e fazendo caminhar.

Primeira apresentação do Coral Pequeno Príncipe, na Praça do Bibinha, junto com o Coral do Lar de Meninos São Luiz. 53 10 anos do Coral Pequeno Príncipe

Cativados pelo maestro Wilson dos Santos

O maestro Wilson dos Santos foi parceiro da filha, a maestra Simone, na regência do Coral Pequeno Príncipe e em muitas outras empreitadas musicais. Mais do que isso, o maestro foi referência também para cada um que passou pelo coral. Sua presença se faz sentir ainda hoje no aprendizado dos coralistas, “cativados pelo maestro”, como diz o tenor Sergio. E, no coração da maestra, essa lembrança acolhe a alma. Ela não consegue falar do próprio trabalho sem mencionar o do pai.

“Nasci numa família muito musical. Meu pai se formou em direito, mas não trabalhou muito com isso. Sua paixão principal era a música. Formou-se também em música pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná, iniciando sua carreira como maestro e fundando vários corais em Curitiba e em outras cidades do estado. Foi também presidente da Federação de Corais Amadores do Paraná (Fecap) e sempre um grande incentivador da cultura através da música.

Minha mãe, Marli Gross dos Santos, atuou como professora e orientadora educacional, mas tinha

em comum com meu pai a paixão pela música. Sempre que o maestro Wilson fundava ou ensaiava um grupo coral, lá estava minha mãe, coordenando, cantando e fazendo solos, pois tinha uma voz impecável! Nascendo nesse meio, só me restava seguir o exemplo dos meus pais.

Para vocês terem uma ideia, quando meu pai levou minha mãe para a maternidade, para o meu nascimento, esqueceram de levar a malinha com as minhas roupinhas; quando ele voltou para casa para buscá-la, achou por bem dar uma passada na Igreja do Cabral [a Igreja Bom Jesus do Cabral, no bairro de mesmo nome], onde estavam montando o órgão de tubos. Ele ficou tão distraído e embevecido com o órgão que perdeu a noção do tempo. Quando nasci, tiveram que me enrolar em panos, pois as roupinhas demoraram bastante para chegar à maternidade!

Frequentei ensaios de coral com meus pais desde bebê, seja em Curitiba, seja em outras cidades. Como sempre recebi apoio e incentivo para arte e cultura, cursei balé clássico na Fundação

Teatro Guaíra e educação musical na instituição que hoje se chama Faculdade de Artes do Paraná

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(campus da Universidade do Estado do Paraná – Unespar). Também fiz pós-graduação e vários cursos de extensão.

Como meu pai foi maestro fundador do Coral da Polícia Civil do Paraná, auxiliei ele até a sua aposentadoria. Após se aposentar, ele continuou no coral como auxiliar e eu assumi a titularidade da regência. Fomos parceiros em muitos projetos, como o coral natalino que se apresentava nas janelas do extinto Banco Bamerindus. Era um trabalho bem consistente, muito conhecido na cidade e fora do país.

Nosso trabalho no Coral Pequeno Príncipe também foi sempre muito gratificante. Sentimos muito apoio tanto da instituição que acolhe o grupo quanto das coordenações e dos coralistas, que seguem juntos com muito empenho e vontade de ir além de si mesmos. É tanto envolvimento que a atividade flui quase que por “osmose”.

Simone, maestra

De cima para baixo: os pais da maestra Simone Abati, Wilson dos Santos e Marli Gross dos Santos, durante viagem com o coral em 2012; apresentação do Coral Pequeno Príncipe em viagem ao Paraguai, em 2012.

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Do chuveiro ao corredor

Desde as primeiras cantorias junto ao Coral do Lar de Meninos São Luiz, o Coral Pequeno Príncipe não parou mais. Participou de festivais nos maiores teatros de Curitiba, como o Teatro Guaíra e o Teatro Positivo. Excursionou Brasil adentro, cantando em hospitais do Rio Grande do Sul, do Rio de Janeiro e de São Paulo, e fez até uma apresentação internacional, no Paraguai.

Registros da viagem do Coral Pequeno Príncipe para apresentações no Paraguai, em 2012.
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Maestra Simone com Mauro Abati Filho, seu filho e preparador vocal do coral, em apresentaçao nos corredores do Pequeno Príncipe, em 2018.
Vozes do bem-querer

“Foi em São Paulo, nós estávamos fazendo uma apresentação em um hospital, e cada vez que eu me lembro desse dia, me volta a emoção. Num corredor, eu fiquei de frente para um pai que estava com uma criança ao colo. Evidentemente, a criança estava internada. E eu cantando para ele, praticamente para ele, porque ele estava focado em mim e eu focado nele. Ele começou a chorar, a criança começou a chorar e eu chorei também. Marca demais e cada vez que eu lembro, ainda me emociono muito.”

Registros da viagem do Coral Pequeno Príncipe para apresentações no Paraguai, em 2012.

Marcio, baixo 57 10 anos do Coral Pequeno Príncipe

“Acho que esta é a fórmula para nossa atividade ser tão duradoura e ganhar tanta importância: a oportunidade de divulgar a música, de dar alento aos pacientes, de levar alegria para todos os que nos assistem, amenizar suas dores e difundir o canto. Com a música, levamos o nome do Hospital Pequeno Príncipe para além de fronteiras.”

Simone, maestra

Maestra Simone Abati em apresentação do Coral no Instituto Fernandes Filgueira, no Rio de Janeiro, em 2018.
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Além de hospitais, outros espaços de acolhimento de pessoas em condições vulneráveis de saúde também formam palco para o Coral Pequeno Príncipe. Casas de repouso, asilos e instituições para crianças, jovens e adultos com necessidades especiais são os principais palcos do coral, e ficam em festa quando o recebem.

Apesar do gosto em levar a música a tantos outros espaços de cuidado, o lugar preferido do coral é mesmo o hospital onde seus integrantes atuam. No curso desses 10 anos, o coral tem sido convidado para celebrar com suas vozes toda e qualquer data especial para o Pequeno Príncipe. Natal, Páscoa, Dia das Mães, uma visita ilustre, o recebimento de um prêmio ou doação, a comemoração de uma data importante para a saúde ou para a criança: todas as datas convocam os coralistas, que sempre se desdobram para estar presentes e fazer brilhar cada ocasião.

“É

emocionante quando cantamos no hospital mesmo, por ser ‘a nossa casa’. A gente começa a cantar nos corredores, aí vê as crianças saindo dos quartos, vindo ao encontro da gente. É sempre muito emocionante. É como se fosse a primeira vez, a primeira apresentação ali no hospital. A gente sempre está ali cantando, mas parece sempre que é a primeira vez. Não tenho como descrever. Muitas das crianças a gente já conhece e acompanha no trabalho voluntário. Então, quando vemos aquelas carinhas, é incrível.”

Neuza, contralto
muito
Registros da apresentação do Coral no Instituto Fernandes Filgueira, no Rio de Janeiro, em 2018.
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10 anos do Coral Pequeno Príncipe
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Vozes do bem-querer

Dentre tantas apresentações, o grupo não consegue encontrar na memória qual a mais importante de sua trajetória. Segundo os coralistas, cantar para as crianças internadas é sempre um momento único e de emoções inéditas. E o que cantam para elas? Dizem que as crianças gostam mesmo é de “músicas de criança” ou “da moda”. Já para os pais e colaboradores do Pequeno Príncipe, quem arrasa é o rei Roberto Carlos.

No hospital, o coral costuma se apresentar na Praça do Bibinha, localizada no interior do edifício César Pernetta, ou nos jardins em frente a esse edifício, e em muitos outros espaços, solenes ou cotidianos. Mas, quando perguntados sobre o lugar preferido para cantar, a resposta dos coralistas é unânime: nos corredores.

Com a presença do coral, os corredores deixam de ser somente passagem para o leva e traz rápido de macas, cadeiras de roda, soro e oxigênio, abrindo espaço para a música permanecer entre os quartos, para todo mundo ouvir. Crianças e familiares são surpreendidos pelo canto. Às vezes enfileirados, por vezes lado a lado, ou amontoados mesmo, coralistas e maestra conseguem encaixar as vozes no cotidiano hospitalar.

Apresentações do coral entre 2018 e 2019, no cotidiano do Hospital Pequeno Príncipe. 61 10 anos do Coral Pequeno Príncipe

Enquanto entoam as notas, os cantores notam as portas se abrirem devagarzinho. Olhos brilhando saltam entre os vãos e as crianças e famílias ocupam os corredores também. Aos poucos, a música toma todos os sentidos — até os olhos ficam marejados em algumas ocasiões. Pacientes, acompanhantes e colaboradores se misturam aos coralistas e todos viram cantadores.

Cantam juntos o que conhecem. Batem palmas para os novos ritmos. A maestra faz par com a enfermeira. O tenor rodopia as crianças de pijama. A religiosa volteia sem se preocupar com o que os outros vão pensar. O médico, sempre ocupado, solta um rebolado. Sopranos cantam sorrindo com os olhos. Dançam o que é de dançar e também o que não é. O concerto vira baile, vira festa, vira riso e choro de emoção. Às vezes os coralistas se jogam no chão, ou se fazem de bichos para acompanhar a canção.

“Teve um menino, Nicolas, ele era de Paranaguá, ficou muito tempo internado. Em todas as apresentações que nós fazíamos nos corredores, ele estava lá. E tem uma música que fala de passarinho. Ele estava com traqueostomia e não se podia ouvir a voz dele, mas quando se falava em passarinho, ele fazia o som. E aí, durante as apresentações nós passamos a fazer o mesmo som, lembrando do Nicolas, e ele estava lá sempre. Quando ele teve alta, a mãe dele fez questão de tirar

foto com todo pessoal do coral, para mostrar que ele teve um acolhimento e se divertiu enquanto se recuperava. Então, não há dúvida de que a música é extremamente importante.” Roseni, soprano.

Quando as apresentações acontecem na Praça do Bibinha, a fã de carteirinha é Ety Cristina, que ama acolher o coral e toda arte que houver. Ela tem lugar garantido na primeira fila. Canta, dança e bate palmas como ninguém!

Outra reação observada nas apresentações é a curiosidade das crianças, que se levantam para tocar nos coralistas ou em algum instrumento. A contralto Fabiola, que tem mobilidade reduzida e se locomove com auxílio de muletas, lembra de ter sido “alvo” do interesse de uma pequena paciente. Numa das apresentações de corredor, conta que uma menininha não tirava os olhos dela e a perseguiu por toda a apresentação, mesmo quando mudaram de andar. Ao final, a pequena pediu um abraço, disse que a achou linda e que gostaria de ser igual a ela quando crescesse. Fabíola se disse muito “chocada” e emocionada com a declaração: “ela não enxergou minhas limitações físicas”.

A dança espontânea, os arrepios e os choros incontidos desfilam nas frestas que se abrem na dor e na doença. A música toca aquilo que nós não vemos. O neurocientista Daniel

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Vozes do bem-querer

J. Levitin oferece uma explicação para isso a partir da observação das reações do nosso cérebro às emoções, dizendo que os compositores e cantores manipulam nossas emoções com suas interpretações.

A maestra Simone sabe disso e sempre busca repertórios inspiradores para a interpretação dos coralistas, pois o entusiasmo deles afeta o público. A neurociência confirma que somos capazes de sentir e imitar a emoção do cantante, como se fosse possível almas se tocarem e se contagiarem pela emoção emitida na voz do coralista.

Dos que sonharam o Coral Pequeno Príncipe até aos que a ele se uniram com sua voz e dedicação, o grupo segue transformando, por meio da música, lugares de cuidados com a saúde em espaços de afeto e ninho.

“Cada apresentação é um momento único. Um alimento para a alma, que também nos permite viver, vivenciar, se entregar para emoções que estão lá, guardadinhas, e que, de repente, através de um som, de um ritmo, afloram e nos permitem ter contato com o outro. Muitas vezes, nas apresentações, a gente chora, a gente dá risada, se sente próxima dos outros. Se sente tão perto e tão longe, tão longe e tão perto. É algo que mobiliza mesmo.” Ety Cristina, diretoraexecutiva do Hospital Pequeno Príncipe.

“A música ajuda o paciente e toda a equipe, traz alegria, comunicação consigo mesmo e paz. O paciente sai da doença e tem um momento de conexão. Muda a energia de tudo.”

Leticia, soprano Ety Cristina, em apresentação artística no Hospital Pequeno Príncipe. 63 10 anos do Coral Pequeno Príncipe

Amadora-mente

O fotógrafo Ansel Adams (1902–1984) foi considerado o mais primoroso técnico entre os fotógrafos, numa época em que fotografar era pura alquimia, um amalgamado de fenômenos da física e da química. Adams era obcecado em reproduzir com perfeição a realidade em escalas de cinza, nas fotografias em preto e branco. Em um de seus livros, A Câmera, Adams recomenda aos iniciantes que, se quiserem fazer boas fotos, nunca deixem de ser “amadores”, porque amador é aquele que ama! Para o fotógrafo, a câmera não pode ser segurada como um robô imóvel; tudo o que pode ser feito nas fotografias, em termos sensíveis e emocionais, está nos olhos do fotógrafo, não na câmera. Ou seja, para Adams, sem amor, de nada vale o aprendizado da técnica.

A ideia de Adams de “amador” como aquele que se dedica a uma atividade por amor é produtiva para repensarmos os sentidos da palavra. Nas entrevistas para este livro, pipocaram as expressões “coral amador”, “somos amadores”, “sou amador”, “os amadores”, “canto amadoramente”, evocando ora as concepções do fotógrafo, ora a singeleza ou as limitações autoatribuídas ao grupo.

Os usos da palavra amador ao longo do tempo fizeram com que ela fosse compreendida, no senso comum, só em seu significado de

despretensão, de falta de dom ou técnica; algo menor, até porque o amador não recebe por seu trabalho. Mas o termo, como bem chama a atenção Adams, também designa aquele ou aquela que ama. A palavra “amadoramente” é composta por “amador”, ou seja, “quem ama”, e pelo sufixo adverbial “mente”, que vem da palavra latina mens e que significa mente, espírito e intento, e que indica modo e ação. Em síntese, amadoramente é o modo de quem tem a intenção de amar, ou de quem pratica o amor com o espírito.

O amor transborda nos olhos dos coralistas quando falam da música, do coral, dos colegas, da maestra Simone, das crianças e do Hospital Pequeno Príncipe, ganhando, nas apresentações, um sentido expandido pela voz de cada um. Ao que parece, esse amor que move é característico dos corais brasileiros, pois a maior parte deles é amadora; em geral, coralistas e regentes realizam suas atividades por amor à música.

O maestro David Junker, que prefacia este livro e que, em 2021, conduziu uma atividade de qualificação para o Coral Pequeno Príncipe, chama a atenção para o fato de, no dicionário, as palavras amador e profissional não serem antônimas. Amador seria aquele que se dedica a uma arte ou ofício pelo entusiasmo, pelo prazer de realizar.

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“Somos todos amadores. É um coral de amadores. A gente se esforça para levar música bonita, mas ainda somos amadores, estamos fazendo o nosso melhor, amadoramente!”

Neuza, contralto

“Cantar é como a preparação de uma parede para receber uma pintura. Temos que passar massa, lixar bem e corrigir todos os defeitos. Feito isso, a pintura é rápida e perfeita. Cantar é a mesma coisa: temos que preparar o corpo, fazer aquecimento, preparar o psicológico e o espírito para a peça que vamos executar. Feito tudo isso, a voz flui naturalmente e sai perfeita. Falo disso com maestria, pois também fiz curso de pintura de parede e aplico exatamente o que vivencio, e o exemplo se encaixa perfeitamente.”

Simone, maestra

Primeira apresentação do Coral Pequeno Príncipe, junto do Coral do Lar de Meninos São Luiz, em maio de 2011. 65 10 anos do Coral Pequeno Príncipe

O canto voluntário

O Coral Pequeno Príncipe é um coral de amadores! Para ingressar nele, é preciso ser voluntário ou colaborador do Hospital Pequeno Príncipe. A participação é espontânea e não remunerada.

Todos os coralistas se dedicam ao coral com muito amor à música e às crianças, com amizade entre si e respeito íntegro. Apesar de aberto a colaboradores, hoje o grupo contempla apenas pessoas engajadas nas atividades de voluntariado, interesse comum que confere ainda mais unidade ao grupo.

“Voluntário é aquele que não tem necessariamente um vínculo com a instituição, mas, depois que a gente começa, cria um vínculo através do coração e da humanização. Como a gente não precisa cuidar do paciente, tem o tempo de olhar para a pessoa, que está numa situação muito estressante, muito difícil. É bom pra eles, mas também é bom pra gente, você valoriza a vida, os teus valores. É muito legal ser voluntário, recomendo para todo mundo.”

“Trabalhei com muitos grupos diferentes, heterogêneos em todos os sentidos, mas nenhum como este, pois nosso objetivo nem é sermos muito técnicos, com vozes afinadíssimas. O que impera nesse coral é o amor e a ajuda mútua; quando uns têm dificuldades, outros sempre dão apoio e ajuda. Com a união de todos esses elementos, a voz sai afinada automaticamente; flui naturalmente.”

“Todo dia é uma possibilidade de descobertas. E todos, inclusive você, podem vir cantar conosco. Todos podem cantar. Ajuda você. Vai ajudar os outros essa interação, essa vibração. Desde o tempo de Pitágoras, que falou das esferas, existe a ideia de que a música aproxima de Deus. Aproxima do nosso real ser. E todos podem cantar. Mesmo os que dizem: ‘eu sou desafinado!’ Não, consegue sim! Alguns conseguem com mais esforço do que os outros, têm que treinar, trabalhar. Treinando e trabalhando, todo mundo pode cantar.”

Marcio, baixo João Carlos, baixo 66
Simone, maestra Vozes do bem-querer

O voluntariado é a mais antiga tradição do Hospital Pequeno Príncipe. Iniciada com as damas dos grêmios femininos, que não mediram esforços para viabilizar a construção do Hospital de Crianças, essa tradição foi reinventada com a chegada de Ety da Conceição Gonçalves Forte, em 1966, à presidência da Associação Hospitalar de Proteção à Infância Dr. Raul Carneiro, mantenedora do hospital. D. Ety atualizou as formas de benevolência voltadas para a instituição.

Hoje, assim como existem os serviços das especialidades médicas, há no Pequeno Príncipe um serviço de voluntariado. O recrutamento dos voluntários obedece a uma seleção rigorosa, e o interesse é tanto que o processo seletivo precisou ser organizado por meio da retirada de senhas. Ser voluntário no HPP requer afinidade com o universo infantil, com os princípios do hospital e com as tarefas designadas pelo setor.

“Eu quero imaginar que a gente é muito especial! Eu quero imaginar que isso é obra das coisas que acontecem neste hospital. Talvez seja mesmo porque [o coral] é formado por voluntários e eles fazem a diferença onde estão; são pessoas mais dispostas afetivamente, vamos dizer assim, mais disponíveis a dar, doar e a transmitir. Elas têm um objetivo de levar coisas boas, seja através do brinquedo, seja através da música. Eu não sei te dizer se é só esse grupo [que é assim], mas esse grupo é demais!”

Patrícia, coordenadora projetos e do Centro de Reabilitação e Convivência HPP

O Setor de Voluntariado do Pequeno Príncipe foi criado oficialmente em 1987. As primeiras voluntárias chegaram por indicação da dra. Flora Watanabe, atual chefe do Serviço de Oncologia e Hematologia, e pretendiam trabalhar exclusivamente com crianças com câncer. Três anos depois, a seleção de voluntários e sua alocação nos setores do hospital se profissionalizou e passou a ser conduzida por profissionais de psicologia. Em 1994, com a chegada ao hospital da psicóloga Rita Lous, que hoje gerencia o setor, houve o aprimoramento da seleção com dinâmicas de grupo e entrevistas individuais.

67 10 anos do Coral Pequeno Príncipe

Em 2019, antes da pandemia de covid-19, o hospital tinha mais de 200 voluntários, a grande maioria atuando em ações de recreação e alguns em outros projetos. Dentre esses outros projetos está o Amigo Bicho, que proporcionava às crianças hospitalizadas a oportunidade de brincar com animais de estimação trazidos por voluntários para a praça em frente do prédio histórico do Pequeno Príncipe. O projeto Jovem Abraça Criança, por sua vez, era realizado em parceria com escolas de ensino médio, públicas e particulares, cujos alunos promoviam atividades junto às crianças nos ambulatórios. Já no projeto Voluntariado Corporativo, empresas disponibilizavam seus funcionários para ministrarem oficinas de arte aos pequenos pacientes.

Mas é do voluntariado nas atividades de recreação que vem a maior parte dos integrantes do Coral Pequeno Príncipe. No hospital, essa atividade envolve brincar com as crianças, distribuir brinquedos na brinquedoteca e nos quartos, ficar ao lado de uma criança para que seu acompanhante resolva alguma questão burocrática ou problema particular.

Existem aqueles que já eram voluntários no hospital e se juntaram ao coral quando este foi formado; e existem os que escolheram fazer voluntariado no hospital justamente para estar no coral. Nos dois casos, o que move os coralistas é o poder da música e do cantar junto.

A soprano Tânia é um exemplo do segundo grupo. Já o tenor Carlos Eduardo entrou no coral quando era colaborador do hospital. Trabalhador terceirizado de uma empresa de manutenção de equipamentos hospitalares, Carlos foi cooptado para o coral depois de assistir a um concerto natalino em frente ao edifício César Pernetta. Em 2020, a chegada da pandemia acarretou ao tenor o desligamento da empresa e, fruto disso, a decisão de se aposentar. Conta ele que sua maior preocupação com a perda do vínculo trabalhista era perder também o vínculo com o coral — o que, felizmente, não aconteceu. Carlos permanece no grupo, agora como voluntário do Hospital Pequeno Príncipe.

O voluntariado tem tantas responsabilidades como o trabalho remunerado, mas se diferencia deste na retribuição, que é dadivosa em vez de financeira. No voluntariado, o doador oferece seu tempo e disponibilidade para fazer o trabalho que lhe for solicitado.

68 Vozes
do bem-querer

“Eu tinha uma escola de educação infantil e reservava uma quinta-feira do mês para o voluntariado. Só que o gosto foi pegando e eu passei a ir toda semana. Aí ficou assim, toda quinta-feira era sagrada para o Pequeno Príncipe. Era para eu ir uma vez por mês, mas eu ia toda semana, toda quinta-feira. E me sentia culpada quando não podia ir. Para mim, o voluntariado é isto! A música para os colaboradores, pacientes e familiares nos momentos difíceis. Quantas crianças você faz sorrir através da música. Nos últimos 10 anos, encontrar as mesmas pessoas todas as quintas-feiras, com o intuito de cantar, se divertir e levar alegria. O voluntariado e este nosso cantar voluntário são um gesto de amor ao outro. Eu fico até emocionada de falar [diz com a voz embargada]. Às vezes, a gente sobe e desce escada no Pequeno Príncipe, vai lá, pega brinquedo, volta. É um se doar por amor, por querer fazer bem ao outro, ao próximo, e é um sentimento muito gratificante.”

“Foi um sinal. Estava um dia sem sono, coisa rara de acontecer. Liguei a TV e vi a propaganda para quem quisesse ser voluntário do Pequeno Príncipe. E aquilo tocou muito meu coração. Porque eu moro tão próximo ao hospital, eu pensei: ‘Meu Deus, como eu nunca pensei nisso? Eu vou lá!’ E, coincidentemente, o dia em que eles fariam o recrutamento dos voluntários era o dia em que eu voltava das minhas férias. Eu pensei: ‘Eu vou avisar meu chefe que eu vou chegar mais tarde, porque eu preciso ir lá’. Fui, fiz a entrevista e entrei. Não me arrependo nunca, jamais. Era o meu momento!”

Mas, em um tempo em que quase tudo é monetizado, qual seria a vantagem de trabalhar sem remuneração?

Pesquisas do neurocientista Jorge Moll Neto indicam que o trabalho voluntário mexe com as mesmas áreas cerebrais ativadas quando nos acontecem coisas prazeirosas, como comer chocolate, receber dinheiro ou ouvir um elogio. O voluntariado também aciona em nosso cérebro áreas ligadas ao estreitamento de laços e à sensação de pertencimento. E, ser voluntário no maior hospital pediátrico do Brasil, oferece ainda a oportunidade de cantar!

Roseni, soprano Rosicler, soprano 69 10 anos do Coral Pequeno Príncipe

“Sempre fui muito tímida e retraída, achava que eu não iria conseguir e tal… No fim das contas, estou no coral há quase 10 anos! […] Já é frase feita, clichê, mas os maiores beneficiados somos nós; no meu caso, sou eu mesma.”

“O Pequeno Príncipe mora no meu coração, eu amo. Vinte anos de HPP, entrando e saindo da brinquedoteca. Amei estar naquele lugar, e lá eu fiquei. Quando eu recebi o convite para o coral da Patrícia e da Simone, eu só olhei para elas e falei: ‘Como assim? Eu não sei cantar!’. Aí a Simone falou: ‘Essas que são boas’. Aí eu me inscrevi e estou no coral desde o primeiro ensaio. Sempre gostei de música; minha mãe já gostava e tocava gaitinha de boca.”

“Eu nunca me imaginei num coral. De repente eu, voluntária, estava lá na Praça do Bibinha e o coral estava se apresentando. Eu nem sabia que o hospital tinha um coral. Não fazia nem um ano que eu estava sendo voluntária ali. E eu olhei para aquele coral e eles estavam cantando uma música com tanta energia, tanta alegria, que eu disse: ‘Eu tenho que estar do outro lado!’ Aquilo me tocou com uma profundidade indescritível, muito lindo. ‘Preciso estar ali!’ Foi uma coisa tão forte dentro de mim, que assim que terminou a apresentação eu procurei a maestra, para saber como fazia para estar lá. Eu nem pensei na minha voz, eu só queria estar lá. Quando eu comecei, parecia que eu já fazia parte.

“O coral do Hospital Pequeno Príncipe é diferente de todos em que já trabalhei na minha vida, porque os coralistas praticam o voluntariado, ficando assim altruístas, doadores de seu tempo, de seus dons, do seu amor.”

Neuza, contralto Rosicler, soprano
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Ingrassulina, contralto Vozes do bem-querer Maestra e coralistas em apresentação do Coral Pequeno Príncipe, em 2018. 71 10 anos do Coral Pequeno Príncipe

Tessitura

No Coral Pequeno Príncipe, o aprendizado faz parte da rotina de afeto, e o preparo da voz é realizado com amor e ajuda mútua. Entre os coralistas, mesmo quem só cantava para si no banheiro, hoje tem melodia até no falar!

A mesma palavra que designa o naipe da voz — tessitura — é a que fala de costura, de emenda, de trança e de liga. As histórias de cada coralista e a descoberta da voz, os caminhos e os nós de cada voz, são tramas e urdiduras aptas a devolver a vida.

Dentre as cinco vozes masculinas adultas do coral, há três senhores que têm histórias em comum de encontro com a música e com o voluntariado.

O baixo Marcio, economista aposentado, antes de estrear no Coral Pequeno Príncipe participou de corais italianos. O tenor Osmei, também economista aposentado, cantou em outros corais, entre eles o Coral João Paulo II. Marcio e Osmei levavam os filhos, hoje com mais de 50 anos, para serem atendidos no hospital, e Osmei lembra-se com carinho do pediatra dr. Ivan Fontoura.

Para Marcio, a busca pelo trabalho voluntário aconteceu após a perda da esposa. O tenor Sergio, engenheiro químico, se aproximou do voluntariado também após uma espécie de perda — nesse caso, a aposentadoria. Já Osmei pertence àquele grupo de coralistas que se tornou voluntário do hospital como forma de integrar o coral.

De todo modo, os três encontraram no coral e no Hospital Pequeno Príncipe um novo sentido para suas vidas, por meio do entrelaçar entre o canto e o trabalho voluntário.

“Jamais pensei que um dia eu iria participar de um coral; cheguei no hospital como voluntário. Foi isso que me levou até lá, e eu continuo me descobrindo. Setenta e três anos e ainda me descobrindo! Isso é bom, é uma coisa nova. Esse contato com as crianças faz a gente se sentir importante. Eu tenho que me sentir importante para alguém; assim como eu me sentia importante quando trabalhava, tenho que me sentir importante hoje para alguém. E, através do voluntariado no hospital, acredito que sou importante para as crianças.”

Sergio, tenor

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Vozes do bem-querer

A soprano Marilei, como ela mesma gosta de dizer, “tem muitas sementinhas”. Ela gostava de música, mas nunca cantava. Um dia, inspirada por um sonho, inscreveu-se no voluntariado do hospital. Depois que entrou no coral e passou a cantar, acabou se tornando responsável por muitas das tessituras que formam o Coral

Pequeno Príncipe, e por trazer outras vozes de volta a uma vida com mais sentido.

A primeira a ser chamada por Marilei foi sua comadre, a soprano Roseni, que cantava para os filhos na barriga e, antes disso, nos idos de 1986, no coral da empresa Lorenzetti. A segunda foi sua cunhada, a contralto Maria Joaquina. A terceira foi aquela para quem o coral efetivamente deu vida depois de um momento muito difícil: sua outra cunhada, a contralto Terezinha, irmã de Maria Joaquina. Ela levou ainda para o coral o cunhado Lourenço de Medeiros Filho, que não compõe mais o grupo, e também sua colega nas aulas de pilates, a contralto Neuza.

“Eu tive um sonho! Eu tive um sonho! Eu sempre leio a Bíblia, e eu sonhei com um capítulo, Deuteronômio, 22. Eu nunca tinha lido. Sonhei e acordei com Deuteronômio, 22! E daí eu fui ler e dizia assim: ‘Deveres de caridade!’ Deveres de caridade, meu Deus! Isso é um chamado. Deus está me chamando para fazer alguma coisa. Eu pensei,

‘vou procurar um voluntariado’. Me inscrevi em 2006 no hospital. Demoraram um ano para me chamar. Dia 22 de agosto de 2007 me chamaram e eu comecei a trabalhar de voluntária. Depois eu fiquei um ano sem ir, porque minha mãe ficou doente. No primeiro dia em que voltei, eu encontrei a Ingrassulina, que é minha amigona, e ela me contou: ‘O hospital agora vai ter um coral’. Aí eu já fui na primeira reunião.”

“Antes do coral, eu cantava só no chuveiro. Foi uma grata surpresa. Fui sem pretensão alguma. Ajudar a minha cunhada, que já fazia parte desde o início. Ela fazia salgados, fui ajudar a levar as encomendas e a nossa maestra Simone me recebeu de braços abertos e disse: ‘Você vai fazer parte do coral. Vai fazer o teste já!’ Eu fiquei meio assim.... e disse ‘tá bom’. Fiz o teste com a Elena e, a partir daquele momento, já comecei a fazer parte do coral. Foi a mão de Deus que me levou até lá e fez com que eu tivesse a recepção que tive. Porque eu estava passando por um momento bem difícil. E o coral para mim foi vida. Vida mesmo! O coral significa muito, muito, muito! Me deu vida! Me deu vontade de viver novamente. Vou com o coração cheio de alegria.”

Terezinha, contralto

Marilei, soprano 73 10 anos do Coral Pequeno Príncipe

A soprano Simone, xará da maestra, também conta que o Coral Pequeno Príncipe devolveulhe a vida. Em 1998, seu filho de apenas 6 meses teve um princípio de pneumonia e ficou uma semana internado. Foi quando se despertou nela o desejo de atuar no voluntariado. O tempo foi passando e a vontade permanecia, mas, naquela época, as senhas para a seleção de novos voluntários eram distribuídas no primeiro dia útil de cada mês, e eram muito disputadas. Simone trabalhava no horário de início da distribuição e, quando chegava ao hospital, acabava não conseguindo pegar a senha. Foi só em 2 de janeiro de 2014, aproveitando um retorno das férias de Ano Novo, que ela conseguiu garantir seu lugar entre os voluntários. Em junho do mesmo ano, entrou no coral a convite da soprano Rosicler, mesmo sem acreditar na própria capacidade de cantar. Rosicler, por sua vez, tinha entrado no coral graças a um chamado para o voluntariado divulgado pela televisão, que ela assistia em uma noite de insônia. A contralto Ailema, assim como ocorrera com seu colega Marcio, encontrou no trabalho voluntário e no coral uma forma de superar a perda do cônjuge e enxergar novos horizontes.

“Esse nosso grupo é uma troca de experiências muito grande. Tem uma energia absurda que circula entre as pessoas e um amor muito intenso entre todos. Ninguém consegue explicar de onde vem tanta ligação entre seres humanos.”

“Comecei o voluntariado em 2013. Tinha perdido meu marido e fui ao fundo do poço. A conselho do terapeuta, comecei a fazer trabalho voluntário no Hospital Pequeno Príncipe e fiquei encantada. Mas só em 2015 entrei no coral. Eu tinha receio, porque todos se conheciam, mas fui abraçada, me senti muito inserida, senti o carinho de ser recebida. A vida inteira cantei, em corais infantis, corais de adolescente, na igreja… A minha família toda canta. O coral é importante não só pra gente, mas também para as crianças. Todas as vezes em que a gente canta, tanto na Praça do Bibinha quanto nos corredores, sempre me emociono.”

A soprano Mônica chegou ao coral guiada pela voz de Simone Abati, que fora sua maestra no coral juvenil do Colégio Estadual do Paraná, onde ficaram amigas. Mônica trouxe para o coral o “mascotinho”, seu filho Nikolas, recebido com muito amor pelos coralistas e que tem um papel especial no grupo: o de voz principal infantil.

Simone, maestra

Quando os coralistas falam das relações dentro do coral, a palavra que sai em uníssono de suas bocas é: “família!” Família no sentido de pertencimento, amor mútuo e divisão de momentos vividos. Os membros do coral compartilham o amor pela música e pelas crianças do Hospital Pequeno Príncipe; partilham também momentos festivos e cafés da tarde. O baixo Marcio conclui: “Outra coisa mágica da música é que a gente se transformou em família”.

74 Vozes do bem-querer

Como em toda boa história, não poderia faltar um romance.

Nesta, é o amor entre uma pianista e um coralista. O baixo João Carlos Moreno é engenheiro elétrico; tem uma empresa de informática e sempre foi um amante da música, com passagem por muitos corais de Curitiba. Em 1997, recebeu um convite: substituir um dos integrantes do tradicional Coral João Paulo II em uma viagem à Polônia para um encontro de corais poloneses. João Carlos aceitou o convite sem imaginar que este também o conduziria ao altar. Na Polônia, entre as apresentações de corais de todo o mundo, conheceu a pianista bielorrussa Elena Moukhorkina.

O coralista convidou a pianista para vir ao Brasil. Ela veio a Curitiba no mesmo ano, ficou por aqui e se transformou em Elena Moukhorkina Moreno. Elena aprendeu português e decidiu continuar sua carreira. No seu país, a pianista era professora de música; no Paraná, Elena fundou grupos como o Coral ArtEncanto de Curitiba, com o qual já se apresentou inclusive no exterior. Antes da pandemia, Elena atuava como regente de seis corais. Elena e João Carlos estão no Coral Pequeno Príncipe desde antes de sua fundação oficial. Foram convidados pelo maestro Wilson dos Santos, pai da maestra Simone Abati.

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A pianista Elena Moukhorkina e seu marido, o coralista João Carlos Moreno, em viagem do Coral Pequeno Príncipe. anos do Coral Pequeno Príncipe

Não aprendi dizer adeus

Neste 2022, ano em que o Coral Pequeno Príncipe inicia sua segunda década de vida, os profundos e trágicos efeitos da pandemia de covid-19, iniciada em 2020, se fazem sentir de forma intensa e, de certa maneira, como um capítulo ainda em aberto. Alguns historiadores têm sugerido que essa crise sanitária pode vir a iniciar um novo período: a entrada de fato no século XXI, marcado por crises climáticas sem precedentes, e que já estão dando suas amostras.

O coronavírus evidenciou que nem mesmo uma crise de proporções planetárias promove rupturas suficientes em direção à igualdade de direitos e de justiça social. Claro, vimos a solidariedade e a natureza aflorarem e se afirmarem diante do desastre e do caos, mas assistimos também ao negacionismo e ao egoísmo ganhando espaço. Isso já acontecera em outros momentos históricos de guerra e de peste, como durante a Revolta da Vacina, em 1904, e acontece de novo agora.

Nesse cenário, o coral cumpre um papel aparentemente pequeno, mas que é fundamental: o de tentar levar leveza, consolo, alívio e alegria em meio ao sofrimento, coletivo e particular,

a que a pandemia nos tem submetido em diferentes graus de intensidade. E isso aconteceu com a ajuda da tecnologia, já que os ensaios e espetáculos presenciais precisaram ser suspensos em março de 2020.

Para que o Coral Pequeno Príncipe conseguisse manter o vínculo, se reunir e chegar aos corações sem comprometer a segurança de coralistas e nem a do público, seus integrantes utilizaram os aplicativos de reunião online, o WhatsApp e as redes sociais. Os encontros às quintas-feiras foram mantidos, mas à distância e em modo virtual; já as apresentações passaram a ser realizadas em vídeo. Cada coralista gravava em casa sua parte em uma peça, e depois enviava o vídeo para a equipe de produção, que fazia a edição de todas as participações e publicava o resultado nas páginas do coral nas redes Instagram, Facebook e Youtube.

Isso certamente fará parte das recordações de cada um daqui a muitas décadas, até pelo desafio que representou. Cantar sozinho não foi fácil. Como explica a maestra Simone, quando as vozes estão no coral, apoiam-se umas nas outras e, juntas, se modulam. Para alguns, foi

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estranho ouvir a própria voz: “sozinha parece que não fica tão boa”. Para outros, o desafio foi lidar com a tecnologia, gravar-se cantando e enviar arquivos. Mas ver os vídeos prontos e circulando pelas redes compensava o esforço. Os materiais tiveram muitas visualizações, curtidas e compartilhamentos, e os coralistas conquistaram fãs que nunca tinham estado em uma apresentação presencial do Coral Pequeno Príncipe.

Esses modos de driblar a distância reforçaram os laços dos coralistas e emocionaram os ouvintes, também reclusos em suas casas, nos primeiros e difíceis tempos da pandemia. As vozes voaram pelas redes e comoveram além das fronteiras da execução ao vivo de suas apresentações.

Claro, a vontade é de estar pertinho de novo, presencialmente, no hospital. Retomar o voluntariado, os ensaios e o trabalho com a voz às quintas-feiras, encontrar os amigos que viraram família, distribuir brinquedos e brincar com as crianças, fazer a festa nos corredores. Como diz a contralto Ingrassulina, carinhosamente chamada de Ingra:

“Voltaracantar. Voltarparaovoluntariado.
Voltarparatudo”.
VoltarVoltaraensaiar.Voltaraseapresentar. acantar paraascrianças.
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Movimento

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Coral Pequeno Príncipe na escadaria do edifício histórico da instituição, em 2019.
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Movimento final... e da capo!

Movimento final... 79 10 anos do Coral Pequeno Príncipe

Cada coralista entrou no coral por um caminho próprio.

Juntos, alcançaram um uníssono quanto ao sentimento de família que nutrem por seus companheiros e a vontade de compartilhar as quintas-feiras de ensaios.

Dedicando-se amadoramente à música, encontram mais uma forma de se voluntariar pelas crianças, animando as alas do hospital.

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Atualmente, o Coral Pequeno Príncipe reúne 25 integrantes. São 21 coralistas distribuídos em quatro naipes — soprano, contralto, tenor e baixo —, voluntárias e voluntários com as mais diversas trajetórias de vida, que se juntam em uma só voz, acompanhada pelo piano de Elena Moukhorkina Moreno e preparada por Mauro Abati Filho, e todo mundo sob a batuta da maestra Simone Abati. O coral conta, ainda, com a voz infantil do Nikolas, filho da soprano Mônica, um apaixonado pela cantoria desde bem pequenininho.

Estar onde não se ousava nem imaginar é um renascimento, uma descoberta. Apesar de todo o poder que tem a música, o renascer para alguns coralistas acontece pelo primeiro ato solitário de se voluntariar, ato que depois conduz ao canto. Descobrir o poder cantar em diferentes fases da vida ofereceu um impulso para a renovação constante da existência.

Há algo no Pequeno Príncipe próprio dos lugares nos quais as pessoas cumprem missões de vida e se devotam a causas. Durante esses primeiros

10 anos, o Coral Pequeno Príncipe deu vida nova a seus coralistas voluntários e encantou os corredores do hospital. A música exerceu todas as suas potencialidades de mexer com as emoções e fazer fluir os sentidos. O trabalho voluntário rendeu sorrisos para todos os lados. Gerando os mais profundos sentimentos de gratidão entre coralistas, colaboradores e crianças, o coral ajuda o Hospital Pequeno Príncipe a continuar promovendo a vida, a arte e a cultura de forma integrada.

A breve história aqui “cantada” nos ensina que vale a pena ousar e buscar o impensado para nossas vidas. Para os coralistas do Pequeno Príncipe, cantar junto tem o mesmo sentindo mágico e ritualístico de que outrora nossos ancestrais fizeram uso: a música como ferramenta de transformação. Tanto quanto estar nos palcos dos grandes teatros e fazer viagens para se apresentar, importa o estar junto e cantar. E, com isso, os coralistas alcançam novos sentidos para própria história.

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10 anos do Coral Pequeno Príncipe

E um desses sentidos parece estar em alcançar a capacidade de reconhecer a beleza nos encontros e nas singelezas, sem as pretensões da fama e da perfeição. Pessoas tão diferentes como os coralistas têm o prazer de estar juntas na descoberta da própria voz. E são recompensadas com o poder de se emocionar e de emocionar os outros com a música, tornando mais leve a rotina hospitalar das crianças, de seus pais e dos colaboradores do hospital.

O cantar junto que, na humanidade, iniciou-se na magia, continuou pela oração e comoveu até o mais cético dos filósofos, teceu o canto coral como o conhecemos hoje, potente forma de união e partilha da música. Popularizados em tantos lugares diferentes do Brasil, os corais agregam pessoas que fazem do canto uma prática semanal de preparo conjunto, que diverte e alivia o cotidiano e a solidão da vida contemporânea. A predisposição ao canto ao longo do tempo mostra, ao contrário do que se acredita, que todos podemos cantar. As ciências comprovam e nossos coralistas nos mostram que o cantar é da ordem do querer e do fazer junto.

O Coral Pequeno Príncipe evidencia que a música emociona não simplesmente por suas qualidades de execução, mas também pela vontade impostada na voz de quem canta e pela sensibilidade de cada receptor em sentir

a emoção emanada. Uma transmissão não mediada pela razão ou pela técnica, e sim por algo abstrato e ainda incomensurável, da mesma ordem das cores e da natureza.

Como tudo que o Hospital Pequeno Príncipe faz tem a vocação de transformar vidas, em cada tessitura do coral, arranjada e regada nos últimos 10 anos, surge um novo alento! Que o coral viva tanto quanto o hospital para continuar entoando novos sentidos para cada vida que canta e para quem ouve.

Na Itália, quando uma peça musical é muito apreciada, junto com os aplausos a plateia grita da capo! Ou seja, “queremos ouvir de novo”!, “bis!”. É o que nós dizemos também: da capo, Coral Pequeno Príncipe!

Acesse para conhecer o canal do coral no YouTube!

Vozes do bem-querer

ouvir de novo! Bis!
Queremos
82

Aplauso

Todos os nossos aplausos aos coralistas e às coralistas do Coral Pequeno Príncipe, que nos presenteiam com o amor expresso em suas vozes e com suas histórias de vida transformadas pelo voluntariado. A inexplicável emoção causada pela música ganha muitos sentidos em cada uma de suas trajetórias. Bravo!

Ailema Jesus Moreira Loureiro, Carlos

Eduardo Kierski, Elena Moukhorkina

Moreno, Fabiola Coelho de Queiroz, Ingrassulina Sonza Alberti, João

Carlos Moreno, Letícia Mara Marca, Marcio Zeni, Maria Eneida Abrahão, Maria Goreti Soares, Maria Joaquina de Medeiros Wasmann, Marilei

Sprada de Medeiros, Mauro Abati

Filho, Mônica Cristina Takahara, Neuza Terezinha Ragonetti, Nikolas

Takahara da Silva, Osmei Ricardo de Souza, Roseni Scarante, Rosicler

Ferraz Ceschin, Sandra Lopes Vieira

Sobczak, Sergio Roberto Souza, Simone Ruon, Tânia Mara Frazeto e Terezinha Julia de Medeiros!

Um viva à Irmã Joana Marli Stroka, que, mesmo distante, em missão no Haiti, nos brindou com uma conversa sobre o período em que foi coralista no Coral Pequeno Príncipe. Um agradecimento especial, ainda, a todos os colaboradores e voluntários que já emprestaram sua voz ao coral e à equipe de Projetos Culturais.

E uma salva de palmas às mulheres que imaginaram e nutrem o Coral Pequeno Príncipe como lugar de encontro de vozes e de encanto!

Bravo: Ety Forte, Patrícia Bertolini Izidorio e Simone Abati!

83 10 anos do Coral Pequeno Príncipe

Referências

Primeiro movimento:

Por que cantar?

LEVITIN, Daniel J. A música no seu cérebro: a ciência de uma obsessão humana. Tradução Clovis Marques. São Paulo: Objetiva, 2021.

Nesta obra, o neurocientista Daniel Levitin mostra como a música é recebida no cérebro, como desperta emoções ainda inexplicáveis e sentimentos diferentes de outras expressões artísticas.

De onde vem o canto coral?

GROUT, Donald J.; PALISCA, Claude V. História da Música Ocidental. Tradução Ana Luísa Faria. Revisão técnica de Adriana Latino. Lisboa: Grandiva, 2007.

Um extenso tratado que aborda todos os períodos da história da música no Ocidente.

SALES, Fábio. História do Canto Gregoriano: origem e relação com São Gregório Magno.

Vaticano News, 4 set. 2020. Disponível em: https://www.vaticannews.va/ pt/igreja/news/2020-09/historia-canto-gregoriano-origem-relacao-saogregorio-magno.html. Acesso em: 18 fev. 2022.

Esse texto nos apresenta uma breve história sobre o canto coral na Igreja Católica.

O canto orfeônico de Villa-Lobos

VILLA-LOBOS, Heitor. Canto orfeônico. São Paulo, Rio de Janeiro: Irmãos Vitale, 1940.

O maestro Heitor Villa-Lobos apresenta e defende a prática do canto orfeônico como metodologia para o ensino da música.

84
Vozes do bem-querer

Um coral em um hospital?

BRAGA, Geslline Giovana. Cem anos de um hospital de crianças. Prefácio José Álvaro da Silva Carneiro. Curitiba: CGC-CSA Consultoria e Assessoria, 2020.

Livro que conta a história do Hospital Pequeno Príncipe e sua articulação com a história da pediatria em Curitiba e no Brasil.

Amadora-mente

ADAMS, Ansel. A câmera.

Tradução Alexandre Roberto de Carvalho. São Paulo: Editora Senac, 1999.

Integra a clássica trilogia escrita pelo fotógrafo, voltada a aspectos técnicos da fotografia analógica. Os outros títulos são O negativo e A cópia.

O canto voluntário

SESC-RS. Ser voluntário: como praticar a solidariedade pode transformar sua vida. Blog SESC, 27 ago. 2021. Disponível em: https://conteudo.sescrs.com.br/dia-nacional-do-voluntariado-como-praticar-a-solidariedadepode-transformar-sua-vida/. Acesso em: 18 fev. 2022.

O artigo cita os estudos do neurocientista Jorge Moll Neto sobre os benefícios do voluntariado e seus efeitos no cérebro humano.

JUNKER, David Bretanha. O movimento do canto coral no Brasil: breve perspectiva administrativa e histórica. In: Encontro Anual da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Música – ANPPOM, 12., 1999, Salvador. Anais […]. Salvador: ANPPOM, 1999. Disponível em: https://antigo.anppom.com.br/anais/anaiscongresso_ anppom_1999/ANPPOM%2099/CONFEREN/DJUNKER.PDF. Acesso em: 19 maio 2022.

Neste artigo, o maestro David Junker traça um panorama do canto coral no Brasil e define e caracteriza os tipos de corais existentes.

Não aprendi dizer adeus

Observatório Nacional do Idoso da Fiocruz. Disponível em: http://www. observatorionacionaldoidoso.fiocruz.br/. Acesso em: 18 fev. 2022.

85 10 anos do Coral Pequeno Príncipe
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